são tomás de aquino

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SANTO TOMÁS DE AQUINO SOBRE A MENTE, NA QUAL ESTÁ A IMAGEM DA TRINDADE QUESTÕES DISCUTIDAS SOBRE A VERDADE, X Introdução, tradução e notas: Prof. Dr. Maurílio J. O. Camello

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SANTO TOMS DE AQUINO

140

SANTO TOMS DE AQUINO

SOBRE A MENTE,

NA QUAL EST A IMAGEM DA TRINDADEQUESTES DISCUTIDAS SOBRE A VERDADE, XIntroduo, traduo e notas:

Prof. Dr. Maurlio J. O. CamelloUNISAL - U. E. LORENA

2001"No conhecimento pelo qual nossa mente conhece a si mesma, est a representao da Trindade Incriada segundo a analogia, enquanto por esse modo a mente, conhecendo a si mesma, produz o seu verbo e de ambos procede o amor. Assim, o Pai, ao dizer-se a si mesmo, gerou seu Filho desde a eternidade, e de ambos procede o Esprito Santo" (Art. 7 - Respondo)

"Nossa mente no pode entender-se a si mesma de modo que se apreenda imediatamente, mas ao aprender as outras coisas, chega ao conhecimento de si; assim como conhecida a natureza da matria prima pelo fato mesmo de ser receptiva de tais formas. O que se evidencia pelo modo como os filsofos investigaram a natureza da alma" (Art. 8 - Respondo).

"O que o existir no se inclui perfeitamente na razo de nenhuma criatura; o existir de qualquer criatura, com efeito, diferente de sua quididade: donde no se pode dizer de alguma criatura que sua existncia seja por si mesma e em si evidente. Mas, em Deus, sua existncia includa na razo de sua quididade, porque em Deus o mesmo o ser e o existir, como diz Bocio e Dionsio; e o mesmo se existe e o que , como diz Avicena, e assim conhecido por si e em si" (Art. 12 - Respondo)

I N D I C E

I n t r o d u o

5

1. O texto: aspectos gerais

5

2. A mente: memria, inteligncia e vontade

7

3. O conhecimento das realidades materiais e sensveis

9

4. O autoconhecimento da mente

13

5. A mente e o conhecimento de Deus

20

Notas

23T r a d u o

Artigo 1 - E por primeiro se pergunta se a mente

enquanto nela est a imagem da Trindade a essncia da alma,

ou uma potncia dela

28

Artigo 2 - Em segundo lugar se pergunta se na mente existe memria

34

Artigo 3 - Em terceiro lugar se pergunta se a memria se distingue

da inteligncia, como potncia de potncia

40

Artigo 4 - Em quarto lugar se pergunta se a mente conhece

realidades materiais

45

Artigo 5 - Em quinto lugar se pergunta se nossa mente pode

conhecer as coisas materiais singularmente

50

Artigo 6 - Em sexto lugar se pergunta se a mente humana

recebe o conhecimento dos sensveis

53

Artigo 7 - Em stimo lugar se pergunta se na mente existe

a imagem da Trindade conforme conhece as coisas materiais,

no apenas conforme conhece as eternas

59

Artigo 8 - Em oitavo lugar se pergunta se a mente conhece-se

a si mesma por essncia, ou por outra espcie

66

Artigo 9 - Em nono lugar se pergunta se a alma conhece os

hbitos nela existentes por sua essncia ou por alguma similitude

78

Artigo 10 - Em dcimo lugar se pergunta se algum pode saber

que tem a caridade

87

Artigo 11 - Em dcimo primeiro lugar se pergunta se a mente na

presente existncia pode ver a Deus por essncia

91

Artigo 12 - Em dcimo segundo lugar se pergunta se a existncia

de Deus por si mesma conhecida mente humana, como os primeiros

princpios da demonstrao, que no podem ser pensados como no existindo98

Artigo 13 - Em dcimo terceiro lugar se pergunta se por razo natural

pode ser conhecida a Trindade das Pessoas

106

N O T A S

111

B I B L I O G R A F I A

128INTRODUO

1. O texto: aspectos gerais

As Questes Discutidas sobre a Verdade so uma Spiritus Theologia, uma "teologia do Esprito", na expresso de SPIAZZI (1), que v, na grande variedade temtica do texto, a inteno de Santo Toms de considerar o esprito no sentido integral, abrangendo o divino, o anglico e o humano. Na realidade, o texto escrito, sem dvida, por um telogo, num cenrio de reflexo teolgica, especialmente agostiniana, e muito certamente no contexto da Faculdade de Teologia da Universidade de Paris, pelos anos de 1256-1259. Sobre sua composio j se deu uma notcia em trabalho anterior (2), mas preciso notar que, diferentemente da Suma de Teologia, o "esprito" do texto das Questes Discutidas menos determinado teologicamente, isto , seu objeto formal "quo", para usar uma expresso da Escolstica, no a luz da Revelao. Isso significa que se pelo texto perpassam as citaes bblicas, com freqncia que ali tambm se notam as presenas de filsofos, alguns nomeados, outros nos bastidores, e se mantm, de modo mais explcito, o nvel racional-natural nas discusses. De qualquer modo, no se pode esquecer o clima medieval do momento da produo. Teologia e filosofia esto de tal modo reciprocamente implicadas, que nos- hoje difcil separar os princpios arquitetnicos e hermenuticos desses textos, para seguirmos a sugesto muito didtica de B. Mondin (3).

Pertencente s Questes Discutidas sobre a Verdade, a Questo X se nomeia: De Mente, in qua est Imago Trinitatis - Sobre a Mente, na qual est a imagem da Trindade. Por treze artigos e enorme quantidade de argumentos Santo Toms discute, luz de uma analogia de Agostinho, desenvolvida no tratado Sobre a Trindade (4), a natureza da mente humana, enquanto dotada de memria, inteligncia e vontade. Se se quiser estabelecer o carter da utilizao que Santo Toms faz da sugesto trinitria de Santo Agostinho, possvel que o leitor se veja obrigado a investigar, em termos mais gerais, a relao que os pensadores cristos medievais tm com suas origens patrsticas (5). As "auctoritates" seguem tendo valor decisrio, mas o esprito dialtico j se implantou, certamente desde o Sic et Non de Abelardo: textos bblicos so confrontados com textos bblicos diversos, Santos Padres com Santos Padres e, no raro, textos contrrios de um mesmo autor patrstico so postos de frente, uns contra os outros, no para se mostrar a relatividade (ou a fraqueza) dessas fontes, mas para se obter uma sntese mais luminosa na verdade (6). O pensador medieval, e Santo Toms um exemplo disso, quer compor: sua inteno no "heracltica" (manter a tenso dos opostos como lei fundamental do ser e do conhecer), nem "hegeliana" (a sntese como superao, mas mantendo em suspenso a afirmao e a negao primeiras). Ele sabe que a linguagem usada sempre humana e, nesse limite, tudo o que dito deve passar pelo trplice filtro: da afirmao, da remoo e da sobrelevao, e depois de todo esse processo, manter a convico de que, sobre o divino, apenas podemos chegar ao que no , jamais ao que . Seria apropriado afirmar que, justapondo as opinies contrrias ou parciais, recompreendendo-as ou completando-as, o pensamento de Santo Toms sobe em espiral, busca de uma "Verdade Inviolvel", bem ltimo da inteligncia como de todo o universo (7).

No o mesmo o respeito que Santo Toms tem por Santo Agostinho e o que tem por um Avicena, por um Rabi Moiss, pelos platnicos ou mesmo pelo "Filsofo", Aristteles. Santo Agostinho no "usvel" para alavancar argumentos: luz inspiradora, uma "verdade" que a Igreja leva em considerao por sculos, a "fonte" de pensamento, por excelncia. Mas Santo Toms no repetir simplesmente a idia de Agostinho do qual faz, sem dvida, uma re-compreenso , uma re-significao. No inadequado afirmar que ele procura a mediao entre Aristteles e Agostinho. Trabalhou com preciso os conceitos aristotlicos de alma, esprito, verdade, conhecimento, potncias, virtudes, ser etc. Nessa linha, no ser platnico, nem neoplatnico (podendo afastar-se do Agostinho que leu e apreciou alguns dilogos de Plato e textos de Plotino). Na Questo, ora traduzida, o leitor surpreender, mais de uma vez, certo apuro, se assim se pode dizer, de Santo Toms em redimensionar a frase de Agostinho, a metfora, a plasticidade de um pensamento, tentado pelo retrico e pelo potico, com pouca vocao para a forma tcnica escolstica, que se procurava e de que se necessitava no sculo XIII e no contexto da universidade nascente.

Os treze artigos do Sobre a Mente se agrupam em torno de duas questes bsicas: a) o que a mente: essncia ou potncia da alma? Se um conjunto potencial, como se distinguem nela a memria e a inteligncia?; b) o que e como a mente conhece? Essas questes so postas tomando-se por fundamento a afirmao agostiniana de que na mente est a imagem da Trindade, isto , em sua estrutura e operaes essenciais a mente sinaliza a prpria vida ntima da divina Trindade. As anotaes que se seguem pretendem proporcionar uma sntese, em linhas muito gerais, das respostas que Santo Toms oferece a essas questes.

2. A mente: memria, inteligncia e vontade.

Os artigos I, II e III destinam-se a pesquisar a natureza da mente.

O Art. I formula a questo: enquanto sede da imagem da Trindade, a mente a essncia mesma da alma ou uma sua potncia? A resposta em sntese ser: na medida em que inclui memria, inteligncia e vontade, a mente uma potncia ou conjunto potencial da alma, que, alis, tem outras potncias. Dado que a parte mais elevada da mente o intelecto, primariamente nele que est a imagem da Trindade. A explicao passa, como da estrutura dos artigos, por argumentos a favor da tese de que a mente a essncia da alma, afirmaes contrrias tiradas de autoridades, uma "determinatio" ou resposta e, por fim, os contra-argumentos ou solues das dificuldades apresentadas no incio. No h lugar aqui para se entrar nos detalhes desse arcabouo silogstico. Fiquemos apenas com os elementos essenciais do pensamento de Santo Toms.

Ato do corpo, a alma um conjunto de potncias que se distinguem segundo as relaes que a alma, enquanto forma substancial, tem com a matria: por via de ao natural, a alma tem sua parte ou potncia nutritiva; ao agir segundo as condies da matria, ela desempenha processos sensitivos; se age transcendendo a matria e suas condies, a alma pe em ato sua parte ou potncia intelectiva. Assim, ela pode sediar a imagem da Trindade enquanto existe, vive e entende. Entretanto, a analogia trinitria de Agostinho compreende memria, inteligncia e vontade, potncias que podem reduzir-se ultimamente ao intelecto, parte superior da alma e, por ser a mais elevada, deve ser vista como a sede mais prpria da imagem de Deus. Atender, de modo especial, ao PARA 5, lugar em que Santo Toms re-compreende, a seu modo e profundamente, a analogia de Agostinho.

O Art. II pergunta se h memria na mente. A questo tem sua razo de ser, pois no artigo precedente, aproveitando-se de duas etimologias para a palavra mente, Santo Toms referira as funes de lembrar e de medir. Quanto ao medir, no h dificuldade, pois o intelecto recebe o conhecimento sobre as coisas, "medindo-as em relao a seus princpios". Mas em que sentido se pode dizer que o intelecto, parte mais elevada da mente, "se lembra", compreende a memria?

A tese inicial do artigo que no h memria na mente. Os argumentos insistem na idia de que memria no algo "prprio" do homem e, ademais, pertence ao sensitivo e no ao intelectivo. Por outro lado, a memria pode "reter", sem atualmente estar apreendendo, o que a impede de estar no intelecto ou na mente. Ela tem a ver com o "corpo", com a "imagem" e por fim com o tempo, realidades infra-divinas. Nesse sentido, no de sua natureza dirigir-se para Deus, como faz a mente. A resposta a esses argumentos leva Santo Toms a consideraes complicadas que o remetem a Aristteles e a Avicena.

De princpio, preciso concordar em que a memria por definio conhecimento do passado e "deste" passado. assim atribuio do sentido. Entretanto, apoiando-se em Agostinho, Santo Toms lembra que o intelecto no s entende, mas entende que entende. O poder conhecer que conhece inclui memria, num sentido especial. A afirmao de Agostinho de que a memria pode ser do presente precisa, assim, ser entendida: para ser memria, tem de ser do pretrito, mas o intelecto pode, atualmente, no presente, saber que sabe.

Aristteles afirmara que a alma o lugar das espcies. Evidentemente, no se trata das espcies ou intenes particulares, mas das inteligveis, que permanecem no intelecto possvel, aps a considerao atual. Sua ordenao constitui o "hbito da cincia". Memria aqui entendida, ento, como a fora de reteno dessas espcies inteligveis, aps a considerao atual. Se se atende analogia da mente como imagem de Deus, pode-se dizer que tal se d quando a mente se dirige para Deus e para si mesma. Antes de receber as espcies dos sentidos, ela j presente a si mesma e Deus nela. Sua fora memorativa no significa que ela tenha algo em ato, mas que pode ter.

A questo continua sendo tratada no Art. III, que aprofunda a relao entre memria e inteligncia. So duas potncias distintas? Percebe-se que para manter a trilogia de Agostinho seria necessrio afirmar a distino entre as potncias. Mas no to simples. Em primeiro lugar, necessrio levar em conta dois princpios, um j formulado e outro explicitado ao longo do presente artigo: a) o intelecto a parte superior da mente e, portanto, mais apto a ser a imagem da Trindade; b) sendo Deus puro ato, sem mescla de potncia, a mente o significa mais propriamente enquanto est em ato, no em hbito. Em segundo lugar, a igualdade das Pessoas na Trindade Incriada pede correspondncia entre as potncias da mente, ou seja, uma unidade de operaes tal que a distino das potncias fosse apenas lgica e no real. Santo Toms no quer ser infiel a Agostinho, nem rejeitar de pronto a referncia memria que, por definio, se aplica ao passado e a este tomado como particular. Lembra, ento, que Agostinho usa de duas analogias: mente-conhecimento-amor; e memria-inteligncia-vontade. Por outro lado, a mente pode ser imagem da Trindade, imitando-a de modo perfeito ou imperfeito. Imitar de modo perfeito enquanto opera em ato, o que faz quando se lembra, entende e quer em ato. A imitao imperfeita se d no nvel dos hbitos da alma e para a serve a primeira analogia: mente, conhecimento e amor, enquanto hbitos existentes na alma. Um texto de Agostinho, extrado do livro XIV do Sobre a Trindade serve de base para afirmar que o conhecimento e o amor, recebidos habitualmente, "pertencem s memria, como se evidencia pela autoridade do mesmo..." . A resposta questo, que dava ttulo ao ttulo do art. III, pode resumir-se assim: a memria potncia distinta da inteligncia, se considerada em seu sentido prprio, dado pelos filsofos (enquanto tem por objeto o particular); ela pertence ento parte sensitiva do homem. A mente ou o intelecto pode, de algum modo, conhecer o pretrito, mas a diferena do presente e do pretrito acidental ao inteligvel, de sorte que tal memria existente na mente no pode ser uma potncia diversa: o prprio intelecto, visto em sua funo de "passivo", onde se recolhem, in habitu, as espcies inteligveis (portanto, para aqui, as razes gerais de pretrito).

3. O conhecimento das realidades materiais e sensveis

Imaterial, a mente no poderia, aparentemente, conhecer as realidades materiais nem nelas mesmas , nem pelos meios, como as imagens e formas que no so materiais. Esse o fulcro dos argumentos iniciais do Art. IV, pelos quais se nega a possibilidade de tal conhecimento, tendo-se, porm, a impresso que entendem o conhecimento da mente como uma apropriao direta das coisas materiais, numa espcie de realismo grosseiro, no intermediado nem crtico. A gnoseologia tomasiana se deixa aqui manifestar em seus princpios mais complexos e profundos. Em sntese, afirma-se que todo conhecimento se faz pela forma, que , no sujeito que conhece, o princpio do conhecer. No cognoscente a forma o faz conhecer em ato; na relao que tem com a realidade, ela determina o conhecimento relativo ao cognoscvel. As realidades materiais podem ser conhecidas pelas formas que so recebidas pelo cognoscente. Isso se d pela ao das realidades sobre a alma, ao que se faz pela forma. Se h formas cujo modo de ser no agrega a si nenhuma matria (como a linha, a superfcie), outras determinam a si matria e, nesse caso, a matria de algum modo conhecida pela referncia que tem com a forma (por ex., conhecendo-se a chateza, conhece-se o nariz chato). Santo Toms, comparando com o conhecimento anglico e o divino, que tambm se fazem por formas (embora se distingam, pois as formas das coisas no conhecimento divino so "causas" das coisas e tm, por conseguinte, com relao a essas uma antecedncia ontolgica), anota que o conhecimento humano das coisas materiais tambm um conhecimento espiritual, na medida em que o intelecto conhece a essncia das coisas. Tal conhecimento no direto (como o divino e o anglico), mas pelas "similitudes", que no tm a mesma existncia das coisas das quais so similitudes: como a forma do homem na esttua no tem a mesma existncia que a forma dele nas carnes e nos ossos.

Essa gnoselogia continua no art. V, que trata de saber se as coisas materiais so conhecidas singularmente. O conhecimento do singular, enquanto tal, no uma questo pacfica neste sculo XIII : se o singular o que de fato existe e se o que existe o fundamento de toda verdade, de esperar-se que o autntico conhecer d conta da realidade em sua singularidade. O pensamento de Duns Scotto e Ockham andar por esse caminho (8).Os annimos discutidores que estiveram presentes no debate desse artigo puderam apresentar seis argumentos a favor dessa tese e so todos de interesse. Fiquemos apenas com dois. O primeiro deles se baseia no princpio de individuao (questo, alis, discutida): se a matria que d existncia ao singular e se a mente pode conhecer as coisas materiais, pode por conseqncia conhecer as coisas singulares (Art.IV, 1). Olhando a partir da prpria mente, tambm se chega ao mesmo resultado: ningum conhece a composio a no ser que conhea os termos da composio. Ora, a mente forma a composio: Scrates homem. No a poderia formar uma potncia sensitiva, que no apreende o homem no universal. Logo, a mente conhece as coisas singulares (Art. IV, 3). Uma frase de Bocio, entretanto, sinaliza a resposta: o universal enquanto entendido, o singular enquanto sentido. Santo Toms repete quanto j expusera: a mente conhece as res naturales primariamente segundo a forma; secundariamente, conhece a matria na referncia que essa tem forma. Tudo isso num registro de universalidade, no se vendo aqui a matria como princpio de individuao (isto , a matria marcada sob determinadas dimenses). A mente no conhece o singular diretamente, que assim conhecido pelas foras sensitivas (que recebem as formas das coisas num rgo corporal e chegam ao conhecimento da matria singular). O singular atingido pela mente indiretamente, por acidente, enquanto corroborada pelas foras sensitivas. O que se entende de dupla maneira:

a) enquanto o movimento da parte sensitiva termina na mente (o movimento que vai das coisas alma). A mente conhece assim o singular "por alguma reflexo": enquanto conhece seu objeto - uma natureza universal - volta ao conhecimento de seu ato, depois espcie, que princpio de seu ato e, por fim, imagem da qual a espcie abstrada;

b) enquanto o movimento vai da alma coisa, comea na mente e chega parte sensitiva, enquanto a mente rege as foras interiores. E assim atinge os singulares, mediante a razo particular, que uma potncia individual, dita "cogitativa", sediada em determinado rgo do corpo (que S. Toms identifica como uma "clula mdia da cabea") (9). Tal explicao se torna necessria para entender-se como a mente procede nas circunstncias concretas, nas operabilia, isto , quando tem que agir: a sentena universal no se aplicaria ao ato particular se no houvesse uma "potncia mdia", que apreende o singular, permitindo que a mente aplique o conhecimento universal ao particular, formando-se assim o silogismo prtico. Na realidade, dir no PARA 5: o intelecto conhece o que o sentido conhece, mas de modo mais elevado: o sentido conhece quanto as disposies materiais e acidentes exteriores; o intelecto penetra na natureza ntima da espcie, que est nos prprios indivduos.

A questo do conhecimento das realidades materiais ainda no est de todo resolvida. O Art. VI problematiza a origem sensvel do conhecimento da mente. De fato, se o objeto do intelecto a quididade e se essa no de modo algum percebida pelo sentido, a mente no poderia receber o conhecimento dos sensveis (notar que no se diz "sentido") (Art. VI, 2; ver tambm o 7, que aprofunda a impossibilidade). A resposta de Santo Toms passa pela exposio de dois grupos de opinies, no primeiro dos quais esto aqueles que puseram uma origem da cincia totalmente exterior alma e, no segundo, os que afirmaram que a origem era totalmente interior. Pertencem ao primeiro grupo os platnicos para os quais as formas sensveis so separadas e inteligveis em ato (delas as coisas sensveis participam, como tambm a mente humana: so princpios de gerao e de cincia). Tal opinio, lembra Santo Toms, foi reprovada por Aristteles, que mostrou suficientemente que mesmo as formas universais sem matria sensvel, tomadas universalmente, no poderiam ser entendidas (como a chateza no o pode sem o nariz). Ainda no primeiro grupo, Avicena e outros afirmam que nossas mentes recebem as formas inteligveis de inteligncias separadas, "as quais chamamos de anjos". Trs razes se opem a tais teorias: em primeiro lugar, a experincia mostra o contrrio: se falta um sentido, falta a cincia correspondente; depois, nossa mente s pode considerar em ato as coisas que sabe habitualmente, por meio de imagens: ferido ou prejudicado o rgo da fantasia, a mente fica impedida de considerar; e, por fim, a aceitao dessa tese significa abolir os princpios prximos das coisas, por desnecessrios, pois os seres inferiores receberiam imediatamente das substncias separadas as formas tanto inteligveis quanto sensveis. preciso mencionar tambm aqui a opinio dos platnicos para os quais conhecer lembrar, contendo a alma humana em si mesma o conhecimento de todas as coisas, sem precisar de estudo e dos sentidos. Se isso fosse verdade, no sofreramos a ignorncia sob todos os aspectos daquilo de que no temos sentido. E o que mais grave: tal opinio supe que a alma foi criada antes do corpo e depois unida a esse, de modo que a composio do homem no seria natural - o que se ope f e s sentenas dos filsofos. Santo Toms alude ainda a uma opinio da qual no refere os fautores e que pode ser vista como estranhamente moderna: a dos que puseram a alma como causa para si mesma, ou seja, que, por ocasio dos sensveis, forma em si as similitudes das coisas, diramos um apriorismo, que deixa a mente autnoma para se dar as formas em ato, sem necessitar seno da sugesto dos sensveis. Tal parecer coincide com o anterior que punha a cincia como inata na alma e merece a mesma crtica. A soluo mais aceitvel cr Santo Toms ser a de Aristteles, para o qual a cincia em parte de dentro e em parte de fora da mente.O entendimento disso passa pela anlise da dupla relao em que a alma est com as coisas sensveis: a) como o ato para a potncia: as coisas fora da alma esto em potncia inteligveis; a mente, porm, inteligvel em ato e o intelecto agente torna os inteligveis potenciais em inteligveis em ato; b) como a potncia para o ato: o intelecto possvel ou passivo recebe as formas (que esto em ato nas coisas), as quais so tornadas inteligveis em ato pela luz do intelecto agente. Tal lumen procede de Deus. A mente recebe a cincia dos sensveis e de modo algum forma em si as similitudes das coisas: essas, abstradas dos sensveis, so atuadas pela luz do intelecto agente. "E assim tambm no lume do intelecto agente , em ns, de algum modo, posta originalmente toda cincia, mediante as concepes universais que imediatamente so conhecidas por aquele lume, pelas quais, como por princpios universais, julgamos outras coisas, e os preconhecemos nas mesmas" (Art. VI, in corp.) .

Pode-se dizer que o Art. VII encerra, de certo modo, a discusso sobre o conhecimento da mente, remetendo ao ponto de origem: de que forma ou a partir de que objetos de conhecimento a mente mais realiza a imagem da Trindade. um longo artigo e um dos mais belos. Os argumentos iniciais so a favor da tese de que a imagem da Trindade est na alma simplesmente enquanto conhece, tanto as coisas materiais quanto as eternas. Um desses argumentos, tomando uma passagem do livro X do Sobre a Trindade de Agostinho, expressa que a igualdade das Pessoas representada em nossa mente conforme se compreendem reciprocamente a memria, a inteligncia e a vontade toda. Ora, essa recproca compreenso no mostraria a igualdade delas, a no ser enquanto se compreendessem com referncia a todos os objetos. Em conseqncia, a imagem da Trindade se acha nas potncias da mente, pela razo de todos os objetos (Art. VII, 6). Santo Toms aceitar isso em parte, fazendo a distino entre "alguma similitude" e a "imagem" da Trindade Incriada. Qualquer conhecimento de si evoca uma similitude da Trindade, como o mesmo Santo Agostinho afirma (Sobre a Trindade, XI, 2, 2 e s.). Mas a imagem de Deus s se acha naquele conhecimento em que se exprime mais intimamente a conformidade da mente com Deus. Num primeiro momento, isso acontece quando a mente se conhece a si mesma. A analogia est em que por esse modo "a mente produz o seu verbo e de ambos procede o amor. Assim, o Pai, ao dizer-se a si mesmo, gerou o Filho desde a eternidade, e de ambos procede o Esprito Santo" (Art. VII, in corp.). H, porm, uma perfeio maior, enquanto a mente conhece o prprio Deus, pois nisto ela se conforma a Ele, como de todo cognoscente o assimilar-se ao conhecido. Aqui a similitude da Trindade mais expressa, porque mais perfeito o conhecimento por conformidade que o por analogia. O artigo pede ser lido devagar e com ateno, pois nos d elementos de valor para se pensar o estatuto da metfora como meio essencial para se conhecer e se falar de Deus. Como a pergunta que vinha no ttulo do Art. VII explicitava a diferena entre o conhecimento das coisas temporais e das coisas eternas, a soluo , ao parecer, luminosa:

"Deve-se dizer que a igualdade das pessoas divinas mais representada no conhecimento das coisas eternas do que das temporais (...). Embora seja maior a desigualdade entre nossa mente e Deus do que entre nossa mente e a realidade temporal, entretanto, entre a memria que nossa mente tem a respeito de Deus, e a inteligncia atual dele e o amor, encontra-se maior igualdade do que entre a memria que tem a respeito das coisas temporais, e a inteligncia delas e o amor. O prprio Deus conhecvel por si mesmo e amvel, e assim tanto pela mente de cada um entendido e amado, quanto presente mente; sua presena na mente memria do mesmo, e assim memria, que se tem dele, se adequa a inteligncia e tambm a vontade ou amor" (Art. VII, PARA 2).

Numa palavra, embora, enquanto criatura, nossa mente esteja mais prxima das realidades temporais, nela a "memria" de Deus mais "igual" ao conhecimento e amor dEle do que a respeito das coisas temporais "que no so segundo elas mesmas inteligveis e amveis" (ibid.). Portanto, fica mais explcita a imagem trinitria enquanto a mente se conhece a si mesma e, mais ainda, enquanto conhece a Deus. o que vai tratar nos artigos seguintes.

4 - O autoconhecimento da mente

4.1. Conhecer-se por essncia

O Art. VIII , entre todos, o mais longo e o mais complexo. Fica a merecer, portanto, uma ateno especial nesta sntese. A pergunta que se pe : se a mente conhece-se a si mesma por essncia ou por outra espcie. possvel reformul-la nos seguintes termos: a mente humana conhece-se a si mesma imediatamente e sem nenhuma representao, ou necessita de uma "espcie" por acaso abstrada das coisas para se conhecer? possvel mente olhar-se, intuir-se, ter uma autoconscincia, de modo a saber no s que existe, mas o que ? No conjunto da gnoseologia aristotlica e tomasiana, claro que a resposta a tal questo complicada, dados os princpios do realismo crtico que se professa e, mais radicalmente, a concepo da alma como forma e ato de ser do corpo, mas recebendo desse, originalmente, todo o "material" necessrio para o conhecimento, desde a apreenso dos primeiros princpios indemonstrveis, sem os quais no possvel conhecer, at os dados sensveis, a partir dos quais se formaro as imagens e, por fim, os conceitos e os juzos do conhecer.

O sinal de to grande complexidade pode ser constatado at na arquitetura do artigo VIII. A partir da questo, que o encima, no ter apenas as quatro partes, como os outros, mas cinco: os argumentos (em nmero de 16) a favor da tese de que a mente precisa de imagens para se conhecer, os contra-arrgumentos do CONTRARIAMENTE (em nmero de 11), a longa "determinatio" do RESPONDO, as solues para cada um dos argumentos da tese e as solues para cada um da contra-tese, que no vista tal qual como aceitvel por Santo Toms. Numa sntese, poder-se-ia limitar resposta, mas muitos elementos explicativos, que aparecem nas outras partes, seriam perdidos e o que pior, perder-se-ia o movimento prprio desse pensamento, que conhece as dificuldades do tema, as ciladas das posies contrrias, a necessidade de completar ou nuanar as afirmaes, para que a verdade, j de si to esquiva e inviolvel (na expresso de Agostinho) fosse preservada. Em razo disso, prefere-se acompanhar aqui o texto, muito embora no se possa expor todos os argumentos e contra-argumentos. O leitor saber completar e aprofundar, quando no conferir, com a leitura do texto (que j sofre a primeira e inevitvel alterao pelo fato mesmo de ser traduzido).

A mente se conhece a si mesma por sua mesma essncia ou necessita de alguma espcie para conhecer-se? Algumas razes militam a favor da necessidade de alguma espcie mediadora para o autoconhecimento da mente. A primeira delas tirada de Aristteles, para o qual o intelecto nada entende sem imagem e no pode ter da prpria essncia uma (Art. VIII, 1). Tal argumento ganha peso, se se pensa que nossa alma uma forma unida matria e toda forma desse tipo se conhece por abstrao da matria: a alma no faria exceo (Art. VIII, 4). Levando-se em conta ainda esse conjunto humano, afirma-se desde o Sobre a alma de Aristteles, que entender ato no apenas da alma. Entender supe sempre algo do corpo e tal no se daria se a alma se visse a si mesma por essncia, sem espcie alguma que dos sentidos do corpo tivesse recebida (Art. VIII, 5). A essa ordem de idias deve-se opor outras, que se vero nas solues correspondentes (PARA 1, 4 e 5): em primeiro lugar, o intelecto precisa de espcies para o entendimento de coisas que lhe so alheias: ele no tem tais espcies como inatas. J sua essncia, sim. De si mesma a mente tem o conhecimento habitual, pelo qual percebe que existe (o que no significa ainda que conhece sua prpria natureza - problema que ser tratado adiante). Alm disso, de fato, nossa alma uma forma unida matria, mas ao unir-se ao corpo ela no se submete matria de modo a tornar-se material, no se tornando por isso inteligvel em ato, mas s em potncia por abstrao da matria. Por fim, a afirmao de que entender ato do conjunto procede, se se considera o conhecimento atual, quando a alma percebe que existe percebendo seu ato e objeto, como veremos adiante, explicado no corpo do artigo.

Outra ordem de idias tem a ver com a questo da circularidade desse tipo de conhecimento, que pode ser vista do ponto de vista lgico e gnoseolgico. Do ponto de vista lgico, se se acompanha Aristteles, no se pode demonstrar em crculo, e bem o que teramos se algo fosse conhecido por si mesmo: seria antes e mais conhecido do que ele mesmo - quod est impossibile. E o que aconteceria com a mente que, vendo-se por si mesma, seria a mesma coisa o que (id quod) se conhece e pelo que (id per quod) se conhece (Art. VIII, 9). A soluo dessa dificuldade passa pela distino do que significa algo ser conhecido em algo. Isso pode dar-se de duas maneiras, explica S. Toms: a) quando do conhecimento de um se chega ao conhecimento de algo, por ex., do conhecimento das concluses ao dos princpios - desse modo, algum no pode ser conhecido em si mesmo (non potest aliquis cognosci seipso); b) quando algo conhecido como naquilo que se conhece - neste caso, no necessrio que aquilo em que se conhece seja conhecido por conhecimento diferente daquele que conhecido nele. Desse modo, conclui S. Toms, nada impede que algo seja conhecido em si mesmo, por ex., Deus em si mesmo se conhece, e tambm a alma, que se conhece a si mesma, de certo modo, por sua essncia.

Do ponto de vista gnoseolgico, a questo da circularidade remete a Dionsio Areopagita, para o qual h um crculo no conhecimento: conhecer significa que a alma sai de si mesma, vai aos existentes e volta a si. Nesse sentido, ela precisa das coisas exteriores para tambm se conhecer - o que excluiria o autoconhecimento por essncia (Art. VIII, 10). S. Toms no d tal sentido ao pensamento de Dionsio, que est comparando o conhecimento da alma ao do anjo. A circularidade prpria do modo como a alma conhece, que se v necessitada a passar dos princpios s concluses, segundo a via inventionis, e voltar das concluses ao princpios, por via judicii. Tal discurso ou raciocnio no se d no conhecimento anglico. Em conseqncia, no que diz respeito ao autoconhecimento da mente, a objeo da circularidade no tem lugar (PARA 10).

Uma ltima dificuldade para se aceitar que a mente tivesse de si mesma um conhecimento por essncia estaria no fato de que, se assim pudesse conhecer-se, teria sua essncia sempre presente a si e sempre a veria, tratando-se de um conhecimento em ato, permanente (se a causa permanece, tambm o efeito), o que tornaria impossvel o conhecimento de outras coisas diferentes da prpria mente (Art. VIII, 11). Ora, para se entender melhor essa aparente dificuldade, preciso lembrar a diferena entre o conhecimento habitual e o atual. No preciso que sempre se entenda em ato aquilo de que se tem conhecimento habitual por algumas espcies, existentes na inteligncia. Igualmente, no necessrio que sempre se entenda em ato a prpria mente, cujo conhecimento existe em ns habitualmente, ao estar a prpria essncia da mente presente em nossa inteligncia (PARA 11).

As observaes anteriores, de certo modo, preparam ou vo complementar quanto Santo Toms apresenta em sua determinatio. Ela inicia-se com um esclarecimento sobre a expresso "conhecer por essncia", que aqui remete quilo "em que" se conhece, ou seja, a mente se conhece por meio de sua prpria essncia, "atravs de" sua prpria essncia. Tal conhecimento pode ser ou daquilo que a alma tem de prprio ou do que ela tem de comum com as outras almas. No primeiro caso, ela sabe que existe; no segundo, sabe o que .

Quanto ao conhecimento de que sabe que existe, ele pode ser em ato ou em hbito. Em ato, quando a alma se conhece por seus atos: ela percebe que se entende na medida em que entende algo. Em hbito, a alma se v por essncia na medida em que sua essncia est presente a si, podendo passar ao ato de conhecimento de si mesma. Da presena na mente da essncia da alma saem os atos nos quais a mesma se percebe atualmente.

Quanto ao conhecimento do comum, isto , da prpria natureza da alma, preciso distinguir a apreenso e o juzo, esses dois instantes fundamentais de todo conhecimento. Pela apreenso, nossa mente se entende, no imediatamente, mas apreendendo as outras coisas, pelas espcies abstradas dos sentidos. Nossa alma ocupa o ltimo lugar entre as realidades espirituais e conhece as naturezas universais das coisas porque imaterial (caso contrrio, seria "individuada" e no conheceria o universal). Foi por a que os filsofos investigaram a natureza da alma, entendendo que o intelecto coisa independente da matria e chegando a outras propriedades. dito "inteligvel como os outros inteligveis", na expresso de Aristteles.

Pelo juzo, nossa mente intui a "inviolvel verdade", na expresso de Agostinho, isto , "no o que a mente de cada homem, mas qual deve ser, por razes sempiternas". Conhecemos a Verdade Inviolvel na sua similitude impressa em nossa mente, enquanto conhecemos outras coisas per se nota, ou seja, por si mesmas evidentes, com relao s quais examinamos todo o resto, julgando de tudo segundo elas.

Poderamos sintetizar quanto vem dito:

a) se trata de conhecimento atual, a alma conhecida por seus atos. Algum percebe que tem alma, que vive e existe, quando percebe que sente e entende, e exerce outras funes semelhantes da vida. Ningum percebe que se entende seno na medida em que entende algo;

b) se trata do conhecimento habitual, a alma se v por essncia na medida em que sua essncia est presente a si, podendo passar ao ato de conhecimento de si mesma. Para que a alma perceba que existe e atenda ao que faz em si mesma, no se requer um hbito, mas basta a essncia dela, que presente mente: dela saem os atos nos quais a mesma se percebe atualmente:

c) quanto sua natureza, a mente se apreende, no imediatamente, mas atravs das espcies que so abstradas dos sentidos;

d) para saber o que deve ser, seu juzo se constituir a partir da intuio daquilo que nela habita como "inviolvel verdade", "por razes sempiternas".

Essas posies de Santo Toms se aclaram um pouco mais quando se lem os argumentos do CONTRARIAMENTE e as respectivas respostas. De novo preciso dizer que no h lugar para se entrar aqui nos detalhes, esperando-se que o leitor se aprofunde no prprio texto tomasiano. De princpio, no suficiente afirmar que a mente se conhece a si mesma porque incorprea: para conhecer-se que existe, ela deve refletir sobre seu prprio ato, e para conhecer o que , necessita considerar seu objeto. Essa a tese bsica: inteligvel em si mesma, a mente no princpio de autocognoscibilidade: no se conhece por uma intuio fundamental de si mesma ou por uma espcie abstrada de si (por impossvel), mas pela espcie abstrada de seu objeto que se torna "forma" da mente enquanto entende em ato: nesse "em que" que a mente se conhece. Por no dependerem desse "meio", as mentes divina e anglica se distanciam maximamente da humana. Isso no impede que a cincia da alma, como queria Aristteles, seja certssima, e de fato o , pois qualquer um experimenta que tem uma alma e que o ato da alma est em si. Mas o prprio Aristteles reconhece que conhecer o que a alma dificlimo e foi aqui que no poucos filsofos erraram (PARA 8 do CONTRARIAMENTE).

4.2. O conhecimento dos prprios hbitos

Os Artigos IX e X examinam a estrutura habitual da alma, para saber se essa conhece por sua prpria essncia os hbitos que possui e ou se necessita de alguma "similutude" e, na continuao, se alma conhece que tem a caridade, isto , um hbito nela infuso por Deus. Pode-se dizer que referidos artigos tratam de uma aplicao ou extenso do que fora discutido sobre a autoconscincia da mente. Os "hbitos" so, como se sabe, disposies mais ou menos permanentes, isto , "modos de ser" em que a alma se tem (habitus- haberi) e a partir dos quais so praticados atos (de cincia, de virtudes etc). A alma sabe que tem esses hbitos? Se sabe, sabe diretamente, pelo conhecimento que tem de si, ou necessita de alguma mediao, uma "espcie" ou similitude que lhe d conta da existncia e da natureza do hbito que possui? Tambm aqui a resposta no breve.

Em primeiro lugar, tanto o hbito quanto a prpria alma s percebemos que existem em ns pela percepo dos atos dos quais a alma e o hbito so princpios. E no que diz respeito alma, ainda preciso dizer que ela princpio dos atos no por sua essncia, mas por suas foras. Isso significa que, percebidos os atos da alma, percebe-se a essncia do princpio de tais atos, mas no se sabe a natureza da alma.

Feita essa primeira observao, necessrio de certo modo recuar na questo e distinguir o conhecimento da natureza dos hbitos e o de sua existncia. Sobre a natureza do hbito, tambm preciso distinguir o conhecimento no nvel da apreenso e no do juzo. A considerar do ponto de vista da apreenso, o hbito no pode ser apreendido diretamente por sua essncia, pois depende dos seus objetos e dos atos respectivos. Por que ? A fora - vis - de qualquer potncia da alma determinada por seu objeto e s por certa "volta" apreende que apreende. Serve a analogia com a vista: primeiro ela se dirige para a cor e, vendo a cor, por uma "volta", v que v. de dizer-se que tal "reflexo" no existe completamente no sentido, mas no intelecto, "o qual por uma volta completa volta para o conhecimento de sua essncia" (Art. IX, RESPONDO). Com efeito, o intelecto primeiro tende para as coisas que so, por imagens, apreendidas, depois conhece seu ato e, em seguida, as espcies, hbitos, potncias e essncia da prpria mente. A considerar do ponto de vista do juzo, o conhecimento do hbito ou recebido do sentido, por exemplo, ouvindo de algum sobre a utilidade da gramtica, sei o que gramtica; ou dado no conhecimento natural, como o caso dos hbitos das virtudes, dos quais a razo natural dita os fins; ou infuso por ao divina, como o hbito da f ou da esperana.

Se se trata do conhecimento da existncia dos hbitos em ns, por conhecimento atual, percebemos que temos hbitos a partir dos atos desses mesmos hbitos que em ns sentimos. Por conhecimento habitual, diz-se que os hbitos so conhecidos por si mesmos. Como ? O hbito pelo qual algo conhecido aquilo a partir de que algum se torna capaz para chegar ao ato de tal conhecimento. Estando na mente os hbitos, ela pode chegar a perceb-los atualmente "enquanto pelos hbitos pode chegar aos atos, nos quais os hbitos so atualmente percebidos" (ibid.) .

A resposta questo contempla, por fim, a distino entre os hbitos da parte intelectiva e os da parte volitiva. Os primeiros so princpio do prprio ato, pelo qual se recebe o hbito, e tambm do conhecimento no qual se percebe, porque o mesmo conhecimento atual procede do conhecimento do hbito. Os segundos so princpio do ato do qual o hbito pode ser percebido, mas no do conhecimento no qual percebido. Os hbitos da parte intelectiva consistem na mente por sua essncia, sendo assim princpio prximo de seu conhecimento. J o hbito da parte volitiva princpio remoto, pois a parte volitiva no causa do conhecimento, mas daquilo de que esse recebido. O prprio Santo Toms nos d uma formulao bem sinttica de quanto explicou:

"Pelo fato mesmo de que os hbitos por sua essncia esto na mente, pode essa chegar a perceber atualmente que existem nela os hbitos, enquanto pelos hbitos que tem, pode chegar aos atos, nos quais os hbitos so atualmente percebidos" (ibid).

Se se passa dos hbitos naturais, aqueles que so modos operativos da mente, conhecidos pela reflexo sobre os atos, para os que so infusos por Deus na alma, sobrenaturalmente, e entre esses o mais importante a caridade, no bastar, certamente, o mesmo processo. Ningum pode saber, afirma Santo Toms, que tem a caridade, a no ser por meio de revelao. Pode conjecturar, como quando se v preparado para obras espirituais e detestando as ms. A razo no de difcil compreenso: foi dito que o conhecimento pelo qual algum conhece que tem um hbito pressupe o conhecimento pelo qual ele sabe o que esse hbito. Ora, para saber isso preciso que se forme juzo atravs daquilo para o que tal hbito se ordena - que medida desse hbito. Ora, aquilo a que se ordena a caridade incompreensvel, pois seu objeto e fim Deus, bondade infinita, qual nos une a caridade. Logo, no pode algum saber, pelo ato de amor que percebe em si, se a esse pertence que viva para Deus, como se requer razo da caridade.

Os argumentos a favor de pensar que se pode saber que tem a caridade, como as solues ou contra-argumentos levantados so de muito interesse e o leitor no os deixar de acompanhar no texto. Sirva de amostra o 5: numa passagem dos Segundos Analticos, Aristteles afirma que impossvel que tenhamos os mais nobres hbitos e eles nos serem ocultos (10). Ora, a caridade de todos os hbitos o mais nobre; em conseqncia, no podemos desconhecer que a temos. A resposta explica que Aristteles se refere aos hbitos da parte intelectiva, que, em razo de sua perfeio, no podem ocultar-se a quem os tem. Donde, "qualquer um que sabe, sabe que sabe, uma vez que saber conhecer a causa da coisa, e porque impossvel haver-se de outro modo" (PARA 5). Por ex., algum que tem o hbito da inteligncia dos princpios, sabe que tem tal hbito. Entretanto, "a perfeio da caridade no consiste na certeza do conhecimento, mas na veemncia da afeio, o que no semelhante" (ibid).

5. A mente e o conhecimento de Deus

Chega-se assim ao ltimo bloco de artigos, que de certo modo completam a reflexo sobre a natureza da mente humana. Trata-se agora de saber que tipo de conhecimento pode a mente humana ter de Deus.

Inicia-se com o Artigo XI onde se pergunta se na presente existncia a mente pode ver a Deus por essncia. oportuno anotar, previamente, a respeito da questo, que se remete aqui ao limite ltimo possvel da mente humana: ver a Deus em si mesmo e sem qualquer enigma ou mediao. E ademais, nesta existncia, pois na condio beatfica, com o lumen sobrenatural, a mente j no est mais entregue a si, apenas com seus recursos, nem condicionada pelas limitaes corpreas do "composto" de que faz parte.

Um conjunto de argumentos tirados de passagens bblicas e outros oriundos dos filsofos e Santos Padres sustentam ser possvel essa viso imediata e perfeita da mente humana. Particularmente interessante o tirado da pessoa de Cristo, que, por ser homem, tinha o intelecto da mesma natureza que o nosso e, na presente existncia, podia ver a Deus por essncia. Se Cristo podia faz-lo, nada impede que tambm possamos (Art. XI, 3). O argumento parece no levar em considerao suficientemente a especial condio de Cristo, que, por ser Deus e Homem, numa relao misteriosa e ao mesmo tempo unitria, enquanto pessoa, podia ter o conhecimento apreensivo e compreensivo ao mesmo tempo: quer dizer, como se explicar adiante (PARA 3),

tinha em seu poder tudo o que diz respeito natureza humana, mas seu intelecto estava permanentemente ilustrado pela luz da glria, o que lhe permitia ver a Deus por essncia. J o homem, na presente existncia, como resultar de todo o artigo, apenas viator - viajante para a ptria- com um conhecimento de Deus constitudo de imagens e conceitos. Mesmo em estado de separao da alma, quando ela passa a conhecer a Deus quiditativamente, sem o uso de espcies, seu conhecimento continua sendo analgico e apreensivo, sobretudo finito. Embora o argumento no se tenha sustentado, de ver que o tratamento que se d a ele abre a perspectiva, traz uma linha nova de reflexo - procedimento bem do estilo de Santo Toms, que parece crer sempre que qualquer opinio, por mais esdrxula que parea, pode ser examinada de diversos ngulos e em alguma coisa aproveitada. o que faz com outro argumento, desta vez oriundo de uma proposio de Aristteles no Sobre a alma (11). Ali, com efeito, se afirma que a alma de certo modo todas as coisas, j em suas faculdades sensveis, j no intelecto. Dado que o maximamente inteligvel a divina essncia, poderia nosso intelecto, na presente existncia, contempl-la. A resposta curta e de extrema simplicidade: na presente existncia, nosso intelecto pode conhecer, de certo modo, a divina essncia, "no de modo a saber o que ela , mas s o que no " (PARA 5). De Deus se sabe o que no . A afirmao costuma deixar perplexo quem olha todo o enorme esforo e a considervel produo intelectual de Santo Toms a respeito de Deus. Seria necessrio concluir que o valor est na busca constante do divino e no nos resultados ? De qualquer forma, ser preciso acompanh-lo mais de perto na resposta, alis belssima, que d questo do artigo XI, para avaliarmos da complexidade deste momento gnoseolgico, digamos, supremo da mente humana.

Ver a Deus uma ao, mas a ao pode convir a algum: a) quando o princpio dela est no operante (como se v nos agentes naturais); b) quando o princpio extrnseco (por ex., nos movimentos violentos e operaes milagrosas, realizadas por virtude divina). A viso de Deus no pode convir nossa mente, por essncia, segundo a). A exposio disso desenvolve-se em quatro pontos:

1. Conhecer naturalmente conhecer por espcies abstradas das imagens (que por sua vez so oriundas dos sentidos);

2. Nenhuma espcie desse tipo apta para representar a Deus, dado que a quididade das coisas sensveis, cujas similitudes so as mencionadas espcies, de outra razo que as essncias das substncias imateriais (criadas e a fortiori a essncia divina);

3. Se Deus deve ser visto por essncia, preciso que essa se torne forma inteligvel do intelecto que o v - hiptese s possvel caso o intelecto criado seja disposto pelo lume da glria - coisa apenas atingvel ao termo do caminho desta vida;

4. Deus, entretanto, pode milagrosamente fazer que a alma o veja por essncia nesta vida - o que poder ocorrer fora do modo como a alma conhece, valendo-se dos sentidos: ento a alma totalmente abstrada dos sentidos e dita "raptada" por fora superior.

Se no se pode conhecer a Deus "face a face", na presente vida, vendo-o por essncia, poder-se-ia, pelo menos afirmar que sua existncia por si mesma evidente mente humana, como os primeiros princpios da demonstrao ? Essa a questo do artigo XII. Trs famosas respostas foram dadas a ela e Santo Toms as traz ao exame. A primeira, segundo relata Maimnides (12), daqueles para os quais a existncia de Deus no evidente por si mesma, nem conhecida por demonstrao, mas s recebida pela f. J Avicena (13) sustenta que a existncia de Deus, no evidente por si mesma, deve ser sabida por demonstrao. Por fim, o parecer de Santo Anselmo, para o qual ningum pode pensar internamente que Deus no existe, embora possa proferir isso externamente, pensando internamente as palavras com as quais profere (14). Santo Toms exclui s a primeira como manifestamente falsa, pois os filsofos j o provaram por razes irrefragveis. As outras duas tm sua parte de verdade. De princpio, necessrio distinguir o evidente por si mesmo - per se notum - em si (secundum se) e relativamente a ns (quoad nos). A existncia de Deus evidente por si mesma, mas no relativamente a ns: ns necessitamos de demonstrao, tomada dos efeitos. Para esclarecer a relevncia dessa distino, de entender-se que o evidente por si mesmo supe que o predicado da razo do sujeito: esse no pode ser pensado sem que o predicado aparea como em si existindo. Conhecida a razo do sujeito, nela se inclui o predicado. Algumas coisas so evidentes por si mesmas, mas somente tal aparece aos sbios. Ora, o existir no se inclui na razo de nenhuma criatura: ele diverso de sua quididade (15). Em Deus, porm, a existncia includa na razo de sua quididade, como j o afirmaram Bocio, Dionsio e Avicena. Ora, a quididade de Deus no nos conhecida e, em conseqncia, tambm sua existncia no nos por si mesma evidente. Precisa de demonstrao. "Na ptria", contudo, a existncia nos ser por si mesma evidente "muito mais amplamente do que agora ser por si mesmo evidente que a afirmao e a negao no so simultaneamente verdadeiras" (Art. XII, RESPONDO).

Nossa Questo Discutida sobre a Mente se encerra, no artigo XIII, com a pergunta se, por razo natural, podemos conhecer a Trindade das Pessoas Divinas. Ao leitor no parecer estranha a questo, se se lembrar de que o ttulo geral do texto de Santo Toms remetia Trindade, cuja imagem, segundo Agostinho, a mente humana continha e em que se estruturava.

Santo Toms comea afirmando que a Trindade das Pessoas se pode conhecer: a) ou pelos atributos prprios, pelos quais se distinguem as pessoas: conhecidos esses, conhecer-se- a trindade das Pessoas em Deus; b) ou pelos atributos essenciais apropriados s Pessoas, como o poder ao Pai etc. Por esses atributos b), a Trindade no pode ser perfeitamente conhecida, porque mesmo que o intelecto prescinda da Trindade, esses permanecem em Deus, mas, suposta a Trindade, tais atributos so apropriados s Pessoas, em razo de alguma similitude com os atributos a). Os atributos b) podem ser conhecidos por conhecimento natural: os a), no. Por que? A ao do agente s pode chegar at onde se estendem seus instrumentos. Os instrumentos do intelecto agente so os primeiros princpios da demonstrao e at onde esses chegam, chega a razo natural. O conhecimento desses, porm, tem origem nos sentidos (16). Ora, dos sensveis no se chega aos atributos prprios das Pessoas, pois tudo que tem causalidade em Deus pertence essncia de Deus. Os atributos prprios so relaes nas quais as Pessoas se referem a elas mesmas, reciprocamente, no s criaturas. Assim, no podemos chegar por conhecimento natural aos atributos prprios das Pessoas.

Haveria muitas concluses a tirar da leitura desse texto de Santo Toms. No o caso de o fazer aqui, numa simples introduo. Entretanto, de refletir sobre a notvel flexibilidade em que santo Toms aborda a analogia de Agostinho, aproxima-a das categorias gnoseolgicas que colheu em Aristteles, e mantendo sua admirao pelo convite que Agostinho faz alma para o convvio com a Trindade, tece, nas estritas condies da lgica e da teologia do tempo, uma argumentao sbria, clara e lapidar, sobre os limites do conhecimento humano. A razo levada ao limiar da f e ali se expem as condies para o dilogo entre a filosofia - que algum, j na antigidade, j definira como a cincia natural das coisas humanas e divinas - e a teologia, como cincia, ou melhor sapincia, dos mistrios revelados de Deus.

N O T A S

(1) SPIAZZI, Raymundo. In Quaestiones Disputatae introductio generalis. In: S. THOMAS AQUINATIS. Quaestiones Disputatae , I: De Veritate. Cura et studio P. Fr. Raymundi Spiazzi, O. P. 8. ed. Roma: Marietti, 1949, p. XXVI.

(2) CAMELLO, Maurlio J. O . S. Toms de Aquino: De Magistro: Sobre o Mestre (Questes Discutidas sobre a Verdade, XI). Introduo, traduo e notas. Lorena: UNISAL - Centro Universitrio Salesiano de So Paulo, U. E. Lorena, 2000, p. 6-9.

(3) MONDIN, Battista. Antropologia Teolgica: histria, problemas, perspectivas. 3. ed. Trad. Maria Luiza Jardim de Amarante. So Paulo: Paulinas, 1986, p. 8.

(4) S. AGOSTINHO. Sobre a Trindade. 2. ed. Traduo e introduo por Augusto Belmonte; notas complementares de Nair de Assis Oliveira. So Paulo: Paulus, 1994: Livro IX, cap. II ao V, sobre a trilogia mente, conhecimento e amor; Livro X, cap. XI e XII: memria, inteligncia e vontade. Veja-se infra nota 1 ao Art. I, p.111.

(5) Veja-se PIRES, Celestino. Filosofia e filosofias na Idade Mdia. In: SOUZA, Jos Antnio de C. R. (org.). Pensamento Medieval: X Semana de Filosofia da Universidade de Braslia. So Paulo: Loyola, 1983, p. 11-33. ZILLES, Urbano. F e razo no pensamento medieval. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. - SCHUBACK, Mrcia S Cavalcante. Para ler os medievais: ensaio de hermenutica imaginativa. Petrpolis - RJ: Vozes, 2000. - BOEHNER, Philotheus, GILSON, tienne. Histria da Filosofia Crist. Trad. Raimundo Vier, O . F. M. Petrpolis - RJ: Vozes, 1985.

(6) Sobre Pedro Abelardo (1079-1142), veja-se: FRAILE, Guillermo. Historia de la Filosofia, II. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 1960, p. 418. - A obra Sic et Non, composta por volta de 1121, uma coleo de 158 sentenas aparentemente contraditrias dos Santos Padres, vrias vezes reformada e ampliada. Sobre sua importncia para o desenvolvimento do mtodo teolgico (escolstico), veja-se BOEHNER-GILSON, op. cit., p 309, que citam esta passagem do prlogo: "Cum in tanta verborum multitudine nonnulla adversa videantur, non est temere de eis iudicandum, per quos mundus ipse iudicandus est..." Percebe-se que o julgamento a respeito dessas antinomias reservado razo, que deve decidir-se por um ou por outro Santo Padre.

(7) S. TOMS DE AQUINO. Suma contra os Gentios, I, cap. 1. In: Seleo de Textos de textos. Trad. Luiz Joo Barana. So Paulo: Victor Civita, 1973, p. 63 (Col. Os Pensadores, v. VIII).

(8) Introduzindo de modo claro a distino entre conhecimento intuitivo e conhecimento abstrativo, Duns Scoto rompe, como explicam BOEHNER-GILSON (op. cit., p. 495), com a teoria aristotlica do conhecimento. O conhecimento intuitivo nos pe em contato imediato (sem imagens ou espcies) com a prpria coisa, em sua existncia singular. A singularidade ou haecceitas "uma determinao positiva que torna a coisa singular precisamente esta coisa singular; como determinao positiva ela contribui para a realidade, e, por conseguinte, para a cognoscibilidade" (ibidem, p. 496). Guilherme de Ockham no se distancia da posio de Scoto, antes baseia o conhecimento intelectual (intuitivo) no singular, base de toda cultura cientfica (ibidem, p. 537). Sobre a distino entre cincia do real e cincia racional em G. de Ockham, veja-se VIER, Raimundo. Estudos de Filosofia Medieval. Petrpolis -RJ: Vozes, So Paulo: Instituto Franciscano de Antropologia: Universidade So Francisco, 1977, p. 88-96.

(9) Explica J. Gredt: "Sendo animal, o homem tambm tem a vis aestimativa, pela qual percebe o nocivo e o conveniente natureza; tal potncia no homem tambm se chama cogitativa, pois, em razo da conjuno com o intelecto, emerge um modo mais alto de operar, na medida em que, por seu modo, sensivelmente, representa como conveniente natureza humana o que o intelecto conhece como bem, que, porm, no conveniente aos sentidos, e na medida em que, como o intelecto apreende o universal como pertencente ao indivduo concreto existindo na natureza das coisas, tambm o sentido (cogitativa) apreende este indivduo como existindo sob natureza universal".

GREDT, Josephus, O. S. B. Elementa Philosophiae Aristotelico-thomisticae. 10 . ed. Barcelona: Herder, 1953, v. I, p. 394.

(10) ARISTTELES, Segundos Analticos, II, cap. 19. Aristteles se refere apreenso das premissas primrias imediatas: no aceita que sejam inatas (seria a posio de Plato), pois acha "estranho" que tivssemos tal conhecimento e no nos advertssemos disso. So produzidas em ns, mais remotamente, a partir da experincia sensvel, por uma "organizao" do universal, de que a alma capaz. Cf. Metafsica I, c. 1. - Obras. Trad. Francisco de P. Samaranch. Madri: Aguilar, 1967, p. 412.

(11)ARISTTELES. Sobre a Alma, III, 5, 430 a 13; 8, 431 b 21: "he psych ta onta ps esti panta". (ARISTOTE. De lme. Texte tabli par J. Annone; traduction et notes de E. Barbotin. Paris: "Les Belles Lettres", 1966, p. 82 e 86).

(12) Quanto ao prprio Maimnides (1135-1204) sabe-se que sustentava ser a existncia de Deus apenas conhecida por demonstrao e para tanto utilizava-se das provas de Aristteles e de Avicena: pela necessidade de um primeiro motor; pela causalidade; pela distino entre o potencial e o atual; pela elevao do contingente ao necessrio. Em sntese: Deus s pode ser demonstrado pelo universo, "em seu conjunto e em seus detalhes". Veja-se FRAILE, op. cit., p. 592.

(13) Para Avicena (980-1037), no claro que tenha preferido as provas a posteriori ao argumento a priori , de carter platnico ("O ser necessrio o ser que seria contraditrio conceber como no existente"). S. Toms, porm, lhe atribui a prova da existncia de Deus partindo da contingncia dos seres do mundo - que reclama a existncia de um ser necessrio que os tenha feito passar da ordem possvel atual (terceira via). Veja-se FRAILE, op. cit., p. 632.

(14) S. Anselmo de Canturia (1033-1109) exps em seu Proslogion a famosa "ratio Anselmi", a que se tem aplicado, talvez de modo incorreto, a denominao de "argumento ontolgico". Veja-se: STREFLING, Srgio Ricardo. O argumento ontolgico de Santo Anselmo. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.

(15) Numa passagem da Suma de Teologia, S. Toms escreve:

"Eu digo, em conseqncia, que a proposio `Deus existe plenamente evidente em si mesma, porque o predicado aqui idntico ao sujeito, dado que Deus o seu prprio existir. Mas, como no sabemos o que Deus , esta proposio no evidente para ns. Devemos demonstr-la a partir daquilo que, sem ser o mais evidente em si, o mais evidente para ns, ou seja, as obras de Deus. Que Deus existe, sabemo-lo vagamente e de uma maneira confusa atravs da nossa prpria natureza, uma vez que Deus a beatitude do homem. Ora, o homem deseja naturalmente a beatitude, e aquilo que ele deseja de uma maneira natural, conhece-o tambm de uma maneira natural. Mas desse modo ele no sabe, para falar verdade, que Deus existe. Saber que algum vem, no conhecer Pedro, mesmo se Pedro aquele que vem. Quantos consideram que o bem perfeito do homem, ou seja, a beatitude, se encontra nas riquezas ou nos prazeres ou que sei eu " (I, q. 2, a . 1, ad 1).

Ampla exposio das cinco "vias" para demonstrar a existncia de Deus, feita por Fr. Santiago Ramirez, O. P., in: Suma Teologica de Santo Toms de Aquino. 2. ed. Madri: Biblioteca de Autores Cristianos, 1957, v. I, 94-112.

(16) ARISTTELES, Segundos Analticos, II, cap. 19 - veja-se supra nota 10.

T R A D U O

XA QUESTO

SOBRE A MENTE

EM QUE EST A IMAGEM

DA TRINDADEE em primeiro lugar se pergunta se a mente, enquanto nela est a imagem da Trindade, a essncia da alma, ou uma potncia dela.

Em segundo, se h memria na mente.

Em terceiro, se a memria se distingue da inteligncia, como potncia de potncia.

Em quarto, se a mente conhece as coisas materiais.

Em quinto, se nossa mente pode conhecer as coisas materiais singularmente tomadas.

Em sexto, se a mente humana recebe conhecimento dos sentidos.

Em stimo, se na mente est a imagem da Trindade, conforme conhece as coisas materiais, no apenas conforme conhece as eternas.

Em oitavo, se a mente conhece a si mesma por essncia, ou por outra espcie.

Em nono, se a alma conhece os hbitos nela existentes, por sua essncia, ou por outra similitude.

Em dcimo, se algum pode saber que tem a caridade.

Em dcimo primeiro, se alguma mente na presente existncia pode ver a Deus por essncia.

Em dcimo segundo, se a existncia de Deus por si mesma conhecida nossa mente, como os primeiros princpios da demonstrao, os quais no podem ser pensados como no sendo.

Em dcimo terceiro, se pela razo natural se pode conhecer a Trindade das Pessoas.

Art. 1

E por primeiro se pergunta se a mente,

enquanto nela est a imagem da Trindade,

a essncia da alma, ou uma potncia dela.

E PARECE QUE A PRPRIA ESSNCIA DA ALMA.

1. Agostinho, com efeito, diz no livro IX do Sobre a Trindade (1) que a mente e o esprito no se dizem relativamente, mas demonstram a essncia e s a essncia da alma. Logo a mente a prpria essncia da alma.

2. Ademais, os diversos gneros das potncias da alma no se acham a no ser na essncia. Ora, o apetitivo e o intelectivo so gneros diversos de potncias da alma; so postos, com efeito, no fim do livro I do Sobre a alma cinco gneros comunssimos das potncias da alma, a saber, o vegetativo, o sensitivo, o apetitivo, o motivo segundo o lugar, e o intelectivo (2). Como, pois, a mente compreende em si o apetitivo e o intelectivo, porque na mente posta por Agostinho (3) a inteligncia e a vontade, parece que no a mente uma potncia, mas a essncia mesma da alma.

3. Agostinho, no livro XI do Da Cidade de Deus (4) diz que "somos segundo a imagem de Deus, enquanto somos, conhecemos que somos, e amamos a ambas as coisas"; e no livro IX do Sobre a Trindade (5) distingue a imagem de Deus em ns segundo o conhecimento, a mente e o amor. Como, pois, amar ato de amor, e conhecer ato do conhecimento, parece que existir ato da mente. Ora, existir ato da essncia. Logo, a mente a essncia mesma da alma.

4. Alm disso, na mesma razo acha-se a mente no anjo e em ns. Ora, a prpria essncia do anjo sua mente. Donde Dionsio, no cap. VII do Sobre os Nomes Divinos (6) freqentemente nomeia os anjos "mentes divinas e intelectuais". Logo, tambm a nossa mente a prpria essncia da alma.

5. Agostinho diz no livro X do Sobre a Trindade (7) que "a memria, a inteligncia e a vontade so uma mente, uma essncia, uma vida". Logo, assim como a vida pertence essncia, assim a mente.

6. Alm disso, o acidente no pode ser princpio substancial de distino. Ora, o homem substancialmente se distingue dos animais enquanto tem a mente.

Logo, a mente no algum acidente. Ora, a potncia da alma propriedade dela, segundo Avicena: e assim do gnero do acidente. Logo, a mente no potncia, mas a prpria essncia da alma.

7. De uma potncia no saem diversos atos segundo a espcie. Ora, da mente saem atos diversos segundo a espcie, a saber, lembrar, entender e querer, como se evidencia por Agostinho (8). Logo, a mente no uma potncia da alma, mas a prpria essncia da alma.

8. Alm disso, uma potncia no sujeito de outra potncia. Ora, a mente sujeito da imagem, que consiste em trs potncias. Logo, a mente no potncia, mas a prpria essncia da alma.

9. Potncia alguma compreende em si vrias potncias. Ora, a mente compreende a inteligncia e a vontade. Logo, no potncia, mas essncia.

MAS CONTRARIAMENTE

1. A alma no tem outras partes seno suas potncias. Ora, a mente uma parte superior da alma, como diz Agostinho no livro Sobre a Trindade (9). Logo, a mente potncia da alma.

2. Alm disso, a essncia da alma comum a todas as potncias, porque todas nela radicam. Ora, a mente no comum a todas as potncias, pois diferencia-se do sentido. Logo, a mente no a prpria essncia da alma.

3. Na essncia da alma no est o receber o supremo e o nfimo. Ora, na mente est o supremo e o nfimo; divide, com efeito, Agostinho (10) a mente em razo superior e inferior. Logo, a mente potncia da alma, no essncia.

4. A essncia da alma o princpio do viver. Mas a mente no princpio do viver, mas do entender. Logo, a mente no a prpria essncia da alma, mas potncia dela.

5. Alm disso, o sujeito ou substrato no se predica do acidente. Ora, a mente predica-se da memria, inteligncia e vontade, que so na essncia da alma, como no sujeito. Logo, a mente no a essncia da alma.

6. Segundo Agostinho no livro II do Sobre a Trindade (11), a alma no em relao imagem toda segundo si mesma, mas segundo algo de si. Logo a mente no nomeia toda a alma, mas algo da alma.

7. O nome de mente parece ser tomado daquilo que lembra. Ora, a memria designa uma potncia da alma. Logo, tambm a mente, e no a essncia.

RESPONDO

preciso dizer que o nome de mente tomado do que deve ser medido. A realidade de qualquer gnero medida pelo que mnimo, e princpio primeiro no seu gnero, como se evidencia da Metafsica X (12); e por isso o nome de mente se diz na alma assim como o nome de intelecto. Somente o intelecto recebe o conhecimento sobre as coisas, medindo-as como em relao aos seus princpios. O intelecto, com efeito, quando se diz por referncia ao ato, designa potncia da alma: a virtude ou a potncia o meio entre a essncia e a operao, como claro em Dionsio, na Hierarquia Celeste, cap. XI (13).

Uma vez que as essncias das coisas nos so desconhecidas, suas virtudes ou potncias se nos fazem conhecidas pelos atos, usamos freqentemente de nomes de virtudes ou potncias para significar as essncias. Mas porque nada conhecido seno a partir daquilo que tem de prprio, convm que, quando uma essncia designada por sua potncia, o seja pela potncia que lhe prpria. Nas potncias acha-se comumente que aquilo que pode para mais, pode para menos, mas no vice-versa; assim como o que pode trazer cem libras, pode trazer vinte, como vem dito no livro I do Sobre o Cu e o Mundo. E assim, se alguma coisa deva, por sua potncia, ser designada, convm que seja designada pelo ltimo de sua potncia.

A alma, porm, que est nas plantas, tem o nfimo grau entre as potncias da alma; donde por ela determinada, quando dita nutritiva ou vegetal. J a alma do animal chega a grau mais alto, isto , ao sentido; donde a alma mesma se chame sensitiva, ou s vezes sentido. Mas a alma humana chega ao mais alto grau que existe entre as potncias da alma, e da denominada, donde se diz intelectiva e s vezes intelecto, e igualmente mente, isto , enquanto dela mesma nascida eflui tal potncia, porque seu prprio em comparao s outras almas (14).

claro, pois, que a mente em nossa alma diz aquilo que o mais alto na virtude dessa. Donde, como de acordo com o que mais alto em ns, acha-se a imagem divina em ns, no pertencer a imagem essncia da alma seno segundo a mente, enquanto nomeia sua potncia mais alta. E assim a mente, conforme nela est a imagem, nomeia a potncia da alma, e no a essncia; ou se nomeia a essncia, tal no se d seno enquanto dela flui tal potncia.

PARA 1 - No se diz que mente significa a essncia na medida em que a essncia se distingue da potncia, mas na medida que a essncia absoluta se distingue do que dito relativamente. E assim a mente se distingue do conhecimento de si, enquanto pelo conhecimento a mente se refere a si mesma; a prpria mente se diz de modo absoluto. Ou pode dizer-se que a mente entendida por Agostinho enquanto significa a essncia da alma simultaneamente com tal potncia.

PARA 2 - Os gneros das potncias da alma se distinguem duplamente: de um modo, da parte do objeto; de outro, da parte do sujeito, ou da parte do modo de agir, que vem ao mesmo (15).

Se, pois, se distinguem da parte do objeto, assim se encontram cinco gneros supra numerados das potncias. Se, porm, se distinguem da parte do sujeito ou do modo de agir, ento so trs os gneros das potncias da alma, a saber: vegetativo, sensitivo e intelectivo. A operao da alma, com efeito, de trs maneiras pode relacionar-se com a matria.

De uma maneira, exercendo-se por modo de ao natural; e de tais aes o princpio a potncia nutritiva, cujos atos se exercem em qualidades ativas e passivas, assim como outras aes materiais.

De outra maneira, no atingindo a operao da alma a prpria matria, mas s as condies da matria, como nos atos da potncia sensitiva: no sentido, com efeito, recebe-se a espcie sem a matria, mas com as condies da matria.

De uma terceira maneira, excedendo a operao da alma tanto a matria quanto as condies da matria; e assim a parte intelectiva da alma.

Segundo, pois, estas diversas participaes das potncias da alma, acontece que outras duas potncias da alma comparadas entre si se reduzem ao mesmo ou a diverso gnero. Se, com efeito, o apetite sensvel e intelectual, que a vontade, considerado segundo a relao ao objeto, assim se reduzem a um s gnero, porque de um e de outro o objeto o bem. Se, entretanto, se considera na relao ao modo de agir, reduzem-se a gneros diversos; porque o apetite inferior se reduz ao gnero do sensitivo, e o apetite superior ao gnero do intelectivo.

Assim como o sentido no apreende seu objeto sem as condies materiais, a saber, conforme aqui e agora, assim o apetite sensvel levado a seu objeto, isto , ao bem particular. J o apetite superior tende para seu objeto pelo modo como o intelecto apreende; e assim quanto ao modo de agir, a vontade se reduz ao gnero do intelectivo. O modo da ao, com efeito, provm da disposio do agente: pois, quanto mais perfeito for o agente, tanto mais perfeita sua ao.

E assim, se se consideram dessa forma as potncias segundo saem da essncia da alma, que o sujeito delas, a vontade se acha na mesma coordenao com o intelecto; no, porm, o apetite inferior, que se distingue em irascvel e concupiscvel. E assim a mente pode compreender a vontade e o intelecto, sem aquilo de ser essncia da alma enquanto nomeia algum gnero de potncias da alma, de modo que sob mente se entendem compreender todas aquelas potncias que em seus atos se afastam totalmente da matria e das condies da matria.

PARA 3 - A imagem da Trindade no homem assinalada de muitos modos por Agostinho e outros santos, nem necessrio que uma daquelas assinalaes a outra corresponda ; assim fica claro que Agostinho assinala a imagem da Trindade segundo a mente, o conhecimento e o amor, e depois, segundo a memria, a inteligncia e a vontade. E embora a vontade e o amor correspondam entre si, o conhecimento e a inteligncia, no de necessidade, porm, que a mente corresponda memria, como a mente contm todas as trs que se dizem na outra assinalao. Semelhantemente, tambm a distino de Agostinho tocada pela objeo, diferente das duas precolocadas. Donde no necessrio que, se amar corresponde ao amor, e conhecer ao conhecimento, existir corresponda mente como o ato prprio dela, enquanto mente.

PARA 4 - Os anjos se dizem mentes, no porque a mesma mente ou intelecto do anjo seja essncia dele, conforme intelecto e mente nomeiam a potncia, mas porque nada tm das potncias da alma a no ser aquilo se compreende sob a mente: donde totalmente so mente. nossa alma so unidas outras potncias que, sob a mente, no so compreendidas, pelo fato de ser ato do corpo: a saber, as potncias sensitivas e nutritivas; donde no pode, desse modo, ser nossa alma dita mente, como o anjo.

PARA 5 - Viver acrescenta ao existir, e entender ao viver. Para que a imagem de Deus se ache em algo, preciso que chegue ao ltimo gnero de perfeio ao qual pode pretender a criatura; se tem existir apenas, como as pedras, ou o existir e viver, como as plantas e os animais, no se salva nisso a razo de imagem; mas necessrio que, para a perfeita razo de imagem, a criatura exista, viva e entenda. Nisso, com efeito, perfeitissimamente segundo o gnero conforma-se aos atributos essenciais.

E assim, porque na assinalao da imagem, a mente tem o lugar da essncia divina, estas trs, que so a memria, a inteligncia e a vontade, tm o lugar das trs Pessoas; assim Agostinho assinala mente aquelas coisas que se requerem para a imagem na criatura, quando diz que "a memria, a inteligncia e a vontade so uma vida, uma mente, uma essncia".

Nem necessrio que se diga mente e vida pela mesma razo que essncia; pois no o mesmo em ns existir, viver e entender, como em Deus; essas trs coisas, porm, so ditas uma essncia, enquanto procedem de uma essncia da mente; uma vida, enquanto pertencem a um gnero de vida; uma mente, enquanto se compreendem sob uma mente, como partes sob o todo, como a viso e a audio se compreendem sob a parte da alma sensitiva.

PARA 6 - Segundo o Filsofo no livro VIII da Metafsica, dado que as diferenas substanciais das coisas nos so desconhecidas, usam-se, s vezes, em lugar delas as diferenas que definem no plano dos acidentes, na medida em que as mesmas designam ou tornam conhecida a essncia, como os efeitos prprios fazem conhecer a causa: donde o sensvel, enquanto a diferena constitutiva do animal, no tomado do sentido enquanto nomeia a potncia, mas enquanto nomeia a prpria essncia da alma, da qual flui tal potncia. E semelhantemente se d com a razo ou daquilo que possui a mente.

PARA 7 - Como a parte da alma sensitiva no se entende ser uma potncia alm de todas as potncias particulares que se compreendem sob a mesma, mas como um todo potencial compreendendo todas aquelas potncias como partes, assim tambm a mente no uma potncia alm da memria, da inteligncia e da vontade; mas um todo potencial compreendendo essas trs, como vemos que, sob a potncia de fazer uma casa se compreende a potncia de lavrar as pedras e erguer as paredes; e assim do resto.

PARA 8 - A mente no se relaciona inteligncia e vontade como sujeito, porm mais como o todo s partes, enquanto a mente nomeia a prpria potncia. Se se toma, porm, a mente pela essncia da alma, na medida em que dela nascida tal potncia flui, ento nomear o sujeito das potncias (16).

PARA 9 - Uma potncia particular no compreende, sob ela, vrias, mas nada probe que sob uma potncia geral sejam compreendidas vrias como partes, como sob uma parte do corpo se compreendem vrias partes orgnicas, como os dedos sob a mo.

Art. 2

Em segundo lugar, se pergunta se na mente existe memria.

E PARECE QUE NO

1 - Porque, segundo Agostinho no livro XII do Da Trindade, o que comum a ns e aos animais no pertence mente. Ora, a memria comum a ns e aos animais, como se evidencia por Agostinho, no livro X das Confisses (1). Logo etc.

2 - Ademais, o Filsofo no livro Sobre a Memria e a Reminiscncia (2) diz que a memria no do intelectivo, mas antes do sensitivo. Como a mente o mesmo que o intelectivo, como fica evidente do acima dito, parece que a memria no est na mente.

3 - O intelecto e todas aquelas coisas que ao intelecto pertencem abstraem do aqui e agora; ora, a memria no abstrai, pois concerne a determinado tempo, isto , ao passado; a memria, com efeito, de coisas pretritas, como diz Tlio (3). Logo, etc.

4 - Alm disso, como na memria se conservam algumas coisas que no se apreendem em ato, em qualquer lugar em que se pe a memria, necessrio que a seja diferente apreender e reter. No intelecto, porm, no diferem, mas antes no sentido. No sentido podem diferir, porque o sentido usa de rgo corporal; nem tudo, porm, que se tem no corpo, apreendido. Ora, o intelecto no usa de rgo corporal; donde nada nele retido a no ser inteligivelmente; e assim necessrio que em ato seja entendido. Logo, a memria no est no intelecto ou na mente.

5 - A alma no se lembra antes de reter algo junto a si. Ora, antes de receber algumas espcies dos sentidos, pelas quais tem origem nosso conhecimento, as quais pode reter, est em relao com a imagem. Como, pois, a memria parte da imagem, no parece que possa existir na mente.

6 - Ademais, a mente, na medida em que segundo a imagem de Deus, dirige-se para Deus. Ora, a memria no se dirige para Deus: , com efeito, daquelas coisas que caem sob o tempo, e Deus totalmente sobre o tempo. Logo, etc.

7 - Alm disso, se a memria fosse parte da mente, as espcies inteligveis na prpria mente se conservariam como se conservam na mente do anjo. Ora, o anjo pode entender convertendo-se para as espcies que tem em seu poder. Logo tambm a mente, convertendo-se s mesmas espcies retidas, tambm assim pode entender, sem que se converta s imagens; o que manifestamente aparece ser falso. Tanto quanto algum, com efeito, tem a cincia em ato, danificado, porm, o rgo da potncia imaginativa ou memorativa , no pode passar a ato, o que no se daria, se a mente em ato pudesse entender, no se convertendo s potncias que usam de rgos. Donde a memria no existe na mente.

MAS CONTRARIAMENTE

1 - Diz o Filsofo no livro III do Sobre a Alma (4) que a alma o lugar das espcies, no toda ela, mas a intelectiva. Cabe ao lugar conservar aquelas coisas que nele se retm. Como conservar as espcies pertence memria, parece que no intelecto existe a memria.

2 - Alm disso, aquilo que igualmente se tem a todo o tempo, no concerne um tempo particular. Ora, a memria, mesmo tomada em sentido prprio, igualmente se tem a todo o tempo, como diz Agostinho no livro XII do Sobre a Trindade, e prova por ditos de Virglio (5), o qual usou do nome prprio de memria e esquecimento. Logo, a memria no concerne um tempo particular, mas todo o tempo. Logo, pertence ao intelecto.

3 - A memria, em seu sentido prprio, de coisas pretritas. Ora, o intelecto no s das presentes, mas das futuras e das pretritas. O intelecto, com efeito, forma a composio, segundo todo o tempo entendendo que o homem foi, ser e , como evidente no livro III do Sobre a Alma (6). Logo, a memria, falando propriamente, pode pertencer ao intelecto.

4 - Ademais, assim como a memria das coisas pretritas, a providncia dos futuros, segundo Tlio. Ora, a providncia est na parte intelectiva, no sentido prprio. Logo, pela mesma razo a memria.

RESPONDO

Deve dizer-se que a memria, segundo o uso comum dos falantes, toma-se por conhecimento das coisas pretritas.

Conhecer o pretrito como pretrito, com efeito, pertence quele a quem cabe conhecer o presente como presente, ou o agora como agora: isto, com efeito, do sentido. Assim como o intelecto no conhece o singular enquanto isto, mas segundo uma razo comum, como enquanto homem ou branco, ou tambm o particular, no enquanto este homem, ou tal particular, assim tambm o intelecto conhece o presente e o pretrito no enquanto agora e tal pretrito.

Donde, como a memria, segundo sua acepo prpria, diz respeito quilo que pretrito com relao a este agora, consta que a memria, propriamente falando, no est na parte intelectiva, mas s na sensitiva, como prova o Filsofo (7).

Mas porque o intelecto no apenas entende o inteligvel, mas tambm entende que entende tal inteligvel, assim o nome memria pode ser estendido ao conhecimento, no qual, embora no se conhea o objeto como em preterio pelo modo predito, conhece-se, porm, o objeto do qual tambm por primeiro teve-se o conhecimento, enquanto algum sabe que a teve antes; e assim todo conhecimento, no recebido de novo, pode ser dito memria.

Ora, isso acontece de um modo, quando a considerao segundo o conhecimento havido no interrompida, mas contnua; de outro modo, quando interrompida, e assim tem mais de razo de pretrito, donde tambm mais propriamente atinge a razo de memria; como quando dizemos que temos a memria de uma coisa que antes habitualmente conhecamos, no, porm, em ato. E assim a memria est na parte intelectiva de nossa alma, e deste modo parece que Agostinho entende a memria (8), pondo-a como parte da imagem: quer, com efeito, que tudo o que habitualmente se tem na memria, sem chegar a ato, pertena memria.

Como isso pode dar-se explicado por vrios de modo diverso.

A) Avicena (9) pe que isso no se d (que alma habitualmente tenha conhecimento de uma coisa que em ato no considera) pelo fato de que algumas espcies se conservam na parte intelectiva, mas quer que as espcies em ato no consideradas no podem ser conservadas a no ser na parte sensitiva, ou quanto imaginao, que o tesouro das formas aceitas pelo sentido; ou quanto memria, quanto s inteleces particulares no aceitas pelos sentidos. No intelecto, porm, no permanece a espcie, seno quando considerada em ato. Depois da considerao, porm, deixa de ser nesse ato, donde, quando de novo quer considerar algo, preciso que as espcies de novo fluam no intelecto possvel a partir do intelecto agente.

No se segue, porm, segundo o mesmo, que se algum novamente deve considerar aquelas coisas que antes soube, seja necessrio que de novo aprenda e ache como de princpio, porque foi deixada nele uma habilidade pela qual mais facilmente se converte ao intelecto agente, de modo que receba as espcies dele efluentes; e essa habilidade o hbito da cincia em ns. E segundo esta opinio a memria no seria na mente segundo a reteno de algumas espcies, mas segundo a habilidade para receber de novo.

Tal opinio, porm, no parece racional.

Em primeiro lugar, porque, como o intelecto possvel mais estvel de natureza que o sentido, preciso que a espcie nele recebida seja mais estavelmente recebida; donde as espcies podem ser mais conservadas nele que na parte sensitiva. Em segundo lugar, a inteligncia agente se tem por igual ao comunicar as espcies convenientes a todas as cincias. Donde se no intelecto possvel no se conservassem algumas espcies, mas s a habilidade de converter-se ao intelecto agente, por igual permaneceria o homem hbil para qualquer inteligvel e, assim, pelo fato de que o homem aprendesse uma cincia, no saberia mais essa que as outras. Ademais, isso parece ser expressamente contrrio sentena do Filsofo no livro III do Sobre a Alma (10), o qual louva os antigos porque colocaram a alma como o lugar das espcies quanto parte intelectiva.

B) E assim outros dizem que as espcies inteligveis permanecem no intelecto possvel aps a considerao atual, e a ordenao delas o hbito da cincia; e que essa fora pela qual nossa mente pode reter as espcies inteligveis aps a considerao atual, diz-se memria: e isso aproxima-se mais da significao prpria de memria.

PARA 1 - preciso dizer que a memria, que comum a ns e aos animais, aquela em que se conservam as intenes particulares; mas essa no est na mente, mas s aquela na qual se conservam as espcies inteligveis.

PARA 2 - O Filsofo fala da memria que do pretrito, enquanto relacionado a este agora, enquanto este; e assim no est na mente.

PARA 3 - Argumenta-se pelo mesmo.

PARA 4 - No intelecto possvel difere apreender em ato e reter, no pelo fato de que a espcie seja nele de algum modo corporalmente, mas s inteligivelmente. No se segue, porm, que sempre se entenda segundo aquela espcie, mas s quando o intelecto possvel se faz perfeitamente em ato com relao quela espcie. Quando, porm, imperfeitamente em seu ato, de algum modo est no meio entre a potncia e o puro ato. E isto conhecer habitualmente e desse modo de conhecimento reduzido a ato perfeito pela vontade, a qual, segundo Anselmo, o motor de todas as foras.

PARA 5 - A mente em relao imagem, principalmente, na medida em que se direciona para Deus e para si mesma. Ela , com efeito, a si presente, e igualmente Deus (nela est presente), antes que algumas espcies sejam recebidas pelos sentidos; e no se diz que a mente tem a fora memorativa pelo fato de ter algo em ato, mas pelo fato de que pode ter.

PARA 6 - Evidencia-se a resposta pelo que foi dito.

PARA 7 - Nenhuma potncia pode conhecer algo, sem converter-se a seu objeto, como a vista nada conhece sem se converter cor. Donde, como as imagens se tm em relao ao intelecto possvel como os sensveis ao sentido, como fica claro pelo Filsofo no livro III do Sobre a Alma (11), sempre que tenha junto a si uma espcie inteligvel, nunca, porm, considera algo em ato segundo tal espcie, a no ser que se converta s imagens. E assim, como nosso intelecto, conforme a presente existncia, necessita de imagens para considerar em ato, antes de receber o hbito, assim tambm depois que recebe. Parece que o contrrio se passa com os anjos, cujo intelecto no tem por objeto das imagens.

PARA 1 - daquelas coisas que se objetam no CONTRARIAMENTE - preciso dizer que, em razo daquela autoridade, no se pode sustentar que no intelecto esteja a memria, seno segundo o modo que foi dito; no, porm, de modo prprio.

PARA 2 - A palavra de Agostinho deve ser entendida no sentido de que a memria pode ser de objetos presentes; jamais pode, porm, ser dita memria a no ser que se considere algo pretrito, ao menos da parte do prprio conhecimento. E de acordo com isso, tambm se diz que algum se esquece, ou mesmo se lembra, enquanto de si mesmo, que presente a si, no conserva o conhecimento pretrito.

PARA 3 - Enquanto o intelecto conhece as diferenas dos tempos, segundo as razes comuns, pode formar as composies, segundo qualquer diferena de tempo.

PARA 4 - A providncia no est no intelecto, a no ser segundo as razes gerais de futuro; mas s coisas particulares se aplica mediante a razo particular, a qual convm situar-se como mdia entre a razo universal que move e o movido que se consegue nas coisas particulares, como se evidencia pelo Filsofo no livro III do Sobre a Alma (12).

Art. 3

Em terceiro lugar se pergunta se a memria se distingue

da inteligncia, como potncia de potncia

E PARECE QUE NO.

1. De diversas potncias so diversos os atos. Ora, do intelecto possvel e da memria, enquanto so na mente, sustenta-se ser o mesmo ato, que reter a espcie; isto, com efeito, o que Agostinho atribui memria, o Filsofo ao intelecto possvel. Logo, a memria no se distingue da inteligncia, como potncia de potncia.

2. Alm disso, receber algo no implicando alguma diferena de tempo, prprio do intelecto, que abstrai do aqui e agora. Ora, a memria no implica alguma diferena de tempo, porque, segundo Agostinho, no Sobre a Trindade XIV (1), a memria comumente das coisas presentes, pretritas e futuras. Logo, a memria no se distingue da inteligncia.

3. A inteligncia se toma em duplo sentido, segundo Agostinho no Sobre a Trindade XIV (2). Em um, enquanto dizemos entender aquilo que no consideramos em ato; em outro, enquanto dizemos entender aquilo que em ato pensamos. Ora, a inteligncia, segundo a qual dizemos entender apenas aquilo que pensamos em ato, entender em ato; o que no potncia, mas operao de uma potncia; e assim no se distingue da memria, como potncia de potncia. Segundo, porm, entendemos aquelas coisas que em ato consideramos, de modo algum se distingue da memria, mas memria pertence; o que se evidencia por Agostinho no Sobre a Trindade XIV, onde assim diz: "Se nos referimos memria interior da mente, na qual ela se lembra de si, e inteligncia interior, na qual se entende, e vontade interior na qual se quer ; a esses trs existem sempre ao mesmo tempo, quer sejam pensadas, quer no sejam; parece que s memria pertence a imagem da Trindade" (3). Logo, a inteligncia, de nenhum modo, se distingue da memria, como potncia de potncia.

4. Se se diz que a inteligncia na alma uma potncia segundo a qual a alma tem o poder de pensar em ato, e, outra (potncia) segundo a qual pensa em ato, assim tambm a inteligncia, na qual dizemos entender no pensando, distingue-se da memria, como potncia de potncia. Contrariamente: da mesma potncia ter o hbito, e usar do hbito. Ora, entender no pensando entender em hbito; entender, porm, pensando, ter o hbito. Logo, mesma potncia pertence entender no pensando, e entender pensando: e assim por isso no se diversifica a inteligncia da memria, como potncia de potncia.

5. Ademais, na parte intelectiva da alma no se acha outra potncia seno a cognoscitiva e a motiva ou afetiva. Ora, a vontade afetiva ou motiva; a inteligncia, porm, cognoscitiva. Logo, a memria no outra potncia diversa da inteligncia.

MAS CONTRARIAMENTE

1. aquilo que Agostinho diz no Sobre a Trindade XIV: a alma segundo a imagem de Deus na medida em que pode usar da razo e do intelecto para entender e compreender Deus (4). Ora, a alma pode compreender segundo potncia