sargento getÚlio: travessias entre a literatura e a · da linha 1 – leitura, literatura e...

110
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS FERNANDA SANTOS DE OLIVEIRA SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A DRAMATURGIA Salvador 2016

Upload: vuongtuyen

Post on 27-Jan-2019

222 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

0

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

FERNANDA SANTOS DE OLIVEIRA

SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A

DRAMATURGIA

Salvador

2016

Page 2: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

1

FERNANDA SANTOS DE OLIVEIRA

SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A

DRAMATURGIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Estudo de Linguagens, no âmbito da

Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do

Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da

Universidade do Estado da Bahia, como requisito

final para a obtenção do grau de Mestre em Estudo

de Linguagens.

Orientadora: Profª. Drª. Elizabeth Gonzaga de

Lima

Salvador

2016

Page 3: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

2

FICHA CATALOGRÁFICA

FICHA CATALOGRÁFICA

Sistema de Bibliotecas da UNEB Bibliotecária: Jocélia Salmeiro Gomes – CRB:5/1111

Oliveira, Fernanda Santos

Sargento Getúlio : travessias entre a literatura e a dramaturgia / Fernanda Santos Oliveira –.

Salvador, 2016.

109 f.

Orientador: Elizabeth Gonzaga de Lima

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Programa de Pós-Graduação

em Estudo de Linguagens

Contém referências.

1. Literatura brasileira – Crítica e interpretação. 2. Ribeiro, João Ubaldo, 1941-2014.

Sargento Getúlio - Adaptações. I. Lima, Elizabeth Gonzaga de. II. Universidade do

Estado da Bahia. Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens.

CDD 869.09

Page 4: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

3

FERNANDA SANTOS DE OLIVEIRA

SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A

DRAMATURGIA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudo de Linguagens, no âmbito

da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas,

Campus I, da Universidade do Estado da Bahia, como requisito final para a obtenção do grau

de Mestre em Estudo de Linguagens.

Aprovada em ________ de ________ de ___________.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________

Profª. Drª. Elizabeth Gonzaga de Lima (Orientadora)

Universidade do Estado da Bahia

_______________________________________________________

Profª. Drª. Márcia Rios da Silva (Examinadora interna)

Universidade do Estado da Bahia

_______________________________________________________

Prof. Dr. Márcio Ricardo Coelho Muniz (Examinador convidado)

Universidade Federal da Bahia

Page 5: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

4

[...] é preciso descobrir dentro do romance uma

dramaturgia, que existe ali dentro, atuar como um

decifrador que tenta descobrir, revelar uma língua

invisível. (FREIRE apud CARVALHO, 2008)

Page 6: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

5

AGRADECIMENTOS

A Deus, pela presença em minha vida.

À minha família, pelo amor incondicional.

Aos meus amigos, pelo incentivo e apoio.

À Universidade do Estado da Bahia, pelas oportunidades concedidas.

À Profª Drª Elizabeth Gonzaga de Lima, pela orientação, atenção e disponibilidade.

Aos membros da Banca do Exame de Qualificação, Profª Drª Márcia Rios da Silva e Prof. Dr.

Márcio Ricardo Coelho Muniz, pelas contribuições.

A todos os professores do PPGEL, pelo apoio intelectual.

Aos meus colegas de mestrado, pela amizade.

Aos funcionários do PPGEL, pela gentileza.

A todos que contribuíram para a realização deste trabalho.

Page 7: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

6

RESUMO

Neste estudo, investigou-se como o romance Sargento Getúlio, do escritor baiano João

Ubaldo Ribeiro, publicado em 1971, assume contornos de uma narrativa com um significativo

potencial representativo, relacionando-o com o texto dramatúrgico homônimo do roteirista e

diretor teatral, Gil Vicente Tavares. Esta pesquisa amparou-se nas referências teóricas de Ian

Watt (1990) e de Lucien Goldmann (1967) relacionando literatura e sociedade, além de

Marthe Robert (2007) e de Anatol Rosenfeld (1996), a respeito do romance moderno. No

intuito de analisar o narrador do romance, considerando sua performance e estratégias

narrativas que o transformam no contador de histórias, utilizou-se os estudos de Walter

Benjamin (1994) e Paul Zumthor (2000). No âmbito da dramaturgia, privilegiou-se os estudos

de Williams (2010), Pavis (2005), Bornheim (1983) e quanto ao processo adaptativo

considerou-se a concepção de Linda Hutcheon (2013). Através dos percursos criativos do

literário e do dramatúrgico, que se faz imprescindível reconhecer o redimensionamento do

universo artístico que demanda um alargamento dos olhares da crítica. Em Sargento Getúlio,

o poder da palavra que anuncia o estabelecimento de um novo mundo transita entre o literário

e o dramatúrgico demonstrando a decomposição existencial do homem do sertão,

evidenciando a flexibilidade entre as fronteiras artísticas numa representação que contempla o

popular, o heróico e a aridez humana como contraponto e repulsa das contradições do mundo

moderno.

Palavras-chave: Sargento Getúlio. Literatura. Dramaturgia. Adaptação.

Page 8: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

7

ABSTRACT

In this study, we investigated as the novel Sergeant Getúlio, make bahian writer João Ubaldo

Ribeiro, published in 1971, to take contours of a narrative with significant hum potential

representative, relating it to the homonymous dramaturgical text to theatrical writer and

director, Gil Vicente Tavares. This research was steadied-in theoretical references Ian Watt

(1990) and Lucien Goldmann (1967) relating literature and society, in addition to Marthe

Robert (2007) and Anatol Rosenfeld (1996), an respect to the modern novel. In order to

analyze the narrator of the novel, the performance your considering and strategies narratives

that transform the stories counter, was used studies of Walter Benjamin (1994) and Paul

Zumthor (2000). Relating to dramaturgy, priority was given studies Williams (2010), Pavis

(2005), Bornheim (1983) and how the adaptive process considered to Linda Hutcheon design

(2013). Through the creative paths of literary and dramaturgical , which is indispensable to

recognize the resizing of the artistic universe demand an extension of the critical looks. In

Sergeant Getulio, the power of speech announcing the establishment of a new world moves

between the literary and dramaturgical demonstrating the existential breakdown backwoods

man, showing flexibility between artistic boundaries in a representation which includes the

popular, heroic and human aridity as a counterpoint and repulsion of the contradictions of the

modern world .

Keywords: Sergeant Getulio. Literature. Dramaturgy. Adaptation.

Page 9: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 09

1 SARGENTO GETÚLIO: O ROMANCE NO LIMIAR ENTRE A LITERATURA

E A DRAMATURGIA ............................................................................................... 14

1.1 GETÚLIO ENTRE FEITOS E FRAQUEZAS: DO HERÓI AO ANTI-HERÓI

ROMANESCO ............................................................................................................. 15

1.2 “UMA HISTÓRIA DE ARETÊ” PARA ALÉM DE UMA QUESTÃO DE HONRA”

...................................................................................................................................... 24

1.3 O NARRADOR-CONTADOR: A DESINTEGRAÇÃO DO MUNDO ARCAICO

.......................................................................................................................................31

2 SARGENTO GETÚLIO ENQUANTO TEXTO DRAMATÚRGICO: ENTRE O

LITERÁRIO E O ESPETÁCULO ........................................................................... 38

2.1 TEXTO DRAMATÚRGICO, UM GÊNERO?............................................................ 39

2.2 SARGENTO GETÚLIO REINVENTADO: OS RECORTES DE GIL VICENTE

TAVARES ..................................................................................................................... 46

2.3 GIL VICENTE TAVARES: ENTRE O LEITOR E O DRAMATURGO .................... 51

3 O CARÁTER LITERÁRIO DO TEXTO DRAMATÚRGICO E O CARÁTER

DRAMATÚRGICO DO ROMANCE ...................................................................... 57

3.1 INTERFACES DOS SARGENTOS GETÚLIOS...........................................................62

3.2 VERSÕES DO REGIONALISMO PARA JOÃO UBALDO E GIL VICENTE

TAVARES ................................................................................................................... 70

3.3 OS GETÚLIOS NO MUNDO E OS MUNDOS DE GETÚLIO: IMAGINÁRIO DOS

ARCAÍSMOS .............................................................................................................. 75

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 80

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 83

APÊNDICE – Quadro comparativo entre o romance Sargento Getúlio, de João

Ubaldo Ribeiro, e o texto dramatúrgico homônimo de Gil Vicente

Tavares..........................................................................................................................89

ANEXO – Texto dramatúrgico Sargento Getúlio, de Gil Vicente

Tavares..........................................................................................................................96

Page 10: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

9

INTRODUÇÃO

Quando se trabalha um texto literário no teatro, tal

preferência não deve limitar-se ao enredo ou à

fábula, que por sua vez podem ser escritos por

outrem, mas sim pela forma de contar, pela

linguagem e suas idiossincrasias. De outra forma

não haveria tanto sentido em se aproximar de uma

obra de natureza tão aparentemente distinta

daquela que se conhece como a da linguagem

teatral. (Juarez Dias, 2010).

Novas maneiras de pensar a literatura e a dramaturgia são perceptíveis na trajetória

dos dois campos artísticos resultando em reconfigurações na forma e no conteúdo de ambos.

A partir de seus pontos de intersecção, o texto dramatúrgico passa a ocupar um lugar

problemático na medida em que ora se comporta como o guia do espetáculo, ora concorre

com os demais elementos cênicos.

No percurso do processo adaptativo entre a literatura e o teatro, a escrita dramatúrgica

emoldura-se com um caráter híbrido que agrupa linguagens e teatralidades ao texto. Com base

em ponderações comparativas estabelece-se uma análise das proximidades entre as duas

formas de escrita possibilitando uma análise de seus pressupostos, dos deslocamentos

interartísticos e de suas áreas limítrofes. O título da dissertação “Sargento Getúlio: travessias

entre a literatura e a dramaturgia" deve-se ao fato da pesquisa enveredar-se pelo diálogo entre

o romance e o texto dramatúrgico Sargento Getúlio, ressaltando suas mútuas contaminações.

A escolha pelo romance Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, iniciou na

Graduação em Letras - Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa com a

apresentação de trabalhos que foram sedimentando a curiosidade em continuar pesquisando a

produção do autor. No Mestrado em Estudo de Linguagens, a proposta do projeto de pesquisa

incorporou a análise do texto dramatúrgico homônimo de Gil Vicente Tavares. O objetivo do

estudo foi traçado com o intuito de analisar o processo adaptativo que se inicia com o

romance Sargento Getúlio e resulta no trabalho dramatúrgico, destacando as particularidades

inerentes ao processo, os traços do romance que potencializam a sua adaptação e as escolhas

de Gil Vicente Tavares para a elaboração da narrativa sob o olhar da dramaturgia.

João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro, escritor, acadêmico, cronista, jornalista,

roteirista e professor, nasceu na cidade de Itaparica, no estado da Bahia, em 1941. Em 2014,

Page 11: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

10

aos 73 anos, morreu, no Rio de Janeiro, o escritor que integrava a Academia Brasileira de

Letras e que se destacou como um dos escritores mais traduzidos da literatura brasileira.

Em 1968, João Ubaldo Ribeiro publicou o seu primeiro romance Setembro não tem

sentido demarcando o início dos olhares da crítica para a sua produção literária. Além de

contos, ensaios e obras da Literatura Infantojuvenil, escreveu crônicas cotidianas e políticas

publicadas em jornais de circulação nacional como O Globo e O Estado de São Paulo, e em

jornais do exterior, como Frankfurter Rundschau e Diet Zeit, na Alemanha, The Times

Literary Supplement, na Inglaterra e O Jornal e Jornal de Letras, em Portugal. Publicou dez

romances de 1968 a 2009: Setembro não tem sentido (1968), Sargento Getúlio (1971), Vila

Real (1979), Viva o Povo Brasileiro (1984), O Sorriso do Lagarto (1989), O Feitiço da Ilha

do Pavão (1997), A Casa dos Budas Ditosos (1999), Miséria e Grandeza do Amor de

Benedita (2000), Diário do Farol (2002) e O Albatroz Azul (2009).

Algumas de suas obras foram traduzidas para o inglês, francês, alemão, espanhol e

italiano. O escritor imbuiu-se da tarefa de traduzir para o inglês suas obras Sargento Getúlio e

Viva o Povo Brasileiro, sendo publicadas nos Estados Unidos em 1978 e 1989,

respectivamente. Em sua carreira literária, João Ubaldo recebeu importantes prêmios

internacionais, tais como o Prêmio Anna Seghers (1994), em Berlim,o Prêmio Die Blaue

Brillenschlange (1995), como melhor livro infantojuvenil, na Alemanha, o Prêmio Camões

(2008), entre outros, o que demonstra o sucesso de sua obra no exterior. Conforme Ceccantini

(2014), apesar do autor receber o Prêmio Jabuti com Sargento Getúlio em 1972, “essa obra

alcançou um círculo leitor mais amplo e um valor simbólico mais alto apenas quando foi

lançada nos Estados Unidos e recebeu críticas muito favoráveis”, além de comparar a

trajetória do protagonista de Sargento Getúlio com o monólogo de Hamlet considerando a sua

dúvida existencial “Levo ou não levo?”. A exploração de questões de âmbito universal

partindo do contexto local particulariza a produção de João Ubaldo ao provocar um

tensionamento entre o binarismo local e universal que permeia a sua obra.

A partir da década de 1990, a fortuna crítica do autor é agrupada em dissertações de

mestrado, teses de doutorado e livros, tais como: Vida e paixão de Pandonar, o cruel, de João

Ubaldo: um estudo de produção e recepção, de João Luís Ceccantini; João Ubaldo: um estilo

de sedução, de Wilson Coutinho; Estampas do imaginário: literatura, cultura, história e

identidade, de Eneida Leal Cunha; Caderno de Literatura Brasileira 7, do Instituto Moreira

Salles; João Ubaldo Ribeiro: obra seleta, de Zilá Bernd; Este lado para dentro: Ficção,

confissão e disfarce em João Ubaldo, de Juvenal Batella de Oliveira. Entre capítulos e livros

Page 12: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

11

publicados, destacam-se: O caminho do meio: uma leitura da obra de João Ubaldo, de Zilá

Bernd e Francis Utéza; João Ubaldo: littératuré brésilienne et constructions identitaires, de

Rita Oliviere-Godet; As distintas facetas de João Ubaldo, de Malcolm Silverman; Brava

gente brasileira, de João Luís Ceccantini e A escritura mestiça de João Ubaldo, de Zilá

Bernd.

Algumas obras de João Ubaldo foram adaptadas para o cinema, para a televisão e para

o teatro. Em 1983, foi produzido o filme Sargento Getúlio. Em 1991, O Sorriso do Lagarto

foi adaptado como minissérie da Rede Globo. Em 1993, adaptou O santo que não acreditava

em Deus para a série Caso Especial, da Rede Globo. Em 1999, escreveu o roteiro de Deus é

Brasileiro, em parceria com Cacá Diegues, a partir do conto O santo que não acreditava em

Deus. Em 2004, o romance A Casa dos Budas Ditosos foi adaptado para o teatro em forma de

monólogo por Domingos de Oliveira.

Em 2011, estreou a peça teatral Sargento Getúlio, de Gil Vicente Tavares, dramaturgo,

diretor e compositor, nascido em 1977, em Salvador, no estado da Bahia. A peça é um

monólogo com trechos entrecortados do romance de João Ubaldo Ribeiro e foi contemplada

com os Prêmios Braskem de Teatro nas categorias de Melhor Espetáculo e Melhor Ator e

indicada nas categorias de Melhor Direção e Melhor Iluminação. A adaptação preserva o

texto original dos trechos selecionados do romance o que demonstra a flexibilidade da zona

de intersecção entre os campos literário e dramatúrgico.

O romance Sargento Getúlio assume contornos de uma narrativa bastante provocadora

para o leitor contemporâneo. Por meio de um monólogo, traça-se o percurso da personagem

Getúlio, Sargento que tem a missão de levar um prisioneiro de Paulo Afonso, interior da

Bahia, até Barra dos Coqueiros em Aracaju. Metamorfoseando-se numa “história de aretê”,

rastros de elementos da cultura grega antiga podem ser vislumbrados na construção do

romance.

A narrativa romanesca vem demonstrando, desde sua publicação, um significativo

potencial representativo. Em 1983, ganhou uma versão cinematográfica. Em 2011, o roteirista

e diretor teatral, Gil Vicente Tavares, estreia a peça teatral Sargento Getúlio. Ao levar Getúlio

para os palcos, o teatro ressignifica o fazer artístico com sua linguagem encenada. Nessa

perspectiva, este estudo busca relacionar o romance à arte dramatúrgica a partir da reflexão

sobre as nuanças da representação.

Desse modo, esta pesquisa justifica-se pela importância do estudo do romance numa

perspectiva da hibridação de forma que possibilite explorar as relações dialógicas na travessia

Page 13: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

12

entre a literatura e a dramaturgia. Logo, avaliam-se as formas como a representação está

hibridizada no meio artístico e como se dá sua manifestação nas formas de expressão literária

e dramatúrgica. Este estudo persegue a seguinte indagação: a representação é capaz de

atravessar fronteiras entre a literatura e a dramaturgia, possibilitando uma mútua

contaminação, transfigurando-as?

No intuito de suscitar tais abordagens, este trabalho foi organizado em três seções. Na

seção 1, intitulada Sargento Getúlio: o romance no limiar entre a literatura e a dramaturgia,

apresenta-se uma discussão a respeito da arte do romance, a partir da análise do texto de João

Ubaldo, considerando sua intensidade na exploração de referências. A reflexão sobre o

universo da oralidade na trajetória de Getúlio, concomitantemente heroica e anti-heroica,

configura-se como gancho para o capítulo seguinte, no qual se ressalta a abordagem sobre o

texto dramatúrgico – eixo principal da discussão – e no enfoque dos aproveitamentos que o

diretor teatral Gil Vicente Tavares realizou dos elementos da oralidade constitutivos do

romance.

A seção 2, sob o título Sargento Getúlio enquanto texto dramatúrgico: entre o

literário e o espetáculo, contempla uma discussão a respeito do texto dramatúrgico a partir da

análise da obra homônima de Gil Vicente Tavares. A abordagem volta-se para o texto

dramatúrgico Sargento Getúlio, inserindo-o no contexto social, tratando da inventividade

inerente ao processo de adaptação.

A seção 3, O caráter literário do texto dramatúrgico e o caráter dramatúrgico do

romance, problematiza as similitudes entre os dois universos artísticos e analisa quais

aspectos os aproximam e os distanciam. Considera o processo adaptativo como uma

intertextualidade explícita, além de abordar sobre o regionalismo materializado no conteúdo e

na forma.

Esta pesquisa, portanto, amparou-se nas referências teóricas de Erich Auerbach

(1976), a respeito da representação da realidade na literatura e de Georg Lúkacs (2009),

acerca das relações entre o romance e a epopeia. A abordagem sobre os gêneros e as formas

híbridas, partiu das concepções de Gérard Genette (1990), Victor Hugo (2007), Todorov

(1980), Mikhail Bakhtin (2002) e Emil Staiger (1975). Acerca da ascensão romanesca,

fundamentou-se nos estudos de Ian Watt (1990) e baseou-se na concepção de Lucien

Goldmann (1967) relacionando literatura e sociedade, além de Marthe Robert (2007) e Anatol

Rosenfeld (1996), a respeito do romance moderno. Os estudos de Walter Ong (1988)

propiciaram ponderações a respeito da cultura oral. Contou-se, ainda, com as discussões de

Page 14: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

13

Beatriz Resende (2008), Erik Schollhammer (2000) e Ângela Maria Dias (2007) para abordar

a tematização da violência na literatura contemporânea.

No intuito de analisar o narrador do romance, considerando sua performance e

estratégias narrativas que o transformam no contador de histórias, utilizou os estudos de

Walter Benjamin (1994) e Paul Zumthor (2000). As reflexões sobre os estudos de recepção e

da Teoria do Efeito pautaram-se nas concepções de Wolfgang Iser (1996). No âmbito da

dramaturgia, privilegiaram-se os estudos de Williams (2010), Pavis (2005), Bornheim (1983)

e quanto ao processo adaptativo considerou-se a concepção de Linda Hutcheon (2013).

Quanto aos aspectos do regionalismo, partiu-se das concepções de Sílvio Romero (1949),

Antonio Candido (1987), Ligia Chiappini (1994) e Durval de Albuquerque (2011).

É, pois, considerando as relações mútuas por meio dos percursos criativos do literário

e dramatúrgico, que se faz imprescindível reconhecer o redimensionamento do universo

artístico que demanda, por sua vez, um alargamento dos olhares da crítica. E, por meio dessa

interação, a linguagem performática de Sargento Getúlio, seja por meio das palavras ou por

meio da ação, impõe-se com sua poeticidade no cenário contemporâneo.

Page 15: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

14

1 SARGENTO GETÚLIO: O ROMANCE NO LIMIAR ENTRE A LITERATURA E A

DRAMATURGIA

Às vezes, ocorre-nos pensar em Babel; mas é

exatamente essa flexibilidade que fez do romance a

primeira forma simbólica verdadeiramente

mundial: uma fênix que onde quer que se encontre

sabe retomar o voo, e que tem a astúcia de acertar

sempre a linguagem justa para os seus novos

leitores. (Franco Moretti, 2009).

No âmbito da discussão a respeito da relação entre as artes e, especificamente, do

potencial representativo do romance Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, e do texto

dramatúrgico homônimo de Gil Vicente Tavares, cabe uma reflexão a respeito da noção de

representação que perpassa a literatura e a dramaturgia. Derivando do latim repraesentare, o

termo transita por diversas teorias ao longo da história, sendo incorporados vários atributos ao

mesmo. Porém, nesse percurso histórico, ao ser frequentemente relacionado ao conceito de

significação, intermediando a relação entre o signo e o objeto, a representação destaca-se

como o modo de estar no lugar de outro.

O ato de representar é fundamental para as artes de um modo geral. Por isso, a

importância de compreender como acontece sua manifestação nas mais diversas formas de

expressão. Afinal, quais são os limites da representação na literatura? A representação é capaz

de romper fronteiras entre a literatura e o dramatúrgico contaminando-os mutuamente,

transfigurando-os. Arte e realidade interpenetram-se por meio da representação. Esta, por sua

vez, torna-se um fio condutor entre o real e o artístico. É imprescindível discutir sobre a forma

como a expressividade no romance Sargento Getúlio o faz extrapolar fronteiras interartísticas.

As artes proporcionam um despertar para o mundo e, ao mesmo tempo, interfere no modo de

concebê-lo.

Erich Auerbach (1976) relaciona literatura e realidade ao buscar demonstrar a

concepção de literatura como representação1 da realidade a partir de obras consagradas da

literatura ocidental por meio de uma abordagem filológica. Tal pensamento foi debatido a

1Em Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, Erich Auerbach (1976) defende a literatura

como representação da realidade na literatura ocidental o que foi intensamente criticado pelas correntes do

século XIX. A mimesis, segundo o autor, possibilitaria a unidade da diversidade inerente às relações históricas e

culturais. Foucault (1988), em Isto não é um cachimbo, ao se debruçar sobre o século XVI ao XIX verifica que a

mimesis restringe-se a um dado momento: o período clássico quando realidade e representação tornam-se

distintos e aborda que a arte deve ser liberta do signo sem necessariamente limitar-se à cópia ou imitação da

realidade.

Page 16: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

15

partir do século XIX e, especialmente, durante o século XX. A arte é desafiadora e como tal

não é uma imitação da realidade, não existe uma pretensão em ser a realidade, mas através de

um caráter questionador representar uma realidade transfigurada. Qual realidade importou a

João Ubaldo, como romancista, e a Gil Tavares, como roteirista, ao concederem vida a

Getúlio, na literatura e na dramaturgia, respectivamente?

É na imaginação que reside o poder da arte e da representação de transfigurar os

modos de ver-se o mundo. Então, é por meio da ficção que a literatura redimensiona seu

potencial para além de um universo de fantasias. E, por meio desse universo ficcional é que

Getúlio mostra-se e apresenta suas realidades configuradas num percurso que extrapola as

páginas do romance, assim como redimensiona o dramatúrgico.

No transcorrer da História, dentre as modificações ocorridas no âmbito do campo

artístico, ressalta-se o diálogo instigante entre a literatura e o cinema, a música, a dramaturgia,

entre outras linguagens, que foram transformando-se ao longo do tempo. Desse

entrecruzamento, a literatura adquiriu visibilidade em outros campos artísticos, possibilitando

o alargamento de suas potencialidades.

Nesse sentido, considerando que a dramaturgia e a literatura configuram-se como

formas de representação, reiteradamente, marcadas por uma interação mútua em seus

percursos, faz-se necessária uma discussão a respeito desse processo intercambiante. Nesse

desvencilhar da realidade, Getúlio encarna uma personagem profícua de sentidos e

significações.

1.1 GETÚLIO ENTRE FEITOS E FRAQUEZAS: DO HERÓI AO ANTI-HERÓI

ROMANESCO

Georg Lukács (2009), filósofo húngaro, em sua obra A teoria do romance, estabelece

uma relação entre o romance e a epopeia a partir da comparação entre dois mundos: o mundo

dos gregos com sua unidade e o mundo moderno caracterizado pela fragmentação e perda de

sentido ao afirmar que o “romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva

da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-

se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade.” (LUKÁCS, 2009, p. 55).

O autor afirma ser o romance a epopeia de um mundo cuja totalidade encontra-se

fragmentada, no entanto o romance busca atingir esta totalidade.

Page 17: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

16

Nesse sentido, conforme o pensamento lukácsiano, o romance sucede a epopeia

contrapondo-se a mesma em seus aspectos estéticos. Porém, o autor reconhece que as

diferenças entre ambos vão além de tais aspectos, ao considerar os seus respectivos mundos.

A partir desses matizes, pretende-se por meio da análise do romance Sargento Getúlio

verificar suas particularidades quanto à configuração do herói e anti-herói. Afinal, quais são

aproximações e distanciamentos entre o mundo homérico e o mundo de Ubaldo?

Partindo do pressuposto de que os gêneros literários não são autossuficientes, mas

complementares, é notório como os elementos do épico, do dramático e do lírico transitam

entre as fronteiras impostas por qualquer tipo de categorização. Gérard Genette (1990),

teórico francês, ressalta a importância das relações transtextuais para a literatura, assinalando

que as formas de conceberem-se os gêneros literários no decurso histórico passaram por

diversas transformações de maneira que “no trágico reside a perfeição do épico, no lírico a

perfeição do trágico, no épico a perfeição do lírico” (GENETTE, 1990, p. 57). Victor Hugo

(2007), ao teorizar sobre o grotesco, defende os gêneros híbridos ao reconhecer que o drama

reúne características dos outros gêneros, como o lírico e o épico, ressaltando que a obra de

arte não deve ser limitada por sua forma. Segundo o autor, a relação do grotesco com o

sublime acarretou numa profusão de formas alargando as possibilidades artísticas. Todorov

(1980) enfatiza que os gêneros nascem deles próprios. E, nesse sentido, o estudioso admite a

possibilidade de recriação dos gêneros antigos. Entre a hibridação e a recriação dos gêneros, a

literatura renovou-se e ampliou o seu campo artístico.

As reflexões iniciais sobre gênero emergem na antiguidade com Platão e assumem

contornos mais definidos com Aristóteles. Victor Hugo, no século XIX, exprime a idéia de

flexibilidade entre os gêneros e Emil Staiger (1975) aprofundou tal ponto de vista ao conceber

a obra de arte com uma essência fundamentalmente lírica, épica ou dramática o que não

impede da mesma apresentar traços de outro campo.

A fim de traçar o perfil dos heróis no campo literário é imprescindível retomar a forma

como a literatura era concebida na Grécia antiga. Os poemas homéricos ilustram os valores

heroicos consagrados na honra e na glória dos grandes feitos. A epopeia é a forma que

Homero utilizou para expressar a totalidade inerente à cultura grega. Jean-Pierre Vernant

(2008) afirma que o homem da Grécia antiga era entrelaçado ao contexto social e cultural de

tal forma que se comportava como o fundador e fruto do seu meio. Nesse sentido, Lukács

(2009) ressalta que:

Page 18: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

17

Para os gregos, a decadência da vida como depositária do sentido apenas

transferiu a proximidade e o parentesco mútuo das pessoas para uma outra

atmosfera, mas não os destruiu: cada personagem que aparece está à mesma

distância da essência, do suporte universal, e portanto, em suas raízes mais

profundas, todos são aparentados uns aos outros; todos compreendem-se

mutuamente, pois todos falam a mesma língua, todos guardam uma

confiança mútua, ainda que como inimigos mortais, pois todos convergem

do mesmo modo ao mesmo centro e se movem no mesmo plano de uma

existência que é essencialmente a mesma. (LUKÁCS, 2009, p. 42).

O mundo grego era envolvido por uma atmosfera alegórica, mística e sagrada, sob a

qual a divindade imperava e concedia as dádivas. Nesse contexto, a epopeia assume a

expressão de um mundo “no qual a transgressão de normas firmemente aceitas acarreta por

força uma vingança, que por sua vez tem de ser vingada, e assim ao infinito, ou então é a

perfeita teodiceia, na qual crime e castigo possuem pesos iguais e homogêneos na balança do

juízo universal.” (LUKÁCS, 2009, p. 61).

A epopeia surge, portanto, como a demonstração da plenitude e grandeza do homem

grego. Virtudes bem representadas por Homero na constituição de sua epopeia marcada por

elementos transcendentais. A cultura grega era intimamente ligada aos deuses. Assim, os

heróis da epopeia representam um elo nessa mediação com os deuses. Lukács estabelece uma

associação entre o surgimento do gênero de Homero e a essência da vida:

[...] então toda a ação é somente um traje bem-talhado da alma. Ser e

destino, aventura e perfeição, vida e essência são então conceitos idênticos.

Pois a pergunta da qual nasce a epopeia como resposta configuradora é:

como pode a vida tornar-se essencial? E o caráter inatingível e inacessível de

Homero – e a rigor apenas os seus poemas são epopeias – decorre do fato de

ele ter encontrado a resposta antes que a marcha do espírito na história

permitisse formular a pergunta. (LUKÁCS, 2009, p. 26-7).

Dessa forma, a essência transcendental da vida dos gregos residia no seu mundo

homogêneo. E o herói da epopeia, intimamente ligado ao seu mundo, apresenta-se como um

ser representativo, “nunca é, a rigor, um indivíduo. Desde sempre se considerou traço

essencial da epopeia que seu objeto não é um destino pessoal, mas o de uma comunidade.”

(LUKÁCS, 2009, p.67).

Assim, a epopeia baseia-se na essencialidade da vida de forma que a totalidade do ser

presentifica-se “quando o saber é virtude e a virtude, felicidade; quando a beleza põe em

evidência o sentido do mundo.” (LUKÁCS, 2009, p. 31). Portanto, com a modernidade e o

surgimento do romance ocorre um distanciamento dessa representação de feitos de homens

Page 19: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

18

gloriosos e de deuses transcendentais característicos da epopeia. Os mitos cedem lugar para

uma perspectiva histórica e a totalidade de sentidos da cultura grega despedaça-se, conforme

Lukács:

O processo segundo o qual foi concebida a forma interna do romance é a

peregrinação do indivíduo problemático rumo a si mesmo, o caminho desde

o opaco cativeiro na realidade simplesmente existente, em si heterogênea e

vazia de sentido para o indivíduo, rumo ao claro autoconhecimento. Depois

da conquista desse autoconhecimento, o ideal encontrado irradia-se como

sentido vital na imanência da vida, mas a discrepância entre ser e dever-ser

não é superada, e tampouco poderá sê-lo na esfera em que tal se desenrola, a

esfera vital do romance; só é possível alcançar um máximo de aproximação,

uma profunda e intensa iluminação do homem pelo sentido de sua vida.

(LUKÁCS, 2009, p. 82).

O herói épico passa por mudanças no campo literário e surge o herói romanesco. Em

sua teoria, Lukács demonstra como se configura o herói problemático em busca da harmonia a

partir da constituição do romance moderno. Ian Watt (1990), baseando-se no pensamento de

Max Weber, analisa a ascensão da forma romanesca na Europa a partir de correntes

filosóficas do século XVII e XVIII e do advento do individualismo moderno. Destaca que o

romance consolidou-se como a forma literária mais expressiva da experiência individual.

Como narrativa das trajetórias individuais, o romance rompe com sua estrutura tradicional e

introduz uma nova tendência.

Lucien Goldmann (1967) defende que a perspectiva do romancista interfere na

composição de sua produção. O autor considera a obra de Lukács um divisor de águas para a

sociologia da literatura ao superar o entendimento da obra literária como mero espelho da

realidade social e buscar uma associação no campo da forma. Goldmann aprofunda o eixo

relacional entre literatura e sociedade a partir da historicização da forma e da designação da

coletividade como sujeito.

Goldmann analisa a problemática do romance moderno a partir da perspectiva de

Hegel do romance como epopeia do mundo burguês a qual foi rebatida por Bakhtin (2002)

que defende o romance como o reconhecimento de uma nova conjuntura. Como Lukács,

Goldmann demonstra uma elevação da epopeia e trata o romance como o gênero

problemático.

O herói da epopeia seguia os rastros do destino ao passo em que o herói romanesco é

responsável por seus atos. Bakhtin defende o romance como o gênero capaz de seguir em

constante mutação formal. Mikhail Bakhtin (2002) apresenta o romance como um gênero

Page 20: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

19

inacabado e reconhece que o seu processo evolutivo o torna singular. O autor estuda o

contexto de estabelecimento do romance e demonstra que os demais gêneros “romancizaram-

se”. Tal fato contribuiu para a inovação de sua linguagem, entremeada por recursos estilísticos

e na liberdade do processo criativo.

Numa exposição que não possui um caráter histórico, Anatol Rosenfeld (1996) reflete

sobre o romance moderno. Segundo o estudioso, no romance, a linearidade temporal foi

abalada ao marcar a diferença entre os tempos cronológico e subjetivo. Segundo o autor, a

“narração torna-se assim padrão plano em cujas linhas se funde, como simultaneidade, a

distensão temporal.” (ROSENFELD, 1996, p. 83). O autor analisa o romance moderno a

partir do estudo das formas de narrar e da posição do narrador. Discute sobre a eliminação do

espaço e do tempo absolutos ao assumirem um caráter subjetivo. O homem une o passado, o

presente e o futuro. Há uma convergência entre os tempos no monólogo da personagem. O

uso da primeira pessoa permite evidenciar na estrutura do romance o fluxo da consciência.

Conforme Catherine Gallagher:

A onisciência do narrador, o discurso indireto que revela os estados mentais

da personagem, o monólogo interior, são todos modos de retirar “as

experiências subjetivas íntimas das [...] personagens, o aqui e o agora de

suas vidas que, no mundo real, permaneceriam inacessíveis a qualquer

observador.” (GALLAGHER apud MORETTI, 2009, p. 651).

Acontece uma individualização do herói no romance moderno que ultrapassa a

estrutura tradicional do gênero e transforma a maneira de narrar. E a própria personagem

passa a ser representada de forma fragmentada, à medida que o narrador mostra-se imerso na

narrativa. Enquanto a cultura grega era intimamente ligada à coletividade, na modernidade

prevalece o indivíduo. A epopeia era a forma do mundo grego antigo e o romance constitui-se

na forma do mundo moderno. A modernidade distancia o eu e o mundo e o homem entrega-se

na busca de sentidos para a sua vida. Segundo Walter Ong:

À medida que a escrita e, por fim, a impressão gradativamente alteram as

velhas estruturas poéticas orais, a narrativa se constrói cada vez menos sobre

figuras “fortes” até que, após cerca de três séculos de impressão, ela possa se

mover confortavelmente no mundo da vida humana comum, típico do

romance. Aqui, no lugar do herói, encontramos finalmente até mesmo o anti-

herói, que, em vez de enfrentar o inimigo, constantemente recua e foge.

(ONG, 1998, p. 84).

Page 21: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

20

Nesse sentido, Getúlio por meio das suas façanhas busca ser o herói implacável. São

muitos os heróis que se insurgem no meio literário representando a coragem e a valentia ao

lutar por uma causa. O herói surgiu a partir da mitologia que destacava como virtudes a

bravura e a audácia daqueles que participavam dos rituais. Segundo Kothe (2000), o herói

épico traduz-se no desejo de construção de sua história; o trágico seria o destino humano; o

trivial é a representação do poder; o pícaro é a luta pela sobrevivência.

Na literatura, o herói épico de Homero foi o primeiro perfil traçado por meio da

escrita, atrelado à mitologia, gradativamente, torna-se mais humano. Nessa transição do

divino para a humanidade nasce a personagem literária que abarca uma tipologia de heróis: o

trágico que apesar de buscar demonstrar sua força revela uma fraqueza ao perder o poder. O

embate contra o destino é a sua marca e o situa entre o divino e o humano; o herói trivial

sendo aquele que representa a classe social influente; o herói picaresco, um tipo trapaceiro

que busca vantagens. A moralidade do herói faz com que suas ações sejam justas e aceitas,

apesar da crueldade descomunal.

A presença da morte é outro elemento atrelado às ações heroicas. É perceptível como

os elementos heroicos presentificam-se no romance Sargento Getúlio através da configuração

triunfante do protagonista. A representação da violência e do espírito de vingança era

recorrente na epopeia homérica. Assim como a busca pela glória e o reconhecimento em

nome da honra. O guerreiro aspirava por uma morte que lhe concedesse a glória. Para isso, é

permanente a cobiça pelos melhores feitos, com bravura e destemor. O herói canta sua

exaltação para a coletividade e inscreve-se numa atmosfera de autoadmiração. O que importa

é a memória coletiva. É nessa ambientação e com esse perfil que Homero cria seus heróis.

Nesse sentido, que Getúlio de Ubaldo Ribeiro ressignifica o perfil do herói: “eu sou

Getúlio Santos Bezerra e meu pai era brabo e meu avô era brabo e no sertão daqui não tem

ninguém mais brabo do que eu. E eu dou um murro na testa do carneiro que aparecer e o

carneiro morre.” (RIBEIRO, 2008, p. 140). O que exalta o seu herói é a coragem e a bravura:

“agora veja essa peixeira que eu truxe, que deixei envenenada dentro dum rato morto duas

semanas e tem um anzol no bico que é para eu arrancar um pedaço de sua tripa quando ela

sair da sua barriga, e tomar com cachaça.” (RIBEIRO, 2008, p. 121). Getúlio é esse herói que

se metamorfoseia em anti-herói transplantado para as páginas do romance: “Eu sou eu. Meu

nome é um verso: Getúlio Santos Bezerra, e de vez em quando eu penso que, não tendo

ninguém melhor do que eu, tudo que pode me acontecer é melhor do que os outros. Hum. Não

sei, acho que eu penso demais, não adianta.” (RIBEIRO, 2008, p. 140). José Hildebrando

Page 22: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

21

Dacanal afirma que “Sargento Getúlio apareceu com lugar já definido dentro da literatura

brasileira. A obra de João Ubaldo Ribeiro, criação poética a cuja grandeza ninguém pode

deixar de curvar-se, integra, sem qualquer dúvida, o ciclo da nova narrativa épica.”

(DACANAL, 1988, p. 90).

O fundamental no perfil de Getúlio é o ímpeto de partir para o combate com sua

atuação descomedida: “Aí inverti a arma, encarquei duas vezes no beiço do alguém e

arranquei quatro dentes de alicate. E deixei.” (RIBEIRO, 2008, p. 62); “Bom, por primeiro

bati a coronha nele para ele abrir a boca; depois tirei dois dentes de riba, dois dentes de baixo.

Foi serviço ligeiro.” (RIBEIRO, 2008, p. 67); “Pode ser crime, mas não é roubo, porque tirar

coisa de delegacia não deve ser roubo, pode ser crime. Pode ser o que quiser, em mim não

pega nada, eu sou eu e nicuri é o diabo, campe-se.” (RIBEIRO, 2008, p. 118).

Em Sargento Getúlio, o herói legitima-se por meio de uma escrita oralizada que

perpassa por uma enorme expressividade no transcorrer da narrativa: “Eu moro no mundo.

Moro andando. Ai, aaaaaaaaai, aai, aai, ai, ai, aaaaaaaaai, aaaai, ai um boi de barro, ai um boi

de barro, um boi de barro, ai um boi de barro, ai de eu, um boi de barro, ai um boi de barro.”

(RIBEIRO, 2008, p. 31). Além disso, é muito frequente a presença de cantigas,“pois ô de

casa/abre essa porta/tem uma visita/de cara torta” (RIBEIRO, 2008, p. 78), músicas,

“Bonequinha linda/dos cabelos louros/olhos tentadôrios/lascos de lubila.” (RIBEIRO, 2008,

p. 52), versos de cordel “Capitão Moreira César/Dezoito guerras venceu/A terceira não

interou/No Belo Monte morreu [...] O alfere Vanderlei/É bicho de opinião/Quando foi para

Canudo/Foi em frente ao batalhão.” (RIBEIRO, 2008, p. 90-1). Em Sargento Getúlio,

oralidade e memória entrecruzam-se e vão sendo verbalizadas no decorrer das páginas e

vivenciadas pelo protagonista.

Walter Ong afirma que foi comprovado que “a Ilíada e a Odisséia eram

essencialmente criações orais, fossem quais fossem as circunstâncias que determinaram seu

registro pela escrita.” (ONG, 1988, p. 71). A respeito da cultura oral o pesquisador ressalta

que:

A tradição heróica da cultura oral primária e da cultura escrita primitiva,

com seu enorme resíduo oral, está relacionada ao estilo de vida agonístico,

mas é construída segundo as necessidades dos processos noéticos orais. A

memória oral trabalha eficientemente com personagens “fortes”, indivíduos

cujas façanhas são notáveis, memoráveis e geralmente notórias. Desse modo,

a economia noética própria a ela gera figuras de tamanho descomunal, isto é,

figuras heróicas não por motivos românticos ou deliberadamente didáticos,

Page 23: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

22

mas por motivos muito mais fundamentais: organizar a experiência numa

forma permanentemente memorável. Personalidades apagadas não podem

sobreviver na mnemônica oral. Para garantir peso e memorabilidade, as

figuras heróicas tendem a constituir figuras-tipo: o sábio Nestor, o furioso

Aquiles, o astuto Ulisses. (ONG, 1998, p. 83).

O herói homérico é construído como uma figura impetuosa. Como exemplo tem-se a

personagem Aquiles que prefere uma vida breve, mas que fosse, sobretudo, gloriosa. Homero

eternizou o herói grego de forma que é glorificado reavivado na pele de outros heróis. Dessa

forma, percebe-se em Getúlio um revestimento desse herói grego que clama por ser

reconhecido. A grandeza sugerida pelas ações desmedidas de Getúlio é um dos aspectos que o

aproximam do herói grego:

Qualquer estrago na cara está explicado. Ele que diga que não foi o tombo,

que é a última coisa que ele abre a boca para dizer. Vosmecê tem um alicate

aí? Que eu arranco dois dentes da frente dele. Arranco dois de baixo, dois de

cima, que fica mais certo. Assim ele assobia e cospe bem, hum? Primeiro,

dou de coronha atravessada nos beiços, que amorteceia, amolece e ele abre a

boca mais fácil. Depois, puxo de uma, puxo de duas, puxo de três e arranco.

Isso não tem dificuldade, os de baixo puxa para cima direto e os de cima

puxa para baixo direto. Resistindo, sacode de uma banda para outra, até vir.

Seu Nestor trouxe um baú de folha, aquilo assim de ferruge, tão assim que

abriu com um roncor devagar, e deu o alicate. Esse, não muito melhor, um

negrume. Achei que ia estrompar as gengivas do coisa. Acho que vai

estrompar suas gengivas, coisa. Vosmecê desculpe, não tem outro, mas é

isso ou capação. (RIBEIRO, 2008, p. 61-2).

Getúlio desbrava pela vastidão do seu mundo, por um caminho aventuroso, numa

narrativa que o reveste de contornos rígidos. Ao insistir no cumprimento de sua missão, a

personagem busca acatar as aspirações de sua alma, de forma que suas ações assumem um

perfil característico da epopeia homérica na qual o herói entrega-se ao combate em nome da

glória. Porém, o herói Getúlio como representante do Estado assume uma perspectiva

individualizada.

Em Sargento Getúlio, a hipérbole é evidente na fala da personagem: “Eu ia ser o maior

cangaceiro do Brasil, o maior piloto de jagunço do Brasil e ia ter a maior tropa. E não me

chamasse de sargento, me chamasse de capitão. Ou me chamasse de major.” (RIBEIRO,

2008, p. 126) e aos poucos Getúlio vai corporificando-se num dragão: “dava uns urros bem

altos para quebrar vidraças e tomava duas pipas de cachaça de cada vez e comia dois cabritos

sozinho ou então um bezerro e assoprava para arrancar os pés de árvore do chão e quando eu

Page 24: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

23

batesse a coronha no chão, o chão tremia todo e as frutas despencavam.” (RIBEIRO, 2008, p.

126) de forma que todos pudessem chamá-lo de “Dragão Manjaléu”.

Getúlio entremeia-se pelo universo da oralidade até a hora da morte: “eu vou morrer e

nunca vou morrer eu nunca vou morrer Amaro eu nunca vou morrer um aboio e uma vida

Amaro aaaaaaaaaaaaaaaahhh eeeeeeeeeeeeeeeh aê aê aê aê aê aê aê aê aê aê eco eco aê aê aê

aê aê eu nunca vou morrer Amaro [...] eu vou e cumpro e faço e” (RIBEIRO, 2008, p. 163).

Percebe-se uma fala que reforça seu destemor: “e lá vou eu, melhor do que o reis da Hungria,

não quero nem olhar para trás.” (RIBEIRO, 2008, p. 123). E a personagem não admite a

fragilidade que lhe cabe com o transcorrer dos anos e afirma preferir a morte a deixar sua

inteireza:

Eu não, que na minha mão tem uma linha riscando a linha maior, que diz:

morte matada. Isso é fato, não tem como correr. É melhor, dói menos e dá

menos transtorno. Nessa morte eu acredito, porque não posso pensar que eu

vou ficar velho e sem dente e minha mão vai tremer. Uma coisa que não

existe é Getúlio velho, só existe Getúlio homem inteiro, não posso ficar de

boca mole, falando porque no meu tempo isso no meu tempo aquilo.

Verdade que tem certos velhos que ainda são machos, mas esses é do tempo

antigo, não é hoje. (RIBEIRO, 2008, p. 125-6).

Getúlio batalha incansavelmente em defesa de sua honra. E com a consciência de que

“A coisa que mais tem é morte, e o mais certo que tem. Desque nasce começa a morrer.

(RIBEIRO, 2008, p. 39), Getúlio reafirma sua “machidão” em devaneios sobre sua morte:

e quando eu morresse, avô de todos, pai direto ou por tabela, me enterravam

ali e botavam em riba uma cruz com o Senhor crucificado e quem passasse

ia dizer: aquela cruz é do finado, se não se benzer ele ainda vem e lhe pega.

A machidão toda aí, era Garanhão Santos Bezerra, Malvadeza Santos

Bezerra, Abusado Santos Bezerra, Tombatudo Santos Bezerra, Comegente

Santos Bezerra, Enrabador Santos Bezerra, Rombaquirica Santos Bezerra,

Sangrador Santos Bezerra, Vencecavalo Santos Bezerra, todo mundo.

(RIBEIRO, 2008, p. 128).

O romance Sargento Getúlio apresenta uma narrativa que ao acompanhar o fluxo do

pensamento de Getúlio apresenta longos parágrafos com uma cadência próxima da oralidade:

“Propriá e Maruim, já viu, poeiras e caminhãos algodoados, a secura fria. E sertão do brabo:

favelas e cansançãos, tudo ardiloso, quipás por baixo, um inferno.” (RIBEIRO, 2008, p. 9).

Assim, a metamorfose do herói ao anti-herói materializa-se de “Paulo Afonso a Barra dos

Coqueiros” e arraiga-se na essência da narrativa de Ubaldo ao explorar nessa “história de

Page 25: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

24

aretê” uma relação estreita com a cultura oral de forma que possibilita o entrelaçamento de

gêneros e demonstra como a escrita literária ressignifica-se na sua expressividade. Para tanto,

situar-se diante de Sargento Getúlio é desvendar toda uma riqueza cultural no intercalar dos

gêneros presentificados na constituição do romance.

1.2 “UMA HISTÓRIA DE ARETÊ” PARA ALÉM DE UMA QUESTÃO DE HONRA

“Nesta história, o Sargento Getúlio leva um preso de Paulo Afonso a Barra dos

Coqueiros. É uma história de aretê.” (RIBEIRO, 2008, p. 7). É com esta epígrafe que João

Ubaldo Ribeiro apresenta o romance Sargento Getúlio, constituindo-o na metáfora da aretê.

Dessa forma, cabe uma reflexão sobre a acepção do termo e de seu desdobramento no

decorrer da construção narrativa.

De origem grega, o termo aretê, equivalente à noção de excelência, está relacionado

com a realização de um objetivo. Etimologicamente, o termo advém de aristós que significa

excelente (SPINELLI, 2014, p. 168). Na Grécia antiga, o termo perpassa pelos mais diversos

âmbitos da cultura assumindo diversas conotações, interpenetrando nos campos da religião, da

filosofia, da educação e da moral, especialmente.

Na tese Sargento Getúlio na tese Dominação e violência, entre a história e a ficção:

uma análise de Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, de autoria de Fábio Roberto

Rodrigues Belo (2007), o autor desenvolve uma abordagem relacionando o termo aretê com a

estrutura de poder e a obediência de Getúlio, numa perspectiva histórica, ressaltando que o

termo não está ligado à virtude, mas à simples tarefa que cabia a Getúlio, na sua condição de

subordinado. Além disso, alguns estudos aludem ao termo aretê, relacionando à deusa da

virtude e ao cumprimento da missão de Getúlio, mas não se aprofundam na questão. A

perspectiva desta pesquisa, ao contrário, utiliza a noção do termo aretê relacionada à virtude,

conforme a acepção grega, relacionando-o com a tematização da violência na literatura

contemporânea.

É perceptível que Ubaldo empregou a epígrafe de forma intencional ao utilizá-la como

um prenúncio da narrativa. Faz alusão ao destino da história destacando-se como um

referente. O uso do termo grego influencia no desenvolvimento da leitura. Conforme Gilberto

Mendonça Telles (1979), as epígrafes servem de elemento que relaciona o texto ao contexto,

estabelecendo-se como um dos componentes culturais da obra. Ao propor um caráter

Page 26: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

25

intertextual a partir da epígrafe, o autor sugere uma particularidade à sua obra. A epígrafe

ultrapassa a estrutura textual e assume um aspecto profético e indicial.

Nessa perspectiva da busca pela excelência é que se nota como tal qualidade reveste a

personagem de Ubaldo de coragem e de habilidade no seu intento de cumprir a missão de

levar o prisioneiro até Barra dos Coqueiros – tarefa concedida pelo chefe Acrísio Antunes. A

aretê, nesse contexto, está intrinsecamente relacionada à incumbência que foi destinada a

Getúlio. Eis, portanto, a virtude da cultura grega que assume, gradativamente, contornos na

trajetória de Getúlio.

A personificação da aretê em Getúlio o reveste de coragem e faz da honra o seu alvo.

Para ele não existem “limites para a frouxidão que faz o homem dar nas canelas e botar a

alma no mundo, correndo do destino” (RIBEIRO, 2008, p. 10). Sem fugir do destino, a

personagem segue seu caminho, desafiando sua sina. No percurso até Aracaju, Getúlio divaga

vislumbrando a entrega do “peste” do prisioneiro. Admite que não gosta desse serviço de

levar preso, o que o deixa avexado. “Depois de levar vosmecê lá, assento os quartos num

lugar e largo essa vida de cigano. Só se doutor Zé Antunes pedir muito. Mesmo assim. Me

aposento-me.” (RIBEIRO, 2008, p. 13).

O que importa para a personagem é o seu nome e preza por ele. Afinal é um homem

resolvido: “Mas se eu não sou um homem despachado ainda estava lá no sertão sem nome,

mastigando semente de mucunã, magro como o filho do cão, dois trastes como possuídos,

uma ruma de filhos, um tico de comida por semana e um cavalo mofino” (RIBEIRO, 2008, p.

14). Com vinte mortes nas costas, Getúlio admite que não se lembra de todas. “A primeira é

mais difícil, mas depois a gente aprende a não olhar a cara para não empatar a obra. De perto

demais não é bom. Se agarram-se na gente, puxam a túnica para baixo.” (RIBEIRO, 2008, p.

15).

Getúlio faz do mundo a sua moradia. Cortando estradas, na medida em que se depara

com qualquer ameaça ao cumprimento de sua tarefa, ele valida sua qualidade virtuosa e

exalta-se como o melhor entre os guerreiros. No percorrer da narrativa, a personagem

reafirma-se constantemente em nome de seus valores.

“Mas em missão não se pode fazer arruaça” (RIBEIRO, 2008, p. 36). Por meio de

preceitos, Getúlio vai traçando seu perfil na narrativa, como um sargento que não gostava de

usar uniforme “descompleto” e prezava pela ordem quando estava com alguma incumbência.

Além disso, “não existe quem bote a honra no lugar da saída” (RIBEIRO, 2008, p. 39), pois o

que importa é a sua reputação.

Page 27: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

26

Subordinado à missão que foi concedida pelo chefe Acrísio Antunes, Getúlio defronta-

se com uma mortandade durante o percurso e ao buscar abrigo na igreja, apresenta-se ao

padre como: “Getúlio de Acrísio Antunes, Antunes do pecidê, pecidê desse Sergipe, Sergipe

desse mundão, mundão que está esquentado, esquentado que vai derreter.” (RIBEIRO, 2008,

p. 64). Enquanto o padre não abria a porta, Getúlio tentava explicar sobre sua missão,

ressaltando que se não desse certo a culpa seria do “padre avariado”. Nesse momento,

evidencia-se como a identidade de Getúlio está vinculada à subordinação do chefe.

Mas, a preocupação de Getúlio era chegar logo na Barra dos Coqueiros, em Aracaju,

com o traste do prisioneiro. O padre pergunta ao sargento porque ele não tomava a decisão de

sumir e, prontamente, ele responde: “Eu sumir, eu sumir? Como que eu posso sumir, se

primeiro eu sou eu e fico aí me vendo sempre, não posso sumir de mim e eu estando aí

sempre estou, nunca que eu posso sumir. Quem some é os outros, a gente nunca.” (RIBEIRO,

2008, p. 86). Getúlio não admitia correr do seu destino e fugir não fazia parte da

personalidade de um homem viril.

Persistente na sua marcha reforça sua dureza afirmando que não sabia quantos homens

de Aracaju seriam capazes de deter sua intrepidez. Afinal, o que prevalecia era cumprir com

excelência a primeira ordem que foi dada pelo chefe Acrísio:

o chefe me mandou buscar isso aí e eu fui, peguei, truxe, amansei, e vou

levar porque mesmo que o chefe agora não possa me sustentar, eu levei o

homem, chego lá entrego. É preciso entregar o bicho. Entrego e digo: ordem

cumprida. Depois o resto se aguenta-se como for, mas a entrega já foi feita,

não sou homem de parar no meio. Se for assim mesmo como se diz que é,

espero as outras ordens, porque essa está dada e nem ele que viesse aqui e

me pedisse para não levar eu não deixava de não levar, porque possa ser que

ele esteja somente querendo me livrar de encrenca, eu levo esse lixo de

qualquer jeito, chego lá e entrego. Nem que eu estupore. (RIBEIRO, 2008, p.

86-7).

Essa busca da “ordem cumprida” está atrelada ao caráter de Getúlio o aproxima da

aretê grega. Afinal, como homem que não pára no meio, a personagem proclama sua virtude.

A entrega do prisioneiro torna-se equivalente ao alcance da excelência grega. O sargento, em

seguida, resolve descrever os atributos de suas origens. A essência de seu antepassado

familiar constituía-se por uma gente braba e essa referência realçava ainda mais seu vigor e

destemor:

Page 28: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

27

Quero ver esse bom em Aracaju que me diz que eu não posso, porque eu sou

Getúlio Santos Bezerra e igual a mim ainda não nasceu. Eu sou Getúlio

Santos Bezerra e meu nome é um verso e meu avô era brabo e todo mundo

na minha raça era brabo e minha mãe se chamava Justa e era braba e no

sertão daqui não tem ninguém mais brabo do que eu, todas as coisas eu sou

melhor. Pode vim. Getúlio Santos Bezerra eu me chamo, e enquanto um

carneiro qualquer um mata com uma mão de pilão na testa eu dou um murro

na testa e mato esse carneiro ou outro que tenha e mato qualquer vivente e

esses ferros que eu carrego eu manejo. (RIBEIRO, 2008, p. 87).

Paul Ricoeur (1997) associa tempo e narrativa a partir da proximidade entre a

narrativa histórica à narrativa ficcional. Considera a atividade de leitura fundamental para a

representação do tempo ao possibilitar o entrelaçamento entre história e ficção. Ubaldo

incrementa sua narrativa literária de aspectos históricos, políticos e culturais do Brasil da

década de 1950. Ao representar literariamente o autoritarismo desmedido por meio da

personagem denominada Getúlio, tal artifício possibilita fazer a referência a Getúlio Vargas,

presidente do Brasil no período.

De maneira alegórica, Ubaldo reconstrói o cenário do período ditatorial com seus

embates e truculências em um Brasil atrasado e pobre. Numa Bahia agrária e dominada por

jagunços. Partidos políticos como a União Democrática Nacional (UDN), que fazia oposição

ao governo de Vargas, e Partido Social Democrático (PSD) que surgiram na época são citados

no texto, assim como faz alusão aos presos políticos. No período ditatorial, jornalistas,

escritores e artistas eram censurados.

Na década de 1950, o poder no estado da Bahia estava sob o governo do PSD e

passava por mudanças socioeconômicas. Até meados do século XX, a população brasileira era

predominantemente rural e iniciava o processo de industrialização. Somente em meados da

década de 1950 que a modernização econômica começa a modificar os grandes centros

urbanos. O país passa a adotar um estilo de vida distinto e a caminhar rumo à modernização e

ao progresso. Eletrodomésticos invadem as casas e inicia um modelo consumista de produtos

industrializados. Poder, política e cangaço da Bahia a Sergipe é o que entrecorta o monólogo

de Getúlio. Um coronelismo de uma época que se traduz na saga do sertão e um sargento que

almeja ser estimado e temido.

Segundo Schollhammer, nos romances regionalistas “a violência ainda se articulava

dentro de um sistema simbólico de honra e vingança, numa realidade social do sertão em que

a lei e o monopólio estatal da violência não conseguiam garantir a igualdade entre os

Page 29: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

28

sujeitos”. (SCHOLLHAMMER, 2000, p. 238). Como parte deste sistema simbólico, a

personagem Getúlio sente a necessidade de demonstrar sua superioridade:

Corro, berro, atiro melhor e sangro melhor e bebo melhor e luto melhor e

brigo melhor e bato melhor e tenho catorze balas no corpo e corto cabeça e

mato qualquer coisa e ninguém me mata. E não tenho medo de alma, não

tenho medo de papa-figo, não tenho medo de lobisomem, não tenho medo de

escuridão, não tenho medo de inferno, não tenho medo de zorra de peste

nenhuma. E não escuto liberdade, não converso fiado, não falo de mulher,

não devo favor e não gosto que ninguém me pegue. (RIBEIRO, 2008, p. 87-

8).

Segundo Beatriz Resende, a respeito do brutalismo na literatura brasileira

contemporânea, é o “fragmentário da narrativa, acompanhado por certo humor e ironias sutis,

que impede que a obra se transforme puramente no relato do mundo cão.” (RESENDE, 2008,

p. 31). Através de um relato hiperbólico, Getúlio ilustra tal tipo de narrativa com o exagero

nas descrições:

O senhor já ouviu falar de meu nome, Getúlio Santos Bezerra, sou eu mesmo

e quando eu dou risada pode todo mundo tremer e quando eu franzo a testa

pode todo mundo tremer e se eu bater o pé no chão pode todo mundo correr

e se eu assoprar na cara de um pode se encomendar. Sou curado de cobra e

passo fome, passo frio e passo qualquer coisa e não pio e se me cortarem eu

não pio. Durmo no chão, durmo em cama de vara, durmo em cama de couro,

ou então não durmo e quem primeiro aparecer primeiro quem atira sou eu e

quando atiro não atiro nas pernas, atiro na cara ou atiro nos peitos e os

buracos que eu faço às vezes é um em cima do outro e tem uma coisa: em

Sergipe todo não tem melhor do que eu e se eu lhe digo que não tem um

melhor do que eu em Sergipe, não vejo esse bom, estou lhe dizendo que não

tem melhor no mundo, porque essa é uma terra macha e eu sou macho dessa

terra. (RIBEIRO, 2008, p. 88).

E, dessa forma, da palavra de honra que foi dada ao chefe Acrísio, Getúlio dirige-se ao

prisioneiro e afirma que: “seu destino está escrito e vosmecê vai comigo para Aracaju para eu

lhe entregar” (RIBEIRO, 2008, p. 93). Entre a palavra de honra e a escrita do destino o

sargento configura-se num perfil em busca da excelência e faz de sua missão a sua aretê:

E eu vou levar esse traste arrastado ou espetado, naquele hudso até Aracaju,

e chegando lá apresento ele: ele veio de Paulo Afonso até aqui e está com

essa boca em petição porque deu cupim no caminho e comeu os dentes da

frente. E se cortei a cabeça do tenente, foi bem cortada. Mas não vou dizer a

todo mundo que eu cortei a cabeça do tenente. Só digo ao chefe e calo a boca

e cruzo os braços e boto o olho no vento. E quem quiser que bote o olho no

Page 30: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

29

meu. E pronto. E se ninguém quiser ir comigo, eu vou só. (RIBEIRO, 2008,

p. 88).

O mundo de Getúlio circunscreve-se a ele e seu chefe. “É por isso que eu só posso ter

de levar esse traste para Aracaju e entregar. Tem que ser.” (RIBEIRO, 2008, p. 97). Não

aceita qualquer recado que lhe traga alguma contra-ordem, apesar de reconhecer a

possibilidade de que tudo era verdade. Começa a perceber-se sozinho no seu mundo.

Mesmo com todos os percalços encontrados pela estrada Getúlio reafirma sua decisão

de levar o prisioneiro. Afinal, nunca foi “homem de falhar no meio” (RIBEIRO, 2008. p.

102). “Deus me livre que eu não leve o coisa comigo e não entregue, o que é que eu vou ficar

pensando depois, se já tenho pouco para pensar e o pouco que eu tenho vai inchando na minha

cabeça e vai tomando conta do oco que tem lá dentro?” (RIBEIRO, 2008, p. 103). Getúlio,

sem olhar para trás, segue em busca da bela hora. “Entreguei, cambada de capadoços,

entreguei. Agora quero ver. An-bem, nunca pensei no que eu vou fazer depois, comigo agora

não tem depois.” (RIBEIRO, 2008, p. 153).

A única verdade aceita para o sargento era a ordem pronunciada pelo chefe. Não

cumprir a missão significaria um racha na sua palavra e, consequentemente, afetaria a sua

honra. Atributo este de enorme significado para o seu mundo. A aretê em Getúlio situa-se,

portanto, no interstício entre o dito e o vivido:

Vai até a casa do chefe, que eu quero levar e quero olhar a cara dele e dizer:

olhe aí sua encomenda, pode fazer o que quiser; por mim, pegava esse

ordinário e aplicava um merecido logo, que aprontava as coisas, mas não

tenho nada com isso mesmo. É isso que eu quero fazer, e quero botar as

vistas bem dentro das dele que é para ele dizer na minha cara que não

mandou buscar e aí eu digo a ele: quem o senhor mandou em Paulo Afonso,

que eu me lembro, aqui mesmo nessa sala, quem o senhor mandou em Paulo

Afonso, numa noite, aqui nessa sala mesmo, eu, Getúlio Santos Bezerra,

tomando um vermute vermelho aqui, quem o senhor mandou para Paulo

Afonso para buscar esse criaturo, não foi nem eu. (RIBEIRO, 2008, p. 157).

E, na narrativa, tal virtude é evidenciada pelo querer fazer da personagem numa

trajetória marcada por tensão e violência. Segundo Schollhammer, “a violência enquanto tema

da literatura brasileira tem tido como cenário, de modo geral, o interior, o campo, o sertão e,

mais recentemente, o espaço urbano.” (2000, p. 236). Segundo o autor, o brutalismo é uma

das vertentes da contemporaneidade caracterizada pela reinvenção da violência social que ao

explorar o realismo abusa da crueza humana na literatura. Na narrativa de Ubaldo, o uso da

Page 31: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

30

violência ultrapassa a exploração desse realismo cruel. Ao considerá-la como uma metáfora

da aretê, Ubaldo ressignifica tal virtude grega numa roupagem contemporânea e coloca em

evidência a importância da palavra dada para um mundo intrinsecamente oral. O sargento

imagina como seria o momento do encontro com o chefe. Imagina-se questionando ao chefe

se ele havia mandado ou não ir até Paulo Afonso:

Tinha minha missão, isso tinha. E fiz. Tinha minha vida, isso também, e vivi,

e se me perguntasse quer viver uma vida comprida amofinado ou quer viver

uma vida curta de macho, o que era que eu respondia? Eu respondia: quero

viver uma vida curta de macho, sendo eu e mais eu e respeitado nesse mundo

e quando eu morrer se alembrem de mim assim: morreu o Dragão. Que

trouxe uma mortandade para os inimigos, que não traiu nem amunhecou, que

não teve melhor do que ele e que sangrou quem quis sangrar. Agora eu sei

quem eu sou. (RIBEIRO, 2008, p. 160).

O desfecho do romance é caracterizado por uma fala de desespero da personagem

Getúlio, que ao perceber que o destino está traçando um novo rumo, se vê diante da morte,

mas com a certeza de que continuará vivo pela grandeza de sua missão e suas últimas palavras

são “eu vou e cumpro e faço e” (RIBEIRO, 2008, p. 163). Por meio da palavra dada, Getúlio

que antes era identificado como o “Getúlio de Acrísio” passa a reconhecer-se como Getúlio

Santos Bezerra. Através da busca por fazer-se cumprir a missão que lhe foi dada pela palavra,

o sargento passa de subordinado a uma ordem a assumir uma postura daquele que respeita,

acima de tudo, a palavra. E a missão, dessa forma, acaba por singularizar Getúlio.

A exploração da violência em Sargento Getúlio dá-se por uma linguagem fortemente

significativa. Conforme Ângela Maria Dias, “cada vez mais, as escrituras acolhem imagens e

são por elas plasmadas. Não apenas pela mera iconicidade descritiva, mas, sobretudo, nos

melhores momentos, pela densidade plástica da paisagem que, mesmo distante do olhar,

renasce, a cada vez, inscrita na espessura da letra.” (DIAS, 2007, p. 22).

João Ubaldo cria um ambiente de violência em nome da honra que, por sua vez, é

realçada por meio da aspereza da linguagem. Conforme Beatriz Resende, “em torno da

questão da violência aparecem a urgência da presentificação e a dominância do trágico, em

angústia recorrente” (RESENDE, 2008, p. 33). Dacanal considera que:

A epopéia trágica criada por João Ubaldo Ribeiro faz de Sargento Getúlio

um dos mais comoventes personagens da literatura brasileira. Comovente

porque Getúlio marcha inexoravelmente para a autodestruição, apesar de se

saber que ele é inocente. As forças que o impelem para o cataclisma final são

Page 32: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

31

exteriores a ele. Mais ainda, parecem pairar, intangíveis, acima da condição

humana. Desde o início tem-se a impressão – tornada depois certeza – de

que na base da ação de Getúlio se esconde uma hybris contra a qual,

implacáveis, se levantam as deusas da vingança que o destroem.

(DACANAL, 1988, p. 94-5).

Observa-se uma tendência representativa da violência atrelada a um contexto social

dominado por uma simbologia da honra e da vingança. Sobretudo no século XX, “o tema

principal do regionalismo pode ser visto, dessa forma, como o confronto entre um sistema

global de justiça moderno e sistemas locais de normatização social regulados pelos códigos de

honra, vingança e retaliação” (SCHOLLHAMMER, 2000, p. 238).

Percebe-se a violência como consequência de uma modernidade tardia em

contraposição aos valores do mundo considerado arcaico, com seus códigos de honra. O

sertão é tematizado na literatura, afirmando-se como um espaço áspero e brutal. Porém, agora

a representação da violência também se estabelece com a expressão das contradições urbanas

que acompanham a realidade do sertão. Sertão este como o do universo de Ubaldo que

reaviva uma representação semelhante à das “epopeias homéricas”, construída a partir dos

códigos de honra e da celebração de feitos notáveis de seu herói. Por meio do atravessamento

da aretê na narrativa, Ubaldo atribui sentidos ao percurso traçado por Getúlio. Em tal

itinerário, é também desenhada a trajetória do auto-reconhecimento da personagem que

incorpora a virtude grega.

1.3 O NARRADOR-CONTADOR: A DESINTEGRAÇÃO DO MUNDO ARCAICO

A importância da antiga civilização grega para o

mundo todo estava começando a se mostrar sob

uma luz inteiramente nova: ela assinalava o ponto,

na história humana, em que a cultura escrita

alfabética, profundamente interiorizada, pela

primeira vez se chocava diretamente com a

oralidade. (Walter Ong, 1988).

Considerando a epígrafe acima, nota-se como o choque entre a cultura escrita e a

oralidade remonta à Grécia antiga. A relação entre oralidade e escrita percorre o transcorrer da

história de forma que é possível perceber seus entrelaçamentos no campo literário.

Etimologicamente, o termo literatura provém do latim litera que se refere à letra do alfabeto.

Page 33: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

32

Apesar da literatura, predominantemente, abranger o universo escrito é evidente a influência e

a persistência da oralidade no processo criativo do fazer literário.

Conforme Walter Ong, o teatro grego antigo “foi a primeira arte verbal ocidental a ser

totalmente controlada pela escrita. Foi o primeiro gênero - e durante séculos o único – a

possuir caracteristicamente uma estrutura compacta” (ONG, 1988, p. 167). O autor ressalta

que antes de configurar-se como uma apresentação oral, o teatro constitui-se partindo do texto

escrito. E, dessa forma, o narrador esconde-se e cede espaço para as vozes dos personagens.

Com a impressão e surgimento do romance, Walter Ong ressalta que houve uma preocupação

maior com o texto do que com os ouvintes. Porém, o autor aponta para uma incerteza quanto à

permanência dessa atenção voltada prioritariamente para a escrita:

O fato de os romancistas do século XIX repetirem o “caro leitor” revela o

problema de adaptação: o autor ainda tende a sentir uma audiência, ouvintes,

em algum lugar, e deve constantemente lembrar-se de que a história não é

para ouvintes, mas para leitores, cada um isolado em seu próprio mundo. O

apego de Dickens e de outros romancistas do século XIX à leitura

declamatória de excertos de seus romances também revela a inclinação

remanescente para o antigo mundo do narrador oral. (ONG, 1988, p. 167-

168).

Partindo-se do pressuposto de que na narrativa de Ubaldo as marcas de oralidade

permeiam todo o texto é importante analisar a imbricação da literatura oral na tessitura da

narrativa romanesca. A própria configuração do narrador no romance Sargento Getúlio

assume feições de um contador de causos. É um narrador-contador que se mantém firme na

luta contra a desintegração do seu mundo arcaico. Nesse embate, a oralidade, gradativamente,

impõe-se como modo de pensamento e de expressão. Conforme Walter Ong:

a despeito dos mundos maravilhosos que a escrita abre, a palavra falada

ainda subsiste e vive. Todos os textos escritos devem, de algum modo, estar

direta ou indiretamente relacionados ao mundo sonoro, hábitat natural da

linguagem, para comunicar seus significados. “Ler” um texto significa

convertê-lo em som, em voz alta ou na imaginação, sílaba por sílaba na

leitura lenta ou de modo superficial na leitura rápida, comum a culturas de

alta tecnologia. A escrita nunca pode prescindir da oralidade. (ONG, 1988,

p. 16).

Em Sargento Getúlio, a personagem assume uma performance que proporciona a

junção entre o narrador e o contador. É evidenciada uma postura próxima do contador de

histórias nos moldes da cultura oral. Porém, numa versão impressa e demarcada pelas

Page 34: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

33

palavras. Segundo Walter Ong, externamente ao teatro, na narrativa “a voz original do

narrador oral empregou diversas formas quando se tornou a voz silenciosa do escritor, à

medida que o distanciamento realizado pela escrita solicitou diversas ficcionalizações do

leitor e do escritor descontextualizados” (ONG, 1988, p. 167).

Por meio da linguagem, Getúlio desvenda sua cultura. Seu modo de narrar, ao

apresentar similitudes com o poeta popular, aproxima-se do universo da oralidade de forma a

superar as fronteiras da escrita e manifestar o perfil do contador. Sargento Getúlio é

exuberante em preceitos do universo popular. Conforme Dacanal, Ubaldo “constrói o mundo

de Getúlio rompendo barreiras e destruindo convenções narrativas com tal furor que não é

nada fácil organizar o caos [...] À crítica compete apenas demonstrar como este elemento

aparentemente absurdo faz parte essencial da obra.” (DACANAL, 1988, p. 91).

O mundo arcaico representado no romance Sargento Getúlio desponta no discurso do

narrador-contador em contraponto com a modernidade e o universo da escrita. Getúlio admite

que não gosta de jornal, “acho difícil, muitas palavras. Menos verdades.” (RIBEIRO, 2008,

p.17). Segundo Dacanal, o fato de “negar-se a aceitar as mutações históricas – pois não podia

compreendê-las - , Getúlio paira sobre o vácuo, sem mundo e sem tempo, devendo marchar,

assim, de forma irreversível, para a destruição, para a tragédia final” (DACANAL, 1988, p.

95).

Getúlio continua a afirmar-se pelas crenças populares: “quem come jaca e bebe

qualquer espécie de cachaça estupora” (RIBEIRO, 2008, p.11); “A hora de cada um é a hora

de cada um.” (RIBEIRO, 2008, p. 24); “O embigo estuporou, botaram estrume em cima,

mastruço pilado, nada foi.” (RIBEIRO, 2008, p. 45); “que na minha mão tem uma linha

riscando a linha maior, que diz: morte matada.” (RIBEIRO, 2008, p.125). Dessa forma, a

narrativa brota da oralidade para a escrita apresentando toda a imponência da personagem.

Conforme Dacanal, “Getúlio pertence a outro tempo, a outro mundo”. Seus métodos e

expressões são do passado, do tempo do cangaço [...] Sendo do passado, Getúlio não entende

mais o mundo nem pode ser por ele entendido.” (DACANAL, 1988, p. 96), ao ressaltar que é

evidente na narrativa o choque entre o mundo rural e o mundo urbano.

Sargento Getúlio é um testemunho da tradição oral expressa por seu protagonista que

desconsidera a importância da educação formal para a formação da conduta humana: “nunca

vi ginásio fazer caráter” (RIBEIRO, 2008, p. 28). Por meio de um relato espontâneo,

entremeado pela sabedoria popular, oralidade e memória complementam-se: “Bicho ruim não

morre fácil.” (RIBEIRO, 2008, p. 14); “não tinha um pé de árvore para remédio” (RIBEIRO,

Page 35: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

34

2008, p. 35); “e pimenta no cu dos outros é refresco.” (RIBEIRO, 2008, p. 80). Porém,

Getúlio afirma que hoje “essa terra não vale mais nada, não vale quase mais nada, está uma

frouxidão e um homem não sabe de quem depende e querem mudar tudo e nunca vai

adiantar.” (RIBEIRO, 2008, p. 86). A personagem não compreende a modernidade e “o que

eu não entendo eu não gosto, me canso [...] Não gosto que o mundo mude, me dá uma agonia,

fico sem saber o que fazer.” (RIBEIRO, 2008, p. 96-7). Aos poucos, Getúlio, mesmo

resistindo para a preservação do seu chão, percebe que as mudanças são inevitáveis:

muitas vezes, numa hora como essa, a gente pensa que o mundo para. Mas

não para nada, se sabe. Tem uma porção de gente se mexendo, e eu aqui no

meio, paradão. Mas parado como um peixe junto das pedras dum riacho, que

se você quiser mexer perto ele dá uma rabanada e some. Porque é assim que

eu sou. (RIBEIRO, 2008, p. 127-28).

Na narrativa, é comum a personagem incorporar uma linguagem marcadamente

hiperbólica, atravessada por cordéis:

Prezado amigo Getúlio

Permita eu lhe contar

Um caso que se passou

Na vila de Propriá

Teve tanta mortandade

Que até o cão teve lá.

[…]

O rio se abriu no meio

E o mato se escancarou

Igual como São Noé

Quando o mundo se acabou

E tudo isso por causo

De um homem que lá chegou.

Esse homem era por nome

De um tal de Honorato

Nascido de mãe pagona

E de pai cabra safado

Criado em leite de onça

E muito mal educado.

Quando dormia era ruim

E acordado pior

Matava quatro por dia

E ainda dizia – é só?

E um dia só pra interar

Deu um fim até na avó.

Page 36: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

35

(RIBEIRO, 2008, p. 37-8).

Getúlio assume-se como integrante do universo da tradição oral: “não semos tudo o

mesmo? agora não muito, porque eu sou eu, Getúlio Santos Bezerra e meu nome é um verso

que vai ser sempre versado [...] eu sou maior do que o reis da Hungria” (RIBEIRO, 2008, p.

161). O narrador funde-se na memória da personagem, que transmite suas experiências em

sua atuação como contador de histórias. O contador propicia um ambiente de experiência

coletiva. E, como tal invoca um saber que passa ser ameaçado pela modernidade. Conforme

Walter Benjamin, a “origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar

exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem

sabe dá-los.” (BENJAMIN, 1994, p. 201).

Entretanto, em Sargento Getúlio, o narrador adota uma linguagem performática que o

aproxima da tradição oral. A performance na literatura possui uma amplitude significativa que

a associa a diversos segmentos. Segundo Ravetti (2002), a performance está associada à

teatralização, às situações enunciativas, às práticas culturais e aos contextos de prática de

ritual. De uma forma geral, a performance literária está vinculada ao poder da linguagem de

extrapolar as páginas e evocar a biografia do autor, representando suas experiências que são

embutidas na narrativa na fala de um narrador que explora a musicalidade e a recitação. Sobre

o conceito de performance Paul Zumthor (2000) afirma que é o texto em presença imbuído de

uma força na comunicação poética. Getúlio assume, novamente, a performance de um poeta

popular:

Capitão Moreira César

Dezoito Guerras venceu

A terceira não interou

No Belo Monte morreu.

[…]

O alfere Vanderlei

É bicho de opinião

Quando foi para Canudo

Foi em frente ao batalhão.

(RIBEIRO, 2008, p. 90-1).

Neste trecho, o emprego de versos possibilitam uma cadência próxima à da narrativa

oral. Nota-se que o narrador descreve as ações das personagens, reforçando a bravura cravada

no perfil destes de maneira que demonstra um narrador preocupado em pormenorizar estas

particularidades típicas da cultura local. Conforme Walter Ong:

Page 37: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

36

As bases do pensamento e da expressão fundados na oralidade tendem a ser

não tanto meras totalidades, mas agrupamentos de totalidades, tais como

termos, frases ou orações paralelos, termos, frases ou orações antitéticos,

epítetos. As nações orais preferem, especialmente no discurso formal, não o

soldado, mas o soldado valente; não a princesa, mas a bela princesa; não o

carvalho, mas o carvalho robusto. Assim, a expressão oral está carregada de

uma quantidade de epítetos e outras bagagens formulares que a cultura

altamente escrita rejeita como pesados e tediosamente redundantes em

virtude de seu peso agregativo. (ONG, 1988, p. 49).

Apesar de narrado em primeira pessoa, é frequente no romance Sargento Getúlio um

entrecruzamento de vozes. Isto é possível pela reinvenção do narrador que, apesar de

circunscrito ao universo impresso, é remodelado por uma performance que o faz extravasar do

seu espaço tradicional, como se pode observar neste fragmento:

No meio daquele baba todo, o homem querendo fazer discurso. Que significa

isso? Que significa isso? Que significa isso, sargento? Senhor desculpe,

senhor vai com a gente, mestre. A dona da casa falando carioca, parecia até

coisa que prestasse. Tárcio segurou ela pelo quengo e jogou lá dentro. Pensa

que calou a boca? Ficou lá saturando a paciência, de maneiras que Tárcio foi

e arregalou o olho cego em cima dela e soltou um bafo nela: não arrelia,

mulher dama! Já se viu mulher dama ter querer, onde já se viu. Quando o

diabo não vem, manda o secretário. (RIBEIRO, 2008, p. 18).

É possível observar que se trata de estratégia narrativa que reaviva o contador e sua

performance para a escrita literária. É evidente, em Sargento Getúlio, um deslocamento do

narrador tradicional de forma que se demonstra um contador que conduz o leitor para o seu

mundo. Ubaldo proporciona o atravessamento do oral pelo escrito. Segundo Moreira:

Considerar a literatura arte auditiva é um dos caminhos que nos permitem

compreender o processo tradutório que possibilita ao leitor perceber o corpo

cultural do contador de histórias inscrito na narração performática dos

textos. A qualidade auditiva da literatura imprime à escrita a possibilidade de

criar a própria situação de fala por ela instaurada. (MOREIRA, 2005, p. 83).

Por meio da exploração dessa arte auditiva, corporifica-se um narrador-contador. Em

Sargento Getúlio, essa fusão caracteriza um narrador performático: “conseguimos ouvir a sua

voz e ver seu corpo” (MOREIRA, 2005, p. 63). A narrativa de Ubaldo, portanto, ao conceder

uma voz e um corpo ao seu narrador possibilita ao leitor entranhar-se pelo universo do

contado. Sargento Getúlio provoca uma aproximação com o leitor, da qual trata Eliana Yunes

(1984), e é por meio da voz que se estabelece um apelo ao performativo com a finalidade de

proporcionar uma leitura significativa. Nesse sentido, pode-se ressaltar que o texto de Ubaldo

Page 38: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

37

destaca-se por sua originalidade em reinventar um espaço para o contador, aquele que,

segundo Walter Benjamim, estaria predestinado ao desaparecimento. Conforme Alfredo Bosi

(1987), a tradição está propensa à reinvenção de forma que o contador pode reconfigurar-se

em outros espaços.

O contador tradicional transfigura-se no narrador ao perpassar o universo da escrita.

Nessa perspectiva, são criadas novas maneiras de narrar e de compor narrativas. Nesse

contexto, Getúlio é a personagem que representa a luta pela persistência do seu mundo arcaico

e resiste à racionalização e intelectualização do mundo moderno. A modernidade ocasionou

um desencantamento do indivíduo ao vislumbrar a desintegração gradativa do seu universo.

Por isso, é importante demonstrar como a configuração do narrador é capaz de reinventar o

processo de construção da narrativa, na intersecção entre a oralidade e a escrita, de maneira

que o texto literário permite evidenciar a arte integradora de um povo, ao situar-se diante da

poética verbalizada nessa narrativa.

Imersa nesse contexto de imbricações mútuas entre vários campos artísticos a

narrativa de Ubaldo mostra-se com uma enorme potencialidade representativa. Ao narrar uma

história de aretê, Ubaldo passeia pela cultura grega antiga estabelecendo uma imersão no

universo homérico. Da epopeia presentificada no romance, a oralidade destaca-se como

instrumento essencial na expressão da honra do herói.

Nesse diálogo entre a oralidade e a escrita, percebe-se que o narrador assume uma

performance que concede à narrativa um elemento potencial do dramatúrgico. Afinal, Getúlio

por meio dessa estratégia performática deixa-se incorporar por outras vozes, de tal forma que

é possível estabelecer uma aproximação com a linguagem dramática. Partindo da oralidade do

mundo homérico para a escrita do romance de Ubaldo e com o despontar de Getúlio com o

texto dramatúrgico Sargento Getúlio, de Gil Vicente Tavares, o que se nota é que as artes de

representação constituem-se e mesclam-se, constantemente, na intersecção entre dois mundos:

o da oralidade e o da escrita. Ao explorar a performance na escrita literária conjuga a

capacidade de transcrever a voz no trabalho com a palavra na fala do protagonista que tem a

missão de criar sua própria realidade. Afinal, é por meio de uma poética da voz que Getúlio e

sua linguagem performática são transportados para o universo teatral.

Page 39: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

38

2 SARGENTO GETÚLIO ENQUANTO TEXTO DRAMATÚRGICO: ENTRE O

LITERÁRIO E O ESPETÁCULO

No campo das afinidades entre a literatura e o teatro, destaca-se o texto clássico da

Poética de Aristóteles, que apresenta a definição de tragédia como mímese que “se serve da

acção e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de

tais paixões.” (ARISTÓTELES, 2008, p. 47-8). Ao considerar a tragédia como o gênero

superior, enumerando suas prerrogativas, Aristóteles demonstra seu potencial enquanto forma

de representação, seja através da sua leitura, seja por meio do espetáculo cênico, demarcando

por meio de sua obra o diálogo entre a poesia e o teatro.

A partir da ascendência da tragédia, a literatura dramática consolida-se com a

associação entre a poética e o teatro na Arte Poética, datada de 1674, de Nicolas Boileau-

Despréaux. O prefácio de Cromwell Do grotesco e do sublime, de 1827, de Victor Hugo, ao

defender os gêneros híbridos trata o drama como aquele “que funde sob um mesmo alento o

grotesco e o sublime, o terrível e o bufo, a tragédia e a comédia, o drama é o caráter próprio

da terceira época de poesia, da literatura atual” (HUGO, 2007, p. 40). Assim, o autor clama

por um novo fazer poético instigado pelos tempos modernos, que supere a fixação de regras

estanques e abra espaço para o drama pintar a vida.

O teatro resistiu ao longo do tempo e avançou no terreno da hibridação, como é o caso

das adaptações teatrais que utilizam o texto literário como ponto de partida. Desse modo, o

teatro reconfigura-se em novos formatos com vistas a atender as demandas de cada época,

assim como acontece com a literatura. As circunstâncias modificam-se e os gêneros também.

Onde situa o dramatúrgico? Quais afinidades com a literatura? O que define sua

tendência para o espetáculo? O texto dramatúrgico aproxima-se do texto literário enquanto

precede o espetáculo por tomar a palavra como forma de expressão. Enquanto o primeiro é

considerado como parte da obra teatral, o segundo é a própria arte concebida para o desfrute

da leitura. Apesar de apoiar-se no literário, o texto dramatúrgico distingue-se por sua

inclinação ao espetáculo.

Enquanto linguagem verbal, o texto dramatúrgico é levado a extrapolar seus limites ao

passo em que é elaborado para abarcar outras formas expressivas. Entre os limites das

palavras, o texto dramatúrgico estaria inacabado como arte teatral. Seria outra obra artística.

Como uma das etapas do processo da arte teatral, o texto dramatúrgico é trabalho do

dramaturgo, mas que está sujeito às mudanças pelo diretor e sua equipe técnica. É um escrito

Page 40: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

39

acessível e instável. Um texto em processo por sua finalidade dupla que extrapola a atividade

de leitura, ao ser conduzido para uma miragem no palco. O texto dramatúrgico assume um

caráter maleável à medida que vai acoplando as leituras dos integrantes do processo de

elaboração de uma obra teatral.

Considerando, portanto, a inconstância da arte e especificamente dessa remodelação

do gênero teatral é necessário discutir acerca do texto dramatúrgico teatral como gênero. O

caso da adaptação da obra literária à peça teatral, mantendo um diálogo com o texto de

partida, é um assunto polêmico, com pontos de vista divergentes. Muito já se discutiu a

respeito das intersecções entre literatura e outras artes, como por exemplo, com o cinema.

O texto dramatúrgico pressupõe elementos que possibilitarão os aspectos teatrais. De

acordo com os recursos disponíveis para a sua performatização, sua finalidade é detalhar de

forma minuciosa ações, diálogos e sons que darão vida ao espetáculo em cena. Texto

dramatúrgico e peça de teatro aproximam-se nesses aspectos, no interstício entre o papel e o

palco. Ressalta-se, porém, que um mesmo texto dramatúrgico pode desdobrar-se em variadas

interpretações cênicas.

O texto dramatúrgico situa-se, portanto, na intersecção entre a narrativa literária e a

peça teatral. Ao adaptar uma obra literária para a linguagem encenada, o roteirista também

experimenta um momento de criação. Contudo, uma parcela do repertório da literatura cederá

espaço para os recursos específicos do teatro, considerando que o romance é constituído por

uma estrutura narrativa e o teatro demanda uma estrutura que o conduza à ação.

Esse processo de criação que conta com a supressão dos elementos literários que não

são passíveis de serem convertidos em performance faz do texto dramatúrgico teatral um

gênero distinto e específico. Deve-se levar em consideração, no entanto, que muitos trabalhos

voltados à transcriação de peças a partir de romances ignoram o texto dramatúrgico como

gênero de escrita. Dessa forma, é necessário reconhecer as particularidades inerentes ao

processo de transcriação. Enquanto isso, o texto dramatúrgico teatral segue envolto pela

supremacia do texto literário, como também escondido em suas especificidades atrás dos

palcos.

2.1 TEXTO DRAMATÚRGICO, UM GÊNERO?

O espetáculo, por sua efemeridade, sobrevive

apenas na memória de seus espectadores; dele o

que fica registrado é o texto e isto talvez tenha

Page 41: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

40

contribuído para sustentar a idéia da sua

supremacia, já que esse elemento por vezes é a

única fonte de informação sobre a atividade teatral

de determinadas épocas. (Hebe Alves, 2011).

Na epígrafe acima, Hebe Alves apresenta um enfoque a respeito da supremacia do

texto teatral sobre o espetáculo, do primeiro ressalta a importância do registro enquanto o

segundo fica limitado à memória. É possível considerar o texto dramatúrgico como gênero

textual, apesar de tratado muitas vezes como uma simples intermediação entre a obra literária

e a peça teatral?

A partir deste questionamento é válido traçar uma trajetória sobre as concepções de

gêneros textuais com a finalidade de compreender os fatores que interferem na classificação e

categorização das modalidades textuais. Basilar quando o assunto é representação artística,

Platão ao dialogar sobre a imitação do real, em A República (1965), ressalta que cabe aos

artistas, de acordo com suas habilidades e técnicas, representar o real.

Nesse intervalo entre o real e o representado, Aristóteles na Poética (2008) discute

sobre os gêneros literários perpassando pela análise da mímesis, da tragédia e da comédia. Ao

tratar sobre a teoria da tragédia, sendo esta uma “imitação de acção elevada e completa,

dotada de extensão, numa linguagem embelezada” (ARISTÓTELES, 2008, p. 47), o filósofo a

diferencia da epopeia, por ser esta considerada a arte da narrativa e não do drama.

Sob a perspectiva dessa distinção, Maingueneau assinala que a discussão sobre os

gêneros baseou-se nas tradições da Poética e da Retórica. Entretanto, “com o declínio da

Retórica, foram, sobretudo, os gêneros e subgêneros da literatura que passaram para o

primeiro plano.” (MAINGUENEAU, 2004, p. 46). Dessa forma, o estudioso acrescenta que a

literatura encontra-se analisada sob a categoria dos gêneros. Sendo assim, outras formas

artísticas podem ser estudadas à luz dos gêneros e não somente a literatura.

Com o passar do tempo, porém, o estudo dos gêneros foi conquistando espaço na

medida em que é “nos baseando na caução fornecida pela instituição literária que lemos uma

peça de teatro diferentemente de um romance, de um poema.” (MELLO, 2004, p. 98). A partir

de meados do século XX, após a hegemonia do autor e do texto, o leitor assume o eixo central

da análise literária. Segundo Jauss (1994), a Estética da Recepção é fundamental para a

análise recepcional do leitor em sua dimensão coletiva considerando os fatores estéticos,

sociais e históricos atrelados a este. Para Wolfgang Iser (1996), seria necessário estudar o

processo interacional texto-leitor a partir da Teoria do Efeito. No ato interpretativo, autor-

Page 42: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

41

obra-leitor entram em cena de modo que o resultado é dinâmico por serem inúmeras as

possibilidades de leituras. É um processo que associa a atuação do leitor sobre as lacunas

dispostas no texto decorrendo no preenchimento dos vazios do texto.

A partir da interação das obras literárias pelo leitor, as mesmas são recriadas

continuamente. Assim, com a leitura do romance Sargento Getúlio por Gil Vicente Tavares

estabeleceu-se uma relação a partir de suas experiências e que interveio na recepção da obra.

O fato da obra já ter sido consagrada como um clássico da literatura brasileira também agrega

uma soma de leituras. O contato entre obra e leitor resulta numa incorporação de novos

sentidos para o texto literário e o redimensiona mantendo vivo o sistema literário. A leitura

permitiu vislumbrar a possibilidade de levar o monólogo para a dramaturgia, ampliando o

campo de atuação do dramaturgo para concretizar uma nova experiência. A relação dialógica

com a leitura interfere na postura do leitor e este, por sua vez, interfere na obra.

A Fenomenologia, corrente que defende o leitor como o cerne da criação literária,

influenciou o campo de estudos da recepção que alargou a atuação do leitor no processo de

atribuição de sentidos ao texto. Na perspectiva da Estética da Recepção, Jauss volta-se para a

fenomenologia da recepção coletiva, enquanto Wolfgang Iser centra-se no ato individual da

leitura. A Teoria do Efeito, concebida por Iser a partir dos contributos da Fenomenologia,

examina as implicações da leitura literária sobre o leitor de forma que este passa a participar

mais ativamente no processo de possibilidades interpretativas. Segundo Iser (1996), a

literatura concretiza-se por meio da leitura.

Iser (1996) defende a existência de um leitor implícito na própria tessitura textual que

concede pistas no sentido de direcionar a leitura. É o leitor compreendido como estrutura

textual que, ao exercer a compreensão, é compelido a assumir um posicionamento. A partir

dos repertórios dos leitores implícito e real, pode-se emergir uma perspectiva diferente da

obra. As múltiplas possibilidades interpretativas de um texto evidenciam que os leitores

realizam subjetivamente escolhas diferentes, mutáveis conforme seu modo de compreensão.

Nas obras literárias, ao explorarem os significados conotativos da linguagem permitem

desvendar diversas formas representacionais da realidade.

Iser (1996) postula que o texto concede indícios de como o imaginário deve ser

formulado mentalmente pelo leitor. Ingarden (1979) acredita que o autor deixa

intencionalmente hiatos no texto que serão completados pelo leitor ao passo que Iser acredita

que as lacunas não devem ser preenchidas necessariamente, ao considerar que os vazios do

texto permitem a atuação eficaz do leitor.

Page 43: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

42

A Teoria do Efeito entende a leitura como a interação entre autor, texto e leitor. O

leitor assume uma identidade participativa e crítica e a leitura configura-se como um ato

subjetivo e intransferível. Entre o dito e o não dito o leitor tece significados por entre as

lacunas da narrativa, costurando-as interligando as estruturas textuais. São diversos os

caminhos possíveis para preenchimento dos vazios do texto. Por isso, não há somente uma

única via interpretativa.

A atividade de leitura é essencialmente dinâmica e a capacidade imaginativa do leitor

abarca conjecturas, revisões, confirmações e questionamentos. É uma ação simultânea a

outras. É uma rede entremeada de conexões que exerce um efeito sobre o leitor e este atua

diante do texto. O dramaturgo Gil Vicente Tavares ao realizar a leitura individual do romance

de Ubaldo, identifica-se com o perfil da personagem Getúlio e vivencia um processo

interativo com a narrativa. Ao estabelecer afinidades com o texto, o leitor lhe atribui

significados e o redimensiona criticamente.

Sargento Getúlio possui uma narrativa complexa ao considerar seus elementos

referenciais. Ao leitor cabe interagir profundamente por entre as camadas textuais, o que se

inicia no próprio título. Sargento Getúlio presume que Getúlio é representante do poder

estatal e protagonista da narrativa. No transcorrer da narrativa, o leitor constrói e reconstrói o

perfil da personagem de forma que seu discurso deflagra uma vivência conflitante que

acarreta em um desfecho sugestivo, mas não conclusivo. Ao final do enredo, Getúlio vê-se

sozinho diante das forças do governo e seu discurso delirante e ofegante sugere que a

personagem caminha para a morte. Porém, isso não fica explícito na narrativa, o que alarga o

potencial da obra em estimular o imaginário do leitor na formulação de pressuposições.

A partir do título, a curiosidade do leitor é instigada para desvendar quem é Getúlio.

Nas primeiras linhas é traçado um perfil do mesmo como homem violento e corajoso que

conduz o leitor ao conhecimento dos demais personagens por meio de sua perspectiva. Aos

poucos, o leitor nota que a autossuficiência de Getúlio submete-se às conspirações do destino.

O conflito da personagem com o novo mundo é o cerne narrativo. E evidencia-se um

contraponto entre o modo de vida rude e o moderno. O final da narrativa é provocante pelo

fato do autor não colocar um ponto final no discurso de Getúlio o que pode provocar uma

estranheza no leitor que é motivado a tecer suposições a partir dos indícios textuais. O leitor,

do início ao fim, é levado a participar ativamente, estabelecendo conexões e atribuindo

sentidos à obra.

Page 44: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

43

O texto teatral assume um aspecto diferente da escrita literária assim como o momento

da representação no palco. De acordo com Raymond Williams, “a relação entre texto e

encenação não é nada estável. Ademais, as variações devem sempre ser compreendidas

segundo os termos dos métodos possíveis e mutáveis de representação e escrita dramática”

(WILLIAMS, 2010, p. 219). Essa instabilidade evidencia as especificidades inerentes ao texto

dramatúrgico levando-o a assumir um caráter distintivo.

As particularidades do texto dramatúrgico, como as marcações, suprimidas na

encenação, apontam para uma leitura diferenciada desse tipo de texto. Além disso, não se

pode esquecer que o teatro apresenta uma conformação devido ao seu padrão de estruturação

consolidado:

Existe, antes de uma situação dramática, uma linguagem dramática. É ela

que confere dinâmica, por exemplo, aos longos monólogos onde a

personagem, não tendo o apoio de um interlocutor, tem que estar apoiada no

efeito que suas frases produzem no ouvinte. É uma linguagem que pressupõe

uma assistência, uma reação. A personagem é seu primeiro ouvinte, reage às

suas próprias frases. (MENDES, 1995, p. 29).

O texto teatral ultrapassa o lugar de objeto da literatura ao consolidar suas práticas

discursivas e ao estabelecer uma linguagem própria. Conforme Mendes (1995), “a frase

dramática é em si mesma um gesto. Ao lê-la, imaginamos simultaneamente a atitude da

personagem que a profere.” (MENDES, 1995, p. 29). Nesse sentido, o texto teatral remete

para uma espécie de contrato de leitura ao constituir-se de elementos, como as rubricas, que

são marcações cênicas que clamam pela presença de um ator para lhes dar sentidos.

No estudo dos gêneros é essencial o reconhecimento do leitor como aquele que

atribuirá sentidos às modalidades artísticas. Como a linguagem teatral pressupõe uma reação,

cabe destacar o envolvimento entre o espectador e o teatro. Alves ressalta que:

A questão do envolvimento do espectador tem a idade do teatro e, durante

um longo período, defendeu-se o predomínio do texto como elemento capaz

de conquistar e manter a sua atenção, por ser um possível fator de coesão dos

múltiplos sentidos da encenação. Ao longo do século XX, os artistas de

teatro enfrentaram essa hierarquia, com ruidosos argumentos e criativa

produção, desafiando normas e valores que poderiam conferir o selo de obra

artística às suas realizações. O fruto positivo desses embates foi o avanço

inegável de uma poética propriamente cênica, de uma consciência cada vez

mais nítida das opções que se oferecem ao encenador, em seu campo

específico, em seu trabalho de materialização do espetáculo. (ALVES, 2011,

p. 119).

Page 45: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

44

Até o século XIX houve o predomínio do texto sobre sua concretização no palco.

Como componente mais significante, o texto era dotado de autonomia. Contudo, os artistas

lutaram contra essa supremacia do texto. Conforme Pavis (2010), no final do século XIX, a

figura do diretor alarga sua atuação contribuindo para o desenvolvimento de técnicas cênicas,

enfraquecendo a supremacia do texto ao longo do século XX.

Vê-se que a depender do contexto histórico, a arte é encarada de forma diferenciada e

assim aconteceu com a relação entre o texto e o espetáculo. O texto teatral ao contar com o

reconhecimento de sua estrutura confirma as expectativas do leitor diante do mesmo.

Bronckart (2003) ressalta que a classificação variada dos gêneros é justificada pela quantidade

de critérios que não são exclusivamente linguísticos. Assim, o texto teatral é um texto que

invoca a concretização num palco e, para tanto, ultrapassa os recursos linguísticos. Exigindo,

especialmente, uma leitura cênica, capaz de concretizar os recursos expressivos constituintes

do espetáculo:

A representação e a percepção do escritor de teatro como autor, no sentido

pleno do termo, emergiu lentamente, principalmente como um efeito das

práticas do mercado livreiro que simultaneamente explorou o sucesso de

certos dramaturgos, multiplicou as edições corrompidas que deviam ser

recusadas por seus autores e permitiu que os leitores reconhecessem os

méritos de textos muitas vezes traídos pelas más condições de representação

ou pela indisciplina dos espectadores. (CHARTIER, 2002, p. 12).

Sob tais perspectivas, tornam-se cabíveis alguns questionamentos: considerando sua

dimensão técnica o texto dramatúrgico tem apenas um valor utilitário? O registro manuscrito

de uma peça é necessário, após a sua materialização no palco? A incerteza do texto

dramatúrgico como gênero continua, se considerar que sua completude se situa na finalidade

cênica, que sua palavra serve à performance e à ação.

Conforme Williams (2010, p. 215), o “ato de escrever uma peça e o ato de representá-

la são claramente distintos, assim como a experiência de ler uma peça e assistir a um

espetáculo”. O estudioso acrescenta ainda que quando “um dramaturgo escreve uma peça, ele

não escreve uma história para que os outros a adaptem para a cena; ele escreve uma obra

literária que, como tal, pode ser diretamente encenada” (WILLIAMS, 2010, p. 216). Se por

um lado, o texto dramatúrgico aproxima-se do romance, por outro, a diferença entre ambos

reside na forma como o texto dramatúrgico utiliza o espaço e o tempo. É justamente isso que

concede ao texto dramatúrgico uma particularidade.

Page 46: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

45

A literatura é envolta por um caráter bastante subjetivo que demanda a atenção e a

capacidade de visualização durante a leitura. Enquanto isso, o teatro recorre à visão e à

emoção produzidas no espectador envolvido pela representação:

Um terceiro elemento desta relação entre texto e oralidade se inscreve na

história dos modos de ler e enfatiza a leitura em voz alta. Esta prática

constitui uma das mais importantes formas de circulação e de apropriação

das peças de teatro e das obras romanescas na época moderna. Em relação às

peças, diversos dispositivos das edições impressas serviam para indicar ao

leitor como ele devia ler o texto, marcando os silêncios, pondo em destaque

as palavras ou os versos portadores de um sentido particular, respeitando o

ritmo dos trechos ou dos diálogos. Nesse sentido [...] pretendiam reduzir a

distância entre o texto representado e o texto impresso, dando ao leitor a

oportunidade de vislumbrar a declamação dos atores e o desenrolar da peça

pela leitura em voz alta ou por meio de uma reconstituição mental.

(CHARTIER, 2002, p. 9).

O conceito de dramaturgia, em seu sentido estrito, está associado à composição de

texto dramático escrito. Porém, a partir do século XX tal definição não mais atende o campo

teatral e alarga-se em novos sentidos. Da arte de escrever texto para encenação, o teatro passa

a elaborar espetáculos que não se apoiam no texto e exploram o tempo, o espaço e a ação.

Pavis (2005) classifica a escrita em dramática e cênica. Enquanto a primeira envolve o

texto e o leitor, a segunda é a concretização da encenação. Com o alargamento da dramaturgia

para além da palavra, o termo passa a abarcar os elementos cênicos. A base de construção de

um texto dramatúrgico é a ação, enquanto o texto literário constitui-se pela narração e

descrição. A literatura apresenta uma dimensão subjetiva, que por meio da escrita, possibilita

um universo de caminhos. Porém, no teatro, a interpretação continua subjetiva sob

determinados aspectos. O espectador é quem testemunha a ação cênica. Na literatura, por sua

vez, o narrador é testemunha dos acontecimentos.

A especificidade da linguagem da literatura permite lançar mão de recursos artísticos

que são dispensáveis para o texto dramatúrgico, que transita do verbal para o visual e o

sonoro. Ao considerar que a escrita do romance também é passível de transposição para outra

forma expressiva, cabe concluir que tais modalidades textuais não são totalmente diversas,

apesar de conter singularidades.

Page 47: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

46

2.2 SARGENTO GETÚLIO REINVENTADO: OS RECORTES DE GIL VICENTE

TAVARES

Gil Vicente Tavares, dramaturgo baiano, roteirizou e dirigiu a versão teatral do

romance de João Ubaldo Ribeiro Sargento Getúlio. A peça teatral estreou em 03 de agosto de

2011, em comemoração aos 70 anos de Ubaldo Ribeiro e os 40 anos de lançamento do

romance, apresentando-se em festivais do país por meio do Palco Giratório, em parceria com

a FUNARTE e o Ministério da Cultura.

Ao reinventar Sargento Getúlio, Gil Tavares incrementou o monólogo com recursos

do romance, mantendo a contraposição da representação tradicional sobre o nordeste e

detendo-se na representação do homem nordestino, através da personagem Getúlio, com sua

fala rítmica ao contar os casos. A opção pelo monólogo mostrou-se fundamental para o texto

dramatúrgico ganhar a força para encenação no palco. Getúlio apresenta-se como Sargento da

Polícia Militar de Sergipe, com a missão de conduzir um prisioneiro entre Bahia e Sergipe. O

texto dramatúrgico inicia-se com a personagem na estrada. Gradativamente, na medida em

que a narrativa acompanha o diálogo de Getúlio que é entrecruzado por outras vozes, como se

emergissem outras personagens.

A busca pelo extravasamento do vazio é o que se verifica no drama Sargento Getúlio,

explorando sensações e emoções. O monólogo lírico-dramático evidencia o perfil do herói

que se procura em suas próprias reflexões e faz dessa busca o seu conflito numa exposição de

ações e reações. Nesse percurso, é assegurado um compasso intenso e a narrativa avança de

forma que o foco na personagem progride.

A linguagem do drama reflete o estado de espírito da personagem aliada a uma voz, a

um gesto e a uma imagem humana que refletem uma alma tensionada. Há uma valorização da

subjetividade encarnada na linguagem de Getúlio por meio do monólogo que aos poucos

revela o ser e as angústias do protagonista: “Minha mulher sou eu e meu filho sou eu e eu sou

eu” (RIBEIRO, 2008, p. 41), “o meu aboio é oco” (RIBEIRO, 2008, p. 42), “Amaro, ou você

fala ou eu me ferro” (RIBEIRO, 2008, p. 12), “Se tivesse cangaço, eu ia para o cangaço, com

um chapéu de estrelas prateadas e ia me chamar Dragão Manjaléu e ia falar pouco e fazer

muito [...] Luzinete, eu vou ser é deputado e vou fumar uns charutos” (RIBEIRO, 2008, p.

126), “Tem uma porção de gente se mexendo, e eu aqui no meio, paradão. Mas parado como

um peixe junto das pedras dum riacho, que se você quiser mexer perto ele dá uma rabanada e

some. Porque é assim que eu sou” (RIBEIRO, 2008, p. 127-128), “eu sou o macho dessa

Page 48: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

47

terra” (RIBEIRO, 2008, p. 88), “eu nunca vou morrer” (RIBEIRO, 2008, p. 163). Getúlio

constrói-se por meio da linguagem e por meio dela apresenta-se ao leitor. Mendes (1995)

defende que a linguagem emerge na personagem e paralelamente lhe dá vida. A opção pelo

monólogo favoreceu a autoconstrução da personagem.

Assim, Gil Tavares explora os rastros de teatralidade do romance Sargento Getúlio, e

isso define suas preferências ao selecionar os trechos com maior carga dramática. Por meio de

uma narrativa múltipla e emaranhada, a personagem apela à atenção do leitor por meio de

uma fala ininterrupta sem lhe dar chance de desviar o olhar. Segundo o dramaturgo, a opção

pelo monólogo deu-se em sua primeira leitura quando imaginou a personagem sozinha no

palco, em defesa de sua honra. Para tanto, o diretor tentou apreender outras imagens do

Nordeste. Em entrevista concedida ao Blog da Cena, Gil Tavares comenta sobre o despertar

de seu interesse em adaptar Sargento Getúlio para o teatro:

Certa noite, na casa de meu pai, me dei conta de que jamais havia lido um

romance de João Ubaldo Ribeiro. Conhecia seus contos e crônicas, e então

resolvi ler algum livro famoso dele. Saquei Sargento Getúlio da estante e li

num só fôlego. Tenho plena convicção de que se algum dia eu lesse essa

obra, independente de grau de parentesco ou conhecimento do autor, iria

querer adaptá-la. Então o fato de ser meu padrinho foi apenas um estímulo a

mais para que eu encarasse a obra, só pesou na iniciativa da leitura, nada

mais. A partir da leitura, a motivação foi meramente artística. (TAVARES

apud ANUNCIAÇÃO, 2014).

A narrativa de Ubaldo é muito presente neste texto dramatúrgico, contudo, o roteirista

realiza uma releitura do romance, recortando trechos e criando uma disposição distinta.

Ressalta-se que os trechos selecionados, em sua maioria, são mantidos inalterados,

especialmente no caso do desfecho, pois segundo Gil Tavares, “identificava ali um fluxo que

não queria que fosse interrompido, e esse desafio de não contar com nenhuma dramaturgia e

apenas as palavras de Ubaldo pra mim foi provocador”. (TAVARES apud ANUNCIAÇÃO,

2014). Apesar de o dramaturgo afirmar que não se apoiaria em nenhuma dramaturgia, é

visível como o desfecho do romance é potencialmente significativo de uma dramaturgia da

palavra. Mesmo optando por não explorar a dramaturgia cênica, persiste a palavra dramática

que envolve o leitor/espectador:

Há os que defendem o teatro enquanto realidade precipuamente literária, e o

palco existiria apenas para explicitar um sentido exaustivamente presente no

texto. Todos os outros elementos que compõem o espetáculo - a começar

Page 49: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

48

pelos atores, meros instrumentos – só encontrariam a sua razão de ser na

completa subordinação à palavra literária. O texto seria um valor em si,

autônomo, porque é literatura; e o espetáculo ser-lhe-ia assim acrescentado,

tão-somente para evidenciar ou fazer ver a verdade da criação do

dramaturgo. (BORNHEIM, 1983, p. 75).

Quanto à organização do texto, o texto dramatúrgico apresenta uma seleção de trechos

do romance no intuito de melhor reconfigurá-los à arte dramática. A peça é dividida em

prólogo, quatro cenas, quatro interlúdios e um epílogo. O interlúdio é uma curta passagem,

geralmente de viés lúdico, que entrecruza as cenas de uma peça teatral, conforme Carlos Ceia:

Derivado do latim interludere, “no meio do jogo, do divertimento”, o termo

refere-se a um breve episódio ou a uma parte lúdica que entrecorta a

sequência normal dos actos de uma peça de teatro. Inicialmente, o interlúdio

foi uma peça ligeira autónoma, sempre com intenção lúdica ou burlesca, e

que durante a Idade Média e o Barroco, ganhou diferentes acepções, como o

português entremez, italiano intermezzi, o francês entremets ou o espanhol

entremeses. [...] O interlúdio teve particular importância na secularização do

drama e na forma como promoveu o desenvolvimento da comédia burguesa,

desde cedo fixada nos salões das aristocracias européias. (CEIA, 2010).

O texto dramatúrgico de Gil Tavares é entrecortado por interlúdios nos quais a

personagem Getúlio dialoga ora com Amaro, ora com Luzinete. No interlúdio I, Getúlio

reporta-se ao “peste” e “frouxo” do Amaro; no interlúdio II, dialoga com Luzinete expondo

suas pretensões de ir para o cangaço e afirma que para ser deputado não existe requisito; no

interlúdio III, conta causos de Trancoso de forma bastante cômica, e no interlúdio IV conta

que sua mulher Luzinete agora é a lua. Dessa forma, os episódios apresentam um caráter

lúdico que evidenciam o lado cômico da personagem Getúlio, deixando escapar a visão crítica

da personagem que afirma que seria deputado, pois não precisa de qualquer pré-requisito.

No romance é narrada a trajetória de Getúlio ao levar o prisioneiro de Paulo Afonso a

Aracaju. Na versão teatral, Getúlio começa narrando seu desfecho, e depois apresenta

momentos de sua aventura com Amaro e Luzinete, assumindo-se como integrante de um

universo arcaico e de brutalidade, no qual Getúlio expõe toda sua expressividade:

O decisivo, porém, está no seguinte: todas essas invectivas terminam apenas

pondo em maior evidência uma questão bem peculiar e até mesmo exclusiva

dos tempos modernos: é que freqüentemente o autor teatral já não é um

homem de teatro, e sim um escritor, fechado em seu gabinete, como se

costuma dizer. Há alguns dramaturgos que, guiados talvez por certo peso de

consciência, fazem cursos de teatro e aventuram-se até a incursionar por uma

ou duas experiências cênicas. Contudo, as suas tentativas transforma a

Page 50: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

49

ribalta em cobaia de experimentação, porque, de fato, não pertencem ao

meio, não se sentem mordidos pela fatalidade cênica, e não deixam, um só

momento, de serem literatos. Esse exclusivismo literário do dramaturgo

explica porque tantos textos dramáticos, ainda que dotados de alto valor

literário, sejam totalmente inexeqüíveis no palco, a ponto de ser tornado

claro que a excelência literária de um texto não constitui condição suficiente

para a sua viabilidade cênica, tornando-o às vezes alheio à própria existência

do teatro. (BORNHEIM, 1983, p. 83).

Gil Tavares ressalta a descontinuidade do fluxo do tempo, ao começar pelo desfecho

do romance, como também apresenta alterações na narrativa e condensa as falas dos demais

personagens na figura do protagonista. O texto dramatúrgico Sargento Getúlio conserva

trechos do romance de Ubaldo Ribeiro que evidenciam a vocalidade de Getúlio que se

comporta como um herói épico com todas as suas virtudes. “O lirismo com que João Ubaldo

conduz a história acaba por transformar a novela num poema épico em versos livres. Tentei

desenhar os diversos sargentos que há no Getúlio, mostrando sua violência, fraqueza, paixão e

crueza” (TAVARES apud FRENTE&VERSO COMUNICAÇÃO INTEGRADA, 2014).

Tavares retoma para o palco toda a sutileza e complexidade da obra literária:

Já outros pretendem que o texto não goza de nenhum privilégio especial,

seria simplesmente um dos componentes que concorrem para montar a

unidade do jogo cênico; a verdade do espetáculo derivaria, pois, de um

conjunto de elementos entre os quais estaria a palavra. A palavra constituiria

apenas um dos elementos do espetáculo já que, por exemplo, existem às

vezes cenas inteiras em que os atores não dizem absolutamente nada, e no

entanto, sem essas cenas a ação dramática perde seu sentido. E, finalmente,

há os que adotam uma posição radicalmente contrária à mera presença da

literatura no teatro; a literatura seria a responsável pelo estado de decadência

em que se encontra o teatro – de onde vem a necessidade de reinventar a

realidade cênica, através da revalorização ou da redescoberta daqueles

ingredientes que integrariam originariamente o teatro. Dessa forma, a

literatura seria um elemento impuro, não especificamente teatral, que se teria

agregado tardiamente ao teatro, terminando por deturpá-lo. (BORNHEIM,

1983, p. 76).

Gil Tavares afirma que “falar em predicados do meu teatro pode soar cabotino, mas, a

despeito disso, como diria Caetano Veloso, “na Bahia nego fica den‟dum útero”. Acrescenta

ainda: “Sempre estive atento em fazer um teatro que tentasse ser aceito no sertão da Bahia ou

no Berliner Ensemble. A arte deve ser universal, mesmo cantando sua aldeia, e deve ter

sempre uma preocupação com uma estética apurada, dentro dos limites financeiros e artísticos

de cada um”. (TAVARES apud ANUNCIAÇÃO, 2014). Nota-se que existe uma inquietação

por parte do dramaturgo de produzir uma arte que seja universal. A aceitação do produto

Page 51: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

50

artístico parece direcionar os artistas quanto às suas escolhas. O objetivo é redimensionar a

perspectiva regional superando a dicotomia entre o local e o universal.

Conforme Bornheim (1983), alguns autores defendem o teatro como fenômeno

essencialmente literário por considerarem sua estabilidade e seu caráter intemporal em

contraponto à efemeridade do espetáculo. O autor reforça que se trata de um pensamento

equivocado uma vez que a História constrói-se na efemeridade do tempo e acrescenta que a

questão dos dramaturgos está relacionada com a História da Literatura e não com o teatro:

Aqui seria necessário escrever um outro ensaio: Das Dificuldades em

Aceitar a Finitude. A experiência mais efêmera e passageira que o homem

possa ter, a mais destinada ao esquecimento, a mais radicalmente finita

insere-se no espaço que inventa o sentido da existência humana. O que é a

obra escrita considerada em si mesma? Recusada a sua encenação, resta o

leitor; e o ato particular da leitura, o modo como cada leitor vê o texto, é o

que lhe empresta vida: se o texto é fixo, há uma história de suas

interpretações, e é esta sequência de experiências transitórias que faz de uma

peça literária algo vivo e atuante. (BORNHEIM, 1983, p. 82-3).

O desafio é partir do local para concretizar-se numa arte universal. Como no romance,

Gil Vicente Tavares busca suplantar as particularidades regionais a partir de sua intensidade

emblemática ao problematizar questões pertinentes à condição humana. Conforme Mendes “é

comum a afirmação, entre os críticos e teóricos do drama, de que o teatro é um caso-limite da

literatura. Mas, ao contrário, parecer ser a encenação que se faz um caso-limite da leitura”.

(MENDES, 1995, p. 39). Desta forma, por estabelecer-se uma nova leitura é que se produziu,

por outros meios, por outros sistemas de signos, um novo Getúlio, que foi levado ao palco:

Há outro fator ainda que apresenta aspectos inquietantes. Pela primeira vez

na Historia, o teatro, além de montar o repertório contemporâneo, preocupa-

se em levar à cena a totalidade da dramaturgia ocidental e mesmo mundial.

Acontece que quando isso é feito por razões que querem apenas manter a

cultura literária – o que quase sempre permanece subjacente, como espécie

de respeito tácito -, a encenação não passa de um meio de mostrar essa

cultura, e o teatro facilmente torna-se informativo, como se devesse estar a

serviço de valores literários perenes. (BORNHEIM, 1983, p. 83-4).

Bornheim (1983) discorre sobre a montagem de textos clássicos que em determinado

momento histórico pode obter sucesso e, posteriormente, ter sua comunicação com o público

comprometida. Como as adaptações são diálogos explícitos e irrestritos entre obras, a “ribalta

permanece aberta às mais diversas modalidades de experiência teatral, desde o puro

espetáculo de texto até a improvisação completa. E é no interior desse caleidoscópio de

Page 52: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

51

formas que rebenta o conflito entre teatro e literatura.” (BORNHEIM, 1983, p. 85). A arte

perpetua-se a partir da própria arte, de forma que as histórias podem ser inovadas e

atualizadas a cada época e por outros meios de expressão.

Ao reinventar Sargento Getúlio na dramaturgia, Gil Vicente reconta a história à sua

maneira. Recorte que não simplifica o romance, mas alarga o seu potencial representativo. A

partir do ponto de vista do leitor e dramaturgo, a leitura materializa-se em uma atividade de

atribuição de significados e invenção. Nesse processo de transposição inventiva, o produto é

resultado de uma nova interpretação que ultrapassa o ato de repetir a história em outro código.

2.3 GIL VICENTE TAVARES: ENTRE O LEITOR E O DRAMATURGO

Gil Vicente Tavares, dramaturgo de Sargento Getúlio2, graduou-se em Direção Teatral

pela Universidade Federal da Bahia. Possui Mestrado e Doutorado pelo Programa de Pós-

Graduação em Artes Cênicas (UFBA). Em 1999, ganhou o Prêmio Braskem de Teatro na

categoria de Diretor Revelação. Participou do texto dramatúrgico de Vixe Maria, Deus e o

Diabo na Bahia (2004) e do texto dramatúrgico de Cidade Baixa. Fundou o grupo Teatro NU,

em 2006. Recebeu o Prêmio FAPEX de Teatro, em 2010, com a peça Sade. É produtor das

peças Os Amantes II, Os Javalis, Os Males do Tabaco, O Urso, O Pedido de Casamento,

Destinatário desconhecido e Quarteto.

Em 2011, Gil Vicente Tavares iniciou o projeto de representar Sargento Getúlio no

teatro, um monólogo com cinquenta minutos de duração. O romance ubaldiano já havia se

consagrado na literatura brasileira, era possível encontrar um número significativo de

pesquisas sobre esta obra. Conforme Jauss, o “horizonte de expectativa de uma obra, que

assim se pode reconstruir, torna possível determinar seu caráter artístico a partir do modo e do

grau segundo o qual ela produz seu efeito sobre um suposto público.” (JAUSS, 1994, p. 31).

O fato do romance já ter sido consagrado em 1999 pode ter influenciado Gil Vicente Tavares

enquanto leitor a agregar o processo de atribuição de significados do romance a ponto de

imaginá-lo em outro viés artístico. Segundo Cajaíba (2011, p. 143), “a obra de arte só se

concretiza no ato de sua fruição. Caso contrário, ela permanece “adormecida”, inexiste. Assim

2 Encenado pela primeira vez em 2011, o espetáculo Sargento Getúlio de Gil Vicente Tavares atravessou o país.

Ainda em 2011, ganhou o prêmio Braskem de Teatro. Em 2013, participou da apresentação de peças baianas no

Festival de Curitiba. A peça Sargento Getúlio recebeu a colaboração do Palco Giratório, projeto da rede de

Serviço Social do Comércio - SESC.

Page 53: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

52

se poderia também afirmar que a recepção de uma obra literária é tão “efêmera” quanto à

recepção de uma encenação teatral.” A recepção tanto do romance como da peça teatral não

pode ser condicionada apenas ao formato de ambos, e nem somente ao contexto histórico em

que ocorre a publicação do romance e a apresentação da peça teatral, mas, sobretudo à forma

como atinge os diversos públicos. Quanto a esse aspecto ainda é necessário um longo

percurso em prol da democratização da arte:

A implicação estética reside no fato de já a recepção primária de uma obra

pelo leitor encerrar uma avaliação de seu valor estético, pela comparação

com outras obras já lidas. A implicação histórica manifesta-se na

possibilidade de, numa cadeia de recepções, a compreensão dos primeiros

leitores ter continuidade e enriquecer-se de geração em geração, decidindo,

assim, o próprio significado histórico de uma obra e tornando visível sua

qualidade estética. (JAUSS, 1994, p. 23).

Tavares, a partir do texto dramatúrgico, ao reconfigurar o tempo e o espaço, reaviva a

complexidade da construção da personagem Getúlio com toda sua riqueza e contradições. O

monólogo é entremeado por uma narrativa entrecortada e reorganizada de forma distinta da

sequência do romance. Fica evidente a ruptura em relação à tendência de firmar-se o homem

nordestino apenas como sertanejo, superando, assim, a representação tradicional, ao optar por

explorar o homem nordestino sob uma nova ótica que transcende as preocupações locais.

Nesse sentido, referindo-se aos símbolos da seca nordestina, Tavares ressalta que estes “são

elementos que pasteurizaram o que de mais forte podemos trazer do sertanejo, de sua alma.

Para isso, apostamos muito mais nas imagens do texto, já que a fala, a prosódia e as

referências já são tão sertanejas e agrestes. A secura está dentro dele”. (TAVARES apud

FRENTE&VERSO, 2014).

Como já foi mencionado, a versão teatral de Sargento Getúlio surgiu da proposta de

Gil Tavares, em 1999, que após conhecer o romance ubaldiano, visualizou um monólogo e no

dia seguinte perguntou a Carlos Betão: “Já tenho meu próximo projeto, Sargento Getúlio, um

monólogo. Topa?” (TAVARES apud SANTANA, 2012). Porém, adaptação e encenação

atravessaram uma longa trajetória. Inicialmente, Gil Tavares elaborou uma versão de 20

páginas do texto. Após 11 anos de tentativas de montagem da peça, optou-se por reduzir o

texto dramatúrgico para 14 páginas. Para a apresentação no SESC-Leituras, o texto foi

reduzido para 11 páginas e, após os ensaios reduziu para dez. Tavares ressalta que foi

intrigante esse percurso, que inicia com a versão antiga de 20 páginas, e, a partir dos ensaios,

Page 54: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

53

percebeu-se a necessidade de redução das falas. Assim, Gil Tavares3 realizou os ajustes

devido ao trabalho de interpretação, que terminou por influenciar o processo de adaptação:

Em geral, as adaptações, especialmente de romances longos, sugerem que o

trabalho do adaptador é o de subtrair e contrair; isso é chamado de “arte

cirúrgica” (ABBOT, 2002, p. 108) por um bom motivo. Ao adaptar a trilogia

de romances de Philip Pullman, intitulada Fronteiras do Universo [His Dark

Materials], de 1.300 páginas, para duas peças de três horas cada, Nicholas

Wright precisou cortar personagens centrais (por exemplo, a cientista da

Oxford Mary Malone) e, assim, os mundos que eles habitam (por exemplo, a

terra dos mulefas); foi necessário acelerar a ação e envolver a igreja desde o

começo. Logicamente, além de encontrar dois clímax principais para

substituir os três da trilogia, ele também precisou explicar certos temas e

detalhes do enredo, pois não havia tanto tempo para o público registrar

informações quanto na leitura dos romances. (HUTCHEON, 2013, p. 43-4).

O texto dramatúrgico Sargento Getúlio resulta numa transcriação do romance que

transcende o universo das palavras e encontra em outros signos um caminho para aproximar-

se do espectador e, assim, explorar a simbologia que circunscreve a linguagem dramática. Ao

levar para palco uma forma representativa do homem nordestino, problematiza o Nordeste

não numa perspectiva regional, mas, sobretudo, a subjetividade desse ser. Essa representação,

portanto, ultrapassa uma questão social em sua linguagem encenada e abre espaço para uma

abstração que veicula um drama existencial em toda sua potencialidade expressiva. A partir

de uma sequência dramática distinta, Gil Tavares cria sua forma peculiar de apresentar

Getúlio:

Eu respeito quase 100% do texto de Ubaldo. Contudo, fiz uma edição da

versão original, recortando trechos e criando uma linha dramática distinta da

narrativa do romance. Vale ressaltar que me impus o desafio de seguir,

palavra por palavra, toda a parte final do livro, pois identificava ali um fluxo

que não queria que fosse interrompido, e esse desafio de não contar com

nenhuma dramaturgia e apenas as palavras de Ubaldo pra mim foi

provocador. No livro, os acontecimentos seguem um fluxo, contando a saga

de Getúlio levando o prisioneiro de Paulo Afonso a Aracaju. Na minha

versão, Getúlio começa narrando seu próprio final, e depois divide-se entre

momentos de sua aventura e momentos de descanso, fantasia e humor com

3 É importante ressaltar que Tavares assume mais de uma função nesse processo. Como dramaturgo, roteirista e

diretor Tavares perpassa a condução de várias etapas: desde a elaboração do texto dramatúrgico até a montagem

cênica que trabalha com os demais elementos para a representação no palco (som, iluminação, cenário, dentre

outros).

Page 55: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

54

Amaro, o motorista da Hudson – na peça uma Rural –, e Luzinete, sua

mulher. (TAVARES apud ANUNCIAÇÃO, 2014).

Gil Tavares a partir da leitura do romance ubaldiano estabelece uma forma de

atualização da obra de arte. A esse respeito, Jauss defende o recurso da atualização como

capaz de contribuir para a concretização do sentido da obra de arte. Assim, segundo o autor, a

“literatura como acontecimento cumpre-se primordialmente no horizonte de expectativas dos

leitores, críticos e autores, seus contemporâneos e pósteros, ao experienciar a obra.” (JAUSS,

1994, p. 26).

Conforme Regina Zilberman, “nenhum leitor fica imune às obras que consome; essas,

da sua parte, não são indiferentes às leituras que desencadeiam [...] Só que a ação do leitor

não é individualista; nem cada leitor age de modo absolutamente singular.” (ZILBERMAN,

2012, p. 183). Por intermédio de sua releitura, Gil Tavares concretiza suas experiências e

atribui novos sentidos a Sargento Getúlio ao potencializar a dramaticidade em torno de uma

única personagem. Acrescenta que quando leu o livro imaginou o momento em que a morte

aproxima-se e a pessoa rememora toda sua trajetória, ressaltando que “esse sertão imaginário,

que está na moda, já cansou como imagem e não me interessa. A cultura popular foi recriada

por todos os grandes artistas, mas quando se joga o folclore na frente, a gente esquece tudo o

que pode estar por trás” (TAVARES apud CARNIERI, 2013).

Se Getúlio de Ubaldo apresenta-se como símbolo da virtude nordestina, no recorte de

Gil Tavares, a personagem realça a beleza linguística do homem simples nordestino por meio

de sua musicalidade ao falar. Conforme Tibaji (2002) “a obra pertence ela mesma ao mundo

para o qual ela se apresenta”. É assim que Gil Tavares constrói sua singularidade no âmbito

da arte teatral, ao explorar uma forma transcendental de representação do nordeste,

contribuindo para uma maior visibilidade do teatro baiano. Nesse sentido, cabe ressaltar a

concepção de Raymond Williams:

Para qualquer ator, encenador e diretor, o mesmo problema – o de

transformar a escrita numa produção real – é permanente, tal como para o

escritor é diverso, experimental, mutável. E para os leitores e o público,

essas várias relações e atividades estão lá o tempo todo, embora eles talvez

não trabalhem nelas de modo direto. Dessa forma, o que acontece entre o

texto e a cena é uma relação contínua, em toda essa importante área da

escrita e da atuação que constitui nosso drama, o tradicional e o

contemporâneo. (WILLIAMS, 2010, p. 232).

Page 56: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

55

Da imbricação, portanto, entre esses dois campos artísticos - literatura e teatro - as

formas de conceber os gêneros modificam-se, de forma que a literatura assume características

do teatro que, por sua vez, toma a cadência da escrita literária e a incorpora com ação.

Consequentemente, o narrar literário mescla com o dramatúrgico demonstrando como as

fronteiras entre os gêneros são tênues.

Gil Tavares aborda sobre as limitações do processo criativo na busca pela teatralidade

e dramaticidade. Ressalta que na arte teatral existe a possibilidade de renovação constante ao

passo em que é resultado do diálogo com os variados elementos cênicos: direção, iluminação,

música e interpretação:

Esse preâmbulo todo foi pra dizer que, começados os ensaios, minha

adaptação, e as palavras de Ubaldo arrumadas daquele jeito ali passaram a

ser um problema para os dois: eu e Betão. Como resolver as transições,

como criar os personagens da trama, como diferenciar Luzinete, como usar a

música como elemento dramático, e não ilustrativo e meramente

sentimental? É natural que haja um corte ali, uma arrumação de frases acolá,

um reforço de uma palavra, a inserção de uma expressão para esclarecer

melhor o sentido de algo. (TAVARES apud SANTANA, 2012).

Da transposição, portanto, do romance ubaldiano para o texto teatral a narrativa

prepara-se para transformar-se em ação. Um novo formato é exigido para esse deslocamento.

A narração gradativamente cede lugar à ação. Com o recorte de Gil Tavares dos trechos da

narrativa de Ubaldo, elabora-se uma nova configuração textual. Nesse intermédio, entre a

narrativa e o palco, o texto dramatúrgico situa-se numa fronteira sem pertencimento e sem

identidade. Porém, apesar de basear-se no texto literário, a escrita do texto dramatúrgico

teatral vai além de uma adaptação ao considerar que foi elaborado com a perspectiva de ser

representado no palco. Ainda que mantenha trechos do romance, ao pensar no monólogo

teatral Tavares é levado a pensar numa linha dramática que possibilitou maior afinidade com

os elementos cênicos.

Por isso, a importância da discussão sobre as concepções de gênero e dos fatores que

interferem para tal definição. E nesse embate são várias as possibilidades para superar a

indefinição do texto teatral. A tradução entre as modalidades artísticas conduz o “tradutor”

para a liberdade de criação. Um percurso que inicia com a leitura do romance levando-o

através das veredas da imaginação para um universo de possibilidades. A imaginação criadora

instrumentaliza o leitor às escolhas. Justamente essa liberdade da criação artística que faz do

Page 57: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

56

roteirista um criador e não um simples “adaptador” subordinado à supremacia do texto de

partida.

Com o propósito de ser representando perante um público, o monólogo teatral explora

os sentimentos da personagem numa linguagem performativa que provoca o leitor. No texto

dramatúrgico, Getúlio fala consigo mesmo, mas já existe a expectativa de um futuro

espectador. Ao atentar-se para a teatralidade textual do romance Sargento Getúlio, Tavares

reúne no texto dramatúrgico um arcabouço que permite a representação cênica ao organizar os

trechos narrativos numa estrutura dramática. Em suas mãos Getúlio refaz-se numa sincronia

entre a composição textual e a dramaturgia.

No conflito de Getúlio está inscrito um conflito de um mundo com suas contradições

numa narrativa dramatúrgica entremeada por elementos performativos que evidenciam seu

potencial representativo. A escrita dramática focada em Getúlio apresenta uma dinâmica que

além de demonstrar suas angústias interiores evidenciam que a personagem está sujeita a uma

força maior. A morte de Amaro e a de Luzinete conduzem a narrativa para outro rumo.

A forma de constituição cênica do texto institui uma mescla entre o cômico e a

criticidade que entrecortam o monólogo. A partir de tais nuances, nota-se como o

dramatúrgico dispõe de elementos que conectam o texto à cena partindo de uma escrita

performativa. As palavras ubaldianas dispostas numa folha de papel ganham significação no

processo de leitura. Ao transportá-las para o palco, Gil Tavares incorpora outros recursos

expressivos a partir de sua releitura que é condicionada por suas experiências, pelo momento

histórico.

E, assim, torna-se perceptível a riqueza do fazer literário e do fazer teatral e,

especialmente, do diálogo entre ambos. É, pois, considerando o diálogo entre a literatura e o

teatro no decorrer da história que a arte redimensiona-se e demanda por uma nova concepção

e por novos conceitos. Dessa forma, é notável a sutileza entre os limites do texto romanesco e

do texto dramático, uma vez que ambos podem enriquecer-se mutuamente e promover a

flexibilidade das classificações estanques. E a análise desse percurso entre o romance

ubaldiano e a peça teatral de Gil Tavares legitima a maleabilidade que caracteriza o fazer

artístico. E, por meio dessa interação, literatura e teatro transitam pelo universo da arte de

forma a remodular os limites da imaginação oportunizando o alargamento do potencial

criativo.

Page 58: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

57

3 O CARÁTER LITERÁRIO DO TEXTO DRAMATÚRGICO E O CARÁTER

DRAMATÚRGICO DO ROMANCE

A partir da configuração de Sargento Getúlio como texto dramatúrgico considerando

seu recorte do romance homônimo cabe problematizar as similitudes entre os mesmos e

analisar quais aspectos os aproximam e os distanciam. O que faz o texto de Ubaldo ser

considerado romance e o de Gil Vicente Tavares assumir contornos de texto dramatúrgico?

Gil Tavares por meio do monólogo teatral conduz o texto do romance para a ação de

forma que o narrativo passa ao dramático. Se o objetivo do romance é a leitura, o

dramatúrgico aspira à encenação. No processo de leitura e exploração do romance, a técnica

do monólogo foi eleita por Gil Tavares como a forma que melhor levaria Getúlio ao palco. O

desenvolvimento do texto dramatúrgico é pensado objetivando a cena. A complexidade do

romance de Ubaldo Ribeiro é transposta para a fala de Getúlio no monólogo dramatúrgico. A

oralidade da narrativa romanesca mantém-se presente na fala de Getúlio que aspira a

vocalização.

Os pormenores do romance são comprimidos no texto de Tavares, mas a escrita de

Ubaldo mantém-se como fonte da dramaturgia apesar da narrativa não ter sido pensada sob tal

finalidade. Autor e dramaturgo confundem-se no processo de transposição do romance para a

dramaturgia. Para compreensão do romance enquanto forma cabe refletir sobre o surgimento

do mesmo e suas nuanças ao longo do tempo. Como gênero literário em prosa, o termo

romance foi usado apenas no século XVIII, com o declínio da epopeia e a ascensão do

romance com a industrialização. Os valores até então vigentes foram abalados e com o

advento da burguesia o romance assume uma formatação diferenciada.

Conforme Lukács (2009), a forma do romance é distinta da atuação da forma na

epopeia. Especificamente no romance moderno a ética funciona como componente

estruturante. O romance configura-se como o gênero literário flexível e capaz de incorporar

recursos diversos, desenvolvendo-se de forma significativa no século XIX. No decurso

histórico, o romance passa por profundas mudanças e assume formatos que atendem o público

de cada época de forma que não existe uma única definição que será capaz de abranger suas

metamorfoses ao longo dos séculos.

Desde suas origens, o romance incorporou estilos e formas variadas, como a retórica, a

epístola e versos das poéticas orais. A notória sensibilidade às mudanças históricas fez com

Page 59: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

58

que o gênero renovasse constantemente através dos séculos. Com dimensão e composição

flexíveis, são inúmeros os caminhos que o romance permite. E, agora, admite-se personagem

de todas as classes sociais, diferentemente da epopeia que apenas adotava personagens nobres

como protagonistas.

Ao contrário dos heróis míticos da epopeia, veem-se heróis comuns nos romances que

vivenciam conflitos condizentes com o período moderno. No caso de Sargento Getúlio, o

conflito do herói reside em seu descompasso em relação aos valores da modernidade. No

romance, o herói pertence ao domínio da perspectiva individual, ao contrário das narrativas

clássicas cujo herói conduzia uma coletividade.

O romance, dotado de elasticidade, move o ficcional e o real de forma que parte do

trabalho com a ficção e apresenta uma interpenetração no cotidiano mantendo ligações com o

contexto cultural, histórico e social. Segundo Robert, o romance “apropria-se de todas as

formas de expressão, explorando em benefício próprio todos os procedimentos sem nem

sequer ser solicitado a justificar seu emprego.” (ROBERT, 2007, p. 13).

A ascensão do romance deu-se a partir de causas diversas. No século XVIII, houve

uma expansão no processo de alfabetização alcançando diversas classes sociais na Europa,

que também contava com a profissionalização de escritores, o que contribui para o surgimento

de narrativas mais simples do que a formalidade clássica da epopeia e da tragédia. Segundo

Ian Watt (1990), até mesmo o preço reduzido das velas oportunizou a leitura dos romances

pela nova classe alfabetizada. Por considerar as infindas possibilidades de diálogo do romance

com outras formas, Robert o define como:

Gênero revolucionário e burguês, democrático por opção e animado por um

espírito totalitário que o leva a romper obstáculos e fronteiras, o romance é

livre, livre até o arbitrário e até o último grau da anarquia. Paradoxalmente,

todavia, essa liberdade sem contrapartida não deixa de lembrar muito a do

parasita, pois, por uma necessidade de sua natureza, ele vive ao mesmo

tempo na dependência das formas escritas e á custa das coisas reais cuja

verdade pretende “enunciar”. E esse duplo parasitismo, longe de restringir

suas possibilidades de ação, parece aumentar suas forças e ampliar ainda

mais seus limites. (ROBERT, 2007, p. 13).

O romance é o lugar das experiências narrativas. E, assim, o romance é moldado de

acordo com a dinâmica da contemporaneidade de maneira que sua forma pode ser

ultrapassada por recursos outros que exigem, a depender do momento histórico, uma nova

concepção para o gênero. Sua peculiaridade reside na subversão e na recriação da realidade e

Page 60: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

59

não na reprodução da mesma. Conforme Robert (2007), a literatura e a realidade dotaram o

romance de vantagens. A elasticidade do romance em abrigar formas diversas é uma das suas

peculiaridades:

nada o impede de utilizar para seus próprios fins a descrição, a narração, o

drama, o ensaio, o comentário, o monólogo, o discurso; nem de ser a seu bel-

prazer, sucessiva ou simultaneamente, fábula, história, apólogo, idílio,

crônica, conto, epopéia; nenhuma prescrição, nenhuma proibição vem limitá-

lo na escolha de um tema, um cenário, um tempo, um espaço; nada em

absoluto o obriga a observar o único interdito ao qual se submete em geral, o

que determina sua vocação prosaica: ele pode, se julgar necessário, conter

poemas ou simplesmente ser “poético”. (ROBERT, 2007, p. 13-4).

No caso de Sargento Getúlio, romance de João Ubaldo, ao abrigar o monólogo faz do

narrador o seu protagonista a partir do foco narrativo em primeira pessoa. Além de Getúlio,

outros personagens participam dos fatos: Amaro, o preso, Luzinete, Acrísio Antunes, Seu

Nestor. Estes são descritos por Getúlio a partir de seus aspectos físicos e psicológicos: Amaro

„frouxo por demasiado‟, o preso „cabrunquento‟, Antunes „do pecidê‟, Luzinete é „um diabo

duma mulher grande‟, Seu Nestor „parece de boa carne, com a cara seca e esturricada e os

olhos apertados‟. O enredo, nesta narrativa, obedece a lógica do pensamento de Getúlio que

relembra experiências e vivencia situações embaraçosas. E o tempo cronológico do romance

faz-se no presente, porém também explora o tempo psicológico, a partir das rememorações e

reflexões de Getúlio. A fusão dos tempos surge como o elemento aliado à forma romanesca.

Ao apresentar-se concretamente no romance abrangendo a reminiscência e a memória, o

tempo contribui para ampliar os atributos da personagem e possibilita a expressão do

transcurso da vida.

Ao assumir a encenação como finalidade, Gil Tavares empreende um trabalho de

adaptação do romance Sargento Getúlio que se inicia com a construção do texto

dramatúrgico. Os recortes do romance são encadeados de forma a possibilitar o desenrolar das

cenas considerando que o texto dramatúrgico é concebido para ser representado no palco. A

extensão narrativa do romance é abreviada no texto dramatúrgico de forma que o texto

literário de Ubaldo é conservado e apenas reorganizado. Dramaturgia e literatura

embaralham-se no processo adaptativo sedimentando uma composição singular.

A adaptação é fundamental para a cultura humana que se recria no recontar histórias.

A transmissão de histórias coincide com os primórdios da humanidade, uma vez que a própria

vida humana é explicada por narrativas sagradas que são propagadas por gerações. Segundo

Page 61: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

60

Linda Hutcheon (2013), as sociedades sempre apresentaram uma tendência em promover

adaptações interculturais, mesmo antes da globalização. Até mesmo as culturas que não

utilizavam o recurso da escrita, difundiam seus contos através de contadores

instrumentalizados pela memória e pela voz. Nessa transmissão, as histórias passavam por

profundas mudanças, devido às sínteses, ampliações, trocas que resultavam em adaptações.

Dessa maneira, a narrativa é um instrumento essencial para a sociabilidade humana e

compreensão do mundo. Desde a escrita rupestre até a constituição da narrativa e de outras

formas de expressão, o homem busca adaptar os seus pensamentos e experiências para a

dimensão artística. O que pode ser verificado desde o tratamento da obra de partida como

original e na obra derivada como cópia. É preciso atentar-se para o fato de que a adaptação é

resultado de um processo criativo com suas particularidades. A noção de intertextualidade

contribui para a superação da ideia de fidelidade. Dessa forma, a adaptação pode ser

concebida como tradução intersemiótica que se dá a partir de um processo dialógico. Gérard

Genette (1990) ao explorar as formas de transtextualidade destaca a hipertextualidade como

uma ação transformadora que possibilita as adaptações que são hipertextos derivados de

hipotextos.

Em Uma teoria da adaptação, Linda Hutcheon (2013) analisa o funcionamento do

processo adaptativo a partir de exemplos práticos e diversos, tendo como intuito

problematizar a visão depreciativa que o envolve. A estudiosa ressalta que as adaptações são

vistas de forma pejorativa e vários são os termos utilizados para a sua caracterização:

secundárias, derivativas, inferiores, deformação, infidelidade, dentre outros. A autora

problematiza a classificação das adaptações como secundárias e derivadas, ocupando no

campo da crítica uma posição de subordinação e inferioridade ao texto de partida. Ressalta

que se trata de um tratamento pejorativo do processo de adaptação considerando que a

fidelidade não deve ser um critério de análise das adaptações.

No processo de adaptação, o estudo da estrutura narrativa é fundamental. Para tanto,

McFarlane (McFARLANE apud HUTCHEON, 2013) propõe um método de análise da

adaptação considerando os elementos mais passíveis de transposição e ressaltando os que

exigem o poder criativo do tradutor. Nessa perspectiva, o processo adaptativo abrange a

tradução dos elementos transferíveis para outro suporte, como também aqueles que são

criados.

A relação entre o texto de partida e o texto reinventado é declarada de forma que os

mantêm conectados intertextualmente. Sendo assim, a adaptação vai além de uma simples

Page 62: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

61

imitação ao atualizar a narrativa do texto de partida, reinventando-a com um potencial

criativo. Nesse sentido, o processo de transposição de um texto ao outro resulta numa

atualização artística que engloba os aspectos temporais e espaciais.

No campo do teatro brasileiro, incontáveis adaptações foram encenadas no país. Assim

como Gil Vicente Tavares são muitos os dramaturgos que optam pela transposição quase que

integral de textos literários para a arte dramática. É o caso de Aderbal Freire Filho, diretor

cearense, que realizou a transposição dos seguintes romances para o teatro denominando a

técnica como “romance-em-cena”: A mulher carioca aos 22 anos, de João de Minas, O que

diz Molero, de Dinis Machado, e O púcaro búlgaro, de Campos de Carvalho:

Quando faço um romance sem adaptação – o que chamei de romance-em-

cena: A mulher carioca, O que diz Molero e O púcaro búlgaro – não faço

qualquer adaptação literária (de narrativa a drama), o que me obriga a

construção de uma dramaturgia na cena, a uma profundíssima adaptação

cênica desses romances originais. Um ponto de partida é pedir aos atores que

atuem em primeira pessoa, mesmo falando em terceira pessoa. Ou seja:

usando originalmente o texto narrativo, dou a ele uma forma dramática. E

então trato de buscar essa síntese na encenação, o que me leva a "escrever"

na cena a adaptação: a dramaturgia. Tudo fica claro desde que se entenda

que não separo texto e cena, que quando falo em forma dramática não estou

falando só de literatura dramática, mas do conjunto idealmente inseparável

texto-cena. (FREIRE apud ESTEBAN, 2013).

Juarez Dias (2010), a respeito do espetáculo Levantado do Chão, adaptação do

romance de José Saramago, ressalta o processo situado entre o escrito e o vir a ser encenado.

Problematizando a noção de fidelidade ao usar o texto original, Aderbal (FREIRE apud

RAMOS, 2006) defende a não-adaptação do texto de forma que sejam trabalhadas as

potencialidades teatrais da literatura. Posteriormente, o diretor passa a considerar a técnica

“romance-em-cena” como uma adaptação absoluta em que são realizados cortes no romance

de forma a revelar sua dramaturgia.

A partir das escolhas de Gil Vicente Tavares, cabe analisar o que faz com que os

trechos literários de Ubaldo convertam-se em um texto dramatúrgico. Para tanto, este estudo

centra-se na conversão do texto romanesco em um texto dramatúrgico optando por não

analisar o espetáculo cênico, pautando-se na Teoria das Adaptações de Linda Hutcheon.

Investiga-se a materialização do processo adaptativo que recria o romance em um texto

dramático e altera sua finalidade primária, considerando que o primeiro tem por fim a leitura e

Page 63: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

62

o segundo a fonte para a encenação. A finalidade do texto é suficiente para defini-lo como

literário ou dramatúrgico? Quais são as interfaces entre um gênero e outro?

A estrutura e o objetivo do texto conduzem o texto de Ubaldo para ser considerado

romance ao passo que define o de Tavares como um texto dramatúrgico. Portanto, a

adaptação ao formato específico da peça teatral através da realização de cortes profundos do

romance faz com que o texto de Tavares assuma a encenação como finalidade precípua. Gil

Vicente Tavares acomoda parte do texto de Ubaldo em outro suporte capaz de transformá-lo

numa transposição criativa. No caso de Sargento Getúlio, texto dramatúrgico, cabe analisar

quais foram as escolhas e as exclusões realizadas a partir do romance homônimo. É

importante verificar as estratégias pelas quais Gil Vicente Tavares reorganiza sua releitura,

analisando as fronteiras entre a reprodução e a criação e quais fatores regularam tal

transposição.

3.1 INTERFACES DOS SARGENTOS GETÚLIOS

No processo adaptativo do romance para o texto dramatúrgico Sargento Getúlio foi

feito um recorte de trechos literários que foram reorganizados numa disposição distinta. Cabe

analisar quais aspectos fizeram o texto assumir uma configuração de texto dramatúrgico, ao

considerar que a maior parte dos trechos foi mantida sem qualquer alteração. Seria o texto de

Ubaldo carregado de um significativo potencial dramático? O romance Sargento Getúlio é

estruturado sob a forma de um monólogo – técnica que implica uma fala que narra e um

interlocutor. O teatro também pode adotar o monólogo para ser representado, de forma que a

personagem, conversando consigo própria, dirige-se ao público expressando suas reflexões e

emoções.

O texto dramatúrgico não apresenta elementos secundários, tais como as marcações

cênicas com a indicação dos personagens antecedendo cada fala, informações sobre o cenário

e figurino, a movimentação da personagem no palco, a gestualidade e entonação. Com relação

à estrutura, o texto apresenta a divisão em prólogo, interlúdios, cenas e epílogo. Como o

enredo do romance acontece na trajetória de Paulo Afonso a Barra dos Coqueiros, a própria

representação no espaço teatral seria facilitada pelo fato de não explorar ambientes diversos.

Além disso, o próprio tempo do monólogo contribui por acontecer no tempo presente e

permitir uma brevidade diante do palco.

Page 64: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

63

O texto dramatúrgico tem o objetivo de ser transposto para o palco, onde a ação será

encenada. A essência da ação é o conflito que no caso de Sargento Getúlio é representado

pelo embate entre levar ou não o preso. Assim como no romance, o texto dramatúrgico conta

uma história, porém disposta de forma diferenciada. O discurso direto empregado no romance

também aproximou o literário dos moldes do dramatúrgico. Assim como o Getúlio do

romance conversa com o leitor por meio de um discurso direto, o Getúlio do dramatúrgico

também estará mais próximo do público ao ser conduzido aos palcos sem a necessidade de

intermediação de um narrador que é dispensado no texto teatral.

Desse modo, é perceptível como a escrita contemporânea é tomada por uma

hibridização que a torna cada vez mais complexa. Seja enquanto literatura, seja enquanto

dramaturgia, a textualidade presente em Sargento Getúlio é dotada de um encadeamento de

estilos e de linguagens que amplia os critérios tradicionais de categorização da arte.

A Sociedade Brasileira dos Autores Teatrais – SBAT, responsável pela regulação de

processos legais de adaptação teatral, entende qualquer forma de suavizar a adaptação de

forma que possibilite o não recolhimento de direitos autorais como uma maneira de

transgredir a lei (BRASIL, 1998). Nessa perspectiva, a adaptação configura-se como derivada

e subordinada à obra de partida. A partir desse entendimento, o dramaturgo teria uma

liberdade regulada por processos legais de forma que seu ato criativo possa estar

condicionado a diversos fatores externos. Sendo assim, autores de obras derivadas teriam um

grau de liberdade menor que autores de obras inéditas? A autoria está condicionada a uma

espécie de gradação adaptativa considerando a forma em que foi utilizado o texto de partida,

que pode ser uma simples inspiração até o uso de trechos completos.

De uma forma geral, o processo de diálogo interartístico exige que o novo autor

explore alguns elementos, como as questões da linguagem e do contexto histórico e

sociocultural. E são, justamente, tais fatores que fazem o novo texto não ser uma réplica do

texto de partida. É um trabalho de equivalências, apropriações e reestruturações.

O romance Sargento Getúlio apresenta elementos que possibilitam sua transcriação

para outros universos artísticos como se Ubaldo já visualizasse no monólogo um potencial de

conversão. E o monólogo, por sua vez, é bastante representativo da escrita contemporânea.

Primeiramente, por possibilitar a exploração da subjetividade conflituosa da personagem

diante das mudanças históricas; segundo, por propiciar a construção de um enredo intenso,

mas com uma economia de personagens e de espaços. Configura-se como uma espécie de

minimalismo centrado em uma única personagem que ecoa as demais vozes discursivas e que

Page 65: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

64

situa o tempo e o espaço. Conforme Hutcheon, o teatro e o romance são reconhecidos como

“formas nas quais o homem é o assunto central. O desenvolvimento psicológico (e, assim, a

empatia do receptor) é parte do círculo narrativo e dramático quando os personagens são o

foco das adaptações.” (HUTCHEON, 2013, p. 33-4).

O romance é repleto de símbolos que bem servem à criação do texto dramático,

explorando de tal forma a linguagem e seu potencial que impulsiona o literário para além de

suas fronteiras. Primeiramente, destaca-se que Sargento Getúlio é puramente ação. Ação do

narrador que fala. Ação da personagem que faz e acontece. Linguagem literária e

dramatúrgica mesclam-se por meio da ação narrativa que é conduzida com enorme

intensidade dramática. Por meio de um estilo que explora a descrição de acontecimentos por

meio do monólogo, elabora uma técnica centrada no discurso da personagem.

Getúlio anuncia-se na tessitura narrativa como se estivesse no centro de um palco. Ele

é o núcleo e para ele convergem todos os olhares. E o discurso ininterrupto da personagem

impede que qualquer intervenção interrompa o seu contar causos. O leitor emerge no

pensamento de Getúlio como se fosse um espectador tomado por sua encenação. O próprio

enigma do desfecho da história fica a cargo do leitor decifrar. Por meio de um estilo

minucioso, a narrativa segue a fragmentação do pensamento de Getúlio que por diversas

vezes salta de um assunto ao outro de forma abrupta. E a sequência narrativa molda-se como

flashes que revelam a elevação e o declínio do seu narrador-personagem.

A narrativa obedece a forma agreste do seu falar. A aparente incompetência do

narrador de relatar os fatos, por não ser dotado de uma linguagem rebuscada, faz o seu

monólogo adquirir um estilo peculiar: mais do que ler, o leitor é capaz de ouvir sua voz. Ao

acompanhar sua história, o leitor se depara com efeitos de linguagens que concedem à

narrativa uma singular vocalidade que intensifica a representação. Vocalidade esta que é

aproveitada no texto dramatúrgico por meio da constância das falas, tal como no romance.

Como se João Ubaldo adotasse uma forma de narrar dramatúrgica e Gil Vicente Tavares

abraçasse o literário como um script.

Getúlio inventa sua realidade e narra a si mesmo, transformando o seu dizer em um

autorretrato para o leitor. É um eu que busca abarcar momentos de seu percurso no mundo,

recapitulando cenas e revela-se desmoronado diante da morte de seu companheiro Amaro e de

sua Luzinete. A partir da morte de ambos, o dragão Getúlio desfaz-se. A virilidade e a

coragem do protagonista são construídas a partir da fraqueza e covardia de Amaro e da vida

Page 66: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

65

mansa de Luzinete. Sem Amaro e sem Luzinete, Getúlio vê-se acuado e demonstra uma

confusão mental e um comportamento delirante.

O monólogo de Getúlio é a paulatina construção e desconstrução da personagem. E

isso se mantém no texto dramatúrgico. Entre escolhas e complementações, os adaptadores de

textos derivados, primeiramente, são leitores para depois assumirem o papel de criadores ao

se debruçarem no processo de construção do texto dramatúrgico. Situado entre a obra de

referência e o espetáculo, qual o estatuto do texto dramatúrgico? É como se o mesmo

ocupasse um entre-lugar de tal forma que sempre é tratado como um processo e não como

produto:

Conforme meu exemplo até aqui sugere, contar uma história, como em

romances, contos e até mesmo relatos históricos, é descrever, explicar,

resumir, expandir; o narrador tem um ponto de vista e grande poder para

viajar pelo tempo e espaço, e às vezes até mesmo para se aventurar dentro

das mentes dos personagens. Mostrar uma história, como em filmes, balés,

peças de rádio e teatro, musicais e óperas, envolve uma performance direta,

auditiva e geralmente visual, experienciada em tempo real. (HUTCHEON,

2013, p. 35).

O texto dramatúrgico Sargento Getúlio elege como prólogo o trecho do capítulo I do

romance de Ubaldo em que o narrador tece reflexões sobre a morte de forma que explora uma

descrição que transparece ao leitor uma sensação de estar ofegante, com a repetição da

conjunção “e”:

se revira e range os dentes e levanta a cabeça e puxa o ar e busca conversa e

espia os lados e fica retado porque todo mundo não está indo com ele e

arroxeia os beiços e faz que se senta e se esfrega em tudo e se baba e se bate

dos lados e olha duro para as pessoas e dá gofadas e fica com pena dele

mesmo e estica as pernas e se treme todo e faz cara de medo e se destorce e

faz barulhos e se bufa e se borra e grita e pensa naquilo que nunca fez e pede

a Deus nas alturas e chuta o vento e estica a roupa e incha o peito e no fim

faz uma força e revira os olhos de modo medonho e dá um arranque para

cima e vai embora no seu caminho, que o dia de nós todos vem. (RIBEIRO,

2008, p. 24).

Em seguida, inicia a Cena I na qual Getúlio descreve o momento em que sua mulher

estava grávida, trecho que corresponde ao capítulo II do romance. No início, nota-se um uso

reiterado do advérbio “quando”: “Eu alisava a barriga, quando tinha tempo, quando vinha um

sossego, quando quentava, quando deitava, quando estava neblina, quando aquietava.”

(RIBEIRO, 2008, p. 40), o que concede à narrativa um padrão rítmico. E prossegue a trama

Page 67: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

66

com a cena trágica em que mata a mulher que havia o traído. O desfecho da cena é

entrecortado com o aboio: “Ai, ai, ai, ai, aaaaaaaaaaai um boi de barro, um boi de barro,

aaaaaai, ai, ai, ai, mãe” (RIBEIRO, 2008, p. 42), no qual a presença da voz ressoa. O trabalho

ficcional com a voz assume o centro da narrativa, interligando ações a um eixo performático

ao aproximar-se da reprodução dos aboios.

O primeiro interlúdio que entrecorta as cenas refere-se a um dos trechos do capítulo I

em que o narrador dirige-se ao companheiro Amaro, mas o mesmo não responde o que

provoca um ar de comicidade ao tempo em que a peça faz-se a partir de um monólogo:

Ôi Amaro, uh-uh Amaro, ô seu peste, quando um homem fala tu responde.

Um dia desses com essa macriação algum macho lhe tira-lhe o fato fora, que

tu só vai ter tempo de espiar as tripas, rezar meia salverrainha, um quarto de

atodecontição e escolher o melhor lugar no barro para se ajeitar, e ligeiro

ligeiro, que possa ser que antes de chegar já tenha ido. Ôi Amaro, inda mais

que tu é frouxo por demasiado. Vosmecê sabe, esse apustemado é de

Muribeca. Povo de Muribeca não presta, tudo tabaréu, lá não tem nada, não

sabe vosmecê. Amaro, ou você fala ou eu me ferro. An-bem. Hum. Chu.

(RIBEIRO, 2008, p. 11-12).

Amaro é aquele que se coloca a ouvir. Essa forma peculiar de estruturação narrativa

possibilita que a leitura esteja conectada a uma voz que se põe a contar. Getúlio expõe-se

como voz e demanda uma escuta. Amaro é sua escuta e por meio deste o narrador põe-se a

contar ininterruptamente. E por meio do silêncio e ausência de julgamentos de Amaro

evidencia-se um espaço de escuta para o contador de histórias. Getúlio é a voz. Amaro é a

escuta.

A cena II corresponde a um dos trechos do capítulo IV em que narra o momento em

que estavam na fazenda de Nestor e deparam-se com a chegada do tenente Amâncio e então

se inicia o embate entre Getúlio e o tenente. Em tal cena, fica evidente a descrição que

termina por enaltecer a valentia do sargento:

E então arrastei ele para dentro da porteira. Uma visita, uma visita, Seu

Nestor, uma visita de cara torta

pois ô de casa

abre essa porta

tem uma visita

de cara torta

e fui assim cantando baixo e com ele arrastando pelo cabelo e cheguei na

porteira e com o mesmo punhal que ele estava riscando o ar, com aquele

Page 68: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

67

mesmo punhal que ele estava ciscando, passei no pescoço, de frente para

trás, sendo mais fácil do que eu tinha por mim antes de experimentar, com

aquele mesmo punhal que ele estava na cintura e depois na esgrima e me

chamando de corno, cortei o pescoço, foi bastante mesmo mais fácil do que

eu pensei antes e por dentro tinha mais coisa também do que eu pensei, uma

porção de nervos, só o osso de trás que demorou um pouco, mas achei um

buraco no meio de dois, escritinho uma rabada de boi, e aí foi fácil,

atravessando ligeiro o tutano e encerrando, a cavalaria de Deus pela justiça,

corno é a mãe, teve sangue como quatro torneiras, numa distância mais do

que se pode acreditar, logo se esgotando-se e diminuindo e pronto final.

(RIBEIRO, 2008, p. 78-79).

Por meio de cantigas, a personagem mostra o seu universo regional entrecruzando os

signos locais. Apesar dos excessos de valentia da personagem, comporta-se como uma figura

cômica pela forma que exprime sua ação desmedida. O herói desmedido arrisca-se entre a

tragicidade do destino representada pela ameaça da morte e o reconhecimento de seus feitos.

No interlúdio II, elegeu-se a narração sobre Luzinete que corresponde ao capítulo VI

do romance. Em tal fragmento, Getúlio devaneia sobre o cangaço para o qual seria o seu

destino com um chapéu de estrelas prateadas e passaria a chamar-se Dragão Manjaléu.

Getúlio almejava o brilhantismo do cangaço, com sua veste imponente simbolizada pelo

chapéu com estrela. O perfil de Getúlio bem se assemelha ao dos cangaceiros que apesar dos

crimes que cometiam seus adornos simbólicos os colocavam numa dimensão mística.

Assume, posteriormente, para a sua interlocutora Luzinete que seria mesmo era

deputado, uma vez que não precisa de nenhum pré-requisito. Nota-se como o enredo é

entremeado por uma crítica política por meio de um discurso irônico. Ainda na mesma cena,

Getúlio percebe-se “parado como um peixe junto das pedras dum riacho”, enquanto “tem uma

porção de gente se mexendo”. Frente às mudanças da sociedade, a personagem sente-se

empacada e resiste a enfrentar o novo destino. Ao final da cena, Getúlio fantasia como seria

lembrado após a morte:

e quando eu morresse, avô de todos, pai direto ou por tabela, me enterravam

ali e botavam em riba uma cruz com o Senhor crucificado e quem passasse

ia dizer: aquela cruz é do finado, se não se benzer ele ainda vem e lhe pega.

A machidão toda aí, era Garanhão Santos Bezerra, Malvadeza Santos

Bezerra, Abusado Santos Bezerra, Tombatudo Santos Bezerra, Comegente

Santos Bezerra, Enrabador Santos Bezerra, Rombaquirica Santos Bezerra,

Sangrador Santos Bezerra, Vencecavalo Santos Bezerra, todo mundo.

(RIBEIRO, 2008, p. 128).

Page 69: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

68

O trecho acima é carregado de comicidade que faz com que a sobrepujança da

brutalidade de Getúlio seja tomada por um tom risível. Dessa forma, a personagem suaviza a

sua carga de crueldade e potencializa o seu discurso com um efeito dramático. Na cena III, o

texto dramatúrgico retrocede ao capítulo IV e leva para a trama o encontro de Getúlio com o

padre de Japoatã. O sargento refere-se ao padre com um tom de comicidade:

O padre eu não conhecia. Só de nome, e quando vi, pensei que não fosse

padre, pensei que fosse um avariado maluco, fazendo de padre. Ou

manifestado, pode sempre estar. Ele fala depressa e grosso, não se entende

quase. Mas se sabe por que se chama o Padre de Aço da Cara Vermelha,

porque demonstra a dureza e porque tem uma marca vermelha trespassada

pela cara, a cuja marca vermelha fica mais vermelha agora, menas vermelha

indagora e assim vai, conforme. (RIBEIRO, 2008, p. 63).

A forma como Getúlio reporta-se ao padre revela como a religiosidade é alvejada

ironicamente pelo autor. Ao reconhecer no padre a figura de um “avariado maluco”, desmonta

a instituição por meio de um tom irreverente. E a cena continua com o padre afirmando que

Getúlio deveria cortar a cabeça mesmo do tenente por ter chamado o sargento de corno. Nota-

se como a inversão de valores está imbricada na narrativa de forma que até mesmo o padre

adota uma postura inesperada. Além disso, a cena é incrementada com a descrição hiperbólica

de Getúlio:

Corro, berro, atiro melhor e sangro melhor e bebo melhor e luto melhor e

brigo melhor e bato melhor e tenho quatorze balas no corpo e corto cabeça e

mato qualquer coisa e ninguém me mata. E não tenho medo de alma, não

tenho medo de papafigo, não tenho medo de lobisomem, não tenho medo de

escuridão, não tenho medo de inferno, não tenho medo de zorra de peste

nenhuma. (RIBEIRO, 2008, p. 87).

O interlúdio III corresponde ao capítulo VI do romance, episódio em que Amaro conta

histórias de trancoso de cunho cômico. Na região Nordeste do Brasil, as narrativas populares

transmitidas pela tradição oral são conhecidas como histórias de Trancoso e algumas delas são

exploradas no texto dramatúrgico. E o imaginário popular envolve o enredo e enriquece a

tessitura textual na medida em que se embebe com as dúvidas e angústias existenciais do

homem interiorano em contraposição a um mundo que não lhe pertence e a tradição é

redimensionada para além das fronteiras locais.

Na cena IV, narra-se a morte de Amaro durante o combate com as forças do governo,

momento em que Getúlio percebe que “essa vida é uma bosta”. E, ao ser desafiado por

Page 70: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

69

Luzinete a acabar logo com o bando e seguir com a missão, Getúlio não mais se considera

como o invencível e afirma: “só se eu fosse um avião. Só se eu fosse um elefante.”

(RIBEIRO, 2008, p. 140). Com a morte do companheiro Amaro, Getúlio inicia seu processo

de desmoronamento de sua invencibilidade.

No interlúdio IV, em continuidade ao capítulo VII, Getúlio anuncia a morte de

Luzinete que “agora é a lua” e afirma que: “se eu fosse tirar vingança, não tinha tantos que eu

matasse que pudesse descontar Amaro nem meus filhos, nem a cara de Luzinete avoando

pelas nuvens e virando lua e eu aqui de baixo com cinza na cara e chorando lama.”

(RIBEIRO, 2008, p. 144). Nesse momento, o que restava de brutalidade no comportamento de

Getúlio é definitivamente desmontado com a morte de Luzinete. Assim como no romance, Gil

Vicente Tavares reconhece os episódios das mortes de Amaro e Luzinete importantes para a

condução da narrativa e entendimento que o declínio do protagonista estava associado a tais

acontecimentos.

No epílogo, Gil Vicente Tavares reporta-se ao capítulo VIII o qual coincide com o

desfecho do romance. Cena que carrega em si um enorme potencial de dramaticidade a partir

da evidência do delírio de Getúlio quando se vê diante da morte. Da força imbatível ao

delírio, percebe-se que Getúlio não é capaz de existir sozinho, pois precisa sustentar-se na

fraqueza de Amaro e na calmaria de Luzinete.

Na adaptação há uma intertextualidade explícita com a outra obra que é determinada

no processo de produção e de recepção. A opção pela homonímia evidencia a relação

declarada entre as obras e aponta para a fidelidade como um dos critérios que direcionou o

processo adaptativo. É o caso de Sargento Getúlio enquanto texto dramatúrgico que apresenta

recortes originais do romance homônimo. Para Merker (2012), “a adaptação de um romance

para cena nunca é inocente e é sempre produtora de sentido novo. Ou seja: o palco não dita –

o palco liberta.”.

Os recortes são expressivos para o ato cênico. Porém, percebe-se uma narrativa, em

seu aspecto material, que não apresenta didascálias e indicações cênicas distinguindo-se da

padronização dos textos dramáticos, assim como não dispõe também do nome da personagem

antecedendo à sua fala. Apresenta-se, porém, a divisão das cenas e as interrupções com os

interlúdios, além do prólogo e epílogo.

Page 71: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

70

3.2 VERSÕES DO REGIONALISMO PARA JOÃO UBALDO E GIL VICENTE

TAVARES

Em Sargento Getúlio, tanto no romance quanto na peça, o regionalismo é

presentificado na linguagem, na tematização e na própria estrutura formal. Getúlio assume a

voz discursiva e detém o domínio da narrativa. Na movência pela geografia ficcional, a

personagem constrói sua narrativa e ao tecer a imagem de um Nordeste arcaico, tematiza as

relações de poder e deflagra o ambiente de hostilidade do sertão.

No entanto, João Ubaldo contribui para a recriação do regionalismo nordestino ao

construir um monólogo que se distancia do formato da narrativa tradicional. Ao enveredar

pelo sertão a partir da voz do narrador-personagem, o leitor é capaz de visualizar os

problemas regionais mesclados ao tom intimista. Portanto, nesta perspectiva, cabe analisar os

depoimentos de João Ubaldo e Gil Vicente Tavares em que os autores não assumem os tons

regionais em Sargento Getúlio, romance e drama, respectivamente:

A comparação da prosa de João Ubaldo Ribeiro em Sargento Getúlio com a

de Guimarães Rosa, no entanto, não confere com depoimentos do próprio

escritor. Em entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira, ele nega a

afirmação do jornalista de que Sargento Getúlio representaria uma

experiência literária próxima à narrativa de tons regionais. “Noutras

palavras”, continua a pergunta, “o sr redigiu Sargento Getúlio sob a sombra

de Graciliano Ramos e, principalmente, Guimarães Rosa?” “Não”, diz ele. E

só volta ao assunto um pouco mais à frente, novamente refutando uma

suposta aproximação com Rosa no que diz respeito ao uso de neologismos

que reforcem o aspecto oralizado da narrativa: “Na verdade, eu invento

poucas palavras; eu deturpo muito, isso sim. Existem palavras no livro (...)

que eu nem sabia que conhecia – elas emergiram na hora em que eu estava

escrevendo o romance. Eu às vezes até me assustava”, diz. (OLIVEIRA,

2006, p. 54).

Gil Vicente Tavares afirma que:

O grupo Teatro Nu adapta um romance do baiano João Ubaldo Ribeiro,

Sargento Getúlio na forma de um monólogo. “Proibi o diretor musical de

colocar rabeca, zabumba, coro e sertão no meio”, brinca o diretor Gil

Vicente Tavares, que conversou com a reportagem. Quando leu o livro – de

uma sentada – o diretor imaginou o momento da execução de uma pessoa,

quando toda a vida passa diante de seus olhos. “Esse sertão imaginário, que

está na moda, já cansou como imagem e não me interessa. A cultura popular

foi recriada por todos os grandes artistas, mas quando se joga o folclore na

frente, a gente esquece tudo o que pode estar por trás”, explica. (CARNIERI,

2014).

Page 72: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

71

Os depoimentos de João Ubaldo e Gil Vicente demonstram o quanto a literatura, assim

como a arte em geral, evidencia a maneira pela qual o regionalismo é tratado como inferior,

associado ao atraso e ao rudimentar. No campo literário, constitui-se fundamentalmente da

prática das descrições do ambiente e das questões locais à qual está ligado historicamente no

intuito de recriar a literatura brasileira com suas particularidades estéticas e culturais.

Apesar da constância da temática regional na literatura brasileira, há uma disposição

da crítica, na contemporaneidade, de desconsiderar a perspectiva regionalista. Conforme

Durval de Albuquerque, “o regional para o intelectual regionalista era um desfilar de

elementos raros, pinçados como relíquias em via de extinção diante do progresso”

(ALBUQUERQUE, 2011, p. 65).

Antonio Candido (1987) ressalta que o fenômeno regionalista dinamizou a literatura,

considerando que passou por mudanças, mas sua perspectiva ainda persiste. O autor o divide

em: pitoresco, crítico e superregionalismo. É na década de 1950 que emerge o

superregionalismo a partir da reinvenção da linguagem com Guimarães Rosa com a proposta

de unir o regional ao universal. Característica esta que se nota na narrativa de João Ubaldo ao

tematizar o choque entre a modernidade e o arcaico a partir da diluição das marcas locais.

O universal é alcançado a partir do redimensionamento das particularidades locais

para deflagrar a problemática existencial do homem interiorano em contraposição a um

mundo que não lhe pertence. Sargento Getúlio representa as mudanças sociais que se

sucederam em meados do século XX, na passagem de um contexto agrário para o urbano. E o

narrador, por sua vez, protagoniza o regional na luta contra o inelutável. Vê-se, portanto, o

encontro entre o urbano e o sertão. Assim, diante da modernização o comportamento de

Getúlio evidencia como a personagem encontra-se desajustada num mundo que passa por

mudanças para as quais manifesta uma repulsa.

O regionalismo possui nuances no campo literário de forma que não cabe uma única

definição que seja capaz de contemplar sua abrangência. No decurso histórico, os escritores

brasileiros dividiram-se entre a universalidade da arte e a realidade local. Inicialmente, havia

uma disparidade entre a linguagem do narrador e a linguagem das personagens de forma que

uma sobrepunha-se a outra. Isto favoreceu para que o regionalismo como vertente literária

fosse tratado como inferior. Se antes a perspectiva regionalista estava associada ao atraso e ao

pitoresco, agora estes traços superam-se e são lançados para uma dimensão universal. O

regionalismo prossegue no campo literário a partir do embate entre o local e o universal. Ao

Page 73: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

72

superar o exótico, o sentimentalismo e o realismo social, o fenômeno é condicionado a atingir

a universalidade regional.

Em Sargento Getúlio, ao contrário, narrador e personagem fundem-se numa

linguagem una e representativa da região. Assim, se em determinadas obras nota-se um

regionalismo representado pelas personagens, em outras o próprio narrador expressa a

linguagem regional. Getúlio representa a recusa ao progresso, manifestando em seu

comportamento a dicotomia de um mundo que passa a desvendar um embate entre o velho e o

novo. A degradação humana representada pela personagem revela-se não como uma

decorrência de seu destino individual, mas, sobretudo revela as tensões pelas quais passaram

toda uma coletividade.

O regionalismo em Sargento Getúlio constitui-se não a partir da tematização da

pobreza e da marginalidade, mas da tradição regional, com suas crenças, costumes,

expressões e vivacidade. A partir do tensionamento de um momento histórico marcado pelo

choque entre a modernização e a tradição, tal dicotomia deflagra os desajustes de uma

modernização tardia. Assim, evidencia-se uma tendência do literário de expressar a oralidade

de um povo que resiste através do próprio falar às mudanças. E os próprios conflitos que se

exteriorizam por meio da violência representam um mundo caótico e contraditório.

No que tange à linguagem, as obras regionalistas no âmbito da literatura brasileira, na

maior parte das vezes, têm registrado o uso da norma culta, seja pelo narrador, seja pelas

personagens. Isso porque ao tentar aproximar-se da linguagem regional, tais obras não se

conformavam no padrão estético literário vigente. Alguns autores ousaram na busca por

reproduzir a linguagem regional, exigindo novos parâmetros de literariedade ao texto. É o

caso de Guimarães Rosa, como também de João Ubaldo, que ao reinventarem a escrita

literária demonstram como o regionalismo é um recurso dinâmico que ao relacionar-se com o

local acompanha as mudanças socioculturais e faz-se continuamente atual.

É preciso reconhecer o regionalismo como um fenômeno para além das fronteiras

classificatórias que tem suas particularidades, continuidades e mudanças. Em Sargento

Getúlio, vê-se uma narrativa que explora a composição de estilo, assim como evidencia uma

das faces da história brasileira. Ao evocar dialetos e crenças específicas de uma região,

Ubaldo reconstrói artisticamente o local de forma que passa a assumir dimensões universais.

A partir da caracterização do ambiente e das singularidades culturais, Ubaldo constitui

esteticamente uma das partes do país.

Page 74: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

73

O regionalismo enquanto manifestação literária tem sido bastante problematizado pela

crítica. Conforme Durval de Albuquerque (2011), ao criticar o regionalismo a “História

Regional” questiona somente alguns recortes regionais no intuito de buscar o verdadeiro. De

uma forma geral, é considerado retrógrado e com poucos atributos artísticos.

A expressão “regionalismo” tem sido utilizada para denominar fenômenos diferentes

no Brasil. Em fins do século XIX, Sílvio Romero (1949) utiliza o termo “sertanejismo”

associando-o a um realismo voltado para o homem simples do campo com o objetivo de

assegurar o nacionalismo no campo literário. No início do século XX, José Veríssimo (1969)

emprega o termo “regionalismo” para caracterizar os romances que descreveram

poeticamente o contexto sertanejo.

A partir dessas discussões, instaurou-se um enquadramento binário para o fenômeno

regionalista, ao passo que o regional passa a ser equivalente a local, rural e inconciliável com

o universal e urbano. O modernismo contribuiu para a associação do regionalismo como

produto do subdesenvolvimento do Brasil. E, assim, intensifica-se o julgamento pela crítica

como se o mesmo tratasse de um fenômeno literário incipiente por amparar-se na cultura

popular. Com o passar dos anos, o regionalismo é explorado na literatura nacional mostrando-

se como um recurso vivaz e mutável. No decorrer dos anos, a escrita regionalista vem

assumindo novas roupagens que superam a escrita pitoresca e o artificialismo linguístico.

Segundo Bueno Camargo (2006) são diversos os aspectos do romance de 30 disseminados

pela cultura brasileira.

O regionalismo emerge ao longo do processo de afirmação nacional, perpassando a

crítica social e alcança, por exemplo, a subjetividade do sertanejo. Ao debruçar-se sobre a

perspectiva regionalista e suas nuances no transcorrer do tempo, Antonio Candido (1987)

estabelece uma relação com o subdesenvolvimento ressaltando o caráter descritivista do

regionalismo em suas manifestações iniciais. O autor ao apresentar a fase do

superregionalismo destaca que é perceptível a suplantação do localismo e a pretensão do

universal. Na intersecção entre as singularidades regionais e os conflitos humanos a ficção

assume contornos distintos.

Ligia Chiappini (1994) parte de uma noção de regionalismo vinculada aos contextos

sociais demonstrando os desajustes do homem diante da lógica do capital e do seu

consequente processo desenvolvimentista. Segundo a autora, o regionalismo busca na tradição

os elementos que contrapõem o homem do interior ao progresso e ao desenvolvimento.

Page 75: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

74

Juliana Santini (2011) ressalta que alguns autores do século XX não são contemplados

pela classificação da literatura regionalista de Antonio Candido e, por isso, é necessário um

revisionismo histórico da ficção regionalista no Brasil assim como dos critérios de avaliação

da crítica. A autora destaca que o regionalismo, geralmente associado ao subdesenvolvimento,

foi enquadrado no pensamento de que a produção de Guimarães Rosa, caracterizada como

superregionalista, marcou a impossibilidade de representação do local:

Mais de cinquenta anos depois de sua sistematização, o paradigma de análise

desenhado por Antonio Candido desdobra-se em sua própria escrita e ecoa

em letras outras, impondo as certezas – e também os hiatos e as

ambiguidades – como ponto de pauta para a exegese contemporânea, queira

ela ou não aceitar a relação orgânica de nossas letras com o

subdesenvolvimento. (SANTINI, 2011, p. 84).

De todo modo, a reverberação da tendência regional na produção contemporânea é

evidente. A literatura nacional é constituída pelos recortes regionais que formam a diversidade

e heterogeneidade do todo. Por meio de um pano de fundo da descrição física, cultural e

social, o regionalismo mostra sua face. Apesar das delimitações do espaço e do tempo, o

regionalismo a partir de sua ficcionalidade ressignifica suas fronteiras e atinge o íntimo do

homem do sertão. Nessa tarefa, Ubaldo constrói sua personagem como uma extensão da

brutalidade do sertão que evidencia em algumas passagens o desejo de permanência de seu

universo arcaico.

Em Sargento Getúlio, a secura está na linguagem e no próprio estilo adotado pelo

autor. Se antes o homem rude era envolto por uma aura pitoresca, agora a personagem

defronta-se diante da ameaça de desintegração do seu mundo. E ao caminhar para o desfecho

da narrativa, evidencia-se o declínio desastroso do retrocesso. Getúlio representa a incultura e

o anacronismo em contraposição ao cosmopolitismo. Nota-se a combinação do pitoresco e da

consciência crítica na composição de um novo regionalismo. Segundo Antonio Candido, na

fase do superregionalismo tem-se uma consciência do subdesenvolvimento. É visível em

Sargento Getúlio, o estranhamento na aproximação entre a modernização e o mundo rural. A

partir da exploração da linguagem regional e da tematização do universo agreste, a narrativa

ganha contornos de um documento histórico e sociológico.

Page 76: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

75

3.3 OS GETÚLIOS NO MUNDO E OS MUNDOS DE GETÚLIO: IMAGINÁRIO DOS

ARCAÍSMOS

Entre o campo e a cidade e no interstício entre o arcaico e o moderno, Getúlio

constrói-se e decompõe-se. Inicia-se com uma força brutal e invencível que, aos poucos, entra

em declínio. A linguagem local é consagrada como um símbolo da representação. Em

Sargento Getúlio, os arcaísmos manifestam-se na linguagem, no estilo e como traço

comportamental da personagem protagonista, de forma que representam um processo de

mudança em que se percebe uma tensão entre a continuidade e a descontinuidade do passado.

Em Sargento Getúlio nota-se uma estrutura formalmente distinta. A trajetória à qual

conduz o narrador-personagem conduz o leitor pela tradição sertaneja e constrói a imagem de

si próprio como o protótipo do arcaico. E no decorrer da viagem, percebe-se uma oscilação no

perfil do protagonista que perpassa pela figura do herói ao trágico. E entre a cidade e o sertão,

Getúlio impõe-se na representatividade das singularidades regionais e teme por sua

decadência. O regional faz-se presente no falar, na religiosidade, nas crenças e costumes.

O sargento que representa o Estado no início da narrativa passa a ser alvo do governo

ao caminhar-se para o desfecho. A recusa às mudanças faz com que Getúlio, o herói do sertão

nas vestes de homem do governo, seja alvejado. Getúlio e sua força brutal são desmoronados

por uma contraordem. Getúlio constrói sua autoimagem numa narrativa envolvente que abusa

da virtuosidade do homem do sertão. Sob o ponto de vista do narrador, o leitor é conduzido

por uma linguagem que constrói e desconstrói a figura do sargento. Toda a narrativa é

construída por meio da fala da personagem, que parece seguir sem nenhuma pausa, o que faz

com que Ubaldo contribua para uma revitalização da forma e estilo literários. Além disso, a

fala de Getúlio é bastante representativa da variação regional da língua característica do falar

do sergipano da década de 1950.

Em se tratando de aspectos linguísticos, o uso de arcaísmos denota uma marca

passadista que persiste numa não mudança e isso é determinante no comportamento de

Getúlio. O arcaísmo é o uso de expressões que não são mais usadas pela coletividade ou que

são mais raras num determinado momento histórico. Na obra de João Ubaldo podem ser

localizadas diversas expressões arcaicas de uso regional por serem mais conservadoras. Como

exemplos de arcaísmos linguísticos, é possível citar os seguintes exemplos:

Page 77: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

76

ALEMBRAR (LEMBRAR) “Isso eles não se alembram de contar.” (RIBEIRO, 2008, p.

21).

ASSOPRAR (SOPRAR) “Alípio queria falar mas não podia, só assoprava com

descontrole de vento.” (RIBEIRO, 2008, p. 15).

CÁ (AQUI) “Esse cá que Amaro vai pegar de jeito deve de ter tirado

carta de valente lá, e vem aqui.” (RIBEIRO, 2008, p. 133).

DE COMER (COMIDA) “Lampião andava com uma colher de prata no embornal.

Todo de comer enfiava colher.” (RIBEIRO, 2008, p. 13).

DONDE (ONDE) “Donde se vê que a sede da fala também é parte na

bochecha.” (RIBEIRO, 2008, p. 15).

RIBA (CIMA) “Veio força armada da Bahia, botaram cachorro,

escondemos o menino e se dispomos por baixo dos oitizeiros

da praça, pela riba do palanque, em cima da piçarra.”

(RIBEIRO, 2008, p. 20).

No início da narrativa, nos deparamos com a expressão “gota serena”, que é uma

expressão utilizada popularmente no Nordeste para referir-se a um estado de fúria e

nervosismo. É recorrente também no discurso de Getúlio o uso de construções como “se

tranforma-se” demarcando os traços de oralidade do narrador.

Getúlio faz referência ao povo de Muribeca que segundo o protagonista não presta. Na

Bahia, circula a Lenda de Muribeca que aponta para a possibilidade de uma cidade perdida

que possui ouro e pedras preciosas. Segundo Aguiar (1979), um português chamado Diogo

Álvares, o Caramuru, havia sobrevivido a um naufrágio no Brasil, no século XVI, e recebeu

ajuda dos índios Tupis-Guaranis. Um dos filhos do português com uma índia recebeu o nome

de Muribeca, que em viagem com os índios Tapuias descobriu um lugar rico em ouro e pedras

preciosas que passaram a ser vendidos no porto de Salvador. Além das lendas e contos

regionais, a narrativa é entremeada por expressões utilizadas em Sergipe:

APUSSO contra a vontade

ABESTALHADO imbecil, tolo

ABILOLADO doido, maluco

AGARRAR grudar

Page 78: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

77

AGONIA aflito, amargurado, angustiado, apressado

APERREADO aborrecido, ansioso, apressado, chateado

APOIS concordância

ARRE denota alívio ou espanto

ARRODEAR andar ao redor

AVEXADO apressado

BEXIGUENTO imprestável

CABRUNCO palavrão ofensivo

CABRUNQUENTO coisa ou pessoa ruim

OXENTE espanto ou surpresa

DA BEXIGA em intensidade

DA PESTE muito bom ou muito ruim

ESTUPOR BALAIO 1. Infarto. Morte. Paralisia repentina. 2. Pessoa feia. 3. Expressão

usada quando a pessoa se irrita com algum objeto ou alguma

situação.

FUMBAMBENTO desbotado

PORRETA bacana, maravilhosa, legal

SE FAZER Fingir

ZORRA admiração

E a percepção passadista não se restringe à linguagem, mas também ao nível

comportamental. É evidente o contraste entre os elementos arcaicos e a modernidade. A partir

do literário que materializa a recriação de um mundo, outro mundo é reinventado a partir da

reestruturação da linguagem.

Com a demarcação de elementos arcaizantes no romance e no texto dramatúrgico

Sargento Getúlio, cabe problematizar o uso dos arcaísmos como recurso artístico. O emprego

na literatura de termos arcaicos relaciona-se com o modo pelo qual o autor e o leitor os

concebem. A partir dessa relação dinâmica entre o texto, o autor e o leitor, os arcaísmos

emergem com um enorme potencial significativo. João Ubaldo explora uma linguagem e um

estilo que perpassam o regional e recria o mundo a partir da plurissignificação do literário. A

bravura de Getúlio também é refletida pela natureza imponente do sertão. Sertão brabo, sertão

que arde e que se traduz num inferno. O arranjo estrutural de Sargento Getúlio dá-se por uma

Page 79: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

78

narração em forma de monólogo, que assume um ritmo acelerado de forma que João Ubaldo

supera em termos estilísticos outros autores que também tematizaram o sertão.

A linguagem em sua dimensão dupla que parte das particularidades locais para

evidenciar o conflito existencial de seu portador: o narrador-personagem. A linguagem,

alargada ao âmbito universal, que é representacional, mas incursiona-se pela realidade e

evidencia Getúlio em sua complexidade na sua trilha de identidades perdidas. O trabalho

linguístico, que não é meramente reprodução, faz-se a partir da reinvenção. Conforme José

Hildebrando Dacanal, Sargento Getúlio “apareceu com lugar já definido dentro da literatura

brasileira. A obra de João Ubaldo Ribeiro, criação poética a cuja grandeza ninguém pode

deixar de curvar-se, integra, sem dúvida, o ciclo da nova narrativa épica” (DACANAL, 1988,

p. 90).

João Ubaldo considera que a literatura de abrangência universal alcança maiores

êxitos (OLIVEIRA, 2006). O autor assume não gostar de ser questionado sobre influências

literárias e considera-se um ignorante em ficção. Sobre as influências, Ubaldo Ribeiro afirma

que quando escreveu Sargento Getúlio não havia lido Guimarães Rosa, apesar da crítica

estabelecer comparações entre os autores. Admite que a linguagem aproxima-se por referir-se

ao sertão, porém não vê similaridades entre os estilos. Ainda afirma que ao escrever a

narrativa perguntava para sua mãe o que se comia em Sergipe, onde morou com a família. A

sua fonte de pesquisa de linguagem, segundo o escritor, ocorreu no âmbito familiar.

O início da narrativa já prenuncia o perfil do protagonista que se comporta como uma

gota que não é fixa e mora no mundo andando. O monólogo Sargento Getúlio faz com que o

leitor veja o mundo sob a perspectiva do narrador-personagem que faz da sua fala um estilo

próprio de escrever literariamente. Getúlio não afirma o nome do preso em nenhum momento

em sua fala. O seu apego à palavra dada faz da sua contrariedade às novas ordens a luta pela

manutenção do universo sertanejo com seus costumes e valores. As relações de poder se

engendram em meio a um mundo conservador e suas mutações. Entre o passado e a

modernidade, Getúlio entra em crise.

O pai de João Ubaldo, Manoel Ribeiro era líder do PSD, foi Secretário de Segurança e

governou o Estado temporariamente. De certa forma, o ficcional embebe-se das experiências

e memórias do contexto histórico que o autor vivenciou. As relações de poder são bem

demarcadas na fala de Getúlio: “Mesmo agora que eu perdi a autoridade, sempre fica o

prestígio. Em Aracaju tenho as costas quentes e não é assim que Getúlio vai se ver de uma

hora para outra.” (RIBEIRO, 2008, p. 12-13).

Page 80: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

79

O monólogo é estruturado a partir da ordem e da contraordem. Sob a primeira pessoa

do foco narrativo, configura-se a personagem protagonista em um „eu‟ que é formado pelo

binômio narrador-personagem que tece o romance. Não existem contornos entre o narrador e

Getúlio. É a voz de Getúlio que narra. Através da missão de contar do narrador, percorre-se a

missão da personagem Getúlio em sua trajetória. E, nesse percurso, emerge-se uma

personagem complexa, com múltiplas personalidades e discurso variável. Seu monólogo é

interpenetrado por vozes que se dirigem aos seus interlocutores, mas também que expressa o

seu pensamento e sua fala solitária. Getúlio conta no presente e a narrativa encerra-se com a

sua morte. Apesar desta não estar implícita, mas é suposta pela fala do protagonista que vai

esvanecendo. O romance é constituído pela fala da personagem que não concede um ponto

final à narrativa.

Paulatinamente, Getúlio defronta-se com os novos rumos do mundo e demarca seu

território a partir do fazer. E, este fazer, constitui num impasse que se torna o centro do

monólogo. A determinação de levar o preso é uma afirmação da identidade de Getúlio e de

seus valores ancorada na renúncia às mudanças. Entre histórias e figuras da infância de

Ubaldo, o monólogo intensifica-se como marco documental de um contexto e de uma época

de forma envolvente e poética.

Page 81: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

80

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As obras de arte têm ressonância em todo o social.

Elas são máquinas de produção de sentido e de

significados. Elas funcionam proliferando o real,

ultrapassando sua naturalização. São produtoras de

uma dada sensibilidade e instauradoras de uma

dada forma de ver e dizer a realidade. São

máquinas históricas de saber. (Albuquerque Júnior,

2011).

O romance não mais se reveste unicamente das formas e linguagens dos séculos

antecedentes, mas reconstrói-se a partir de novos recursos. Por meio do trabalho com a

palavra o gênero exprime nuanças da coletividade humana que através da leitura serão

partilhadas e reinterpretadas. No círculo entre destino e sujeito a personagem romanesca

demonstra o seu drama e faz-se signo de vícios e virtudes bem exploradas no texto

dramatúrgico.

Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, expôs a emergência de um sertão por meio

de um monólogo que atravessa as fronteiras romanescas e alcança as potencialidades do

dramatúrgico, fazendo com que os contornos do campo literário tornem-se indefinidos. Na

travessia entre o romance e o texto dramatúrgico Sargento Getúlio notam-se aspectos

intercambiantes entre a literatura e a dramaturgia de forma que evidencia como a arte é dotada

de possibilidades. Por meio da leitura literária, o texto é ressignificado e desponta para outro

viés artístico. O regionalismo e aspectos da linguagem são algumas das marcas do romance

que são revitalizadas no texto dramatúrgico.

Por meio da exploração do imaginário social e da construção de subjetividades do

homem no ambiente hostil do sertão, Sargento Getúlio evidencia a criação do Nordeste de

João Ubaldo que é reverberado na dramaturgia demonstrando seus predicados culturais e

simbólicos. No processo adaptativo da literatura à dramaturgia, estereótipos e crendices do

espaço regional são inventariados na circularidade da narrativa que é imbuída da polaridade

entre o arcaico e o moderno. A partir da perspectiva das relações de poder, o narrador-

personagem impõe-se diante de um contexto vitimizado pelas forças políticas e traça sua

trajetória de perdas e estranhamentos.

Mais do que explorar o binarismo entre o atraso e o progresso, João Ubaldo expõe

tematicamente e linguisticamente a subjetividade da personagem no trânsito entre

identificação e desidentificação, entre o reconhecimento e o desajuste. A opção pelo

Page 82: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

81

monólogo ajustou-se ao intento do autor ao trazer para a narrativa a perspectiva do olhar de

dentro e do espaço psíquico.

Getúlio representa o contraponto ao discurso da modernidade e do progresso. Entre o

coronelismo e o falar regional vê-se a problematização da estereotipia arraigada na

representação do Nordeste materializada na subjetividade do protagonista. A fala de Getúlio

desenrola-se no sentido de demonstrar a sustentação das relações de poder. Conforme

Albuquerque, as variadas formas de expressão “como a literatura, o cinema, a música, a

pintura, o teatro, a produção acadêmica, o são como ações, práticas inseparáveis de uma

instituição. Estas linguagens não apenas representam o real, mas instituem reais.”

(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 34).

Ao tematizar sobre o Nordeste, a literatura e a dramaturgia contribuem para a

(des)construção de realidades. É a narrativa da sensibilidade do homem diante do contexto da

modernidade. Não é o homem do sertão que busca o progresso do Sul. Ao contrário, é o

impacto do homem diante da consciência de que o progresso ameaça o seu lugar.

O olhar de estranhamento do homem perante a modernização configura uma dimensão

subjetiva do sujeito. Vê-se a retratação do sertão enquanto instância emocional embutida na

fala da personagem que se desmonta gradativamente na trajetória que o leva para o

dilaceramento existencial. Sob o estigma da violência, o banditismo do sertão atravessa a

narrativa do romance e protagoniza no texto dramatúrgico Sargento Getúlio. Os símbolos de

poder de Getúlio são suplantados por forças dominantes. Apesar de reagir à iminência de

dissolução de seu mundo, Getúlio reconhece sua derrota e demonstra sua fragilidade.

O drama de Getúlio mantém o elo entre a literatura e a dramaturgia. A subjetividade

da personagem deflagra sua imponência, como também sua tragicidade, permite a exploração

das potencialidades da narrativa de Ubaldo pela arte dramatúrgica. Da perspectiva

modernizante e industrializante do Estado em contraponto às tradições locais, Sargento

Getúlio adentra-se no colapso dos códigos culturais demarcado na fala do narrador-

personagem.

Na reação ao moderno, Getúlio faz-se rústico e forte evidenciando uma personagem

simbólica que enfrenta conflitos e adversidades na fixação de seu modo de ser. Ao representar

os valores de seu contexto regional, Getúlio materializa em sua figura um repertório

imagético, enunciativo e expressivo que funcionam como a matéria-prima literária e

dramatúrgica.

Page 83: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

82

João Ubaldo e Gil Vicente Tavares vão além das dicotomias entre o arcaico e o

moderno ao focalizarem o impacto desse encontro na subjetividade do homem do sertão. A

partir da perspectiva de Getúlio, o leitor é tomado pelo drama e conflitos internos que

perpassam o contexto de disputa regional. Tanto a literatura e a dramaturgia apostam no

potencial da personagem em instituir imagens regionais e embebem-se da incapacidade do

mesmo em assimilar o novo mundo. O heroísmo de Getúlio é arrebatado e anuncia a

decadência de seu mundo de coragem e bravura. O monólogo que inicia exaltando o seu nome

evidencia um desfecho trágico, compondo uma figura com contornos complexos e múltiplos.

A partir da estratégia do monólogo centrado na voz do narrador Ubaldo explora a

força criativa da linguagem, atentando para a potencialidade do conteúdo e, sobretudo, da

forma. Em Sargento Getúlio, o poder da palavra que anuncia o estabelecimento de um novo

mundo transita entre o literário e o dramatúrgico demonstrando a decomposição existencial do

homem do sertão com suas dúvidas e problemas. Do diálogo entre a literatura e o teatro,

evidencia-se a flexibilidade entre as fronteiras artísticas numa representação que contempla o

popular, o heroico e a aridez humana como contraponto e repulsa das contradições do mundo

moderno.

Page 84: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

83

REFERÊNCIAS

AGUIAR, Durval Vieira de. Descrições Práticas da Província da Bahia: com declaração de

todas as distâncias intermediárias das cidades, vilas e povoações. Rio de Janeiro: Cátedra,

1979.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. 5.

ed. São Paulo: Cortez, 2011.

ALVES, Hebe. Desafios do encenador: entre atores e personagens. In.: MENDES, Cleise

Furtado. Dramaturgia, ainda: reconfigurações e rasuras. Salvador: EDUFBA, 2011.

ANUNCIAÇÃO, Miguel. Distante da Província. 2014. Disponível

em:<https://blogdacena.wordpress.com/2014/08/25/>. Acesso em: 01 set. 2014.

ARISTÓTELES. Poética. Tradução e notas de Ana Maria Valente. 3. ed. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 2008.

AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Tradução

de Editorial Perspectiva. São Paulo: Perspectiva, 1976.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética - A teoria do romance. Tradução de

Aurora Fornoni Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Spryndis

Nazário, Homero Freitas de Andrade. 5. ed. São Paulo: Ed.Unesp/hucitec, 2002.

BELO, Fábio Roberto Rodrigues. Dominação e violência, entre a história e a ficção: uma

análise de Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro. 2007. Disponível

em:<http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/ECAP-79YGNA>. Acesso em:

01 set. 2015.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. Tradução Sérgio

Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BOILEAU-DESPRÉAUX, Nicolas. A Arte Poética. Tradução e notas de Célia Berrettini.

São Paulo: Perspectiva, 1979.

BORNHEIM, Gerd A. Teatro: a cena dividida. Porto Alegre: LP&M, 1983.

BOSI, Alfredo. Cultura como tradição. In: BORNHEIM, Gerd et al. Cultura Brasileira:

tradição/contradição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. p. 31-58.

BRASIL. Lei n° 9.610, de 19 de fevereiro de 1988. Altera, atualiza e consolida a legislação

sobre direitos autorais e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa

do Brasil, Brasília, DF, 20 fev. 1998. Disponível

em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9610.htm>. Acesso em: 15 dez. 2015.

Page 85: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

84

BRONCKART, Jean-Paul. Atividades de linguagem, textos e discursos. IN.: Por um

interacionismo sócio-discursivo. Tradução de Anna Rachel Machado, Péricles Cunha. São

Paulo: EDUC, 2003.

CAJAÍBA, Luís Claudio. A teoria da recepção e a encenação dos dramas de língua alemã em

Salvador. In.: MENDES, Cleise Furtado. Dramaturgia, ainda: reconfigurações e rasuras.

Salvador: EDUFBA, 2011.

CAMARGO, Luís G. Bueno. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da

Universidade de São Paulo; Campinas: Editora da Unicamp, 2006. v. 1. 712 p..

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987.

CARNIERI, Helena. O que é que o teatro da Bahia tem?. 2013. Disponível em:<

http://www.gazetadopovo.com.br/caderno-g/o-que-e-que-o-teatro-da-bahia-tem-

awze8nxerdyc808b000yy5vge>. Acesso em: 01 set. 2014.

CARVALHO, Eduardo. Um homem de teatro: entrevista com Aderbal Freire-Filho. 2008.

Revista Sesc Rio, outubro/2008. Texto replicado no blog Coisas de teatro. Disponível em:

<http://coisasdeteatro.blogspot.com/2010/06/entrevista-com-aderbalfreire-filho-na.html>.

Acesso em: 05 fev. 2016.

CECCANTINI, João Luís. João Ubaldo, o escritor que representa o Brasil no exterior.

Acesso em:<http://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/sem-categoria/joao-ubaldo-o-escritor-

que-representa-o-brasil-no-exterior/>. Acesso em: 21 jul. 2014.

CEIA, Carlos. E-Dicionário de Termos literários de Carlos Ceia. 2010. Disponível em:<

http://www.edtl.com.pt/business-directory/6522/interludio/>. Acesso em: 01 set. 2015.

CHARTIER, Roger. Do palco à página: publicar teatro e ler romances na época moderna

(séculos XVI-XVIII). Tradução de Bruno Feitler. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.

CHIAPPINI, Ligia. Velha praga? Regionalismo literário brasileiro. In: PIZZARRO, Ana.

(Org.). América latina: palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial; Campinas: Editora

da UNICAMP, 1994. p. 665-702. v. 2.

DACANAL, José Hildebrando. Nova Narrativa Épica no Brasil. 2. ed. Porto Alegre:

Mercado Aberto, 1988.

DIAS, Ângela Maria. Cruéis paisagens: Literatura Brasileira e Cultura Contemporânea.

Niterói: EdUFF, 2007.

DIAS, Juarez Guimarães. Erguer a dramaturgia: considerações sobre a adaptação de

Levantado do Chão. 2010. Disponível em:<http://agazetadoacre.com/noticias/erguer-a-

dramaturgia-consideracoes-sobre-a-adaptacao-de-levantado-do-chao/>. Acesso em: 05 fev.

2016.

Page 86: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

85

ESTEBAN, Maria Helena. Explosão poética do palco - o teatro para todos os autores.

2013. Disponível em : <http://www.casadoautorbrasileiro.com.br/entrevista>. Acesso em: 05

fev. 2016.

FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. Tradução Jorge Coli. Rio de Janeiro: Paz e

terra, 1988.

FRENTE&VERSO COMUNICAÇÃO INTEGRADA. Sargento Getúlio em Cartaz em

Salvador. 2014. Disponível em:<http://frenteeverso.com/video-mostra-aperitivo-do-sargento-

getulio/>. Acesso em 01 ago. 2015.

GENETTE, Gérard. Introdução ao arquitexto. Tradução Cabral Martins. Lisboa: Vega,

1990.

GOLDMANN, Lucien. Sociologia do romance. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:

Editora Civilização Brasileira, 1967.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução de André Cechinel. 2. ed.

Florianópolis: Ed. da UFSC, 2013.

HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. Tradução e notas de Célia Berrettini. São Paulo:

Perspectiva, 2007.

INGARDEN, Roman. A obra de arte literária. Tradução de Albin E. Beau, Maria C. Puga e

João F. Barrento. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979.

ISER, Wolfgang. O ato de leitura: uma teoria do efeito estético. Tradução de Johannes

Kretschmer. São Paulo: Ed. 34, 1996, v. 1.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária.

Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.

KOTHE, Flávio R. O Herói. São Paulo: Editora Ática, 2000.

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da

grande épica. 2. ed. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades;

Editora 34, 2009. (Coleção Espírito Crítico).

MAINGUENEAU, Dominique. Diversidade de gêneros de discurso. In: MACHADO, I.L;

MELLO, R. (org). Gêneros: reflexões em Análise do Discurso. Belo Horizonte: NAD/

FALE/ UFMG, 2004.

MELLO, Renato de. (org). Gêneros: reflexões em Análise do Discurso. Belo Horizonte:

NAD/ FALE/ UFMG, 2004.

MENDES, Cleise Furtado. As estratégias do drama. Salvador: Centro Editorial e Didático

da UFBA, 1995.

Page 87: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

86

MOREIRA, Terezinha Taborda. O vão da voz: a metamorfose do narrador na ficção

moçambicana. Belo Horizonte: Ed. PUC - Minas, 2005.

MORETTI, Franco (org). A cultura do romance. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo:

Cosac Naify, 2009.

OLIVEIRA, Juvenal Batella de. Este lado para dentro – ficção, confissão e disfarce em João

Ubaldo Ribeiro. Rio de Janeiro: PUC, 2006.

ONG, Walter J. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Tradução de Enid

Abreu Dobránszky. São Paulo: Papirus, 1998.

PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea: origens, tendências, perspectivas. Tradução

de Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2010.

______, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São

Paulo: Perspectiva, 2005.

PLATÃO. A República. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Difusão européia do livro.

1965. (Clássicos Garnier).

RAMOS, Carlos. Teatro Poeira estréia peça O Púcaro Búlgaro. 2006. Disponível em:

<http://www.ofuxico.com.br/noticias-sobre-famosos/teatro-poeira-estreia-peca-o-pucaro-

bulgaro/2006/06/02-30092.html>. Acesso em: 05 fev. 2016.

RAVETTI, Graciela. “Narrativas Performáticas”. In: REVETTI, G. ; ARBEX, M. (Orgs).

Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte:

Departamento de Letras Românicas, Faculdade de Letras/ Pós-Lit/ UFMG, 2002.

RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio

de Janeiro: Casa da Palavra Biblioteca Nacional, 2008.

RIBEIRO, João Ubaldo. Sargento Getúlio. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tomo III. Tradução de Roberto Leal Ferreira.

Campinas: Papirus, 1997.

ROBERT, Marthe. Romance das origens, origens do romance. Tradução de André Telles.

São Paulo: Cosac Naify, 2007.

ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira (1888). 4. ed. Rio de Janeiro, José

Olympio, 1949.

ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o Romance Moderno. In: Texto / Contexto I. São

Paulo: Editora Perspectiva, 1996. p.75-97.

SANTANA, Joseval. Gil Vicente Tavares. 2012. Disponível em:

<http://fiacbahia.com.br/2012/?p=1994>. Acesso em: 01 set. 2014.

Page 88: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

87

SANTINI, Juliana. A Formação da Literatura Brasileira e o Regionalismo. 2011.

Disponível em:

https://www.academia.edu/4255695/A_Forma%C3%A7%C3%A3o_da_Literatura_Brasileira

_e_o_regionalismo. Acesso em: 05 fev. 2016.

SCHOLLHAMMER, Karl Eric. Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira. In:

PEREIRA, Carlos Alberto Messeder et al. (org.) Linguagens da violência. Rio de Janeiro:

Rocco, 2000. p. 236-259.

SPINELLI, M. (2014). A aretê filosófica de Platão sobreposta à do éthos tradicional da

cultura grega. Disponível

em:<https://impactum.uc.pt/en/artigo/aret%C3%AA_filos%C3%B3fica_de_plat%C3%A3o_s

obreposta_%C3%A0_do_%C3%A9thos_tradicional_da_cultura_grega>. Acesso em: 20 ago.

2015.

STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Tradução de Celeste Aída Galeão.

Rio de Janeiro: Tempo brasileiro. 1975.

TAVARES, Gil Vicente. Sargento Getúlio. 2011.

TELES, Gilberto Mendonça. Os limites da intertextualidade. In: _____. A retórica do

silêncio – teoria e pratica do texto literário. São Paulo: Cultrix/MEC,/INL, 1979, p. 21-37

TIBAJI, Alberto. O objeto de pesquisa da história das artes do espetáculo: do efêmero ao

disperso. In.: CONGRESSO DA ABRACE. 2002. Salvador. Anais... Salvador: Abrace,

2002.

TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. Tradução de Elisa Angotti Rossovitch. São

Paulo: Martins Fontes, 1980.

VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira (1916). 5. ed. Rio de Janeiro, José

Olympio, 1969.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Tradução de Haiganuch

Sarian. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Tradução

de Hildegard Feist. São Paulo: Schwarcz, 1990.

WESKER, Arnold. O palco dita, a página liberta. 2012. Disponível

em:<https://maiscritica.wordpress.com/2013/01/29/o-palco-dita-a-pagina-liberta-algumas-

notas-sobre-adaptacao-de-romances-para-cena-a-proposito-de-casas-pardas/>. Acesso em: 05

fev. 2016.

WILLIAMS, Raymond. Drama em cena. Tradução de Rogério Bettoni. São Paulo: Cosac

Naify, 2010.

Page 89: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

88

YUNES, Eliana. Literatura e Educação: a formação do sujeito. In: KHÉDE, Sônia Salomão

(coord.). Os contrapontos da Literatura (arte, ciência e filosofia). Rio de

janeiro/Petrópolis: Vozes, 1984.

ZILBERMAN, Regina. Teoria da Literatura I. 2. ed. Curitiba: IESDE Brasil, 2012.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires e Ferreira e

Suely Fenerich. São Paulo: EDUC, 2000.

Page 90: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

89

APÊNDICE – Quadro comparativo entre o romance Sargento Getúlio, de João Ubaldo

Ribeiro, e o texto dramatúrgico homônimo de Gil Vicente Tavares

ROMANCE TEXTO

DRAMATÚRGICO

CAPÍTULO I

“Quem nunca viu não sabe o que é [...] A hora de cada um é a hora

de cada um.” (RIBEIRO, 2008, p. 24).

PRÓLOGO

CAPÍTULO II

“Ela estava de barriga na ocasião [...] E no outro dia podiam me ver

dançando uma jornada de chegança, nós que semos marinheiros

dentro dessa anau de guerra por isso que puxemos ferro olelê

largamos a grande vela.” (RIBEIRO, 2008, p. 40-41).

“Ai, ai, ai, ai, aaaaaaaaaai um boi de barro, um boi de barro,

aaaaaaai, ai, ai, ai, mãe” (RIBEIRO, 2008, p. 42).

“ai, um boi de barro, um boi de muito barro que eu comia, todas as

cores, um dia eu morro e a laranjeira murcha, ai, mãe, um boi de

barro. Meto um dedo no ouvido bem de leve, e devagarzinho vou

sacudindo, vou sacudindo, e solto um aboio alto pelos ares. Mas

ninguém escuta, não tem boiada, o meu aboio é oco. Nunca fui

vaqueiro. Mas mesmo assim solto um aboio bem alto e o dedo quase

arranca a orelha e olho o chão e fico triste.” (RIBEIRO, 2008, p. 42).

CENA 1

CAPÍTULO I

“Ôi Amaro, uh-uh, Amaro, ô seu peste, quando um homem fala tu

responde [...] Vosmecê sabe, esse apustemado é de Muribeca. Povo

de Muribeca não presta, tudo tabaréu, lá não tem nada, não sabe

INTERLÚDIO 1

Page 91: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

90

vosmecê. Amaro, ou você fala ou eu me ferro. An-bem. Hum. Chu.”

(RIBEIRO, 2008, p. 11-12).

CAPÍTULO IV

“Nunca pensei que ia degolar o tenente, pelo menos nunca pensei

assim no claro, quer dizer, nunca disse: Getúlio, vamos cortar a

moléstia da cabeça do tenente [...] Donde que o homem esguincha

sangue mais longe do que pode cuspir.” (RIBEIRO, 2008, p. 73-79).

CENA 2

CAPÍTULO VI

“Pois é Luzinete, olhando assim pela janela, podia ficar aqui. Mas

tem horas que se pode ficar, horas que não se admite.” (RIBEIRO,

2008, p. 125).

“Assim não pode, não quero. Me diga-me, vamos para o cangaço?

Eu sei que não tem cangaço, mas se tivesse você ia? Não ia, você é

mulher que gosta mais de um filho no bucho e de um homem na

cama e de morte morrida [...] Se tivesse cangaço, eu ia para o

cangaço, com um chapéu de estrelas prateadas e ia me chamar

Dragão Manjaléu e ia falar pouco e fazer muito.” (RIBEIRO, 2008,

p. 125-126).

“Luzinete, eu vou ser é deputado e vou fumar uns charutos. Amaro

pode guiar meu carro, que eu deixo. Pra ser deputado não é preciso

nada. Se eu fosse deputado, você ia, não ia? Pra ficar toda lorde, e

aprendia a falar difícil, não aprendia?” (RIBEIRO, 2008, p. 126-

127).

“Numa hora como essa, a gente pensa que o mundo pára. Mas não

pára nada, se sabe. Tem uma porção de gente se mexendo, e eu aqui

no meio, paradão. Mas parado como um peixe junto das pedras dum

INTERLÚDIO 2

Page 92: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

91

riacho, que se você quiser mexer perto ele dá uma rabanada e some.

Porque é assim que eu sou.” (RIBEIRO, 2008, p. 127-128).

“Então eu podia morrer de velho, não podia? Podia. Podia ficar aqui

e todo ano lhe emprenhar certo para vir um filho em janeiro, que é

princípios do ano e acerta mais [...] A machidão toda aí, era

Garanhão Santos Bezerra, Malvadeza Santos Bezerra, Abusado

Santos Bezerra, Tombatudo Santos Bezerra, Comegente Santos

Bezerra, Enrabador Santos Bezerra, Rombaquirica Santos Bezerra,

Sangrador Santos Bezerra, Vencecavalo Santos Bezerra, todo

mundo. Tu bem que ia gostar disso, eu acho. (RIBEIRO, 2008, p.

128).

CAPÍTULO IV

“Nem nunca pude pensar que Amaro soubesse essas rezas, nem

muito menos que esse padre de Japoatã fosse botar os três ajoelhados

e rezando [...] Sabia que a gente estávamos chegando e que era

forçado abrigar” (RIBEIRO, 2008, p. 63).

“e havia um nervoso, porque a hora não era de molequeira, com um

tenente defunto e degolado e mais uma porção de cabras no tiroteio e

um sarseiro completo na fazenda de seu Nestor e isso tudo ele

devendo de saber e de braço cruzado [...] Não que parece um ano;

parece um dia, que o ano passa depressa, mas o dia passa devagar.”

(RIBEIRO, 2008, p. 64).

“- É isso mesmo. Tem muitas cabeças nesse mundo de meu Deus [...]

Quem some é os outros, a gente nunca. Bom, isso é, diz o padre.”

(RIBEIRO, 2008, p. 85-86).

“olhe sargento, o problema é que foi um engano, sargento, um

engano que foi mandar o senhor buscar o homem em Paulo Afonso,

CENA 3

Page 93: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

92

agora temos complicação [...] O senhor tem a minha palavra de

honra.” (RIBEIRO, 2008, p. 99-100).

“Se for assim mesmo como se diz que é, espero as outras ordens,

porque essa está dada e nem ele que viesse aqui e me pedisse para

não levar eu não deixava de não levar, porque possa ser que ele

esteja somente querendo me livrar de encrenca e eu não tenho medo

de encrenca, eu levo esse lixo de qualquer jeito, chego lá e entrego

[...] e no sertão daqui não tem ninguém mais brabo do que eu, todas

as coisas eu sou melhor.” (RIBEIRO, 2008, p. 87).

“Corro, berro, atiro melhor e sangro melhor e bebo melhor e luto

melhor e brigo melhor [...] não tenho medo de inferno, não tenho

medo de zorra de peste nenhuma.” (RIBEIRO, 2008, p. 87).

“Sou curado de cobra e passo fome, passo frio e passo qualquer coisa

e não pio e se me cortarem eu não pio [...]e chegando lá apresento

ele: veio de Paulo Afonso até aqui” (RIBEIRO, 2008, p. 88).

“e se cortei a cabeça do tenente, foi bem cortada. Mas não vou dizer

a todo mundo que eu cortei a cabeça do tenente [...] E se ninguém

quiser ir comigo, eu vou só, aviu Amaro? E, disse o padre, eu não

sou esses machos todo.” (RIBEIRO, 2008, p. 88)

CAPÍTULO VI

“...e de noite Amaro conta histórias de trancoso, depois que a gente

amarremos o bicho bem amarrado e demos água a ele e ficamos lá

[...] Como é, Amaro, quem ensinou essa cantiga ao macaco, e a gente

cantamos o tempo todo, quando a gente não temos mesmo o que

fazer e damos muitas risadas e depois paramos e voltamos de novo,

até que paramos de dar risadas e ai só fica umas espremidazinhas: ai,

INTERLÚDIO 3

Page 94: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

93

ai. Ui, ui.” (RIBEIRO, 2008, p. 107).

CAPÍTULO VII

“Fisdaputa, devem ter pedido campo na cidade toda para me pegar

como tresmalhada, só que não vão pegar, vão pegar a mãe, eu não

vão pegar.” (RIBEIRO, 2008, p. 132-133).

“Antes, ele estava bem, aliás estava ótimo, porque aprendeu a

manejar bem a arma, que não é fácil [...] Esse cá que Amaro vai

pegar de jeito deve de ter tirado carta de valente lá, e vem aqui.”

(RIBEIRO, 2008, p. 133).

“Pois eu estava de olho na janela, descansando a arma para atirar nos

peitos de um que vinha de banda e eu queria atirar resvelado nas

costelas dele e aí a arma de Amaro parou de papocar [...] até que eu

vi que era a última desencostada que ele dava na vida, eu espiei de

banda e vi os olhos de Amaro. (RIBEIRO, 2008, p. 133).

“Pois então, quando eu vi os olhos de Amaro parados e ele olhando

para lugar nenhum, com o braço pendurado no prego, eu vi que ele

tinha sido matado e no começo não senti nada [...] Ali tem uma ruma

de homem e se eu for lá, antes de eu poder dizer uai, eles dão conta

de mim certinho e aí quem vai levar esse bexiguento para Aracaju,

você com certeza é que não vai.” (RIBEIRO, 2008, p. 139).

“Tem umas bombas aí, disse Luzinete, tem umas bombas aí, do

homem que vivia amancebado com minha irmã e que trabalhou

numa pedreira. Ques bombas? Umas bombas, disse ela, que parece

um rolo cada e que vem num molho dumas cinco, acende e joga. E

separando todas pode jogar umas cinco vezes, meia dúzia, que abre

caminho ali e não sobra nada. São umas bombas ótimas.” (RIBEIRO,

2008, p. 141).

CENA 4

Page 95: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

94

CAPÍTULO VII

“Sabe vosmecê que minha mulher agora é a lua? Ficou lua quando

explodiu com as bombas e os cabra que estavam lá são uns belzebus

e vão viver debaixo do chão até que eu queira e eu sempre vou

querer.” (RIBEIRO, 2008, p. 143).

“Quando eu gritei que se ouviu em todo Estado de Sergipe, desde lá

no São Francisco até no Estado da Bahia, de bandinha por bandinha,

foi por causo de Amaro que eu gritei, que era meu irmão. Luzinete é

a lua, mas Amaro? Não é nada.” (RIBEIRO, 2008, p. 143).

“Nem vi quando ele tomou o tiro, estava vigiando a sua laia. Vá

marchando, vá marchando, quero marchando. Nós vamos marchando

até chegar na beira do rio, que nós possa ser que vamos de canoa,

vosmecê remando e eu com pose, é assim que nós vamos. Diga:

louvado seja nosso Senhor Amaro, para sempre seja louvado tão bom

Senhor Amaro.” (RIBEIRO, 2008, p. 144).

“Está vendo aquilo brilhando no escuro, peste? Aquilo brilhando

meio azul, aquilo se chama-se uma planta por nome cunanã, que é

como uns cipós [...] Mas não faço isso, lhe levo para Aracaju e lá não

sei. Luzinete subiu com as bombas, nada deve ser achado dela, no

meio da pedra e do barro. Sastifatório, isso?” (RIBEIRO, 2008, p.

141-142).

“Agora me digo: como pode ter outra coisa que não eu lhe levar para

Aracaju e depois, depois não sei? Porque, se eu fosse tirar vingança,

não tinha tantos que eu matasse que pudesse descontar Amaro nem

meus filhos, nem a cara de Luzinete avoando pelas nuvens e virando

lua e eu daqui de baixo com cinza na cara e chorando lama.”

(RIBEIRO, 2008, p. 144).

INTERLÚDIO 4

Page 96: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

95

CAPÍTULO VIII

“Tinha minha missão, isso tinha. E fiz. Tinha minha vida, isso

também, e vivi, e se me perguntasse quer viver uma vida comprida

amofinado ou quer viver uma vida curta de macho, o que era que eu

respondia? Eu respondia: quero viver uma vida curta de macho,

sendo eu e mais eu e respeitado nesse mundo e quando eu morresse

alembrem de mim assim: morreu o Dragão [...] balas e como meu

dedo longe e o lhelá Ara eu vejocaju e a àguacor rendode vagar e sal

gadaela éboa nun cavoumor renun caeusoueu, aium boi de barro,

aiumboi aiumboide barroaê aê aê aiumgara jauchei de barro e vidaeu

sou eu e vou e quem foi ai mi nhalaran jeiramur chaai ei eu vou e

cumpro e faço e” (RIBEIRO, 2008, p. 160-163).

EPÍLOGO

Page 97: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

96

ANEXO – Texto dramatúrgico Sargento Getúlio, de Gil Vicente Tavares

Sargento Getúlio João Ubaldo Ribeiro/Gil Vicente Tavares ©

SARGENTO GETÚLIO

PRÓLOGO

Quem nunca viu não sabe o que é. Tem quem diga que a morte é calma. Tem quem diga que

dá até paz, como num descanso. Só se for depois, porque na hora o sofrente arregala as vistas

e se segura no que achar, como quem se segura na vida. E se revira e range os dentes e levanta

a cabeça e puxa o ar e busca conversa e espia os lados e fica retado porque todo mundo não

está indo com ele e arroxeia os beiços e faz que se senta e esfrega em tudo e se baba e se bate

dos lados e olha duro para as pessoas e dá gofadas e fica com pena dele mesmo e estica as

pernas e se treme todo e faz cara de medo e se destorce e faz barulhos e se bufa e se borra e

grita e pensa naquilo que nunca fez e pede a deus nas alturas e chuta o vento e estica a roupa e

incha o peito e no fim faz uma força e revira os olhos de modo medonho e dá um arranque

para cima e vai embora no seu caminho que o dia de nós todos vem. A hora de cada um é a

hora de cada um.

CENA 1

Ela estava de barriga na ocasião. Eu alisava a barriga, quando tinha tempo, quando vinha um

sossego, quando quentava, quando deitava, quando estava neblina, quando aquietava. Parecia

um cachorro, ficava ali, os olhos gazos miúdos me assuntando. O barrigão me trazia

sastifação, já se adevinhava bem ali e o embigo bem que já saia um pouco para fora e se podia

sentir passando a mão. Pois ficava alisando de um lado para o outro, numa banzeira, pensando

no bicho lá dentro. Quando matei, nem pensei mais em matar. Matei sem raiva. Pensei que

não, antes da hora, pensei que ia com muita raiva, mas não fui. Cheguei, olhei, ela deitada

assim e ainda perguntou: que é que tem? Ela sabia, não sabia só disso, tinha certeza que não

adiantava fugir, porque eu ia atrás. A dor de corno, uma dor funda na caixa, uma coisa tirando

a força de dentro. Nem sei. Uma mulher não é como um homem. O homem vai lá e se

Page 98: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

97

despeja. A mulher recebe o caldo de outro. Que fica lá dentro, se mistura com ela. Então não é

a mesma mulher. E também tem que se abrir. E quando se abre assim, se escanchela e mostra

tudo, qual é o segredo que tem? A mulher que viu dois é diferente da mulher que só um viu,

porque tem de abrir as pernas, mostrar até lá dentro. Não é a mesma mulher. Isso pensei em

dizer a ela, cheguei a abrir a boca. No natural, não falo com quem atiro, é um despropósito. Já

se viu, por exemplo, matar um porco e dizer a ele que ele vai morrer por isso e por aquilo

outro. Nada, é a faca. Quem se mata não se conversa. Mas ela eu quis dizer, porque, na hora

que primeiro bati os pés nos tijolos da sala aberta, vinha com dor. Chegando, passou a dor,

não acertei com a fala. Uns olhos gazos tão parados e o cabelo escorrido de banda e a cabeça

também de lado, me olhando. Que é que tem? Ela sabia. Quando viu meu braço atrás das

costas, tirou as vistas. Quis falar de novo. Eu podia dizer, mas tive medo de conversar. Se

quer fazer uma coisa, não converse. Se não quer, converse. Eu tinha de fazer. Não gostava de

pensar que ia atravessar a rua com o povo me olhando: lá vai o dos galhos. Isso eu podia dizer

a ela. Mas não disse nada e, na hora que enfiei o ferro, fechei os olhos. Nem gemeu. Caiu lá

com a mão na barriga. Fui embora logo, nunca mais botei os pés lá, moro no mundo. Melhor

morar andando, agora. Luzinete, ela me diz: me emprenhe. Não deixo mulher enxertada nesse

mundo, não tenho como. Matado aquele filho, morreu o resto que podia vir. Ora, cipó do

mato, arrenego de diabo de penca comigo, arreia. Fico assim no mundo. A mulher do homem

é ele mesmo, tirante as de quando em vez, uma coisa ou outra, somente para aliviar, uma

descarga havendo precisão. Minha mulher sou eu e meu filho sou eu e eu sou eu. E assim. E

no outro dia podiam me ver dançando uma jornada de chegança, nós que semos marinheiros

dentro dessa anau de guerra porisso que puxemos ferro olelê largamos a grande vela. Ai, ai,

ai, ai, aaaaaaaaaai um boi de barro, um boi de barro, aaaaaaai, ai, ai, ai, mãe, ai, um boi de

barro, um boi de muito barro que eu comia, todas as cores, um dia eu morro e a laranjeira

murcha, ai, mãe, um boi de barro. Meto um dedo no ouvido bem de leve, e devagarzinho vou

sacudindo, vou sacudindo, e solto um aboio alto pelos ares. Mas ninguém escuta, não tem

boiada, o meu aboio é oco. Nunca fui vaqueiro. Mas mesmo assim solto um aboio bem alto e

o dedo quase arranca a orelha e olho o chão e fico triste.

INTERLÚDIO I

Ôi Amaro, uh-uh, Amaro, ô seu peste, quando um homem fala tu responde. Um dia desses,

com essa macriação algum macho lhe tira-lhe o fato fora, que tu só vai ter tempo de espiar as

tripa, rezar meia salverrainha, um quarto de atodecontição e escolher o melhor lugar no barro

Page 99: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

98

para se ajeitar, e ligeiro ligeiro, que possa ser que antes de chegar já tenha ido. Ôi Amaro,

inda mais que tu é frouxo por demasiado. Vosmecê sabe, esse apustemado é de Muribeca.

Povo de Muribeca não presta, tudo tabaréu, lá não tem nada, não sabe vosmecê. Amaro, ou

você fala ou eu me ferro. An-bem. Hum. Chu.

CENA 2

Nunca pensei que ia degolar o tenente, pelo menos nunca pensei assim no claro, quer dizer,

nunca disse: Getúlio, vamos cortar a moléstia da cabeça do tenente. Até só vi que era tenente

depois de perto, mas vi mais que era mais cabra safado do que qualquer outra coisa. A gente

estava desencostado um pouco pelali, todo mundo pensando numa coisa um cadinho

diferente, com o olho na estrada. Nessas horas, fica um silêncio, o ar fica duro mais ou menos.

De longe um matinho, parecendo uns bancos de macambira, tudo muito quieto, só mutucas de

vez em quando, uns bichos assim, umas coisas dessas. Essas alturas, nunca pensei em degolar

o tenente, até nunca pratiquei uma degolação antes, só que ele chegou com um lenço branco e

falou com Nestor como se estivesse dando ordem num meganha daqueles lá dele. Me olhou: o

senhor está fora de uniforme, sargento. Nisso, eu estou conhecendo ele, que chama-se

Amâncio e é por demais perverso, todo mundo sabe, e é udenista. O sol batia muito quente e

ele enrolou um lenço por debaixo do quepe e espiava a gente com as vistinhas miúdas, como

de porco. Fala fino, nunca admiti homem de fala fina, se bem que seja o tipo de maior

ruindade, possa ser até porque tem a fala fina mesmo. Ele disse, olhando para minha cara,

esse sargento desenquadrado retirou um homem de Paulo Afonso e se homiziou na sua terra e

eu vim buscar o homem, o sargento e o chofer, o governo não tolera essas bitrariedades. O

homem vai. Nestor pregueou a cara toda, acho que já estava se aguentando da vontade de

bufar mais, mas não disse nada um tempão, apesar do tenente ficar falando e tirar um patacho

do bolso e fazer uma pose de porreta e dizer que não tinha tempo, quando não foi que Nestor

cuspiu um fuminho mastigado e ficou fazendo pit-pit com a boca, até tirar todos os

pedacinhos de fumo. Aí perguntou ao tenente: o senhor é do governo da Bahia? Porque, se se

aborreceu porque tiraram um homem de Paulo Afonso, é porque é do governo da Bahia, não é

de fato? Não, disse o tenente, eu sou é desse governo mesmo daqui, o governo do senhor e

desse sargento. Meu mesmo não, disse Nestor; só às vezes; às vezes nem é. Bom, eu sou do

governo que interessa, disse o tenente. Ah, disse Nestor, e deu uma bufa. Nisso só olhando

para o chão, sabendo-se que, quando um cabra como Nestor conversa com um sujeito olhando

para o chão é somente com a tenção que o outro não veja o que ele vá fazer nas vistas dele. Eu

Page 100: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

99

lá. Calado, a terra não era minha, só o couro que era, e aquele peste não era flor que se

cheirasse, devia ter uma porção de gente espalhada ali pelas beiras do caminho. Nestor

encostou na porteira e disse o senhor está vendo esta porteira, não está, pois essa porteira é a

porteira do caminho de minha fazenda, que vai dar na minha casa, a minha casa que só entra

quem eu convido, e ninguém convidou o senhor. Quase que dava para sentir um cheiro de

defunto, tinha mais homem ruim espalhado ali que nem sei. Não tenho nada com isso, disse o

tenente, vim aqui buscar três homens e só saio com eles. Ques homens, meu filho? Eu já disse

ao senhor, já expliquei muito bem explicado, é o sargento, o chofer e o preso. Bom, disse eu,

eu é que não vou, você vai, Amaro? Eu não, disse Amaro, eu não estou com vontade de viajar.

Pois an-bem, disse Nestor. Apois está. O senhor escutou bem direito que eles não estão com

vontade de sair e não sou eu que vou botar as visitas para fora, meu pai me deu educação.

Agora, uma coisa eu pedia ao senhor, que é para não entrar, porque se entra vira visita e eu

nunca dei um tiro numa visita, não sabe o senhor como é, disse Nestor, e bufou mais. Lá por

riba, os cabras quase podia se ouvir cantando panderrolê tepandepi tapetape rugi, escolhendo

quem ia receber a paçoca por primeiro. Arre. Eu sei que o senhor veio pelai com a fraqueza

do governo toda embalada, mas tenho para mim que nem aquele sacrista daquele seu patrão

vai achar decente que o senhor entre assim na casa de uma pessoa honesta e venha aqui tirar

as visitas de dentro de casa, fazer umas macriações, arranjar umas encrencas. Olhe, seu

Nestor, não queremos mortandade, o senhor entrega os homens e eu vou me embora e fica

tudo na mais santa, não se fala mais nisso.

- Pois eu acho que isso vai ser uma festa de urubu – disse Nestor.

- Possa ser – disse o tenente – Mas o senhor se alembre que o cáqui é mais duro pro bico do

urubu.

- Roupa possa ser – disse Nestor – mas o couro é mais.

- Possa ser – disse o tenente. – Mas na companhia de um sargento corno e desertor, com um

pirobo por chofer, não acredito, muito, não.

Eu nem sei quem descarregou primeiro, se foi eu ou se foi Nestor, se foi o cabra na distância,

mas a situação não podia prosseguir, com o tenente começando a dar uns assobios e aqueles

assobios dando umas parenças de sinal para a força e ninguém sabendo quantos eles vinha

trazendo por detrás e ainda mais me chamando nome, que eu não gostei, de formas que

empoeirou logo tudo e a gente fomos caindo logo pelo outro lado da vala no meio dos pipocos

e nisso Nestor se levantava, dava num parabelo em pé, gritava e se borrava sempre mais,

parecia um macaco, nos pinotes. Foi tudo azul, assim uma fumaça grande, mas o fidamãe logo

Page 101: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

100

na primeira escapou dos seis tiros que lhe dirigi encarreirado, a canhota no chão, e ficou no

meio de dois pé de pau, um pouco amarrado de um lado e de outro, se bem a força tivesse por

detrás e guentasse o fogo bastante. Mas eu tinha resolvido que ia lá, que era que eu ia fazer.

Logo nos princípios é assim: um frio na barriga e um aperto. Depois, uma vontade de não

fazer nada, umas lembranças. Até que a raiva sobe na cabeça, ou uma coisa dessas, até que

estrala um negócio e a gente sobe. Sobe mesmo. De maneiras que procurei feição de encostar

mais e Nestor mandou descer os cabras por riba, atravessando atrás das cabeças da gente, para

arrodear e enfincar no meio da força e da gente, saindo por detrás duns matos de onde

ninguém esperava. Sei bem não, mas foi um fogo brabo, quase que um papoco só, sem

pedaços, um barulho grosso como pedra, um barulho inteiro. Voava folhas que era bastante.

Voava aquele folharame numa fuzilaria e eu vou chegando junto do tenente, vou chegando

pelo lado me arrastando e ele quase que me acerta, mas Nestor levanta a mão e desce em cima

dele uma chuva de chumbo que descia e subia terra por todos lados, e eu ando mais e enrolo e

aí espio a cara dele bem de junto da minha, com um lenço enrolado na boca, sem dúvidas por

causo de todo o pó que está avoando e então pego uma mão de terra e pico nos olhos do

infeliz e pico mais e pico mais e vou aterrando, quando ele pega um punhal que tinha nos

quartos, quando ele pega esse punhal do tamanho de um jegue e traça pela frente dele com as

vistas fechadas, mas num arco que vai e vem para os lados, mas porém faz curvas de baixo

para cima, de modos que não existe posição para se entrar naquela roda que ele desenha com

o punhal que mais parece uma baioneta e eu não sei o que vou fazer, porque não tenho na mão

nada carregado na hora e a faca que eu levei é curta e assim estou só agarrando mais terra com

a mão e faço tenção de arrumar pela goela dele, nisso que eu vejo uma pedra como que uma

pedra de calçamento e agarro essa pedra e com uma raiva, que nem sei, porque a bicha

cortava minha mão, olhei bem no pé do nariz dele, olho bem assim para a cara dele e solto a

pedra na cara dele com toda a força que eu tenho e vejo ele amunhecar de logo e o sangue

esguinchar. Ah vai, ah vai, vai, vai, vai! Hum. Encarco, peste ruim, quase que não aguento

levantar mais a pedra, estava deitado de barriga no chão tinha chegado ali gatinhando e tinha a

alma nos bofes mas ainda segurei com as duas mãos, mirei devagar e carreguei a pedra em

cima dele com as duas mãos outra vez e aí pronto, com uma sastifação, só escutei o

barulhinho da cara dele entrando, tchunque, como quem parte uma melencia e o sangue dele

correu por dentro de minha manga e a pedra rolou e caiu no colo dele e ficou.

Page 102: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

101

Pois nunca mesmo tinha feito isso, só sabia de ouvir falar, mas deu uma vontade, de maneiras

que fiquei sentado um pouco, vendo o punhal, que estava largado no chão e sem ação. E então

arrastei ele para dentro da porteira. Uma visita, uma visita, seu Nestor, uma visita de cara torta

pois ô de casa

abre essa porta

tem uma visita

de cara torta

e fui assim cantando baixo e com ele arrastando pelo cabelo e cheguei na porteira e com o

mesmo punhal que ele estava riscando o ar, com aquele mesmo punhal que ele estava

ciscando, passei no pescoço, de frente para trás, sendo mais fácil do que eu tinha por mim

antes de experimentar, com aquele mesmo punhal que ele estava na cintura e depois na

esgrima e me chamando de corno, cortei o pescoço, foi bastante mesmo mais fácil do que eu

pensei antes e por dentro tinha mais coisa também do que eu pensei, uma porção de nervos, só

o osso de trás que demorou um pouco, mas achei um buraco no meio de dois, escritinho uma

rabada de boi, e ai foi fácil, atravessando ligeiro o tutano e encerrando, a cavalaria de Deus

pela justiça, como é a mãe, teve sangue como quatro torneiras, numa distância mais do que se

pode acreditar, logo se esgotando-se e diminuindo e pronto final. Donde que o homem

esguincha sangue mais longe do que pode cuspir.

INTERLÚDIO II

Pois é Luzinete, olhando assim pela janela, podia ficar aqui. Mas tem horas que se pode ficar,

horas que não se admite. Assim não pode, não quero. Me diga-me, vamos para o cangaço? Eu

sei que não tem cangaço, mas se tivesse você ia? Não ia, você é mulher que gosta mais de um

filho no bucho e de um homem na cama e de morte morrida. Eu não, que na minha mão tem

uma linha riscando a linha maior, que diz: morte matada. Isso é fato, não tem como correr. É

melhor, dói menos e dá menos transtorno. Nessa morte eu acredito, porque não posso pensar

que eu vou ficar velho e sem dente e minha mão vai tremer. Uma coisa que não existe é

Getúlio velho, só existe Getúlio homem inteiro, não posso ficar de boca mole, falando porque

no meu tempo isso no meu tempo aquilo. Verdade que tem certos velhos que ainda são

machos, mas esses é do tempo antigo, não é hoje. Antigamente, tinha umas mágicas, acho. Se

tivesse cangaço, eu ia para o cangaço, com um chapéu de estrelas prateadas e ia me chamar

Dragão Manjaléu e ia falar pouco e fazer muito. Luzinete, eu vou ser é deputado e vou fumar

uns charutos. Amaro pode guiar meu carro, que eu deixo. Pra ser deputado não é preciso nada.

Page 103: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

102

Se eu fosse deputado, você ia, não ia? Pra ficar toda lorde, e aprendia a falar difícil, não

aprendia? Numa hora como essa, a gente pensa que o mundo pára. Mas não pára nada, se

sabe. Tem uma porção de gente se mexendo, e eu aqui no meio, paradão. Mas parado como

um peixe junto das pedras dum riacho, que se você quiser mexer perto ele dá uma rabanada e

some. Porque é assim que eu sou. Então eu podia morrer de velho, não podia? Podia. Podia

ficar aqui e todo ano lhe emprenhar certo para vir um filho em janeiro, que é princípios do ano

e acerta mais. Não ia nascer mulher, só ia nascer um bando de macho e eu botava uns nomes

de macho e depois a gente tomava essas terras que tem aí e armava umas tropas de mais

macho e ficava dono do mundo aqui, cada filho arranjando outra mulher, cada mulher parindo

mais macho e nós mandando, e quando eu morresse, avô de todos, pai direto ou por tabela, me

enterravam ali e botavam em riba uma cruz com o senhor crucificado e quem passasse ia

dizer: aquela cruz é do finado, se não se benzer ele ainda vem e lhe pega. A machidão toda aí,

era Garanhão Santos Bezerra, Malvadeza Santos Bezerra, Abusado Santos Bezerra,

Tombatudo Santos Bezerra, Comegente Santos Bezerra, Enrabador Santos Bezerra,

Rombaquirica Santos Bezerra, Sangrador Santos Bezerra, Vencecavalo Santos Bezerra, todo

mundo. Tu bem que ia gostar disso, eu acho.

CENA 3

Nem nunca pude pensar que Amaro soubesse essas rezas, nem muito menos que esse padre de

Japoatã fosse botar os três ajoelhados e rezando. O padre eu não conhecia. Só de nome, e

quando vi, pensei que não fosse padre, pensei que fosse um avariado maluco, fazendo de

padre. Ou manifestado, pode sempre estar. Ele fala depressa e grosso, não se entende quase.

Mas se sabe por que se chama o Padre de Aço da Cara Vermelha, porque demonstra a dureza

e porque tem uma marca vermelha trespassada pela cara, a cuja marca vermelha fica mais

vermelha agora, menas vermelha indagora e assim vai, conforme. Sabia que a gente

estávamos chegando e que era forçado abrigar, e havia um nervoso, porque a hora não era de

molequeira, com um tenente defunto e degolado e mais uma porção de cabras no tiroteio e um

sarseiro completo na fazenda de seu Nestor e isso tudo ele devendo de saber e de braço

cruzado. Ora, pode ser padre pode ser frade, pode ser freira pode ser bispo, pode ser santo

pode ser anjo, pode ser imagem pode ser profeta, mas, numa hora de precisão como que fica

ali só espiando, que parece um ano. Não que parece um ano; parece um dia, que o ano passa

depressa, mas o dia passa devagar.

- É isso mesmo. Tem muitas cabeças nesse mundo de meu Deus.

Page 104: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

103

- O tenente me chamou de corno, seu padre. E era ele ou eu.

- É isso mesmo - diz o padre. - Devia de ter cortado mesmo.

E se benzeu e disse que não precisava dizer aquilo. É que a situação mudou, diz o padre, não

sei se vosmecê vai poder levar o homem para Aracaju, porque lá está uma novidade de gente

e uma porção de jornais e dizem que quando vosmecê chegar vão lhe encher o couro e soltar o

homem. Não acredito que Antunes possa lhe sustentar. Ah, isso não, se Antunes não me

sustenta, o que e que me sustenta? Não sei, disse o padre, e enfiou as duas mãos pelo meio da

batina, com as pernas escarranchadas e ficou com a cabeça pendurada. Essa terra, diz ele

depois de muito tempo, já foi uma boa terra, porque havia mais homens e quem era homem

não tinha de que temer. Hoje essa terra não vale mais nada não vale quase mais nada, está

uma frouxidão e um homem não sabe de quem depende e querem mudar tudo e nunca vai

adiantar. Porque, se tiram os recursos do homem, o que é que deixam com o homem? Nada.

Uma vida, possa ser, e isso não é vida de homem, é um enterro. Não sei, não sei, diz o padre,

sacudindo a cabeça e fazendo um bico com a boca. Por que vosmecê não some? Eu sumir, eu

sumir? Como que eu posso sumir, se primeiro eu sou eu e fico aí me vendo sempre, não posso

sumir de mim e eu estando aí sempre estou, nunca que eu posso sumir. Quem some é os

outros, a gente nunca. Bom, isso é, diz o padre. Mas olhe sargento, o problema é que foi um

engano, sargento, um engano que foi mandar o senhor buscar o homem em Paulo Afonso,

agora temos complicação. Quem disse isso, foi o chefe? Foi o chefe que disse, não tem mais

condição de cobertura, a coisa mudou. Foi o chefe que mandou o recado? Foi, foi. E por que

não veio ele? An, responda essa. Não veio porque não quer deixar ninguém saber que foi

mandado dele. Vem força federal, vem tudo. Então o senhor solta o homem e some e pronto.

E o resto se ajeita em Aracaju.

- Não posso sumir. Quem pode sumir é os outros, como é que eu posso sumir, se eu sou eu?

Do mais, se vosmecês estão querendo que eu solte o homem e suma, é porque depois ele e

vosmecês vão atrás de mim, me arrancar nos infernos para me botar a culpa do negócio.

- O senhor tem a minha palavra de honra.

Se for assim mesmo como se diz que é, espero as outras ordens, porque essa está dada e nem

ele que viesse aqui e me pedisse para não levar eu não deixava de não levar, porque possa ser

que ele esteja somente querendo me livrar de encrenca e eu não tenho medo de encrenca, eu

levo esse lixo de qualquer jeito, chego lá e entrego. Nem que eu estupore. Quero ver esse bom

em Aracaju que me diz que eu não posso, porque eu sou Getúlio Santos Bezerra e igual a mim

ainda não nasceu. Eu sou Getúlio Santos Bezerra e meu nome é um verso e meu avô era brabo

Page 105: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

104

e todo mundo na minha raça era brabo e minha mãe se chamava Justa e era braba e no sertão

daqui não tem ninguém mais brabo do que eu, todas as coisas eu sou melhor. Corro, berro,

atiro melhor e sangro melhor e bebo melhor e luto melhor e brigo melhor e bato melhor e

tenho catorze balas no corpo e corto cabeça e mato qualquer coisa e ninguém me mata. E não

tenho medo de alma, não tenho medo de papafigo, não tenho medo de lobisomem, não tenho

medo de escuridão, não tenho medo de inferno, não tenho medo de zorra de peste nenhuma.

Sou curado de cobra e passo fome, passo frio e passo qualquer coisa e não pio e se me

cortarem eu não pio. Durmo no chão, durmo em cama de vara, durmo em cama de couro, ou

então não durmo e quem primeiro aparecer primeiro quem atira sou eu e quando atiro não

atiro nas pernas, atiro na cara ou atiro nos peitos e os buracos que eu faço às vezes é um em

cima do outro e tem uma coisa: em Sergipe todo não tem melhor do que eu e se eu lhe digo

que não tem um melhor do que eu em Sergipe, não vejo esse bom, estou lhe dizendo que não

tem melhor no mundo, porque essa é uma terra macha e eu sou o macho dessa terra. Se for

para esperar, espero, mas esperar não é ficar. E eu vou levar esse traste arrastado ou espetado,

naquela hudso até Aracaju, e chegando lá apresento ele: veio de Paulo Afonso até aqui e se

cortei a cabeça do tenente, foi bem cortada. Mas não vou dizer a todo mundo que eu cortei a

cabeça do tenente. Só digo ao chefe e calo a boca e cruzo os braços e boto o olho no vento. E

quem quiser que bote o olho no meu. E pronto. E se ninguém quiser ir comigo, eu vou só,

aviu Amaro? E, disse o padre, eu não sou esses machos todo.

INTERLÚDIO III

...e de noite Amaro conta histórias de trancoso, depois que a gente amarremos o bicho bem

amarrado e demos água a ele e ficamos lá e Amaro diz: foi um dia uma vaca vitória, deu um

peido se acabou-se a história e a gente damos muitas risadas e como não temos mais o que

dizer, só ficamos repetindo foi um dia uma vaca vitória deu um peido se acabou-se a história,

mesmo porque Amaro se esquece do começo ou do fim das histórias, às vezes esquece do

meio, às vezes esquece do fim, às vezes esquece do começo e diz assim: essa eu começo pelo

meio, essa eu começo pelo fim, conforme. Tem umas que só se lembra uns pedaços ali outros

pedaços lá. Nos princípios não dá vontade nem de contar nem de ouvir, mas depois não tem

diferença. contanto que tenha uma história, que depois a gente vai botando o meio ou depois o

fim, ou então não bota nada e fica lá. Amaro se lembra de uma história de uma velha que

comeu um macaquinho e o macaquinho depois de dois dias ela botou vivo, vivo, no pinico.

Como é, Amaro, ah-hum. Como é as histórias do macaco? Então se deu-se que a velha comeu

Page 106: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

105

o macaco, mas o macaco saiu inteiro, quer dizer, ela botou inteiro, e como foi que esse

macaco saiu inteiro? Bom, isso a história não diz, é porque é um bicho muito safado, comeu

assim sem uma nem duas, ele sai inteiro. Apois: saiu inteiro e cantou: eu vi, eu vi o cuzinho

da velha e preto e branco e amarelo. Como é Amaro, cante aí? Eu vi, eu vi, e eu sorrio muito,

sorrio que me engasgo, às vezes sorrio mais do que eu pensava que tinha condição de sorrir,

rico só pensando no diacho da velha com dor de barriga, e que cu é esse que é preto e branco

e amarelo? Como é, Amaro, quem ensinou essa cantiga ao macaco, e a gente cantamos o

tempo todo, quando a gente não temos mesmo o que fazer e damos muitas risadas e depois

paramos e voltamos de novo, até que paramos de dar risadas e ai só fica umas

espremidazinhas: ai, ai. Ui, ui.

CENA 4

Fisdaputa, devem ter pedido campo na cidade toda para me pegar como tresmalhada, só que

não vão pegar, vão pegar a mãe, eu não vão pegar. Antes, ele estava bem, aliás estava ótimo,

porque aprendeu a manejar bem a arma, que não é fácil. Parece fácil, mas não é fácil, precisa

preparo. Mas foi ele que estava sentado no chão com os dois joelhos para cima e esfregando a

arma pelo cano e mastigando um talo de capim como quem não está nem ai, foi ele que viu

primeiro chegar alguma coisa e aí se levantou sem dizer nada e foi olhar para o lado do

caminho. Guente ai, disse ele, e encostou do lado da porta, cuspiu o capim e ficou. Essa porta

vai abrir daqui a pouco, disse ele, e eu vou fazer um festejo. An-bem, disse eu, temos

pertubação, e me levantei, segurei um instrumento e espiei de meia travessa pela janela e de

fato estava lá quase na curva um bando de cabra safado, tudo esperando. Esse cá que Amaro

vai pegar de jeito deve de ter tirado carta de valente lá, e vem aqui. Pois eu estava de olho na

janela, descansando a arma para atirar nos peitos de um que vinha de banda e eu queria atirar

resvelado nas costelas dele e aí a arma de Amaro parou de papocar. Eu digo: que é isso,

Amaro, se faltou munição pegue uma arma dessas do destacamento, que tem bastante e ele

nada respostou. E nada, de formas que, quando eu consegui acertar dois balaços no infeliz lá,

que ele foi desencostando no mourão da cerca, desencostando, desencostando, até que eu vi

que era a última desencostada que ele dava na vida, eu espiei de banda e vi os olhos de

Amaro.

Pois então, quando eu vi os olhos de Amaro parados e ele olhando para lugar nenhum, com o

braço pendurado no prego, eu vi que ele tinha sido matado e no começo não senti nada.

Somente olhei de novo e disse olhe Luzinete, olhe que acertaram Amaro, não está bom a

Page 107: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

106

gente pendurar esse animal desse preso pelum pé, que foi por causo dele que mataram

Amaro? Mas não tive tempo de fazer mais nada, porque estava ainda a fuzilaria e eu tinha de

me aguentar e fiquei assim até quando que deu umas duas horas e parece que eles mandaram

buscar reforço, porque pelo que eu sei devem ter deixado uns quatro vigiando o caminho, ou

mesmo mais, que é para não admitir saída nenhuma. Em meia hora esse reforço chega, não

chega não? Deve de chegar, disse Luzinete, e não estava com medo. Eu fiquei olhando mais

Amaro morto. Luzinete disse, quando você estava atirando na janela, eu quis fechar as vistas

dele, mas não fechou, vai ter que ficar assim mesmo. É, eu disse, vai ter que ficar assim

mesmo. E, vai ter que ficar. Aí ela disse ele era como seu irmão, e eu disse acho que era, era

mesmo, acho que era, e acredito que no mundo eu só tinha ele e você, isso eu acredito. Estou

sentido, eu disse, essa vida é uma bosta. Puxei ar: quem está vivo está morto, a verdade é essa.

Reze um terço, Luzinete. Reze um rosário. Ainda outro dia ele estava rezando lá no padre, ele

sabe todas as rezas. Sabe, não; sabia, disse Luzinete, e por que tu não acaba com aqueles

pestes de uma vez logo e vai embora com sua missão? É, digo eu, só se eu fosse um avião. Só

se eu fosse um elefante. Ali tem uma ruma de homem e se eu for lá, antes de eu poder dizer

uai, eles dão conta de mim certinho e aí quem vai levar esse bexiguento para Aracaju, você

com certeza é que não vai. Tem umas bombas aí, disse Luzinete, tem umas bombas aí, do

homem que vivia amancebado com minha irmã e que trabalhou numa pedreira. Ques bombas?

Umas bombas, disse ela, que parece um rolo cada e que vem num molho dumas cinco, acende

e joga. E separando todas pode jogar umas cinco vezes, meia dúzia, que abre caminho ali e

não sobra nada. São umas bombas ótimas.

INTERLÚDIO IV

Sabe vosmecê que minha mulher agora é a lua? Ficou lua quando explodiu com as bombas e

os cabra que estavam lá são uns belzebus e vão viver debaixo do chão até que eu queira e eu

sempre vou querer. Quando eu gritei que se ouviu em todo Estado de Sergipe, desde lá no São

Francisco até no Estado da Bahia, de bandinha por bandinha, foi por causo de Amaro que eu

gritei, que era meu irmão. Luzinete é a lua, mas Amaro? Não é nada. Nem vi quando ele

tomou o tiro, estava vigiando a sua laia. Vá marchando, vá marchando, quero marchando. Nós

vamos marchando até chegar na beira do rio, que nós possa ser que vamos de canoa, vosmecê

remando e eu com pose, é assim que nós vamos. Diga: louvado seja nosso Senhor Amaro,

para sempre seja louvado tão bom Senhor Amaro. Está vendo aquilo brilhando no escuro,

peste? Aquilo brilhando meio azul, aquilo se chama-se uma planta por nome cunanã, que é

Page 108: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

107

como uns cipós. Aquilo é seu inferno, sempre foi. Mas meu, meu é minhas estrelas e por ali

sei para onde eu vou, porque nasci aqui e essa terra é minha. E agora é minha só, porque

morreu todo mundo que prestava. Tudo culpa sua, que não tem nada com essa terra, posso lhe

garantir. Pois está vendo aqueles brilhos, são meus brilhos do mato e se eu quisesse brilhava

também e casava com a Princesa Vagalume e voava. Mas não faço isso, lhe levo para Aracaju

e lá não sei. Luzinete subiu com as bombas, nada deve ser achado dela, no meio da pedra e do

barro. Sastifatório, isso? Agora me digo: como pode ter outra coisa que não eu lhe levar para

Aracaju e depois, depois não sei? Porque, se eu fosse tirar vingança, não tinha tantos que eu

matasse que pudesse descontar Amaro nem meus filhos, nem a cara de Luzinete avoando

pelas nuvens e virando lua e eu daqui de baixo com cinza na cara e chorando lama.

CENA 6 - EPÍLOGO

Tinha minha missão, isso tinha. E fiz. Tinha minha vida, isso também, e vivi, e se me

perguntasse quer viver uma vida comprida amofinado ou quer viver uma vida curta de macho,

o que era que eu respondia? Eu respondia: quero viver uma vida curta de macho, sendo eu e

mais eu e respeitado nesse mundo e quando eu morresse alembrem de mim assim: morreu o

Dragão. Que trouxe uma mortandade para os inimigos, que não traiu nem amunhecou, que

não teve melhor do que ele e que sangrou quem quis sangrar. Agora eu sei quem eu sou.

Aquela força que vem, coisa, aquela força que vem pelo rio atravessando, pode se ver os

fuzios apontando para cima e está se vendo que ninguém pensa que vai me pegar fácil, porque

senão não vinha tanta gente. Todo mundo sabe que eu vou dar testa, aviu vosmecê? E só vem

fardado, veja bem, coisa, não vem um paisano para remédio com certeza, só vem mesmo os

mandados, os mandadores não vem. Antes que eles queiram me acabar, coisa, eu ainda sou

capaz de lhe arrastar sete vezes pela beira dessa praia de lama, indo e voltando, e arrasto o

comandante dessa força e mais quantos praças chegue perto. Não vejo nem a cara, coisa, e

não quero conversar, acho que não carece conversa agora, carece atividade. Aquela força,

aquela força, coisa, é uma fraqueza, e daqui mesmo, com vosmecê amarrado aí no coqueiro

que é para ver um macho lutando, o que vosmecê nunca fez na vida, trempe, aquela força é

uma fraqueza, venha de Lá fraqueza do governo, me solto, me destaramelo, me vou e é assim

mesmo, na idéia umas lembranças, na mão uns bacamartes, nos pés uma fincada, minha vida e

a laranjeira morta e a lua que Luzinete mora, espie ai, coisa, ã uma fraqueza e miles homens

desses é como nada e como eu tem mais aqui, essa é uma terra de macho, viu, traste, e a terra

que me pariu vai me vomitar de novo, quantas vezes me enterrarem, quem tem amigo nesse

Page 109: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

108

mundo, ôi Amaro, viu Amaro, olhe ques jias brancas nos tijolos do chão, não estremeça, trem,

veja que terra essa, com a morte deslizando pelo rio, as caras deles nem se enxerga, mas veja

que terra essa, com nós aqui plantados no chão, não semos a mesma coisa? não semos a

mesma coisa? É engraçado como vem esses homens e esses homens nenhum está pensando

nada, porque todos estão somente sentindo, veja bem, eu sinto, eles sentem, tudo sente, olhe

essa água salgada, sujeito, que veio de Lá de dentro dos matos de Sergipe e vai chegando

devagar, Morcego. Cotinguiba, Jacarecica. Ganhamoroba. Poxi. Pomonga e o Vaza-barril e o

Piauí e o Itamerim e o Siriri e o Japaratuba, veja, coisa, é até bonito essa água vindo de lá de

dentro, isso tudo não é uma coisa só? a minha cara de cinza, o meu cabelo de terra, a minha

bota de couro, a minha arma. de ferro, hem, coisa? não semos tudo o mesmo? agora não

muito, porque eu sou eu, Getúlio Santos Bezerra e meu nome é um verso que vai ser sempre

versado e se tem lua alumia e se tem sol queima a cara e se tem frio desaquece, ai dois bois de

barro e uma caixa de fósforo e um garajau cheio de barro, aboio eu aboia tu, hem Amaro, ecô,

ecô, nós que semos marinheiros larguemos a grande vela porisso que puxemos ferro, olerê,

larguemos a grande vela, olhe ai, Amaro, eu sou maior do que o reis da Hungria, no dia dois

de fevereiro tem uma festa em Capela, hem coisa, sabe onde Capela fica? sabe onde Capela

fica, sabe onde Capela fica, e onde fica Capela? e onde fica Salgado e onde fica Largato? e

onde fiquemos nós? Ói, Lá vem eles, assunte, e tão devagar que não se sente, em casa tem

todos uma mulher e um cuscus e uns inchadinhos, veja bem isso, cada dia se pare mais nessa

terra, é assim uma fortaleza de gente aparecendo nesse mundo de meu Deus, para que isso,

hem? e eu sendo eu, sendo eu, quando eu era menino eu comi barro e entrei por dentro do

chão, comendo barro, cagando barro e comendo de novo, ôi coisa, olhe a vida, Lá vem a

força, em Japaratuba tem umas canas e o canavial é louro, louro como uns portodafolhenses e

quem nasce em Muribeca é muribequeno ou muribequeiro, hem Amaro? quando eu entrei em

Luzinete, entrei e fiquei, minha santa santinha, na lua, minha santa santinha e umas bombas

de banana que jogou nos cabras, porque a gente não dá, umas risadas, coisa? que é que está

vendo aí, coisa, o chão? isso tudo é um verdume só, coisa, quando chove e quando não chove

e uma amarelidão, mas vosmecê pode se jogar no chão que não tem perigo que ele lhe abraça,

talvez até lhe coma e você vire um pé de pau ou tu vire um gaiamum ou vossa excelência vire

numa pedra, isso pode crer e mesmo quente com a chuva esfumaçando, mesmo assim ele Lhe

abraça e pode ficar Lá, porque aonde é que vai ficar mesmo, tem que ficar no chão, já chorou

uma certa feita, coisa? de fora para dentro não, mas de dentro para fora, nos repuxos e

cavando lá de dentro? eu mesmo não, mas possa ser que chore agora, porque eu estou com um

Page 110: SARGENTO GETÚLIO: TRAVESSIAS ENTRE A LITERATURA E A · da Linha 1 – Leitura, Literatura e Identidades, do Departamento de Ciências Humanas, Campus I, da Universidade do Estado

109

pouco de vontade de chorar agora, seu coisa, seu traste, seu trempe, possa ser que eu chore

agora, visto que não é que eu tenho medo, eu não tenho medo nem de alma, mas eu posso

chorar porque eu nunca falei com aquela força fraqueza nem vou falar e tem tanta coisa que

eu não pude fazer porque eu não sabia e o mundo inteiro parou aqui, hem Amaro? veja essa

água e essa beira de rio, com esse barulho aí de leve noite e dia, veja essa água e Aracaju e a

ponte do imperador, veja esse povo vindo atravessando de barco atrás de nós e carregando as

armas apontando para cima e aquele navio parado ali, nem sabe o que está se passando, tem

uns homens lá jogando dominó e pensando na vida, mas porém o destino está dando volta,

hem Amaro? lá na lua e pode crer que eu estou vivo no inferno, lá na lua está Luzinete e essa

força se atira eu também atiro, ô minha lazarina, ô meu papo amarelo e um mandacaru de

cabeça para cima eu vou morrer e nunca vou morrer eu nunca vou morrer Amaro eu nunca

vou morrer um aboio e uma vida Amaro aaaaaaaaaaaaaaaahhh eeeeeeeeeeeeeeeh aê aê aê aê

aê aê aê aê aê aê ecô ecô aê aê aê aê aê eu nunca vou morrer Amaro e Luzi netena lua essas

balas e como meu dedo longe e o lhelá Ara eu vejocaju e a àguacor rendode vagar e sal

gadaela éboa nun cavoumor renun caeusoueu, aium boi de barro, aiumboi aiumboide barroaê

aê aê aiumgara jauchei de barro e vidaeu sou eu e vou e quem foi ai mi nhalaran jeiramur

chaai ei eu vou e cumpro e faço e