sangue azul cap01

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Romance e Fantasia. Olívia Spenser era uma garota comum. Ou ao menos era o que pensava, até conhecer Nicolas e descobrir que ele e o mundo à sua volta não são o que parecem ser. Mas aceitar esse novo universo não será o mais difícil. Acompanhando o verdadeiro despertar de sua vida, um grande perigo rondará sob a forma de uma profecia e de um inimigo cruel. Depois que tudo ganhar um novo sentido, ela terá que treinar habilidades e lutar com todas as suas forças para defender aqueles a quem ama. Fugas, batalhas, descobertas e sacrifícios serão feitos em busca do equilíbrio entre o bem e o mal. E por um mundo em que o verdadeiro amor possa viver em paz.

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Catalogação na Publicação (CIP)

Delmas, Ana Carolina D381 Sangue azul / Ana Carolina Delmas. - Belo Horizonte : Miguilim, 2014. 408 p.

ISBN 978-85-7442-156-8

1. Ficção brasileira I. Título CDD: B869.35 Bibliotecária responsável: Cleide A. Fernandes CRB6/2334

© Editora Miguilim, 2014© Ana Carolina Delmas, 2014

EditorAlexandre Ribeiro Machado

RevisãoJuliana Galvão

Preparação de TextoCleide Fernandes

Capa e projeto gráficoMarília Bruno

Foto de capaPorsche Brousseau

2014

Proibida a reprodução total ou parcial.

Editora MiguilimAv. Mem de Sá, 962 - Santa Efigênia30.260-270 - Belo Horizonte MGtel (31) 3194 5000www.editoramiguilim.com.brwww.facebook.com/editoramiguilim

Em respeito ao meio ambiente, as folhas deste livroforam produzidas com fibras obtidas de árvores deflorestas plantadas, com origem certificada

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Sumário

01 . Perdendo a noção do tempo02 . Tubarões na biblioteca03 . Romance entre esqueletos04 . A desordem das coisas05 . Dever de casa no cárcere06 . Lágrimas de fênix07 . A química entre nós08 . Talulos, Plakats e Garuf09 . Lobo em pele de leopardo10 . Um chá com o destino11 . Eu, Armagedom12 . Até tu, Ragmar?

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13 . Os caminhos antes da guerra14 . No Mausoléu dos Pelicanos15 . Com a gárgula de Asfaleís nas mãos16 . Nada além da verdade sobre o que somos17 . Caminhos impostos pelo destino?18 . Até que a maldade os separe19 . Fechando os olhos para enxergar20 . Vista para o monstro ou para o mar?21 . Astreia22 . Um desvio no caminho para o inferno23 . Encerrando a temporada de fugas24 . O recuo da maré25 . Algo por que vale a pena morrer26 . Um bravo mundo novoEpílogo - O Impossível é verdade

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Olívia acordava todos os dias com uma angústia: a de ser absoluta-mente comum. Não sabia se o fato de não ter amigos devia-se a isso; dividia- se entre a sensação de não existir e a de que sua presença incomodava. As amizades que iniciava nunca se prolongavam. Seria ela banal, ou estranha? Seria possível ser ambos? Um dia, Olívia simplesmente parou de tentar fazer amigos. Fechou-se em si mesma, contando apenas com o carinho de seus pais e de alguns amigos destes. Parou de tentar pertencer ao mundo. Vivia para estudar e para ler. A primeira atividade não era sua grande paixão, mas a segunda... Ler permitia que ela entrasse em mundos que nunca seria capaz de imaginar sozinha; viver aventuras que jamais seriam possíveis para alguém tão comum. Os livros eram portais para fugir do que ela me-nos gostava: de si mesma.

A solidão e a infelicidade faziam com que Olívia não se enxergasse devidamente. Achava-se insignificante, quase feia, e como as únicas opiniões sobre sua aparência eram das poucas pessoas com quem convivia, que a amavam e a viram crescer, julgava-as parciais. O que mais gostava em si mesma era a cor violeta de seus olhos. E ainda assim, não lhes dava o devido valor: talvez por não saber de quem os havia herdado. Acreditava que sua única característica especial era fruto do mero acaso. Um capricho da gené-tica, desperdiçar olhos tão lindos em alguém como ela. Seus cabelos longos e ondulados eram do castanho que julgava ser o mais comum, entre o escu-ro e o médio, longe do preto e do louro, nem cacheados nem lisos. As únicas vezes em que lhe agradavam era quando os olhava ao sol e parecia enxergar neles alguns nuances de cobre. Sua pele lisa e clara era pálida demais. Os lábios não eram pequenos nem grandes, nem rasgados nem carnudos, e não chegavam a ser muito rosados. A jovem julgava tudo em si mesma mediano, comum. Mas Olívia era bonita. Absurdamente bonita. E tímida. Fora cria-

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da em uma família pequena, apenas pai e mãe, sempre muito protegida e resguardada. Os pais superprotetores a impediam de brincar normalmente com outras crianças, e assim, Olívia cresceu sem saber como se aproximar dos outros. Ao verem aquela criança tão bonita, depois aquela jovem tão linda, julgavam por presunção a sua timidez. Nunca lhe deram tempo su-ficiente para provar o contrário, permitindo-lhe mostrar como era amável, gentil e leal. E foi assim que cresceu, com os outros sempre acreditando que não os julgava bons o suficiente para conviver com ela. Mas nada poderia estar mais longe da verdade.

Então Olívia se despedira do colégio, sem sequer ir à própria forma-tura. Não fora convidada para nenhuma das festas dos colegas, e não adian-taria convidar alguém para a sua, caso resolvesse organizar uma. Tinha bus-cado seu certificado na secretaria, com a certeza de que ninguém notaria sua ausência. E assim realmente as coisas aconteceram. Os poucos colegas do colégio que um dia souberam o seu nome, em breve o esqueceriam. Talvez algum dia, em alguma conversa, fosse mencionada como “aquela menina linda e antipática” – uma grande injustiça. Mas sempre há uma reviravolta, ou várias, em qualquer história.

Olívia vivera por muitos anos na Holanda, em Amsterdã. Adorava a cidade e tinha loucura por tulipas, mas a arquitetura remetia a contos de fadas, e a menina sempre se sentira totalmente fora desse contexto. Seu pai, Leopoldo Spenser, era dono de uma livraria na cidade. Tendo crescido rodea-da por livros, não é difícil compreender o fascínio de Olívia por eles. Sua mãe, Sibila Spenser, fora professora de inglês por muitos anos, mas há algum tempo aposentara-se, dividindo-se entre sua casa e atividades filantrópicas e sociais. Os Spenser têm origem romena, apesar de carregarem consigo um nome tão britânico. Ramificações de família que nunca foram muito bem explicadas, a despeito da curiosidade da jovem em relação a seus antepassados.

Um dia, o senhor Spenser resolveu mudar de ares, o que julgou ser bom também para toda a família, especialmente para sua filha. Ele e a espo-sa já haviam morado em Londres, e a maior parte de seus amigos residia lá. Sentiam saudade da Inglaterra, então não havia muito o que pensar. Assim que Olívia terminou o colégio, iniciaram-se os preparativos para a grande mudança. Pela primeira vez, ela sentiu-se animada diante das perspectivas. Esperava que os ares londrinos pudessem lhe fazer bem e, apesar de continu-ar sendo comum, – não esperava que Londres operasse milagres – almejava

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que sua vida pudesse tomar outros rumos, pudesse vir até a ser normal.A casa era belíssima. Simples, de três andares, situada na Wilsham

Street. No primeiro pavimento estavam a sala de estar e a cozinha, com uma porta que saía para um pequeno quintal nos fundos. Apesar do tama-nho reduzido, Olívia tinha certeza de que em breve sua mãe instalaria uma pequena horta com temperos e ervas, e uma pequena estufa para orquídeas e tulipas. O segundo andar tinha as mesmas dimensões do primeiro, e con-tinha três aposentos; uma suíte que seria o quarto de seus pais, um banheiro pequeno e um quarto de hóspedes, que seria também o escritório. E no terceiro andar, pavimento menor que os outros, situava-se uma suíte. Se o banheiro era igual aos demais da casa, o quarto parecia um sonho. As pa-redes foram inteiras forradas de um tecido azul claro brocado, e a cama de casal estava arrumada com uma colcha de veludo azul marinho, com quatro almofadas do mesmo tecido das paredes. Aos pés da cama um pequeno baú de couro bege, com o tampo macio o suficiente para alguém sentar-se confortavelmente. O grande armário era de madeira clara, a mesma da pe-quena penteadeira, da cama e do criado-mudo que ficava do lado esquerdo. Havia ainda uma poltrona em veludo azul marinho, acompanhada de um banquinho para os pés e de um abajur. Em uma das paredes situavam-se duas prateleiras para livros e objetos. Se ela mesma tivesse projetado aquele quarto, não seria tão perfeito. Sentiu-se especial e, pela primeira vez, consi-derou a possibilidade de ser feliz ali.

Seus pais haviam providenciado uma redecoração da casa, projetan-do uma sala simples, branca, com móveis em mogno e tons de castanho, e espaço para alguns objetos que trouxeram da antiga casa. A parte mais acolhedora era o banco embutido na janela, que contava com almofadas em tons de bege e uma manta xadrez. A cozinha era prática, azulejada de branco, simples, contando somente com o estritamente necessário. No quarto de seus pais, as paredes foram forradas até o meio com papel de grossas listas verticais em verde musgo e verde água, contando com o aca-bamento de uma fina ripa de madeira branca, fazendo a divisão com o restante branco. Os armários e a cama eram de mogno escuro, com uma penteadeira da mesma cor. Havia um estreito banco de veludo verde aos pés da cama, que acompanhava a largura da mesma. A colcha bege era destacada por quatro grandes almofadas forradas com o mesmo veludo do banco; tudo havia sido planejado nos mínimos detalhes.

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Os banheiros da casa eram todos iguais: meias paredes em azulejo branco, e o restante também branco, desde as paredes até os mármores e louças. O escritório e quarto de hóspedes seguia o mesmo estilo do quarto do casal; meia parede forrada com papel, desta vez cor de vinho e branco, com acabamento em madeira, e o restante branco. Havia uma cômoda com quatro gavetas e um pequeno espelho veneziano. Uma cama de casal com uma colcha também cor de vinho e duas almofadas de crochê brancas. As duas paredes restantes estavam tomadas por estantes cheias de livros, e no meio delas uma pequena escrivaninha antiga, com vários nichos e gavetas. Destoando dessa atmosfera antiga criada pelo papel de parede e pelos mó-veis escuros, situava-se sobre a escrivaninha um laptop e, em outro canto, uma impressora. Se estes não existissem, Olívia poderia fingir que acabara de mudar não apenas de país, mas também de época.

Os primeiros dias dessa nova vida foram tomados por arrumações, organização dos objetos pessoais e da casa. Uma pequena faxina também foi necessária. As noites mal foram percebidas; Olívia dormira um sono pesado e sem sonhos. Ela decidira trabalhar na nova loja do pai, até ele se estabelecer e ela decidir se faria uma faculdade ou tomaria outro rumo. Os meses iniciais de trabalho na livraria foram duros, mas, aos poucos, tudo foi entrando em ordem. Primeiro foi preciso organizar o estoque, depois a disposição dos títulos nas estantes e prateleiras, e por fim, a jovem acabou se dedicando a atender os fregueses. O contato com as mais diversas pessoas foi uma experiência nova para ela; aos poucos foi relaxando, permitindo-se conviver ao menos com esses estranhos que, provavelmente, nunca voltaria a ver, salvo raras exceções de clientes assíduos e fiéis. Sua vida agora se dividia entre a livraria e as leituras.

No momento, sentia-se mais deslocada do que nunca. Era Natal, mas seus pais não o comemoravam. Estava alheia a pinheiros, presépios, cantores, ceias, missas. A única tradição de que participara fora a troca de presentes: havia ao menos um doce lampejo de normalidade. Enfim, os dias correram rápido até a passagem de ano, e em uma manhã de segunda--feira, a primeira do novo ano, Olívia acordou sobressaltada. Tivera sonhos confusos, desconexos, que misturavam várias obras que ela havia lido. Não que isso fosse novidade, Olívia sonhava muito, em geral com o que lia, mas dessa vez fora muito estranho. Sonhara apenas com as partes ruins, confu-sas e más das histórias; com a hora em que tudo dá errado. Mas acordara

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antes de chegar aos trechos felizes, e ficou angustiada com isso durante toda a semana. Como o movimento na livraria estava pequeno,– melhor dizen-do, nulo – na sexta-feira ela resolveu assistir a uma sessão dupla no cinema. Já estava permeada por sentimentos ruins, por certa tristeza que não sabia explicar; precisava se distrair pra se livrar desse último peso adquirido com aqueles sonhos estranhos. Vestiu roupas quentes, pegou seu casaco e saiu, decidida a caminhar pelas ruas antes de chegar ao cinema...

As ruas estavam cobertas de neve, que em alguns pontos começava a derreter. Estava me sentindo realmente sozinha... E tentar ser animada por meus pais teve o efeito diretamente contrário. Sei que as intenções foram boas, mas apenas me lembraram que só tenho a eles, então a única solução foi sair para espairecer um pouco. E fazer o que normalmente faço quando me sinto assim e nenhum livro consegue me ajudar: conversar comigo mes-ma, como se estivesse escrevendo mentalmente uma carta. Ou apenas deixar o pensamento vagar pelos problemas, buscando conselhos em minha própria consciência. Andei demais, perdi a primeira sessão que pretendia assistir e já estava anoitecendo. Corri para ver ao menos um dos filmes, mesmo sabendo que ao terminar e exibição, recomeçaria a pensar no que me entristecia.

Eu saíra sozinha do cinema naquela noite fria de inverno, uma vez que até mesmo de minha família eu me isolara. Nesses últimos meses não me permitira dividir decepções nem alegrias. Uma súbita tristeza, um vazio como se eu estivesse prestes a perder tudo me invadira desde o fim do verão e com o outono viera uma melancolia profunda – era como se minha vida estivesse se preparando para seu próprio inverno.

Várias vezes desejei pertencer a uma família grande, ter muitas pessoas à minha volta, ter a feliz obrigação de fazer alguma coisa enfadonha por al-guém. Mas a minha não era assim. Era pequena, e todos eram absolutamente autossuficientes, independentes, a não ser pelo sentimento que nos ligava. E o medo de perder o pouco que eu tinha fez com que me fechasse em mim mesma, sem ter coragem para compartilhar medos, anseios ou inseguranças: parecia que eu estava tentando me desligar, deixar de amá-los aos poucos. Como se isso fosse possível... E naquele momento, gostaria de estar perto deles. Estava no meio desse desejo quando senti minha nuca arder, meu coração bater estranho, e virei para vê-lo olhando pra mim.

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Parecia um flerte normal, um interesse passageiro entre desconhe-cidos. Mas ele não desviou o olhar por um segundo sequer, continuava a quase me encarar. Ou melhor, a me avaliar, como se precisasse ter certeza de que estava prestando atenção na pessoa certa. Essa impressão me tirou do sério e minha irritação fez com que imediatamente eu desviasse o rosto e andasse em direção ao metrô.

Eu havia desviado o olhar, mas minha atenção continuava fixa nele. Por que o olhar daquele estranho me afetava tanto? Aqueles olhos cor de mel pareciam tentar penetrar em minha mente. E meu coração me dizia que aqueles olhos haviam compreendido o outono melancólico que se tornara a minha vida: o medo constante, a sensação de estar sendo vigiada, a insa-tisfação com uma vida medíocre e infeliz... Minhas desastrosas habilidades sociais tornaram meu círculo de convivência um grupo seleto: meus pais e alguns de seus amigos. Meus pensamentos voltaram-se novamente para o estranho que me espreitava na porta do cinema. Pensar na palavra “espreitar” me causou arrepios e esfreguei minhas mãos nos braços, encolhendo-me para amenizar o frio, a solidão.

Por que será que ele me analisava daquele jeito? Será que minha tris-teza era assim tão óbvia? Teria sentido pena de uma moça saindo sozinha em uma sexta-feira, enquanto as demais pessoas saíam rindo em grupos, ou felizes em casais? Não, eu já tinha sentimentos demais em mim para cultivar mais um: autopiedade. Eu não faria isso. O fato é que aquela não fora uma troca de olhares normal. Foi intensa demais, dura demais. A imagem daque-les olhos doces naquele rosto tão severo não me saía da cabeça. Ao menos ele me dera algo para pensar, uma nova obsessão. Tinha certeza de que ele já devia estar a quilômetros dali, sem lembrar de minha existência, contudo, eu pensava tanto em seu rosto que não conseguia ver onde eu estava pisando.

E não vira mesmo. Senti meu corpo girar depois de ter se chocado com alguma coisa. Senti que quase perdera o equilíbrio, e de repente meu olhar se encontrou com o dele. Não sei se ficamos presos naquele estado por segundos ou horas, mas foi ele quem interrompeu meu torpor:

- A senhorita está bem?- Sim, sim, estou. É... eu... Obrigada. - Eu disse, sem conseguir arti-

cular as palavras, e tampouco conseguindo desviar o olhar.- Peço desculpas pela minha falta de jeito. Posso acompanhá-la até

o vagão?

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Ele pareceu ter percebido minha hesitação, como se estivesse preven-do que eu iria negar a oferta. Quando mal comecei a pronunciar as palavras “Não, obrigada”:

- Só quero ter certeza de que está tudo bem. Depois, só vou saltar na última estação. Ficarei no vagão e a senhorita provavelmente saltará antes. Nenhum risco, a não ser o de uma companhia desagradável...

Pronto. Eu estava convencida. Jamais conseguira ser rude com um estranho, ainda mais um que já havia sido tão gentil. Além de tudo, apesar de nada ter sido dito - e eu desconfiava de que nunca seria - eu sabia que era ele quem estava me observando na saída do cinema. Mesmo com todos os avisos da consciência e os alarmes do bom senso sinalizando perigo, dei-xei minha curiosidade falar mais alto que meu instinto de autopreservação. Aquiesci com um sorriso, e fomos esperar o próximo trem.

- Então, o que há de desagradável em sua companhia?- Na verdade, não sou muito bom em apontar meus defeitos, nem

minhas qualidades, mas vou me esforçar pra que a senhorita não fique com essa impressão sobre mim.

- Pode me chamar de você. Senhorita soa formal demais para alguém da nossa idade.

Os olhos dele se estreitaram, como se estivessem reagindo ao que eu acabara de dizer.

- Tudo bem. Então, o que você está fazendo sozinha tão tarde, num dia frio como hoje?

Ele esquadrinhava cada centímetro meu. Lembrava um general ana-lisando o inimigo antes da batalha. Aquilo no íntimo me divertiu, me lison-jeou; era como um elogio um jovem tão interessante prestar atenção em al-guém comum como eu, que nunca despertara essa curiosidade em ninguém.

- Antes de começar com um interrogatório, não vai ao menos dizer seu nome? Sou Olívia, muito prazer. - eu disse sorrindo e estendendo a mão.

- Desculpe. Você tem toda razão. Nicolas. - falou estendendo a mão para pegar a minha e completar a apresentação.

Esse foi um momento que eu não gostaria de descrever de uma forma clichê. De fato, eu daria tudo para fugir do clichê. Mas o caso é que não há explicação melhor para o que eu senti. Quando a mão dele tocou a minha, foi como se um choque percorresse todo o meu corpo e eu sentisse que eu podia confiar nele. Que eu poderia vir a amá-lo, se isso já não estivesse acontecendo.

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Senti-me segura, confortável, como há muito tempo eu não me sentia. Fui varrida desses pensamentos pela irritante voz interna que me dizia que eu devia estar com cara de quem sofrera uma lobotomia e que já estava na hora de devolver a mão de Nicolas para ele. Antes que ele me considerasse louca furiosa ou apenas patética, soltei sua mão.

- Bom, respondendo a sua pergunta, eu estava no cinema. E há muitas outras pessoas sozinhas nessa estação e na rua, a essa hora e com esse frio.

- É que você não me parece o tipo de pessoa que deveria estar sozi-nha... quero dizer, você deve ter milhões de amigos, um namorado...

- Não. Na verdade não tenho namorado, nem amigos, ou nada pa-recido. - Baixei os olhos como uma criança que acaba de admitir que fizera alguma bobagem. Aquela resposta havia doído muito, e não sei por que não consegui evitar a sinceridade. Ele havia acabado de pedir desculpas pela pergunta, quando olhei de volta para ele:

- Tudo bem, não é culpa sua. Vamos?O trem acabara de parar na plataforma, e as portas do vagão se abri-

ram. Estava vazio, e nos sentamos nos assentos mais próximos. Evitei olhá-lo novamente o máximo que pude. Olhei para minhas mãos, ajeitei minha bolsa, olhei para frente e para as janelas, onde pude ver seu rosto tenso. Senti culpa por aquele remorso que eu havia infligido, mas ainda esperei alguns instantes para finalmente me virar de novo:

- Sério, está tudo bem. Você previu que poderia haver uma compa-nhia desagradável, só não imaginou que fosse se tornar realidade. - e fingin-do estar brincando, sorri.

- Vamos mudar de assunto? - disse ele, sorrindo também.Foi então que reparei em seu sorriso. Seus olhos doces combinavam

com seu sorriso alegre, luminoso. O restante de suas feições era jovem, po-rém de alguém muito cansado, sofrido, taciturno. Os cabelos eram muito ruivos, sua barba minuciosamente raspada. Sua pele era muito branca, os lá-bios rosados e o corpo era muito forte, porém não parecia musculoso como o de alguém que vive na academia de ginástica. Lindo. E o que alguém assim estaria pensando sobre mim?

- Você gostou do filme?- Adorei, apesar de não ser minha adaptação favorita de Jane Austen.

As minisséries normalmente me agradam mais.- Quais livros de Jane Austen você leu?

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- Devorei todos! Você leu algum?- Li apenas Orgulho e Preconceito em uma aula de literatura inglesa...- Adoro. Mas não é meu favorito. É Persuasão. E acho Abadia de Nor-

thanger menosprezado.- Você é uma fã, então?- Adorei os livros, os filmes, séries, brincadeiras, reescrituras. Com-

prei duas biografias dela que nunca tive coragem de ler. Isso vai parecer um pouco... insano. Gosto tanto das histórias que tenho medo de me decepcio-nar com a vida e a personalidade da autora.

- Eu não diria insano e sim, excêntrico. Mas nada que torne a compa-nhia desagradável. - disse, sorrindo.

- Excêntrico é uma palavra simpática para o que acabei de dizer. Sou ma-níaca por livros, eles me fazem companhia. Adoro me perder em outros mun-dos. Às vezes releio trechos favoritos antes de dormir, pra ver se consigo sonhar com aquilo e viver a história um pouco mais e... Acho melhor parar de contar essas minhas esquisitices ou você definitivamente vai saltar na próxima estação.

- Não mesmo. Não perderia a oportunidade de conversar com você.Fiquei vermelha, e o ambiente frio do vagão não dava a menor chance

de uma desculpa sobre calor... Acabamos rindo. E não sei por que, não senti vergonha de estar ali, naquela situação. Como eu já disse, minhas habilida-des sociais chegam próximo de nulas, mas aquele ambiente estava aconche-gante. Eu não sentia que minha presença estava incomodando, ao contrário. Era confortável ser eu e conversar com Nicolas. Foi ele quem continuou:

- Então, você é uma bibliófila?- Não sei se estou à altura do título, mas tenho paixão por ler. E gosto

de ter os livros também. Espero um dia ter uma biblioteca grande, com todos os títulos que amo, obras raras, obras históricas. E você?

- Também adoro ler. Já estou começando a formar minha biblioteca, aos poucos. Mas gosto mais dos livros de História do que dos romances. E não há nada como um bom suspense policial, Conan Doyle, Allan Poe...

- Confesso que li muito pouco deles. O Cão dos Baskerville e alguns dos Contos de Mistério e Imaginação.

- Acho que você iria adorar ler mais sobre eles. Eu poderia lhe em-prestar alguns.

Quando ia responder que seria ótimo, percebi que estávamos chegan-do à minha estação. Anunciei que iria saltar logo, e então:

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- Desculpe o atrevimento, mas como faço para ver você de novo? Afinal, você precisa ler Allan Poe. - disse com um sorriso largo.

- Pode me ligar nesse número. - Rabisquei rapidamente meu telefone em um papel de propaganda que estava solto em minha bolsa. Tomei o cuidado de não anotar meu nome, apenas o número. Queria saber se ele realmente se lembraria de mim. Com um aperto inexplicável no peito e a sensação de que nunca mais o veria, saí do trem.

Subi vagarosamente as escadas da estação e me deparei com uma rua totalmente deserta. Nunca tinha ido ao cinema tão tarde no inverno e começava a dar razão para a pergunta sobre o que eu estava fazendo sozinha àquela hora na rua... Dizer que senti desconforto ao começar a atravessar as ruas vazias não é suficiente. Minha casa não ficava longe da estação e, durante o dia, era uma linda caminhada de dez minutos, mas naquela noite fiquei literalmente apavorada com a ideia do percurso. Bom, não tinha mais jeito, eu tinha que ir. Não havia táxis ou ônibus passando, então só restavam duas opções: andar ou correr. Achei que ainda era muito cedo e ridículo para correr, mas sem me dar conta, comecei a aumentar o passo gradual-mente, atingindo em segundos a velocidade da marcha atlética.

O medo me fez ouvir diversos sons que minha imaginação já havia transformado em ameaças assustadoras. Sussurros avolumavam-se de tal forma que pareciam um enxame de insetos. Ouvi passos que se asseme-lhavam aos de um grupo de pessoas correndo em minha direção. Escutei algumas risadas. “É apenas sua imaginação”, eu disse para mim mesma. “Cante alguma coisa e toda essa bobagem vai desaparecer”. Mas cantar ape-nas em minha mente não surtiu efeito e o frio, somado aos passos rápidos, não permitiu que eu emitisse qualquer som. Então, quando eu já podia até ver assaltantes e coisas piores chegando perto, alguém encostou em mim. Tentei gritar, mas, novamente, nenhum som foi emitido. Entrei em um surto de adrenalina e então vi que fora Nicolas quem tocara em meu ombro, para me chamar.

Dei um pulo, abraçando-o pelo pescoço, e então consegui verbali-zar um fraco: “Obrigada!”. Entreolhamo-nos e desculpando-me pela reação, soltei os braços, mas ele manteve os dele à minha volta:

- Desculpe ter acompanhado você, mas desde a estação vi que estava tudo muito vazio. Fiquei preocupado. Não quero que você pense que sou

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algum maníaco ou algo parecido. Tentei chamá-la, mas acho que você não me ouviu, então alcancei você e... Lamento se a assustei.

Continuei olhando nos olhos dele e esqueci completamente de que estávamos no meio de uma rua escura e que instantes atrás eu estava à beira de um acesso de pânico. Meu coração, que mal havia começado a desace-lerar, principiou novamente a aumentar o ritmo. E então, como se fosse o movimento mais natural do mundo, nos beijamos. E foi um beijo hiperbóli-co, magnânimo, como se nos beijássemos há milhões de anos, pela enésima vez. Não houve tempo para os avisos “o que eu estou fazendo”, ou “o que ele vai pensar de você” soarem em minha mente. Beijá-lo foi simples como respirar. E, naquele momento, comecei a criar o hábito que só se realizava com Nicolas: perder a noção do tempo.

Paramos de nos beijar e nos olhamos sorrindo. O ar sofrido e cansa-do de seu rosto havia se atenuado e suas feições estavam quase tão suaves quanto seus olhos. Soltei meus braços e ele passou apenas um dos seus sobre meus ombros, protegendo-me do frio.

- Acho que posso pedir para acompanhá-la até em casa, não posso?- Contrariando todos os avisos de “não fale com estranhos” que meus

pais me ensinaram, sim, você pode.- Mas eu não sou mais um estranho, sou?- Sei apenas seu nome, que você me inspira uma confiança inexplicá-

vel, - ele abriu um largo sorriso - e que parece que beijo você há milênios. Fora isso, você é sim, um completo estranho. Nem sei seu sobrenome!

Apontei uma direção e começamos a caminhar para minha casa. Aquele comportamento era tão diferente de tudo o que eu estava acostuma-da a fazer! Eu estava confiando cegamente em um estranho; que parecia a pessoa mais próxima de todas as que eu conhecia. Enquanto avançávamos, todas as ameaças se dissiparam, toda a minha atenção estava em Nicolas e em tudo que eu não deveria estar fazendo. A preocupação deve ter começa-do a transparecer em meu rosto, mas ele continuava sorrindo, aparentemen-te muito satisfeito consigo mesmo.

- Eu também não sei seu sobrenome... Meu nome completo é Nicolas Blanchard Oleander. Sou arqueólogo e trabalho para o governo. Aqui está meu cartão. Agora, dispensadas as formalidades, está menos preocupada?

- Assim que eu confirmar que você está me contando a verdade, isto é, se eu viver até chegar em casa e pesquisar no Google e até amanhã para

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ligar para a prefeitura... É melhor você me perguntar de novo em aproxima-damente nove horas.

Nicolas franziu o cenho severamente ao me ouvir dizer as palavras “se eu viver”.

- Não diga isso nem brincando! Aliás, você parecia bem mais séria no metrô. Se não fosse o tema, teria gostado desse seu lado. - disse, enquanto passava os dedos por uma mecha do meu cabelo. - Deixarei você sã e salva na porta de sua casa, esperarei você entrar...

- Então pode considerar sua missão cumprida. Minha casa é aquela ali. Chegamos.

- Foi uma escolta mais rápida do que eu imaginei. Será que poderia aguentar o frio mais um pouco? - Eu assenti. - Gostaria muito de te ver amanhã. Eu já havia resolvido telefonar, antes de decidir acompanhá-la.

- Antes de resolver me seguir?- Antes de resolver escoltar você. Sério, você estará livre amanhã?- Não. - ele olhou desconfiado - Verdade! Tenho que ir a um evento

do trabalho do meu pai.- Podemos combinar alguma coisa no domingo ou é um dia ruim

pra você? Essa semana estarei ocupado com uma catalogação para o traba-lho, então só estarei livre na próxima sexta. Será que podemos nos encon-trar no domingo?

- Acho que sim. De qualquer forma, isso me dá tempo para pesquisar se suas informações são verdadeiras... No domingo estou livre.

- Ótimo. - falou inclinando-se para me beijar novamente.- Sim, presumindo-se que você seja quem diz! - interrompi, encostan-

do o dedo indicador em seus lábios.- Que eu saiba, já lhe disse meu nome completo. A senhorita é quem

continua a ser apenas “Olívia”!- Desculpe. Olívia Spenser, encantada. - falei enquanto apertava sua mão.- Sim, você é. - e me beijou intensamente, me fazendo perder a noção

do tempo.Ficamos alguns minutos abraçados, até que não aguentei mais o frio.

Eu que normalmente adoro o frio, dessa vez desejei muito uma noite amena de verão.

- Acho que preciso entrar. Vejo você no domingo, certo? Ah! O que vamos fazer?

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- Surpresa. Encontro você aqui às onze horas. Em plena luz do dia, para a senhorita não desconfiar de mim. Boa noite.

- Boa noite.Subi os degraus que acabavam na porta vermelha da entrada de nossa

casa. Olhei mais uma vez pra ele, com medo de que fosse fruto de minha imaginação. Ele permaneceu imóvel, exceto por um discreto aceno com a mão direita, na altura do coração. Girei a chave e entrei, tomando o cui-dado de passar todas as trancas ao fechar novamente a porta. A casa estava em silêncio, por isso subi direto ao meu quarto, no terceiro andar. Com o cômodo ainda escuro, olhei para a rua e Nicolas ainda estava lá. Apenas quando acendi o abajur, escondida atrás das cortinas, pude vê-lo começar a se afastar para ir embora. Não sabia por que eu me sentia daquele jeito, mas exceto quando era criança, jamais me lembrava de ter me sentido tão feliz.

Fui dormir relutante, com medo de acordar no dia seguinte e descobrir que havia apenas sonhado com uma das histórias que gostava tanto de ler.