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Resumo As condições da reprodução da sociedade variam no tempo e no espaço, neste sentido, a dinâmica urbana deve ser analisada enquanto momento histórico determinado, no movimento do processo de reprodução continuada da metrópole. As transformações econômicas que ocorrem hoje nas metrópoles, com o deslocamento dos estabelecimentos industriais redefinem as relações centro-perifieria, aprofundam o processo de segregação espacial, na metrópole e revelam profundas transformações na vida cotidiana. Palavras-chave: metrópole; urbanização; espaço; metropolização,vida cotidiana Introdução Os problemas atuais postos pela urbanização ocorrem no âmbito do processo de reprodução da sociedade. O processo de urbanização, hoje, transforma o conteúdo dos espaços, revelando-se numa prática sócio espacial modificada a partir da imposição de uma nova relação espaço-temporal, que não só redefine a hierarquia dos lugares em função das exigências em matéria de comunicação, de deslocamentos os mais variados e complexos, como também o quadro em que se realiza a vida cotidiana através das modificações nos usos dos lugares. A condição da reprodução varia no tempo, neste sentido, a dinâmica urbana deve ser analisada enquanto momento histórico determinado, no movimento do processo de reprodução continuada da metrópole. Esta revela o fato de que a constituição da sociedade urbana se realiza e se concebe ao longo de um processo no curso no qual explodem as formas urbanas, como decorrência do fenômeno de implosão-explosão da cidade, transformando usos e funções, trazendo, como conseqüência, a destruição dos referenciais urbanos e com elas, das antigas relações sociais. São Paulo: Dinâmica urbana e metropolização Ana Fani Alessandri Carlos * plants, are working towards the redefinition of center-periphery relations and the deepening of the process of spatial segregation. They are also determining profound changes in everyday life. Keywords: metropolis, urbanization, space, metropolitanization, everyday life. Conditions for societal reproduction vary in time and space. This is why urban dynamics ought to be analyzed in a historical context and be related to the continuous process of metropolitan reproduction. The economic changes now being experienced by São Paulo, among them the spatial dislocation of industrial * Professora-Associada do Departamento de Geografia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. São Paulo: urban dynamics and metropolitanization

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Resumo

As condições da reprodução da sociedade variam no tempo e no espaço, neste sentido,a dinâmica urbana deve ser analisada enquanto momento histórico determinado, no movimentodo processo de reprodução continuada da metrópole. As transformações econômicas que ocorremhoje nas metrópoles, com o deslocamento dos estabelecimentos industriais redefinem as relaçõescentro-perifieria, aprofundam o processo de segregação espacial, na metrópole e revelamprofundas transformações na vida cotidiana.Palavras-chave: metrópole; urbanização; espaço; metropolização,vida cotidiana

Introdução

Os problemas atuais postos pela urbanização ocorrem no âmbito do processo dereprodução da sociedade. O processo de urbanização, hoje, transforma o conteúdo dos espaços,revelando-se numa prática sócio espacial modificada a partir da imposição de uma nova relaçãoespaço-temporal, que não só redefine a hierarquia dos lugares em função das exigências emmatéria de comunicação, de deslocamentos os mais variados e complexos, como também oquadro em que se realiza a vida cotidiana através das modificações nos usos dos lugares.

A condição da reprodução varia no tempo, neste sentido, a dinâmica urbana deve seranalisada enquanto momento histórico determinado, no movimento do processo de reproduçãocontinuada da metrópole. Esta revela o fato de que a constituição da sociedade urbana se realizae se concebe ao longo de um processo no curso no qual explodem as formas urbanas, comodecorrência do fenômeno de implosão-explosão da cidade, transformando usos e funções, trazendo,como conseqüência, a destruição dos referenciais urbanos e com elas, das antigas relações sociais.

São Paulo: Dinâmica urbana e metropolizaçãoAna Fani Alessandri Carlos *

plants, are working towards theredefinition of center-periphery relationsand the deepening of the process of spatialsegregation. They are also determiningprofound changes in everyday life.

Keywords: metropolis, urbanization,space, metropolitanization, everyday life.

Conditions for societalreproduction vary in time and space. Thisis why urban dynamics ought to be analyzedin a historical context and be related to thecontinuous process of metropolitanreproduction. The economic changes nowbeing experienced by São Paulo, amongthem the spatial dislocation of industrial

* Professora-Associada do Departamento de Geografia. Faculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas. Universidade de São Paulo.

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O termo “metropolização” desvela o processo de constituição da metrópole, hoje, umprocesso que contempla a extensão da constituição da sociedade urbana traduzida enquantoprática sócio-espacial. Nesta dimensão a reprodução ganha um sentido prático – revela-se noplano do vivido e do lugar, ao mesmo tempo em que o modo como ocorre a articulação entre osplano do mundial e do local, pela mediação da metrópole. Esse conjunto de transformações revelaas mudanças do processo de reprodução social em sua totalidade.

Assim, a dinâmica urbana indica o processo de reprodução, tanto no plano espacial, deum lado, sua dimensão econômica e política-estratégica, e de outro, o plano da vida. A práticasócio-espacial se revela nos modos de uso, pelo conteúdo das relações sociais aí contidas apontando,hoje, o empobrecimento destas relações.

A metrópole aparece, hoje, como o espaço da desordem e do caos, da barbárie; contribuipara esta impressão, o estado de alerta em que vivemos num cotidiano invadido por todo tipo deviolência: roubos, seqüestros, tráfico de drogas que dominam e comandam áreas inteiras dametrópole, a normatização dos espaços públicos, as renovações urbanas que destroem osreferenciais da vida, etc.. A vida cotidiana mostra como as pessoas vivem, revela a prática social,e como escreve Henri Lefebvre, levanta um ato de acusação contra as estratégias que levam a esteresultado confrontando o real e o possível. Estas situações apontam, uma crise – decorrente domodo como a reprodução da metrópole se realiza sob a égide do capitalismo. A dinâmicametropolitana, revela este movimento.

Partindo do pressuposto de que as relações sociais se realizam, concretamente, enquantorelações espaciais, a dinâmica do espaço urbano deve ser entendida na dinâmica do processo dereprodução social – a metrópole como realidade e devir da sociedade. Portanto o que deve seranalisado, é o modo como a reprodução espacial se realiza, hoje, na metrópole, enquanto reproduçãoda sociedade.

O processo de acumulação se generaliza no espaço ao mesmo tempo tornado condiçãoe produto deste processo. Neste contexto, o conteúdo da urbanização apareceria como momentodeterminado da reprodução em função das novas possibilidades/necessidades de realizar aacumulação. O espaço é também condição da produção e, do ponto de vista do capital, ganha umadimensão instrumental, do ponto de vista do estado - que regulariza os fluxos e controla asociedade. O espaço – aparece como instrumento de dominação estruturando a reprodução dasrelações sociais de produção.

Neste momento, o aprofundamento da divisão social e espacial do trabalho se baseianuma nova racionalidade apoiada no emprego do saber e da técnica aplicada a produção e a gestãoe da supremacia de um poder político que tende a homogeneizar o espaço através do controle e davigilância. Nesta direção as mudanças no plano da sociedade se revelam enquanto mudançasespaciais, isto é, transformações na prática sócio-espacial. As mudanças podem ser visíveis noplano da produção econômica – a transformação das atividades econômicas, na metrópole, apontampara a diminuição da importância do setor industrial tanto na produção, quanto no emprego –pois sua realização produz um novo espaço, como condição de sua efetivação.

A nova divisão espacial do trabalho hierarquizada para incorporar a nova tecnologianecessita hoje, de uma outra infra-estrutura, um sistema educacional, laboratórios, centros de pesquisa,redes eficientes de comunicação e capacidade de absorver novas formas de produção, além de

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recursos humanos, o que está na base do movimento de deslocamento dos estabelecimentosindustriais, da capital do estado para o interior do estado de São Paulo (Campinas, porexemplo), estendendo, no espaço a concentração das unidades produtivas em áreas contíguasda metrópole, envolvendo redes fortemente articuladas, a partir de estratégias definidaspelo estado com políticas de subvenção e de investimentos. Este procedimento, tornainquestionável a concentração de novas tecnologias, diferenciando os lugares no espaçoregional e nacional em função de sua capacidade de concentrar infra-estrutura, necessária aocrescimento da produção que, no momento atual.

As condições de reprodução variam no tempo em função do estágio do desenvolvimentotécnico e científico aplicado à produção, o que produz mudanças espaciais dos valores de cadalugar na reprodução geral da sociedade - é quando se articula os fixos, no espaço e a rede de fluxosexigindo uma nova configuração. Por sua vez os mecanismos espaciais repousam na justaposiçãoentre o local, o regional e o nacional e, nesse sentido, o espaço inteiro torna-se o lugar dareprodução, que se realiza tendo como pano de fundo o mundial - o local se torna global e o globalse localiza no lugar, enquanto condição de sua realização.

No caso da metrópole constatam-se profundas transformações no processo produtivodecorrente de transformações no setor industrial, a reprodução do ciclo do capital exige, em cadamomento histórico determinadas condições especiais para sua realização; a dinâmica da economiametropolitana, antes baseada preferencialmente, no setor produtivo industrial, vem se apoiando,agora, também num amplo crescimento do setor terciário moderno - serviços, comércio, setorfinanceiro - como condição de desenvolvimento, numa economia globalizada. Tal transformaçãorequer a “produção de um outro espaço”, como condição da acumulação, que se realiza a partir daexpansão da área central da metrópole (até então lugar precípuo de realização desta atividade) emdireção a região sudoeste da metrópole. Isto porque se de um lado as áreas tradicionais seencontram densamente ocupadas e o sistema viário congestionado, de outro os novos padrões decompetitividade da economia, apoiada num profundo desenvolvimento técnico vão impor novosparâmetros para o desenvolvimento desta atividade (inclusive construtivos). A superação destasituação requer a construção de um “novo espaço”, como área de expansão, porque a centralidadeé fundamental neste tipo de atividade, não podendo se instalar em qualquer lugar do espaçometropolitano. Entretanto, na metrópole capitalista, densamente edificada, a expansão desta áreanão se fará sem problemas o que vai requerer a mediação do estado.

Em primeiro lugar porque a ocupação do espaço se realizou sob a égide da propriedadeprivada do solo urbano; onde o espaço fragmentado, é vendido em pedaços tornando-seintercambiável a partir de operações que se realizam através e no mercado. Tendêncialmenteproduzido enquanto mercadoria, o espaço entra no circuito da troca, generalizando-se em suadimensão de mercadoria. Por outro lado o espaço se reproduz enquanto condição da produçãoatraindo capitais que migram de um setor da economia para outro de modo a viabilizar a reprodução.Nesse contexto as possibilidades de ocupar o espaço se redefinem constantemente em função dacontradição crescente entre a abundância e escassez das áreas na metrópole, o que explica aemergência de uma nova lógica associada a uma nova forma de dominação do espaço, a partir dainterferência do Estado.

Portanto, no momento atual do processo histórico, o processo de reprodução espacialcom a generalização da urbanização produz uma nova contradição: aquela que se refere à diferença

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entre a antiga possibilidade de ocupar áreas como lugares de expansão da mancha urbana e suapresente impossibilidade diante da escassez de áreas passíveis de serem “incorporadas” pelosetor imobiliário. Neste contexto, a generalização da propriedade privada do solo urbano –condição da reprodução da cidade, sob a égide do capitalismo, passa a ser um limite à expansãoeconômica capitalista. Isto é, diante das necessidades imposta pela reprodução do capital, oespaço, produzido socialmente, e tornado mercadoria, no processo histórico, criam limites à suaprópria reprodução entrando em contradição com as necessidades do desenvolvimento do própriocapital. O que significa dizer que a “raridade“ é ao mesmo tempo, produto do próprio processode produção do espaço e, sua limitação. Assim o movimento da realidade revela profundosconflitos - o capitalismo ao se desenvolver produziu novas contradições.

A transformação econômica que constatamos em São Paulo, com a migração dosestabelecimentos industriais, não é específico desta metrópole, trata-se de uma tendênciaque ocorre em todo o mundo; sua especificidade se refere ao modo como essa mudançavai se realizar.

A raridade dos lugares

A escassez dos espaços disponíveis na metrópole paulista obriga as empresas, volta-das ao setor de serviços modernos e o setor financeiro, a optarem por novas localizações dentroda metrópole gerando um movimento espacial onde o processo de reprodução espacial geranovas centralidades. Esta área de expansão da atividade de serviços modernos vai se constitu-indo num pólo de atração de investimentos imobiliários, capaz de sediar as novas funções quese desenvolvem, hoje, onde o tratamento arquitetônico dos edifícios atrai uma ocupação dife-renciada de alto padrão como decorrência da aplicação de novas tecnologias (gerenciamento emanutenção dos edifícios -terciarizado- passa a ser um dado importante). Na esteira dos gran-des investimentos públicos dirigidos para esta área da cidade, ganha forma os investimentosprivados, muitos direcionados para os mega projetos imobiliários, que chegam a combinar emum só empreendimento edifícios de escritório de alto padrão, hotel e shopping centers.

A nova atividade econômica que se desenvolve na metrópole alia-se as necessidadesda reprodução dos investimentos, é a idéia de que se produz uma mercadoria para odesenvolvimento de uma atividade econômica ao mesmo tempo para o mercado financeiroenquanto investimento, desenvolvendo o mercado de locação de escritórios através dodesenvolvimento da indústria da construção civil; por outro lado responde as necessidades dosetor terciário que, para diminuir custos (numa economia altamente competitiva) prefere alugaro imóvel ao invés de imobilizar capital na compra de um imóvel próprio.

Tal investimento pode compensar dificuldades no circuito normal de produção-consumo, apontando uma estratégia de aplicação de capital. Nesse caso o capital financeiro,associado ao capital industrial (o setor de construção civil), atendendo a uma nova demanda daeconomia, - o crescimento do setor de serviços - precisa, para se desenvolver, da aliança dosempreendedores imobiliários com o poder municipal garantido a gestão da cidade dentro dospadrões necessário a reprodução continuada do capital. Como conseqüência, a intervenção doestado vai produzir ou aprofundar as desigualdades no que se refere a aplicação dos investimen-tos com a valorização da área atingida, em detrimento de outras áreas e de outros lugares da

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metrópole. Por outro lado, a renovação urbana interfere no mercado de solo urbano na medidaem que com o processo de desapropriação dos proprietários das casas na área; cria para omercado imobiliário a possibilidade de reocupar o espaço com outro uso, outro padrão deconstrução e outra densidade de ocupação, expulsando do lugar a “população residente”.

É assim que, no plano da reprodução do capital, a metrópole transforma-se na“cidade dos negócios”, o centro da rede de lugares que se estrutura no nível do mundial commudanças constantes nas formas urbanas – tanto no uso quanto na função. Como decorrênciatanto a silhueta dos galpões industriais quanto das residências dão lugar a novos usos orasubstituídos por altos edifícios de vidro, centros de negócios, shopping centers, ou mesmoigrejas evangélicas, como produto da migração do capital para outras atividades econômicas,reforçando a centralização econômica, financeira e política da metrópole. A dinâmica espacialda atividade econômica em curso, que desconcentra a indústria da metrópole, traz ao ladodo crescimento e importância do setor financeiro e de serviços modernos, as atividadesvoltadas ao setor de turismo, lazer, cultura,etc.

Redefinição da centralidade: a relação centro – periferia

A relação centro-periferia se de um lado liga-se ao plano do mundial; criandonovas redes, hierarquizando os lugares e as regiões, impõe-se também no plano do lugar,enquanto morfologia estratificada, produzida pelo desenvolvimento do capital no interiorda metrópole, contrapondo a centralidade do poder e da riqueza às periferias; a integraçãoe segregação, isto porque as práticas sociais no espaço se transformam radicalmente, poisa racionalidade da reprodução do capital redefine constantemente os espaços ao criar novascontradições.

A metrópole apresenta uma centralidade em relação ao resto do território, dominando-o e articulando áreas imensas - um espaço dominante (político) como condição da reproduçãogeneralizada – enquanto centro de uma morfologia hierarquizada estratificada. Do ponto devista espacial a reorganização da sociedade inteira ganha, mais visibilidade, hoje, a partir doscentros urbanos enquanto centros de difusão da informação, do poder financeiro, econômico;centros das redes. E a metrópole é o lugar de onde se pode analisar as mudanças profundas quetransformam a sociedade.

A dinâmica urbana, atual, revela, na metrópole, a contradição entre abundância eraridade; mas ela ocorre apenas em alguns pontos da metrópole, recolocando a questão dasrelações centro – periferia.

Em São Paulo, o movimento da produção do “novo espaço”, ocorre em lugaresdeterminados, representando uma “nova centralidade” ou a extensão da antiga. Comoconseqüência, a nova produção se fará a partir da destruição de áreas construídas, mudandoseus usos e suas funções. Trata-se de bairros consolidados, áreas de apropriação privadauma vez que a construção da metrópole realiza a propriedade privada da terra, condição dodesenvolvimento do capitalismo. Se historicamente, ela é condição da realização do processocapitalista de produção, o momento atual da história da reprodução do espaço metropolitano,a propriedade privada, entra em contradição com reprodução da sociedade.

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Pela dinâmica imposta pelo deslocamento da indústria e do desenvolvimento de outrasatividades, a centralidade tem agora um novo sentido – há diversificação dos centros multiplica-ção e diferenciação - tanto quanto a periferia, a centralidade torna-se desigual e diferenciada. Emalguns casos a construção ou reprodução da centralidade se dá negando o bairro, ao produzir o“centro dos negócios” como conseqüência dos processos de valorização impostos pelastransformações.

Este plano revela o fato de que a produção continuada da metrópole, pelodesenvolvimento capitalista produz o fenômeno da implosão / explosão que produz as imensasperiferias e o esvaziamento do centro. No caso de São Paulo, isto significa que o constantemovimento da reprodução da metrópole faz implodir o centro, produzindo novas centralidades.Se de um lado, a centralidade se acentua, isto é, o centro ainda representa o locos daadministração, da decisão, da organização política da informação, etc; de outro lado assiste-sea constituição de uma pluralidade de centros (culturais, religiosos, simbólicos, de mercado,etc). Ao mesmo tempo se dispõem em torno da metrópole aglomerações secundárias, cidadessatélites. As periferias se estendem a perder de vista, o relevo deixou de ser um obstáculocomo antigamente, as casas auto-construídas se expandem subindo os morros da serra daCantareira, ampliando a expansão ao norte da metrópole.

São Paulo, hoje, apresenta-se polinucleada englobando sempre novas áreas e extensõesfragmentadas. Esse processo de reprodução do espaço urbano também nos coloca diante deformas que ganham novos conteúdos. Por outro lado, cada vez mais, acentua-se a contradição queestá na base do processo de produção do espaço, qual seja produção socializada - processo deapropriação privada do solo urbano. O espaço fragmenta-se, divide-se, em inúmeras parcelascompradas e vendidas aos pedaços, pois o acesso ao solo urbano dá-se através da mediação domercado - implica na produção espacial hierarquizada e fragmentada que se generaliza.

O constante processo de reprodução da metrópole se faz de modo autofágico, com adestruição de bairros centrais expulsa para a periferia cada vez mais uma imensa massa depopulação. Por outro lado a periferia se produz como decorrência de um processo que contrapõeuma produção social do espaço fundamentada à sua apropriação privada do solo urbano - demodo que a morfologia social se realiza também enquanto morfologia espacial - revelando aimportância da propriedade privada. De um lado a propriedade privada da terra urbana vaidefinindo a ocupação, de outro, o processo de revalorização do espaço como conseqüência daação do Estado atuando sobre os preços modifica os usos e funções das áreas da cidade.

No centro que explode em vários novos centros há dois fenômenos a seremconsiderados. Primeiro, o centro que atrai informação, riqueza, poder, também produz suasaturação e como conseqüência vai expulsando dele várias atividades e moradores, o centro sedeteriora e requer uma política de reestruturação, que na maioria das vezes, se fará em detrimento

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da população mais pobre, pois revitalizar significa acabar com a pobreza. Segundo o processo quese apóia na concentração em uma área de determinadas atividades, com o desenvolvimento doprocesso produtivo, necessita para seu crescimento de novos requisitos técnicos, de conhecimento,e também espaciais. A saturação do centro requer que determinadas atividades - que precisampermanecer no centro se expandam, estas se deparam com o fenômeno da raridade do espaço.

Em ambos os casos, se fazem necessário, a intervenção do estado. Nesse momento algode novo se impõe, a intervenção no espaço, através de diversas instituições consagradas à gestãoe a sua produção, em função de uma racionalidade que lhe é própria, é a realização do poder, peladominação do espaço. Com isso assiste-se a uma reestruturação do espaço, controlado pelopoder político que se afirma e coloca o Estado no centro da gestão das relações sociais dereprodução. Esse processo atual exige a dominação sobre as circunstâncias da vida social eeconômica, portanto, a manipulação generalizada. Nesse sentido a reprodução das relações sociaisprocessa-se, agora, através da lógica das ações políticas e refere-se à gestão das relações sociais edas forças produtivas pelo Estado, seu controle sobre as técnicas e sobre o saber. A ação estratégicado Estado produz um espaço apropriado a partir de sua utilização no plano vivido - isto é, emrelação com a prática social, pois a mundialização revela-se na prática da vida cotidiana.

A metropolização, hoje, diz respeito a hierarquização do espaço a partir da dominaçãode centros que exerce sua função administrativa, jurídica, fiscal, policial e de gestão. Ahierarquização, no plano da metrópole, pressupõe a distinção dos pontos no espaço que semultiplicam entre os chamados “espaços nobres e vulgares”, espaços residenciais de elite,espaços das classes medias, etc.o que produz uma série de guetos que, longe de se justaporem,hierarquizam-se no espaço social como conseqüência da hierarquia social e econômica. Noespaço mais amplo estabelece-se uma centralidade e numa disposição desigual dos lugares emrelação aos centros. A hierarquização diz respeito à constituição de um espaço repressivo, poisela impõe a reprodução das relações de dominação. Mas no caso da periferia a dominação doestado se defronta com a dominação do tráfico de drogas que se impõe na sociedade comoatividade econômica, enquanto constrangimento, dominando uma parcela significativa das áreasocupadas na periferia, sem a dominação destas áreas que atuam como escudo, a realização donegócio não seria possível. Tanto pelo estado quanto pelo tráfico, a dominação do espaço seimpõe como questão fundamental à realização do poder delimitando a vida cotidiana – enquantoformas de realização do capital.

A idéia de centro ilumina a contradição centro-periferia, com isso, a divisão sociale técnica do trabalho no espaço, que produz uma hierarquia espacial que distingue os lugares dametrópole no seio do processo de reprodução espacial desigual. A desigualdade do processo dereprodução do espaço urbano, faz do centro o nó que conserva duas forças interligadas epoderosas: aquela do poder e riqueza e aquela da miséria. A questão da centralidade diz respeitoà constituição de lugares enquanto ponto de acumulação e atração de fluxos, centro mental esocial que se define pela reunião e pelo encontro. É uma forma nela própria vazia que demandaum conteúdo, isto é, as relações práticas, os objetos, os atos e as situações.1 Portanto,simultaneidade de tudo que se possa reunir e, em conseqüência, acumular num ponto ou em

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1 LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris, Anthropos, 1978, p. 382.2 Usamos o termo sub - centro para diferenciá-lo do centro histórico da metrópole, uma diferença quese revela pelo conteúdo de relações que eles contém.

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torno deste ponto do espaço. Mas na reprodução do espaço da metrópole produz-se novascentralidades que se aparecem como nó articuladores de fluxos e lugares de acumulação, de outroapresentam uma estrutura menos complexa que o central; portanto a polinuclearidade da metrópolese reproduz de modo desigual.

Assim, no espaço mais amplo da metrópole assegura-se uma centralidade e umadisposição desigual dos lugares em relação ao centro. Neste processo de reprodução do espaçourbano, velhas formas desaparecem para dar lugar a novas formas exigidas por novas atividades,é assim, que novas áreas ganham novos conteúdos. Mas, a centralidade se refere à uma duplaescala: o centro urbano e a metrópole como centro.

A centralidade define-se, no segundo caso, por uma racionalidade política, estatal,urbana, que se quer total, e que aparece como uma estratégia que condensa riqueza e poder,meios de ação, informação, conhecimento, cultura, idéias, decisão. Por outro lado, no panoramamundial, hoje, o centro está em toda a parte como contrapartida da mundialidade. Nesse contexto,o mundial se gesta na articulação potencial de todo o espaço planetário, uma articulação desigual,uma vez que o capital, circulante por excelência, migra sempre para setores mais produtivos dasociedade, gerando uma mobilização frenética no espaço, num jogo de valorização/ desvalorização/revalorização de áreas inteiras e, nesse patamar, a oposição centro - periferia se estende dasgrandes capitais e cidades mundiais até as regiões e países.

A centralidade liga-se, portanto, hoje, à uma nova capacidade de concentração. Noquadro produzido, o espaço se fragmenta, é raro em torno dos centros onde é literalmentepulverizado, vendido em lotes, podendo assumir a função de reserva de valor, meio desegregação, elemento de dispersão da sociedade nas periferias e subúrbios. Isto porque, acidade explodiu e se concretiza a partir de novas formas, estruturas, funções, onde áreas imensasganham novo valor de uso e, conseqüentemente, valor de troca, pois o espaço, mercantilizado,se insere no mundo da mercadoria.

No processo, o conteúdo do centro se transforma ( a polinucleação da metrópole) comoconseqüência da extensão do processo de urbanização, pulverizou o centro, criou sub-centros2

especializados, nonofuncionais; aqui as formas de centralidade se referem à relação entre usos /funções e se colocam no plano do consumo do espaço enquanto atividade econômica; aliada avalorização / desvalorização de áreas dentro da metrópole. O conteúdo monofuncional dos sub-centros da metrópole confere a esses espaços um caráter transitório, pois deteriorada a atividadeque lhe dá vida, o sub-centro se esvazia no movimento de valorização / desvalorização dos lugaresda metrópole, decorrente das mudanças na divisão espacial do trabalho. Há um movimento que,na realidade, é produto do deslocamento das atividades econômicas no espaço em função dadiminuição dos custos, que gera, momentaneamente, um afluxo e uma freqüência em determinadoslugares, por determinadas atividades econômicas.

O fato, de que o espaço se transforma em mercadoria, produz uma mobilização frené-tica desencadeada pelos promotores imobiliários, o que leva a deterioração, ou mesmo destruiçãode antigos lugares e a criação de novas áreas para estas atividades, que passam a fazer parte dofluxo de realização do valor de troca em função da realização de interesses imediatos, em nomede um presente programado e lucrativo. Nesse contexto, a centralidade significa o apoio aocentro de comércio ligado às trocas, uma redução no sentido do significado do centro.

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A mobilidade da atividade econômica pelo espaço, que influencia e determina osusos associando-se às funções dos lugares, faz com que alguns lugares ganhem ou reforcem suacentralidade em detrimento de outros, ou mesmo do esvaziamento do centro histórico da metrópole,transformando os lugares de freqüência e de encontros, onde grupos se agregam ou se distinguem.Com isso cria-se uma nova centralidade que disputa com antigos pólos, substituindo-os oucomplementando-os, momentaneamente, posto que, nesta fase, sua criação espacial simbólica ourepresentativa mais profunda, apóia-se nos direcionamentos dos fluxos de investimentosimobiliários que são fluídos.

Essa fluidez, que produz centros e pólos diferenciados, principalmente, daconcentração das atividades de comércio e serviços, como bares, restaurantes, casas noturnas,choperias, acabam criando, com sua mobilidade, o que chamamos de “centralidade móvel”.Referem-se às situações concretas que se determinam, conjunturalmente, e que se referem,exclusivamente aos sub - centros especializados, apoiados a partir de uma única função que, umavez esgotada pelas possibilidades de consumo, se esvazia. Como a centralidade não se isola deuma articulação mais ampla no espaço, as mudanças na rede de circulação, ampliando outransformando os limites e possibilidades dos deslocamentos da atividade econômica, oraconstroem, ora destroem os pólos especializados. É assim que, enquanto forma da reunião e doencontro, enquanto centro comercial, os momentos do processo de produção geram centralidadespróprias, em cada época, reproduzindo sua mobilidade.

Esse processo, geralmente, se refere aos lugares de lazer na metrópole que surgemcomo decorrência do processo de urbanização que adensa e amplia a mancha urbana. Nessecontexto, produzem-se centros na metrópole que ganham funções e significados diferenciados emfunção da construção e da necessidade de expansão de espaços destinados ao lazer. São lugaresque se produzem, criando uma centralidade que direciona o fluxo de pessoas, consumidores empotencial, de um lugar para outro, dentro da metrópole.

Na metrópole paulista essas centralidades se criam de modo diferenciado em relação adiferentes momentos da vida, em função das necessidades de produção de lugares dentro da lógicado valor de troca. Hoje, um novo pólo de lazer surge na esteira da construção do centro de serviçosmodernos, que atrai, diariamente, uma classe de alto poder aquisitivo, gerando uma demandaespacialmente concentrada.

A construção destas áreas se liga ao fato de que a reprodução, no momento atual,realiza-se através da programação da vida cotidiana - enquanto possibilidade de instauração docotidiano - que aparece invadida pelo mundo da mercadoria, que produz a uniformidade sob aforma das aparências diferenciadas das coisas, e que organizam o tempo de lazer, enquantoorganização da sociedade de consumo. Isto porque, as relações entre processo de produção e odesenvolvimento das forças produtivas geram, no mundo moderno, novas possibilidades derealizar a acumulação, que em sua fase atual, liga-se cada vez mais à produção do espaço -produção que se coloca numa nova perspectiva, onde novos lugares ganham valor de uso pelaextensão, no espaço, do valor da troca.

A tendência segundo a qual, os espaços urbanos produzidos, são destinados à troca, oque significa que a apropriação e os modos de uso, tendem a se subordinar (cada vez mais) aomercado, significando em última instância, que existe uma tendência à diminuição dos espaços,

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onde o uso não se reduziria à esfera da mercadoria e o acesso não se associaria à compra e vendade um “direito de uso temporário”. Essa mobilidade que acompanha a reprodução, como condiçãode sua realização constante, é sempre seletiva; portanto, a criação destes novos lugares-centraisrealiza-se aprofundando a segregação espacial. Assim, cada vez mais o lazer e o flanar; o corpo eos passos, estão restritos à lugares vigiados, normatizados, privatizados. Esse fato é conseqüênciada “vitória do valor de troca sobre o valor de uso”, isto é, o espaço se reproduz, no mundomoderno, alavancado pela tendência que o transforma em mercadoria, o que limitaria seu uso àsformas de apropriação privada.

A centralidade aqui construída está associada de um lado, a um tempo, aquele do lazer,no contexto de sua transformação na metrópole, cada vez mais cooptado pelo universo damercadoria; de outro lado, esta associado a constituição do eixo empresarial comercial da metrópole.Essa articulação ilumina o fato de que, na metrópole, os centros de compra e de lazer vão sedeslocando, em momentos sucessivos e ás vezes simultaneamente, provocados pela escassez doslugares enquanto possibilidade e condição da reprodução.

No plano local a conseqüência direta deste fato é o aprofundamento da separação, navida do habitante, entre espaço público / espaço privado. No plano mundial e regional,é a mercantilização dos espaços voltados às atividades de turismo e lazer, comonovo setor econômico.

A vida cotidiana

A problemática urbana se revela, enquanto prática sócio espacial, no plano do vivido.A nova centralidade aprofunda o processo de segregação espacial pela diferenciação dos usos,e das transformações das funções dos lugares na divisão espacial do trabalho, na metrópole.

O plano do lugar diz respeito ao modo como a metrópole se produz continuamente,enquanto lugar da reprodução social; significa, por exemplo, pensar no modo como as históriasparticulares tanto dos homens quanto dos lugares, se realizam, hoje, subordinadas ao plano domundial que se anuncia. Significa dizer que o espaço ganha nova dimensão na análise, isto é em seuprocesso de desenvolvimento, o capitalismo, para continuar se reproduzindo, produzconstantemente seu próprio espaço. A produção deste espaço aparece como condição e produtoda reprodução do capital, que ultrapassa em seu processo de expansão, cada vez mais, os limitesda fábrica para se realizar num espaço mais amplo, aquele da cidade.

Na articulação entre estes planos, a produção do lugar se realiza cada vez maisarticulado a um outro plano revelando a produção de um espaço com novas características:

a) aprofundamento da segregação - revela as condições da normatização dos espaços e damodelização da vida – uma “nova ordem” invade a metrópole e define o modo do usos dosespaços / novo modo de vida; revelando-se enquanto formas de segregação. Nesta dimensão oespaço e o tempo, submetidos à lógica capitalista, impõe o produtivismo que transforma otempo em quantificação (uma quantidade abstrata), e o espaço (também ele tornado abstrato)numa distância a ser percorrida. As relações de propriedade criam os limites do uso, com atendência a destruição do espaço público como espaço acessível. Com isso limita, pelo exercíciodo poder, uma ação que destrói o espaço da sociabilidade e proximidade, substituindo-o por

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aquele dos interditos em nome da lei e da ordem. Ao mesmo tempo que se faz a apologia datécnica, enquadra-se o cidadão em papéis que lhe são impostos pela normatização da sociedademarcando os limites do consumo do espaço no movimento de generalização da transformação doespaço em mercadoria. Assim, o processo de reprodução do espaço aponta a tendência dapredominância da troca sobre os modos de uso, o que revela o movimento do espaço de consumopara o consumo do espaço - este processo se revela pelo esvaziamento da rua como lugar doencontro e do lazer, e a supervalorização dos shopping centers como os lugares das compras e dolazer. No caso da periferia submetida ao poder do trafico, a normatização não se faz pela lógica darealização da propriedade privada, mas pela necessidade de realização do capital.

Na maioria do espaço metropolitano, o processo de reprodução (do espaço) no mundomoderno, se submete cada vez mais ao jogo do mercado imobiliário – na medida em que há novasestratégias para a acumulação, que se realiza através dos empreendedores imobiliários - e daspolíticas estratégicas do Estado – que tende a criar o espaço da dominação e do controle. Comisso, se transforma substancialmente o uso do espaço e, conseqüentemente, o acesso da sociedadea ele. Nesse contexto, o valor de troca impresso no espaço (mercadoria) se impõe ao uso doespaço, na medida em que os modos de apropriação passam a ser determinados, cada vez mais,pelo mercado. Este movimento da passagem do espaço de consumo para o consumo do espaço3

se analisa no movimento da transformação do uso em troca – da mutação do espaço em mercadoria.Este, impõe o fato de que o acesso aos lugares de lazer se realiza pela mediação do mercado,acentuando o papel de um lado da força da propriedade do solo, e de outro da necessidadeconstante da construção do espaço enquanto momento de acumulação. Tal fato implica profundasmudanças nos modos de uso. No plano local a conseqüência direta deste fato é o aprofundamentoda separação entre espaço público / espaço privado. O processo acentua a segregação pelaexplosão das formas, pela expulsão da população residente, pelo esvaziamento da prática sócioespacial, pela separação/ especialização dos lugares da metrópole, (em áreas de lazer, de trabalho,de troca), o que gera o empobrecimento das relações sociais.

A segregação se encontra no seio do processo de reprodução do espaço no capitalismo,como processo objetivo, a reprodução da metrópole caminha de forma decisiva para sua objetivação,enquanto realização social - nesta dimensão a segregação vai revelar o fato de que, ao longo dahistória, o homem se submete a sua própria criação – o produto se exterioriza em relação asociedade impondo-se como potência estranha.

Esse processo de alienação aparece sob a forma do estranhamento enquantodescompasso entre os tempos da vida e das formas urbanas, onde o cidadão se encontra diante dametrópole de formas fluidas e fugidias, vivendo o estreitamento das possibilidades de apropriaçãodo espaço, com a deterioração, ou mesmo fim, dos espaços públicos enquanto restrição àspossibilidades de apropriação. Por sua vez a construção dos edifícios funcionais revelam a outrafaceta da programação nos mínimos detalhes do cotidiano, como modelo de organização social noplano do trabalho. Esses aspectos vão revelando a instauração do cotidiano nos interstícios daprática sócio-espacial esvaziada. Portanto, de um lado, espaços vazios e nomatizados, de outro,vida controlada - ambos programados dentro de um rígido modelo que atende as necessidadesatuais da reprodução da sociedade.

3 Apontado por Lefebvre em várias obras

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b) perda dos referenciais espaciais - pode ser analisada tanto enquanto conseqüência daprodução autofágica do espaço quanto do esvaziamento dos usos dos espaços públicos.

Como já afirmamos, a rapidez das transformações em função das mudanças no setorprodutivo, apoiado no desenvolvimento da técnica, reproduz a metrópole num outro patamar,cada vez mais articulada ao plano mundial. Assim, a metrópole é a expressão de uma realidadeespecífica singular, mas também, universal, aquela da sociedade urbana que se constrói revelando-se no plano do espaço mundial.

As referências urbanas apontam e marcam a relação entre a construção da identidade(sua constituição a partir da vida concreta) e da memória, que sustenta a prática. Portanto adestruição dos espaços aonde se desenrola a vida, coloca a identidade cidadão/metrópole numoutro patamar, agora definido nos limites do mundo da mercadoria e do desenvolvimento dasociedade de consumo – neste momento incluindo o consumo do espaço. O movimento degeneralização da mercadoria - espaço impõe mudanças substanciais ao uso dos lugares, redefinindoseu sentido, através da imposição de mudanças no modo de apropriação, invadido por normasbem definidas. Na metrópole, as novas necessidades impostas pela reprodução econômica impõem-se enquanto ruptura na morfologia, nesse processo, cria-se o não-reconhecimento do habitantecom os lugares da vida e com o outro - como conseqüência a perda da identidade que sustenta amemória – ligada ao empobrecimento das relações sociais pela perda / esvaziamento dos usos dosespaços públicos.

A morfologia de São Paulo, hoje, parece revelar as formas destinadas a expressar oespaço sem espessura, a aparente ausência de traços do passado assolado pelas formas damodernidade, que agem sobre a constituição da identidade cidadão/cidade, indicam que as“novas“ formas possuem novos conteúdos, novos usos e modos de uso; redefinindo as relaçõessociais. Significa dizer que, neste processo de mudanças, redefinem-se as dimensões dametrópole, a estética das formas urbanas, os usos do espaço público, as relações entre osindivíduos e entre estes e o espaço. A reprodução da metrópole, pontuada por vias de transitorápido (que marcam a construção da cidade do automóvel), eclipsa a rua, esvazia o centro,produz o shopping center, redefine as relações com o outro (o vizinho, os amigos, os parentes, otranseunte, etc) enquanto modo de perceber, no espaço da realização da vida.

Aqui se realiza o desencontro cidadão metrópole - como momento do processo atualde reprodução do espaço, nos interstícios da produção de uma nova relação espaço-tempo.Invadido por um novo ritmo, as transformações morfológicas da grande cidade, impõem areconstrução de um novo modo de relação entre o habitante e o espaço. Portanto, este movi-mento refere-se ao processo de constituição da sociedade urbana de um lado e do espaçomundial de outro, realizando-se de modo contraditório. Em decorrência desse processo, porexemplo, se funda uma “nova identidade” onde o habitante do lugar - invadido pelo mundial vêsua particularidade em questão. Neste momento, a ruptura produz um outro plano onde oindivíduo se reconhece e se identifica num espaço mais amplo, pela mediação da metrópoleentrando em contato com o mundo. Através desta mediação o local se articula de modo inexorávelao plano do mundial - aquele da constituição da sociedade urbana - com a tendência a instaura-ção do cotidiano, a extensão do mundo da mercadoria, o aprofundamento das relações demercado, revelando a constituição de uma “nova urbanidade” que afronta e explica esseprocesso de constituição de uma identidade abstrata fundada no fato de que o habitantepertence a uma totalidade mais ampla e vasta do que o universo do lugar e da vida privada4.

4 CARLOS, AFA Espaço e tempo na metrópole. Ed. Contexto São Paulo, 2001

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A cidade enquanto momento presente só existe pela “acumulação de tempos, dopassado” mas a perda dos referenciais urbanos, como produto da rapidez com que amorfologia se transforma, redefine a prática sócio-espacial onde o espaço em constantemutação e o tempo acelerado, produzem uma nova dinâmica. O desvendamento do sentidoda metrópole impõe ao pensamento, neste momento da história, uma nova relação espaço-tempo (que invadidos pela quantificação torna-os abstratos) e que vai impregnar, delimitare orientar a prática espacial metropolitana .

A condição de instantaneidade transforma o sentido dos termos levando-nos aadjetivar o tempo, de efêmero (cada vez mais rápido) e o espaço, de amnésico(transformado em passagem e sem referenciais). O tempo enquanto uso, isto é, enquantoduração da ação no espaço, revelado nos modos de apropriação é, hoje, um tempo acelerado,comprimido, imposto pelo quantitativo. A quantificação do tempo e do espaço atravessa asrelações presentes na sociedade, penetra o universo da vida cotidiana do cidadão, não sópela constituição de uma rotina organizada, mas pelos atos, gestos, modos de uso doslugares da vida, perfeitamente homogêneos. Como a quantificação do tempo5, o capitalismoinvade a sociedade, a necessidade de um novo tempo de produção atinge as relações cotidianase transforma os usos porque o próprio espaço, como condição e produto da produção,também se transforma. Espaço e tempo abstratos redefinem constantemente os usos, comisso, os processos que criam a identidade, acabam destruindo as condições nas quais segesta a memória coletiva.

A nova dinâmica urbana metropolitana aponta, portanto para a constituição de novascentralidades dentro da metrópole e o esvaziamento de outras, em função das transformações nosusos e funções de áreas inteiras como conseqüência das mudanças nos setores econômicos. Noprocesso estabelece-se uma nova hierarquia espacial onde o espaço se revela estratégico para areprodução como imperativo para a sua continuidade, agora num outro patamar, aquele da economiaglobalizada. A dinâmica também revela mudanças de conteúdo significativo na prática sócio espacialconcretizada no plano da vida cotidiana, com o empobrecimento das relações sociais pela normatizaçãodos lugares aonde se realiza a vida. Portanto o processo de “metropolização” se revela naindissociabilidade da articulação entre os vários planos do real; o econômico, o político e o socialrevelando o espaço enquanto condição, produto e meio do processo de reprodução da sociedadecomo um todo.

Bibliografia

CARLOS, A. F. A. (1999): “Morfologia e temporalidade urbana: o “tempo efêmero e o espaçoamnésico”, In: VASCONCELOS, P. A. e SILVA, S. B. M. (Orgs.) (1999): Novos Estudosde Geografia Urbana Brasileira. Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia,págs.161-172.

________________ (2001): Espaço-tempo na metrópole. São Paulo:Editora Contexto.DAMIANI, A. e alli (1999): Espaço fim de século: a nova raridade. São Paulo: Editora Contexto.LEFEBVRE, H. (1981): La production de l´espace. Paris: Éditions Antropos.5 “Desde a industrialização, o tempo tornou-se uma norma central de julgamento e avaliação dasociedade urbanizada, notadamente pela temporalização de todas as dimensões do mundo do trabalho”.SCHERRER, Frank. “Les rythmes urbains” in: La ville, Le courrier du CNRS, nº 81. Paris, 1994, p.67.

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