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Sapatos Brilhantes Estrôncio pesquisou vários compartimentos e deu com um quase vazio. Poisou a mala no banco mais próximo da porta e olhou aquele holograma encravado partido ao meio. Não era bem partido. Era rasgado. Tinha aquele tom de luz cinzenta típica dos hologramas, e, se bem que entre o punho e o cotovelo existisse um rasgão, notavase que vestia um belo fato castanho; e dali para cima, nada. Não havia mais nada nem ninguém naquele compartimento. Decidiu entrar e seguir viagem ali. Estrôncio voltou a pegar na mala e deitou-a de lado. Conferiu uns pertences numa bolsa lateral. E olhou o holograma rasgado. Que teria acontecido para ficar encravado? Analisou melhor e percebeu que os sapatos eram de óptima qualidade; as mangas da camisa fechavamse com botões de punho de design simples mas marcadamente personalizados. Não conseguiu perceber se seriam feitos em ouro branco ou noutro material. Aço polido, por exemplo. Suspirou. Incomo dou-se com o nariz e procurou outras pistas de existência. Pegou na mala e mudou de lugar sem se afastar da porta. Conferiu uns pertences só com a ponta dos dedos. Do mesmo lado em que estava o meio holograma tinha agora uma outra perspectiva, mas sem lograr incremento de informação. A luz proveniente da janela acentuava as propriedades diáfanas do holograma, clareando ou escurecendo o tom de cinzento

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Um conto de Pedro Miguel Gon

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Sapatos Brilhantes

Estrôncio pesquisou vários compartimentos e deu com um quase vazio. Poisou a mala no banco mais próximo da porta e olhou aquele holograma encravado partido ao meio. Não era bem partido. Era rasgado. Tinha aquele tom de luz cinzenta típica dos hologramas, e, se bem que entre o punho e o cotovelo existisse um rasgão, notava­se que vestia um belo fato castanho; e dali para cima, nada. Não havia mais nada nem ninguém naquele compartimento. Decidiu entrar e seguir viagem ali.

Estrôncio voltou a pegar na mala e deitou­a de lado. Conferiu uns pertences numa bolsa lateral. E olhou o holograma rasgado. Que teria acontecido para ficar encravado? Analisou melhor e percebeu que os sapatos eram de óptima qualidade; as mangas da camisa fechavam­se com botões de punho de design simples mas marcadamente personalizados. Não conseguiu perceber se seriam feitos em ouro branco ou noutro material. Aço polido, por exemplo. Suspirou. Incomo­dou­se com o nariz e procurou outras pistas de existência.

Pegou na mala e mudou de lugar sem se afastar da porta. Conferiu uns pertences só com a ponta dos dedos. Do mesmo lado em que estava o meio holograma tinha agora uma outra perspectiva, mas sem lograr incremento de informação. A luz proveniente da janela acentuava as propriedades diáfanas do holograma, clareando ou escurecendo o tom de cinzento

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conforme os jorros de luz. Ao seu lado direito, Estrôncio tinha a porta do compartimento, e à sua esquerda, à distância de três lugares, estava o holograma. Suspirou. Penteou­se com os dedos de uma só mão e incomodou­se com o nariz. Cada vez que se incomodava com o nariz, a mão, os dedos, a cabeça e o nariz entravam juntos em rituais alienígenas.

Pegou na mala e voltou a mudar de sítio. Estrôncio preferia o lugar que primeiro ocupara, no lado oposto ao holograma. Voltava à primeira perspectiva. Agora tinha o holograma à direita. O que teria acontecido? Ou não aconteceu nada e era mesmo assim? Conferiu os pertences. A mala estava bem acomodada a seus pés. A imagem do holograma nem sequer tremia. Nem sofria saltos. Por isso tinha que estar mesmo encravado.

Um barulho à sua esquerda sobressaltou­o. Era o revisor. Queria picar o bilhete. O revisor olhou Estrôncio em silêncio e depois desviou o olhar, sem movimento de cabeça, sobre o holograma. Durante algum tempo os olhos do revisor fizeram esses movimentos inquisitórios para cá e para lá. Outra vez para cá e para lá. Estrôncio sentiu­se pressionado e viu­se obrigado a dizer,

«Não é meu.»O revisor não disse nada. Dois estalidos com o pica e

Estrôncio estendeu o bilhete. O revisor foi­se embora e Estrôncio suspirou. Gostava de sentir o cabelo solto na mão. Incomodou­se com o nariz.

O holograma continuava na mesma. Até a cadência sonora dos rodados nos carris, conjugada com os balanços da carruagem, parecia sempre a mesma. Fechou os olhos e voltou a suspirar. Em breve a cabeça impendia no sono. Mas ao notar que adormecia, reagiu, pôs­se direito, e arregalou os olhos. Espreguiçados os olhos, analisou o holograma. Estava na mesma. Conferiu os pertences.

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Noutro dos bolsos laterais da mala recolheu um jornal apenas meio relido. Folheou­o cirurgicamente, apenas pelas parangonas. Enquanto o fazia, a porta do compartimento voltou a abrir­se. Um passageiro procurava lugar. Olhou Estrôncio com ar afável e dir­se­ia que decidira ficar, mas ao deparar com o holograma hesitou. Os seus olhos como que se estamparam no holograma. Girou a cabeça para Estrôncio e depois para o holograma. Várias vezes. Meteu um sorriso usado em outras situações mais profissionais que aquela e fechou a porta sem entrar. Estrôncio, por sua vez, voltou a conferir o holograma. Os sapatos eram brilhantes, pensou.

Voltou a dar atenção ao jornal, mas não conseguia concen­trar­se. E se o holograma não estivesse nada encravado? E se fosse só aparência? E se estivesse perfeitamente activo e, por isso, a vigiá­lo? Começou a desviar o olhar pelo canto do olho para ver se conseguia notar nele alguma manifestação, por mínima que fosse, enquanto não estivesse a ser observado. Era necessário curvar ligeiramente as páginas da direita para aumentar o ângulo de visão. Seguiu esta estratégia durante uns quinze minutos mas sem nada descobrir.

A certa altura decidiu tomar uma iniciativa. Dobrou o jornal e incomodou­se com o nariz. Levantou­se, logo que concluído o ritual, e deu três passos perigosos em direcção à janela. Fingiu estar muito interessado na paisagem. Com uma descontracção estudada, apoiou um cotovelo no vinco de alumínio que separava as duas metades de vidro da janela de guilhotina, deixando despropositadamente a outra mão no bolso das calças. E como era uma posição desconfortável, ridícula aliás, acabou por se sentar. Mesmo diante do holo­grama. Agora estavam, permita­se a expressão, face a face. Os sapatos eram mesmo brilhantes.

O holograma continuava a ter todas as características dos sistemas encravados. Parecia suspenso. A qualquer momento

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uma perna podia levantar­se e cruzar­se sobre a outra. Analisou­o disfarçadamente entre bocejos quase autênticos e auto­massagens nas têmporas e, enfim, notou algo suspeito. Uma vez que o holograma era tridimensional, agora conseguia ver que um objecto volumoso irrompia do bolso esquerdo. O que seria? Não era próprio de um fato tão aprumado. Incomodou­se com o nariz para ajudar a posterior reflexão. O que seria?

Estava entregue a esta indagação quando se assustou com um barulho cortante à sua esquerda. Alguém abrira a porta rápido demais. Intencionalmente rápido. Olhou sobressal­tado. Era de novo o revisor, mas agora acompanhado por outro revisor, e estes acompanhados por outro homem sem farda. Os dois bonés azuis com uma conivência muito junta e uns olhos piscos muito interessados por trás de uns óculos de aro redondo encheram o vão da porta aberta. Estrôncio sentiu o coração a bombear depressa. Os indica­dores da circunstância funcionavam como se tivesse sido apanhado em flagrante. Ficou a olhar os três algo aparvalhado e esperando que alguém dissesse alguma coisa. Mas man­tinham­se mudos, ou melhor, silenciosos. Num silêncio de censura que se lia no bigode de um deles, murmurando cuidados ao ouvido do outro. Estrôncio percebeu que não estavam apenas a comentar o holograma rasgado porque o segundo revisor observava­o com insistência. Olhou também ele o holograma, desesperadamente, a ver se via o que os outros poderiam estar a ver. Mas estava tudo exacta ­ mente igual.

Pressionado, e algo intimidado com aquele comportamen­to, levantou­se tremulento com a intenção de pedir esclareci­mentos. Supunha já que havia infringido alguma norma desconhe cida. Mas ao levantar­se precipitou a saída dos indiví­duos. Fecharam rapidamente a porta deslizante e afastaram­se.

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Por automa tismo deslocou­se até à porta e acabou por não ter empenho para a abrir.

Aquele episódio deixou­o nervoso. Voltou a sentar­se junto da sua mala. Conferiu mais demoradamente os pertences no bolso lateral da mala. E incomodou­se, dedicadamente, com o nariz. Teve receio que aquele compartimento não estivesse tão vazio assim. Alguma coisa de errado deveria existir. Nem se sentava nem queria ficar em pé. Voltou a olhar o holograma cada vez com menos neutralidade.

Pegou no jornal apenas para se ocupar com alguma coisa que o desviasse de pensar no holograma. Sentou­se contrariado, cruzando a perna, e começou a espalhar agressivamente o olhar pelas frases enrugadas do jornal. Mas a certa altura o seu olhar conseguiu detectar a palavra “hologramas” num pequeno título no fundo de uma das últimas páginas. Uma compulsão inevitável levou­o a ler o artigo. A meio já estava branco. Bem, primeiro gelou até à estalactite por dentro e só depois ficou branco. E imóvel. Não ousou mais olhar o holograma. Não ousou sequer mexer o jornal. Mas apesar da imobilização instintiva, o cérebro chiava de vertiginoso trabalho interpretativo e planificador. Ficou largos minutos assim. Mas depois de repetidas vezes o cérebro debitar sempre a mesma solução ao considerar todos os pró e todos os contra, largou lentamente o jornal em cima do banco, esboçou gestos inacabados que o colocaram em pé ao fim de bastante tempo e veio, eventualmente, a sair do compartimento.

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