santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

62
Copyright © Boaventura de Sousa Santos Copyright desta edição © Boitempo Editorial, 2007 Coordenação editorial Editor adjunto Editora assistente Tradução Preparação de texto Revisão Capa Composição Produção Ivana Jinkings João Alexandre Peschanski Ana Paula Castellani Mouzar Benedito Ana Paula Figueiredo Hugo Almeida Guilherme Xavier Cintia de Cerqueira Cesar Marcel Iha Sumário CIP-BRASIL. CATALOGAÇAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. S233r Santos, Boaventura de Sousa,1940- Renovar a teoria critica e reinventar a emancipação social / Boaventura de Sousa Santos ; tradução Mouzar Benedito. - São Paulo : Boitempo, 2007. Tradução de: Renovar la teoria critica y reinventar la emancipación social : (Encuentros en Buenos Aires) Conferencias proferidas em Buenos Aires, em 2005 ISBN 978-85-7559-091-1 1. Teoria critica - Discursos, conferências, etc. 2. Movimentos sociais - Discursos, conferências, etc. 3. Mudança social - Discursos, conferências, etc. 4. Globalização - Discursos, conferências, etc. 4. Democracia - Discursos, conferencias, etc. I. Titulo. 07-0988. CDD: 303.4 CDU: 316.42 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada ou reproduzida sem autorização da editora. P edição: abril de 2007 BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Editores Associados Ltda. Rua Euclides de Andrade, 27 Perdizes 05030-030 São Paulo SP Tel./fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869 e-mail: editor@boitempoeditorial.com.br site: www.boitempoeditorial.com.br Apresentação, Gaudêncio Frigotto Prólogo Capítulo I A Sociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências: para uma ecologia de saberes 17 Capítulo II Uma nova cultura política emancipatória 51 Capítulo III Para uma democracia de alta intensidade 83 Sobre o autor 127 7 13

Upload: documentarios10

Post on 09-Aug-2015

47 views

Category:

News & Politics


10 download

TRANSCRIPT

Page 1: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Copyright © Boaventura de Sousa SantosCopyright desta edição © Boitempo Editorial, 2007

Coordenação editorial

Editor adjunto

Editora assistente

Tradução

Preparação de texto

Revisão

Capa

Composição

Produção

Ivana Jinkings

João Alexandre Peschanski

Ana Paula Castellani

Mouzar Benedito

Ana Paula Figueiredo

Hugo Almeida

Guilherme Xavier

Cintia de Cerqueira Cesar

Marcel Iha

Sumário

CIP-BRASIL. CATALOGAÇAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

S233r

Santos, Boaventura de Sousa,1940-Renovar a teoria critica e reinventar a emancipação social /Boaventura de Sousa Santos ; tradução Mouzar Benedito. -São Paulo : Boitempo, 2007.

Tradução de: Renovar la teoria critica y reinventar laemancipación social : (Encuentros en Buenos Aires)Conferencias proferidas em Buenos Aires, em 2005ISBN 978-85-7559-091-1

1. Teoria critica - Discursos, conferências, etc. 2. Movimentos sociais- Discursos, conferências, etc. 3. Mudança social -Discursos, conferências, etc. 4. Globalização - Discursos,conferências, etc. 4. Democracia - Discursos, conferencias, etc. I. Titulo.

07-0988. CDD: 303.4CDU: 316.42

Todos os direitos reservados.Nenhuma parte desta obra poderáser utilizada ou reproduzida semautorização da editora.

P edição: abril de 2007

BOITEMPO EDITORIALJinkings Editores Associados Ltda.Rua Euclides de Andrade, 27 Perdizes05030-030 São Paulo SPTel./fax: (11) 3875-7250 / 3872-6869e-mail: [email protected]: www.boitempoeditorial.com.br

Apresentação, Gaudêncio Frigotto

Prólogo

Capítulo IA Sociologia das Ausências e a Sociologia das

Emergências: para uma ecologia de saberes 17

Capítulo IIUma nova cultura política emancipatória 51

Capítulo IIIPara uma democracia de alta intensidade 83

Sobre o autor 127

7

13

Page 2: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Apresentação

Gaudêncio Frigotto

O livro de Boaventura de Sousa Santos - Renovar a teo-

ria crítica e reinventar a emancipação social - nos revela,de imediato, que a capacidade de síntese densa, engen-drando crítica e anúncio, somente pode resultar de au-tores abertos ao debate teórico e com compromisso éti-co-político com as lutas de movimentos e organizaçõessociais e políticas, que apostam não apenas na emanci-pação política, mas, sobretudo, na emancipação humanae social. Vale dizer, comprometidos com a práxis transfor-madora ou revolucionária das relações sociais, cada vezmais violentas, do capitalismo realmente existente, em es-pecial nos países de capitalismo dependente e associado.

O leitor que conhece a vasta obra de Boaventura, em boaparte publicada no Brasil, perceberá que a novidade deste livronão reside tanto em novas formulações epistemológicas, teó-ricas e políticas do autor, mas em sua capacidade de colocá-lasem diálogo crítico com novas realidades e sujeitos. Um deba-te epistemológico, teórico e politico, portanto, que articula,por um lado, a natureza singular e particular dos contextoslatino-americanos a dimensões de universalidades históricasdos processos de conhecimento e, por outro, suas conseqüên-cias em termos das lutas pela emancipação social em seusâmbitos local, nacional, regional e mundial.

Page 3: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 9S . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Com efeito, ao apresentar as três conferências e deba-tes realizados em 2005 na Faculdade de Ciências Sociais daUniversidade de Buenos Aires, o autor realça a oportunida-de e o desafio de expor suas idéias a um público heterogê-neo, o caráter polêmico dos debates e a densidade deles.

Os três capítulos do livro, correspondentes às referidasconferências, obedecem a uma exposição na qual o autor vaida explicitação dos fundamentos epistemológicos do pensa-mento sociológico "A Sociologia das Ausências e a Sociologiadas Emergências: para uma ecologia de saberes" - às implica-ções teóricas para "Uma nova cultura politica emancipatória".Dessas duas dimensões, aos desafios politicos "Para urna de-mocracia de alta intensidade". Uma estrutura de exposiçãoque dá ao livro um encadeamento lógico dos temas e, comisso, uma clareza argumentativa e metodológica. Todavia,como se pode observar, em seu conteúdo central as proble-máticas epistemológica, teórica e politica aparecem nos trêscapítulos com ênfases e níveis específicos.

Assim, o leitor encontra no primeiro capítulo umdiálogo e uma síntese da produção epistemológica maisampla do autor dentro de um projeto que busca encon-trar as bases e as possibilidades da reinvenção da eman-cipação social nas realidades dos países periféricos. O ar-gumento central é: há uma reiterada tensão e crise entrea regulação e a emancipação social e entre a experiência eas expectativas na sociedade moderna ocidental. No pla-no social, há uma regressão, que se agrava, sobretudo,nas últimas décadas, com perdas de direitos e de possi-bilidades futuras e, no plano epistemológico, a crise dopensamento hegemônico das ciências sociais, centradasem uma razão eurocêntrica e indolente, incapazes deproduzir novas idéias. Vale dizer: incapazes de renovar ereinventar a teoria e a emancipação social.

Para caracterizar essa crise das ciências sociais cen-tradas na razão indolente, Boaventura vale-se de figurasde linguagem - metonimia e prolepse -, para designar a

razão metonímica, que toma a parte pelo todo, e a hiper-trofia de uma totalidade abstrata, e a razão proléptica, queengendra um pensamento linear no qual o futuro já estádeterminado nas idéias de progresso e produtividadenos parâmetros capitalistas. O autor instiga a um desafioepistemológico que consiste em combater o pensamentohegemônico desde suas formulações centrando-se na So-ciologia das Ausências e na ecologia dos saberes.

A Sociologia das Ausências trata da superação dasmonoculturas do saber científico, do tempo linear, danaturalização das diferenças, da escola dominante, cen-trada hoje no universalismo e na globalização, além daprodutividade mercantil do trabalho e da natureza. Ocaminho proposto pelo autor baseia-se na idéia de umacontraposição às cinco monoculturas, cinco ecologias,cujo espaço e tempos situam-se nas sociedades coloca-das à margem pelos centros hegemônicos colonizadoresnas lutas, experiências e saberes das organizações popu-lares: a ecologia dos saberes, que postula um diálogo dosaber científico com o saber popular e laico; a ecologia das

temporalidades, que considera diferentes e contraditóriostempos históricos; a ecologia do reconhecimento, que pres-supõe a superação das hierarquias; a ecologia da "transes-cala", que possibilita articular projetos locais, nacionais eglobais; e, por fim, a ecologia das produtividades, centradana valorização dos sistemas alternativos de produção daeconomia solidária, popular e autogestionária.

A partir dessa nova ecologia dos saberes, para o au-tor, é possível superar a razão proléptica, partindo deum futuro concreto e de utopias realistas encontradasem pistas que são forjadas nas organizações, nos mo-vimentos e nas lutas das classes populares e dos povoshistoricamente marginalizados.

A análise empreendida pelo autor no primeiro ca-pítulo no plano epistemológico reitera-se no segundocapítulo, tendo como foco os fundamentos da produção

Page 4: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 1110 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

teórica nas ciências sociais e sua base cultural. Tomacomo ponto inicial os limites que percebe na teoriamarxista, a despeito de sua relevância e revitalização nomundo todo. Nela, percebe os problemas que a mesmaengendra em relação à questão do futuro, vinculada àidéia de progresso, parca abordagem do colonialismo, eà questão de aceitar a idéia de uma unidade e universali-dade do saber com primazia sobre o saber científico.

Este é um ponto que, por certo, renderá debate e dis-senso na leitura do livro de Boaventura pelos pesquisadoresbrasileiros, nos quais me incluo, cuja matriz é justamenteo esforço de historicizar e renovar a teoria marxista e omaterialismo histórico. Isso não pelas críticas que Boaven-tura faz a determinados encaminhamentos dominantesdo marxismo ocidental, sobre os quais tem ampla razão,mas pelo não-destaque da possibilidade e da necessidadede renovar essa teoria. Gramsci, já nos anos 30 do séculopassado, advertia para a necessidade de pensar o homemhoje, nas condições de hoje, não de uma vida qualquer e de umhomem qualquer. Mas o texto de Boaventura, nesse ponto,também, cumpre seu objetivo - provocar um debate aber-to no dissenso.

A produção ou a reinvenção da teoria crítica, para o so-ciólogo português, enfrentam dois problemas resultantesda cultura e da modernidade ocidental: o silêncio e a dife-rença. O primeiro tem origem na cultura hegemônica queteve contato com outras culturas, mas foi um contato co-lonial e, portanto, de silenciamento e desprezo. O segundoimplica uma luta em duas frentes - a politica da hegemoniaque conduz à idéia de que não há outras culturas críveis ea politica da identidade fundamentalista. Desses dois pro-blemas Boaventura destaca os desafios de distinguir entreobjetividade e neutralidade, a questão da produção de sub-jetividades rebeldes, não apenas subjetividades conformis-tas, e, por fim, o desafio de criar uma epistemologia do Sulsuperadora da matriz colonizadora. Essa superação implica,

para o autor, avançar no plano da luta prática das transfor-mações sociais. Esse é o tema do último capítulo que tratada democracia de alta intensidade.

Nesse terceiro capítulo, ele demarca inicialmenteque a questão democrática vinculada à renovação da teo-ria crítica e à reinvençäo da emancipação social reivindicauma objetividade engajada. Trata-se, ao mesmo tempo,de evitar um duplo viés: o subjetivismo e a falsa visão daneutralidade das teorias liberais ou conservadoras. Poroutro lado, a democracia de alta intensidade e, portanto,de novo tipo, demanda a radicalização de subjetividadesrebeldes. Para essa construção do "novo" o autor explici-

ta uma contradição que é da realidade histórica mesma.Os instrumentos de que dispomos no plano teórico eepistemológico são os hegemónicos, ou seja, nos termosdo autor, as semânticas legítimas da convivência políticae social: a legalidade, a democracia, os direitos humanos.Essa contradição impõe um duplo esforço: como traba-lhar esses instrumentos de forma contra-hegemônica etentar perceber, nas culturas e formas políticas margina-lizadas pela modernidade ocidental, indícios, sementes eembriões do novo?

No desdobramento desse capítulo, ele discute prin-cipalmente a questão da democracia. Efetiva um inventá-rio histórico do que poderiamos denominar "vicissitudesda democracia", suas formas, seu conteúdo, seus limites e(im)possibilidades. Um exercício concreto da provocaçãoque faz ao pensamento e à praxis no duplo movimento detrabalhar os conceitos hegemônicos de forma contra-hege-mônica, buscando indícios de superação das relações sociaiscapitalistas nos movimentos e lutas sociais concretas cons-truídas nas sociedades colonizadas e da periferia do capita-lismo. Um processo que demanda, como o autor finaliza suaexposição, a paciência infinita da utopia. Esta é uma análiseda questão democrática que se relaciona e se potencializa,mesmo partindo de uma visão muito diversa do papel do

Page 5: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

12 - Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

materialismo histórico, da tese central de Ellen M. Wood,cujo escopo é: a democracia em sua radicalidade é impos-sível no âmbito das relações sociais capitalistas, o que nãoelide, dentro dessas relações, a luta democrática.

O livro ganha uma originalidade de conteúdo, de forma ede método ao trazer a maior parte dos debates com um públi-co, após cada exposição, formado por intelectuais, pesquisa-dores, sindicalistas, lideres de movimentos sociais e culturaise jovens estudantes. O resultado das exposições instigantes,centradas na busca do diálogo critico e aberto e da própria au-tocrítica, como proposta de renovar as ciências sociais e rein-ventar a emancipação social, porque ambas estão em crise,teria como resultado o que o autor destaca no prólogo destelivro: "Os jovens debateram muitas de minhas posições, tantoporque concordavam como porque estavam em desacordo, efiquei impressionado com essa pouco freqüente combinaçãode lucidez intelectual e entusiasmo politico".

A publicação do livro no Brasil amplia a socialização das -análises para um público das mesmas características e apostautópica e revolucionária que fez escuta atenta e debate criti-co na Argentina. Um esforço que está no ideário do autor natarefa de construir, na teoria e na práxis, subjetividades re-beldes capazes de produzir uma alternativa à hegemonia con-servadora e neoconservadora e seus feitos na ampliação dabarbárie humano-social. Trata-se de uma busca incessante esem prazo - com a paciência infinita da utopia - para criar ascondições subjetivas e objetivas de superação das relações so-ciais capitalistas. E isso, na travessia, implica constantementeRenovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social.

Rio de Janeiro, março de 2007

' Ellen M. Wood, Democracia contra capitalismo: a renovação do ma-terialismo histórico (São Paulo, Boitempo, 2003).

Prólogo

Visitei a Argentina pela primeira vez numa luminosasemana de abril de 2005, a convite do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e da Embaixadade Portugal em Buenos Aires. Foi uma semana intensa, naqual participei de várias conferências e seminários nas fa-culdades de Direito e de Ciências Sociais da Universidadede Buenos Aires (UBA) e na Universidade de General Sar-miento, e também de encontros com movimentos sociaise organizações não-governamentais. Além disso, compa-reci a encontros de trabalho com advogados popularesdefensores de direitos humanos e ao lançamento de duaspublicações na Feira do Livro de Buenos Aires: Reinventara democracia, reinventar o Estado, publicado pelo Clacso, eA universidade no século XXI: para uma reforma democráti-ca e emancipadora da universidade, publicado pelo Labora-tório de Políticas Públicas de Buenos Aires, em parceriacom a editora Miño y Dávila.

Desses eventos destacaram-se os três semináriosque desenvolvi na Faculdade de Ciências Sociais da UBAentre 12 e 14 de abril. Participaram, com uma assidui-dade gratificante, cerca de 250 pessoas, entre alunos depós-graduação, professores e pesquisadores da UBA e demuitas outras universidades do país, assim 'como mem-

Page 6: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

14 - Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos . 15

bros de organizações sociais. Por esse público diverso- pouco comum no âmbito de uma universidade - agra-deço especialmente à Faculdade de Ciências Sociais, quepossibilitou essa oportunidade de expor minhas idéias eparticipar de um debate tão vivo e enriquecedor.

Eu havia proposto, em acordo com meus colegasargentinos, os temas para os três seminários. O desen-volvimento desses temas, assim como os debates poste-riores, converteram-se nos três capítulos deste livro: "ASociologia das Ausências e a Sociologia das Emergências:para uma ecologia de saberes", "Uma nova cultura polí-tica emancipatória" e "Para uma democracia de alta in-tensidade". Cada um desses capítulos, produto de cadaseminário, é uma unidade em que se sintetizam, respecti-vamente, reflexões epistemológicas, teóricas e políticas.

Estimulado por um público tão numeroso, diversoe atento, fui muito além de uma mera síntese de meupensamento. Ao final de cada exposição, geraram-se de-bates muito interessantes que me instigaram a explorarquestões novas. Os jovens debateram muitas de minhasposições, tanto porque concordavam como porque es-tavam em desacordo, e fiquei impressionado com essapouco freqüente combinação de lucidez intelectual eentusiasmo político.

Este livro não teria sido possível sem a mediação daamizade, do empenho e da solidariedade intelectual de umgrupo de colegas que decidiram ceder seu valioso tempopara tornar esses seminários acessíveis ao público leitor.A todos, meu agradecimento sincero. A Norma Giarrac-ca, Juan Pegoraro e Pedro Krotsch, professores e pesqui-sadores do Instituto Gino Germani, que, com o apoio dodecano Federico Schuster, passaram anos aguardandopacientemente a minha disponibilidade de aceitar o con-vite para visitar a Argentina e, por conseguinte, a Facul-dade de Ciências Sociais. Quando aceitei o convite, elesmesmos programaram os seminários com a inestimável

colaboração do secretário de Pesquisa e Pós-Graduação,Pablo Alabarces, que enfrentou uma difícil tarefa, uma vezque esses seminários tiveram um éxcesso de pedidos deinscrição. Do mesmo modo, um especial agradecimento aNorma Fernández, da Universidade Nacional de Córdoba,que realizou a gravação dos seminários. Ela, junto comNorma Giarracca, encarregou-se da tarefa de compilar asgravações e transformar as exposições em textos coeren-tes, tarefa que facilitou muito minha própria revisão. Àgenerosidade dessas duas colegas, as quais muito admiro,tanto os leitores como eu devemos este livro.

Last but not least, meu agradecimento sincero a Ati-lio Boron, então secretário executivo do Clacso. Depoisde conhecer e admirar por longos anos a sua obra, pudeme beneficiar também de sua habilidade administrativa.Foi seu empenho que tornou possível a visita à Argenti-

na, programada de forma que pude aproveitar da melhormaneira os poucos e intensos dias que vivi em BuenosAires. Foi ele quem envolveu a Embaixada de Portugal.E Marta Pires, adido cultural dessa instituição, foi quemse converteu em guia segura de meus roteiros por Bue-

nos Aires. Finalmente, devo a Atilio Boron o interesse doClacso em levar a cabo esta publicação. Espero que o livronão desmereça a dedicação e a solidariedade de tantoscolegas e amigos.

A edição brasileira deve-se ao carinho com que IvanaJinkings acompanha o meu esforço para renovar a teoriacrítica e aprofundar a luta política progressista. Estou-lhe muito grato por isso.

Page 7: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Capítulo I

A Sociologia das Ausênciase a Sociologia das Emergências:para uma ecologia de saberes

Estes três seminários são para mim uma tentativa de darconta de um trabalho que está em curso e tem o título ge-ral de "Reinventar a emancipação social". Isso significa,por um lado, que há emancipação social e, por outro, que épreciso reinventá-la. Provavelmente vamos ter de discutiro que é a emancipação social e por que necessitamos rein-ventá-la. Penso que essa questão tem três grandes dimen-sões: uma epistemológica, que vamos discutir hoje; outramais teórica, que discutiremos amanhã; e outra mais polí-tica, que veremos depois.

Hoje, portanto, me concentro na dimensão epis-temológica e em destacar por que decidi trabalhar essetema. O problema é que a emancipação social é um con-ceito absolutamente central na modernidade ocidental,sobretudo porque esta tem sido organizada por meio deuma tensão entre regulação e emancipação social, en-tre ordem e progresso, entre uma sociedade com mui-tos problemas e a possibilidade de resolvê-los em outramelhor, que são as expectativas. Então, é uma sociedadeque pela primeira vez cria essa tensão entre experiênciascorrentes do povo, que às vezes são ruins, infelizes, desi-guais, opressoras, e a expectativa de uma vida melhor, de

Page 8: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 1918 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

uma sociedade melhor. Isso é novo, já que nas sociedadesantigas as experiências coincidiam com as expectativas:quem nascia pobre morria pobre; quem nascia iletradomorria iletrado. Agora não: quem nasce pobre pode mor-rer rico, e quem nasce em uma família de iletrados podemorrer como médico ou doutor.

Essa discrepância entre experiências e expectativasé fundamental para entender o que pensamos, e comopensamos a emancipação social na sociedade moderna.O problema é que - e isso veremos melhor amanhã - essadiscrepância entre experiências e expectativas, entre re-gulação e emancipação, hoje está desfigurada. De algumamaneira vivemos em sociedades com uma dupla crise:crise de regulação e crise de emancipação. A discrepânciaentre experiências e expectativas também está desfigura-da, porque está invertida: as expectativas para a grandemaioria da população mundial não são mais positivas queas experiências correntes; ao contrário, tornam-se maisnegativas. Vinte anos atrás, quando a primeira páginados jornais dizia "reforma da saúde" ou "reforma da edu-cação", era para melhor. Hoje, quando abrimos o jornal evemos uma notícia sobre reforma da saúde, da educação,da previdência social, é certamente para pior.

Com efeito, há uma inversão nessa discrepância deexperiências e expectativas, e por isso alguns pensamque não tem sentido falar de emancipação social: chega-mos ao "fim da História" e o que resta é festejá-lo. Nós,ao contrário, pensamos que é preciso continuar com aidéia de emancipação social; no entanto, o problemaé que não podemos continuar pensando-a em termosmodernos, pois os instrumentos que regularam a dis-crepância entre reforma e revolução, entre experiênciase expectativas, entre regulação e emancipação, essasformas modernas, estão hoje em crise. Entretanto, nãoestá em crise a idéia de que necessitamos de uma so-ciedade melhor, de que necessitamos de uma sociedade

mais justa. As promessas da modernidade - a liberdade,a igualdade e a solidariedade - continuam sendo umaaspiração para a população mundial.

Nossa situação é um tanto complexa: podemos afir-mar que temos problemas modernos para os quais nãotemos soluções modernas. E isso dá ao nosso tempo ocaráter de transição: temos de fazer um esforço muito in-sistente pela reinvenção da emancipação social.

Amanhã tentarei falar mais da parte teórica. Alguémcomo eu, que foi destinado a trabalhar em um país semi-periférico como Portugal, a fazer seu trabalho de campona América Latina e na África, e ao mesmo tempo pas-sar parte de seu tempo em um país hegemônico comoos Estados Unidos, pode muito bem afirmar que não háatualmente uma só idéia nova produzida pelas ciênciassociais hegemônicas. As ciências sociais estão passandopor uma crise, porque a meu ver estão constituídas pelamodernidade ocidental, por esse contexto de tensão en-tre regulação e emancipação que deixou de fora as socie-dades coloniais, nas quais essa tensão foi substituída pela"alternativa" entre a violência da coerção e a violência daassimilação. Algumas correntes das ciências sociais vi-saram, sobretudo, a regulação - os estrutural-funciona-listas. Os outros, os marxistas, os críticos, centraram-semais na emancipação, mas a idéia foi sempre uma visãoeurocêntrica dessa tensão; uma visão, portanto, colonia-lista. A crise desse paradigma é geral e por isso inclui,com contornos distintos, todas as correntes até agora emvigor. Portanto, parece-me correto que se fale de uma cri-se geral das ciências sociais.

Além disso, nossas grandes teorias das ciências so-ciais foram produzidas em três ou quatro países do Nor-te. Então, nosso primeiro problema para quem vive noSul é que as teorias estão fora de lugar: não se ajustamrealmente a nossas realidades sociais. Sempre nos temsido necessário indagar uma maneira pela qual a teoria

Page 9: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

20 - Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos . 21

se ajuste a nossa realidade. Mas hoje o problema é ain-da maior, porque nossas sociedades estão vivendo emum contexto de globalização e vemos mais claramentea debilidade das teorias sociais com as quais podemostrabalhar. O Fórum Social Mundial (FSM), por exemplo,ocorreu apesar das teorias críticas e não em razão delas;a experiência do FSM não estava nas previsões das polí-

ticas de esquerda.Hoje vivemos um problema complicado, uma discre-

pância entre teoria e prática social que é nociva para ateoria e também para a prática. Para uma teoria cega, aprática social é invisível; para uma prática cega, a teoriasocial é irrelevante. E essa é uma situação que temos deatravessar se tentamos entrar no âmbito da articulaçãoentre os movimentos sociais. Ontem mesmo estava emum programa com dirigentes de movimentos sociais, deassociações de bairros, de piqueteiros', de empresas recu-

peradas, e discutíamos exatamente isto: não é simples-mente de um conhecimento novo que necessitamos; oque necessitamos é de um novo modo de produção de co-nhecimento. Não necessitamos de alternativas, necessi-tamos é de um pensamento alternativo às alternativas.

Isso é ainda mais urgente, e por isso precisamos fa-zer uma reflexão epistemológica, já que em nossos paísesse vê cada vez mais claro que a compreensão do mun-

do é muito mais ampla que a compreensão ocidental domundo. E por isso nos falta um conhecimento tão glo-bal como a globalização. Esse é o contexto em que nosencontramos hoje: é um desafio enorme para as novasgerações de cientistas sociais.

O Movimento Piqueteiro, contra o desemprego, surgiu na Ar-gentina em junho de 1996, durante o governo Menem, depois daprivatização da petroleira YPF, quando trabalhadores demitidospela empresa na província de Neuquén obstruíram rodovias e o

movimento se espalhou pelo pais. (N. T.)

Foi nesse contexto que propus um exercício: reunircientistas sociais do Sul e tentar realizar um projeto quese chamou "Reinventar a emancipação social a partir doSul" (ou seja, dos países periféricos e semiperiféricos dosistema mundial), para permitir que as ciências sociais sereunissem e organizassem internacionalmente fora doscentros hegemônicos.

Vocês conhecem a divisão do trabalho: se foremaos Estados Unidos ou à Europa, verão os estudantes(por exemplo, na Universidade de Wisconsin, onde tra-balho) fazendo pesquisas sobre a Argentina, Bolívia,Equador ou Moçambique. Em nossos países, quantosestudantes trabalham sobre a realidade de outros paí-ses? Nós trabalhamos sobre nossa realidade; eles fazemo trabalho global, e nós estamos de certa maneira loca-lizados. É uma divisão de trabalho eficaz nas ciênciassociais, porque depois as grandes organizações interna-cionais olham o mundo pelos olhos dos cientistas so-ciais do centro, do Norte. Por conseqüência, as teoriassociais reproduzem as desigualdades entre o Norte eo Sul. Portanto, organizei um projeto que reuniu seispaíses - Portugal, Colômbia, Brasil, África do Sul, Índiae Moçambique - com cerca de sessenta pesquisadoressociais. Os livros estão saindo, em espanhol também.Já há cinco em português, italiano e inglês. O primeirose chama Democratizar a democracia' e o segundo Pro-duzir para viver 2 . O terceiro, Reconhecer para libertar 2.

Boaventura de Sousa Santos (org.), Democratizar a democracia: oscaminhos da democracia participativa (Rio de Janeiro, CivilizaçãoBrasileira, 2002).

Boaventura de Sousa Santos (org.), Produzir para viver: os caminhos daprodução não capitalista (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002).Boaventura de Sousa Santos (org.), Reconhecer para libertar: os ca-minhos do cosmopolitismo multicultural (Rio de Janeiro, CivilizaçãoBrasileira, 2003).

Page 10: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 2322 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

O quarto, Semear outras soluções4 ; o quinto, Trabalharo mundo s . Apesar de ser o coordenador, não tracei umquadro teórico rígido; tentei reunir cientistas sociais deoutros países para, conjuntamente, conversar e pensarum projeto.

E surgiu um projeto no qual tentamos ver quaissão as contradições mais persistentes entre o Norte e oSul. O primeiro tema foi a democracia, porque há muitainovação democrática que está emergindo do Sul e nãodo Norte; entretanto, a teoria da democracia continuasendo produzida no Norte. O segundo tema foi a pro-dução não-capitalista, as formas de economia solidária,de economia social, de economia popular, que são tãoimportantes hoje no Sul. O terceiro tema, que a meu vervai se tornar um confronto entre o Norte e o Sul, é o domulticulturalismo; a diversidade cultural, a cidadaniacultural, os direitos indígenas etc. E o quarto é a ques-tão dos conhecimentos rivais, ou seja, a capacidade queo Norte tem de negar a validade ou mesmo a existênciados conhecimentos alternativos ao conhecimento cien-tífico - conhecimentos populares, indígenas, campone-ses etc. - para transformá-los em matéria-prima para odesenvolvimento do conhecimento científico. Nota-semuito isso na biodiversidade, e surge, então, a neces-sidade de repensar a situação. Finalmente, outro temade confronto é, a meu ver, o do novo internacionalismooperário; com o término do antigo (que de fato não era;internacional tem sido o capital, não o movimento ope-rário), estão emergindo muitas iniciativas Sul/Sul de

Boaventura de Sousa Santos (org.), Semear outras soluções: os ca-

minhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais (Rio de Janeiro,

Civilização Brasileira, 2004).

Boaventura de Sousa Santos (org.), Trabalhar o mundo: os cami-

nhos do novo internacionalismo operário (Rio de Janeiro, Civilização

Brasileira, 2004).

articulação entre os sindicatos ou comissões operáriasde trabalhadores da mesma multinacional.

Esses temas me levaram a uma reflexão epistemo-lógica. Primeiro, não é fácil desenvolver um projeto in-ternacional fora dos centros hegemônicos, pois somosmuito dependentes de seus autores. Em segundo lugar,quando se trabalha no Sul, o que vemos é que as ciênciasem geral, e as ciências sociais em particular, convivemcom diferentes culturas. Na Índia, por exemplo, a socio-logia convive com o hinduísmo, como aqui convivemoscom os pressupostos da cultura ocidental, e na Áfricacom tantas culturas africanas. Não há ciência pura, háum contato cultural de produção de ciência.

Isso é muito importante, já que aprendemos comnossa epistemologia positivista que a ciência é indepen-dente da cultura; entretanto, os pressupostos culturaisdas ciências são muito claros. Vamos, portanto, discutircomo podemos, no que diz respeito à ciência, ser obje-tivos mas não neutros; como devemos distinguir entreobjetividade e neutralidade. Objetividade, porque pos-suímos metodologias próprias das ciências sociais parater um conhecimento que queremos que seja rigoroso eque nos defenda de dogmatismos; e, ao mesmo tempo,vivemos em sociedades muito injustas, em relação àsquais não podemos ser neutros. Devemos ser capazesde efetuar essa distinção, que é muito importante.

A terceira idéia resultante foi que - tomando ainda asciências sociais - a compreensão do mundo é muito maisampla que a ocidental. Os colegas da África do Sul, da Ín-dia, de Moçambique têm uma maneira de ver a sociolo-gia, a sociedade e o mundo muito distinta da que existeno Norte. Então me pareceu que, provavelmente, o maispreocupante no mundo de hoje é que tanta experiênciasocial fique desperdiçada, porque ocorre em lugares remo-tos. Experiências muito locais, não muito conhecidas nemlegitimadas pelas ciências sociais hegemônicas, são hosti-

Page 11: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

24 • Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos . 25

lizadas pelos meios de comunicação social, e por isso têmpermanecido invisíveis, "desacreditadas". A meu ver, o pri-meiro desafio é enfrentar esse desperdício de experiênciassociais que é o mundo; e temos algumas teorias que nos di-zem não haver alternativa, quando na realidade há muitasalternativas. A gente vive lutando por coisas novas, e elessim pensam que há alternativas novas. Então devemos vercomo vamos enfrentar esse problema.

A outra questão importante desse trabalho com ossessenta pesquisadores foi que durante muito tempo nasciências sociais realmente insistimos - ainda hoje - emuma discussão que nos parecia absolutamente central, adiscussão entre estrutura e ação. Qual é a importânciadisso? Temos nos preocupado muito com essas distin-ções, mas quase esquecemos que uma preocupação ex-

clusiva com as condições objetivas nos conduziu a umaarmadilha: desmoralizamos a vontade de transformaçãosocial. Se as condições objetivas são tão poderosas, comopodemos transformar a sociedade?

Estamos diante de um grande problema: como in-

tensificar a vontade. Em outras culturas é mais fácil. Pro-vavelmente vocês se lembram de filmes da China ou daÍndia em que, com uma concentração de ioga, os perso-nagens podem, por meio de uma intensificação enormeda vontade, destruir um pedaço de madeira com a mão.Ou seja: não há condições objetivas se a vontade é forte.Em nossa cultura, ao contrário, não temos possibilidadedisso; nossa vontade está muito relacionada às condiçõesobjetivas, o que não me pareceria mal se complementás-semos com outra reflexão que as ciências sociais têm dei-xado de fora: a distinção entre ação rebelde e ação confor-

mista. Estou mais interessado nessa distinção e em comocriar subjetividades rebeldes do que em ficar discutindoos conceitos de estrutura e ação a vida toda.

Esse também é um desafio que me levou a observar oaspecto epistemológico de que lhes quero falar hoje. Depois

do que foi dito, fica claro que não podemos buscar a soluçãopara alguns desses problemas nas ciências sociais, porquese as usamos de maneira convencional elas se tomam partedo problema e não da solução. Temos de reinventar as ciên-cias sociais porque são um instrumento precioso; depoisde trabalhá-las epistemologicamente, devemos fazer comque elas sejam parte da solução e não do problema. Ou seja:não é um problema das ciências sociais, mas sim do tipo deracionalidade subjacente a elas. Com efeito, a racionalidadeque domina no Norte tem tido uma influência enorme emtodas as nossas maneiras de pensar, em nossas ciências, emnossas concepções da vida e do mundo.

A essa racionalidade - seguindo Gottfried Leibniz -eu chamo indolente, preguiçosa. É uma racionalidadeque não se exerce muito, que não tem necessidade de seexercitar bastante; daí por que fiz este livro publicado naEspanha, chamado A crítica da razão indolente: contra o des-perdício da experiência'. Então, o que estou tentando fazeraqui hoje é uma crítica à razão indolente, preguiçosa, quese considera única, exclusiva, e que não se exercita o su-ficiente para poder ver a riqueza inesgotável do mundo.Penso que o mundo tem uma diversidade epistemológicainesgotável, e nossas categorias são muito reducionistas.

A razão indolente se manifesta de diferentes formas.Duas me parecem particularmente importantes: a razãometonímica e a razão proléptica.

A razão metonímica. Metonimia é uma figura da teo-ria literária e da retórica que significa tomar a parte pelotodo*. E essa é uma racionalidade que facilmente toma aparte pelo todo, porque tem um conceito de totalidadefeito de partes homogêneas, e nada do que fica fora des-

6 Boaventura de Sousa Santos, A crítica da razão indolente: contra odesperdício da experiencia (São Paulo, Cortez, 2000).

* Mais especificamente a definição de sinédoque, um tipo de meto-nímia. (N.E.)

Page 12: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 2726 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

sa totalidade interessa. Então, tem um conceito restritode totalidade construído por partes homogêneas. Essemodo da razão indolente, que chamo razão metonímica,faz algo que, a meu ver, é um dos dois aspectos do des-perdício da experiência: contrai, diminui, subtrai o pre-sente. Ou seja, temos uma concepção do presente que écontraída, precisamente porque a concepção da raciona-lidade que possuímos não nos permite ter uma visão am-pla de nosso presente. Um grande filósofo alemão, ErnstBloch, dizia: se vivemos sempre no presente, por que eleé tão passageiro, tão fugaz? Em nosso conceito, o presen-te é um momento, mas é um momento, entre o passadoe o futuro, no qual vivemos sempre; nunca vivemos nopassado nem no futuro. Então esse conceito de razão me-tonímica contrai o presente porque deixa de fora muitarealidade, muita experiência, e, ao deixá-las de fora, aotorná-las invisíveis, desperdiça a experiência.

A razão proléptica é a segunda forma. Prolepse é umafigura literária bastante encontrada em romances, nosquais o narrador sugere claramente a idéia de que conhecebem o fim mas não vai contá-lo. É conhecer no presente ahistória futura. Nossa razão ocidental é muito proléptica,no sentido de que já sabemos qual é o futuro: o progresso,o desenvolvimento do que temos. É mais crescimento eco-nômico, é um tempo ideal linear que de alguma maneirapermite uma coisa espantosa: o futuro é infinito. A meuver, expande demais o futuro. A razão indolente, então,tem essa dupla característica: como razão metonímica,contrai, diminui o presente; como razão proléptica, expan-de infinitamente o futuro. E o que vou lhes propor é umaestratégia oposta: expandir o presente e contrair o futuro.Ampliar o presente para incluir nele muito mais experiên-cias, e contrair o futuro para prepará-lo.

Vocês viram essa coisa espantosa que é a discre-pãncia entre o nosso futuro individual e o futuro denossa sociedade. Sabemos que nosso futuro é limitado

porque nossa vida é limitada; por isso, tanto quantopodemos, cuidamos de nossa saúde, de nossa alimen-tação; cuidamos de nosso futuro porque ele é limitado.Com a sociedade não ocorre o mesmo: não é necessáriocuidar do futuro da sociedade porque ele é infinito. Oque estou propondo é visarmos o futuro de nossas so-ciedades quase como se fosse nosso futuro pessoal. Épreciso contrair o futuro e, ao mesmo tempo, ampliaro presente. É um procedimento epistemológico que, es-pero, possamos ver juntos como fazer.

Vamos começar pela razão metonímica, ou seja, poressa idéia de totalidade que é muito reducionista porquecontrai o presente ao deixar de fora muita realidade quenão é considerada relevante e que se desperdiça. Baseia-se em duas idéias: uma delas é a simetria dicotômica, queesconde sempre uma hierarquia. Vivemos em um conheci-mento preguiçoso, que é, por natureza, um conhecimentodicotômico: homem/mulher, norte/sul, cultura/natureza,branco/negro. São dicotomias que parecem simétricas massabemos que escondem diferenças e hierarquias. Podemosnos perguntar se na China ou na Índia há uma racionali-dade mais ampla. Eu respondo que sim, pois não têm omesmo tipo de racionalidade. A questão é para onde nosconduz uma racionalidade tão estreita como a nossa.

Uma coisa é clara: nossas formas de racionalidadeemergem da periferia do mundo. Vocês têm de ver que háuma angústia, uma inquietude no Ocidente: ser a perife-ria do Oriente. O conhecimento oriental é muito mais glo-bal, mais holístico, é totalidade, não é dicotômico. Todasessas dicotomias são vistas de outra maneira no Oriente,porque não existem como dicotomias, existem como par-tes que são articuladas em totalidades cósmicas, muitomais amplas, em multiplicidades de tempos - temposcirculares, tempos lineares, tempos de metempsicose, ouseja, da reencarnação. É uma racionalidade mais comple-xa, que vemos totalmente limitada por nossa forma de

Page 13: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

28 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos . 29

racionalidade. Nossa racionalidade se baseia na idéia datransformação do real, mas não na compreensão do real.

E este é nosso problema hoje: a transformação semcompreensão está nos levando a situações de desastre.Um grande filósofo alemão, Franz Wieacker, dizia: a ciên-cia ocidental faz perguntas, mas não pode se perguntarsobre o fundamento de suas perguntas. Isso me parecebastante verdadeiro para as ciências sociais. Então, a ra-zão metonímica tem essa dupla idéia das dicotomias edas hierarquias, por isso não é possível pensar fora dastotalidades: não posso pensar o sul sem o norte; a mu-lher sem o homem; não posso pensar o escravo sem oamo. Mas o que devemos inquirir é se nessas realidadesnão há coisas que estão fora dessa totalidade: o que há namulher que não depende da relação com o homem; o quehá no sul que não depende da relação com o norte; o quehá no escravo que não depende da relação com o amo. Ouseja, pensar fora da totalidade. Não é fácil, mas é o queproponho, porque essas totalidades de redução nos têmconduzido a essa contradição do presente.

Como se faz? Em que consiste a contração do presen-te? Faz-se por meio da redução da diversidade da realidadea alguns tipos – concretos, muito limitados, reduzidos –de realidade. Como se pode demonstrar que realmentehá muitas outras realidades fora dessa realidade? Pro-ponho, para combater a razão metonímica, utilizar umaSociologia das Ausências. O que isso quer dizer? Quemuito do que não existe em nossa realidade é produzidoativamente como não-existente, e por isso a armadilhamaior para nós é reduzir a realidade ao que existe. Assim,de imediato compartimos essa racionalidade preguiçosa,que realmente produz como ausente muita realidade quepoderia estar presente.

A Sociologia das Ausências é um procedimentotransgressivo, uma sociologia insurgente para tentarmostrar que o que não existe é produzido ativamente

como não-existente, como uma alternativa não-crível,como uma alternativa descartável, invisível à realidadehegemônica do mundo. E é isso o que produz a contra-dição do presente, o que diminui a riqueza do presente.Como se produzem as ausências? Não existe uma ma-neira única, mas cinco modos de produção de ausênciasem nossa racionalidade ocidental que nossas ciênciassociais compartem.

A primeira é a monocultura do saber e do rigor: a idéiade que o único saber rigoroso é o saber científico; por-tanto, outros conhecimentos não têm a validade nem origor do conhecimento científico. Essa monocultura re-duz de imediato, contrai o presente, porque elimina mui-ta realidade que fica fora das concepções científicas dasociedade, porque há práticas sociais que estão baseadasem conhecimentos populares, conhecimentos indígenas,conhecimentos camponeses, conhecimentos urbanos,mas que não são avaliados como importantes ou rigoro-sos. E, como tal, todas as práticas sociais que se organi-zam segundo esse tipo de conhecimentos não são criveis,não existem, não são visíveis. Essa monocultura do rigorbaseia-se, desde a expansão européia, em uma realidade:a da ciência ocidental.

Ao constituir-se como monocultura (como a soja),destrói outros conhecimentos, produz o que chamo "epis-temicídio": a morte de conhecimentos alternativos. Reduzrealidade porque "descredibiliza" não somente os conheci-mentos alternativos mas também os povos, os grupos so-ciais cujas práticas são construídas nesses conhecimentosalternativos. Qual é o modo pelo qual essa cultura cria ine-xistência? A primeira forma de produção de inexistência,de ausência, é a ignorancia.

A segunda monocultura é a do tempo linear, a idéia deque a história tem um sentido, uma direção, e de que ospaíses desenvolvidos estão na dianteira. E, como estãona dianteira, tudo o que existe nos países desenvolvidos

Page 14: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 3130 . Renovar a teoria critica e reinventar a emancipação social

é, por definição, mais progressista que o que existe nospaíses subdesenvolvidos: suas instituições, suas formasde sociabilidade, suas maneiras de estar no mundo. Esseconceito de monocultura do tempo linear inclui o concei-to de progresso, modernização, desenvolvimento e, agora,globalização. São termos que dão a idéia de um tempo li-near, no qual os mais avançados sempre estão na dianteirae todos os países que são assimétricos com a realidade dospaíses mais desenvolvidos são considerados atrasados ouresiduais. Então, a segunda forma de produção de ausên-cias é a residual, o que tem sido chamado pré-moderno,simples, primitivo, selvagem etc. Já se pode observar qualé a implicação dessa monocultura: nesse modelo, é impos-sível pensar que os países menos desenvolvidos possamser mais desenvolvidos que os desenvolvidos em algunsaspectos. Podem-se pensar alguns aspectos que são total-

mente funcionais para os países do Norte; os países menosdesenvolvidos podem, por exemplo, ter paisagens melho-res para o turismo, mas nada mais.

A terceira monocultura é a da naturalização das dife-renças que ocultam hierarquias, das quais a classificaçãoracial, a étnica, a sexual e a de castas na Índia são asmais persistentes. Ao contrário da relação capital/tra-balho, aqui a hierarquia não é a causa das diferenças massua conseqüência, porque os que são inferiores nessasclassificações naturais o são "por natureza", e por issoa hierarquia é uma conseqüência de sua inferioridade;desse modo se naturalizam as diferenças. Esta é outracaracterística da racionalidade preguiçosa ocidental:não sabe pensar diferenças com igualdade; as diferen-ças são sempre desiguais. Por conseguinte, o terceiromodo de produzir ausência é "inferiorizar", que é umamaneira desqualificada de alternativa ao hegemônico,precisamente por ser inferior.

A quarta monocultura de produção de ausência é amonocultura da escala dominante. A racionalidade meto-

nímica tem a idéia de que há uma escala dominante nascoisas. Na tradição ocidental, essa escala dominante temtido, historicamente, dois nomes: universalismo e, ago-ra, globalização. O que é o universalismo? Simplesmente,é toda idéia ou entidade que é válida independentementedo contexto no qual ocorre. Por sua vez, a globalizaçãoé uma identidade que se expande no mundo e, ao se ex-pandir, adquire a prerrogativa de nomear como locais asentidades ou realidades rivais. Ou seja, não há globaliza-ção sem localização. Quando você localiza o McDonald's,localiza suas comidas: torna-as étnicas, locais. E não háuniversalismo sem particularismo. E aqui, nessas duasformas, há uma maneira de criar ausências que é o par-ticular e o local. A realidade particular e local não temdignidade como alternativa crível a uma realidade global,universal. O global e universal é hegemônico; o particu-lar e local não conta, é invisível, descartável, desprezível.

A última monocultura é a monocultura do produti-vismo capitalista, que se aplica tanto ao trabalho comoà natureza. É a idéia de que o crescimento econômicoe a produtividade mensurada em um ciclo de produçãodeterminam a produtividade do trabalho humano ou danatureza, e tudo o mais não conta. Essa é uma maneiracontrária a toda outra forma de organizar a produtivi-dade. Por exemplo, para os indígenas ou os camponeses,a produtividade da terra não é definida em um ciclo deprodução, mas em vários, se a terra está produtiva esteano, no ano seguinte ela não é cultivada para que des-canse, e em seguida voltamos a cultivá-la. Toda a selvaestá organizada dessa maneira. Então, há outra lógicaprodutiva que não conta. A lógica produtiva é uma no-vidade da racionalidade ocidental, existe há quase cemanos - quando nasceram os produtos químicos na agri-cultura e a terra passou a ser produtiva em um ciclo deprodução, porque os fertilizantes mudaram p conceitode produtividade da natureza -, apareceu ao mesmo

Page 15: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 3332 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

tempo que o conceito de produtividade no trabalho.Tudo o que não é produtivo nesse contexto é considera-do improdutivo ou estéril. Aqui, a maneira de produzirausência é com a "improdutividade".

1-lá cinco formas de ausência que criam essa razãometonímica, preguiçosa, indolente: o ignorante, o resi-dual, o inferior, o local ou particular, e o improdutivo.Tudo o que tem essa designação não é uma alternativacrível às práticas científicas avançadas, superiores, glo-bais, universais, produtivas. Essa idéia de que não sãocríveis gera o que chamo a subtração do presente, porquedeixa de fora, como não-existente, invisível, "descredibi-lizada", muita experiência social. Se queremos inverteressa situação - por meio da Sociologia das Ausências -,temos de fazer que o que está ausente esteja presente,que as experiências que já existem mas são invisíveis enão-críveis estejam disponíveis; ou seja, transformar osobjetos ausentes em objetos presentes. Nossa sociologianão está preparada para isso, não sabemos trabalhar comobjetos ausentes, trabalhamos com objetos presentes;essa é a herança do positivismo. Estou propondo, pois,uma Sociologia insurgente.

Se é assim, essa falta, essa ausência, é um desperdíciode experiência. A maneira pela qual procede a Sociologiadas Ausências é substituir as monoculturas pelas ecolo-gias, e o que lhes proponho são cinco ecologias, em quepodemos inverter essa situação e criar a possibilidade deque essas experiências ausentes se tornem presentes. Ascinco ecologias são as seguintes.

A ecologia dos saberes. Não se trata de "descredibili-zar" as ciências nem de um fundamentalismo essencia-lista "anticiência"; como cientistas sociais, não podemosfazer isso. O que vamos tentar fazer é um uso contra-hegemônico da ciência hegemônica. Ou seja, a possibili-dade de que a ciência entre não como monocultura mascomo parte de uma ecologia mais ampla de saberes, em

que o saber científico possa dialogar com o saber laico,com o saber popular, com o saber dos indígenas, com osaber das populações urbanas marginais, com o sabercamponês. Isso não significa que tudo vale o mesmo.Discutiremos isso com o tempo. Somos contra as hierar-quias abstratas de conhecimento, das monoculturas quedizem, por princípio, "a ciência é a única, não há outrossaberes". Vamos iniciar, nesta ecologia, afirmando que oimportante não é ver como o conhecimento representao real, mas conhecer o que determinado conhecimen-to produz na realidade; a intervenção no real. Estamostentando uma concepção pragmática do saber. Por quê?Porque é importante saber qual é o tipo de intervençãoque o saber produz. Não há dúvida de que para levar ohomem ou a mulher à Lua não há conhecimento melhordo que o científico; o problema é que hoje também sabe-mos que, para preservar a biodiversidade, de nada servea ciência moderna. Ao contrário, ela a destrói. Porque oque vem conservando e mantendo a biodiversidade sãoos conhecimentos indígenas e camponeses. Seria apenascoincidência que 80% da biodiversidade se encontre emterritórios indígenas? Não. É porque a natureza neles é aPachamama', não é um recurso natural: "É parte de nossasociabilidade, é parte de nossa vida"; é um pensamentoantidicotômico. Então o que tenho de avaliar é se se vaià Lua, mas também se se preserva a biodiversidade. Sequeremos as duas coisas, temos de entender que necessi-tamos de dois tipos de conhecimento e não simplesmen-te de dm deles. É realmente um saber ecológico o queestou propondo.

A segunda é a ecologia das temporalidades. O im-portante é saber que, embora haja um tempo linear,também existem outros tempos. Os camponeses, porexemplo, têm tempos estacionais muito importantes.

' Divindade inca que se identifica com a Mãe Terra. (N. T.)

Page 16: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

34 - Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos . 35

Em comunidades da Africa, o tempo dos antepassadosé fundamental. Vivi a experiência com as autoridadestradicionais na África: se estamos em uma reunião, osantepassados fazem parte dessa reunião; não estão "an-tes", estão presentes. E vivi isso também na selva, comos ticunas, na Colômbia e no Brasil. É outra concepçãodo tempo, porque os que estão "antes" estão conosco,é uma concepção muito mais rica. Devemos entenderessa ecologia de temporalidades para ampliar a con-temporaneidade, porque o que fizemos com a nacionali-dade metonímica foi pensar que encontros simultâneosnão são contemporãneos. O camponês africano ou la-tino-americano pode se encontrar com o executivo doBanco Mundial: é um encontro simultâneo, mas nãocontemporâneo, porque o camponês latino-americanoou africano é "residual" e o executivo é "avançado". Oimportante, então, é reconhecer que o camponês é àsua maneira tão contemporâneo como o executivo, eeliminar o conceito de residualidade. Para isso é pre-ciso deixar que cada forma de sociabilidade tenha suaprópria temporalidade, porque, se vou reduzir tudo àtemporalidade linear, estou afastando todas as outrascoisas que têm uma lógica distinta da minha. Quandoo subcomandante Marcos diz "pudemos ficar caladosdurante quinhentos anos", para nós é incompreensível.Também posso lhes contar histórias maravilhosas dediferentes tipos de temporalidade que mostram como érealmente necessário ter essa ecologia. Em um projetono qual estávamos trabalhando na Colômbia, havia umaluta muito grande pela exploração de petróleo na SierraNevada de Santa Marta, onde vivem os u'was, um povoindígena que ameaçou se suicidar coletivamente casoexplorassem o petróleo em suas terras, por uma razãomuito simples: o petróleo é sangue da terra, e o sangueda terra é seu próprio sangue; sem sangue não se vive.No século XVII, quando os espanhóis tentaram colonizar

essa região, as famílias dos u'was realmente se mataram:pularam de um penhasco no lago, e ficou só um grupode famílias para manter a tradição. Essa era uma amea-ça muito grande, e em certo momento o ministro doMeio Ambiente da Colômbia decidiu falar com os taitas(anciões), os chefes indígenas. Chegou de helicóptero àSierra Nevada para se reunir com eles e averiguar porque não aceitavam a exploração do petróleo dizendoque eram territórios sagrados. Na reunião, o ministrofalou, e os taitas ficaram calados. O ministro pergun-tou por que não falavam, se era porque não queriamfalar com ele. Até que um disse: "Não, nós queremos, oproblema é que temos de consultar os antepassados".O ministro perguntou quanto tempo levaria isso, e otaita respondeu: "Veja, depende da lua, isso nós con-sultamos à noite". E quem conhece sua etnologia sabeque isso é verdade, que não era uma farsa, era o quepensavam. O ministro disse que ele não podia ficar até anoite, que o helicóptero não tinha luzes suficientes, quejá havia perdido duas horas de seu tempo conversando.Foi embora e os taitas continuaram sem falar. E, claro,no dia seguinte os jornais de Bogotá diziam: "Os taitasnão querem falar com o ministro". Queriam falar, sim,mas em seu tempo... Então a ecologia das temporalida-des é, a meu ver, imprescindível.

A terceira é a ecologia do reconhecimento. O procedi-mento que proponho é descolonizar nossas mentes parapoder produzir algo que distinga, em uma diferença, oque é produto da hierarquia e o que não é. Somente deve-mos aceitar as diferenças que restem depois que as hie-rarquias forem descartadas. Ou seja: mulher e homemsão distintos depois que fizermos uma sociologia ecoló-gica para ver o que não está conectado com a hierarquia.As diferenças que permanecerem depois de eliminarmosas hierarquias são as que valem. Mais adiantç vamos fa-lar do princípio de igualdade e do princípio da diferença.

Page 17: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos - 3736 • Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

A quarta é a ecologia da "transescala ", muito importan-te hoje para o FSM e para todo o nosso trabalho, e queconstitui a possibilidade de articular em nossos projetos asescalas Locais, nacionais e globais. Como cientistas sociais,fomos criados na escala nacional, como a política, comotudo. Os antropólogos tratavam um pouco o local; os soció-logos e os cientistas políticos, o nacional. Nesse quadro,tudo o que é local será embrionário se puder conduzir aonacional: os movimentos locais são importantes se po-dem tornar-se nacionais. Mas hoje temos de ser capazesde trabalhar entre as escalas, articular análises de escalaslocais, globais e nacionais. É muito difícil, porque nuncaobservamos fenômenos nas ciências sociais. Observamosescalas de fenômenos, e por isso muitos dos discursos dosexecutivos, ou das agências transnacionais, têm uma esca-la para ver os fenômenos que não é a nossa, ou que não é ados trabalhadores ou dos camponeses. Portanto, é precisoanalisar como é possível ver através das escalas.

E finalmente há a ecologia das produtividades. No domí-nio da quinta lógica, a lógica produtivista, a Sociologia dasAusências consiste na recuperação e valorização dos sis-temas alternativos de produção, das organizações econô-micas populares, das cooperativas operárias, das empresasautogestionadas, da economia solidária etc., que a ortodo-xia produtivista capitalista ocultou ou desacreditou.

Os movimentos de camponeses pelo acesso à terra e àpropriedade desta ou contra os megaprojetos de desenvol-vimento (por exemplo, as grandes represas que obrigam odeslocamento de muitos milhares de pessoas), movimentosurbanos pelo direito à moradia, movimentos econômicospopulares, movimentos indígenas para defender ou recupe-rar seus territórios históricos e os recursos naturais que ne-les foram descobertos, movimentos das castas inferiores daÍndia com o objetivo de proteger suas terras e seus bosques,movimentos pela sustentabilidade ecológica, movimentoscontra a privatização da água ou contra a privatização dos

serviços de bem-estar social, todos eles baseiam suas pre-tensões e lutas na ecologia das produtividades.

Quero me dedicar agora a analisar a crítica da razãoproléptica. As ecologias vão nos permitir dilatar o pre-sente com muitas experiências que nos são relevantes;agora vamos tentar contrair o futuro. Substituir um in-finito que é homogêneo, que é vazio - como dizia WalterBenjamin -, por um futuro concreto, de utopias realis-tas, suficientemente utópicas para desafiar a realidadeque existe, mas realistas para não serem descartadasfacilmente. A crítica da razão proléptica é feita por ou-tra sociologia insurgente, a Sociologia das Emergências.Enquanto a razão metonímica é confrontada com a So-ciologia das Ausências, a razão proléptica é enfrentadapela Sociologia das Emergências.

Tentaremos ver quais são os sinais, as pistas, latên-cias, possibilidades que existem no presente e que são si-nais do futuro, que são possibilidades emergentes e quesão "descredibilizadas" porque são embriões, porque sãocoisas não muito visíveis. Nas ciências sociais, por exem-plo, não gostamos das pistas, dos sinais. Trabalhamoscom indicadores. Mas os médicos, na saúde, trabalhamcom pistas, sinais; os detetives também. Somos muito cé-ticos a respeito das possibilidades da emergência. Entreo nada e o tudo - que é uma maneira muito estática depensar a realidade - eu lhes proponho o "ainda não". Ouseja, um conceito intermédio que provém de um filósofoalemão, Ernst Bloch: o que não existe mas está emergin-do, um sinal de futuro.

Assim, na Sociologia das Emergências temos de fa-zer uma ampliação simbólica, por exemplo, de um pe-queno movimento social, uma pequena ação coletiva.Às vezes somos culpáveis de "descredibilizar": "Isto nãoé uma democracia local, não tem sustentabilidade". Aocontrário, sem romantismos, devemos buscar

,

credibili-zar, ampliar simbolicamente as possibilidades de ver o

Page 18: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

38 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos • 39

futuro a partir daqui. A razão que é enfrentada pela So-ciologia das Ausências torna presentes experiências dis-poníveis, mas que estão produzidas como ausentes e énecessário fazer presentes. A Sociologia das Emergênciasproduz experiências possíveis, que não estão dadas por-que não existem alternativas para isso, mas são possíveise já existem como emergência.

Não se trata de um futuro abstrato, é um futuro doqual temos pistas e sinais; temos gente envolvida, dedi-cando sua vida - muitas vezes morrendo - a essas inicia-tivas. A Sociologia das Emergências é a que nos permiteabandonar essa idéia de um futuro sem limites e substi-tuí-la pela de um futuro concreto, baseado nessas emer-gências: por aí vamos construindo o futuro. O que estoupropondo é um duplo procedimento: ampliar o presentee contrair o futuro, por meio de procedimentos e ferra-mentas que estamos discutindo.

O último problema é que a Sociologia das Ausênciase a Sociologia das Emergências vão produzir uma enor-me quantidade de realidade que não existia antes. Va-mos nos confrontar com uma realidade muito mais rica,ainda muito mais fragmentada, mais caótica. Como en-contrar sentido em tudo isso? Se nós mesmos estamosrechaçando o conceito de progresso como tempo linear,como idéia de que há um sentido único da História, épossível pensar um mundo novo sem estarmos segurosde que ele surgirá? Não temos receitas para esse mun-do. Por isso, já não se trata do conceito do socialismocientífico: é outra idéia muito mais aberta. Tampouco éa idéia de Rosa Luxemburgo, "socialismo ou barbárie".Rosa abriu a proposta de Marx, ou seja: a possibilidadedo socialismo não é a única, há a possibilidade da bar-bárie e é preciso lutar para que uma delas seja a que serealize. Nós estamos ainda mais abertos: hoje dizemosque outro mundo é possível, um mundo cheio de alter-nativas e possibilidades.

Essa fragmentação vai nos levar a outra questão:como gerar sentido a partir disso? Qual seria a receita darazão indolente que temos compartido na ciência ociden-tal? Uma resposta simples seria: vamos criar a teoria geraldessas coisas, de todas essas experiências. Eu lhes digo quenão. Não é possível hoje uma epistemologia geral, não épossível hoje uma teoria geral. A diversidade do mundo éinesgotável, não há teoria geral que possa organizar todaessa realidade. Estamos em um processo de transição, eprovavelmente o possível seja o que chamo um universa-lismo negativo: neste momento, neste trajeto, não neces-sitamos de uma teoria geral. Não é possível, e tampoucodesejável, mas necessitamos de uma teoria sobre a impos-sibilidade de uma teoria geral. Estamos de acordo que nin-guém tem a receita, ninguém tem a teoria.

Isso vai criar outra maneira de entender, outra ma-neira de articular conhecimentos, práticas, ações cole-tivas, de articular sujeitos coletivos. Mas não podemospermanecer com uma fragmentação total, é necessáriocriar inteligibilidade recíproca no interior da pluralidade.Como é possível articular, por exemplo, o movimento fe-minista com o indígena, ou com o camponês, ou com osurbanos? Não posso reduzir toda a heterogeneidade domundo a uma homogeneidade que seria de novo uma to-talidade que deixaria de fora muitas outras coisas. Entãonão é possível a teoria geral. Mas como produzir sentido?Minha proposta é um procedimento de tradução.

A tradução é um processo intercultural, intersocial.Utilizamos uma metáfora transgressora da tradução lin-güística: é traduzir saberes em outros saberes, traduzirpráticas e sujeitos de uns aos outros, é buscar inteligibi-lidade sem "canibalização", sem homogeneização. Nessesentido, trata-se de fazer tradução ao revés da traduçãolingüística. Tentar saber o que há de comum entre um mo-vimento de mulheres e um movimento indígena, entre ummovimento indígena e outro de afrodescendentes, entre

Page 19: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

40 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos - 41

este último e um movimento urbano ou camponês, entreum movimento camponês da África e um da Ásia, ondeestão as distinções e as semelhanças. Por quê? Porque épreciso criar inteligibilidade sem destruir a diversidade.Um exemplo simples: os movimentos indígenas destecontinente nunca falam de emancipação social mas de dig-nidade e respeito, que são dois conceitos básicos. O mo-vimento operário ainda fala de emancipação e de luta declasses. As feministas usam muito o conceito de liberação,também os afrodescendentes. É necessário não preferiruma palavra a outra, mas traduzir dignidade e respeito poremancipação ou por lutas de classes, ver quais são as dife-renças e quais as semelhanças. Por quê? Porque há muitaslinguagens para falar da dignidade humana, para falar deum futuro melhor, de uma sociedade mais justa. Cremosque esse é o princípio fundamental da epistemologia quelhes proponho e que chamo a Epistemologia do Sul, que sebaseia nesta idéia central: não há justiça social global semjustiça cognitiva global, ou seja, sem justiça entre os co-nhecimentos. Portanto é preciso tentar uma maneira novade relacionar conhecimentos; é por isso que lhes proponhoo procedimento da tradução. Por exemplo, com o concei-to de "direitos humanos" faço uma tradução interculturalentre este conceito - que é de fato um conceito ocidentalo conceito de umma' do Isla e o conceito de dharma8 no hin-duísmo: são três conceitos distintos para falar da dignidade

Provém da cultura muçulmana e significa unir-se a uma nova co-munidade, a umma ou comunidade de crenças. Significa tambéma aceitação de um conjunto de categorias de direitos e deveres quesupera a solidariedade tribal ou étnica.Dharma significa "proteção". Par meio da prática, os ensinamen-tos do Buda nos protegem de sofrimentos e problemas. Nessa fi-losofia, todos os problemas que experimentamos na vida diáriaoriginam-se na ignorância, e o método para eliminar a ignorânciaé a prática do dharma (www.aboutdharma.com).

humana. Todos têm problemas, todos são incompletos,mas é preciso fazer a tradução entre eles, examinar sua re-latividade, sua incompletude.

Em nossa concepção, por exemplo, há uma simetriaenganadora entre direitos e deveres, porque geralmenteem nossa cultura falamos de direitos humanos mas nãode deveres humanos. A simetria é que não podemos con-ceder direitos àqueles dos quais não podemos exigir de-veres, só podemos outorgar direitos a quem tem deveres.Por isso em nossa cultura de direitos humanos a nature-za não tem direitos: porque tampouco tem deveres. Asgerações futuras não têm direitos porque tampouco têmdeveres. Isso não é assim no conceito de umma nem node dharma, mas esses conceitos têm outros problemas:vêem a dignidade em termos coletivos, e também é pre-ciso que vejam em termos individuais. Nunca vi uma so-ciedade sofrer fisicamente; homens e mulheres sofrem,há um elemento individual no sofrimento humano que éinegável, e isso deve ser visto pelos direitos humands.

Não há nenhuma cultura que seja completa, e entãoé preciso fazer tradução para ver a diversidade sem re-lativismo, porque os que estamos comprometidos commudanças sociais não podemos ser relativistas. Mas épreciso captar toda a riqueza para não desperdiçar a ex-periência, já que só sobre a base de uma experiência ricanão desperdiçada podemos realmente pensar em uma so-ciedade mais justa. Esse procedimento de tradução é umprocesso pelo qual vamos criando e dando sentido a ummundo que não tem realmente um sentido único, porqueé um sentido de todos nós; não pode ser um sentido queseja distribuído, criado, desenhado, concebido no Nortee imposto ao restante do mundo, onde estão três quartosdas pessoas. É um processo distinto, e por isso o chamo aEpistemologia do Sul, que tem conseqüências políticas - enaturalmente teóricas - para criar uma nova.concepçãode dignidade humana e de consciência humana.

Page 20: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos 4342 • Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

DEBATE COM O PÚBLICO

Pelo que entendi, a metonimia foi definida a partir da lingüís-tica e tem sido reformada pelo estruturalismo e pela psicaná-lise. Isso tem que ver com propor as relações por contigüidade,onde o que se deixa de fora é o que não é contíguo; suponhoque por isso o senhor diz que é reducionista. Se é assim, todaa proposição que fez sobre levar em conta a ausência, ampliaro universo simbólico do presente e trazer o futuro tem muitoque ver, para mim, com a metáfora, inclusive com a idéia detradução, onde não há uma equivalência unívoca entre umdiscurso e outro, mas sim que se trata de encontrar seme-lhanças e diferenças. Eu me perguntava, então, se se podefalar nesse sentido de uma racionalidade metafórica.

Eu tenho alguma dificuldade com a idéia de que pos-samos falar de uma racionalidade metafórica, sobretudoporque, normalmente, em nosso tempo de transição,essa é uma maneira de desqualificar a racionalidade: émetafórica, não é real, não é literal. Penso de maneiradistinta, por outro caminho, porque me parece que es-ses são demasiado ocidentais, dentro de uma pluralidadeepistemológica, de um saber que é o científico, e eu estoubuscando uma ecologia mais ampla do saber. Todo o co-nhecimento começa por ser metafórico. Quando falamosde corrente elétrica, algum de nós se dá conta de que issoé uma metáfora? Mas originalmente é: quando inventa-ram a eletricidade, não sabiam como chamá-la; o que co-nheciam era a corrente dos rios, que lhes pareceu seme-lhante, e passou-se metaforicamente a chamá-la assim, ehoje está "literalizada". Não se produz ciência sem metá-foras; meu debate com os positivistas, muito duro, é pre-cisamente porque penso que a própria ciência da vida -a biologia, por exemplo - não funciona sem metáforas.Não se devem desperdiçar experiências; se há traduçãode uma origem lingüística, se é um conceito que além dis-so foi utilizado de maneira hegemônica, é outra reprodu-

ção da razão preguiçosa. Traduzir assim é "canibalizar", eo que estou propondo é uma tradução recíproca: eu tra-duzo e você traduz, e nos traduzimos reciprocamente. Éuma maneira de buscar os conceitos que existem e trans-formá-los. Pertence à teoria geral da linguagem. Não po-demos pensar no novo senão com conceitos do velho, dalinguagem, do que temos, e ainda, quando queremos no-mear coisas novas, devemos fazê-lo a partir de coisas quesão velhas. É preciso reconhecer isso sem limitar nossacapacidade de imaginação epistemológica. O que estoupropondo é um exercício de imaginação epistemológica ede imaginação democrática: as duas são formas da ima-ginação sociológica do século XXI.

Se temos de trabalhar para que dialoguem duas formasde conhecimento e, às vezes, queremos as duas coisas, a No-diversidade e chegar à Lua, o que ocorre se uma coisa destróia outra? Como é possível o diálogo?

Essa é uma questão importante. Quando há incompa-tibilidade, há formas de incompatibilidade que são falsase outras que são reais. Um exemplo de incompatibilidadefalsa: nos anos 1960 houve na Índia e outros países uma"revolução verde", uma tentativa de incrementar a pro-dução agrícola por meio da substituição dos grãos queproduziam (milho e arroz) por outros que consideravammais produtivos, e assim também buscar outra forma deestrutura agrária e o uso de agroquímicos. Em Bali - umailha da Indonésia - havia um sistema de irrigação do ar-roz ancestral, milenar, organizado e administrado pelossacerdotes da deusa Dewi Danu, que é a deusa das águasdo hinduísmo nessa região. Quando chegaram os agentesda revolução verde, ajudados pelos dirigentes do BancoMundial, disseram que essa forma de irrigação era ilógi-ca, irracional, parte do que os antropólogos chamavam

Page 21: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 4544 • Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

"o culto ou magia do arroz", ou seja, que era mágica. Di-ziam: "Como vamos ter uma agricultura capitalista fortecom sacerdotes administrando o sistema de irrigação?".Desmantelaram-no todo e o substituíram por um sistematecnológico com engenharia de irrigação nova: foi um de-sastre total, porque nas montanhas de Bali é muito difícilorganizar um sistema diferente do tradicional. A perdada produção foi tão desastrosa que as autoridades da In-donésia decidiram eliminar o novo sistema de irrigação evoltar ao anterior. Aí alguns cientistas das novas ciências -é parte da disputa epistemológica que temos, que são asciências da complexidade, as teorias do caos, os sistemasauto-organizados, os novos modelos de ação computacio-nal - fizeram um estudo sobre os sistemas de irrigação deBali, por meio da modelação computacional, e chegaram àconclusão de que o sistema tradicional era o melhor paraessa realidade. Ou seja, tratava-se de uma falsa incompa-tibilidade: foi um conhecimento científico deficiente e er-rado o que declarou a incompatibilidade. Mas há outrasincompatibilidades reais, e penso que não existe outrapossibilidade senão tratar de conhecer as diferenças depoder entre cada grupo que está por trás de cada prática. Aepistemologia que proponho faz uma distinção muito cla-ra entre critérios cognitivos e critérios ético-políticos, masos dois estão sempre presentes. Os critérios cognitivos sãoos que administram certa forma de saber, mas decidir so-bre o tipo de intervenção no real não é cognitivo; essa é aarmadilha dos engenheiros, dos técnicos, que dizem: "Estaé a única solução técnica". Não, é produto de um critérioético e político. É uma disputa política, e, se realmentehouvesse uma incompatibilidade entre ir à Lua e preser-var a biodiversidade, deveríamos ter um debate global naTerra para dizer se necessitamos disto ou daquilo, aondevai o dinheiro, qual é o reconhecimento que vamos dar acada uma; são disputas políticas mais globais que necessi-tamos trazer à epistemologia. Não há outra possibilidade;

por meio da argumentação não podemos ter argumentosautomáticos que digam "este é o que vale porque está sus-tentado por conhecimentos científicos " , porque já sabe-mos em demasia que as coisas não são assim. Penso queo que necessitamos - como diria John Dewey - é de outrodiálogo da humanidade.

Trabalhamos com organizações camponesas e ficamosbastante atraídos pela sua proposta de tradução, mas acha-mos que, de alguma maneira, continuamos compreendendo eproduzindo em nosso contexto de produção, e ainda que pre-

tendamos tornar visíveis essas experiências silenciadas, essessaberes calados, apesar disso, continuamos escrevendo emcontextos nos quais somos sempre sociólogos, politicólogos.Escrevemos para outros cientistas sociais. Às vezes, quandonos encontramos com os camponeses, temos justamente quetraduzira nós mesmos. Então, nessa aposta de uma teoria datradução, não seria preciso também traduzir ou ressignificarnossos próprios espaços de produção dessa teoria da tradu-ção? Temos de continuar nas universidades? Qual o espaçoacadêmico mas também social (porque senão, em seus ter-

mos, não seria viável) da teoria da tradução?Agradeço muito a pergunta porque estou trabalhan-

do bastante nesta questão, que é muito séria: como fazera tradução de maneira que não traia os objetivos da tradu-ção, fazer uma Epistemologia do Sul que não acabe sendooutra forma de Epistemologia do Norte. Devemos ficartotalmente vigilantes. Penso que esse novo conhecimen-to tem de ser produzido de outra forma, muito mais hori-zontal, muito mais autóctone, muito mais compartilhada,e provavelmente as universidades tenham de passar poruma reestruturaçäo muito forte. E não sei se conseguirãofazê-lo. Por isso propus no FSM uma Universidade Popu-

Page 22: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

46 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos - 47

lar dos Movimentos Sociais 9 , que é a tentativa de organi-zar nesse âmbito um encontro sistemático entre cientis-tas sociais e líderes dos movimentos, para que possamosrealmente pensar com os movimentos, os dirigentes, osativistas, em outros contextos que não os eruditos. Masnão se muda o mundo de uma vez, é importante fazer asduas coisas: trabalhar dentro da universidade convencio-nal e criar instituições paralelas. Durante muito tempovamos ter de trabalhar assim. Isso é característico de umtempo de transição: trabalhar o velho para renová-lo atéo limite. A universidade tem um máximo de consciênciapossível, é preciso explorá-lo. E pode-se fazer ecologia desaberes dentro da universidade. Para mim, é a extensãouniversitária ao contrário: a extensão convencional é le-var a universidade para fora, a ecologia de saberes é trazeroutros conhecimentos para dentro da universidade, umanova forma de pesquisa-ação, em que a sociologia latino-americana tem tradições muito fortes que infelizmentetêm sido bastante descartadas pelas novas gerações decientistas sociais deste continente. Então você tem razão:devemos encontrar outros espaços, espaços públicos não-estatais onde compartilhar conhecimentos, fazer permu-

ta de conhecimentos e análises. Ontem estava em umareunião com movimentos sociais daqui, onde em quinzeminutos cada um dos líderes apresentou seu trabalho, eeu não quis falar mais de quinze minutos para não tirartempo do debate, porque habitualmente o conhecimen-to teórico erudito tem prioridade sobre o conhecimentoprático local. O debate posterior foi maravilhoso. Pensoque é preciso encontrar formas que incluam mais debate.Os novos modos de produção de conhecimento exigemoutros espaços. Eu falava também com estudantes de di-reito que disseram haver professores muito progressistasque mantêm relação com movimentos sociais e outros,

qVer www.ces.uc.pt.

mas que nas aulas são muito conservadores. Por que essaesquizofrenia? É preciso trazer à aula o direito como umfenômeno político de alta intensidade e contraditório,como um campo de disputa.

Vários de seus conceitos parecem próximos do conceitode complexidade de Morin. É isso mesmo?

Claro que o pensamento de Edgard Morin tem sidomuito importante para nós; acredito que na AméricaLatina também. Procuramos partir daí com outros insu-mos, com outras preocupações, porque provavelmente oque estou indagando agora não é o mesmo que busca-va Morin quando começou. Todos temos os problemasde nosso tempo. Eu estou buscando uma epistemologiaadequada para entender o FSM, uma globalização alter-nativa, os conhecimentos que se juntam, e não estoupensando somente em tradução entre diferentes cultu-ras, e sim, por exemplo, entre poesia e ciência. Veja o queaconteceu quando estivemos em Mumbai para o IV Fó-rum Social Mundial: qual é a grande forma de comunicara luta quando não se compartilha a língua? Há milharesde línguas na Índia, os 33 mil dalits' - as castas mais in-feriores - cantavam, dançavam, a música era uma expres-são de emancipação social. Nossa cultura é totalmente"logocêntrica". Por isso o ministro da Colômbia teve de irembora, porque o silêncio não nos cai bem; somos umacultura de palavras. Há outras culturas que cultivam osilêncio ou outras formas: a poesia, a espiritualidade.Como vamos ver a questão da espiritualidade, por exem-

Os dalits são a casta que ocupa o lugar mais baixo na pirâmide so-cial indiana. A eles cabem os trabalhos considerados degradantesou indignos por outras castas. (N. T.)

Page 23: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos - 4948 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

plo, com tantos movimentos que são progressistas, quelutam contra a indignidade do capitalismo, que queremuma sociedade não-capitalista mas formulam suas rei-vindicações em termos que parecem religiosos, se vocêvem de uma cultura onde houve laicização e seculariza-ção, onde ser religioso pode ser reacionário, a menos quese trate da Teologia da Libertação (que agora com estepapa será ainda mais difícil)? Em nossas ciências sociaisnão somos capazes de ver a espiritualidade porque nãohá indicadores para isso, como não há indicadores para afelicidade... mas necessitamos de uma epistemologia quedê conta disso. O que é novo, ao contrário da mobiliza-ção moderna - sobretudo a sindical ou dos partidos -,é que hoje a mobilização exige razões para se mobilizar,não pode ser um comitê ou direção central quem decide;não, as pessoas querem discutir razões e buscar razõespara a mobilização, e exigem outra epistemologia. O au-toritarismo da ciência positivista estava de certa maneiraconectado com o autoritarismo em política, inclusive naesquerda. Então, tudo isso tem de ser construído ao mes-mo tempo, lentamente, e correndo riscos. Não temos ou-tra opção, são nossos corpos que estão incorporados emuma história. E. a materialidade de nosso corpo, a partirda qual tentamos pensar o que está fora do corpo. Só esseé o limite do que podemos pensar.

Como solucionar o grande problema de dar nomes, de ser-mos fiéis à novidade, com os velhos termos com que lidamos?

Essa é a pergunta mais dilemática. Não há possi-bilidade, é preciso haver uma vigilância epistemológicamuito grande, é preciso discutir, é preciso ver onde ne-cessitamos criar conceitos novos, conceitos nômades, épreciso lutar sempre contra o reducionismo. Existem trêsgrandes erros dessa razão indolente que domina a epis-

temologia positivista: o reducionismo, o determinismo eo dualismo. Seus três grandes eixos. Deve-se lutar contracada um deles, e é preciso fazer transgressões. Muitasvezes buscamos o novo nos interstícios, o que está entreas realidades, porque a realidade lingüística, como a rea-lidade social, como a de nossas subjetividades, é um pa-limpsesto. Ou seja: é um conjunto de estratos geológicosde nossa sociabilidade, que estão articulados de maneiramuito complexa. Muitas vezes precisamos migrar de umcampo a outro, de um estrato a outro, de uma linguagema outra, de uma ciência a outra; a transdisciplinaridadeé, em parte, isso. Temos ainda de buscar conceitos quevenham de outros conhecimentos. Por exemplo, se nãoquero traduzir "desenvolvimento" em uma discussãocom pessoas da Índia, tenho de começar com o concei-to de swadeshi, que era o conceito de Gandhi para essaidéia, muito mais amplo, porque é um conceito tambémreligioso: não é só econômico como o nosso, tem que vercom se os seus deuses não o agradam, invente outros,mas seus. O hinduísmo é a religião mais democrática,não é necessário um papa para beatificar ou santificar,eles podem como comunidade ter seus próprios santos esuas próprias divindades. Falam de uma lógica de proxi-midade, mas também espiritual, e então não é fácil tra-duzir. Se uso o conceito de swadeshi, vão me dizer: "Vocêé gandhiano". Temos sempre uma grande ansiedade depertença, e isso também torna difícil pensar o novo.

Page 24: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Capítulo II

Uma nova culturapolítica emancipatória

As grandes teorias às quais nos acostumamos - dealguma maneira, o marxismo e outras correntes etradições - não parecem nos servir totalmente nestemomento. Servem-nos em parte, e acredito que hojehá uma volta ao marxismo em todo o mundo. Issonão me surpreende porque a crise do marxismo, dealguma maneira, coincidiu com a "marxização" domundo: a idéia de que o mundo era cada vez mais pa-recido com o que Marx havia diagnosticado. As difi-culdades aparecem ao passarmos do diagnóstico parauma visão do futuro, questão que rio marxismo nostraz muitos problemas.

Mas há outras dificuldades. O materialismo his-tórico converteu o capitalismo em um fator de pro-gresso, em uma fase de progresso da humanidade, eisso nos trouxe problemas pelo fato de essa idéia terdeixado de fora uma questão que, para nós, é fun-damental: a questão colonial. O colonialismo nãotem sido bem tratado nessa teoria e, além disso, emalguns textos de Marx vemos uma justificação - so-bretudo na Índia - do colonialismo como fator do ca-pitalismo: colonialismo é capitalismo, e é muito im-portante que recordemos isso.

Page 25: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

52 - Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos . 53

A outra conseqüência foi tornar invisíveis, esconderoutras formas de opressão, de discriminação e de exclu-são que, para nós, hoje são muito importantes: o racismo,o sexismo, as castas etc. Outra conseqüência problemá-tica é que o marxismo, de alguma maneira, compartilhao ideal da unidade do saber, da universalidade do sabercientífico e de sua primazia. Se propomos hoje a neces-sidade de uma ecologia de saberes, estamos falando dealgo distinto. Finalmente, toda a teoria crítica tem sidobastante monocultural, e hoje estamos cada dia maisconscientes da realidade intercultural de nosso tempo.Por essa razão, chegamos à conclusão de que, provavel-mente, a razão que critica não pode ser a mesma que pen-sa, constrói e legitima o que é criticável.

Necessitamos de outro tipo de racionalidade, e aícomeçamos a pensar um tipo de racionalidade maisampla, precisamente para reinventar a teoria crítica deacordo com nossas necessidades hoje. Uma coisa clarapara nós é que não há conhecimento geral; tampoucohá ignorância geral. Somos ignorantes de certo conhe-cimento, mas não de todos. Todo conhecimento se dis-tingue por seu tipo de trajetória, que vai de um ponto Achamado "ignorância" a um ponto B chamado "saber", eos saberes e conhecimentos se distinguem exatamentepela definição das trajetórias pelos pontos A e B. Po-demos dizer que na matriz da modernidade ocidentalhá dois modelos, dois tipos de conhecimento que po-dem se distinguir da seguinte maneira: o conhecimentode regulação e o conhecimento de emancipação. A tensãopolítica é também epistemológica.

Tanto o conhecimento-regulação (CR) como o co-nhecimento-emancipação (CE) têm um ponto A, que éde ignorância, e um ponto B, que é de saber. A ignorânciano CR é caos, ser ignorante é viver em um caos da rea-lidade incontrolada e incontrolável, seja na natureza ouna sociedade; e conhecer, saber, é ordem. A trajetória do

CR vai do caos à ordem. Saber é pôr ordem nas coisas, narealidade, na sociedade. Mas houve na matriz da socie-dade ocidental outro conhecimento, o CE, que tem umponto A chamado colonialismo, ou seja, a incapacidade dereconhecer o outro como igual, a objetivação do outro –transformar o outro em objeto –, e o ponto B, que é o quepoderíamos chamar autonomia solidária. Aqui o conhecervai do colonialismo à autonomia solidária.

Esses dois modelos estão inscritos na matriz damodernidade ocidental: mas o CR dominou por inteiroquando a modernidade ocidental passou a coincidir como capitalismo. As potencialidades da modernidade oci-dental pertencem à matriz colonial, mas poderiam ima-ginar outros horizontes distintos – o capitalismo e o so-cialismo são um bom exemplo. Entretanto, o CR passoua dominar, e quando o fez foi recodificando o CE em seuspróprios termos. O que era conhecimento-saber (auto-nomia solidária) passou a ser no CE uma forma de caos (asolidariedade entre as classes é perigosa, a solidariedadeno povo é uma forma de caos que é necessário controlar),portanto o que era "conhecimento" passou a ser no CR"ignorância". E, ao contrário, o que era "ignorância" noCE passa a ser "saber" no CR, ou seja: o colonialismo pas-sa a ser uma forma de ordem.

Essa é a maneira com que tento ver o que se passoue por que é necessário reinventar o conhecimento-eman-cipação. Porque de alguma maneira a ciência moderna sedesenvolveu totalmente no quadro do conhecimento-re-gulação que recodificou, canibalizou, perverteu as possi-bilidades do CE. E é por isso que o CE tem de ser umaecologia de saberes, não pode ser simplesmente o sabercientífico moderno que temos: este é importante, ne-cessário, mas tem de estar incluído em uma ecologia desaberes mais ampla. É muito importante fazer essa mu-dança, de uma epistemologia baseada somente em umaforma de conhecimento para outra de ecologia. Quando

Page 26: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 5554 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

há uma ecologia de saberes, a ignorância não é necessa-riamente um ponto de partida, pode ser um ponto dechegada. Quando um estudante da Índia entra na uni-versidade norte-americana, provavelmente vai aprendermuitas coisas, mas vai desaprender muitas outras.

Devemos fazer uma nova pergunta: o que vocêaprende vale o que desaprende ou esquece? Há conheci-mentos próprios, e isso que pode parecer uma coisa mar-ginal é um problema absolutamente central na África, naÁsia e também na América Latina. Existe outra maneirade ver a ignorância, porque a utopia de uma ecologia desaberes é que possamos aprender outros conhecimen-tos sem esquecer nossos próprios conhecimentos. Masnosso ensino nas universidades, nossa maneira de criarteoria, reprime totalmente o conhecimento próprio, odeslegitima, o desacredita, o inviabiliza. Portanto, temosde enfrentar desafios exigentes, como estou propondoneste seminário.

O primeiro desafio é reinventar as possibilidadesemancipatórias que havia nesse conhecimento emanci-pador: uma utopia crítica. Vivemos hoje em um mundodominado por utopias conservadoras. Franz Hinkelam-mert as definiu muito bem como a "radicalização dopresente". A utopia do neoliberalismo é conservadora,porque o que se deve fazer para resolver todos os proble-mas é radicalizar o presente. Essa é a teoria que está portrás do neoliberalismo. Ou seja: há fome no mundo, hádesnutrição, há desastre ecológico; a razão de tudo issoé que o mercado não conseguiu se expandir totalmente.Quando o fizer, o problema estará resolvido. Temos demudar essa utopia conservadora para uma utopia críti-ca, porque também as utopias críticas da modernidade -como o socialismo centralizado - se converteram, com otempo, em uma utopia conservadora.

Estamos em um contexto em que é necessário ten-tar outras aprendizagens de utopia crítica. Sobretudo

porque a hegemonia mudou. Até agora ela se baseava naidéia do consenso, de que algo é bom para todos e näosomente para os que diretamente se beneficiavam dele;é bom inclusive para os que de fato vão sofrer com isso.A hegemonia é uma tentativa de criar consenso basea-da na idéia de que o que ela produz é bom para todos.Mas houve uma mudança nessa hegemonia, e hoje o queexiste deve ser aceito não porque seja bom, mas porque éinevitável, pois não há nenhuma alternativa. Isso, a meuver, torna ainda mais importante a necessidade de umautopia crítica, mas tem também algumas dificuldades.

Há dois problemas teóricos muito importantes: o dosilêncio e o da diferença. O silêncio é o resultado do silen-ciamento: a cultura ocidental e a modernidade têm umaampla experiência histórica de contato com outras cultu-ras, mas foi um contato colonial, um contato de desprezo,e por isso silenciaram muitas dessas culturas, algumasdas quais destruíram. Por isso, quando queremos tentarum novo discurso ou teoria intercultural, enfrentamosum problema: há nos oprimidos aspirações que não sãoproferíveis, porque foram consideradas improferíveisdepois de séculos de opressão. O diálogo não é possívelsimplesmente porque as pessoas não sabem dizer: nãoporque não tenham o que dizer, Mas porque suas aspira-ções são improferíveis. E o dilema é como fazer o silênciofalar por meio de linguagens, de racionalidades que nãosão as mesmas que produziram o silêncio no primeiromomento. Esse é um dos desafios mais fortes que temos:como fazer o silêncio falar de uma maneira que produzaautonomia e não a reprodução do silenciamento.

A diferença é outro desafio muito importante, porquea tradução tem alguns problemas -além da reciprocidade -como, por exemplo, a idéia da incomensurabilidade. Nodiálogo intercultural, temos de produzir uma luta con-tra duas frentes. Uma é a política de hegemonia: não háoutras culturas críveis. A outra é a política de identidade

Page 27: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 5756 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

absoluta: há outras culturas, mas são incomensuráveis.Não nos serve nem uma política de hegemonia nem umapolítica identitária fundamentalista, mas, como sempre,uma via nova não é fácil, porque às vezes temos de en-contrar o que é semelhante, e o semelhante é um pontode partida, não de chegada.

Um debate interessante hoje na filosofia versa sobrea possibilidade de uma filosofia africana. É um grande de-bate entre tradicionalistas e modernistas. Há os que dizemque há uma filosofia africana conectada com sua culturae como tal não é uma filosofia que pode dialogar com afilosofia ocidental: são os tradicionalistas. E há outros quedizem que não há uma filosofia africana, há uma filosofiauniversal, o fato de ter começado no Ocidente (o que é umerro; como sabemos, começou na África) é só uma questãode tempo, amanhã os africanos estarão com Aristóteles,Platão: são os modernistas. Aqui o problema é ver comovamos desenvolver uma posição entre os que querem, porum lado, reconhecer a filosofia africana e, por outro, poderpensar que há um diálogo entre as filosofias.

Qual é a dificuldade para nós? Temos de nos acostu-mar a ser interdisciplinares. Começamos com um concei-to muito simples, que é um princípio fundamental paratoda a filosofia cartesiana: "Penso, logo existo". Um gran-

de filósofo africano, Kwasi Wiredu, diz: veja só, eu venhoda Nigéria, meu povo é o akan e em minha língua africa-na eu não posso traduzir isso; pensar, em minha língua,é medir algo. Então esse conceito não tem sentido. Alémdisso, o "sou" também não existe em minha língua, nóssempre "estamos num lugar", tenho de dizer sempre queestou em um território, em um lugar, em uma posição, eessa localização reduz de imediato o pressuposto univer-salista do "penso, logo existo".

Aqui existe uma incomensurabilidade, e muitos pen-sam que é uma debilidade da filosofia africana não poderdar um conceito tão simples como o cogito ergo sum. Mas

temos de ir além disso. O debate hoje é como reconhecerisso, quais são as idéias na filosofia africana que não po-dem ser expressas na ocidental. E há muitíssimas idéias:a de que "nós" somos toda a humanidade, por exemplo,em uma unidade muito concreta com a natureza; isso sevê muito também na filosofia andina. É preciso encon-trar outro tipo de diálogo entre as diferentes filosofias, etambém aqui aparece o desafio. É preciso conversar mui-to mais, dialogar muito mais, buscar outra metodologiade saber, ensinar, aprender.

O terceiro desafio é distinguir entre objetividade eneutralidade. É a idéia de que devemos ter uma distânciacrítica em relação à realidade, mas, ao mesmo tempo,não podemos nos isolar totalmente das conseqüênciase da natureza do nosso saber, porque ele está contex-tualizado culturalmente; todo saber é local, todos ossistemas de saber são locais, inclusive as ciências. Aquio desafio vem de algo muito concreto que faz parte daciência moderna, uma discrepância que provavelmentepassa despercebida mas é muito importante: a capaci-dade de ação científica é muito maior que a capacidadede previsão das conseqüências da ação científica. Temosmuitos problemas ecológicos, sociológicos, políticos,que derivam dessa discrepância: a ação científica de umeconomista em um país é uma coisa; a análise científicadas conseqüências dessa ação é outra; as conseqüênciasfazem muito mais ruído. Hoje, na ciência moderna, asações científicas são sempre mais "científicas" que asconseqüências dessas ações. Se queremos ter uma ati-tude pragmática para observar as conseqüências, paraintervir na realidade, temos de enfrentar essa discre-pância que existe na ciência moderna, mas não existe,por exemplo, da mesma maneira em outros saberes.

O quarto desafio é a necessidade de nos concentrarmosem como desenvolver subjetividades rebeldes e não apenassubjetividades conformistas. Assim, a questão fundamen-

Page 28: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 5958 • Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

tal é como intensificar a vontade, um problema tambémcomplicado para nossa construção teórica, porque há umadimensão que chamamos racional dos argumentos; mas hátambém uma dimensão mítica em todos os saberes, que éa crença, a fé na validade de nossos conhecimentos. Todosos nossos conhecimentos têm um elemento de logos e umelemento de mythos, que é a emoção, a fé, o sentimento quecerto conhecimento nos proporciona pelo fato de o termos,a repugnância ou o amor que nos provoca.

Há uma dimensão emocional no conhecimento quecostumamos trabalhar muito mal, e então devemos vero que distingue as duas correntes de nossa vida, tantonas sociedades como nos indivíduos: a corrente fria e acorrente quente. Todos temos as duas: a corrente fria éa consciência dos obstáculps; a corrente quente é a von-tade de ultrapassá-los. As culturas distinguem-se pelaprimazia que dão à corrente fria ou à corrente quente.Acredito que a corrente fria é absolutamente necessáriapara que não nos enganemos, e também a corrente quen-te é muito importante para não desistirmos facilmente.Hoje, temos a idéia de que é necessário encontrar qua-dros teóricos e políticos que continuem tentando não serenganados, mas ao mesmo tempo sem desistir, sem en-trar no que chamamos a razão cínica, a celebração do queexiste porque não há nada além. Esse é outro desafio.

Finalmente, existe um quinto desafio. O objetivo daSociologia das Ausências e do procedimento da traduçãoé a tentativa de criar uma Epistemologia do Sul. Essaepistemologia tem uma exigência que não incluímosmuito facilmente em nossas teorias, o pós-colonialismo.É a idéia de que a modernidade ocidental tem uma vio-lência matricial - a violência colonial - e nem sequer ascorrentes mais críticas de um pós-modernismo de oposi-ção como as que defendi no passado se dão conta (é umaautocrítica que faço de minhas primeiras formulações)dessa violência matricial que é o colonialismo.

Será que podemos dizer que o colonialismo passou, eque com poucas exceções só há países independentes? Não.Em nossas teorias temos de incluir a perspectiva pós-colo-nial, que tem duas idéias muito categóricas. A primeira é queterminou o colonialismo politico, mas não o colonialismosocial ou cultural; vivemos em sociedades nas quais não sepode entender a opressão ou a dominação, a desigualdade,sem a idéia de que continuamos sendo, em muitos aspec-tos, sociedades coloniais. Não é um colonialismo politico,é de outra índole, mas existe. Aníbal Quijano, sociólogo pe-ruano, fala da colonialidade do poder. O outro princípio dopós-colonialismo é uma primazia na construção teórica dasrelações Norte-Sul para tentar pensar o Sul fora dessa rela-ção. É preciso analisar muito detalhadamente essa relaçãopara tentar criar alternativas, porque o Sul imperial é umproduto do Norte. Há um Sul imperial e um Sul antiimpe-rial, contra-hegemónico, emancipatório.

Por isso, para uma Epistemologia do Sul é necessáriosaber o que é o Sul, porque no Sul imperial está o Norte. Épreciso criar esse Sul contra-hegemónico, e o pós-colonialis-mo é, a meu ver, muito importante, pois tem também umaterceira idéia: das margens se vêem melhor as estruturas depoder. Devemos analisar as estruturas de poder da socie-dade a partir das margens, e mostrar que o centro está nasmargens, de uma maneira que às vezes escapa a toda nossaanálise. Para essa concepção, colonialismo são todas as tro-cas, todos os intercâmbios, as relações, em que urna partemais fraca é expropriada de sua humanidade. Há muitassociedades hoje que não podemos entender de verdade semessa idéia de privação da humanidade das pessoas.

Dessa teoria pós-colonial advém outra coisa impor-tante: é preciso provincializar o Norte. Um autor da Índia,Dipesh Chakrabarty, escreveu um livro com esse nome',

' Dipesh Chakrabarty, ProvincializingEurope: postcolonial thought andhistorical difference (Princeton, Princeton University Press, 2000).

Page 29: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

60 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos - 61

mas acredito que para nós – os de língua espanhola ou por-tuguesa - ele não serve, porque essa idéia de provincializara Europa a essencializa, e muitos dos estudos pós-coloniaisdominantes vêm de autores que pertencem à diáspora docolonialismo inglês. Nosso colonialismo é ibérico, muitodiferente do colonialismo anglo-saxão. Portugal, ao mesmotempo que centro de um império, foi uma colônia informalda Inglaterra. Em nossas sociedades, o pós-colonialismo seaplica, em alguns aspectos, tanto aos colonizadores comoaos colonizados. Por outro lado, o colonialismo ibérico naAmérica Latina conduziu a processos de independência- as independências foram conquistadas pelos descenden-tes dos colonos e não pelos povos originais - que nos obri-gam a dar uma atenção muito especial aos colonialismosinternos. Temos de ver como distinguir nossa história, ado colonialismo ibérico, para descobrir quais são as raízesde uma luta pós-colonial em nossos países. E esse tambémé um desafio complicado.

Com isso encerro os desafios que estão diante denós, e vamos tentar ver que avanços teóricos são possí-veis à luz desses desafios. Não estamos tentando criarum pensamento de vanguarda; o que estamos fazendoé compreender o mundo e transformá-lo junto com osmovimentos e as associações que compartilham essapaixão conosco. É uma paixão, uma emoção, uma cor-rente quente que tem de ser introduzida na nacionali-dade ocidental. Por isso não se pode avançar muito se aprática não avança.

O Fórum Social Mundial tem sido muito importantepara permitirmos alguns avanços na teoria. Ajuda-nos arenovar a teoria social e política em diferentes níveis.

Um nível é uma concepção mais ampla de poder e deopressão. Durante muito tempo - e este é também um doslimites de nossa tradição marxista, que continua sendomuito importante, mas deve ser objeto de uma ecologiade outros saberes - fomos obrigados a nos concentrar em

uma só forma de opressão ou dominação: a do capital-tra-balho. O FSM nos ensinou que há diferentes formas deopressão e de poder, e que talvez não seja possível deter-minar, em geral, para todo o mundo, o que é sempre maisimportante em uma luta. Os que estão nos movimentos enas associações sabem que, às vezes, a prioridade de umaluta e de uma forma de opressão não pode ser determina-da de maneira geral, mas apenas contextual, nas condiçõesconcretas. Aprendemos bastante com os zapatistas, porexemplo: quando, em 11 de março de 2001, chegaram àCidade do México, eles eram o movimento hegemônico ali,a contradição hegemônica do México, porque é uma lutaindígena que tenta envolver todas as outras formas de lutano país, que tem ele próprio outras formas de opressão. Equando finalmente conseguem falar no Congresso, quemfala é uma mulher, a comandante Esther, porque os zapa-tistas querem mostrar uma articulação muito forte entre aopressão indígena e a opressão das mulheres.

Devemos ver de forma mais ampla. Entre os cientistassociais, cada um tem sua opção. A minha é que não se deveficar tão centrado na estrutura ou na ação e sim na rebeldiaou no conformismo. As estruturas pertencem à correntefria, que é necessária, mas tem havido até agora uma manei-ra reducionista de ver esses obstáculos estruturais. Por isso,no trabalho eu faço distinção entre seis espaços estruturais,nos quais se geram seis formas distintas de poder. São es-paços-tempo, formas de sociabilidade que implicam lugaresmas também temporalidades, duração, ritmos:

o espaço-tempo doméstico, onde a forma de poderé o patriarcado, as relações sociais de sexo;

▪ o espaço-tempo da produção, onde o modo de po-der é a exploração;

▪ o espaço-tempo da comunidade, onde a forma depoder é a diferenciação desigual entre quem per-tence à comunidade e quem não pertence;

Page 30: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos • 6362 • Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

• o espaço estrutural do mercado, onde a forma depoder é o fetichismo das mercadorias;

• o espaço-tempo da cidadania, o que normalmentechamamos de espaço público: aí a forma de poderé a dominação, o fato de que há uma solidariedadevertical entre os cidadãos e o Estado;

• o espaço-tempo mundial em cada sociedade, queestá incorporado em cada país, onde a forma de po-der é o intercâmbio desigual.

Essas são as seis formas fundamentais de poder.Provavelmente há outras, mas patriarcado, exploração,fetichismo das mercadorias, diferenciação desigual, do-minação e intercâmbio desigual são, a meu ver, instru-mentos analíticos que podem ser vistos como modos deprodução de poder e de saber. Há um sentido comum quese cria em cada um desses espaços-tempo, cada um temsua lógica de desenvolvimento. Esse trabalho está expos-to no livro A crítica da razão indolente. Mas o importante éque, se estamos tentando fazer uma teoria política nova,uma democracia radical de alta intensidade, sabemosque isso será somente por meio da democratização de to-dos os espaços. Então, minha definição de democracia é:substituir relações de poder por relações de autoridadecompartilhada. É um trabalho democrático muito maisamplo do que se pensava até agora.

A segunda inovação teórica é: necessitamos cons-truir a emancipação a partir de uma nova relação entreo respeito da igualdade e o princípio do reconhecimento dadiferença. Na modernidade ocidental, seja nas teoriasfuncionalistas conservadoras seja nas teorias críticas, atéagora não tratamos isso de maneira adequada, porque -sobretudo na teoria crítica - toda a energia emancipató-ria teórica foi orientada pelo princípio da igualdade, nãopelo princípio do reconhecimento das diferenças. Agoratemos de tentar uma construção teórica em que as duas

estejam presentes, e saber que uma luta pela igualdadetem de ser também uma luta pelo reconhecimento da di-ferença, porque o importante não é a homogeneizaçãomas as diferenças iguais.

Isso não é fácil, temos de tentar também uma re-novação teórica: as sociedades capitalistas têm váriossistemas, mas os seis espaços diferentes podem ser re-duzidos a duas formas de domínio hierarquizado. Osdois sistemas são o sistema de desigualdade e o sistemade exclusão. Eles são distintos, e muito freqüentementesó vemos o sistema da diferença porque o sistema dedesigualdade é um sistema de domínio hierarquizadoque cria integração social, uma integração hierarquiza-da também, mas onde o que está embaixo está dentro, etem de estar dentro porque senão o sistema não funcio-na. O sistema típico de desigualdade nas sociedades ca-pitalistas é a relação capital/trabalho: os trabalhadorestêm de estar dentro, não há capitalistas sem trabalha-dores, e Marx foi um grande teorizador disso.

Mas há um sistema de exclusão, de domínio hierar-quizado, onde o que está embaixo está fora, não existe: édescartável, é desprezível, desaparece. A Sociologia dasAusências tenta trazer para o centro de nossa discussãoo sistema de exclusão. Michel Foucault foide grande im-portância, com seus estudos sobre a normalização, paraver como se cria exclusão: um sistema em que alguémfica totalmente de fora. Neste momento temos de ana-lisar essas duas formas de desigualdade/exclusão, porvárias razões. Primeiro, porque o que está acontecendohoje - sem que o saibamos muito bem, ainda não teori-zamos - é que cada vez mais gente passa do sistema dedesigualdade ao sistema de exclusão; de estar dentro deuma maneira subordinada a estar fora, a sair do contra-to social, da sociedade civil: são os desocupados que nãotêm esperança de voltar a ser ocupados; e os jovens emmilhares de guetos urbanos das grandes cidades.

Page 31: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

64 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos . 65

O trabalho é atualmente um recurso global sem quehaja um mercado global de trabalho. Esse é para mimo fator sociológico que está por trás desse intercâmbiocada vez maior entre o sistema de desigualdade e o sis-tema de exclusão, porque essa discrepância permite, defato, que o trabalho deixe de ser um fator de cidadania ede inclusão (ainda que subordinada) e possa existir coma mais total exclusão. Por outro lado, o segundo fator aoqual também não temos dado importância - devemos re-construir a teoria por meio dele - é que há formas híbri-das que se identificam com elementos de desigualdadee de exclusão: as duas mais importantes para nós são oracismo e o sexismo.

O racismo é uma forma de exclusão, mas cada vezmais está no sistema de desigualdade: é a racionalizaçãoda força de trabalho, primeiro no colonialismo, depoisna emigração. Sabemos que hoje a etnização da força detrabalho, ou a racialização - importar imigrantes de ou-

tras culturas na Europa, por exemplo -, é uma forma dedesvalorizar a força de trabalho, e os trabalhadores imi-grantes compartilham a exclusão com o sistema de desi-gualdade porque trabalham para ele. E no sexismo ocorreo mesmo: o papel da mulher primeiro na reconstruçãoda força de trabalho do homem, e mais tarde sua entradasubordinada no mercado de trabalho.

Esses dois sistemas têm autonomia, mas muitas ve-zes se confundem e têm formas extremas de destruição.O sistema de exclusão tem um extremismo que todos nósconhecemos: foi, por exemplo, o extermínio dos judeuse dos ciganos no Holocausto, e que hoje acontece no Su-dão, como ocorreu em Ruanda e Burundi. O sistema dedesigualdade também tem uma forma extrema: a escra-vidão. O problema é que as formas extremas continuamexistindo, não são parte do passado mas do presente: sa-bemos hoje que o trabalho escravo é cada vez mais flores-cente no mundo. Há escritórios das Nações Unidas para

detectá-lo, e no Brasil eles têm agora a função de iden-tificá-lo, porque existe uma determinação de que todasas propriedades agrícolas onde haja trabalho escravo po-dem ser expropriadas para a reforma agrária. Imaginama luta política que isso significa?

Nós também tivemos uma idéia errônea - e por issome expressei contra o conceito de progresso -, a idéiadessa forma linear que fazia pensar que tudo passavade uma fase para outra fase melhor. Não: a opressão, talcomo a emancipação, a subjetividade, é um palimpsestoem que as formas mais extremas de desigualdade e deexclusão convivem com outras mais inclusivas e menosextremas. Por isso é preciso ter uma teoria sociológica,política, que dê conta dessas especificidades.

O terceiro avanço teórico que o FSM nos permite ver -o primeiro é um conceito mais amplo de opressão, o se-gundo é essa nova relação entre o princípio de igualdadee o do reconhecimento da diferença - é toda a relaçãoentre inconformismo, rebeldia, revolução e transformaçãosocial. E aqui há um aspecto importante, a relação entreação direta e ação institucional, entre as ações ilegaispacíficas e as ações institucionais. Entre a legalidade e ailegalidade temos de reconstruir uma dialética, porque asclasses dominantes sempre a tiveram: impõem a legalida-de mas nunca a cumpriram, sua hegemonia se baseia emuma dialética às vezes nada sutil entre legalidade e ilega-lidade, entre legalidade e impunidade, entre legalidade eimunidade. Creio que se queremos pensar a emancipaçãosocial temos de entrar nisso.

A outra questão que o FSM nos traz com bastanteforça é que, provavelmente, não devemos nos martirizartanto - porque isso não é muito produtivo - em discus-sões gerais sobre as vantagens relativas de uma estraté-gia reformista ou uma revolucionária. As duas estão emcrise em sua forma moderna, é preciso repensá-las, eprovavelmente necessitamos de outros padrões. Os mo-

Page 32: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

66 • Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos . 67

vimentos que se reúnem no FSM se dizem revolucioná-rios, se dizem reformistas ou nem uma coisa nem outra,porque os dois são eurocêntricos, produto do Ociden-te. É preciso criar outra forma de insurgencia. Quandocomeçamos a ter um conhecimento da prática global,da globalização alternativa, é que nos damos conta deque o que antes acreditávamos ser universal de fato élocal, é ocidental. Participei de debates que me causa-ram grande impacto, porque coisas que eu consideravaum patrimônio universal não o são, e isso, a meu ver, éalgo que também temos de discutir.

Finalmente, o outro grande desafio em que nos ajudao FSM - porque isso é uma reconstrução teórica minhae de outros companheiros, mas baseada em toda a práti-ca que vai emergindo no mundo - é que estamos vivendouma nova forma de internacionalismo, e as teorias sociaisnão estão preparadas para isso: não são internacionais, emenos ainda internacionalistas; ao contrário. Então, se háum novo internacionalismo em curso, é preciso se dar con-

ta dele, e ver como pode ser contra-hegemônico, é aquilopelo que eu luto. É preciso conviver e entrar em conflitocom o internacionalismo da globalização neoliberal.

Aqui os movimentos partem de duas idéias que meparecem muito importantes: uma é a desnacionalizaçãodo Estado. O papel do Estado é um campo de disputa,mas hoje de fato há um processo muito claro de desna-cionalização: cada vez mais as políticas nos países pa-recem ser imposições externas. Se realmente o são é àsvezes duvidoso, porque as classes dominantes internasse aproveitam dessas imposições para ter uma nova acu-mulação primitiva, como foi a última forma em muitospaíses: a privatizadoo de bens públicos. Se vocês vão àAfrica - provavelmente na Argentina ocorra o mesmo -vêem isto: como é possível que o presidente de Moçam-bique seja o homem mais rico da África? Trata-se de umex-guerrilheiro da luta anticolonial, que comprou grande

parte dos bens que foram privatizados depois de o FMIter obrigado Moçambique a privatizar tudo. Na Áfricado Sul temos também algo semelhante, com a AfricanRenaissance, que é de fato a criação de um capitalismonegro, um fenômeno interessante: a idéia de reconstruiruma classe capitalista racializada para revalorizá-la, pe-rante a desvalorização dos imigrantes negros na Europa.

A outra idéia que nos obriga a trabalhar bastante emtermos teóricos e políticos é a desestatizaçäo da regulaçãosocial. A crise da regulação social ocorre para substituiruma forma de regulação centrada no Estado por outra emque o Estado é um sócio. Está se desestatizando, por exem-plo, por meio de institutos públicos de regulação. Muitospaises têm essa característica: os reguladores são regen-tes dos regulados, e isso dá outra idéia da importância doEstado hoje. A debilidade do Estado é produzida por umEstado suficientemente forte para produzir sua própriadebilidade. Essa centralidade do Estado em seu processode descentramento é algo que nos escapa. É necessário umtrabalho teórico muito importante sobre essa questão.

A outra dimensão desse novo universalismo que estáem curso é a idéia de que temos de produzir teoria e prá-ticas transescalares, em que as escalas locais se articulemcom as escalas nacionais e com as globais. Em relação aisso, a teoria e a prática nos têm demonstrado que, àsvezes, as trajetórias são distintas: de alguma maneira,em 1994, os zapatistas passaram quase diretamente dolocal ao global e depois ao nacional. Outros vão do localao nacional e depois ao internacional, como é o caso doMST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra)no Brasil. Há diferentes trajetórias, mas é muito impor-tante que consideremos em nosso trabalho teórico a ne-cessidade de relacionar as diferentes escalas.

E aqui concluo: se esses são os desafios e os avan-ços que é possível ter em conta, temos de ver como ar-ticular essa teoria que estamos tentando desenvolver

Page 33: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 6968 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

com uma nova política, e em um contexto no qual sónos restam instrumentos hegemônicos. Estamos emum contexto no qual legalidade, direitos humanos edemocracia são realmente instrumentos hegemônicos;portanto não vão conseguir por si mesmos a emanci-pação social; seu papel, ao contrário, é impedi-la. Ocentral em nossa questão é saber se os instrumentoshegemônicos podem ter um uso contra-hegemônico.Como criar e fazer um uso contra-hegemônico da le-galidade? Como fazer um uso contra-hegemônico dosdireitos humanos e da democracia?

Eu acredito que a ecologia de saberes que lhes pro-ponho vai ter muitas possibilidades de enfrentar esseproblema, sobretudo para ultrapassar algumas tradi-ções funestas e nefastas na teoria e na prática críticada modernidade.

DEBATE COMO PÚBLICO

Sou da Universidade de Fortaleza, no Brasil. Um dos princi-pais desafios que vimos trabalhando a partir do direito comofator de mudança social tem que ver com a legitimidade. Emnossa intervenção em um projeto de cidadania ativa percebe-mos uma assimetria de pautas que dificulta a busca de legiti-midade, porque na universidade temos nossas próprias pau-tas e a comunidade tem um ritmo diferente do nosso. Maisalém da tradução bilateral - em duplo sentido - da qual osenhor fala, queria ter indicações, sinais, de como trabalhara legitimidade dos saberes da universidade com os saberes eas necessidades da comunidade.

A legitimidade é para onde vai hoje meu trabalhosobre a universidade. Paço distinção entre três crises nauniversidade pública contemporãnea: a crise de hegemo-nia, a de legitimidade e a institucional. A crise de hege-monia tem que ver com o fato de que a universidade eraa única instituição na produção de conhecimento de ex-

celência, e hoje a confrontação é entre produzir conheci-mentos exemplares, sofisticados, e ao mesmo tempo terde se democratizar com o acesso de mais gente ao ensinopúblico como um direito. Essa confrontação não tem per-mitido que a universidade cumpra seus objetivos, o quelevou a uma crise de legitimidade. E há uma crise insti-tucional: a idéia de que, por um lado, a universidade foicriada na autonomia e, por outro, agora se busca cada vezmais que seja conduzida e administrada como uma em-presa, com critérios de eficácia que são típicos do mundoempresarial. Isso está degradando as relações entre estu-dantes e professores, e está também proletarizando todaa comunidade universitária com a criação de um merca-do global de serviços universitários. Por isso creio que omundo vai caminhando sobre o que, me parece, é a solu-ção: penso que a crise de hegemonia é irreversível, nãoé preciso resolvê-la; o que é preciso resolver é a crise delegitimidade e a crise institucional, e devemos começar oquanto antes. A crise de legitimidade tem que ver com acriação de uma universidade de proximidade, de um bempúblico que realmente seja acessível, com qualidade, queesteja relacionado com os problemas da sociedade ondeestá situada. A torre de marfim passou; quando as uni-versidades começaram, foi necessário certo isolamento,porque com as estruturas do poder religioso - na Europasobretudo - era muito importante dizer que o conheci-mento que estavam produzindo era neutro, não tinhaque ver com a sociedade, era uma maneira de defender auniversidade das autoridades religiosas, das inquisições.Mas hoje as condições são absolutamente distintas; aocontrário, necessitamos de um compromisso político dauniversidade com a sociedade que a envolve. E por issoa crise de legitimidade assinalou cinco áreas fundamen-tais: 1) o acesso (muitos países têm de fazer ações afir-mativas, como sistemas de cotas); 2) uma nova formade extensão universitária, que em muitos países está se

Page 34: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

70 • Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos - 71

concentrando em todas as formas rentáveis de serviçosuniversitários para a comunidade; é uma forma com aqual a universidade pública ganha recursos extras, mas ameu ver é uma perversão do que deveria ser a autênticaextensão, que é solidária com as comunidades; 3) a pes-quisa-ação: vocês têm uma grande tradição na AméricaLatina, o homem que melhor teorizou a pesquisa social(um grande amigo e um grande sociólogo), Orlando FalsBorda, quase não passou às gerações mais jovens e eramuito importante nos anos 1960 e 70. A meu ver, nãopassou porque era muito forte a idéia do positivismocientífico que, de alguma maneira, as ditaduras contri-buíram muito para impor nas universidades; e tambémpodemos dizer que, em condições de ditadura, o positi-vismo foi uma defesa, quase como nos tempos religiosos,contra as inquisições. Mas os tempos são outros, e às ve-zes os povos perdem a memória de suas forças, das coi-sas inovadoras que fizeram no passado e que poderiamassumir de novo; 4) outra é a ecologia de saberes, que éa inversão da extensão: é trazer outros conhecimentospara dentro da universidade; e S) buscar uma nova re-lação entre a universidade pública e a escola pública: háem todos os países uma degradação da escola primária esecundária, e as pessoas não se dão conta de quanto es-sas coisas estão relacionadas; a universidade pública nãovai se legitimar se não fizer uma aliança estratégica como ensino primário e secundário. Em muitos países, a pre-paração de professores do ensino fundamental e médiosaiu do controle da universidade, e muitas vezes está emescolas privadas. Há experiências como as butiques deciência (science-shops), uma nova forma de pesquisa-açãoem que os projetos não são iniciativas dos universitáriosmas de associações cívicas, de cidadãos que não podempagar por serviços caros e buscam as universidades para -por meio de um trabalho interdisciplinar - resolver pro-blemas como aids, emprego, questões ecológicas etc. Isso

inclui alguma novidade interessante, porque em algunspaíses, como a Dinamarca, os estudantes podem fazerseu curso ou programa de estudos da universidade emum science-shop, ou seja, seu trabalho é de contribuiçãoa essa associação, com um projeto em que os diferentesconhecimentos estão se unindo. Em meu livro sobre auniversidade, analiso uma transformação, que me pa-rece interessante, do conhecimento universitário para oque chamo conhecimento pluriuniversitário z . E isso estáocorrendo de muitas formas.

Sou de Ciências Sociais, e minha pergunta refere-se àsmúltiplas facetas da opressão que postulava e que têm quever também com a idéia de identidade-fortaleza, quandoidentidades de raça ou de gênero simultaneamente são cons-titutivas, mas no desenvolvimento de um movimento social aidentidade de gênero, por exemplo, fica incluída nos objetivosmais gerais do movimento. Como é possível interpretar essetipo de identidade-fortaleza?

Esta segunda pergunta refere-se, se a entendi bem,às situações em que temos projetos e movimentos comcomponentes identitários muito fortes; as identidades as-sumem a forma de certo fundamentalismo e se transfor-mam em identidades-fortaleza. Eu faço distinção entre asidentidades-força e as identidades-ameba; as últimas sãoas que realmente se misturam e procuram se articular comoutras identidades. As identidades são identificações emcurso; não devemos ter uma concepção cristalizada deidentidade, e isso é muito importante nos movimentosporque há conflitos muito fortes. Por exemplo, as discus-sões entre o movimento feminista e o movimento operá-

' A universidade no século XXI: para urna reforma democrática e eman-cipató ria da universidade (São Paulo, Cortez, 2004).

Page 35: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

72 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos 73

rio são significativas para saber como podemos compa-tibilizar na luta uma perspectiva de gênero nas relaçõessociais de sexo com uma luta pelos direitos humanos,por emprego ou em uma greve. Às vezes há a idéia deque alguma das demandas identitárias pode pôr em pe-rigo as demandas principais. Penso que deve haver umaanálise concreta do que é prioritário em certa demanda,mas também que as demandas são mais capazes de criarpotencialidades transformadoras se se combinam, se searticulam, se perdem sua pureza, sua identidade total, ese abrem para as lutas. Hoje, por exemplo, o movimentofeminista, que está muito fragmentado, se divide - e nãome parece uma coisa mim - quando as mulheres negrasnão se identificam com as mulheres de classe média, equando as mulheres indígenas também não se identifi-cam com elas. Estas últimas buscam transformar umaagenda que no final possa integrar as diferentes perspec-tivas de gênero para incluir um componente de classe eum componente racial ou étnico; se não os têm, não vãoconseguir se articular em uma luta social.

Sou da Faculdade de Ciências Sociais e queria perguntara respeito do FSM e todo esse movimento de internacionali-zação dos movimentos sociais. Como o senhor vê essa passa-gem da idéia de movimento social ã "oenegeização" deles, ea configuração de uma espécie de "altruísmo internacional"que produz ressentimento em nível local, por exemplo, ao veruma burocracia do feminismo, do movimento gay, do movi-mento de luta contra a aids ou do movimento indígena? Fala-se até de uma indústria dessas conferências das Nações Uni-das. E a suspeita de que essa insurgência, definitivamente,é financiada pelo Estado com as fundações internacionais -até pelo Banco Mundial -, ou seja, a idéia de que o ativismo ea liderança social acabem passando a responsabilidade para

seus financiadores e não para suas bases comunitárias. E ou-tra coisa ligada ao FSM: chegaram notícias de que estaria seformando uma direção do Fórum, e que muitos movimentossão contra certa burocratização do FSM. Como está se pro-cessando essa espécie de institucionalização do Fórum?

Contesto ambas: diz-se que o FSM pode acabar sendouma coisa burocrática e gerenciada pelo Banco Mundial.Essa é uma crítica que se faz e me parece extremamenteinjusta. Eu e todos os outros que nos sentimos envolvidoscom o FSM - não falo em nome do FSM porque ninguémpode fazê-lo, ninguém o representa - podemos contestarcom diferentes concepções. A meu ver, o que está por trásdas críticas mais radicais é essa tradição na esquerda bas-tante dogmática, sempre em busca da luta pura; e as lutasnão são puras, são impuras, têm elementos de perversão,e é preciso ter uma vigilância epistemológica, teórica e po-lítica sobre os movimentos. É preciso distinguir os que re-chaçam completamente a idéia do FSM dos que o criticamconstrutivamente. Creio que rechaçar a idéia do FSM vemde diferentes formas e tradições da esquerda. Por exem-plo, em alguns dos fóruns tivemos coisas interessantes:críticas muito radicais se transformaram em fóruns alter-nativos. Ou seja: a idéia de fórum vai ultrapassar as dife-renças. Em Mumbai, onde se realizou o IV Fórum SocialMundial, formou-se um fórum alternativo que ficou dooutro lado da rodovia, o Mumbai Resistence, composto dedivisões dos partidos comunistas da Índia que não aceita-ram o rechaço da luta armada como um instrumento poli-tico da Carta de Princípios do FSM, e criaram seu próprioFSM. De fato, eu também participei desse fórum alterna-tivo e fui ver o que se passava ali. No Fórum Temático deCartagena sobre Democracia também houve um fórum al-ternativo, de gente que pensava que o FSM estava "oene-geizando": ou seja, a idéia de que os movimentos perdemautonomia e as ONGs prevalecem. Isso é parte, do proble-ma, que não é só essa passagem de movimentos para

Page 36: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

74 • Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos . 75

ONGs, mas sim o papel das organizações muito podero-sas, internacionais, quase todas do Norte. Em meu livrosobre o FSM, faço uma análise das organizações que com-põem o Conselho Internacional: mais de 50% vêm da Eu-ropa e da América do Norte 3 . Então, o FSM não é mundial.É preciso fazer um projeto, e minha contribuição - anali-sando o que fazem as organizações e de onde vêm - é paramostrar que é necessário impulsionar uma mundializaçãodo próprio FSM, é uma crítica construtiva para poder am-pliar o FSM. E por isso hoje a Comissão de Expansão doConselho Internacional do Fórum é fundamental, porquesabemos que as organizações da África estão ausentes, e asda Ásia também, e, quando vêm da África, são represen-tantes de organizações ou movimentos que estão articula-dos com as grandes ONGs do Norte, que têm seus subsi-diários, suas franquias no Sul; os que estão fora dasfranquias não vêm. Aqui também aparece a Sociologia dasAusências, que realmente é preciso produzir no FSM. Amundialização é um dos desafios; o outro é a democraciainterna: não tenho uma visão de burocratização ou insti-tucionalização do FSM. E. um campo de disputa. Houveum Secretariado Internacional em que o grupo brasileiroteve um poder muito forte, porque foi ele quem o iniciou.Neste momento, o Secretariado está constituído porbrasi-leiros e pessoas da Índia, mas sabemos que pelas própriascondições - trazer os indianos a São Paulo é muito difícil- não é possível que as tarefas sejam totalmente divididas.Há um Conselho Internacional (CI), e um processo peloqual esse CI tentou ter mais poder para configurar o FSMe para que o Secretariado seja mais executivo. Mas a demo-cracia interna se articula com a idéia da mundialização.Ter democracia interna em um fórum que, apesar donome, não é mundial é uma questão que também devemosincluir. E depois vem a tensão entre movimentos e ONGs,

0 Fórum Social Mundial: manual de uso (São Paulo, Cortez, 2005).

que é um campo de disputa muito forte. Penso que é umaluta e uma disputa produtiva que é preciso continuar ten-tando realizar, sobretudo para saber se o FSM vai ser ummovimento de movimentos ou se vai se institucionalizarcomo qualquer outra entidade socialdemocrata; há umaluta e ela é aberta. E há uma tensão entre a Assembléia dosMovimentos Sociais e a organização do FSM, porque oFSM não produz declarações finais e a Assembléia sim. Àsvezes as declarações finais da Assembléia são consideradasno mundo como decisões do FSM, e isso cria uma tensãointerna. Dentro do FSM há gente com diferentes visões:por exemplo, acredito que há uma posição dominante, queé a idéia de que o Fórum é um espaço de reflexão que nãodeve tomar decisões demais para não expulsar gente. Euvejo nisso um grande perigo, e tenho discutido isso commuitos, porque creio que não devemos transformar o FSMem um partido mundial - o que é impossível - porque opoder de inclusão do FSM é algo novo, sua capacidade deagregação é mais rica - mas não compreendo como o FSMnão possa vir a ter, por exemplo, uma posição sobre a dívi-da, a reforma das Nações Unidas, a privatização da água;ou seja, sobre as questões em que há consenso. Dentro doFSM deveria haver posições sobre isso, mas dentro do CIhá diferentes posições, é um campo de luta. A questão dofinanciamento tem sido muito discutida; um grupo anar-quista - creio que argentino - expôs uma análise com osdetalhes financeiros de todas as organizações que finan-ciaram o FSM para deslegitimá-lo. Creio que é impossível.O FSM não é um processo revolucionário autônomo, éuma tentativa de pensar, de criar uma escala de resistênciapolítica que se ajuste ã globalização de hoje, porque nossasresistências, até agora, eram locais e nacionais. Em 1994os zapatistas começaram com a idéia de que era necessárioter uma resistência global, depois temos Seattle, e em se-guida aparece o FSM. Então, a idéia de globalizá-lo, comose faz isso? Trazendo gente. Mas não há dinheiro que pos-

Page 37: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 7776 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

sa trazer as pessoas; o problema não é tanto o financia-mento mas suas condições, e aqui nem tudo é claro etransparente. Na Índia, por exemplo, há organizações comuma vasta tradição de resistência às fundações ocidentais,e com muito boas razões. A Fundação Ford foi, na Índia, ogrande agente de esterilização de mulheres e da "revoluçãoverde". Como as pessoas do FSM na Índia podem estar sa-tisfeitas se as fundações ocidentais vêm com dinheiro paraesse processo? Compreende-se, e se respeitou isso, masem outros países houve casos em que o financiamento nãocriou condições de controle sobre o que se ia fazer. AsONGs mais poderosas podem ter uma presença maior. Porexemplo, neste último Fórum tentou-se uma nova meto-dologia para que todas as atividades fossem autogestiona-das: sabemos que as organizações mais fortes trouxeramas estrelas e outras pessoas e as hospedaram nos melhoreshotéis. Não vamos acabar com isso de imediato. Hebe deBonafini - que é uma amiga muito querida - disse e escre-veu: há dois fóruns, o das estrelas e o dos soldados... Real-mente essa tensão existe. Penso que até agora o financia-mento não o destruiu, mas é o mesmo que acontece comos partidos: tivemos uma grande influência do PT no FSM,e acredito que o PT não pôde manipular o FSM, que cres-ceu muito mais. Na Índia tivemos três partidos comunis-tas, dois partidos socialistas e os movimentos gandhianospor trás do FSM. Houve negociações muito difíceis, masfinalmente se chegou a um acordo e Mumbai foi um dosfóruns mais bem-sucedidos que tivemos. Neste momentoestá se discutindo no CI como vamos fazer para que orga-nizações da África e da Ásia possam ir ao FSM sem perten-cer às ONGs mais poderosas da Europa e dos Estados Uni-dos, para que mais pessoas que não estão conectadaspossam fazê-lo. E temos agora essa idéia de descentralizaro FSM em 2006, que também é um pouco isso: haverá umna Venezuela, outro na África e outro na Ásia. Sempre sãocondições políticas: e também não queremos que na Vene-

zuela seja um FSM do presidente Chávez, mas um temáti-co hemisférico, que tem de ser acolhido em Caracas, mascom autonomia. Todas essas questões são, a meu ver, coi-sas que estão sendo discutidas. Fez-se um estudo sobre acomposição social dos participantes do FSM de 2003 e euanalisei os resultados: 73% têm curso universitário com-pleto ou incompleto. Onde estão os oprimidos? É um pro-cesso, e também não conseguimos trazer as pessoas quevivem nos bairros pobres de Porto Alegre. Agora o que faltaé saber se - porque a idéia não é pura e tem problemas -devemos abandoná-la. Esse é o erro que a esquerda come-teu durante muito tempo. Neste momento não podemosdesperdiçar experiências, é preciso lutar, por isso meuconvite aos grupos mais radicais é que entrem e se organi-zem e permitam um diálogo. Em Cartagena fui a La Bo-quilla, que é um bairro popular, para trabalhar com as pes-soas que estavam promovendo um fórum social alternativo,porque diziam que estavam retirando os afrodescendentesdo Caribe colombiano para atrair o turismo a essas praias,e eu lhes disse: "Estou contente de estar aqui, mas se vocêsorganizassem isto num lugar com três mil pessoas seriamuito mais fácil chamar a atenção da imprensa internacio-nal sobre a luta de La Boquilla". Claro que há tensões - naColômbia, naturalmente, quanto a conexões ou não com aguerrilha. Tudo é complexo, nada é puro, e por isso é pre-ciso lutar com essas contradições.

Me parece que seria bom avançar sobre que atra-tivos tem o pensamento monocultural, a metonimia, opensamento linear, o conhecimento científico, porque merecordo daquela idéia de Rousseau de que os homens nas-cem bons e as instituições os tornam maus, e aqui pare-ceria que as ideologias ou a hegemonia fazem mal a umhomem que nasce bom.

Page 38: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 7978 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Sobre o atrativo do monoculturalismo, creio quevocê tem razão. Quando tentamos fazer uma crítica écom base na idéia ecológica de que a tradição ocidentalpode ser resgatada no que tem de positivo: concepçõesde Estado, de espaço público, de cidadania, de seculari-zação. São elementos ao mesmo tempo indispensáveis einadequados se você tem como quadro uma luta globalque, além disso, deve estar ancorada na realidade cultu-ral de cada país e cada comunidade. Mas a idéia ecológicaé que não se apresente como monocultural, porque o mo-noculturalismo é sempre uma idéia de força. Realmente,o mundo é diverso, e por isso quando uma idéia mono-cultural tem atrativo é porque tem por trás uma força.Quando o cristianismo chegou a este continente tinhaum atrativo, mas veio com canhões, essa é a força da idéiade força. Hoje, quando Condolezza Rice diz que vai impora democracia em todos os países, pode criar uma situaçãocolonial em um país como o Iraque para impor a demo-cracia. Seria interessante para os doutorandos atuais fa-zer uma distinção entre os missionários do século XVII eos missionários do Banco Mundial da democracia e dosdireitos humanos: os do século XVI e XVII teriam vanta-gens porque, pelo menos, aprendiam as línguas, estuda-vam o lugar e os costumes - para controlar, claro - masos de hoje impõem suas leis e vão embora.

Sou da Faculdade de Ciências Sociais, também, e fiqueipensando no que o senhor dizia sobre os movimentos que seproclamam reformistas ou revolucionários, e como naAméri-ca Latina há diferentes formas de alternativas políticas e mo-vimentos sociais: o zapatismo com a autonomia e sem aspirarao poder; outros com outra relação com o Estado, além de di-ferentes opções políticas, como o caso da Venezuela, Uruguaietc. Alguns se dizem reformistas, outros revolucionários, e os

zapa tistas se dizem rebeldes, por exemplo. Como convivemessas distintas formas de poder alternativo?

Temos ações que surgem como revolucionárias edepois parecem reformistas, como para muitos são oszapatistas; ações reformistas que depois parecem re-volucionárias, como é o caso de Chávez; e ações refor-mistas que nem sequer parecem reformistas, como ocaso de Lula... E vamos ver o que vai acontecer com oUruguai, que é um país com uma tradição belíssima eque está em uma situação muito difícil, com um proces-so maravilhoso de movimentos sociais e que realizouuma das conquistas mais importantes ao garantir que aágua não seja privatizada, por meio de um plebiscito euma nova lei constitucional. Há aqui uma criatividadeenorme, e o movimento indígena tem uma importân-cia que não é suficientemente respeitada nas teorias daesquerda. Trabalho muito na América Latina há váriosanos e me choca como os movimentos comunistas, so-cialistas, estão tão distantes das lutas dos movimentosindígenas. Meus colegas socialistas do Equador me di-ziam que "os indígenas são racistas às avessas e deve-mos nos defender disso"; claro que é preciso levar emconta o Movimento Pachakutik' com todas as divisões

"O Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik-Novo Pais(MUPP -NP) se formou em 1995, numa década marcada pela emer-gência do movimento indígena e por sua configuração como prin-cipal ator político do Equador. Seus eixos centrais eram a oposiçãoao neoliberalismo e a construção de uma alternativa nacional quepossibilitasse uma forma diferente de desenvolvimento econõmi-co, político, social e cultural, centrado no ser humano e na defesada vida. Desde 1996, o Pachakutik participa de eleições para al-caides (presidentes de câmaras municipais que exercem tambémo Poder Executivo), prefeitos, vereadores, deputados provinciaise nacionais" (verbete escrito por Alejandra Santillana Ortiz, emLatinoamericana: enciclopédia contemporânea da América Latina e doCaribe [São Paulo, Boitempo, 20061, p. 887-8). (N. E.)

Page 39: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

80 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos - 81

internas do movimento indígena e a globalização do"que se vayan todos"' argentino. Penso que é um cam-po no qual é preciso trabalhar, também neste país: umadas coisas que mais me interessam é como se faz arti-culação política, a distância entre a vitalidade do movi-mento social e um sistema político que não muda. NaArgentina, a gente podia imaginar que depois da crisede 2001 haveria uma mudança total do sistema políti-co; o que estou observando é que, ao contrário do queaconteceu na Itália com as mãos limpas da corrupção,aqui não há realmente articulação. Há uma criatividadeenorme do movimento social - que provavelmente estáem refluxo, não sei - e uma grande dificuldade na arti-culação política, porque os partidos não mudam, e semisso podemos estar criando duas inércias paralelas queseriam muito prejudiciais a um processo de democra-cia de alta intensidade. Ou seja: uma inércia dos movi-mentos que não conseguem se multiplicar e acumularenergia transformadora, e uma inércia dos partidosque continuam no poder mais ou menos oligárquico,mais ou menos dominante, que sempre tiveram. É umaquestão complexa.

Sou da Faculdade de Ciências Sociais. A questão da dife-rença nos leva ao problema das lógicas às quais recorrer parainterpretá-la e para enfrentar os desafios ou as novidades do

"Fora todos" poderia ser a tradução. Em 21 de dezembro de 2001,mais de um milhão de argentinos saíram às mas num protesto indig-nado contra a politica neoliberal, que provocou recessão, desempregoe pobreza. Foi uma espécie de "Basta!" do povo contra todos os polí-ticos de todos os partidos, burocratas, corporações multinacionais,FMI, Suprema Corte etc. "Que se vayan todos!" foio Lema do protestoque derrubou quatro presidentes em duas semanas. (N. T.)

mundo atual. Em que lógica você está pensando? Uma lógicadialética, ou uma mais ligada ao hermenêutico, ao paradoxalao estilo desconstrucionista, ou uma nova lógica que seria ne-cessário incorporar a estes novos tempos?

Creio que hoje uma das coisas mais interessantesepistemologicamente é ver o impacto das teorias dacomplexidade: as teorias do caos e a lógica informal. Issoestá mudando todos os conceitos anteriores da lógicadialética, hermenêutica, analítica. Está criando outramaneira que, a meu ver, tem uma potencialidade enor-

me de entender um pouco melhor o mundo em termospolíticos e epistemológicos. Por exemplo, a questão doconstrutivismo de que se falou era um dos debates darazão indolente. Nós no Ocidente temos debates furio-sos, enormes, que no contexto do mundo não significamquase nada, são indolentes, por exemplo entre realismo econstrutivismo. Nas duas posições há matizes enormes,porque em todos os movimentos sociais nada pode sertotalmente construtivista: quando a polícia vem e nosespanca, qual é a construção social da polícia? Há umador física no corpo, o real se opõe a nós, e então não po-demos ter uma atitude construtivista total diante dasações repressivas, temos de ter o que chamamos hoje umrealismo pragmático. Há representação real nos termosem que a realidade se opõe, mas não temos uma maneiraimediata de conhecer a realidade, e por isso somos sem-pre construtivistas. O que não é possível é ser descons-trutivista: essa é uma luta muito grande minha com astradições filosóficas da desconstruçäo, porque, até certolimite, é um produto típico da teoria crítica ocidental. Oproblema é que não podemos desconstruir até o ponto dedesconstruir a capacidade de resistência. Então, toda adesconstrução de alguém, de grupos, de movimentos oude teorias que queiram reconstruir a emancipação socialtem de ter um elemento construtivista e realista, um ele-mento de desconstrução e um elemento de reconstrução;

Page 40: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

82 - Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Derrida demonstrou muito bem nos últimos livros sobreMarx como a desconstrução o deixava sem resistência, eo mesmo aconteceu com Foucault. Penso que temos desair desses debates se quisermos realmente enfrentar aquestão do sofrimento humano ou da resistência às cau-sas do sofrimento humano.

Capítulo III

Para uma democraciade alta intensidade

Quando o senhor falou em pensar a Sociologia do Sule trabalhar com outra dinâmica que não seja a da oposição,me ocorreu pensar no estruturalismo, que justamente pro-põe a diferença em relação à oposição. A sua proposta levaem conta a diferença?

Com respeito à questão do estruturalismo, não estoudizendo que não seja uma discussão importante. Prova-velmente é indolente, porque para mim hoje o mais eficazé a distinção e o trabalho de como criar subjetividadesrebeldes contra a banalização do horror, que cria subjeti-vidades conformistas e resignação. Mas, claro, eu mesmofaço distinção entre seis espaços estruturais, então há apresença do estruturalismo. É um debate que podemoster: se o estruturalismo trabalhou bem os dois princípiosda igualdade e do respeito às diferenças. A meu ver, não:o estruturalismo trabalhou bem o princípio da igualdade,mas não trabalhou bem o princípio do reconhecimentoda diferença. Esse é um debate teórico importante queé preciso discutir no contexto desses outros debates aosquais os convido.

As perspectivas epistemológica, teórica e política estãomuito conectadas nesses desafios que identificamos paraa reconstrução de uma utopia crítica, para passar de umateoria crítica monocultural a outra multicultural, paradistinguir entre objetividade e neutralidade, para passarda problemática estrutura/ação à problemática ação con-formista/ação rebelde, para analisar a questão do pós-colonialismo, e também a dos dois sistemas de domíniohierarquizado que existem no capitalismo. Dessas pro-blemáticas surgiam alguns desafios importantes para ateoria: uma concepção ampla do poder e da opressão; osseis espaços-tempo estruturais e suas formas de poder; aequivalência entre o princípio de igualdade e o princípiode diferença, quando falamos dos sistemas, o da desi-gualdade e o da exdusão, assim como a mescla que exis-te entre os dois. Nós nos referimos às formas de ação e,continuando, vamos nos concentrar na questão da açãoinstitucional e da ação direta. Por outro lado, nos referi-mos também à emergência do Fórum Social Mundial e ànecessidade de um novo internacionalismo descentrali-zado, multicultural.

Essas são as exigências teóricas das quais viemos, edevemos ver quais são as conseqüências politiéas e quais

Page 41: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 8584 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

são os instrumentos com que contamos. A mensagem foisempre que necessitamos de um conhecimento muitosofisticado e exigente, porque temos de conhecer muitobem a tradição e ao mesmo tempo contestá-la, enfren-tá-la e inovar a partir dessa tradição. Roberto FernándezRetamar, um grande crítico literário cubano, costuma di-zer que temos uma dupla tarefa, sobretudo a partir dasituação pós-colonial: por um lado, a de conhecer mui-to bem o centro hegemônico e, por outro, a de conhecermuito bem a alternativa ao centro hegemônico. Ou seja:devemos gerar um duplo conhecimento que é fundamen-tal para todos nós, sobretudo para os jovens cientistassociais de hoje.

Que instrumentos temos? Na realidade, contamossó com instrumentos hegemônicos para tentar enfrentartudo isso, porque os conceitos para enfrentar o novo, a des-continuidade, a ruptura, a revolução, hoje nós não temos.Os instrumento hegemônicos que temos são as semânti-cas legítimas da convivência política e social: a legalidade,a democracia, os direitos humanos. Isso é realmente o quetemos hoje para enfrentar todos esses desafios.

É um problema complicado porque, se são instru-mentos hegemônicos, por definição não vão resolvernossas inquietações, nossas aspirações, e não vão conse-guir o que queremos alcançar, que é uma sociedade maisjusta, reinventar a emancipação social. Então temos defazer um trabalho dobrado. Por um lado, tentar ver se osinstrumentos hegemônicos podem ser utilizados de ma-neira contra-hegemônica: se podemos desenvolver umconceito contra-hegemônico de legalidade, de direitoshumanos e de democracia. E, por outro lado, ver se nasculturas e nas formas políticas que foram marginalizadase oprimidas pela modernidade ocidental - muitas delasno próprio Ocidente, porque a modernidade ocidental éfeita de muitas modernidades, uma das quais dominoutodas as outras - podemos encontrar embriões, semen-

tes de coisas novas. Um duplo trabalho de arqueologia:nessas ruínas de destruição e nos instrumentos hegemô-nicos que temos.

Nesse sentido, vou me concentrar na questão dademocracia, mas depois, no debate, podemos trabalharmais sobre os direitos humanos. Vamos ver qual era asituação da democracia nos anos 1960. Naquele momen-to, a teoria da democracia tinha certas características,sobretudo vista de uma perspectiva crítica. Em primeiroLugar, havia vários modelos de democracia: a democraciarepresentativa liberal, a democracia popular, a democra-cia participativa, a democracia dos países que se desen-volviam a partir do colonialismo. Havia, portanto, umagrande variedade de modelos democráticos.

Em segundo lugar, a discussão central da teoria críti-ca - da teoria da democracia em geral, Robert Dahl, Bar-rington Moore - era a questão das condições da democra-cia: o grande problema de discussão, então, era por quea democracia só se fazia possível em um pequeno pedaçodo mundo, em um pequeno número de países. A respostaera porque lá existiam condições para isso: sociais, políti-cas, econômicas. Falava-se, por exemplo, de uma reformaagrária como condição para criar uma população cidadãpara a democracia ou da necessidade de fortalecer as ca-madas médias como forma de estabilizar a democracia, e,como tais coisas não existiam na maioria dos países, nãose podia discutir a democracia.

Por outro lado, havia uma tensão criativa entre demo-cracia e capitalismo, porque a democracia era um processoque, por meio da metáfora do contrato social, lutava poruma inclusão mais ampla. O contrato social sempre foi se-letivo, excluiu muita gente e muitos temas, mas desde o sé-culo XIX a luta política é de alguma maneira pela inclusãono contrato. Os operários, as mulheres, os imigrantes, asminorias, às vezes as maiorias étnicas, todos estavam emuma luta pela inclusão, que apresentava uma característi-

Page 42: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 8786 • Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

ca: envolvia alguma redistribuição social, que se dava naforma de direitos econômicos e sociais. Por isso o contra-

to social é a possibilidade de fazer alguma redistribuição.Mas o capitalismo não gosta de redistribuição, e se produzuma tensão: a tensão criativa entre regulação e emancipa-ção, que é epistemológica, é teórica e também política. Eo contrato social regula a tensão entre regulação social eemancipação, entre ordem e progresso. Nesse contrato hádois grandes princípios: o de igualdade e o de liberdade,e a distinção entre as forças políticas que aceitam o jogodemocrático - porque há toda a rota dos anarquistas e dosocialismo revolucionário que não aceitam esse jogo - éentre as demoliberais, que privilegiam o princípio da liber-dade, e os demo-socialistas, que tentam perseguir os doisprincípios ao mesmo tempo (por isso os demo-socialistassão mais favoráveis a concessões às classes trabalhadoras,à construção do direito social etc.).

A quarta característica desse modelo, que está cen-trado no Estado, é pensar que este é a solução e a socie-dade é o problema. A sociedade é problemática porquehá crimes, há prostituição, há escassez de moradias, hátoda uma desestruturação que a revolução industrialcriou e o Estado deve solucionar. E pretende-se que esseEstado seja democraticamente forte para produzir umasociedade civil forte. Ou seja: há uma simetria entreuma sociedade civil forte e um Estado democraticamen-te forte, não há contradição. Esse é um modelo que seassenta sobre muitos pressupostos - o livro que apre-sentamos na Feira do Livro' fala deles -, mas o que de-vemos entender é o que aconteceu com essa posição doEstado como solução. Há dois processos muito claros.

Um é a socialização da economia, que vai ser algoinovador no centro e também nos países semiperiféricos

Reinventar a democracia, reinventar o Estado (Buenos Aires,Clacso, 2005).

da América Latina e da Ásia. A Índia é um exemplo mui-to importante nesse caso: mostrar que a economia não ésomente capital, fatores de produção e mercado. A econo-mia é também gente, trabalhadores, famílias, necessida-des, aspirações, desejos, paixões, que devem ser reguladosde alguma maneira, e isso é o processo de socialização daeconomia. O segundo processo é a politização do Estado.Se para os conservadores o Estado tinha simplesmente opapel de estabelecer e manter a ordem pública e defender asoberania nacional, nas concepções demoliberais e demo-socialistas isso já não é assim, e a politização do Estado vaiconsistir na produção de quatro bens públicos fundamen-tais. O primeiro é a identidade nacional: os hinos, a edu-cação, as histórias nacionais, o modo como aprendemosa ser argentinos, brasileiros, portugueses. O segundo é obem-estar individual e coletivo, a idéia do bem-estar socialque é parte do contrato. O terceiro é a segurança individuale coletiva. E o quarto é a soberania nacional.

Esse modelo entrou em uma crise enorme nos úl-timos vinte anos, e analisaremos muito brevemente oque sucedeu. Em primeiro lugar, dentre todos os mo-delos de democracia que havia apenas um permaneceu:a democracia liberal, representativa. As outras formasde democracia desapareceram, não se fala mais delas.Assim, pois, a primeira idéia que quero lhes comuni-car é que, assim como temos biodiversidade e a vamosperdendo, creio que nos últimos vinte anos tambémperdemos "demodiversidade": perdemos a diversidadede formas democráticas alternativas em que o jogo, acompetição entre elas de alguma maneira dava força àteoria democrática.

Em segundo lugar, a tensão entre capitalismo e de-mocracia desapareceu, porque a democracia começou aser um regime que, em vez de produzir redistribuiçãosocial, a destrói. É o modelo neoliberal de democraciaimposto pelo Consenso de Washington. Uma democra-

Page 43: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos • 8988 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

cia sem redistribuição social não tem nenhum problemacom o capitalismo; ao contrário, é o outro lado do capita-lismo, é a forma mais legítima de um Estado fraco. Essaé a razão pela qual o Banco Mundial e o FMI propõem eimpõem essa forma de democracia. Então, com a falta deredistribuição social, essa discrepância entre experiên-cias e expectativas vai sofrer um colapso. De fato, nossadefinição de sociedade nas ciências sociais, a mais sim-

ples e mais complexa ao mesmo tempo, diz que ela é umconjunto de expectativas estabilizadas: sociedade é rece-ber o salário no fim do mês, é o ônibus que chega numahora determinada, é a expectativa estabilizada.

O que está ocorrendo hojeé que para muita gentenão há expectativas estabilizadas, e por isso tenho ditoque estamos na crise do contrato social. Estamos expul-sando gente da sociedade civil para o estado de nature-za, que era o estado anterior ao da sociedade civil paraLocke, para Hobbes e para Rousseau. Estamos falandoda maioria da população mundial, em alguns paísesmais, em outros menos: pode ser 60%, 30%, mas issoé o que está acontecendo no mundo neste momento,com a manutenção da democracia política representati-va sem redistribuição social. Meu primeiro diagnósticoradical de nossa situação presente em nível mundial éque vivemos em sociedades politicamente democráti-cas mas socialmente fascistas. Ou seja: está emergindouma nova forma de fascismo que não é um regime polí-tico, mas um regime social. É a situação de gente muitopoderosa que tem poder de veto sobre os setores maisfracos da população.

Quando digo crise do contrato social, alguns podemassinalar que isso é contraditório: nós vemos os informesdo Banco Mundial, nossa imprensa, e eles estão sempre fa-lando de contratualismo. Isso não tem nada que ver com ocontrato social, é o contratualismo individual entre partesque têm poderes muito distintos, e que, a meu ver, cria uma

forma de fascismo social: o fascismo contratual. No livroReinventar a democracia, reinventar o Estado, faço distinçãoentre cinco formas de fascismo social. O importante agora éver como o fato de se passar muito facilmente do sistema dedesigualdade ao sistema de exclusão está produzindo umasituação nova, que é essa de haver brutais desigualdadessociais que são invisíveis, que estão aceitas, que estão natu-ralizadas, ainda que se mantenham a idéia democrática, oEstado democrático.

Por isso entramos em um processo no qual o neolibera-lismo não tem nada que ver com o liberalismo do século XIXe sim com o conservadorismo desse século, mas por sua vezé novo: no século XIX o conservadorismo queria criar umquadro jurídico para os negócios - a fim de garantir a pro-priedade individual - e as obrigações contratuais, e defendera soberania nacional. O novo conservadorismo tem despre-zado o conceito de soberania nacional; o nacionalismo dosconservadores não existe mais. O terceiro efeito dessa criseé que em vinte anos essa fórmula do Estado como solução ea sociedade como problema se inverteu. Agora a sociedadecivil é a solução e o Estado é o problema. E isso passou qua-se despercebido para muita gente: "O Estado é ineficiente","O Estado é a causa de todos os problemas" etc.

O outro fator foi que o Estado, ao invés de ser es-pelho da sociedade civil, é agora seu oposto: para criaruma sociedade civil forte temos de ter um Estado fraco.Um Estado democraticamente forte não pode conduzira uma sociedade civil forte. Então isso nos leva a outracaracterística importante que se desdobra em duas, e éo que chamo de desnacionalização do Estado, por umlado - ou seja, o Estado cada vez mais gerindo as pres-sões globais -, e a desestatização da regulação social,por outro. O Estado deixa de ter o controle da regulaçãosocial, criam-se institutos para isso, e o Estado passa aser apenas um sócio, não tem o monopólio da.regulaçãosocial. Por isso vamos ter o problema da relação entre

Page 44: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 9190 • Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

reguladores e não-regulados, e freqüentemente os regu-lados são reféns dos reguladores.

Este primeiro diagnóstico é duro, mas me parece quetem que ver claramente com a crise do modelo. Outros as-pectos que não vamos poder desenvolver em sua totalidadesão o fascismo social, que não é produzido pelo Estado mastem a cumplicidade do Estado, e o novo Estado de Exceção.Conduindo, dessa situação resultam algumas coisas que sãodesafios para nós se quisermos reinventar uma prática e umateoria politica. Primeiro porque vemos que no primado dodireito que se anuncia por todos os lados - a reforma do sis-tema social, a centralidade dos tribunais etc. - consagra-seo direito mas "desconsagram-se " outros direitos: os direitossociais e politicos.

Em segundo lugar, é a emergência de um constitu-cionalismo global das empresas multinacionais que pre-valece sobre as leis nacionais e as viola freqüentemente,mas tem prioridade sobre elas como antes a lei consti-tucional tinha prioridade sobre as leis ordinárias. E detudo isso resulta o que chamo uma democracia de baixaintensidade: vivemos em sociedades de democracia debaixa intensidade. O problema está em compreender quea democracia é parte do problema, e temos de reinventá-la se quisermos que seja parte da solução. Por exemplo,o que seria um ideal democrático segundo Rousseau (épreciso distinguir, sempre, a democracia como prática dademocracia como ideal) é muito interessante. Rousseaudizia que é democrática somente uma sociedade na qualninguém seja tão pobre que tenha de se vender, nem nin-guém seja tão rico que possa comprar alguém. Em nossassociedades há de fato muita gente que tem de se vender emuita gente que tem dinheiro para comprar essa gente.

Estamos muito longe do ideal democrático de Rous-

seau, e por isso é preciso ver se podemos criar uma contra-hegemonia. Mas não é fácil neste momento. Nosso pro-pósito e minha tese central neste seminário é que temos

de reinventar a demodiversidade; provavelmente é possívelreinventar e reconstruir algumas dessas formas de demo-diversidade. E a principal que vou propor é a relação entredemocracia representativa e democracia participativa. Asrazôes pelas quais temos de ver essa solução contra-hege-mônica partem de uma análise rigorosa, em cada país, dademocracia de baixa intensidade, que se apresenta de váriasmaneiras mas tem em geral - e por isso vamos ter de cons-truir alternativas a partir disso - algumas característicasque é importante rever.

A primeira é que esse modelo se funda em dois mer-cados. O mercado econômico, em que se intercambiamvalores com preço, e o mercado político, em que se inter-cambiam valores sem preço: idéias políticas, ideologias.Vemos hoje que esses dois mercados se confundem cadavez mais, estamos entrando em um processo no qual so-mente tem valor o que tem preço, e portanto o mercadoeconômico e o mercado político se confundem. Com issose naturaliza a corrupção, que é fundamental para man-ter essa democracia de baixa intensidade, porque natura-liza a distância dos cidadãos em relação à política - "todossão corruptos", "os politicos são todos iguais" etc. -, o queé funcional ao sistema para manter os cidadãos afastados.Por isso a naturalização da corrupção é um aspecto fun-damental desse processo.

Esse modelo tem duas pernas: a democracia represen-tativa é, por um lado, autorização e, por outro, prestaçãode contas. Na teoria democrática original essas duas idéiassão fundamentais: autorização, porque com o voto eu au-torizo alguém a decidir por mim, mas por outro lado eletem de me prestar contas. O que está acontecendo comesse modelo é que continua havendo uma autorização masnão há prestação de contas: no jogo democrático atual,quanto mais se fala de transparência, menos transparên-cia há. Então, dado que a prestação de contas não aconte-ce, a autorização entra em crise por meio de duas patolo-

Page 45: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

92 - Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos . 93

gias muito fortes: a da representação - os representadosnão se sentem representados por seus representantes - ea da participação - abstencionismo muito freqüente: "Nãovou participar porque meu voto não tem importância" ouporque "acontece sempre a mesma coisa".

Essas são, a meu ver, as condições dentro das quaistemos de encontrar alguma alternativa. A situação daqual partimos, realmente muito difícil, tem essas carac-terísticas gerais: uma cidadania bloqueada, na medidaem que a muita gente - que é a característica do sistemademocrático representativo - não se garantem as condi-ções de participação, ou seja, uma cidadania que se baseiana idéia de participação mas não garante suas condiçõesmateriais. Por exemplo, três condições são fundamentaispara poder participar: temos de ter nossa sobrevivênciagarantida, porque se estamos morrendo de fome nãovamos participar; temos de ter um mínimo de liberdadepara que não haja uma ameaça quando vamos votar; efinalmente temos de ter acesso à informação. Parece-meque com essa cidadania bloqueada está se banalizando aparticipação; participamos cada vez mais do que é menosimportante, cada vez mais somos chamados a ter umaopinião sobre coisas que são cada vez mais banais para areprodução do poder.

E isto é algo que também me parece importante: háum novo processo de "assimilacionismo", que se exerceuem relação aos indígenas e agora se expande a toda a so-ciedade, e consiste em participar sem poder discutir asregras de participação. Então, a partir disso, temos dedesenvolver outro modelo democrático que consiga defato vencer essa situação. Na democracia representativaelegemos os que tomam decisões políticas; na democra-cia participativa, os cidadãos decidem, tomam as deci-sões. Mas essa polarização deve ser matizada: primeiro,a democracia representativa tem também uma parte departicipação. O voto é isso, mas é uma participação com-

plexa, porque envolve a idéia de renúncia à participação,e por isso é limitada. A democracia participativa, ao con-trário, também tem delegações e formas de representa-ção: há concelhios' e delegados. Todos os estudos que te-mos sobre os pressupostos participativos, por exemplo,ainda em nível local, como em Porto Alegre, mostramclaramente que todas as formas de democracia participa-tiva têm também elementos de representação z .

Vejamos quais são as condições para poder efetuaressa complementaridade, que não é de nenhuma maneirafácil. Penso que ela inclui três problemas: a relação entreEstado e movimentos sociais; entre partidos e movimen-tos sociais; e dos movimentos sociais entre si. São as trêsvias nas quais se pode construir uma articulação entredemocracia representativa e democracia participativa quetalvez constitua a criação de uma forma de complementa-ridade. Os caminhos de complementaridade entre ambassão muito complexos: não estou dizendo que seja fácil rea-lizá-la em nenhum lugar. Se observamos a situação, porexemplo, dos partidos e dos movimentos, percebemos queenfrentamos em muitos países uma situação totalmentehostil à complementaridade: os partidos têm um funda-mentalismo antimovimentos sociais, pensam que têm omonopólio da organização política e que os movimentosociais não são representativos. Quando estava fazendomeu trabalho de pesquisa em Porto Alegre, entrevistei osprincipais deputados e senadores, que me diziam: "Vejasó, eu fui eleito com 40 mil votos; quanta gente vai a umareunião da assembléia? Mil, duas mil pessoas? Então soumais representativo". A idéia de representação é muitocomplexa, e mais ainda se existe esse fundamentalismo,que é muito claro. No Equador, por exemplo, me dei conta

Pertencente a um concelho distrital. (N. E.)' Ver meu livro Democracia y participación: el ejemplo del presupuesto

participativo en Porto Alegre (Madri, El Viejo Topo, 2003).

Page 46: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos - 9594 • Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

da distância entre os partidos de esquerda e os movimen-tos sociais como o dos indígenas. Há uma hostilidade deprincípios que é preciso superar.

Existe outro fundamentalismo, inverso a esse, o fun-damentalismo antipartidos políticos dos movimentos so-ciais, que é a idéia de que os movimentos sociais têm de sertotalmente autônomos porque a alternativa é a cooptação,que significa a destruição do movimento; eles têm a idéiade que não é possível a relação entre partidos e movimen-tos. Assim, então, não é possível uma articulação entredemocracia representativa e participativa, porque a repre-sentativa está dominada pelos partidos, e a participativaestá dominada pelos movimentos sociais e pelas associa-ções de bairros, de vizinhos etc. Se não há uma articulaçãopolítica entre as duas, não é possível uma articulação entredemocracia representativa e participativa. É preciso ven-cer esses dois fundamentalismos.

E há outro obstáculo: os partidos privilegiam to-talmente a ação institucional, dentro do quadro legal,dentro do parlamento etc. Os movimentos sociais, aocontrário, dividem-se entre os que utilizam mais a açãoinstitucional e os que usam mais a ação direta. E essa é,a meu ver, uma das razões mais persistentes que dificul-tam enfrentar essa complementaridade.

Por outro lado, também podemos dizer que os par-tidos tendem a homogeneizar suas bases sociais, elesgostam cada vez mais de fazer isso por meio do que cha-mamos perda de ideologia nos acontecimentos dos quaisfazem parte. Os movimentos, ao contrário, têm temasespecíficos, trabalham sobre a diferença cultural, a dife-rença sexual, a diferença territorial, trabalham com ou-tros conceitos que são distintos. Temos de inventar umanova cultura política que possa exatamente vencer essasdificuldades. Como se faz isso? Mostrando na prática asvantagens de uma articulação. Há muitas experiênciasno Sul em que a democracia participativa emerge como

pressuposto participativo, como o plebiscito ou as con-sultas populares, como concelhos sociais ou de gestão depolíticas públicas - como no Brasil, onde são muito for-tes neste momento -, e se começa a ver uma complemen-taridade. Ainda é limitada, porque as experiências quetemos de articulação entre democracia participativa e re-presentativa são em nível local. Temos aqui um problemade escala: como desenvolver essa complementaridade emnível nacional e global.

Quando o Partido dos Trabalhadores (PT) do Brasilchegou ao poder, muitos estávamos envolvidos em pro-por idéias para uma democracia participativa, para umpressuposto participativo em nível federal. E discutimosidéias interessantes, porque não pode ser o mesmo queem uma cidade; tem de ter outra forma, mas é possível.De fato, o PT no governo descartou totalmente a possi-bilidade de uma democracia participativa em nível nacio-nal. Então temos isto: uma democracia participativa nonível local consegue articular autorização com prestaçãode contas, cria realmente uma transparência, limita acorrupção - de fato isso está demonstrado - e consegueredistribuição social. Pode-se provar isso nas cidades daAmérica Latina e da Europa onde há um pressupostoparticipativo de redistribuição social.

Mas o problema é este: podemos ter cidades maisjustas, mas as sociedades em nível geral continuam sen-do cada vez mais injustas, porque o âmbito local não con-segue uma articulação nacional. Os partidos poderiamdesenvolvê-la, mas não o fazem. Esse é o único dos li-mites mais persistentes que temos, mas começam a setornar claras algumas coisas muito importantes nessaarticulação: a democracia participativa consegue ampliara agenda política. Há muitos problemas nos parlamen-tos da América Latina e Europa, agora que estes surgemdiretamente das lutas populares, dos movimentos so-ciais. Em meu país, por exemplo, está se desenvolvendo

Page 47: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 9796 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

um plebiscito contra a penalização do aborto, resultadodireto do movimento popular que força os partidos deesquerda a enfrentar essa questão no parlamento.

A participação dos partidos é realmente importantese eles tiverem credibilidade em seus países. O problemaé muito claro: a articulação democracia participativa/de-mocracia representativa exige a credibilidade dos parti-dos. E os partidos podem sustentar uma agenda políticamelhor que os movimentos. O problema dos movimen-tos sociais é que em determinado momento eles têm umaatividade enorme, estão todos os dias na imprensa, e nomês seguinte já não estão, estão em refluxo, as pessoasjá não vão às reuniões ou às assembléias. Essa idéia desustentabilidade da mobilização é um problema muitosério em muitos países, porque, para que se consiga umacontinuidade, uma participação, é preciso haver articula-ção política. Se não há, temos estas duas inércias de quefalávamos antes: por um lado, a inércia e o refluxo dosmovimentos sociais que não conseguem se multiplicar edensificar a luta e, por outro, os partidos que se mantêmcomo antes e não mudam em nada suas políticas.

A meu ver, esse é o desafio que enfrentamos hojepara superar tais problemas, e quando se decide se con-seguem muitas coisas. Por exemplo, trabalhando comexperiências concretas, nota-se que os partidos, ao tervocação de poder, costumam trabalhar bem a questãodos desequilíbrios dentro do espaço público, porquecompetem pelo poder: não querem transformá-lo, que-rem tomá-lo. Os movimentos sociais, ao contrário, sa-bem que muitas vezes as formas de opressão vêm do Es-tado, mas também de atores econômicos e sociais muitofortes, motivo pelo qual a distinção entre a opressãopública e a opressão privada não é demasiado impor-tante. Os sindicatos, por exemplo, têm uma experiêncianotável de luta contra atores privados: os patrões e asempresas. Então, há também nesse processo uma capa-

cidade enorme de ampliar a luta contra a opressão. E,nos países em que a democracia participativa se enraízanas experiências que temos, é possível de fato que sedesenvolva neste momento uma luta mais ampla contradiferentes formas de opressão.

Há fatores que favorecem seu surgimento, e porisso ela está aparecendo em muitos países. O primeiroé que os partidos políticos estão perdendo o controleda agenda política: nunca descumpriram tanto suaspromessas eleitorais quando chegaram ao poder comoultimamente. Um dos estudos mais interessantes é ob-servar os programas dos partidos e depois sua práticapolítica. Sempre foi assim, mas agora é ainda mais, por-que há uma pressão da globalização neoliberal que nãopode entrar na agenda política de um partido. Nenhumdeles pode dizer "quando chegar ao poder vou seguirtotalmente as instruções do Banco Mundial e do FMI",porque se disser isso não vai ter votos, já que as pessoassabem as conseqüências disso. Tem de dizer que vai darmais emprego, educação, saúde etc., mas quando che-ga ao poder não faz nada disso. Esse descumprimentofaz com que a deslegimitação dos partidos seja cada vezmaior em um número cada vez maior de países.

Essa perda do controle da agenda política somentepode ser recuperada por meio dos movimentos popula-res. Não me parece que possa ser de outra forma senãopor meio de uma pressão de baixo para cima, vinda dosmovimentos, e com outra característica: deve ser legale ilegal. Não pode ser somente uma luta institucional,tem de ser uma luta institucional e uma luta direta.Além disso, em alguns contextos tem de ser cada vezmais direta, porque com a criminalização da contesta-ção está se reduzindo a possibilidade de uma luta insti-tucional, e se esta se reduz temos de abrir espaços paraa possibilidade de uma luta direta, ilegal e pacífica. Oque estou sugerindo é que temos de criar uma dialética

Page 48: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 9998 - Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

entre legalidade e ilegalidade, que de fato é a prática dasclasses dominantes desde sempre: usam a legalidade e ailegalidade quando lhes convêm.

Por isso não pode haver um fetichismo legal. Eu,que trabalho muito a questão do sistema judicial -como sociólogo do direito - em vários países da Amé-rica Latina e da África, tenho uma consciência muitoclara de que essa tensão é necessária. De fato, todosos movimentos fundadores da democracia foram ile-gais: greves, protestos e até funerais. Por exemplo, naÁfrica do Sul, um dos movimentos de construção danova democracia foram os funerais dos negros assassi-nados. Ilegalizados pelo apartheid, foram um ato fun-dador de pertença: "Já que não pertencemos na vida,pertencemos na morte". Isso é uma coisa que vem demuito longe. Vocês sabem quais foram as primeiras so-ciedades mútuas dos trabalhadores criadas no séculoXIX na Europa? Eram para comprar um ataúde paraos funerais, quando morria o trabalhador; ou seja, otrabalhador não tinha dignidade em vida, mas queriater dignidade na morte. E ainda hoje em alguns paíseshá sociedades mútuas de funerais. Essa foi a criativi-dade das lutas pela sobrevivência de gente que estavaexcluída totalmente do contrato social, e por isso essamescla de legalidade e ilegalidade é para mim muitonecessária e muito forte.

Claro que a relação entre Estado e movimentos,e entre partidos e movimentos, depende de algo quechamo de condições de oportunidade política. Não po-demos generalizar essas condições: há condições polí-ticas em que as classes que estão no poder são muitorepressivas, muito monolíticas; há outras em que sãomais abertas, menos monolíticas, e há muita compe-tição entre elas. Quanto mais competição entre elites,mais brechas se abrem para que por elas entrem o mo-vimento popular e a democracia participativa. E aqui o

que me choca mais é que os movimentos em separadonão vêem as possibilidades que têm a seu alcance: nãoaproveitam as oportunidades.

Isso é o que devemos analisar sobre a relação mo-vimentos/movimentos. Se os movimentos vão se man-ter separados - feministas de um lado, operários, in-dígenas e ecologistas de outro, direitos humanos aqui,sociedades de bairros ali -, sem articulação, não ire-mos muito longe. Há um excesso de teorias de separa-ção e muito poucas teorias de união, por uma tradiçãonefasta, a meu ver, na política de esquerda: a crença deque politizar uma questão é polarizar uma diferença.Para nossa tradição, politizar significa polarizar. Den-tro dos movimentos, das classes populares, é precisobuscar outra cultura política, que tem de se basear noque chamo de pluralidades despolarizadas.

Há uma discrepância total entre a prática e a teo-ria da esquerda e dos movimentos na América Latina:para uma teoria cega, a prática é invisível; para umaprática cega, a teoria é irrelevante. É o que ocorre hoje,e é preciso superar isso. Se vocês observarem as con-dições dos movimentos, verão que partem dessa po-larização e também de outra coisa: nunca como hojeno pensamento de esquerda houve uma discrepânciatão grande entre as possibilidades de curto prazo e asincertezas de longo prazo. Antes falávamos de socia-lismo ou barbárie; agora passamos a falar que outromundo é possível. A tolerancia é totalmente distinta,o longo prazo é muito inclusivo mas também muitovago. É preciso concentrar essa condição que é proble-mática e ainda permite uma despolarização. Ao anali-sarmos os textos de toda a reflexão da esquerda desdeo século XIX, vemos muito claramente que as polariza-ções incidiam sobretudo no longo prazo. Houve algu-mas no curto prazo. Por exemplo, na Primeira GuerraMundial, os operários se dividiram entre os que esta-

Page 49: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos • 101100 • Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

vam a favor da guerra e os que estavam contra, mas asgrandes divisões são a longo prazo.

Creio que hoje há condições para vencer algumasquestões que parecem muito tenazes. De alguma ma-neira o que vou propor sobre as pluralidades despolari-zadas parece ir contra um novo extremismo que existedentro do pensamento crítico. Há três extremismosque, a meu ver, são muito nefastos. Um é sobre o su-jeito histórico: o extremismo entre os que continuamacreditando que o sujeito histórico é a classe operária eos que acreditam que é a massa. É um extremismo mui-to maior que faz trinta anos, quando se discutia o queera a classe operária, se a pequena burguesia era partedela, qual era o papel dos camponeses e quem eram osaliados. Agora é entre o extremo da classe operária e oda massa. Marcos diz: "pessoas comuns, e portanto re-beldes"; Michael Hardt diz, em Império, e disse tambémno FSM de 2005: "todos somos comunistas".

Esse extremismo, a meu ver ridículo, está tentandoconfundir as coisas porque é totalmente irrelevante. An-tes as facções dentro dos partidos comunistas, socialis-tas, eram divisões que tinham conseqüências políticas:alguém podia ser expulso de um partido ou podia mor-rer. Ou seja: o extremismo, as posições distintas, tinhaconseqüências. Hoje não têm conseqüências, é um ex-tremismo tão grande como inconseqüente, desprovidode relevância. A mesma coisa acontece com as formasde organização: ou temos as tradicionais de partidos esindicatos, ou tudo é espontâneo, não pode haver umaorganização porque se houver não há democracia direta,e se não há democracia direta não há movimento popu-lar puro. Esse extremismo é totalmente irrelevante, masgera muitos debates improdutivos.

Há também outro extremismo que é pensar, porum lado, que é necessário tomar o poder e, por outro,idéias como a de Holloway, por exemplo, que diz: "Não,

não temos nada que ver com o poder, não se deve tomaro poder, mas ignorá-lo " . Continua sendo muito difícilencontrar um caminho intermediário, e somos váriosos que estamos buscando outra via, na qual a questãonão é tomar ou não o poder mas transformá-lo, so-bretudo a partir de um princípio que é fundamental:em todas as lutas os conflitos são determinados pelasclasses ou grupos dominantes. Quando lhes falo douso contra-hegemônico de um instrumento hegemô-nico, parto dos termos do conflito, porque não estána agenda política uma transformação global. Ou seja,estamos em um momento, em um período de transi-ção, que é tardio demais para ser pós-revolucionário eprematuro demais para ser pré-revolucionário.

Essa é uma situação que traz em si toda essa ten-são e oportunidade criativa que temos para poderconstruir uma alternativa democrática. Por isso, pen-so que nessas condições temos de partir dos conflitos.Como se mede hoje o êxito de uma luta? Por sua capa-cidade de mudar os termos do conflito. Por exemplo,os indígenas têm visto como seu êxito vai de pequenaslutas culturais para a defesa da autodeterminação, daautonomia. Articulam-se as lutas mudando os termos.Essa pluralidade despolarizada que lhes proponho terámuitas conseqüências, e creio que o FSM é um embriãode realidades em que podemos começar a ver algumasdessas despolarizações, pluralidades que são despola-rizadas. E aqui concluo minha exposição: se comeceiepistemologicamente com a ecologia dos saberes, ter-mino com as pluralidades despolarizadas. Ou seja, olado político de uma epistemologia dos saberes é a in-completude de propostas políticas e a necessidade deuni-las sem uma teoria geral.

O conceito de pluralidades despolarizadas temuma série de condições das quais não vou falar aqui,mas tem sobretudo essa necessidade de uma inteligi-

Page 50: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

102 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos . 103

3

bilidade, uma articulação de ações coletivas cada vezmaior. Isso está emergindo em muitos movimentos:no movimento feminista, no movimento indígena etc.Há coisas que são totalmente inovadoras. Por exemplo,em meu país, o movimento sindical apóia o movimen-to gay e este tem muita presença nas manifestações;vinte anos atrás os sindicatos nunca tinham partici-pado de uma marcha de orgulho gay, eram totalmenteantigay e faziam uma articulação com a Igreja Católicamais conservadora. Hoje essas articulações são pos-síveis. Para que possam ser possíveis sem uma teoriageral que diga qual é o mais importante, é necessário oprocedimento da tradução.

Trata-se de criar inteligibilidade por meio da argu-mentação, porque, apesar de todas as dificuldades queenunciamos - um caminho que não é brilhante, que nãotem receitas prontas, que é reversível -, é uma das tradi-ções filosóficas mais interessantes. O que acontece coma argumentação: eu estou a ponto de ser convencido porum argumento mas você me diz uma coisa que me ofen-de e eu saio dali. Quando não temos conhecimento de-monstrativo, temos um conhecimento argumentativo.Toda possibilidade de compreensão é boa mas é reversí-vel, porque é preciso conduzi-la de maneira que não nosexpulse do processo argumentativo.

E não é fácil, porque há um problema de língua,há um problema de poder de argumentação, há umahistória por trás dos movimentos. Por exemplo, emminha prática de levar sindicalistas a falar com as fe-ministas, muitas vezes os sindicatos pensam: "Nós so-mos o verdadeiro movimento social e toleramos umpouco a presença de vocês". E como passar da tolerãn-cia ao respeito mútuo, recíproco? P. um processo polí-tico, nada se consegue de hoje para amanhã. De fato, apaciência da utopia é infinita.

DEBATE COM O PÚBLICO

Perguntas e comentários 3

Queria fazer um comentário sabre essa experiênciade complementaridade entre a democracia representativae a participativa, que o senhor dizia se dar mais no local, eme chama muito a atenção a experiência que temos tido coma campanha continental contra a Alca na América Latina.Nasce no FSM, se desenvolve diante da ameaça da Alca mas,diferentemente do FSM, a campanha continental permite aparticipação de partidos políticos e tem um pouco as regrasdas assembléias sociais. A partir daí sucederam muitas coi-sas, porque as dinâmicas são de fluxo e refluxo. No caso ar-gentino, nos permitiu uma consulta popular de 2 milhões devotos, no Brasil também, mas na Bolívia, a partir do reforçopela busca do Tratado de Livre Comércio Andino (TLC) apa-rece o eixo político que toma o governo e produz toda a últimaparte que levou ao governo de Mesa. Na semana passada, emQuito, o movimento indígena, que é um dos que mais têm de-senvolvido a luta contra o TLC, nos surpreendeu porque se re-tirou das negociações pelo tratado que estavam acontecendona área andina. Parece-me que já é uma luta mais que local eque pode ser pensada nos mesmos termos.

Vou tratar de elaborar a pergunta porque tenho muitasdúvidas. Hoje foi talvez o Boaventura mais moderno e menosinovador que escutei; hoje, talvez pelas questões que apre-sentou, houve um desperdício da experiência. Eric Wolfe Eric

No terceiro dia foi muito difícil coordenar as perguntas com asrespostas pelo grande número de intervenções do público, o quelevou o professor Boaventura de Sousa Santos a responder algu-mas de forma particular e outras em conjunto. Em primeiro lugar,apresentamos aqui as intervenções respondidas, e çlepois as queforam comentadas de maneira geral.

Page 51: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 105104 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Hobsbawm, quando fazem suas análises sobre o campesinato,dizem que eram anarquistas por natureza, mas é interessan-te pensar que talvez possam ser vistos como anarquistas porsua experiência na relação com o Estado. Na Argentina – agorafalo como participante de assembléias, como cidadão que viveua experiência desses anos – nossa relação com a democracia re-presentativa é bastante complicada. Quando nos politizamoscomo pessoas comuns (diria Marcos), temos certas tendênciasporque aprendemos na relação com o Estado. Alguns trabalhosde pesquisa sobre a contestação na Argentina dizem que em dezanos neoliberais o Estado não deu, em mais de 95% das contes-tações, nenhum tipo de resposta, salvo a repressão. Isso deixamarcas. Pensar que determinada experiência não tem nadaque ver com sua postura e sua aposta em relação à democraciarepresentativa seria em todo caso desconhecer a construção dosmovimentos sociais. Nesse sentido, me pareceria normativodemais pensar como deve ser a articulação entre democraciarepresentativa e participativa, e não me animo a dizer aos mo-vimentos sociais por que não são capazes de articular esses doisníveis na procura de um projeto emancipatório. Em todo caso,seria interessante pensar o que está em tensão por baixo des-sa relação entre as duas democracias, que na realidade partemde lógicas de organização territorial distintas. Não li isso emsua análise, como funciona a produção do território, porque oEstado tem sua produção territorial mas os movimentos têmoutras. Pensemos nos movimentos indígenas, nos movimentoscamponeses, na atualidade dos movimentos urbanos que tra-tam de reconfigurar os espaços. E a política não vive no ar, viveem determinados territórios que se produzem pelos sujeitos.Nesse sentido, parece bastante fraca ou pouco inovadora essaproposta de apostar em uma articulação entre democracia re-presentativa e participativa, em função também dos atores quehoje, em nível global, nacional e local se esforçam por distintasconstruções do território. Pensemos nas multinacionais, nosEstados fracos, nos distintos movimentos locais etc.

• Se partirmos de um pressuposto entre ordem e conflito,entre política institucional e o político, em que se institucio-naliza o conflito por meio de uma nova ordem, com o que sepode falar de expansão da democracia, em que medida essaarticulação que o senhor propõe entre democracia represen-tativa e participativa não pressuporia uma nova regulação?

• Queria que pudéssemos nos aprofundar em dois te-mas: o Estado de Exceção e o outro, que aborrece muito acertos teóricos que padecemos de alguns fundamentalis-mos, sobre a possibilidade de democratização da relação deexploração, o que é complicado.

•Isso que o senhor disse sobre a democracia representati-va e sobre a articulação com a participativa é um debate velhoque recupera a discussão levantada por Pareto sobre o voto re-presentativo. Ou seja, que a democracia representativa sempretem a tendência de não respeitar o mandato imperativo, é maisou menos a essência dessa democracia representar globalmen-te, e não o mandato imperativo, que falaria de uma prestaçãode contas do dito mandato. Parece-me que isso que o senhordizia sobre a prestação de contas na democracia representativaé quase uma contradição em seus termos.

Respostas do autor

Sobre a primeira pergunta, queria dizer-lhe que de fatoé verdade – e de alguma maneira começo a responder asegunda –, é realmente preciso analisar cada vez mais asformas de participação e de articulação popular que estãose organizando no nível global. O problema, para mim, éa sustentabilidade disso. É possível, por exemplo, que asfeministas do continente se articulem hoje com as asiá-ticas – sobretudo da Índia – para algumas contestações eações políticas locais. E aqui temos visto que a única coisaque pode articular o local com o global, ou seja, a emer-

Page 52: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 107106 - Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

gência de formas de participação no nível global, é quehaja um fundamento, uma razão local para que o movi-mento seja global. No caso da Alca se vê isso muito clara-mente. Conseguimos demonstrar que esse projeto globaltinha conseqüências locais. Foi possível demonstrar, porexemplo, as conseqüências do Nafta para a agricultura doMéxico. Nem sempre é fácil fazer isso. Em 15 de fevereirode 2003, quando houve uma manifestação contra a guer-ra do Iraque, pela primeira vez as feministas dos EstadosUnidos conseguiram realizar a mais importante mobili-zação contra a guerra. Isso é inovador, antes eram outrosmovimentos que a convocavam: agora foram as feminis-tas que fizeram porque articularam uma agenda localcom a global, já que Bush era contra a luta pelos direitosreprodutivos da mulher, contra a legalização do abortoe outras questões, e as feministas conseguiram articularuma luta nacional com a luta global. Isso nem sempre épossível, e é preciso procurar casos em cada país. Quantomais global for a luta, mais dificuldade existe. Por exem-plo, um movimento interessante é o dos povos indígenascontra as represas. Ontem eu falava com uma compa-nheira mapuche e estava lhe dando informações sobre ogrande movimento de populações desalojadas por causade represas que está sendo articulado em vários países:no Brasil é forte, na Índia é forte, e poderíamos organizá-lo aqui também, assim como também articulá-lo com aluta contra a privatização da água; pode-se aí fazer umaarticulação muito clara entre o local, o nacional e o glo-bal. Nos casos da África e da América Latina há tambéma questão da dívida.

Continuo com a segunda pergunta, muito interes-sante. Aceito sua análise. Não sei se estou mais modernomas talvez menos inovador, porque não quero produzirum conhecimento de vanguarda que crie novidade pornovidade. Quero avançar com aquilo que é possível emcerto momento, procuro radicalizar as possibilidades do

momento. E talvez não tenha dito tudo: eu me centreinesse tema da democracia representativa e participati-va com todos os problemas que há nele. Mas você temrazão quanto a isso não ser inovador, é bastante anti-go. O problema é este: nossas soluções neste momentonão são heróicas. Se vocês falarem com os movimentospopulares, verão que não falam de socialismo. Algunsdirigentes fazem isso, mas, se a pessoa está morrendode fome, quer que não haja desperdício não só da expe-riência mas também do lixo de que se alimenta. Essa é arealidade neste tempo. Então, um pensamento heróiconessas condições é irresponsável - é o que penso de Ne-gri ou de Holloway - porque impede a possibilidade demudança. Eu quero ser medíocre para radicalizar tudo oque existe e que pode se desenvolver. Uma questão coma qual tenho trabalhado bastante é que nenhuma arti-culação entre democracia representativa e participativaé possível se não houver uma globalização contra-hege-mônica, se não houver uma luta no nível global que façaa sociedade se sentir cada vez mais incômoda na repro-dução do capitalismo. Porque, se deixarmos, produzi-rá mais e mais capitalismo, e cada vez mais perigos. Épreciso criar incomodidade, é preciso mudar os termosdo conflito. Por isso falei do quadro local e do nacional;não falei da dimensão global, sem a qual isso não temsentido, mas está presente em todo o meu trabalho anecessidade da globalização contra-hegemônica.

Há outra questão que não mencionei - as possi-bilidades de participação, as possibilidades que háhoje de coisas novas -, mas que tem uma presençaimportante em todo o trabalho com os movimentosindígenas. Existem dois livros coletivos meus: um éum trabalho que fizemos na Colômbia, onde desenvol-vemos a questão de justiça e a democracia a partir daexperiência indígena, com vários capítulos sobre comose criou a justiça própria dos indígenas e como ela se

Page 53: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos . 109108 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

articula com a justiça nacional". Ou seja: a idéia de quea esquerda é hoje pluricultural. E por isso dizia: comotraduzo dignidade e respeito dos indígenas em luta declasses para o sindicato? É preciso traduzir. Algumasfeministas no Brasil hoje nunca usam o conceito deemancipação. Falavam de liberação. No Brasil, durantemuito tempo, os sindicatos falavam de emancipaçãosocial e diziam às mulheres que estavam no movimen-to sindical, sempre que elas traziam a questão de sexo,de gênero: "Olhe, primeiro vamos conseguir a emanci-pação social e depois vamos resolver seu problema, oproblema principal é o da exploração e os outros vêmdepois". Elas se mantiveram hostis à idéia de eman-cipação social porque era um mecanismo de opressãopara elas, de "descredibilização" de sua luta. Então,vou eliminar o conceito? Não, vou articular, vou tradu-zir. O trabalho do movimento popular não é tão herói-co como se pensa. Muitas vezes 90% é rotina, falar decoisas, escrever documentos, muitas vezes não sabe-mos o sentido das coisas. Por isso é muito importantea proposta da Universidade Popular dos MovimentosSociais que estou fazendo, para que, por um lado, oslíderes ativistas tenham a possibilidade de reconstruirteoricamente sua atividade a fim de dar-lhe outro âm-bito teórico, analítico, inovador e, por outro lado, queos cientistas sociais, artistas e filósofos também se re-novem no contato com essa realidade. Parece-me quehá muita experiência social a ser resgatada, e talvezhaja aqui uma riqueza nos movimentos muito inova-dora, e isso talvez o leve a dizer que não tem muitosentido na Argentina buscar uma articulação entre de-mocracia representativa e participativa. Estou prontopara aceitar que você me diga qual é a alternativa, por-

Boaventura de Sousa Santos; Maurício G. Villegas (orgs.), El caleidos-copio de lasjusticias en Colombia (Bogotá, Siglo del Hombre, 2001).

que fazer a revolução, a luta armada, não creio que sejapossível neste momento.

Sobre a pergunta que menciona Pareto, quero dizerque a democracia representativa tem por natureza pro-blemas talvez incontroláveis com a prestação de contas,inclusive pela utilização das eleições. Porque, de fato,o que são as eleições livres? Se virmos o que se faz naprática, teremos muitas dúvidas. Quando um presidentecomo Clinton, dos mais populares, foi eleito só por 25%da população dos Estados Unidos, qual foi sua represen-tatividade? Isso é verdade, mas meu problema é o quetemos neste momento. Vivi parte de minha existência naditadura, vocês também, e sabemos que a diferença nãoé formal. Esta reunião não seria possível em meu país em1973. No auditório haveria vários policiais que informa-riam sobre a minha fala. Em 1973 eu estava ensinan-do os fundadores da sociologia - Weber, Durkheim eMarx - e escrevia o nome de Marx em português (Mar-ques) porque os policiais não entendiam. Essas sãocoisas que para a nova geração não têm muito sentido,mas a diferença entre democracia representativa e di-tadura não é formal, é muito real. Por isso a democra-cia representativa é falsa: porque é pouca. Vamos deixaressa luta? Quando falo em Angola ou em Moçambique oscontextos são distintos. Mas neste momento, quando osmovimentos de libertação são corruptos e é preciso criaralternativas, temos uma destas duas: ou criamos alter-nativas, dentro do movimento de libertação - que agoraé um partido -, ou criamos outros partidos. Vocês têmesse problema aqui, de estar dentro ou fora do justicialis-mo. É preciso criar uma tensão. Até que ponto? Há paí-ses em que esse discurso não tem sentido algum: não hámovimentos populares nem uma democracia represen-tativa minimamente crível. Provavelmente, em algumascondições, a democracia representativa é revolucionária.A mera idéia de que haja outros partidos pode levá-lo à

Page 54: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos 111110 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

prisão. Então, entre a "descredibilização" total dos par-tidos em muitos países e a possibilidade de reinventar,é preciso tentar criar um discurso hegemônico a partirde uma contra-hegemonia, criar uma hegemonia alter-nativa que é: "Essa democracia não nos serve". Por issofalo de uma democracia de baixa intensidade que convivecom o fascismo social. Temos duas opções: uma alterna-tiva à democracia, ou uma democracia alternativa. Nestemomento não vejo uma alternativa à democracia de altaintensidade que proponho. Por exemplo, outro aspectodo qual não falei é como se faz uma democratização radi-cal. Os seis espaços estruturais são formas de poder quetêm de ter uma democratização. Não se democratiza afamília como se democratiza a fábrica ou a comunidade.Como democratizamos a democracia? Esse é o desafio.Poderíamos pensar em algo alternativo, se eu aceitar,como diz o colega, que realmente nunca há prestação decontas na democracia representativa. Não vou dizer quenunca houve, nem que em algum país é mais factível queem outros; não posso generalizar; tenho de fazer análisesconcretas de situações concretas. O que digo é que agorase torna cada vez mais difícil na democracia representa-tiva a prestação de contas, e não vejo alternativa senão oenfrentamento por meio de mecanismos de democraciaparticipativa usando legalidade e ilegalidade, ação dire-ta e ação institucional. Isso não é inovador, mas é o quetemos, e já é muito; em muitos países não é possível fa-zer isso. Para mim, o modelo é o MST do Brasil. Sou tãoinovador quanto eles. Não posso avançar mais que a prá-tica mais avançada. Aqui, na Argentina, vejo que ou es-tamos fora do Estado ou estamos cooptados pelo Estado.Eu venho de outra experiência na qual estamos simul-taneamente fora e dentro do Estado: invadimos terras,fazemos contestações ilegais, ocupamos ministérios e, aomesmo tempo, alguns dos nossos dirigentes estão no go-verno e vamos ter uma conversa com o governo na qual

o MST decide que não vai criticar Lula na eleição de 2006se o orçamento para a reforma agrária for dobrado, e as-sinarão documentos. Isso é possível no Brasil agora, masnão era possível com Fernando Henrique Cardoso: nãose pode generalizar. Falei aqui de uma construção teóricasuficientemente aberta às diferentes realidades dos paí-ses para que ninguém seja escusado de não pensar sobresua realidade. Esse é um pensamento que nos obriga apensar nossa realidade, por oposição: isso não me serve,e se não me serve tenho de buscar uma alternativa. É oque aconteceu em meu país, que teve uma revolução em1974: todos os que estão no governo conservador erammaoístas naquele tempo. Por que se passou de uma ex-trema esquerda a uma direita? Porque foi realmente umextremismo inconseqüente. Temos de fundamentar nos-sos avanços com os avanços da prática. Tem sentido hojeum intelectual comprometido com os movimentos, o queé uma posição que estamos inventando e que não é herói-ca, porque não é nem o intelectual orgânico de Gramscinem o pensamento de vanguarda que tínhamos.

À pergunta sobre se essa articulação pode se trans-formar em uma nova regulação, respondo: sem dúvida.No livro sobre reinventar a democracia, por exemplo,falo de uma coisa que é absolutamente chocante paraalguns: considerar que o Estado é o mais recente mo-vimento social. Creio que o erro mais dramático da es-querda seja dizer que o Estado é irrelevante, que é total-mente corrupto e que não temos de nos preocupar maiscom ele. Penso que é preciso lutar dentro e fora do Esta-do, não há alternativa. O novo é isto: na regulação, o Es-tado é um sócio; o que chamamos hoje de "governança"é a armadilha mais recente de toda a ideologia neolibe-ral. Tenho alguns textos de crítica radical a isso, por-que esvazia todos os conflitos sociais em nome de umaforma de regulação que possui várias altergativas. Umadelas é que o Estado não deve compartir a regulação,

Page 55: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

112 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos . 113

já que há institutos públicos ou organizações privadasque exercem a regulação social'. É uma visão extrema-da: por exemplo, a regulação das escolas no Texas. Hágente da esquerda crítica da América do Norte (comoCharles Sabel) que pensa que essa é a solução. A meuver, é uma armadilha, porque o que é mais persistente?É a idéia de que o cidadão individualmente ou mesmoorganizado tem no máximo a capacidade de distinguirum problema, mas nunca a capacidade de propor umasolução, porque a solução vem dos profissionais, da po-lítica e do conhecimento científico. A profissionalizaçãoda política mais o conhecimento técnico-científico estátirando as pessoas dessa cidadania bloqueada. Ai, sim,há realmente um processo de nova regulação.

Em relação ao Estado de Exceção, o fascismo socialestá eliminando os direitos sociais e econômicos, é o re-sultado do desmoronamento dos direitos sociais, e nes-te momento há também um ataque aos direitos civis epolíticos. Já não são somente os sociais e econômicos,são todos. E nesse novo Estado de Exceção, tal como hápolítica democrática e fascismo social, não há suspensãodas liberdades, a Constituição está em vigor, mas há umnovo Estado de emergência que se assenta na idéia deque sua legitimidade se baseia hoje na governabilidade,ou seja, na possibilidade de governar sociedades que sãocada vez mais ingovernáveis. Está se criando a idéia deque o governo tem de se defender de atores hostis queestão fora e dentro do sistema, e podem ser cidadãos ouorganizações – o que se chama de inimigo interno. Surgeum direito penal do inimigo (já teorizado na Alemanha)totalmente distinto do direito penal dos cidadãos. Toda alegislação antiterrorista é parte desse processo de atuar

Ver Boaventura de Sousa Santos; César Rodriguez-Garavito (orgs.),Law and Globalization from Below (Cambridge, Cambridge UniversityPress, 2005).

contra o inimigo interno. A outra dimensão são os no-vos serviços secretos nos diferentes países e o controledos dados pessoais. Hoje não podemos enviar um cor-reio eletrônico e pensar que ele não vai ser observado porum controle global, que busca palavras-chave nos nossose-mails, e, se alguma delas se articula com outra, nossoe-mail vai demorar um pouco mais de tempo, porque vaiser verificado primeiro de maneira eletrônica e depoisde maneira manual. Essa é outra forma de luta contraa privacidade que ostenta o novo Estado de Exceção. Oterceiro aspecto é o crescimento das políticas privadas,os bairros fechados. A divisão das cidades entre "zonascivilizadas" e "zonas selvagens" é uma forma de fascismosocial. O mesmo Estado e a mesma polícia nos mata nas"zonas selvagens" e ajuda nosso filho a atravessar a ruanas "zonas civilizadas"; facilitam e reprimem com o mes-mo treinamento e o mesmo Estado. Essa é, para mim,outra forma de Estado de Exceção, porque há articula-ções contra os direitos humanos entre polícias privadase polícia pública. Na Espanha há 100 mil policiais priva-dos e 40 mil públicos e as articulações entre as políciasprivada e pública estão crescendo cada vez mais, não es-tamos longe de todos os cidadãos nas zonas civilizadasdas cidades terem seus guarda-costas, sua polícia priva-da. Se continuarmos com essa economia e sociedade demercado, com desigualdades brutais, vamos ter de fatoessa repressão, pois as ações hostis podem vir de dentrodo Estado. Em muitos países há juízes progressistas, ad-vogados populares, gente que está tentando lutar contraa corrupção e que são expulsos de seus trabalhos. Nestecontinente, mudar a Corte Suprema é um costume. NaItália, depois da luta contra a corrupção por parte dosjuízes, houve um ataque total à atividade judicial, no qualBerlusconi tentou promulgar uma lei que impede aos juí-zes fazer "interpretações criativas" da lei. O 'que querdizer isso? Que não podem utilizar o direito para lutar

Page 56: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

114 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos . 115

por uma justiça social, pela cidadania, pela democracia.Essas são algumas das dimensões que vejo na emergén-cia do Estado de Exceção que também não está teoriza-do, e que não existe somente em nível nacional, existeem nível global. As leis antiterroristas são hoje parte dascondicionalidades do Banco Mundial e do FMI: temosde privatizar a economia, conseguir aprovar leis de pa-tentes e agora leis antiterroristas, e é por isso que PaulWolfowitz foi designado presidente do Banco Mundial.Aqui há uma articulação entre o global e o local. Comolutar contra isso? Temos de conduzir uma luta nacionale uma luta global. Nessas diferenças que houve nos mo-vimentos sobre como analisar o Banco Mundial, houveuma divisão dentro do FSM entre os que pensavam queo Banco Mundial poderia ser democratizado no sistemadas Nações Unidas e outros que diziam que nunca o seriae que devíamos lutar pela sua eliminação. Hoje só a se-gunda opção tem sentido.

Perguntas do público

Queria que aprofundasse um pouco em um tema quemencionou mas não desenvolveu: os direitos humanos, sobre-tudo em sua matriz exclusivamente ocidental e individual, etambém nessa idéia de que os perpetradores dos direitos hu-manos são vistos só em nível de Estados nacionais.

Por haver poucas certezas há muito a esclarecer, mui-tas perguntas, e a articulação de que você falava entre os mo-vimentos sociais e os partidos políticos para mim seria comovoltar a uma certeza que pode estar esgotada para muitasexperiências dentro da Argentina e da América Latina, pelomenos como corrente de pensamento. Hoje na Argentina háuma série de articulações entre os movimentos sociais e ospartidos políticos; pareceu até ser mais hegemônica no cam-

po popular essa articulação ligada, por um lado, ao oficialis-

mo ou ao Estado e, por outro, a partidos de esquerda, mastambém continua sendo - ainda que hoje pareça mais invi-sibilizado - o processo que se foi forjando durante a décadade 1990 em diferentes grupos que nasceram nos bairros, emmovimentos camponeses, que retomaram lutas anterioresmas de outra maneira. É o que é hoje o movimento campo-nês de Córdoba, a União dos Trabalhadores Sem Terra deMendoza, o Mocase (Movimento Campesino de Santiago delEstero), ou em direitos humanos a renovação do Hijos* quesurgiu há dez anos como um grupo de jovens que começou ase organizar de maneira diferente, fora das lógicas dos parti-dos políticos. São as novas formas de organização um poucomais horizontais ou mais democráticas, e todo esse proces-so que floresceu depois de 19 e 20 de dezembro". Continuahavendo articulações que não passam pelos partidos políti-cos. Por exemplo, os camponeses com alguns movimentos dedesempregados, pequenos emergentes que não são hegemó-nicos mas estão acontecendo, ou as assembléias de bairros,que hoje estão em refluxo total. No interior houve diversasarticulações que ainda não são conhecidas mas que existeme precisam ser resgatadas. Para mim, os partidos políticossoam como um filho dileto da modernidade, por sua próprialógica que não permite uma articulação com o movimentosocial porque sempre quer submetê-lo. Pensando no tema dopoder e da prática política que muda quando se chega ao po-der, vimos a experiência do Equador, a Conaie (Confederaçãodas Nacionalidades Indígenas do Equador) e o Pachakutik,que hoje estão divididos e desarticulados. Luis Macas, o novopresidente da Conaie, disse em seu discurso de posse: "Temos

• Hijos (Hijos por la Identidad, la Justicia, contra el Olvido y el Silencio-Filhos pela Identidade, pela Justiça, contra o Esquecimento e o Silên-cio) - organização de direitos humanos criada em 1994, na Argenti-na, formada basicamente por filhos de pessoas atingidas de algumamaneira pela repressão (prisão, exilio, desaparecimento). (N. T.)

• De 2001. No dia 21 houve a edosão do "Que se vayan todos". (N. T.)

Page 57: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

116 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos - 117

de voltar a nossas fontes, a construir as comunidades a par-

tir da base, da autonomia". Hoje não estão participando domovimento popular do Equador como antes, e haviam sidoos criadores dele. Por outro lado, não afirmo que não existeo Estado ou que ele é irrelevante; existe e tem políticas a fa-

vor ou contra os movimentos. Os zapatistas propuseram emcerto momento fóruns da reforma do Estado, discutem comele, mas também vão gerando esses processos de construçãoda autonomia, como Los Caracoles (municípios autônomos),a justiça própria, a educação própria, por aí afora. Talvez eupossa pensar nas experiências de poder local a partir do pro-cesso eleitoral, movimentos sociais que ganham municípios eos administram, mas me parece muito difícil pensar nessa ar-ticulação de modo emancipatório em nível nacional, quandose fala que é preciso tomar o poder para a partir daí conseguirmudar. E com respeito a esses espaços de dominação que osenhor mencionava, se formos esperar que o Estado mude,não se vai chegar nunca a mudá-los.

▪Minha pergunta tem que ver com o impacto político doFSM, e queria saber o que pensa sobre como participar narenovação de nossa relação com o político, por um lado, e ex-cluir os partidos políticos, por outro. Isso não representa umaameaça para a "descredibilização " dessa articulação entre aesfera política e a dos movimentos sociais?

▪ Queria perguntar sobre a utilização de instrumentoshegemônicos com fins contra-hegemônicos, e o caso dos za-patistas no México, o caso de Chávez na Venezuela e o do PTno Brasil.

• Queria perguntar a respeito dessa articulação entremovimentos sociais e partidos políticos e também outros se-tores que têm capacidade de incidência ou poder de decisãono que é a transformação de uma política, a respeito de quaissão os instrumentos ou as experiências conhecidas além doFSM, de espaços de articulação alternativa que possam ter

sido construídos e aos quais possamos nos remeter para pen-sar experiências próprias. Entendo, a partir do que o senhorvem dizendo, que existe a possibilidade de articular políticascom potencial emancipatório, o que, a meu ver, pode ser hojeuma política de reforma agrária que poderíamos pensar demaneira diferente, e não só fazer a interpelação para o campopopular. Parece-me também que teríamos de começar a pen-sar uma ação forte rumo aos partidos políticos como estru-tura, ou seja, como funcionam e qual é o papel que poderiamchegar a prestar ao projeto a que estamos nos propondo.

Faço a última pergunta: duas questões. A primeira ésobre a diferença que tinha o movimento sindical em sua de-manda aos setores privados e em sua demanda ao Estado, queapareciam como muito claras e diferentes e que hoje não sãovistas dessa forma nos movimentos sociais. Eu me perguntose isso não tem que ver com essa preocupação que aparecesobre resgatar o Estado da colonização que sofreu por partedos interesses privados, e se isso tem volta. A outra questãoé sobre o Estado como único gerador de direitos sociais; eume perguntava se não havia aí, novamente, essa falácia detomar uma parte pelo todo, porque na América Latina háuma série de experiências de formas societárias não-estatais,regionais, que têm gerado direitos e justiça desde o séculoXIX, como as repúblicas independentes negras no Brasil, osmovimentos indígenas etc. Se não há aí uma forma de pensaro que faz o Estado nacional coma universal.

Respostas do autor

As questões agora são cada vez mais complicadas. O as-sunto é como se pode fazer um uso contra-hegemônicodos direitos humanos (DH). Creio que os DH foram parteda Guerra Fria, são monoculturais porque sua concepçãoda natureza e do indivíduo é uma concepção ocidental.Não há, de fato, direitos humanos universais, que são

Page 58: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

118 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos - 119

sentidos por todas as diferentes culturas do mundo comoseus. A Declaração Universal foi produzida por um grupomuito pequeno de países, e sua universalidade é falsa nosentido sociológico, político e cultural. O que me chocamais no FSM, por exemplo, é que muitos movimentosque lutam contra a globalização neoliberal não formulamsuas lutas em termos de DH. Quando falávamos disso naÍndia, muitos movimentos de lá nos diziam: "Veja, os DHsão mais uma armadilha ocidental". A linguagem dos DHé uma das linguagens sobre a dignidade humana, e nãovou descartá-la, mas tenho de fazer uma ecologia de con-cepções de dignidade, e de concepções no nível cultural.Existe a concepção de umma, que é a comunidade do Co-rão, do Islã; e a concepção do dharma no hinduísmo, queé uma concepção de organização e integração cósmica,muito parecida com as concepções indígenas da nature-za e do homem no cosmos, como a Pachamama. Há umtrabalho de tradução intercultural que temos de fazer en-tre os DH e outras concepções de dignidade humana. OsDH são individuais e é preciso que haja uma luta pelosDH coletivos. Os povos indígenas lutam há trinta anospor uma declaração das Nações Unidas sobre seus direi-tos coletivos e não conseguiram nada até agora, porquede acordo com a ONU houve uma autodeterminação dospaíses coloniais nos processos de independência: como jánäo há colonialismo político, já não é necessária a auto-determinação. Os indígenas contestam, dizendo: "Nossaautodeterminação não inclui a idéia de independéncia,não queremos ser independentes, queremos nossa auto-determinação e nosso território". E não conseguem por-que os Estados se opõem; esse é outro trabalho contra-hegemônico que é preciso fazer. O outro trabalho é queas práticas hegemônicas dos DH denunciam muitas vio-lações para ocultar outras maiores: eu lhes dou o exem-plo dos soldados americanos torturadores na prisão deAbu Ghraib, vistos em todas as televisões, para ocultar a

maior violação dos DH que foi a invasão do Iraque. De-nunciam uma violação para ocultar outra muito maior,mais maciça. Por último, não há deliberação democráticasem negociação das regras da deliberação. Os países peri-féricos e semiperiféricos não participaram do esboço dosDH. Por exemplo, o direito ao desenvolvimento propostopelos africanos foi ignorado durante anos. Os DH, em suaimensa seletividade, nunca discutem os planos do Norte,dos países desenvolvidos do Centro, sobre o desenvol-vimento, que é realmente uma grande tecnologia paraimpedir o desenvolvimento. O problema dos DH não éo Sul, é o Norte, é uma violação inqualificável dos direi-tos. Os processos de privatização da água são uma viola-ção maciça dos DH, mas se falarmos disso na FederaçãoInternacional dos DH vão dizer que somos radicais, queisso não é uma violação dos DH. Ou seja: há muito sofri-mento humano que não conta como violação dos DH, hámuito sofrimento humano injusto que se considera umlegítimo custo social. Isso é o uso hegemônico dos DH, ehá muitos movimentos que já não usam mais esses con-ceitos. Outros estão tentando fazer o que proponho, umareconstrução multicultural contra-hegemónica dos DH.E, além disso, os DH são muito ocidentais, porque hácoisas que não ocorrem em outra cultura. Por exemplo,essa falsa simetria entre direitos e deveres: sempre fa-lamos de direitos humanos, nunca de deveres humanos.56 se concedem direitos àqueles dos quais se podem exi-gir deveres. Por isso a natureza não tem direitos, porquenão tem deveres, e as futuras gerações não têm direitosporque também não têm deveres. Isso é impossível nohinduísmo, esse dualismo não existe. Mas o hinduísmotambém tem problemas com a dignidade humana, comoo fato de não ver a questão individual, a autonomia indi-vidual, que é também um aspecto fundamental dos DH:nunca vi uma sociedade sofrer, os sofrimentos são sem-pre nos corpos e indivíduos. Todas as concepções sobre

Page 59: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos - 121120 Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

6

dignidade humana são incompletas, é preciso fazer umtrabalho multicultural.

Sobre a questão das mudanças nas articulações, denovo a experiência argentina - e esse é o problema hojena teoria social - mostra que não devemos generalizarnunca, inclusive essa Epistemologia do Sul que estamostentando desenvolver pode entrar na armadilha de querergeneralizar demais. Não se pode fazer isso, porque hou-ve situações em que partidos interessantes emergiram demovimentos sociais - o PT do Brasil, por exemplo -, ou-tras em que movimentos sociais produziram novos parti-

dos - o Pachakutik no Equador -, mas aqui na Argentinaa crise social não produziu um novo partido articuladocom os movimentos. O que vocês têm de analisar é: porque não ocorreu aqui? É preciso fazer o diagnóstico e ten-

tar uma luta, porque os partidos têm de ter credibilidade,devem ampliar a agenda política. Senão essa articulaçãofica muito dificil. E, claro, não tive tempo de analisar umacoisa que você propõe e é fundamental: a articulação mo-vimento/movimento. A obrigação de um cientista socialcomprometido com os movimentos é credibilizar as arti-culações e tentar que elas se sustentem, se ampliem, sedensifiquem, e para isso é necessário manter a luta polí-

tica da pluralidade, mas despolarizada no sentido de nãodizer: "Já não quero mais falar com você porque você émeu inimigo". O capitalismo vive da possibilidade de queas classes populares confundam os inimigos e pensem queo que está mais próximo é o mais importante como inimi-go; de fato, quase nunca é. Não digo que não será possívelacontecer uma idéia de revolução, e além disso penso quevai acontecer mais cedo ou mais tarde, quando vejo paísesonde cada vez mais o Estado se destrói por dentro: fala-sede uma divisão do Equador em dois, fala-se de uma divisãoda Bolívia em duas; o Estado está em uma situação muitofrágil. Perguntei a Evo Morales o que ele vai dizer quando

quiserem dividir a Bolívia, e perguntei a Nina Pacari - umalíder indígena do Pachakutik - o que vai decidir se houveruma tentativa de dividir o Equador, e lhe digo: os indíge-nas querem a identidade nacional. É contraditório, porqueesses países não são viáveis como estão, mas sabem quecom uma divisão vai ser ainda pior, ainda mais com as di-visões internas que têm. O Pachakutik é fraco porque LuisMacas - que é um grande político, criador da Universida-de dos Povos Indígenas - tem hoje problemas com a atualdireção da Conaies , e por sua vez esta não se articula bemcom a Cofenaie (Confederação de Nacionalidades Indíge-nas da Amazônia Equatoriana) porque, assim como há umconflito entre Guayaquil e Quito na sociedade burguesa,há também um conflito entre os indígenas da selva e osindígenas andinos. A Coica (Confederação de Organiza-ções Indígenas da Bacia* Amazônica), por exemplo, temuma relação muito tensa com a Conaie, e então no FSM oespaço indígena foi organizado pela Coica, a participaçãoda Conaie foi muito fraca, e do movimento indígena bra-sileiro também. É a realidade, os movimentos estão divi-didos, é preciso lutar pela união, ainda que não seja fácil.E você tem razão quando diz que há uma distinção paraalém da que existe entre ação direta e ação institucional:é a questão da dupla institucionalidade. Se vocês lerem osdois textos maravilhosos de Lenin e Trotski sobre o poderdual na Revolução Russa, verão duas análises diferentes,no período 1905-17: uma dupla institucionalidade entreos sovietes e o governo. E é também o caso dos zapatistascom Los Caracoles e as Juntas de Bom Governo": é uma

Luis Macas foi eleito recentemente presidente da Conaie.Bacia: em espanhol, Cuenca. (N. T.)As Juntas de Bom Governo, sediadas em Los Caracoles, resolvemproblemas em comunidades, implementam as decisões zapatistase intermedeiam as relações entre zapatistas e nào,zapatistas etambém com organismos nacionais e internacionais. (N. T.)

Page 60: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

Boaventura de Sousa Santos - 123122 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

institucionalidade, um município de fato, mas totalmentefora do Estado; ao contrário, em Oaxaca, há municípiosindígenas que são reconhecidos pelo Estado e proclama-dos segundo os usos e costumes indígenas. Um tema fun-damental na democracia de alta intensidade é a questãoda interculturalidade. Por exemplo, ver se as autoridadestradicionais da África - é um debate do qual participo emMoçambique - podem ser consideradas elementos de umademocracia alternativa, porque se trata de uma moderni-dade alternativa que tem como característica a resistênciados países africanos à globalização neoliberal. O tradicio-nal é hoje o moderno africano que não pode ser globaliza-do. As assembléias tradicionais africanas, as autoridadesindígenas, não podem ser globalizadas, têm seu territórioe um conceito forte dele. Há uma criatividade nessa duplainstitucionalidade que vai aparecendo, e ela pode ser de-mocrática mas constituir também a secessão de um país.Muitos países estão à beira de se dividir. Na África isso émuito freqüente: a Nigéria, um país tão rico em petróleo epobre em tudo o mais, está nessa situação.

A terceira pergunta é sobre o impacto político doFSM. O interessante aí é ver que em alguns países e emalgumas circunstâncias é possível uma articulação ino-vadora entre partidos e movimentos. Provavelmente naArgentina não, mas, por exemplo, no Fórum de Mum-bai houve partidos que tiveram um papel importantís-simo na organização dos movimentos sociais e, quandose pensou nesse fórum, a idéia era que havia um perigoporque na Índia tudo é diferente. Queríamos movimen-tos sociais autônomos, totalmente independentes, e naÍndia provavelmente eles foram dominados por partidosque têm frentes de massas. Os partidos tiveram lá umpapel importantíssimo na articulação: você imagina tra-zer ao FSM de Mumbai 33 mil pessoas do movimentolocal de dalits (a casta dos intocáveis) sem uma organiza-

ção por trás? Claro que houve partidos políticos por trás:comunistas, socialistas, gandhianos, que são adeptos deuma luta política legal ou ilegal mas pacífica. E os mo-vimentos que não querem rechaçar a luta armada fica-ram em um fórum social alternativo chamado MumbaiResistente, do outro lado da rodovia. Creio que o FSMagora pode ajudar as articulações; o grande problema doFórum de Caracas é que muita gente está preocupada emnão haver autonomia se Chávez quiser controlar o FSM.Penso que é um problema que deve ser resolvido, masestava mais preocupado em saber se em Marrocos - queé uma ditadura - o rei ia deixar que houvesse um FSMautônomo, e minha suposição certa: o rei de Marrocosdisse não - sobretudo em janeiro - para que não houves-se uma confrontação com o Fórum Econômico Mundialde Davos. Queremos criar uma autonomia, mas é muitodifícil. Na Europa também há partidos em que se con-segue, por exemplo, uma articulação muito interessantecom movimentos sociais. Curiosamente, o partido comu-nista italiano, que decidiu se manter fiel ao comunismoe se chama Refundação Comunista, faz o trabalho maiscriativo com os movimentos sociais na Itália hoje: quan-do se realizou o último congresso do partido, no últimodia não foram os dirigentes partidários que falaram massim os dirigentes de movimentos sociais. Outros parti-dos que se dizem mais próximos dos movimentos vãomais longe ainda. Aqui há um campo que não se esgota,e isso de alguma maneira se articula com o que dizia doszapatistas: há coisas que são em sua origem revolucio-nárias mas têm uma forte dimensão reformista, e sãoainda mais complexas, porque são reformistas quandoquerem - os acordos de San Andrés - e, quando querem,têm dupla institucionalidade - como em Los Caracolese nas Juntas de Bom Governo. Um movimento fortetem hoje essa flexibilidade, que para mim 6 ,o mais in-teressante: não há dogmatismo. Devemos lutar segundo

Page 61: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

124 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social Boaventura de Sousa Santos . 125

as oportunidades e ter os olhos bem abertos para saberonde estão, porque senão veremos passar as oportunida-des. O que hoje é possível amanhã já não é. Carpe diem,aproveite a oportunidade.

A respeito da articulação de movimentos sociais, elapode sim se realizar, e devemos saber quais são as arti-culações em que há mais possibilidade de ocorrer umatransformação política em relação a outras. A reformaagrária é um debate interessantíssimo na América La-tina, porque os sociólogos de esquerda estão divididos:alguns dizem que já não é necessária, que houve mu-danças (com nomes que foram muito influentes, comoZander Navarro), e outros dizem o contrário. O proble-ma é articular lutas; por exemplo, neste momento noBrasil é importante a articulação de coisas elementares:proponho aos estudantes que façam teses sobre água esobre terra, os grandes conflitos que vão emergir, é umabomba-relógio em muitos países, como a Colômbia e oBrasil. Três movimentos lutam pela terra, mas estão to-talmente separados: movimentos camponeses como osSem Terra, movimentos indígenas, e o movimento dosafro-colombianos ou afro-brasileiros dos quilombos. Eaqui a colega tem razão: há territorialidades autônomasonde se criaram realmente possibilidades novas de pro-teção social, há direitos civis e políticos autônomos. Háoutros exemplos interessantes, como as Comunidadesde Paz na Colômbia, quando em meio à violência váriospovoados - o mais famoso é San José de Apartadó, emAntióquia - fazem uma coisa inovadora (talvez vocêstenham tido algo assim em 2001; nós, em Portugal, ti-vemos algo parecido durante a Revolução dos Cravos,em 1974), que são as constituições locais: as pessoas sejuntam e organizam uma constituição local de paz, emque os comerciantes, as próprias pessoas se recusam ater qualquer relação com atores armados, o Exército, a

guerrilha e os paramilitares; as mulheres, por exemplo,são proibidas de fazer sexo com eles, há um boicote to-tal à força armada. Assim se criaram as Comunidadesde Paz, que são muitas na Colômbia e que mantêm,além disso, uma aliança global. Aqui temos uma alter-nativa institucional. O que estou dizendo é que essasalternativas necessitam, para sua sustentabilidade, deum Estado que não seja totalmente repressivo. AlgumasComunidades de Paz foram destruídas porque o Exérci-to entrou e disse que não podiam continuar. É precisover também aí se o direito não é repressivo demais. Poroutro lado, isso não se sustenta sem uma globalizaçãocontra-hegemônica, sem a solidariedade internacional;os dirigentes de San José de Apartadó foram à Europa,visitaram parlamentares, viajaram para os Estados Uni-dos e os convidaram a visitar a cidade, e então vieramsenadores e deputados dos Estados Unidos e Europavisitar as Comunidades de Paz, o que teve um impactoenorme e, durante muito tempo, evitou os massacres.Penso que é possível criar essa dupla institucionalidade.Minha luta contra o desperdício da experiência é exata-mente isto: lutar quando há condições dentro do Estado;trabalhar e lutar sempre fora do Estado; poder criar si-tuações de poder dual ou dupla institucionalidade sem-pre, porque neste momento a privatização do Estadoé, não digo irreversível - nós, sociólogos, somos muitobons para "prever" o passado, nunca o futuro -, mas im-portante. Pode ser que haja uma luta democrática, queo Estado termine com uma implosão total: não sabe-mos o que vai acontecer, mas hoje não há Estado e simEstados distintos em diferentes países com realidadestotalmente distintas. Não posso comparar facilmente oEstado da Argentina com o Estado de Moçambique oumesmo com o da Colômbia. São coisas distintas e é pre-ciso ver as possibilidades de alternativas. O importanteé ver que essa ampliação do presente - para não desper-

Page 62: santos, boaventura de sousa - renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

126 . Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social

diçar experiências - nos permite ser mais inclusivos naspossibilidades de luta e, quanto mais inclusivos somos,mais possibilidades temos de aproveitar as alternativas.Muito obrigado.

Sobre o autor

Boaventura de Sousa Santos nasceu em Coimbra(Portugal), em 1940. É doutor em Sociologia do Direitopela Universidade de Yale, professor catedrático da Fa-culdade de Economia da Universidade de Coimbra e pro-fessor visitante da University of Wisconsin-Madison LawSchool. Dirige o Centro de Documentação 25 de Abril e o

Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.Intelectual sobrevivente da ditadura de Salazar e cons-trutor de um novo país, é um dos idealizadores do FórumSocial Mundial. Alguns títulos publicados no Brasil:

Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade(São Paulo, Cortez, 1995).A critica da razão indolente: contra o desperdício da experiên-cia (São Paulo, Cortez, 2000).

Democratizar a democracia: os caminhos da democracia par-ticipativa (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002).

Conhecimento prudente para uma vida decente: um discursosobre as ciências revisitado (São Paulo, Cortez, 2004).

O Fórum Social Mundial: manual de uso (São Paulo, Cortez,2005).

Trabalhar o mundo: os caminhos do novo internacionalismooperário (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005).

Um discurso sobre as ciências (4. ed., São Paulo, Cortez, 2006).

A gramática do tempo: para uma nova cultura política (SãoPaulo, Cortez, 2006).A universidade no século XXI: para uma reforma democrática eemancipatoria da universidade (2. ed., São Paulo, Cortez, 2006).