sarah kane

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UM ESTUDO SOBRE O PERSONAGEM NAS PEAS DE SARAH KANE Autora: Mestranda Juliana Pamplona Orientadora: Beatriz Resende Bolsista CNPQ Resumo: O presente estudo analisa os diferentes processos de figurao humana nas pea s Blasted (1995), Phaedra s Love (1996), Cleansed (1998), Crave (1999) e 4.48 Psycho sis (1999) da dramaturga inglesa contempornea Sarah Kane (1971 1999). Os mecanismos dramatrgicos implicados nestas construes so abordados de modo a permitir uma discusso sobre a funo da personagem e os seus limites em cada uma das cinco propostas . Palavras-chave: dramaturgia contempornea, personagem Introduo O trabalho faz parte do projeto de dissertao Os transtornos nas estruturas dramatrgicas de Sarah Kane e tem como objeto de estudo as peas Blasted (1995), Phaedra s Love (1996), Cleansed (1998), Crave (1999) e 4.48 Psychosis (1999) da dramaturga inglesa contempornea Sarah Kane (1971 1999). A dissertao engloba anlises de diferentes elementos dramatrgicos presentes nas construes das cinco peas em questo , como tempo, espao, ao e personagens. Com o presente trabalho proponho uma anlise das formas de construo de figuraes humanas nas cinco peas de Kane e suas funes como personagens dentro da estrutura dramatrgica. Um estudo sobre a personagem em Sarah Kane tem como objetivo contribuir para uma anlise aprofundada sobre o uso dos recursos dramatrgicos em questo numa linha especfica do teatro contemporneo, focando o olhar nas diferentes figuraes das personagens. Esta proposta implica em uma anlise comparativa das cinco peas e as f unes das personagens dentro de cada estrutura dramatrgica. O estudo das personagens fa r parte do texto terico final de dissertao sobre os transtornos nas estruturas dramatrgicas nas cinco peas de Kane juntamente com a anlise dos demais elementos que as constroem e como estas relaes (entre personagens e tempo, espao, etc.) se do e se modificam. A metodologia adotada engloba a compilao de fortuna crtica e terica sobre as peas de Kane, incluindo material especfico sobre os recursos dramatrgicos em questo (com o tempo, espao, personagem e ao) no teatro contemporneo, que permita um estudo rigoros o da estrutura dramatrgica em cada pea da autora. Esta etapa da pesquisa possui tambm um desdobramento prtico, intitulado Laboratrio de interrupes, dirigido por mim. O

Laboratrio funciona como um espao de investigao dramatrgica. O tema surgiu como mote inicial para o desenvolvimento de exerccios, porque as interrupes ocorrerem na s peas de Kane tanto como elemento temtico quanto procedimento formal. Estes exerccio s so postos em prtica por um grupo de cinco atores. A proposta parte de exerccios de improvisao nos quais interferncias de naturezas diversas interrompem e desestabiliz am a cena. A escrita de textos crticos a partir de observaes e anotaes feitas ao longo do processo acompanhar o trabalho final de dissertao, previsto para agosto de 2010. Um estudo sobre o personagem nas peas de Sarah Kane Kane trabalha com a (des)figurao como elemento chave que atravessa o corpo das personagens e que repercute, de maneira intensa, na estrutura dramtica do texto. Na desfigurao das personagens , o corpo levado a estados intensos, como a amputao e o gozo, at a figurao mnima onde h apenas vozes. A fala seca e precisa, por vezes lacnica e insuficiente , funciona como uma extenso deste corpo cuja voz e discurso so explorados quando no possvel dizer nada . As identidades desfeitas ou no fixas tambm so caractersticas presentes na investigao dramatrgica de Sarah Kane, em que o lugar d e onde estas vozes falam (especialmente em Crave e 4.48 Psicose) constantemente desestabilizado. Estruturalmente, os elementos como o tempo, o espao tambm sofrem desestabilizaes, onde convenes de unidade e definies precisas so transgredidas ou simplesmente no so oferecidas ao pblico. O tempo que tratado ora de modo impreciso, ora obedecendo a um ritmo rigoroso (des)construdo por elementos diversos como a repetio, a desarticulao das falas, as respiraes pontuadas etc. O espao, igualmente instvel, desestabilizado por meio de recursos como a detonao radical do cenrio entre uma cena e outra, a insero de personagens de outro contexto , a ligao frgil entre as cenas; o sentido analgico das relaes interpessoais entre personagens, nas quais o esp ao ao invs de ponto de apoio, ganha mobilidade ou permanece indefinido. A noo de enredo tambm desconstruda de maneira progressiva ao longo das cinco peas de Kane, implicando numa ao que oscila entre a atrofia de sua importncia para a estrutura dr amtica e a construo de fluxos de aes, que se do apenas atravs das falas, aes de sustentabilidade efmera. Blasted Blasted se constri em torno de uma relao abusiva entre Ian (um homem de quarenta e cinco anos) e Cate (uma jovem de vinte e um) com problemas mentais. A primeira parte de Blasted se passa num quarto de hotel onde uma relao desigual e violenta evidenciad a entre

eles graas a uma economia de palavras que compem falas pungentes. O desdobramento se d quando uma exploso (indicada por um buraco de bomba no cenrio) torna esta relao ntima um espelho para um mundo em guerra. No ambiente do hotel detonado, um novo personagem ganha foco, um soldado annimo. A lgica da guerra toma conta das relaes e Ian passa do plo de torturador de Cate para o de vtima do soldado. A pea apresenta uma srie de horrores: amputao, canibalismo, estupro, tortura etc. As personagens falam de maneira crua e seca. A representao da violncia tambm apresenta inmeros desafios. A prpria encenao convidada a achar recursos figurativos que deem conta de imagens de intensidades extremas que no poderiam ser representadas naturalisticamente. Image ns como a de um personagem em estado deplorvel cego e faminto em situao de guerra, que come um beb morto, fazem deste pacto de recepo do pblico, um pacto difcil . Porm h uma especificidade nesta questo das imagens teatrais: elas devem se apresentar como t eatrais. No h nesta ao um esforo cnico de que a cena do canibalismo, por exemplo, parea real , entretanto, a prpria indicao em cena de que isto feito suscita repulsa pela par te do pblico que no se propuser imaginar o ato. Duas propostas diferentes de delineamentos de personagens podem ser apontadas em Blasted. Num primeiro momento Ian e Cate so apresentados em detalhes (idade, prof isso, background, tipo de sotaque etc.), em breve descrio didasclica. No entanto, atravs d os dilogos que as informaes sobre essa relao se somam e as tenses entre ambos eclodem. O filtro das limitaes de Kate e a rudeza de Ian so premissas para que este relacion amento abusivo se d. As informaes no so necessariamente expostas integralmente. Sabemos, por exemplo, que Cate e Ian no se vm a alguns anos ( vrios anos , nas palavras dela) indicando que Cate estaria, na melhor das hipteses, na adolescncia quando comearam a se relacionar sexualmente. tambm a partir dos dilogos, como quando Ian a chama de retardada ou das falas infantilizadas que revelam pouca conscincia do abuso da part e de Cate, que um abuso psicolgico se revela e faz com que outros tipos de abuso, como o fsico, se deem. Apesar das premissas que indicam claramente um carrasco e uma vtima, est es lugares no se sustentam da mesma maneira ao longo da pea. Ian transportado para o outro lado quando se torna vtima das atrocidades do soldado annimo que invade a cena da mesma forma como ocorre, em seguida, a exploso de uma bomba detonar o espao fsico. Ao fina l da pea, Ian est em estado deplorvel, cego e faminto, e dependente de Cate, que com boas ou ms intenes no importa descarrega a arma de Ian impossibilitando-o uma morte mais breve (Ian diz ao longo da pea que, apesar de assassino , no fazia suas vitimas sofrer, simplesmente atirava mas, este no tem a sorte de uma morte rpida).

A segunda proposta de personagem identificada em Blasted, diz respeito ao soldad o. Personagem cuja funo mais importante do que a identidade. A falta de personalizao da figura do soldado se justifica no fato de que sua funo se iguala aos demais soldad os citados na pea, que estariam espalhando horror por toda a parte tambm do lado de fora de ond e a cena se passa. As descries das torturas praticadas sadicamente pelo soldado so deta lhadas. Mas, estas experincias de tortura no so exclusividade de sua biografia, pois tambm e sto por toda a parte na pea. O espao do hotel tem sua identidade transtornada ao se configurar a partir de um rombo da parede como campo de batalha (sem que isso seja explicado em cena, do mesmo modo em que uma guerra pode varrer vidas sem prepar-l as antes). A no-identidade do soldado faz parte desta outra lgica, que dispensa que o soldado atenda a um nome. A personagem pertence a um coro implcito de soldados que vo contaminando a pea do segundo ato at o final. Outra personagem indicada (no sentido de figurao humana presente em cena), porm que no exige necessariamente mais do que um boneco para represent-la o beb. Cate surge com um beb no colo (cuja me foi morta na guerra). O beb chora e logo morre de fome e enterrado por Cate. Num curto espao de tempo ele referido em cena como it , e

depois, Cate o chama de she , mas o beb j est morto. Esta personagem tida como um smbolo da inocncia nas prprias palavras de Cate, she s inocent em meio a um contexto onde tudo corrompido. As imagens propostas em cena indicam que estes personagens passam por situaes extremas. A alta voltagem da violncia e do desespero humano os marca. Para melhor analisar este efeito, interessante suspender a noo de personagem separado dos demais elemen tos de construo do tecido dramatrgico, e tentar enxergar como so criados estes momentos que ultrapassam os limites. Um dos momentos mais intensos que envolvem, por exemplo, o personagem Ian desesperado de fome, desenterrando e comendo o beb, construdo em flashes. Tal construo de imagens impactantes no apenas conduzida pela personagem, mas tambm por uma rigidez de tempos e luz. Apesar dos flashes rpidos, a noo de tempo entendida pelo fato da luz marcar o passar dos dias. Esta proposta sequencial ex ige uma preciso formal que mais se assemelha a uma sucesso de quadros vivos do que a uma vivncia em tempo presente de cada um dos momentos extremos em suas progresses, transies e ritmos orgnicos . possvel recortar, para fins analticos, dois tipos de procedimentos de escrita cnica em suas bases estruturais para exemplificao: a prime ira parte possui dilogos breves que permitem um acompanhar da situao em tempo contnuo e, na segunda, uma sucesso de imagens impactantes.

Phaedra s Love Phaedra's Love uma adaptao da tragdia de Sneca, que faz tambm uma pardia da famlia real na Inglaterra. A estrutura dramatrgica de Phaedra s Love apresenta perso nagens mais unificados, com identidades fixas e um enredo mais tradicional em relao s demais peas de Kane. Trata-se de um formato" de stira, apresentando tambm muitas caractersticas que definem o In-yer-face theatre (como sexo, violncia e palavres), ap esar de Kane resistir a ser rotulada como pertencente a este ou aquele movimento. H, d e todo modo, algo mais confortvel no pacto que Phaedra s Love estabelece com o pblico. As personagens so mais caricaturais, pintadas em tons fortes, lembrando Histrias em Quadrinhos, ou desenhos animados para adultos. Os prprios nomes indicam um distanciamento e ao mesmo tempo apontam para a tragdia: Phaedra, Hiplito, Teseu e Strofe. A trama gira em torno da paixo de Phaedra por Hiplito, seu enteado. A intensidade dos sentimentos em questo, o pathos, em meio a uma linguagem contempornea, cheia d e grias e expresses coloquiais, d a impresso de que as falas esto num tom acima . As personagens funcionam tambm atravs dos contrastes estabelecidos nas relaes. A paixo de Phaedra fica ainda mais gritante em contraste com a indiferena de Hiplito; este parece ter tudo (dinheiro, sexo, amor, admirao de todos), no entanto, no se interessa por nad a ; Hiplito no sai do quarto enquanto Teseu no volta para a casa. s vezes, o contraste s e reflete em relaes espelhadas: Strofe (filha de Phaedra) tem um caso com o padrastr o (Teseu), enquanto sua me investe em ter um caso com o filho de Teseu. Ao final da pea, essa linguagem que se aproxima a HQ, chega a extremos e faz com que as personagens mais se assemelhem a bonecos do que a seres humanos. Um bom e xemplo o linchamento de Hiplito pelo povo que provoca a matana quase cmica dos que haviam sobrado da famlia real at ento. Pedaos de corpo humano no so apenas decepados, mais so tambm lanados de um lado para o outro assustando as criancinhas presentes e, ao mesmo tempo, eufricas com o linchamento. O coro representa o povo , de maneira bem genrica: Man 1, Man 2, Woman 1, Woman 2 e Children. E isto deve passar a idia de uma multido que dilacera o corpo de Hiplito em nome da moral e da famlia. A amputao do corpo do personagem em cena expe a artificialidade do mesmo, provocando um efeito cmico. Esta artificialidade reforada pela bidimensionalidade dos personagens do coro.

Cleansed Um forte cmbio de identidades trabalhado nas personagens de Cleansed alterando seus posicionamentos dentro das relaes com os outros, seus nomes prprios e at gneros e corpos fsicos. H em Cleansed camadas que diferem as personagens em nveis de figurao mais ou menos delineados. possvel dividi-la em pelo menos quatro camadas: uma correspondente a Grace, Tinker, Rod, Carl e Robin; a segunda que envolve Graham; a terceira referente mulher ; a quarta, das vozes e ainda uma camada limtrofe de figuraes de fenmenos vivos, como um coro de ratos e as flores que nascem e crescem repentinam ente no meio da cena. Grace, Tinker, Robin, Carl e Rod se apresentam inicialmente com algum nvel de inteireza . Ao longo da pea, Carl e Rod vo perdendo membros de seus corpos ao serem torturados por Tinker e tambm sofrem grande transformao dentro da relao amorosa que os une. Tinker sofre transformaes de ordem afetiva, o que contrasta com a crueldad e praticada pelo mesmo ao longo de toda a pea. Robin se suicida, no resistindo a hum ilhao de Tinker e a indiferena de Grace. A identidade de Robin cambia atravs das roupas de Graham doadas a ele quando morto e, depois, quando se v obrigado a devolv-las e a usar as roupas femininas de Grace (que passa a se vestir com as roupas do seu irmo, Graha m). A identidade de Grace sofre transformaes em vrios nveis: a do vesturio; do nome (passa a ser chamada de Graham ao final da pea); do gnero (constri para si aos poucos uma identidade masculina) e de sexo (sofre uma cirurgia em que perde os seios e ganh a os rgos genitais masculinos). Grace tem ainda outra particularidade trans : ela transita en tre duas realidades, a das personagens no hospital (dos vivos) e a do irmo (do morto), poi s ela interage com Graham da mesma forma (ou de maneira mais intensa) que interage com os demais personagens. Graham obedece a processos figurativos similares aos citados acima (pertencentes primeira camada), mas, o fato de no estar vivo e transitar da mesma maneira (com o mesmo poder de interferncia) na realidade dos vivos , a personagem de Graham cria rudos na comunicao entre Grace e os demais vivos . Graham um fantasma, uma fantasia, mas no por isso menos presente . Ele dana, fala e at tem relaes sexuais incestuosas em cena. O que o difere a funo que adquire em cena devido a sua condio de morto e a forma com que outra personagem (Grace) vai se transformando nele gradualmente: n o gestual, na voz, e no gnero, at ganhar o seu nome.

A mulher , uma identidade, mas cliente goze) r ele projetada nela.

stripper frequentada por Tinker, um corpo sem nome, sem com uma funo. Na medida em que sua funo (de danar para que o modificada na relao com Tinker, ela passa a adquirir a identidade po Tinker a chama de Grace, e ela se revela uma Grace .

As vozes so personagens invisveis, mas no por isso com menos capacidade de interferncia fsica nas cenas. Elas espancam, torturam e estupram. Os agentes so vozes e barulhos de pancadas que fazem suas vitimas reagirem fisicamente, como podemos v er na cena 10. Graham, o personagem ausente devido a sua codificao de morto o nico interlocutor de Grace presente fisicamente. Este personagem ausente o nico que de fato a toca ao vivo na cena. As reaes de Grace tornam um elemento cnico imaterial, como a voz, em um agente fsico. A meu ver, este um dos pontos cruciais da noo de teatro com a qual Sarah Kane quer dialogar. Too much realism limits the power of sugestion di z Kane. Quanto s convenes cnicas, Cleansed testa seus limites ao apresentar coisas extraordinrias que acontecem em cena, as flores (daffodils) crescendo no palco su gerem um tipo de vida fantstica que superam os limites da natureza. Assim como, em outro mom ento da pea, um coro de ratos arrasta pedaos do corpo humano. Estes personagens no so necessariamente representados por pessoas , mas so figuraes de seres vivos ativos em cena que se oferecem como problemas para a encenao. Crave Em Crave, o universo das relaes amorosas com seus mecanismos de violncia abordado por meio de quatro vozes, designadas por A, B, C e M (que apresentam ap enas gneros definidos e idades diferenciadas). Crave trabalha com um fluxo de uma srie de pensamentos fragilmente conectados. Apesar da abstrao sugerida pela prpria falta de figurao do corpo humano e pela falta de identidades fixas, as falas so predominantemente secas e precisas. E sua pesquisa dramatrgica privilegia, em ger al, a musicalidade. Kane sublinhava que trabalhou a como uma compositora, ao contrrio do procedimento mais usual, no qual costumava saber o que queria dizer antes de cri ar a fala. No caso de Crave, tinha mais claramente a noo do ritmo que queria, antes mesmo de sab er o que dizer. Em todas as peas, Kane usa indicaes tipogrficas para silncio, respirao, pontuao etc. Em Crave esta preciso se torna crucial. Na primeira leitura dramtica de Crave, Kane tenta se desvencilhar da expectativa em torno do mito de autora rebe lde e usa o pseudnimo Marie Kelvedon.

As personagens, se ainda quisermos cham-las assim, se resumem a vozes que dialoga m com interlocutores mais ou menos provveis entre si. As falas se conectam por tempo s (ritmo), por temas afins, por correspondncia em breves dilogos, analogias, espelha mentos, trocas de lugares em determinado tipo de jogo etc. Tudo isso se sustenta fragilm ente e se rompe com facilidade para que novas relaes se estabeleam apenas atravs das falas. importante observar que Sarah Kane cita frases em diferentes lnguas e que havia s olicitado para o elenco de sua leitura dramatizada, que ao atores tivessem sotaques difere ntes. H, portanto, um esforo para que haja diferenas claras entre as quatro vozes, previame nte marcadas por gneros e idades. possvel perceber que a correspondncia entre personagens num mesmo dilogo no fixa, pois os mesmos ora parecem estar se comunicando uns com os outros, ora som ente nos sugerem um monologar. Os corpos no interessam aqui, o movimento est contido nas fa las e no em aes fsicas. A prpria indefinio de espao permite que as personagens transitem por dilogos com um ou com o outro, com todos ou por monlogos, sem que nada se modifique alm das falas que podem ou no corresponder-se em situaes de conversas em potencial. Em dados momentos, as falas adquirem duplos sentidos e funcionam em d ilogos diferentes, de modo que no fica claro com quem a personagem fala. As personagens de Crave funcionam dentro de um jogo de linguagem em que as palavras faladas e seus ritmos, entonaes e intenes so seu principal veculo. 4.48 Psychosis Sua ultima pea, 4.48 Psychosis, marca o pice de sua investigao da forma, e nela as convenes usuais do teatro so fragilizadas. O ttulo se refere ao horrio do dia em que a vontade de se matar mais intensa . possvel notar outra especificidade: a relao entre corpo e mente rompida. Kane enfrenta a um problema que vai de encontro com a concretude do corpo do ator em cena, com a materialidade fsica. A relao debilitada entre a voz que fala e o corpo que (no) sente vai se tornando impossvel. O corpo que daria forma ao um fluxo de idias, ao discurso est dissolvido numa quantidade imprecisa de vozes q ue verbalizam exatamente a falta de conexo com o corpo dopado de remdios que no mais se difere dos demais objetos dentro do quarto, das paredes, da rua e de tudo mais. Assim como Crave, 4.48 Psychosis no tem cenrio definido e no tem diviso de cenas ou atos marcados. H apenas indicaes de linhas pontilhadas que separam cada parte. A s vozes no correspondem a nenhum nome, nem mesmo so designadas por letras como em Crave (A, B, C e M). H apenas um eu que se define de acordo com o contexto e nas

oposies com voc e eles . Pelas pistas dadas dentro das prprias falas, possvel identificar que os personagens so pacientes ou mdicos . Mas a quantidade de pacientes e mdicos no pr-definida. Aqui, as fronteiras que poderiam delinear um corpo ou uma voz esto transtornadas. Sarah Kane cria uma srie de tenses entre pensamentos que ta nto podem ser de uma ou de mais vozes, uma dinmica em fluxo, mas cheia de interrupes e atolamentos em lugares pouco confortveis de uma (?) mente perturbada. Os espaamentos, a falta de pontuao, a no-definio de onde falam as vozes e at mesmo a no-identificao de determinados trechos da pea (como, por exemplo, os nmeros e seus posicionamentos no papel) como falas comuns marcam a escrita de 4.48 Psyc hosis. No caso extremo como o dos nmeros, revelam-se indagaes que vo alm de quem fala , atravessando o que fala e o como falar em cena. O I (eu) s existe como uma posio discursiva. 4.48 Psychosis apresenta um desafio quanto a definio de personagem, qu e tende a dois posicionamentos diferentes. O primeiro se refere a uma viso de dramaturgia na qual destacar algo como personagem dos demais elementos no faz sentido, uma vez que os elementos dramatrgicos em jogo carecem de fronteiras que os separam do resto. O s egundo posicionamento possvel exige uma reviso sobre o prprio conceito do que personagem, e tende a esgar-lo para que o mesmo continue dando conta das figuraes humanas na fico contempornea. Please open the curtains 1 a ltima frase da pea. E ela indica que a fuga para dentro da mesma chegou ao seu limite e preciso sair de l. Sair do teatro, cuja realidade fictcia agonizou at onde foi possvel sustent-la, chegando ao ponto de gerar um pedido para que se d o fim. Consideraes finais e contribuies para a rea especfica A importncia deste projeto, que pretende discutir um conjunto de obras recentes d o teatro contemporneo - baseando-se na pesquisa da estrutura dramtica das peas de Sar ah Kane liga-se urgncia de investigao e produo de anlise crtica sobre um dos rumos a que parece se vincular a produo do texto teatral no momento presente. Observar-se- como, numa estrutura dramatrgica, se veem engendradas diferentes vises ticas e estticas formadas por uma sensibilidade diante da qual se faz necessrio um exerccio analtico conceitual. Acredito que a produo de reflexo no campo de estudo da dramaturgia contempornea possa ser uma maneira de interferir de forma efetiva na prtica do teatro de hoje. As peas de

Sarah Kane demonstram uma conscincia profunda dos mecanismos teatrais que so destrinchados e manipulados de forma singular. Isto evidencia como a conscincia d o material terico em jogo fermenta as discusses sobre o teatro contemporneo e como tal contrib uio necessria para a produo de anlise crtica sobre uma dramaturgia que teve uma recepo recente to perturbadora e montada hoje em vrios lugares do mundo, inclusive no Bra sil. Referncias bibliogrficas KANE, Sarah. Complete plays: Blasted, Phaedra's Love, Cleansed, Crave, 4.48 Psychosis, Skin. Methuen, London, 2001. LEHMANN, Hans-Thies, Teatro ps-dramtico. Traduo de Pedro Sssekind. So Paulo: Cosac Naif, 2007. PAVIS, Patrice. A Anlise dos espetculos. (Trad. J.Guinsburg). So Paulo: Perspectiva , 2003. PAVIS, Patrice. Dicionrio de teatro. So Paulo: Perspectiva, 2001. PFAFF, Timo. Decoding Sarah Kane -Dimensions of Metaphoricity in Cleansed. http://www.iainfisher.com/kane/ RANC, Galle. The Notion of Cruelty in the Work of Sarah Kane. http://www.iainfisher.com/kane/ RYNGAERT, Jean-Pierre. Ler o teatro contemporneo. So Paulo: Martins Fontes, 2006. SAUNDERS, Graham. Love me or kill me Sarah Kane and the theatre of extremes. Machester University Press, UK, 2002. URBAN, Ken. An Ethics of Catastrophe: The Theatre of Sarah Kane. New York, 2001. http://www.iainfisher.com/kane/