samizdat · 2008-08-01 · 6 6 samizdat agosto de 2008 inclusão e exclusão nas relações...

92
SAMIZDAT 7 TABACARIA a angústia da modernidade na voz de Álvaro de Campos www.samizdat-pt.blogspot.com agosto 2008 Nesta edição: Florbela Espanca, Yolanda Arroyo, Raymond Carver e mais... ficina

Upload: others

Post on 07-Jul-2020

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

SAMIZDAT

7

TABACARIAa angústia da modernidade

na voz de Álvaro de Campos

www.samizdat-pt.blogspot.com

agosto2008

Nesta edição: Florbela Espanca, Yolanda Arroyo, Raymond Carver e mais...

ficina

Edição, Capa e Diagramação:

Henry Alfred Bugalho

Autores

Alian Moroz

Denis da Cruz

Carlos Alberto Barros

Giselle Natsu Sato

Guilherme Rodrigues

Henry Alfred Bugalho

Joaquim Bispo

José Espírito Santo

Marcia Szajnbok

Maria de Fátima Santos

Pedro Faria

Volmar Camargo Junior

Zulmar Lopes

Autores Convidados

Ana Mello

Textos de:

Álvaro de Campos

Florbela Espanca

Raymond Carver

Yolanda Arroyo Pizarro

Imagem da capa:http://farm2.static.flickr.com/1417/1233822084_c8d64470a5_o.jpg

www.samizdat-pt.blogspot.com

SAMIZDAT 7agosto de 2008

Obra Licenciada pela Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 2.5 Brasil Creative Commons.

Todas as imagens publicadas são de domínio público ou royalty free.

As idéias expressas e a revisão das obras são de inteira res-ponsabilidades de seus autores ou tradutores.

Editorial

Quatro novos autores passam a integrar a equipe da SAMIZDAT a partir desta sétima edição: Guilherme Rodrigues, Joaquim Lopes, Maria de Fátima Santos e Zulmar Lopes.

Além deste reforço, apresentamos também a tradução dum conto da autor porto-riquenha Yolanda Arroyo Pizarro, que, ao lado do entrevistado Santiago Nazarian, participou do Bogotá 39, que selecionou trinta e nove autores, com idade inferior a 39 anos, cujas produções representam os novos horizontes da produção literária latina-americana,

O Brasil, esta ilha de língua portuguesa em meio às nações hispanas, historicamente optou por se isolar e ignorar o que a seus vizinhos. Curiosamente, o boom latino-americano das décadas de 70 e 80 também optou por ignorar a literatura brasileira. Esta é uma situação com a qual não podemos compactuar. A troca literária com estes países tão semelhan-tes cultural e socialmente ao Brasil é uma necessidade. E este é um dos nossos objetivos.

Henry Alfred Bugalho

SumárioPor quE Samizdat? 6

Henry Alfred Bugalho

ENtrEViStaSantiago Nazarian 8

miCroCoNtoSDenis da Cruz 12Guilherme Rodrigues 13Henry Alfred Bugalho 14José Espírito Santo 14Marcia Szajnbok 16Volmar Camargo Junior 16

rEComENdaÇÕES dE LEituraa Língua de Eulália, de marcos Bagno 18

Guilherme Rodrigues

a Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne 19Henry Alfred Bugalho

autorES Em LÍNGua PortuGuESatabacaria 20

Álvaro de Campos

mamã 28Florbela Espanca

a oferta do destino 29Florbela Espanca

PaNorama LitErÁrioamadorize-se 32

Henry Alfred Bugalho

Síndrome de Caim 42Henry Alfred Bugalho

o Palco 46José Espírito Santo

os ratos 48Joaquim Bispo

Luandino 50Maria de Fátima Santos

um desejo 54Denis da Cruz

digressões do dia numa Estranha manhã do Entardecer no outono da Primavera 57

Guilherme Rodrigues

Prelúdio de uma Saudade 58Zulmar Lopes

traduÇÃoas Baleias Cinzas 60

Yolanda Arroyo Pizarro

Pequenas Coisas 66Raymond Carver

autora CoNVidadamicrocontos 68

Ana Mello

tEoria LitErÁriaEnchendo Lingüística na Samizdat 70

Volmar Camargo JuniorCrÔNiCaSSó os Pobres merecem Balas-perdidas 74

Henry Alfred Bugalho

CoNtoSo Cego e o Psicopata 34

Carlos Alberto Barros

o Ladrão de olhos 38Volmar Camargo Junior

Notícia do Fim do mundo 76Volmar Camargo Junior

Contadora de Histórias 78Giselle Sato

PoESiaSoneto da Boa morte 80Carlos Alberto Barros

Sonetos 81Guilherme Rodrigues

Laboratório Póetico iii 82Volmar Camargo Junior

Poesia Concreta 83Volmar Camargo Junior

Capital 83Pedro Faria

Brincando de Cole Porter 84Marcia Szajnbok

Carta de amor 85Marcia Szajnbok

LiNKS dESta EdiÇÃo 86SoBrE oS autorES da Samizdat 89

Agora o leitor da SAMIZDAT também pode colaborar com a elaboração da revista. Envie-nos suas sugestões, críticas e comentários.

Você também pode propor ou enviar textos para as seguintes seções da revista: Rese-nha Literária, Teoria Literária, Autores em Língua Portuguesa, Tradução e Autor Convi-dado.

Escreva-nos para:[email protected]

SEÇÃO DO LEITOR

66 SAMIZDAT agosto de 2008

inclusão e Exclusão

Nas relações humanas, sempre há uma dinâmica de inclusão e exclusão.

O grupo dominante, pela própria natureza restritiva do poder, costuma excluir ou ignorar tudo aquilo que não pertença a seu projeto, ou que esteja contra seus prin-cípios.

Em regimes autoritários, esta exclusão é muito eviden-te, sob forma de perseguição, censura, exílio. Qualquer um que se interponha no cami-nho dos dirigentes é afastado e ostracizado.

As razões disto são muito simples de se compreender: o diferente, o dissidente é perigoso, pois apresenta alternativas, às vezes, muito melhores do que o estabe-lecido. Por isto, é necessário suprirmir, esconder, banir.

A União Soviética não foi muito diferente de de-mais regimes autocráticos. Origina-se como uma forma de governo humanitária, igualitária, mas logo

se converte em uma ditadu-ra como qualquer outra. É a microfísica do poder.

Em reação, aqueles que se acreditavam como livres-pensadores, que não que-riam, ou não conseguiram, fazer parte da máquina administrativa - que esti-pulava como deveria ser a cultura, a informação, a voz do povo -, encontraram na autopublicação clandestina um meio de expressão.

Datilografando, mimeo-grafando, ou simplesmente manuscrevendo, tais autores russos disseminavam suas idéias. E ao leitor era incum-bida a tarefa de continuar esta cadeia, reproduzindo tais obras e também as passando adiante. Este processo foi designado "samizdat", que nada mais significa do que "autopublicado", em oposição às publicações oficiais do regime soviético.

Por que Samizdat?

“Eu mesmo crio, edito, censuro, publico, distribuo e posso ser preso por causa disto”

Vladimir Bukovsky

Henry Alfred [email protected]

Foto: exenplo dum samizdat. Corte-sia do Gulag Museum em Perm-36.

7www.samizdat-pt.blogspot.com

E por que Samizdat?

A indústria cultural - e o mercado literário faz parte dela - também realiza um processo de exclusão, base-ado no que se julga não ter valor mercadológico. Inex-plicavelmente, estabeleceu-se que contos, poemas, autores desconhecidos não podem ser comercializados, que não vale a pena investir neles, pois os gastos seriam maio-res do que o lucro.

A indústria deseja o pro-duto pronto e com consumi-dores. Não basta qualidade, não basta competência; se houver quem compre, mes-mo o lixo possui prioridades na hora de ser absorvido pelo mercado.

E a autopublicação, como em qualquer regime exclu-dente, torna-se a via para produtores culturais atingi-rem o público.

Este é um processo soli-tário e gradativo. O autor precisa conquistar leitor a leitor. Não há grandes apa-ratos midiáticos - como TV,

revistas, jornais - onde ele possa divulgar seu trabalho. O único aspecto que conta é o prazer que a obra causa no leitor.

Enquanto que este é um trabalho difícil, por outro lado, concede ao criador uma liberdade e uma autonomia total: ele é dono de sua pala-vra, é o responsável pelo que diz, o culpado por seus erros, é quem recebe os louros por seus acertos.

E, com a internet, os au-tores possuem acesso direto e imediato a seus leitores. A repercussão do que escreve (quando há) surge em ques-tão de minutos.

Ao serem obrigados a bur-larem a indústria cultural, os autores conquistaram algo que jamais conseguiriam de outro modo, o contato qua-se pessoal com os leitores, o diálogo capaz de tornar a obra melhor, a rede de conta-tos que, se não é tão influen-te quanto a da grande mídia, faz do leitor um colaborador, um co-autor da obra que lê. Não há sucesso, não há gran-

des tiragens que substitua o prazer de ouvir o respal-do de leitores sinceros, que não estão atrás de grandes autores populares, que não perseguem ansiosos os 10 mais vendidos.

Os autores que compõem este projeto não fazem parte de nenhum movimento literário organizado, não são modernistas, pós- modernistas, vanguardistas ou qualquer outra definição que vise rotular e definir a orientação dum grupo. São apenas escritores interessados em trocar experiências e sofisticarem suas escritas. A qualidade deles não é uma orientação de estilo, mas sim a heterogeneidade.

Enfim, “Samizdat” porque a internet é um meio de auto-publicação, mas “Samizdat” porque também é um modo de contornar um processo de exclusão e de atingir o objetivo fundamental da escrita: ser lido por alguém.

SAMIZDAT é uma revista eletrônica mensal, escrita, editada e publicada pelos integrantes da Oficina de Escritores e Teoria Literária. Diariamente são incluídos novos textos de autores consagrados e de jovens escritores amadores, entusiastas e profis-sionais. Contos, crônicas, poemas, resenhas literárias e muito mais.

www.samizdat-pt.blogspot.com

88 SAMIZDAT agosto de 2008

Entrevista

SaNtiaGo NazariaN

Santiago Nazarian é autor dos romances ‘Mastigando Humanos’, ‘Feriado de Mim Mesmo’, ‘A Morte sem Nome’ e ‘Olívio’. Em 2003, recebeu o Prêmio Fundação Conrado Wessel de Literatura, por seu romance de estréia. Em 2007, foi eleito um dos autores jovens mais importantes da América Latina, nas comemorações do Hay Festival em Bogotá, capital mundial do livro. Suas obras foram publicadas também na Europa e América Latina. Mora em São Paulo e, além de escritor, é tradutor, roteirista e colabora com diversos periódicos.

Santiago, você foi um dos quatro autores brasileiros convidados para o Bogotá 39 (encontro literário que reuniu 39 escritores com menos de 39 anos, repre-sentantes da nova lite-ratura latino-americana – denominada de boom-cito). Tendo participado do grupo, você identifica uma preocupação comum entre estes vários autores? Você se sente com uma responsabilidade maior após este encontro? Como ele tem influenciado sua

visão da literatura?

Santiago Nazarian: Para mim, o encontro serviu para identificar a proxi-midade do Brasil com a América Latina de uma maneira mais geral, não apenas literária. Aliás, 2007 foi um ano em que eu estava descobrindo a Amé-rica Latina, viajando pelo continente, Chile, Argentina, Colômbia – antes disso eu conhecia muito melhor a Europa. Mas num encon-tro desses, com escritores de vários países vizinhos, você vê como somos muito mais próximos na ques-tão cultural, no humor, na afetividade e até mesmo na aparência física do que com os europeus. Claro, pode parecer uma constatação óbvia, mas serve também para nos lembrar o quan-to desprezamos os países vizinhos. Brasileiro viaja pra Argentina, Chile no máxi-mo, e acha que no resto dos países são todos cucarachas. Bom, cucarachas somos to-dos nós. É engraçado notar também que o oposto não é verdadeiro, os outros países têm uma relação mais pró-xima entre eles e até mes-mo com o Brasil. Um exem-plo é como havia jornalistas argentinos, uruguaios, cobrindo o Bogotá 39, mas não havia nenhum jorna-lista brasileiro. Os jornais daqui, inclusive, ignoraram totalmente o encontro – a

8 SAMIZDAT julho de 2008

http

://w

ww.p

iede

pagi

na.

com

/num

ero1

2/im

ages

/San

tiag

o-N

azar

ian.jp

g

9www.samizdat-pt.blogspot.com

organização do evento, e nós escritores, oferecemos a pauta. Talvez se fosse um encontro em Paris, fosse interessante para os jornais daqui, mas um encontro de escritores latino-americanos em Bogotá... Não gerou nem notinhas. Então acho que foi isso, o evento ser-viu para eu me identificar como latino-americano, mas não mudou muito minha visão da literatura em si, ou da minha responsabili-dade, continuo encarando a literatura como uma trilha pessoal; tenho meus temas pessoais, minha visão particular e prefiro me ver assim do que encaixado num movimento ou mesmo numa geração.

Qual é, na sua opinião, o maior desafio que o autor brasileiro tem de enfren-tar?

S.N: A falta de leitores. Isso se dá por questões cultu-rais, econômicas e sociais diversas. A falta de leitores é um mal que aflige cada vez mais a literatura mundial, mas o Brasil, como um país subde-senvolvido, sente com especial ênfase. Há também questões par-ticulares que dificultam a difusão da literatura brasileira, como a própria barreira da língua,

já que o português é tão pouco falado no mundo. Até mesmo as traduções se tornam mais difíceis, à medida em que as editoras têm menos leitores de por-tuguês para avaliar as obras, traduzir, etc.

O site da revista piedepá-gina, edição nº 12, inclui o texto Literatura para despertar zumbis, de sua autoria. Nele, há um tre-cho com a seguinte frase: Talvez com a maturidade literária, eu tenha apenas me tornado realmente jovem, tenha aceitado minhas referências, meu universo, sem medo ou barreiras para expressar minha arte.

Você pode falar mais sobre que influências são essas? O que é influência na sua opinião e até que ponto um escritor é in-fluenciado?

S.N: Influência é a manifes-tação e transformação do repertório. Todos nós temos um vasto repertório, que incluiu literatura, música,

moda, etc. Algumas ve-zes, informa-ções que ob-tivemos em determinado momento da vida se manifestam inconscien-temente na nossa arte. Já outras vezes, essas manifesta-

ções são conscientes, nos dão elementos, idéias, para

nossa própria arte. Na li-teratura, como arte elitista, convencionou-se a despre-zar a influência da cultura pop. Mas qualquer um que nasceu dos anos 60 para cá está mergulhado em cul-tura pop – filmes, música, TV – por mais que negue essa influência. Durante algum tempo eu tentei – conscientemente – abordar na minha literatura apenas os elementos da alta-arte, desprezar esse lado pop também, porque achava que ele poderia ralentar minha escrita. Com o tempo fui percebendo que a gran-de conquista poderia ser assumir essas influências e tentar trabalhá-las de uma forma genuinamente literá-ria. Essa tem sido umas das minhas principais preo-cupações, em matéria de estilo de uns quatro anos para cá.

Ainda no texto Literatura para despertar zumbis, encontra-se: Talvez, a cada romance que eu escre-va, bata um sino no meu inconsciente: “como posso fazer para ofender acadê-micos e perder prêmios?” Não sei desde quando – ao menos no Brasil – es-critores se aproximaram mais de professores do que de artistas. Escritores se tornaram aliados das instituições. Quero ser aliado dos transgressores...

Isso soa muito bem, ten-do a arte como o cami-nho possível, dentro da civilização, para darmos um destino aos nossos

9www.samizdat-pt.blogspot.com

“A literatura tem de ir além da verdade oficial, da verdade permitida, a literatura tem de ir além da verdade, oferecer essa possibilidade além. Sua única barreira é a criação humana.”

1010 SAMIZDAT agosto de 2008

impulsos transgressores, mesmo perversos... Ali-ás, Elizabeth Roudinesco está lançando um livro na Flip, falando sobre essa questão da perversão e da perversidade.

Você concorda com essa idéia, de que a criação artística em geral, e a lite-rária em particular, já que trabalha com palavras, é a melhor das hipóteses para dar conta dos impulsos transgressores que temos dentro de nós?

S.N.: Eu acho que a litera-tura, como arte de uma minoria (e para uma mi-noria) pode e deve tratar de questões que não são tratadas em outros luga-res. E mais, por ser uma arte conteudista, não con-ceitual, tem o dever de se aprofundar nas discussões. Então, enquanto no campo jornalístico e no discurso demagógico se diz “criança precisa estar na escola”, no campo literário pode-se ver o outro lado da questão, o quanto o modelo de ensino atual é precário, o quanto a posição do professor é muitas vezes uma posição hipócrita, o quanto o ensino pode ser mais uma forma de exercer poder do que de gerar discussão. Isso é só um exemplo, mas um exemplo real de uma das discussões eu ofereço nos meus livros. Enquanto o discurso demagógico diz: todos os homens são iguais, o discurso literário pode dizer “não, as pessoas têm diferenças e essa sociedade não admite diferenças.” E a

literatura de ficção deve se permitir ser politicamente incorreta, revelando precon-ceitos, perversões, porque não se pode fingir que essas coisas não existem, que não existem no mundo e que não existem na cabeça das pessoas; que uma dona de casa de meia-idade não pode querer torturar uma criança, por exemplo. Se passa na cabeça das pesso-as, se passa na cabeça do escritor, precisa ser coloca-do no papel, porque a arte é a melhor ponte entre a vida subjetiva de cada um, talvez a única ponte entre essas vidas internas. A literatura tem de ir além da verdade oficial, da verdade permi-tida, a literatura tem de ir além da verdade, oferecer essa possibilidade além. Sua única barreira é a criação humana.

Sobre seu romance Mas-tigando Humanos: o que você tem lido, ouvido, visto sobre ele? Você mes-mo diz que ele é diferen-te dos três anteriores. O que o motivou para essa mudança? E por que um jacaré?

SN: O romance foi escrito com essa consciência do meu papel de “jovem escri-tor”. Quero dizer, enquanto jovem, eu me sinto no dever de trazer algo novo, trazer novas referências, novas estéticas. Em “Mastigando Humanos” procurei fazer isso de forma bem radical, todo o tom pop e bem hu-morado do livro vai nesse caminho. A escolha do ja-caré foi uma escolha afetiva

– já que eu sempre gostei e estudei répteis, e também por ser um pouco como eu vejo o adolescente: agressi-vo, com um enorme apetite, mas ainda com certa timi-dez, um pouco desajeitado. O livro trata basicamente da passagem da adolescên-cia para a idade adulta. Em geral, foi bem recebido, as críticas foram melhores do que eu esperava. Foi fina-lista do Portugal Telecom e afins.

Tendo em vista sua par-ticipação em sites, in-cluindo seu blog Amor & Hemácias, como você percebe a influência da internet no mundo literá-rio?

SN: É uma forma de comu-nicação com o leitor, com outros autores, uma forma do escritor mostrar o que está fazendo, o que tem lido, etc. Para mim, serve apenas para isso. Já é o suficiente.

10 SAMIZDAT julho de 2008

11www.samizdat-pt.blogspot.com

Em seu blog, você fala sobre comprar ou baixar um filme para ter e rever quando quiser. O mesmo que acontece às músicas que marcam certos mo-mentos de nossa vida. Quando você usa o ver-bo ter, significa ser uma espécie de co-autor com o artista? O que você pensa da obra artística depois que ela deixa as mãos de seu autor?

SN: Não, quando eu uso o verbo “ter” eu me refiro apenas ao objeto cultural, que pode até ser um objeto virtual, no caso de uma mú-sica ou um filme. Acho que a obra nunca pertence tanto ao público quanto ao artis-ta, e digo isso me colocando nos dois lados da questão. Como público, eu nunca me sinto tão “possuidor” de uma obra de arte, em identificação intensa com ela quanto com minha pró-pria obra. É como eu disse anteriormente, a obra de arte - a literatura - é uma ponte entre a vida subjetiva do artista e a vida do recep-tor, mas essa troca sempre é limitada. Você tem a ponte, pode chegar até lá, dar uma olhada, mas não vai residir naquele castelo, entende? É uma visita turística, limi-tada. Pode parecer pouco, mas não é, porque a cha-ve final estará sempre no autor. E se basta para ele, se responde às perguntas dele, é válido, responderá a perguntas diversas de várias outras pessoas.

Como é a relação com

seus romances enquanto estão no rascunho? Você é verborrágico ou meticu-loso? Planeja o texto todo antes ou deixa que as coi-sas vão acontecendo?

SN: Verborrágico, claro. Meus romances mais recen-tes eu até tive certo planeja-mento, criei os personagens, sabia exatamente onde queria chegar, como iria terminar, mas as frases vão surgindo espontaneamente, é como uma pintura em que vou pincelando por cima. Nada é apagado.

Em seus trabalhos de tra-dução, nota-se que você não os faz apenas por encomenda de editoras, mas também por prazer próprio. Isso reflete uma preocupação em apresen-tar, no Brasil, autores es-trangeiros que você julga de qualidade, mas que são ignorados por nossos edi-tores. Diante disso, qual sua opinião sobre a polí-tica editorial brasileira?

SN: Eu já sugeri algumas coisas para as editoras com que trabalho, já tentei em-placar algumas traduções, mas é muito raro eles acei-tarem as sugestões. Achava que isso era uma limitação que eu tinha, mas recente-mente vi o Paulo Henriques Britto dizendo que a Cia das Letras raramente aceita-va as sugestões dele tam-bém. Então eu faço mais trabalhos por encomenda. Até porque, tenho um gosto um pouco atípico. Grande parte dos autores estran-

geiros que gosto, sei que não seriam comercialmente viáveis no Brasil. É preciso saber separar, encarar com certo olhar mercadológico.

Pode nos adiantar algo sobre o enredo do seu novo romance O Prédio, o Tédio e o Menino Cego? Ele seguirá a linha psi-codélica de Mastigando Humanos?

SN: Sete meninos entrando na adolescência se apai-xonam por uma professo-ra, que é uma infanticida serial. É isso. Um pouco menos psicodélico do que o Mastigando Humanos, por-que não tem toda a alego-ria com animais e tal, mas ainda assim tem certa dose pop, certo humor negro, eu diria que é um romance existencialista bizarro.

Coordenador da entrevista:Carlos Alberto Barros

Perguntas feitas por:Alian MorozCarlos Alberto BarrosHenry Alfred BugalhoMarcia SzajnbokVolmar Camargo JuniorZulmar Lopes

11www.samizdat-pt.blogspot.com

1212 SAMIZDAT agosto de 2008

microcontos

Deco queria tempo para escrever. Naquele dia, se organizou. “Vou redigir pelo menos um conto”, pensou.

Trabalhou o dia todo, apressando cada um de seus afazeres e impondo-se um ritmo sobrenatural.

No fim da tarde, tudo encerrado. Fechou a porta do escritório sem levar embaixo do braço qualquer trabalho

para terminar em casa.Tão logo abriu a porta de seu “doce

lar”, permitiu-se estirar ao sofá, “só pra descansar um pouquinho”.

Exausto, dormiu como uma criança. Acordou no outro dia, de cara inchada e terno amassado.

Para o conto? Não deu tempo.

VelozDenis da Cruz

Por aquelas redondezas, Matin era o mais rápido no gatilho.

Perdeu o título – e a vida - quando alguém o superou.

trânsitoDenis da Cruz

- Barbeiro! – Gritou Cirilo, colocando a cabeça para fora do carro e xingando o motorista que lhe dera uma fechada.

Enquanto energicamente esbravejava, atravessou o cruzamento e atropelou uma velhinha.

tempoDenis da Cruz

13www.samizdat-pt.blogspot.com

meu quartoGuilherme Rodrigues

tensão – o desabrochar de uma rosaGuilherme Rodrigues

Na escuridão de meu quarto; é o momento de reflexão. Enxergo o que não vejo; ouço o que não escuto. Imagino o inima-ginável.

Olho para um lado; há um ser que chora suas mágoas e grita de dor. No canto havia uma criança medrosa e insegura e so-litária mas com vontade de viver. Noutro, há um jovem também medroso e inseguro que chora por

seus fracassos. Dum lado um homem reflete sobre seu insucesso. Doutro lado; há só escuridão e nada mais.

Na escuridão de meu quarto; é o momento de alegria e de tristeza. Sinto a glória de um rei e sua nobreza, sinto a angústia e agonia de um plebeu e sua pobreza.

No meio do quarto há uma cova onde são en-

terradas minhas alegrias, quando há, e jamais são lembradas. O coveiro também está por perto.

Os quadros dependu-rados mostram minhas tristezas que são lembra-das a cada minuto.

No quarto ecoam gritos de dor e vozes angustiadas que me ator-mentam a cada instante. Ouço uma voz fria me chamar...

Era sua primeira vez. Ele suava, tremia e cada vez ficava mais nervoso. Ficou ali sentado, passava milhões de coisas pela sua cabeça. A dúvida ten-cionava seus nervos tor-nando seu corpo enrije-cido como pedra. O suor lavava todo o seu corpo e encharcou as suas roupas. Os olhos arregalados e avermelhados. Ele rangia os dentes, um barulhi-nho de causar arrepios.

A tremedeira aumentava a cada instante. Ele se levantou e começou a andar pela sala de um lado para o outro. An-dou uns quinze minutos e voltou a se sentar no sofá, onde estivera antes. Pensou mais um pouco. Deu uma longa inspirada e expirou vagarosamente e num breve suspiro foi com tudo, freneticamente. Sorriu aliviado; deitou e dormiu.

1414 SAMIZDAT agosto de 2008

Festa SurpresaHenry Alfred Bugalho

FilosofiaJosé Espírito Santo

PalavraJosé Espírito Santo

A palavra extensa, ocupava incompreensivelmente boa parte do conto.

microcontos

-Desconfiava que a mulher o traía. Na cama, sempre encontrava pentelhos e manchas de porra.Resolveu dar o flagrante. Se escondeu no armário; quando ouviu risinhos e gemidos, saltou para fora, atirando. Matou a empregada e um motoboy

qualquer.

A mulher, fidelíssima, estava há sema-nas preparando uma surpresa para sua festa de aniversário. Tardes inteiras na casa da amiga enchendo bexigas.

Fazia amor como quem filosofa. Sócrates e Pitágoras foram doces loucuras. Platão, a experiência pouco platónica. Com Heraclito… viraram o quarto às avessas. Chegou a vez de Kant e mudou de namora-da.

15www.samizdat-pt.blogspot.com

Capuchinho, a verdadeira história

José Espírito Santo

Capuchinho era uma menina prendada que, não obstante, foi indecentemente comida pelo Lobo. Entretanto, o Minis-tério Público vai formalizar a acusa-ção…

atrasoJosé Espírito Santo

A Caravela atrasou-se irremediavelmen-te. Quando, por fim, chegaram à Índia, o moço perguntou se tinham reservado a mesa, se iam querer “pão de alho”, se pretendiam acompanhar a comida com “Tika” ou “Cobra”…

o NomeJosé Espírito Santo

Sempre que lhe perguntavam o nome, respondia com uma longa história. Naquela noite, quando no bar do hotel, a loira lhe perguntou qual era a sua história, respondeu Manuel. Sem hesitar!

1616 SAMIZDAT agosto de 2008

Coisas de mulherMarcia Szajnbok

dez SegundosVolmar Camargo Junior

Mariana volta da festa. Em dez se-gundos vai estar morta. O pai está dormindo com a tv ligada e não ouve o celular. A mãe está no quarto com o namorado e não ouve o celular. O motorista do ônibus solta a fumaça do cigarro pela janela e só freou quando sentiu o solavanco. Mariana já está morta.

microcontos

Ansiedade, apreensão, expectativas. A primeira vez tinha de ser perfeita.- Você não disse que era virgem? Como é que não sangrou?Os corpos ainda juntos, as almas irrecuperavelmente apartadas.O amor que tu me tinhas era vidro e se quebrou...

A festa foi ótima. Todos comeram, beberam e se divertiram muito. Quando saíram os últimos amigos, desligou a musica, apagou as luzes.Era madrugada. Era seu aniversário. E os restos da casa cheia tornavam mais consistente o vazio.Ali mesmo, no chão da sala, chorou, chorou, até dormir cansada, como as crianças.

Sentada no chão, o ouvido colado à porta do banheiro, a menina pergunta: -Mãe, você está aí?Lá de dentro, entre risos, vem a resposta: - Não, não estou aqui... fugi pela janela!O pequeno corpo para sempre dividido: a boca-razão sorri, o olhos-emoção lacrimejam.

IV.

V. VI.

17www.samizdat-pt.blogspot.com

autoridadeVolmar Camargo Junior

O pedinte encontrou uma nota de cinqüenta. O polí-cia viu-o enfiando a nota no bolso.— Passa pra cá!— Não mesmo! Eu achei, é minha.— É, mas quem tem o cassetete sou eu.

a Última do JucaVolmar Camargo Junior

— Ouvi dizer que o Juca foi abduzido.— É mesmo? E quem contou?— Aquela vizinha nova, que veio de Júpiter.

mãe da NoivaVolmar Camargo Junior

Costurou um vestido de noiva para a filha que não teve. Foi internada e pas-sa bem.

EstricninaVolmar Camargo Junior

Era um problema na vizinhança. Cão ou gato que entrasse em seu quintal não voltava. Na primeira sexta-feira depois do Natal, encontraram-no morto dentro de casa. Havia indícios de vene-no até no suor de suas axilas.

1818 SAMIZDAT agosto de 2008

recomendações de Leitura

O livro conta a história de três amigas: Vera, Emília e Sílvia. Estudantes universitárias que vão passar as férias em Atibaia na chácara de Irene, tia de Vera. Lá conhecem Eulá-lia, uma empregada doméstica que mora na chácara. Ela fala um português diferente do das meninas e elas acham engra-çado os “erros” gramaticais cometidos por Eulália. Então, Irene professora de Língua Portuguesa, não acha nada en-graçadas as chacotas das me-ninas e aceita dar umas “aulas”

a elas e mostra que o que a Eulália fala não são “erros”, mas uma variação lingüística do português. Um português diferente.

Neste livro, Marcos Bagno aborda a língua portuguesa com uma outra visão a fim de exterminar os mitos que assombram o ensino da nossa língua. Uma cultura errada que se criou. Ele mostra de uma maneira clara e científica que não há nada de errado (ou engraçado) na linguagem de pessoas menos favorecidas por uma educação deficiente

– e um governo apático – e/ou não tiveram oportunidades de estudar e, sim, variações lingüísticas. Para isso, ele vai buscar respostas e exemplos na história do português, línguas originárias do latim e outras mais, comparando-as e nos mostrando que fenômenos semelhantes acontecem com todas elas. A língua evoluiu e o que foi “errado” um dia é o “certo” de hoje. Revelando-nos que por trás desses falares há grandes conhecimentos e se tornam preciosas poesias nas mãos de nossos compositores e poetas.

a Língua de Eulália,uma Novela Sociolingüística

Guilherme Rodrigues

Livro: A Língua de Eulália, Uma Novela Sociolingüística

Autor: Marcos Bagno

Editora: Contexto

São Paulo, 2005.

19www.samizdat-pt.blogspot.com

Nathaniel Hawthorne é um dos grandes autores canônicos dos EUA, comparável talvez a Machado de Assis no Brasil ou a Eça de Queirós em Portugal.

Sua obra principal, “A Letra Escarlate” foi um dos primei-ros fenômenos editoriais no país e é leitura obrigatória nas escolas. Na verdade, esta acolhida diz muito sobre o espírito norte-americano, até mais do que isto, diz muito sobre a moral protestante que, segundo Max Weber, está no cerne da expansão capitalista.

A protagonista do romance

é Hester Prynne, uma mu-lher condenada a carregar no peito a letra “A”, após ter sido acusada de adultério. Ao se recusar a revelar a identidade de quem a corrompeu, Hester toma para si toda a culpa pelo pecado. A trama é ambientada na Nova Inglaterra em meados do século XVII, auge da caça às bruxas nas cidades regidas pela administração puritana.

Deste adultério, Hester dá a luz à Pearl, uma criança que representa a mácula do peca-do da mãe muito mais do que a própria letra escarlate. Isola-das do convívio social, Hester e Pearl tornam-se cúmplices, companheiras no opróbrio.

A primeira grande revira-volta no enredo ocorre quan-do o médico Roger Chillin-gworth surge diante de Hester. Na verdade, Chillingworth é o marido ultrajado de Hester que decide

se vingar do pai de Pearl, descobrindo quem ele é e re-velando sua identidade para o escárnio público.

São estes os dois princi-pais conflitos do romance: a contrição de Hester Prynne e a ânsia por vingança de Roger Chillingworth, que se volta contra o reverendo Arthur Dimmesdale, o mestre espi-ritual da comunidade, cuja moral é inquestionável.

A prosa de Nathaniel Ha-wthorne é poderosa, intrincada e bem articulada. A linguagem econômica e telegráfica com a qual os EUA nos habitou nas últimas décadas - estilo inagurado por Hemmingway, que trouxe para a literatura a linguagem jornalística - se contrapõe ao estilo prolixo e sofisticado de Hawthorne.

No fundo, “A Letra Escar-late” é uma ousada crítica de Hawthorne à moral puritana, aos extremos que o radicalis-mo religioso pode conduzir. O autor não poupa Hester da necessária expiação pelo adultério, mas ele parece simpatizar com a protagonista, querer defender que, além da racionalidade, o animal ho-mem também é formado por instintos e paixões.

Um dos grandes clássicos da literatura americana tam-bém é uma das grandes ex-posições das nossas fraquezas “demasiado humanas”.

a Letra Escarlate,de Nathaniel Hawthorne

Henry Alfred [email protected]

recomendações de Leitura

2020 SAMIZDAT agosto de 2008

autor em Língua Portuguesa

Álvaro de Campos

taBaCaria

20 SAMIZDAT agosto de 2008

21www.samizdat-pt.blogspot.com

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,

Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,

Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,

Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,

Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,

Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas

Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada

De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo

À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,

E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.

Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

A aprendizagem que me deram,

Desci dela pela janela das traseiras da casa.

Fui até ao campo com grandes propósitos.

Mas lá encontrei só ervas e árvores,

E quando havia gente era igual à outra.

Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?

http

://fa

rm2.

stat

ic.fl

ickr

.com

/141

7/12

3382

2084

_c8d

6447

0a5_

o.jp

g

2222 SAMIZDAT agosto de 2008

Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!

E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!

Gênio? Neste momento

Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,

E a história não marcará, quem sabe?, nem um,

Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.

Não, não creio em mim.

Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!

Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?

Não, nem em mim...

Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo

Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?

Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -

Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,

E quem sabe se realizáveis,

Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?

O mundo é para quem nasce para o conquistar

E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.

Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,

Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.

Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,

Ainda que não more nela;

Serei sempre o que não nasceu para isso;

Serei sempre só o que tinha qualidades;

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,

E ouviu a voz de Deus num poço tapado.

Crer em mim? Não, nem em nada.

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente

O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,

E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.

Escravos cardíacos das estrelas,

Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;

Mas acordamos e ele é opaco,

Levantamo-nos e ele é alheio,

Saímos de casa e ele é a terra inteira,

Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

23www.samizdat-pt.blogspot.com

(Come chocolates, pequena;

Come chocolates!

Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.

Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.

Come, pequena suja, come!

Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!

Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,

Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei

A caligrafia rápida destes versos,

Pórtico partido para o Impossível.

Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,

Nobre ao menos no gesto largo com que atiro

A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,

E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,

Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,

Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,

Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,

Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,

Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,

Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -

Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!

Meu coração é um balde despejado.

Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco

A mim mesmo e não encontro nada.

Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.

Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,

Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,

Vejo os cães que também existem,

E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,

E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,

E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

2424 SAMIZDAT agosto de 2008

Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,

E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses

(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);

Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo

E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube

E o que podia fazer de mim não o fiz.

O dominó que vesti era errado.

Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.

Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,

Já tinha envelhecido.

Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.

Deitei fora a máscara e dormi no vestiário

Como um cão tolerado pela gerência

Por ser inofensivo

E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,

Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,

E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,

Calcando aos pés a consciência de estar existindo,

Como um tapete em que um bêbado tropeça

Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.

Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada

E com o desconforto da alma mal-entendendo.

Ele morrerá e eu morrerei.

Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.

A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.

Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,

E a língua em que foram escritos os versos.

Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.

Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente

Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

25www.samizdat-pt.blogspot.com

Sempre uma coisa defronte da outra,

Sempre uma coisa tão inútil como a outra,

Sempre o impossível tão estúpido como o real,

Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,

Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)

E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.

Semiergo-me enérgico, convencido, humano,

E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los

E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.

Sigo o fumo como uma rota própria,

E gozo, num momento sensitivo e competente,

A libertação de todas as especulações

E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira

E continuo fumando.

Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira

Talvez fosse feliz.)

Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).

Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.

(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)

Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.

Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo

Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

15-1-1928

Fonte: http://www.insite.com.br/art/pessoa/ficcoes/acampos/456.html

2626 SAMIZDAT agosto de 2008

autor em Língua Portuguesa

Fernando Pessoa nasceu em Lisboa em 1888. Após ter vivido boa parte de sua infância na África do Sul, Fernando Pessoa retornou a Portugal em 1905, ingressou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, mas desistiu antes de completar um ano. Com a herança de sua avó, fundou uma tipogra-fia em 1907, que mal chegou a funcionar. No ano seguinte, assumiu um cargo como tradutor comercial, profissão que exerceria por toda sua vida.

Apesar duma fervilhante vida literária desde cedo, o "dia triunfal", como o pró-prio Pessoa o denominava, foi o dia 8 de março de 1914, quando ele criou o heterônimo Alberto Caeiro e, duma só vez escreveu a obra "O Guardador de Rebanhos". Nesta mesma data, surgiram outros dois heterônimos fun-damentais na carreira poé-tica de Pessoa, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, ambos discípulos direto da poesia de Alberto Caeiro.

Álvaro de Campose a criação heteronímica de Fernando Pessoa

http

://og

lobo

.glo

bo.com

/blo

gs/a

rqui

vos_

uplo

ad/2

008/

02/2

16_2

310-

Fern

ando

-Pes

soa.

jpg

Henry Alfred [email protected]

“A celebridade raras vezes acolhe os génios em vida, salvo se a vida é longa, e lhes chega no fim dela. Quase nunca acolhe aqueles gé-nios especiais, em quem o dom da criação se junta ao da novidade.”

27www.samizdat-pt.blogspot.com

"(...) acerquei-me de uma cómoda alta, e tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida e nun-ca poderei ter outro assim."

Apesar da reverência que Pessoa e os heterônimos tinham por Alberto Caeiro, cada um deles desenvolve-ria um estilo diverso. Dos três, Álvaro de Campos é o poeta cujo estilo mais se assemelha ao de Fernando Pessoa, aliás, durante sua vida, Fernan-do Pessoa por várias vezes se apresentava - brincadeira ou não - como Álvaro de Campos para seus conhecidos. Nos manuscritos do autor, há vários textos de autoria duvidosa, ora assina-dos pelo próprio Pessoa, ora como Álvaro de Campos.

O heterônimo é descrito desta maneira numa carta de Pessoa a Adolfo Casais Monteiro:

"Álvaro de Campos nas-ceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1,30 da tarde, diz-me o Ferreira Go-mes; e é verdade, pois, feito

o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glas-gow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. (...) Álvaro de Campos é alto (1,75 in de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pou-co tendente a curvar-se. (...) Cara rapada todos (os heterô-nimos) – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu portu-guês, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao

lado, mo-nóculo. (...) Álvaro de Campos teve uma educa-ção vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escó-cia estudar

engenharia, primeiro mecâ-nica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Orien-te de onde resultou o Opiá-rio. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre."

Álvaro de Campos tam-bém foi o único dos três he-terônimos a passar por fases criativas distintas. Na pri-meira delas, conhecida como "decadentista", e da qual "Opiário" é um exemplo, o poeta expressa um cansaço, um tédio e um anseio por

novidades. A segunda fase, "futurista", caracteriza-se pela influência de Walt Whitman e pelo fascínio, pelo elogio à civilização e ao mundo mo-derno. É desta fase os poemas "Ode Triunfal" e "Ode Ma-rítima". Por fim, na terceira fase, "intimista", Álvaro de Campos retorna ao tema do cansaço, do pessimisto e da inquietação diante do incom-preensível. "Tabacaria" é o melhor exemplo deste último período criativo de Campos.

Fernando Pessoa faleceu em 1935 e, apesar de só ter publicado um único livro e alguns textos em revis-tas durante sua vida, já era reconhecido como o maior expoente da literatura por-tuguesa no século XX. Após sua morte, descobriu-se em seu quarto um baú onde Pessoa guardava seu imenso espólio literário, com mais de 18 mil obras, e que o confi-guraria como um dos mais importantes poetas portugue-ses - ao lado de Camões.

Para saber mais

http://omj.no.sapo.pt/bio2.htm

http://www.colegiosaofrancisco.com.br/alfa/fernando-pessoa/carta-adolfo.php

http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81lvaro_de_Campos

“Dos três ( heterô–nimos), Álvaro de Campos é o poeta cujo estilo mais se assemelha ao de Fernando Pessoa...”

2828 SAMIZDAT agosto de 2008

autor em Língua Portuguesa

Noite negra e tempestu-osa! No céu não luzia uma estrela, o vento soprava com violência, e flocos de neve envolviam, como em alva mortalha, a aldeia adorme-cida. Só ao longe milhares de luzes ardiam no sober-bo castelo. Perfumes, flores, sedas, rendas e cá fora, numa humilde choupana à beira da estrada, fome, miséria e lamentos. Vivia ali uma pobre camponesa com dois filhinhos. Magros, doentes, pediam esmola pelos casais. Agora choravam. Tinham fome e não tinham pão, os míseros pequeninos. No único aposento via-se apenas uma enxerga onde, com a ca-beça entre as mãos, a pobre mãe pensava, talvez, no futu-ro bem negro dos filhinhos.

A contrastar, porém, sin-gularmente com a miséria do casebre, via-se um berço ele-gante e lindo. Envolviam-no rendas e arminhos. Dentro um pequeno gentil dormia, com a linda cabecita emol-durada nos anéis doirados do seu cabelo loiro. Nos lábios pairava-lhe um sorriso meigo de anjo dormente. Abre-se a porta de repente. Uma mu-lher divinalmente formosa, envolta em ondas de rendas e sedas, arrastando altiva a longa cauda, entra na chou-pana. A camponesa ergue-se admirada, enquanto a fidalga adulada, invejada, que tinha a seus pés um mundo de adoradores, não receando amarrotar as renda caras do seu opulento vestido de baile, ajoelhou humilde ante o ber-cito do filho do crime, que tinha de beijar furtivamente;

inclinou a cabeça, e duas lá-grimas brilhantes como gotas de orvalho se desprenderam dos olhos, resvalando-lhe pe-las faces, que foram cair nas do pequenito que, a sorrir no seu sorriso de anjo, balbu-ciou mimoso:

- Mamã!

mamÃFlorbela Espanca

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

kton

25/4

7361

1645

/siz

es/o

/

29www.samizdat-pt.blogspot.com

Um dia, o destino, trôpego velho de cabelos cor da neve, deu-me uns sapatos e disse-me:

- Aqui tens estes sapatos de ferro, calça-os e caminha... Caminha sempre, sem des-canso nem fadiga, vai sempre avante e não te detenhas, não pares nunca!... A estrada da vida tem trechos de céu e paisagens infernais; não te as-suste a escuridão, nem te des-lumbres com a claridade; nem um minuto sequer te detenhas à beira da estrada; deixa florir os malmequeres, deixa cantar os rouxinóis. Quer seja lisa, quer seja alcantilada a imensa estrada, caminha, caminha sempre! Não pares nunca! Um dia, os sapatos hão-de romper-se; deter-te-ás então. É que terás encontrado, enfim, os olhos perturbadores e pro-

fundos, a boca embriagante e fatal que há-de prender-te para todo o sempre!

Isto disse-me um dia o des-tino, trôpego velho de cabelos cor da neve.

Calcei os sapatos e cami-nhei, O luar era profundo; às vezes, cantavam nas matas os rouxinóis... Outras vezes, ao sol ardente do meio-dia de-sabrochavam as rosas, verme-lhas como beijos de sangue; as borboletas traziam nas asas, finas como farrapos de seda, os perfumes delirantes de milhares de corolas! Outras vezes ainda, nem uma estrela no céu, nem um perfume na terra, e eu ouvia a meus pés a voz de algum imenso abismo. Passei pelo reino do sonho, pelo país da esperança e do amor que, ao longe, banhado pelo sol, dá a impressão duma imensa esmeralda, e vi tam-bém as terras tristes da sau-

dade, onde o luar chora noite e dia! Não me detive nem um só instante! O coração ficou-me a pedaços dispersos pelos caminhos que percorri, mas eu caminhei sempre, sem fraquejar um só momento!... Há muito tempo que ando, tenho quase cem anos já, os meus cabelos tomam-se da cor do linho, e o meu frágil corpo inclina-se suavemente para a terra, como uma fraca haste sacudida pela nortada. Começo a sentir-me cansada, os meus passos vão sendo vagarosos na estrada imensa da vida!

E os sapatos inda se não romperam!

Onde estareis vós, ó olhos perturbadores e profundos, ó boca embriagante e fatal que há-de prender-me para todo o sempre?!...

a oFErta do dEStiNo

Florbela Espanca

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

tcat

cars

on/2

2728

4542

8/si

zes/o/

3030 SAMIZDAT agosto de 2008

autor em Língua Portuguesa

Florbela Espanca nasceu no Alentejo, em Vila Viçosa, a 8 de Dezembro de 1894.

Filha ilegítima de uma "criada de servir" falecida muito nova, foi registada como filha de pai incógnito, marca social ignominiosa que haveria de a marcar profundamente, apesar de ter sido educada pelo pai e pela madrasta, Mariana Espanca. Estudou em Évora, onde con-cluiu o curso dos liceus em 1917. Mais tarde vai estudar para Lisboa, frequentando a Faculdade de Direito. Colabo-rou no Notícias de Évora e foi, com Irene Lisboa, percursora do movimento de emancipa-ção da mulher.

Os seus três casamentos falhados, assim como as de-silusões amorosas em geral e a morte do irmão, Apeles Es-panca, a quem era fortemente ligada, num acidente de avião, marcaram profundamente a sua vida e obra.

Em Dezembro de 1930, agravados os problemas de saúde, sobretudo de ordem psicológica, Florbela pôs fim à própria vida a 8 de dezembro, em Matosinhos. O seu suicí-dio foi socialmente manipula-do e, oficialmente, apresenta-da como causa da morte, um «edema pulmonar».

Embora sua notoriedade tenha vindo a partir de sua poesia, Florbela produziu também uma obra em prosa, composta por contos e por um diário que antecedeu sua

morte.Com a sua personalida-

de de uma riqueza interior excepcional, escreveu os seus versos com uma perturbação ardente, revelando um ero-tismo feminino transcendido, pondo a nu a intimidade da

mulher, dando novos rumos à consciência literária nascida de vivências femininas.

fontes:http://www.vidaslusofonas.pt/florbela_espanca.htmhttp://www.mulheres-ps20.ipp.pt/Florb-Espanca.htm

A voz feminina deFLorBELa ESPaNCa

31www.samizdat-pt.blogspot.com

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

tact

us/2

3787

6100

3/si

zes/o/

“Ai as almas dos poetas Não as entende ninguém; São almas de violetas Que são poetas também.”

Florbela Espanca

3232 SAMIZDAT agosto de 2008

Panorama Literário

amadorizE-SEHenry Alfred Bugalho

[email protected]

A grande luta dos preten-sos escritores ou de autores em início de carreira é a profissionalização.

O que isto quer dizer exatamente — se é uma padronização da remunera-ção da hora do escritor, se é a criação de sindicatos (acho que este é o suposto papel da UBE), ou qualquer outro tipo de normatização do ofício — é um mistério que um dia ainda desvendo. No entanto, este movimento me parece ser algo ultrapassado, uma mentalidade típica do século XX.

Curiosamente, enquanto eu pensava em escrever este artigo, acabei me deparando

com um capítulo no livro que estou lendo — Blog! How the newest media revolution is changing politics, business, and culture — que trans-crevia exatamente o que se passava na minha cabeça.

Em suma, durante boa par-te do século XX, as atividades laborais tenderam à profissio-nalização, à regulamentação das práticas e normas de seus ofícios. Isto incluiu a cria-ção de cursos tecnológicos, universitários, formação de sindicatos, salário-mínimo, entre várias outras conquistas do mercado de trabalho.

Enquanto o homem re-nascentista se orgulhava por agregar várias atribuições — matemático, físico, pintor, en-

genheiro, filósofo, médico, etc. — o homem moderno passou a valorizar o “recorte”, a “es-pecialização”. Isto parece ter decorrido graças ao reconhe-cimento de como os saberes podem ser, individualmente, bastante vastos. No campo da Medicina, por exemplo, alguém pode passar a vida inteira estudando que não se obterá pleno conhecimento de todas as especialidades. Portanto, a especialização se tornou o signo da compe-tência. “Restrinjo a amplidão do meu saber”, diz o homem moderno, “mas me torno o melhor naquilo que sei”.

O adjetivo “amador” se tor-nou algo demeritório. O ama-dor estaria a pelo menos um

Durante a Renascença, o Homem era vista como um reflexo perfeito do Universo. Esta relação entre o macro-cósmico e o microcósmico se manifestava na ânsia por desvendar o “O Livro do Mundo”, através das Artes, da Ciência e da Filosofia.O homem pleno era aquele que buscava o conhecimen-to pleno.

http

://w

ww.b

isby

mac

.com

/HO

MBR

E%20

VIT

RU

VIA

NO

-2.jp

g

33www.samizdat-pt.blogspot.com

amadorizE-SE

nível abaixo do “profissional”. Na hora de se contratar um serviço, busca-se um profis-sional; recorra a um amador por sua conta e risco.

Por outro lado, o século XXI tem apresentado um panorama completamente distinto. Com o surgimento da internet, uma legião de amadores tomou conta do ciberespaço, mostrando seus trabalhos e surpreendendo, em muitos casos, pela quali-dade “profissional” deles.

Fotógrafos, ilustradores, músicos, cineastas, escritores, jornalistas, amadores que estavam à margem do mundo profissional, provavelmente exercendo profissões que nada tinham à ver com tais atividades paralelas, deram suas caras a tapa e provaram que competência não residia numa faculdade, num curso técnico ou sob a égide do “profissionalismo”. E mais do que isto, o amador demons-trou ser muito mais criativo e ousado do que muitos profis-sionais.

Por quê?A razão é simples, a meu

ver. Não trabalhamos por prazer. Em nossos dias, tra-balhamos por imposição da sociedade de consumo. Precisamos pagar as contas, alimentarmo-nos, adquirir bens de consumo, imóveis, roupas, e queremos também ostentar — jóias, automóveis, roupas de grife —, quer dizer, todos aqueles ingredientes que lubrificam as engrena-gens do capitalismo. O traba-lho faz parte desta estrutura de produção.

Geralmente nosso momen-to de prazer é durante o ócio, em nosso tempo livre. Não duvido que muita gente, na

hora de escolher uma profis-são, o faça crente de que fará aquilo que lhe dá prazer. E isto até pode ser verdade em alguns casos em boa parte do tempo, mas o simples fato de sermos obrigados a realizar algo (e, no caso duma profis-são, provavelmente por toda a nossa vida) já é um convite à repulsa. Somos forçados a trabalhar, mas não somos forçados a termos um passa-tempo.

Nossos hobbies são ati-vidades que nos dão prazer e que realizamos em nosso tempo livre. Na maioria das vezes, ninguém nos coage a isto. Escolhemos o que nos dá prazer, e o exercemos quan-do temos vontade. A própria palavra “amador” traz consigo este significado: aquele que ama.

O amador está livre das normas que regulamentam uma profissão. Está liberto das amarras da doutrinação e do tecnicismo. Muitas vezes, peca pela ignorância, pelo desconhecimento, mas disto acaba surgindo a originalida-de.

A oposição entre amador e profissional fundada em termos de mera remunera-ção me parece equivocada, sob esta perspectiva. É muito mais coerente pensarmos em “aquele que é obrigado a exercer um ofício” em oposi-ção àquele que “exerce uma atividade para deleite pró-prio”.

Este clamor por “profis-sionalização” nas Letras me parece atingir e abalar o fundamental na escrita e na Arte — não se pode obrigar alguém a criar.

Podemos até ter alguns ca-sos na História, como a famo-

sa imposição a Michelangelo para concluir a Capela Sisti-na, mas, em geral, o artista é aquele que cria independente dos resultados práticos de sua arte. Se fosse o contrá-rio, se a Arte e a Literatura estivessem submetida às leis do comércio, obras que levam anos ou décadas para serem concluídas, como Ulisses de Joyce ou como as invendáveis pinturas de Van Gogh (que hoje valem milhões), seriam inconcebíveis, ou teriam de ser niveladas para cumprir as exigências da produção em série. Um livro por ano, ou a cada seis meses, senão o escritor não paga suas contas.

“Profissionalize-se” é nadar contra a corrente. No mundo contemporâneo, indivíduos muito competentes estão se reunindo e defendendo o ideal de que cultura e tecno-logia não devem ser exclu-dentes, que todos têm direito a elas. Por isto, surgiram projetos como a Wikipédia, sem dúvida a mais comple-ta enciclopédia no mundo, totalmente gratuita, escrita e revisada por pessoas comuns, como eu e você, ou como os conceitos de Open Source, Copyleft, Creative Commons, que permitem aos criadores distribuírem gratuitamente seus trabalhos sem abrirem mão da autoria.

A marcha dos tempos aponta para uma direção oposta. Talvez tenhamos diante de nós novamente a imagem do homem renascen-tista, que desfila por entre os saberes, por entre as práticas, e as exerce livremente, para seu próprio deleite e, quem sabe, para o benefício da coletividade.

Hoje, o lema deveria ser: “amadorize-se”.

3434 SAMIZDAT agosto de 2008

Contos

Carlos Alberto [email protected]

o CEGo E o PSiCoPata

http://www.flickr.com/photos/emdot/92365468/sizes/l/

35www.samizdat-pt.blogspot.com

O filho-da-puta me cegou! Eu não passo de uma porra de um cego agora, sem poder fazer nada! E ele ainda está aqui. Meu Deus, queria que não estivesse, mas o desgra-çado ainda está aqui.

O medo não me deixa sentir dor. Enquanto a ponta da faca perfurava meus olhos e eu quase quebrava meus dentes forçando-os uns con-tra os outros, ainda a sentia. Mas, agora, esqueço dela. Só consigo pensar no desespero de viver como um cego – isso, se eu não morrer aqui.

Há alguns minutos que fui amarrado numa cadeira da cozinha. Ouvi-o dizer que ia ao quarto dar um jeito na minha mulher. Miserável! Se fizer alguma coisa, eu o mato. Juro que mato!

Ouço seus passos densos percorrerem os cômodos da casa. O som vai se afastando, se transformando. O baru-lho do portão dos fundos é inconfundível: o maldito che-gou à casinha de ferramen-tas. Por Cristo, o que ele quer ali? Ah, não... Por favor, não... Não deixe que encontre! Ele não é esperto, não vai olhar em cima do armário... É só um assassino burro, não vai procurar direito. Não deixe ele achar, Deus, por favor, não deixe ele achar.

O armário está se abrindo. Coisas são atiradas no chão, abrem-se gavetas. Ai, não... parece que está arrastando uma cadeira... Não... Eu supli-co, não, não...

Minhas únicas compa-nhias são a escuridão e o desespero, enquanto escuto os passos lentos retornarem. Desejo que o tempo pare,

que aconteça um milagre, que Deus exista. Os passos continuam, estão mais per-to. Tento lembrar como se reza um pai-nosso, penso na minha mãe, na minha espo-sa. Os passos estão aqui na cozinha. Cada centímetro do meu corpo treme, sinto-me gelado, pareço já estar mor-to. Ouço-os parar na minha frente.

– Encontrei um brinquedi-nho bem interessante – escu-to de uma voz cínica.

– Filho-da-puta! O que você vai fazer?

– Nossa! Depois que ficou ceguinho virou macho? Calma aí, que, primeiro, vou conversar com sua querida esposa.

– Pelo amor de Deus, dei-xa ela ir...

– Já, já eu volto.

– Covarde! – grito – Se encostar um dedo nela, você está perdido!

– Pára de escândalo e fica com os ouvidos bem abertos.

Os passos de meu carrasco soam como uma marcha fú-nebre. Cada um deles espeta-me o coração profundamen-te. Ao todo, são 22 estocadas. Que fossem infinitas! Jesus Cristo, quisera eu que fossem infinitas a ter que percebê-las parando e ouvir o que ouço agora. Além de cego, faça-me também surdo. Eu imploro: não me deixe ouvir.

– Não! Não! Por favor, não enfia isso em mim! – é minha esposa gritando, como quem vê algo pior que a face da morte.

Amarrado, impotente, ouvindo tudo, tento disfarçar meu desespero para acalmar

3636 SAMIZDAT agosto de 2008

o dela:

– Vai ficar tudo bem! Eu te amo! Vai ficar tudo bem! – esperneio, ouço, choro, estre-meço.

– Meu amor, pede para ele parar! Não, não faz isso, pára! Aaaahh! Pede para ele parar!

Não consigo mais respon-der. Sinto-me o mais impres-tável dos homens. Inundado pelos gritos de agonia, aban-dono o pouco de esperança que eu ainda carregava e simplesmente peço que o meu fim venha logo.

Minutos passados, os gri-tos de minha esposa tornam-se sussurros mecânicos de alguém em estado de choque. Ouço a cama rangendo, ouço os gemidos. Não agüento mais! O que ele está fazendo? O que o covarde está fazen-do com a minha mulher?

Os sons param. Um breve silêncio tenta prevalecer. Surgem pequenos ruídos, indecifráveis. O que o louco ainda está tramando? Ah, não... não... Este barulho... Meu Deus, não... Por miseri-córdia, não!

Histérica, minha mulher alfineta meus ouvidos com longos e agudos gritos. Será que ninguém mais escuta isso? Onde estão as pragas dos vizinhos curiosos? A polícia?

Os gritos se extinguem, o barulho da morte continua. Escuto algo sendo cortado, faço uma prece, amaldiçôo Deus. Os passos... Os pas-sos, mais carregados do que nunca, estão vindo para cá. A cada um deles, imagino o que me trarão. Minha espo-sa... Esteja bem, meu amor, por favor. Mais um passo:

por que está acontecendo isso com a gente? Outro pas-so: Deus, porque nos abando-nou? E outro: eu não quero morrer. Estão mais próximos, mais fortes. Não chegue aqui! Não chegue aqui! Cristo, estão já na cozinha! Parecem trazer todo o peso do mundo, sinto-os quebrar o piso. Pren-do a respiração. Os passos... Pararam na minha frente.

– Ouviu como sua esposa estava se divertindo? – ouço-os falarem.

Estremeço na cadeira. Ten-to, em vão, me levantar.

– Onde está minha mu-lher, seu débil mental? O que você fez?

– Calma. Ela está bem aqui.

Sinto algo pesado cair sobre meu colo. Um líquido viscoso e quente umedece minha roupa. Não... Por Cris-to, não... O desespero toma conta de mim, agito-me, o que estava em meu colo vai ao chão. Sarcástica, ressurge a voz na minha frente:

– Seja mais carinhoso... Como é que você joga assim, no chão, a cabeça de sua mulher?

– Aaaaahhh!

Por quê? Por que tudo isso? Não entendo. O que fi-zemos de errado? Eu... Minha mulher... A cabeça... Deus do céu! Não suporto mais, entre-go os pontos.

– Por que não me mata logo, seu maníaco? Vamos, me mata! – exijo, em prantos.

Aquele barulho... Ouço, novamente, aquele barulho... Eu tinha certeza. Em cima do

armário... Minha serra elétri-ca portátil... Ele achou minha serra elétrica... Usou lá no quarto e agora vai usar aqui. Sádico maldito! Vai usar em mim!

– Não precisamos ter pressa. Sempre te odiei, seu desgraçado. Faço questão de te matar bem devagar, peda-cinho por pedacinho – fala, enquanto eu escuto o ruído da serra bem próximo ao meu ouvido.

– Mas, nem te conheço, maluco!

– Você não me conhece, mas eu te conheço.

Desde que fui amarra-do nesta cadeira, fiz várias preces. E a única delas que achei que nunca seria atendi-da, acontece agora: o milagre. Ouço sirenes se aproximan-do, várias delas. Percebo os passos em ação. Correm ligeiros, vão até a sala, vol-tam à cozinha. As sirenes mais próximas. Mais passos em direção ao quarto, de lá, saem abruptos, como que duplicados. Parecem estar de novo na sala, abrem a porta, aceleram-se. Ouço-os distan-tes... Mais longe... Não ouço mais.

Junto com as sirenes, sons de carros e freios parecem muito próximos. A cam-painha toca várias vezes. Eu peço socorro. Alguém grita dizendo que é da polícia e que está entrando. Eu peço socorro. Os passos invadem a casa, montes deles. Graças a Deus! Graças a Deus!

– O senhor está bem? – ouço uma voz próxima perguntando.

– O louco matou minha esposa! Ele me cegou! Acabou

37www.samizdat-pt.blogspot.com

de fugir!

– Se acalme, senhor. Já temos uma equipe fazendo busca. Vamos desamarrá-lo.

– Maníaco! Ele ia me cortar todo! Meu Deus, ia me cortar!

– Agora está tudo bem, senhor. Vamos ao hospital cuidar desses ferimentos. Depois faremos o boletim de ocorrência e daremos baixa na denúncia.

– Denúncia?

– Recebemos um telefone-

ma de um de seus visinhos dizendo que o amante de sua esposa entrou na casa e, pouco depois, ouviram-se muitos gritos.

– Amante? Que história é essa?

– Foi o que nos disseram. Ainda não apuramos as in-formações.

– Mas... Minha mulher... Onde está o corpo de minha mulher?

– Não há mais ninguém na casa, senhor. Só o que encontramos foi este filhote

de cachorro com o corpo cortado. Parte dele está no quarto. A outra, bem aqui na sua frente.

– O quê?

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/so

lari

der/

1140

0464

36/siz

es/o

/

3838 SAMIZDAT agosto de 2008

Contos

Volmar Camargo [email protected]

o LadrÃode

oLHoS

Patas-Fortes era um lobo jovem e solitário. Escolheu exilar-se de sua família para não ter de competir com o pai pela liderança da alca-téia. Nos últimos dias de um outono estranhamente curto, assolado por ventos sussur-rantes vindos do Oeste, Patas-Fortes avistou à distância um caribu desgarrado. A caça fugiu dele por muitos dias até o limite de sua exaustão. Levou sua presa a cair em uma ravina, de maneira que nem por um milagre escapa-ria.

Com o respeito devido, Patas-Fortes reverenciou-o. Embora velho e ferido, o ca-ribu mantinha o porte altivo, mantendo a cabeça ereta e o olhar distante, como se igno-rasse a presença de lobo.

— Por que não me olha nos olhos, caribu?

— Porque não o vejo.

Era verdade. No lugar dos olhos do grande cervídeo havia dois buracos escuros.

— Eu serei honrado em extinguir sua dor. Seja meu alimento, porque tenho fome.

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/da

nih

ernan

z/41

2783

628/

size

s/o/

39www.samizdat-pt.blogspot.com

— Será uma grande honra para mim também, predador. Mas não quero ser o causa-dor de sua desgraça.

— Por que diz isso? Não há desgraça maior para um lobo que morrer à míngua.

— Certamente há. Se co-mer de minha carne, cairá na escuridão como eu. E nada pode ser pior que um caça-dor cego.

Patas-Fortes ponderou por um instante.

— O que devo fazer, en-tão?

— É simples. Basta trazer meus olhos de volta.

— Isso é impossível, cari-bu.

— Não, não é. Ao sul, além da tundra há uma grande planície. Depois da planície há a floresta. No meio da floresta há O Olmo, a árvore mais velha do mundo, tão alta que sua copa furou o céu, e cujas raízes jazem no mundo dos mortos. Em um oco do tronco des-sa árvore vive o Corvo. Foi Corvo, o ladrão que roubou meus olhos.

— Não tenho escolha?

— Ou isso, ou a míngua.

Dito isso, o venerável animal bateu com os cascos no gelo, e uma neblina densa e leitosa ergueu-se em toda a ravina. Naquele momento, Patas-Fortes entendeu que aquele não era uma presa qualquer. Era o Avô-Caribu. Ele sabia – como sabiam todos os lobos desde sem-pre – que não se pode negar um pedido do Avô-Caribu. Se contrariado, não haveria caça para os lobos por tantos verões quantas fossem as

estrelas do céu. Sem escolha, o lobo partiu.

O disco do Sol, cada vez que completava sua volta, ocultava-se mais e mais atrás do horizonte. Estava ficando escuro. O mundo começava a vestir seu luto pelo Verão. Patas-Fortes correu como louco para vencer a tundra. Sua fome era tanta que sentia suas entranhas devorarem-no. Quando o azul do céu despediu-se definitivamente, o jovem lupino pisou na planície.

Diante do deserto imenso, o lobo sentiu pela primeira vez a solidão. Para espantá-la, tão alto quanto podia, Patas-Fortes uivou.

Então, uma surpresa. Vin-do de muito além da vasti-dão cinzenta, ouviu a respos-ta ao seu uivo. Era também um lamento, mas, de alguma forma, havia naquele outro uivo uma gota de gratidão. Precisava chegar à floresta. Precisava reaver os olhos do Avô-Caribu. E a partir daque-le instante, precisava também encontrar o dono daquele uivo longínquo.

Em sua enorme agitação, não percebeu que o mundo estava mudando. O céu fica-va cada vez mais baixo, o ar mais pesado e duro. O seu trote rugia mais alto aos seus ouvidos que o vento. Foi por isso que, quando a nevasca tomou a planície, o lobo foi surpreendido. O Inverno ha-via chegado definitivamente. O jovem lobo foi sendo aos poucos vencido pela neve, pelo isolamento e pela fome. Perdeu a consciência.

Algum tempo depois, seu corpo foi invadido por uma

onda de calor aconchegante. De olhos fechados, viu a cla-ridade amarela e quente que o rodeava. Havia um cheiro primaveril de terra, e em sua língua o adocicado sabor de tutano.

— Devo ter morrido.

Uma voz antiga e afetuosa soprou em seus ouvidos.

— Ainda não, lobo. Aqui não é a morte para você.

— Quem é? Onde estou?

— Aqui é para onde venho quando Inverno chega. Oh, sim. Eu sou Urso.

— Por que me trouxe para cá?

— Porque foi você quem me trouxe para cá primeiro. Quando você e seus irmãos aprendiam a ser caçadores, tiraram minha vida.

Patas-Fortes ficou cons-ternado. Em outros tempos, quando ainda vivia com seus pares, aprendeu que um urso só é confiável se está san-grando no chão.

— E ainda assim ajudou-me.

— Sou um Espírito agora. É meu dever ensinar o que sei a quem precisa.

Finalmente, conseguiu ver. Estava em uma toca sob a neve, protegido, aquecido e com vida – embora ainda estivesse faminto. Patas-fortes aprendeu a hibernar. Contu-do, ainda era Inverno. O céu tornou a abrir, derramando sobre o mundo a luz das estrelas. O frio fora da toca era maior do que antes da Nevasca, mas uma agradável constatação fez com que o lobo o ignorasse por comple-to. Havia chegado à floresta.

4040 SAMIZDAT agosto de 2008

Sem ter percebido o quanto caminhou durante a tempestade, Patas-Fortes não viu onde estava quan-do desfaleceu. Rejubilou-se quando avistou diante de si um formidável monte, bran-co pela neve como todo o mundo, mas que tinha seu dorso e seus pés cobertos de pinheiros. Patas-Fortes tinha uma lembrança distan-te daquela massa escura de caules compridos. Não era uma boa recordação, mes-mo sem entender o motivo. Mesmo assim, impulsionado pelo compromisso assumido quando Sol ainda pairava no céu, o lobo lançou-se contra a penumbra. A luz diminuiu de tal maneira que depois de não muitos passos, pôde orientar-se apenas pelo olfato. Assim, quando sen-tia o cheiro das cascas das árvores aproximarem-se o suficiente, desviava delas para seguir, mais e mais adentro na escuridão. E quanto mais denso ficava o negrume, mais parado o ar, mais confuso e labiríntico ficava o ca-minho. Só então, depois de estar completamente perdido, Patas-Fortes deu-se conta de que não sabia como chegar ao Olmo.

Sentiu outra vez o mal-estar do isolamento. Com ele, o peso do ar parado, a escu-ridão quase palpável, a fome que voltou urrando dentro de si. Girou para todos os lados, bateu-se contra os troncos invisíveis dos pinhei-ros, resvalou no chão que ele próprio ajudou a deixar barrento. Como um último recurso para fugir ao deses-pero, ganiu, rosnou, latiu e, por fim, uivou.

E outra vez, foi surpreen-dido. Ao seu lado, outro lobo uivou. Era o mesmo uivo que Patas-Fortes ouviu antes de atravessar a planície.

— Encontrei você! Enfim, encontrei o uivo que me responde.

— Sim. É grande a minha alegria também. Mas sei que não fui eu quem o trouxe até aqui.

— É verdade. Vim para reaver algo que foi roubado.

— Seus olhos.

— Não os meus, mas os de alguém de quem foram roubados. Como sabe?

— Porque é o que todos querem aqui. Todos os que perderam a lembrança da última coisa que viram, vêm para cá. Ou pedem que al-guém o faça.

— Você sabe como posso chegar ao Olmo, então?

— Ainda não percebeu? Você está aos pés dele.

Patas-Fortes entendeu o que acontecia. Estava expe-rimentando o que seria seu destino pela eternidade se não cumprisse a missão. Buscando nas suas recor-dações, o lobo encontrou a que poderia ajudá-lo naquele momento: o cheiro de Avô-Caribu.

O lobo ainda sentia frio, ainda estava amedrontado, ainda estava imerso no es-curo, e acima de tudo estava mortalmente faminto. Mas o compromisso o fez esquecer-se por um instante de si próprio. Pela segunda vez desde que levou um cervídeo velho para uma armadilha, Patas-Fortes esteve próximo da morte. Mas desta vez,

entretanto, era uma morte diferente. Permitiu-se ser levado pelo instinto mais antigo de sua raça, e seu focinho transformou todos os cheiros das coisas obscu-recidas em imagens dentro de sua cabeça. Diante dele, os cheiros fizeram surgir uma árvore tão grande que não se podia ver onde terminava. Era o Olmo.

— Quer encontrar o La-drão? – perguntou o outro. Patas-Fortes, então, viu como ele se parecia. Era dono de uma altivez digna de um alfa, um chefe de alcatéia. Sentiu em sua presença a mesma sensação que perce-beu quando encontrou Urso e, antes dele, Avô-Caribu. Estava diante de um Espírito. Aquele era Pai-Lobo.

— Sim. A hora é agora.

— Siga-me, então.

Pai-Lobo conduziu Patas-Fortes por um caminho se-creto. Circundando parte do tronco gigantesco do Olmo, encontraram um buraco que levava às raízes da árvore. Desceram até onde era pos-sível. Em seguida, quando o buraco terminava, e o cheiro da terra mais antigo que já havia sentido, os dois puse-ram-se a cavar. E cavaram por um tempo incalculável, sempre indo para baixo. Já não era mais frio, mas não era quente. O aroma que o lobo sentia era apenas o seu e de seu companheiro. A ter-ra que cavavam não parecia com nada que conhecesse. Então, surgiu uma luz. Era uma luz desagradável e tris-te. Quando chegaram a luz, encontraram uma caverna nevoenta, onde parecia não haver nada. De cima, vinham

41www.samizdat-pt.blogspot.com

as grossas raízes do Olmo.

— Não olhe muito, filho. Aqui é o mundo dos mortos.

— Mas é assim tão feio e triste.

— Ninguém vê beleza na morte até estar morto. Agora, suba por ali.

Disse isto, indicando uma raiz diferente das outras. Patas-Fortes quis olhar seu ancestral com os olhos da carne. Mas quando se voltou para ele, já não estava mais lá.

Seguiu, pois, a orienta-ção de Pai-Lobo. Ali era a entrada do oco-da-árvore. Assim que entrou sentiu-se observado. Em pouco tempo, acostumou-se ao ambiente. Só então percebeu o quan-to era terrível o lugar onde estava. Por todos os lados, no chão de terra, nas paredes lenhosas do oco-da-árvore, nas raízes protuberantes, preenchendo todos os es-paços havia uma infinidade de olhos. Adiante, em uma raiz retorcida e coberta de olhos, dormia, empoleirado, o Corvo.

O aspecto do lugar causou em Patas-Fortes um grande desconforto. Porém, sem que pudesse conter, seu focinho apontou com segurança na direção de um nó de ma-deira coberto de olhos. Entre eles, um brilhante par de olhos negros. Eram os de Avô-Caribu.

— Lobo! – disse uma voz aguda – Sequer, em tocá-los, pense.

— Você é que não vai me impedir, Ladrão!

— Eu esses olhos roubei. Sobre eles direito tenho. As-

sim sempre foi. Assim sem-pre será.

— Pois sobre estes não tem. Vou levá-los de volta.

— Eu o impedirei.

E voou. Como um raio, o pássaro negro caiu sobre a cabeça de Patas-Fortes. En-quanto batia as asas e ber-rava, Corvo enfiou as garras nas pálpebras do lobo. Enlou-quecido, o lobo rosnava ten-tando esquivar-se, e agitava a cabeça querendo livrar-se das garras do Ladrão. Com violência, Patas-Fortes jogou-se contra as paredes cheias de olhos, e as raízes cheias de olhos. Num descuido, com uma bicada certeira, Corvo arrancou da órbita o olho direito de Patas-Fortes.

A dor era absurda. Pare-ceu-lhe que toda a dor, toda a exaustão, a fome, o frio, o desespero, as mortes de que escapou e as mortes que trouxe para as criaturas que caçou, todo o sofrimento de sua existência foi sentido de uma única vez. Então, rolan-do no chão coberto de olhos, Patas-Fortes percebeu o que estava acontecendo.

À distância, em seu polei-ro, o corvo convulsionava de tanto rir, segurando na garra esquerda seu novo troféu. Em uma atitude desesperada, ocorreu ao lobo uma idéia absurda.

— Corvo! Você venceu. Não consigo suportar ser um caçador com um olho só. Por favor, arranque o outro e beba minha última visão.

— Com prazer. – disse, guloso, o pássaro ladrão.

Assim que Corvo pousou em seu focinho, louco de

desejo pelo outro olho, com um movimento rápido de caçador o lobo abocanhou seu algoz, engolindo-o sem mastigar. E assim, tendo devorado o Ladrão de Olhos, o predador saciou sua fome que durava desde o início do inverno.

Tomou os olhos negros de Avô-Caribu entre os den-tes, com cuidado para não ofendê-los. De repente, um vento vindo da entrada do oco-da-árvore agitou seus pê-los, e como se ele não pesas-se mais que uma folha caída, ergueu-o no ar. Era Chinook, um dos muitos ventos ami-gos de Pai-Lobo. Pelo céu negro do inverno, muito acima da floresta, da vastidão da planície e da tundra, o vento levou Patas-Fortes até a ravina, onde estava o dono dos olhos que ele portava.

Até hoje, o Espírito de um lobo caolho aparece para os jovens caçadores que enfren-tam o frio, a fome e a incer-teza de seus destinos.

4242 SAMIZDAT agosto de 2008

Síndrome de CaimHenry Alfred Bugalho

[email protected]

Contos

Wilhelm Schröder (1881-1947) dedicou grande parte de sua carreira médica ao estudo das patologias psiquiátricas. Foi as-sistente de Otto Loewi, posteriormente passou a investigar e compilar casos para sua obra mais impor-tante, Kompendium der Psychopathologie.A morte trágica, durante sua internação num hospital psiquiátrico, comoveu a comunidade médica.

43www.samizdat-pt.blogspot.com

O psiquiatra bávaro Wilhelm Schröder reali-zou, durante sua carreira, extraordinários avanços na área de psicopatologias. Foi um dos assistentes de Otto Loewi para a sintetização da acetilcolina, viajou por toda a Europa catalogando as patologias psiquiátricas e foi o primeiro a identificar a Síndrome de Caim, ao anali-sar mais de setecentos casos de fratricídio.

As características mais evi-dentes da Síndrome, segundo consta na obra que trouxe notoriedade a Schröder, Kom-pendium der Psychopatholo-gie, são:

a) extrema rivalidade entre irmãos, de ambos os sexos, em busca de aprova-ção duma terceira parte: pai, mãe, grupo social, comunida-de, amigos;

b) o primogênito ou irmão mais velho apresenta distúr-bios comportamentais, geral-mente de natureza agressiva e/ou destrutiva;

c) por ser uma psicopa-tologia de difícil identifica-ção, ainda mais tendo-se em conta a natural inclinação da prole em disputar o afeto dos progenitores, só se constata a gravidade dela após ani-mosidade (violência física ou verbal) entre irmãos ou, nos casos mais extremos, fatricí-dio, sendo o irmão mais novo objeto da agressão;

d) natureza crônica, comu-mente desenvolvida durante anos ou décadas de convi-vência conflituosa.

A repercussão das teorias de Wilhelm Schröder foi imediata e elas foram acolhi-das pelos mais importantes

psiquiatras de sua época. Em seu diário, Schröder relata seu entusiasmo:

Os anos de trabalho árduo compensaram. Finalmente, aqueles senis doutores se curvam diante de mim, até Hermann (Keller) me escreveu congratulando-me. Como deve ter sido difícil para ele engolir seu orgulho!

No entanto, havia três casos específicos que intriga-ram Schröder.

O primeiro era de duas ir-mãs adotivas austríacas: Lotte e Gretchen K.

Gretchen havia sido trazi-da ao lar da família K. pouco antes de atingir a puberdade e o convívio com o novo núcleo familiar foi harmo-nioso. Lotte, dois anos mais velha, recebeu-a sem reservas, o que facilitou a ambientação de Gretchen.

Contudo, Gretchen pa-deceu duma desconhecida enfermidade, obrigando os pais adotivos a dispensar-lhe atenção especial; de irmã, Lotte se transformou em enfermeira.

A doença da filha adoti-va se agravava sem razões aparentes, nenhum médico conseguia determinar suas causas. No entanto, a morte não adveio, como se espera-va, para Gretchen, e sim para Lotte, esfaqueada na garganta enquanto servia almoço à irmã.

O brutal assassinato per-petrado por uma adolescente foi capa de todos os jornais europeus, e durante algum tempo, os índices de adoção decresceram drasticamente.

Quando interrogaram

Gretchen sobe os motivos para ela ter matado aquela considerada como sua me-lhor amiga, Gretchen foi assertiva:

— Ela estava me envene-nando, desde o dia em que cheguei nesta casa.

E realmente, após a morte de Lotte, o estado de saú-de de Gretchen melhorou evidentemente. Mesmo assim, ela foi enviada a uma casa de correção, onde ficou confi-nada até os vinte e um anos, quando então não mais se teve notícias dela.

O segundo caso era ainda mais curioso. Hans F. era o filho do primeiro casamento de Johann F. Quando enviu-vou, Johann, com cinqüenta e cinco anos, se casou no-vamente com uma mulher muito mais nova do que ele, Tatyana, descendente duma linhagem russa, apenas vinte anos de idade.

Tatyana logo engravidou e deu a luz a Louise. Hans F. estava em seus trinta e cinco anos quando do nascimento da irmã. Ele era um homem bem-sucedido, sócio duma exportadora de equipamentos industriais, proprietário de imóveis em Berlim e dum chalé na Basiléia, casado e pai dum menino que ainda não havia completado um ano.

Antes do nascimento de Louise, o filho de Hans era quem ocupava o lugar cen-tral nos cuidados do avô, porém, ao nascer a filha temporã, naturalmente Jo-hann passou a se dedicar aos cuidados de Louise.

Naquele Natal, estando to-dos reunidos à mesa da ceia,

4444 SAMIZDAT agosto de 2008

Hans subiu ao quarto onde a irmãzinha dormia e a sufo-cou com um travesseiro.

A morte do bebê foi con-siderada por causas naturais. Hans revelaria o assassinato apenas alguns anos depois, ao ser diagnosticado porta-dor duma doença terminal.

Sob o peso da verdade, seu pai o deserdou e sua esposa o abandonou.

Hans cometeu suicídio com um tiro na cabeça, uma foto de Louise repousava em seu colo.

O terceiro e mais sur-preendente dos casos, que influenciaria diretamente a carreira do Dr. Schröder (o que ele só descobriria poste-riormente), dizia respeito a um rumor, à boca pequena, de que Gustav Schröder era o favorito para receber o Prêmio Nobel de Fisiologia, graças a suas pesquisas na área cardiovascular.

Wilhelm Schröder era mais velho e razoavelmente conhecido por seus pares, mas a notícia de que um rapazola, recém-saído da Universidade, estivesse sendo cogitado para o mais impor-tante prêmio na área médica, foi demais para o primogê-nito.

Na medida em que o dia do anúncio do prêmio se aproximava, os boatos se tornavam mais freqüentes e consistentes — o nome de Gustav Schröder se fortalecia. Organizaram uma festa para comemorar a indicação.

No diário de Wilhelm, na entrada escrita poucas horas antes da festa, ele escreveu:

É inacreditável! Há uma década que dou meu sangue por meu trabalho e, com muito custo, consegui um pouco de renome. Mas meu irmão, sabe-se lá por que cargas d’água, por um simples trabalho acadêmico, está sendo considerado como um gênio da medicina.

Todos se achegam e me dão tapinhas no ombro, congratulan-do-me por ser irmão dum futuro ganhador do Nobel. Tenho nojo deste povo ignorante.

Naquela noite, brindaram à saúde de Gustav parentes e amigos, a premiação era tomada como certa, todos estavam inebriados.

No fim do jantar, após

todos terem se recolhido, Wilhelm e Gustav sentaram-se no quintal para fumar.

“Eu perguntei a Gustav o que ele pensava de mim”, conta-nos Willhelm Schröder em seu diário, “e ele me res-pondeu que eu era seu irmão mais velho”.

— Digo profissionalmente, Gustav. O que você pensa de mim como médico?

— Você é ótimo, Wi-lhelm... — Gustav refletiu — Tem um potencial que po-deria ser melhor explorado, talvez precise de um pouco mais de ousadia, mas tem tudo para ser reconhecido no futuro.

45www.samizdat-pt.blogspot.com

Numa única sentença, Gustav disse três palavras proibidas no vocabulário de Wilhelm — potencial, ousa-dia e futuro. O irmão mais novo dizia ao mais velho que, em menos tempo, havia obtido mais do que o outro jamais conseguiria.

Wilhelm retirou do casaco o revólver, gesto que ele havia ensaiado uma vintena de vezes durante o jantar e o apontou para Gustav:

— Quem você acha que é para falar deste jeito comigo?

— Você me perguntou o que eu pensava sobre você, meu irmão, apenas respondi com sinceridade.

— Mas você é um rapa-zinho muito do arrogante mesmo! Quando minhas pes-quisas já estavam circulando pelas mãos dos mais impor-tantes médicos da Europa, você era ainda um meninote de calças curtas, tomado por acnes, se masturbando após ver Greta Garbo no cinema. E vem me falar de potencial!

Wilhelm Schröder con-fessou que não tinha inten-ção de apertar o gatilho, no entanto, a poderosa rivali-dade inconsciente foi fator determinante (esta uma das características da Síndrome de Caim).

Wilhelm disparou três vezes contra o irmão.

Jacques Dubois preparou uma edição revisada e atua-lizada do Kompendium der Psychopathologie. Ele havia sido aluno do Dr. Schröder; posteriormente, discípulo e assistente. Mesmo após a prisão do mestre, Dubois continuou investigando as psicopatologias, especialmen-

te aquelas referentes à Sín-drome de Caim.

Assim que foi publicada, Jacques Dubois enviou um exemplar da nova edição para Dr. Schröder no sanató-rio.

A princípio, Wilhelm Schröder se orgulhou pelo trabalho do discípulo, uma revisão que tornou a obra mais completa e precisa, refinou alguns conceitos e desenvolveu estudos apenas esboçados por Schröder, no entanto, no capítulo desti-nado à Síndrome de Caim, Schröder se deparou com a descrição do próprio caso.

Ele já havia refletido sobre o ocorrido, sem nunca com-preender como um psiquia-tra renomado poderia ser vitimado pela patologia que descobriu e cujos sintomas estudou.

Encontraram Wilhelm Schröder morto em sua cela, após receber uma dose letal

de morfina ministrada por Isolde, uma enfermeira com quem ele manteve um sigilo-so relacionamento amoroso naqueles anos de cárcere.

A última inscrição no diário de Dr. Schröder dizia o seguinte:

Sempre me questionei sobre como a posteridade se recordaria da minha passagem pelo mundo dos vivos.

Lutei para conquistar meu espaço, realizei grandes obras e equívocos maiores ainda.

Mas de médico brilhante a caso psiquiátrico, isto jamais!

4646 SAMIZDAT agosto de 2008

Contos

José Espírito [email protected]

o PaLCo

http://www.flickr.com/photos/nicksherman/2477710386/sizes/o/

47www.samizdat-pt.blogspot.com

Ele estava tenso... muito tenso mesmo! De tal modo que seus músculos grandes e possantes, flectidos sob a pele escura, espelhavam com precisão cirúrgica o que lhe ia na alma. Sua mente seguia pronta e solícita a lista de exigências e necessidades e as muitas regras de “tão bem fazer” que cuidadosamente lhe tinham sido transmiti-das por quem aprendera de quem aprendera, de quem aprendera. Falta de espaço para a distracção, essa eterna banida e eterna mal querida daquele que está concentrado e em palco, no acto... Para magnífica peça não menos magníficos executantes, essa era a regra!

Olhou. Mais uns segundos e a cortina abriria deixan-do adiante apenas o palco nu e vazio para preencher. Preparou-se com todo o cuidado. A vista viu o pano vermelho fugir rapidamente para ambos os lados deixan-do à sua frente o horizonte aberto, escancarado, convi-dativo. Os primeiros acor-des chegaram exuberantes e cheios de energia a seus ouvidos e desencadearam de imediato qual acto reflexo, qual mola invisível seu salto em frente e inicio dos passos previamente bem treinados. O fulgor da arte. A magia. A dança!

Entre passos, olhava e via passar como num relâmpa-go as caras e atrás delas as expressões. E isso era o que lhe dava maior prazer! Sentir aquele hipnotismo forte que emanava e que permitia fazer acontecer. Acompanhava-

os com a vista enquanto os roubava por um momento ao seu quotidiano rotineiro medíocre e sempre igual, aquele “sempre o mesmo fazer” das suas tarefas de su-cesso. Sentia-se rei do mundo e das passadas. “Black Power”. Eterna exuberância negra! Talento, perfeição, capacidade elevada a sua máxima po-tência. Tudo perfeito! Então... olhou melhor, focou...

Olhou para si mesmo e para a dura realidade do presente! Esqueceu por momentos o futuro que de impossível era incerto! Este palco em que actuava era do tamanho do mundo e muito maior que outro qualquer palco e outro mundo! Ao contrário da do seu sonho, a sua coreografia actual era parada, estática e silenciosa. E ninguém lhe ligava. Nela ele aparecia mostrando os ossos salientes à flor da pele num corpo magro mal nutri-do, desprezado, escanzelado. Era seu único equipamento o pedaço de pano roto, todo ele feito de improviso e não de técnica, atenção ou qual-quer cuidado. À sua frente, o prato mal disfarçado, vazio chamava insistentemente pela comida que de lá longe não prometia sequer conseguir chegar.

Olhou para si mesmo com seus olhos de criança mais uma vez. Depois fechou os olhos deixando gradualmente a escuridão entrar e chutou para longe aquele “ele” que este ele nunca teria a oportu-nidade de ser.

4848 SAMIZDAT agosto de 2008

Contos

Joaquim Bispo

oS ratoShttp://www.flickr.com/photos/matthieu-aubry/440634859/sizes/o/

49www.samizdat-pt.blogspot.com

Pela Páscoa, encontrei um amigo da tropa, que já não via há uns quarenta anos. Estava entusiasmado com uma compra que tinha feito há pouco tempo; uma casa no campo que, segundo disse, era um elixir miraculoso para a pressão da vida na cidade. Satisfeito com o meu interesse, acabou por insis-tir em me emprestar a casa, para lá ir passar uns dias. Eu aceitei com agrado e muita curiosidade. Mas o meu ami-go avisou-me:

– Olha que é capaz de haver lá ratos! Da última vez que lá estive, havia.

Na manhã do sábado seguinte, de espírito fresco e roupas leves, rumei às Bei-ras, com a minha mulher. Mas antes preveni-me. Fui à drogaria e comprei uma embalagem de pastilhas de raticida.

Efectivamente, o sítio é lindíssimo: muito arborizado, junto ao espelho de água de uma barragem, com a som-bra azulada de uma serra, em fundo. Feito de encomen-da para um fim-de-semana romântico. E a vivenda tem o encanto das casas tradicio-nais: antiga, toda em granito, com lareira, e quartos forra-dos a madeira.

Mas, realmente, está in-festada de ratos. Na cozinha, havia restos de embalagens que o meu amigo lá teria deixado – pacotes de sumos, garrafas plásticas de refri-gerantes, caixas de flocos – tudo misturado com xixi e caganitas. O aspecto da cozinha era desolador.

Foi uma tarde de sábado pouco romântica. Limpar toda aquela porcaria, provo-cou-nos sentimentos per-versos de vingança. À noite, antes de adormecer, distribuí uma meia dúzia de pasti-lhas, pelos cantos da cozinha, sentindo o rancor prestes a ser saciado. De noite, uma vez que acordei, apercebi-me, nitidamente, de um restolhar na cozinha. Virei-me para o outro lado, com um sorriso consolado.

Ao romper do dia, acordei sobressaltado. Ouviam-se guinchos, correrias, ruídos vários, vindos do forro da casa. Era um chinfrim enor-me. Como se um bando de gatos perseguisse os ratos, numa luta feroz e prolon-gada. Não se assemelhava nada à débil agonia de dois ou três ratos envenenados. Parecia até que o reboliço aumentava.

A minha curiosidade não me deixou continuar na cama. Como havia um alçapão no tecto do quarto, fui buscar um escadote e, um pouco receoso, esprei-tei. O que vi não pode ser completamente transmitido por palavras. Uma dezena de ratos copulava, frenetica-mente, num desespero aluci-nado. Corriam. Rebolavam. Saltavam. Trocavam continu-amente de parceiro. Forma-vam-se mesmo, molhos de três ou quatro, em tentativas de cópulas improváveis. No soalho, jaziam já uns quatro, mortos por exaustão.

Fiquei um minuto atónito,

a olhar para aquele cenário, sem compreender o que esta-va a acontecer. A perguntar-me, porque é que os ratos se estavam a comportar da-quela maneira. A explicação atingiu-me então como um soco. Fiquei branco. Devo ter feito um esgar de horror, ao tomar consciência da incrí-vel estupidez da minha troca de embalagens. Do alto do escadote, olhei para a mesa-de-cabeceira. Lá estava uma pastilha azul de raticida, que eu estive quase a tomar, se não fosse a enxaqueca provi-dencial da minha mulher!

5050 SAMIZDAT agosto de 2008

Contos

Maria de Fátima Santos

LuaNdiNohttp://www.flickr.com/photos/dhammza/378215127/sizes/o/

51www.samizdat-pt.blogspot.com

Luandino apalpava-lhe as mamas com dedos lassos. Dedos que lhe escorregavam nas axilas, frouxos. O côn-cavo da mão recusava-lhe os bicos. Afagava-a em medro-sos receios. Parecia-lhe a ela que ele afagava a testa suada de um velho.

E era sexo o que ela que-ria. Sem denguices e nem rodeios.

Encostou-se nele. Sentiu-o intenso sobre o vestido fino. Segurou-lhe as nádegas. Redondas, tensas. Roçou-se. Cabrita-montesa, pendurou-se-lhe no pescoço. Ganhou-lhe vantagem. Quebrou-lhe a anca magra com as pernas, nuas de saia. Desceu-se lenta. Desfez-lhe o cinto. O botão. O fecho: de cima para baixo, que é o jeito.

Mirou-o: quedo, surpreso decerto.

Virgem arrependida, ela beijou-lhe cada mamilo descoberto dos botões que abriu um a um, em pressas. Nem precisou mover-se: ele era alto e ela nem se cresceu mais que o metro e cinquen-ta e quatro. Nem mais um centímetro que o andar de salto alto, até muitos anos passados sobre essa noite.

Ele depressa se desen-tendeu com os receios. Arrematou-os. Limpou-se de surpresas. Juntou-se a ela na luta contra eles. Beijou-lhe a boca, sôfrego. Atabalhoado, a língua que lhe rebuscaria interiores, nem eles ainda o sabiam, dançou-lha por cada mamilo em redondos mo-lhados. Ainda não cuspidos, isso a noite o ditaria, mais o desassossego da lua e da

partida.

Ele debruçado nela. Os receios perdidos, pensava ela, muito branca e ruiva mesmo sem a luz da lua que ainda nasceria.

A dois passos, a sala de jantar. A luz de um cande-eiro recortou em negro o cachimbo e o fumo. E a voz que afagou o escuro, nem era um chamar, era um pedido.

- Júlia.

Era o pai Antunes cha-mando para jantar.

Ela nem respondia. Ape-nas aparecia sentada na mesa comprida da sala. Era assim há anos.

Não mais amanhã. E nem depois. Quem sabe, nunca mais.

Desprendeu-se do corpo dele que levara susto. Ela riu-se.

Luandino enterrando as mãos nos bolsos do casaco verde, roto nas mangas sobre as pulseiras e o relógio de pulso. Tudo em doirados como o anel que trazia no dedo mindinho de cada mão.

Júlia apegou-se a ele. Adengou-se ainda um peda-cinho. Quente animal em cio, passou-lhe a mão entre as vi-rilhas a sentir-lhe o membro. Apertou de leve num misto de raiva e em afago. Num desespero, pensaria, se fosse, ao momento, o caso. Se fosse mais tarde. Um dia.

Na mesa coberta de linho bordado, os copos gorgo-lejavam ao cair dos sumos, dos vinhos, da água. Júlia comia o peito de galinha

5252 SAMIZDAT agosto de 2008

com quiabos. Calados, ela e o pai. Silêncio só quebrado ao café. Era o hábito desde que lhe morrera a mulher fazia dezoito anos. Tantos quantos a distância do dia em que a pariu a ela, Júlia. Silêncio durante as refeições.

Só a voz de Joaquina.

- Quer que sirva a sobre-mesa, sinhá Maria?

Sempre se dirigindo a ela. Desde pequenina, ela era a mulher da casa. Sempre a chamava de sinhá Maria. Julinha, apenas quando se sentava na bordinha da cama contando estórias velhas: “do tempo em que a mãezinha era viva, antes da menina nascer”. Ou as coisas, que Joaquina dizia serem “para o paizinho não sofrer”.

- Não anda com Luandino, Júlinha. Ele não presta. Seu pai não gosta. Vê, ele nem é homem de lhe merecer.

Júlia comia a talhada de manga, silenciosa. O sabor do corpo de Luandino mis-turava-se ao sabor da fruta. Sorriu-se. O tecido da blusa roçava-lhe, desusado, cada mama.

Bebeu, em goles lentos, a bebida gostosa de pura cafeína. Ouviu o pai falar da fazenda. Lembra-se bem: nes-sa noite, falou-lhe nas vacas que aleitavam.

-Seca-lhes o leite ou este enfraquece. Já morreu um bezerro.

E ela, pensando em ma-mas, sorriu para dentro da chávena onde aparecia, ténue, a cara de uma chinesa: por-celanas que a mãe levara de enxoval.

Beijou-o de jeito calmo e terno que nisso nem preci-sava fazer esforço: ela gos-tava dele. Muito ela gostava daquele pai viúvo.

E foi dançando pelo cor-redor. Abriu de par em par a porta da cozinha e saiu para a lua que alumiava, branca e amarela. A lua que fazia, quase em oiro, a terra verme-lha das traseiras. Levou pela mão a bicicleta até chegar à estrada: uma língua de terra, batida a maço, mal coberta de uma fita que já fora preta. Pedalou depressa. Cruzou-se com o jipe do tenente Ma-tias. Ía para a sanzala. Era o seu costume. Ela sabia. Acenou-lhe e riu sem muito bem perceber ao que achou piada. Sincopou, no para cima e para baixo, em redon-do, o pisar do pedal.

Lembra-se que ia serena, no lusco-fusco, que a lua se fizera alta e as árvores aden-savam copas sobre a estrada.

Passou a casa do Chefe de Posto e contornou à esquer-da. Abriu o portão de ferro: uma cancela ferrugenta. Encostou a bicicleta no muro baixo. Chamou sob a janela entreaberta.

- Luandino…

A lua iluminava o quarto sem mais móveis do que a esteira desdobrada no chão de cimento. Isso, e um pano de cores a servir de nada aos corpos deles, nus, ferventes, e ao quente da noite com lua.

Vagueavam chamares, ao longe, que ela não ouviu:

- Júlia.

Era o pai Antunes. Como ela adorava aquele pai viúvo.

Na vinda, trazia-se reno-vada. Doíam-lhe, ardendo, os bicos dos seios sob a blusa que trouxe desfraldada. A bi-cicleta enternecia-se aos seus pedalares. Era o finzinho da madrugada.

Na cozinha, havia pão com doce de goiaba e um copo de leite muito branco e ainda morno. Joaquina quem deixara. Sorriu-se um sorri-so que lhe enviou a ela que logo, logo ia acordar.

Dançou-se seminua na cozinha. Partia dentro em pouco. Nesse dia. Ía no jipe do tenente até ao aeroporto.

Nunca mais viu Luandino.

Num Maio, tão longín-quo que nessa noite nenhum deles sabe que existia, depa-rou-o.

Era Lisboa. Rossio. Ao fim da tarde.

Tanto ano passado sobre a noite de lua. Tanto estro-piado e tanto morrido. Tanto passado e tanto presente se fizera nela desde aquela noite.

Ele encostado ao ferro da boca do metro. O Luandino. Preto retinto. A carapinha encanecida nas fontes. O Luandino dependurando doi-rados sob as mangas coçadas de um casaco.

Sob o vestido justo que trazia, os bicos dos seios adensaram-lhe recordados. Ela estranhou-se.

O homem reagiu ao seu estar ali parada, olhando-o: pediu-lhe dinheiro para o almoço. Estendeu-lhe a mão

53www.samizdat-pt.blogspot.com

de dedos longos.

Os dedos dele: iguais, pal-pando, remexendo, exploran-do, na noite de lua, naquela noite grande.

E ela com a nota esqueci-da, perscrutava-lhe um vis-lumbre sob as lentes negras, de contrabando.

Ele agradeceu:

- Deus a guarde, senhora. Deus é grande. E dizem que Alá, também.

E riu um rir de um lugar sem onde.

Júlia seguiu pelo passeio. Desejou perder-se nas gentes.

Perder-se do seu eu cho-rado.

http://www.flickr.com/photos/alexscarcella/1229526765/sizes/o/

5454 SAMIZDAT agosto de 2008

Contos

Denis da Cruz

um dESEJoht

tp://

ww

w.fl

ickr

.com

/pho

tos/

usar

mym

utt/24

4795

3938

/siz

es/o

/

55www.samizdat-pt.blogspot.com

- Até a primeira, ou até a última gota? – perguntou Akan, parado no jardim de rosas amarelas. Sua armadu-ra prateada refletia o ouro do sol e das flores, fundindo os tons num alo brilhante.

- Até a última, meu ir-mão – respondeu-lhe Akin, olhando mais ao longe, onde despontava um botão de rosa vermelha, como lágrima de sangue em meio a um cantei-ro de trigo a ser colhido.

Afastaram-se um do outro. O vento acariciava as rosas e estas retribuíam o carinho nas pernas dos guerreiros que eram irmãos de sangue duas vezes, de ventre e de voto.

- Com ou sem a Arte? – perguntou Akan enquanto sua espada entoava a primei-ra nota, chiando ao sair da bainha.

- Não se pode usar a Arte contra um Irmão – sorriu o outro.

- Há muitas coisas que não podemos fazer contra um Irmão e, apesar disto, lutaremos até a morte.

Akin avançou. Sua espada cumprimentou em batalha a arma do germano. Compa-nheiros, amigos, fiéis devotos da Ordem de Sáah, agora empunhado armas como inimigos, a fim de resgatar o Botão Vermelho do Jardim de Nandra.

Atravessaram quase todo o continente, cada um por seu caminho. Akan venceu Mor-go, a serpente do pântano e outros incontáveis desafios, mas quase pereceu no emba-te com as Valkírias. Ele era forte e a Arte ajudou a supe-

rar todos os obstáculos.

Akin viajou pelo oeste, o caminho onde apenas um homem de muita coragem poderia ousar. Ali enfrentou gigantes, as duas Jahis - que queriam comer seu coração enquanto pulsava – e a últi-ma barreira foi o Demônio chamado de Abadom.

Chegaram juntos à en-trada do jardim e contem-plaram o campo dourado. Depois de muito caminhar, avistaram a rosa vermelha, o Botão de Nandra.

No presente embate, a es-pada de Akin resvalou na ar-madura do oponente. Faíscas chisparam no prata como o sangue espirrando da carne.

Akan atacou uma, duas, três vezes, mas o irmão não arredou o pé; defendeu e contra-atacou. Os minutos da luta se transformaram em horas e o sol estendeu um tapete de rubra luz para que a lua viesse assistir a batalha.

Sob o brilho da Mãe No-turna, os irmãos lutaram. Os golpes ficando mais fortes, arrancando partes das arma-duras. Ambos já lutavam sem o peitoral e o elmo.

Nasceram juntos, eram gêmeos; cresceram na mesma casa e foram dedicados ao Sumo Guerreiro no mesmo dia. Mardan foi o mestre dos dois e ambos tinham o mes-mo nível na Ordem de Sáah.

Tanto eram iguais que partiram em idêntica jornada e tinham o mesmo motivo.

Um erro. Foi o único que Akan cometeu na luta que travavam. Sentiu o ferrão ardente atravessar-lhe logo acima do coração. A carne e

ossos cederam lugar à lâmi-na do irmão.

Deu dois passos para trás e dois outros golpes risca-ram-lhe o ventre. Caiu sobre o berço de flores e Akin prostrou um joelho em seu peito, encostando a ponta da espada no pescoço.

- Mate-me, Irmão – disse o derrotado.

- Não posso.

- Sim, você pode – sorriu Akan, o suor se misturando ao sangue. – A coragem sem-pre foi maior em você.

Respiravam no mesmo rit-mo, mas Akin não conseguia despedir-se do irmão.

- Eu não teria forças para ver vocês dois juntos – argu-mentou Akan – Ame-a, por nós dois. Ame-a, como se a estivesse amando por mim e por você. Colha o botão.

Os guerreiros fecharam os olhos e a espada de Akin en-toou a última nota, rompen-do os ligamentos e atraves-sando o pescoço gorgolejante até mergulhar na terra fértil.

Akin beijou a face morta do irmão e caminhou pelo jardim. Ajoelhou-se ao lado do botão e as mãos fortes seguraram-lhe o talo. O rompimento veio seguido de luzes que cintilaram e um brilho que acompanhou a rosa até ser deitada numa pequena caixa de marfim.

Andou pelo vale e subiu em seu cavalo. Retornou pelo mesmo caminho, onde os maiores obstáculos já haviam sido suplantados.

Entrou em seu país e alcançou o Castelo de Nór. Uma miríade de guerrei-

5656 SAMIZDAT agosto de 2008

ros completava todo átrio do palácio e sacerdotes lhe deram passagem pela imensa escadaria.

O peregrino entrou no salão real, enquanto oiten-ta guerreiros se curvaram. Ajoelhou-se diante do Impe-rador e ergueu a caixa sobre a cabeça; entreaberta, ela mostrava a flor cintilante.

- Eis o Botão de Nandra, meu Senhor – levantou a fronte. – Dê-me a prometida mão da minha princesa.

Há muitas coisas que podem superar o amor entre irmãos, mas nenhuma delas é mais forte que corações fraternos desejando a mesma dama.

Akin e Akan se apaixona-ram por Mirah, a única filha do rei, prometida ao guerrei-ro que trouxesse o Botão de Nandra.

Muitos peregrinaram às distantes terras do norte. Nunca se ouviu falar de alguém que houvesse retor-nado.

Mas os irmãos, mesmo sabendo do intento um do outro, partiram em busca da rosa.

Durante a jornada, deseja-vam intimamente ou morrer, ou que o outro perecesse no caminho. Mas nada dis-to ocorreu. A morte só os envolveria através do braço irmão, dando o último golpe.

- Claro – disse o impera-dor levantando seu protu-berante corpo do trono. – A mão da princesa Mirah será sua – desceu os sete degraus – tão logo eu confira o que há em suas mãos.

Pegou a caixa de marfim e

voltou para seu trono. Pri-meiramente sorriu e depois o som de sua gargalhada reverberou pelas paredes do salão.

- Matem-no! – sentenciou.

Os oitenta guerreiros avançaram de seus postos, enquanto Akin levantou-se aturdido. O corpo do pere-grino respondia aos ataques como um olho que fecha ao rufar de uma nuvem de poei-ra. Reflexo. Flechas, espadas e lanças eram desviadas ou aparadas.

Para cada defesa que fazia, retornava dois contra-ataques; dois corpos inimigos dilacerados. Akin atacava com a espada, com o punho e com a Arte – rajadas de energia azul, que ora saiam da palma de sua mão esquer-da, ora riscavam junto ao fio de sua arma, rasgando corpos dos oponentes à frente.

Combatendo, Akin subiu os sete degraus do trono. Guerreiros protegiam o rei, que apertava no peito gordo a caixa de marfim.

Quando matou o último inimigo, a porta do salão se escancarou e uma infinidade de soldados, vestidos em seus trajes azulados, invadiu o local.

Akin virou-se num átimo e apoiou o pé esquerdo no trono, entre as pernas do imperador. A espada, ébria do sangue de oitenta vidas, tingiu de vermelho o pescoço do rei, se afundando na ba-nha, sem cortar-lhe a carne.

- Fale! – gritou Akin ouvindo o som dos arcos re-tesarem no outro extremo da sala. – Matei meu irmão por

amor. Não hesitaria em tirar sua vida por vingança.

O rei ofegava, seus dedos roliços correndo em cima da caixa, titubeando se toca-va ou não a brilhante rosa. Antes de decidir, Akin bateu-lhe no punho, derrubando o botão. A Rosa de Nandra caiu ao sopé do trono, se misturando ao sangue dos corpos na escadaria.

- Fale! – gritou.

- Um Desejo – disse o im-perador tartamudeando. – O botão de Nandra contém Um Desejo. E só um coração que desejasse o Amor poderia colhê-lo.

É impossível descrever o que sentiu Akin. Amou a princesa e por ela se embre-nhou naquela viagem. Lutou contra a fúria do tempo, contra criaturas terríveis e travou a maior de suas bata-lhas, entregando à Morte o seu amado irmão.

Akan não foi o único a morrer em vão. Outros guer-reiros pereceram diante da artimanha do imperador, na busca de seu Um Desejo, a maior das magias existentes.

Ao degolar o imperador, passou a ter um sentimento de fácil descrição: justiça.

Virou-se para o salão infestado de soldados com armas em punho ou arcos preparados. Um a um, foram se ajoelhando, se curvando até as cabeças tocarem o chão. Havia um novo impe-rador em Nór, que acabara de conquistar o trono na forma das Leis Ancestrais: pela espada.

57www.samizdat-pt.blogspot.com

Contos

Eu estava na minha ca-minhada matinal, como fazia todos os dias. Era uma manhã agradável, linda, en-solarada e fresca, com uma leve brisa gélida. Andando sem rumo e distraído fui parar numa parte totalmente desconhecida, nunca estive-ra antes e nem sabia, até o momento, que existia.

Essa parte da cidade era diferente das outras, tinha tons cinzas e pretos, com ar-quiteturas antigas, mórbidas e carregadas de tristeza, com ares melancólicos.

Continuei caminhando, observando cada lugar em que passava. Já estava per-dido e não sabia o caminho de volta. Não havia ninguém nas ruas.

Avistei uma imponente catedral enegrecida, aspecto sombrio, pesado, parecia cho-rar angustiada. Uma imensa torre onde havia um relógio que marcava seis horas e os ponteiros giravam ao contrá-rio.

Encontrei diante de mim uma rosa. Jamais tinha visto uma assim. Olhar para ela me causava dor e angústia, como tudo ali. Era a Morte. Achei que estivesse seca e morta, mas ao tocá-la percebi que não. Tentei arrancá-la, puxei, torci, puxei novamente com as duas mãos, machu-

quei-as. Os espinhos fizeram cortes profundos que san-gravam e ardiam. Ela estava presa e deixei-a.

Vi alguns clarões no céu e em seguida escureceu. Fiquei no escuro, não enxergava nada, não via minhas mãos, não via meu corpo. Come-cei a tatear a parede com as mãos doloridas e sangrentas para me guiar e sair dali. Encontrei um interruptor. As luzes acenderam e eu esta-va agora numa casa, nunca estive ali, mas me pareceu familiar.

Fiquei parado, tomando conhecimento da casa. Era uma sala de jantar e tinha uma grande mesa de madei-ra. Percebi que era observado por uma garota, uma me-nininha. Escondida atrás do batente, vi apenas um olho azul e sua pele alva. Ela saiu correndo, subiu a escada. Segui-a. Tinha os cabelos longos, castanhos e usava um vestido com rendas e bordados, e sapatinhos azuis. Entrou na primeira porta. Deduzi que era um pequeno quarto. Continuou e saltou pela janela aberta. Olhei e não a vi. Uma pequena rosa vermelha suavemente planava e dançava no ar até beijar o chão. Permaneci a olhar a rosa que dormia na relva macia. A paisagem era um grande gramado que se per-dia no horizonte e se encon-

trava com o céu alaranjado do entardecer. Havia árvores e flores por toda parte. Era o Amor. A paisagem mais linda que já vi em toda minha vida. Sentia-me bem, leve e feliz. Resolvi descer e cami-nhar pelo campo.

Ao me virar para sair, de-parei-me com meu quarto de quando eu tinha cinco anos. Uma nostalgia me inundou. Vi minha cama desarrumada como sempre deixava. Minha pequena escrivaninha junto à parede, no canto, e alguns papéis e lápis em cima. Nas paredes tinha muitos desenhos colados por toda a parte. Desenho de toda a família: papai, mamãe, irmão, irmã. De meu gato, meus amigos e monstros reais da minha imaginação. No chão havia muitos brinquedos es-palhados: lego, carrinhos, sol-dadinhos, índios e animais. Foi com relutância e olhos cheios d’água que deixei meu quarto. Desci a escada e me guiei à porta.

Estava nevando, todo o gramado e árvores cobertos de neve. Vesti um casaco e cachecol que encontrei no mancebo ao lado da porta, peguei a rosa vermelho-san-gue e caminhei pelo campo para qualquer direção onde meu coração me guiasse.

digressões do dia Numa Estranha manhã do Entardecer

no outono da PrimaveraGuilherme Rodrigues

5858 SAMIZDAT agosto de 2008

Contos

Zulmar Lopes

PrELÚdio dE uma SaudadE

58 SAMIZDAT agosto de 2008

59www.samizdat-pt.blogspot.com

Foi no Beco das Garrafas que eu a conheci. O piano do Luis Carlos Vinhas comboiava a doce voz de Sylvia Telles quando, logo na entrada da Ma Griffe, uma garrafa vinda do alto de um edifício explodiu em minha cabe-ça. Os treze pontos na testa foram até aben-çoados pois, graças a eles e a curta paciência do pai de Eulália com a nova bossa musical que o beco irradiava, eu encontrei a mulher da minha vida. É claro que retirei a queixa na polícia quando dei de cara com aque-la formosura de pequena, redondos olhos negros, cabelos de mel e pele tostada pelo sol de Copacabana.

Meu sogro de princípio deu do contra: “Onde já se viu? Namorar um boêmio?”. Tranqüilizou-se um pouco quando descobriu meu status de colunista famoso da “Últi-ma Hora”. Mesmo tendo certa ojeriza pelos membros da imprensa, seu Peçanha viu que por Eulália eu havia posto de lado as noi-tadas e os excessos. Acabou por aceitar o nosso namoro.

Namoro de moça de família, de pegar na mão como maior ousadia. O pessoal do jornal até estranhou e os camaradas do Beco das Garrafas deram por minha falta mas, meu sentimento por Eulália era paixão, das boas.

Casamos na Igreja de Nossa Senhora de Copacabana. Ela de véu, grinalda e flor de laranjeira, como rezava a tradicional famí-lia carioca. Fomos morar nesse apartamento na rua Rainha Elizabeth, até hoje nosso lar, e onde no momento ouço o violão de João Gilberto sair do aparelho de Cd, invadindo os cômodos, dedilhando “Chega de Sauda-de”. Nosso casamento tinha tudo para ser tranqüilo mas a droga da boemia falou mais alto. Em pouco tempo lá estava eu de volta às noitadas, às boates, às mulheres soltas por esta Copacabana que eu tanto amo.

Eulália agüentou tudo espartanamente. Criou nossos filhos, suportou meus porres, a falta de dinheiro, os sumiços no carnaval. Mulher de verdade.

Porém, tudo deve mesmo ter um limite pois Eulália estrilou em ódio quando des-cobriu o meu moleque, já com cinco anos, resultado do meu rabicho com uma guria lá dos pampas, trinta anos mais jovem, largada

em Copa e que fazia ponto num inferninho chinfrim na Avenida Princesa Isabel. Não agüentei a barra pesada da situação e meu coração apitou, avisando do infarto.

Uns dias no CTI e agora me recupero aqui em casa. Como forma de punir-me pelas mi-nhas travessuras de homem na terceira idade, minha esposa deu-me o ultimato mais do-lorido que a dor dos enfartados. “Vou cuidar de você até o doutor lhe dar alta. Depois, o divórcio”, diz ela todo dia, mal despertamos. Assim, deitado nessa cama, vivo um dilema: permaneço doente ou morro de uma vez. Sem Eulália não posso viver. A cura significa o abandono. Mal penso no restabelecimento das minhas forças e já vem um prelúdio de saudade, um sofrimento de véspera. Lá na sala, João Gilberto castiga meus ouvidos com os versos: “Não quero mais esse negócio de você longe de mim”, acirrando a angústia. Não, Eulália! Não te quero longe de mim! A doença ou a morte!

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

lasz

lo-p

hoto

/281

3220

90/siz

es/o

/

http://www.flickr.com/photos/_nicolasnoexiste_/2316637079/

6060 SAMIZDAT agosto de 2008

tradução

Yolanda Arroyo Pizarrotradução: Henry Alfred Bugalho

aS BaLEiaS CiNzaS

http://www.flickr.com/photos/minette_layne/408500528/sizes/o/

61www.samizdat-pt.blogspot.com

“Dedicado a meus dois matrimô-nios literários:Para Alma Rivera, por me dar seus ombros para secar as lágri-mas.Para Emilio del Carril, por seus beijos na nuca.Finalmente, à musa que sempre há de ser musa, Mamota, idolatrada perpetuamente por esta seresteira de amor.”

Como se vive depois de algo assim? Depois da opressão atravessando-lhe o peito? O coração volta a bater igual? Pode-se respirar com semelhante perturbação sobre as têmporas?

Caminho sobre o convés com os olhos molhados. Lanço o olhar para as velas içadas. Retorno ao timão e nele dou uma leve volta. Vamos decididos, eu e meu barco, até o novo destino. Não consigo ficar impávido, de braços cruzados. Não tenho culpa. Vou protestar. Vou renegar e negá-lo. Dian-te daquela acusação, o silên-cio me tragou antes de eu o engolir. Ainda assim, não pude abrir a boca naquele momento, mas hoje, agora, vou confrontá-lo.

A água parece uma plata-forma de centelhas cinzentas querendo tragar o horizonte. Os vultos, como dum veludo lúgubre, áspero, abrem-se e se fecham, crescem e se ape-quenam, saltam e submer-gem. Não têm dentes, mas mostram-me as barbas que surgem da boca, as barbas creme que lhes pendem em cada lábio. Devoram as pro-fundidades. Devoram minhas lembranças? Terão tragado minhas memórias, como fazem com o fundo mari-

nho, absorvendo sedimentos e crustáceos, separando os pedaços do resto com seus filamentos?

A impressão que recebo, ao me aproximar duma ba-leia adormecida, é, sobretudo, de imensidade. É como se cada olho de baleia aprisio-nasse um universo. Fita-se o olho, a esfera, e alguém se pergunta se dentro de cada córnea pode haver uma dimensão diferente. Enormi-dade, solidão de espaços, de carnes, de dura pele cinzenta. Sua presença é inquietante, esmagadora. Inspira-o uma tristeza irremediável que não se extingue, como a própria espécie. Hoje, as baleias cho-ram comigo.

Ω— Minha filha vem me

visitar — vou recolhendo a âncora e me volto para es-perar a reação de Ambrosio à notícia. Ele fica feliz. Não a conhece, mas está louco para conhecê-la, pelo me-nos é o que sempre me diz. Considero Ambrosio como um filho e cada vez que posso falo para ele de minha Viveca. Às vezes, mostro-lhe algumas fotos dela, de quan-do ela estava na escola, ou quando era pequena e me ajudava no pequeno negócio de pesca que tínhamos. Era linda a menina. Parecia um palito de dentes, fraquíssima, mas sempre linda. Também lhe mostro a única foto que ela me enviou quando se foi para estudar biologia mari-nha na universidade. Nela, via-a mais cheia, crescida, mesmo assim, linda. Havia se embrenhado por várias ilhas do Caribe. Chegou a viajar

Yolanda Arroyo PizarroRomancista, contista e ensaísta porto-riquenha. Foi eleita como uma das escritoras latino-americanas mais importante com menos de 39 anos do Bogotá39, convocado pela UNESCO, o Hay Festival e a Se-cretaria de Cultura de Bogotá para celebrar Bogotá como a Capital Mundial do Livro 2007.Agraciada com vários prêmios literários nacionais e internacio-nais; seis na Argentina, um no Chile, sete em Porto Rico. Escreveu para os jornais El Nuevo Día, El Voce-ro de Puerto Rico, Claridad e La Expresión, e seus ensaios e colunas se encontram no site de literatura cuidadseva.com, nas revistas virtuais Cataliticos.com, Derivas.net, Letras Salvajes, Letralia.com e Narrativa Puertorriqueña. Alguns de seus contos integram as revistas cultu-rais Identidad de la UPR Aguadilla, Revista Púrpura, Preámbulos e Tonguas de la UPR Río Piedras. É autora dos livros de contos, Ojos de Luna (2007) e Origami de letras (2004), além dum romance, ga-nhador do Prêmio Club 2006, Los Documentados (2005).

6262 SAMIZDAT agosto de 2008

à Espanha também e depois voltou ao México para fazer um trabalho com a UNAM. Tudo isto ela me contou na única carta que certa vez me escrevera. Desde há muito que não nos vemos. Nestes dias, acabou de me enviar um telegrama. “Irei visitar-te. Viveca”, dizia. Penso em vol-tar a vê-la e tenho calafrios na barriga. Gostaria de me lembrar de mais coisas de quando ela era pequena. O salitre me torna isto impos-sível.

Ω“Em momentos como este,

o ser humano percebe que se aproxima duma criatura que ultrapassa sua compreensão, duma presença misteriosa encarnada num inacreditável cilindro negro.” Terminei de ler a citação. Viveca olhou para cima, recostada à amu-rada do barco, os olhos sal-tados, duas tranças de cabelo arruivado em cada lado de sua cabeça, a saia de queru-bins quadriculados. Minha Viveca era pequenina.

— Jacques Yves Cousteau, o oceanógrafo — ela disse. Sorri orgulhoso e fechei o li-vro, aquiescendo. Minha filha memorizava cada vez melhor. Inclusive, melhor do que eu. Esta manhã, assim que acreditei estar pronto para a travessia, havia me esquecido dos trajes de mergulho em algum lugar da cabana. Não me lembro exatamente onde. No entanto, ela, aos sete anos de idade, conseguia gravar na memória citações como aquela e até mais extensas. Havia trazido nos ombros, sem que eu a fizesse se lembrar, sua mochila com a

toalha, o biquíni, o snorkel e os óculos de mergulho. Esta tarde, pela primeira vez, haví-amos avistado o cetáceo.

Depois deste, periodica-mente, continuamos vendo-os em nossas travessias. As águas reluzentes da baía Magdalena nos presentavam com muitos e belos vis-lumbres do impressionante animal. Tornei-me guia. Comecei a trazer grupos de pessoas, cada vez maio-res, para que vissem aquele fenômeno marino com o mesmo tamanho dum ôni-bus. Aquelas massas colos-sais não se assustavam; pelo contrário. Pareciam desfrutar da companhia. Observavam-nos curiosas na medida em que saíam à superfície para respirarem, a cada três ou cinco minutos. A princípio, cabíamos todos a bordo dum pequeno barco, que fui consertando aos poucos com minhas próprias mãos. Logo, com a cobrança do espetácu-lo natural que as baleias nos obsequiavam e que eu coleta-va com prazer, pude adquirir uma embarcação um pouco maior.

Converti-me em guia porque muita gente ansiava por observar estas maravilho-sas criaturas. Todos os anos, emigravam para as lagunas da Baixa Califórnia para se acasalarem e parirem. Pou-cos marinheiros e pescadores se atreviam a enfrentá-las. As razões eram diversas. Muitos dependiam da pes-car para subsistirem e não desejavam investir num novo projeto, que talvez nem desse resultado. O que os pesca-dores sabem sobre ser guias turísticos? O que sabem os marinheiros sobre se dirigir

63www.samizdat-pt.blogspot.com

às pessoas, falar para elas, explicar-lhes sobre a vida marinha de certas espécies? Dedicar-se a lançar suas re-des e levar comida à boca de suas famílias os afastavam de alguns desafios como aquele. Eu mesmo pensei como eles por um tempo. Trabalhar duro para sustentar os seus era o lema. Mas as bocas para alimentar foram di-minuindo em meu círculo consangüíneo. Uma febre estranha cobrou as vidas de minha mulher e meus filhos homens. Ficamos apenas eu e a menina. Em um arroubo de intensa tristeza, quis mudar minha rotina, para não me recordar de meus finados. As perdas são demasiadamente cinzas, muito mais cinzas que as baleias adormecidas. Acredito, e agora que reflito acredito com maior veemên-cia, que foi aí quando minha mente começar a ofuscar as memórias.

ΩViveca chegou e trouxe

consigo um aroma de corais e algas salgadas. Acredito estar quase certo de que Am-brosio havia ficado impres-sionado com a beleza dela. Está alta e arredondada. Está com uns quilinhos a mais que não lhe caem mal e que em nada contribuiu para que Ambrósio deixe de olhá-la todas as horas. Ficará com a gente dez dias, que é o tem-po que leva a transportadora da cidade para voltar com seu caminhãozinho cheio de turistas. Havia se hospedado numa casa dos arredores e promete me visitar em casa todas as vezes que puder. Entre passear e visitar seu velho pai, ela deseja tirar

fotos das baleias e redigir ou escrever algo como um ensaio de biologia marinha, deste assunto que havia estu-dado na universidade.

Desligo o motor e nos aproximamos remando sileciosamente. Estamos hoje no barco pequeno. As baleias parecem alheias por com-pleto a nossos movimentos. Já estão acostumadas. Pode-mos observar a cerimônia de corte. Chapinham, giram sobre si mesmas, esguicham, mergulham. Ostentam a nadadeira caudal. Viveca nos conta que estas submersões tão sincronizadas se chamam “saídas de reconhecimento”. Põem a cabeça para fora d’água e avistam os arredo-res.

— Você deve saber, Fran-cisco — ela me disse, e ainda me pergunto por que Vive-ca havia decidido por não me chamar de “papai” — As baleias adormecidas têm boa memória.

Eu as invejo. Gostaria de conseguir me lembrar de mais coisas sobre a mãe de Viveca e sobre meus dois filhos que se foram. Ambro-sio concorda, pensativo. Sorri para mim e logo olha para Viveca. Dá-me pena admitir, mas ela o havia ignorado completamente desde que chegou.

— No século dezenove, submeteu-se estes animais a uma caça tão encarniçada que quase foram extermina-dos no Pacífico oriental.

— Como eles chegaram até aqui de tão longe? — per-gunta Ambrosio, mais para deixar de se sentir invisível diante de Viveca do que por qualquer outra coisa. Ela dá ht

tp://

ww

w.fl

ickr

.com

/pho

tos/

farfl

ungp

hoto

s/23

3054

4638

/siz

es/o

/

6464 SAMIZDAT agosto de 2008

de ombros, olha para mim e me pede que, por favor, em-preste-lhe uma blusa porque está com frio. Desço à cabine e trago-lhe uma.

— Obrigada, Franciso — ela me diz, e volto a me sentir estranho, incômodo, até receoso. Mas não o digo. Não o digo.

— Pelo calorzinho. E pela comida. Chegam até aqui de tão longe por comida. Dão-se um banquete de pequenos crustáceos no Pacífico, e logo seguem buscando alimento até chegar a estas lagunas. Levam de dois a três meses para chegarem. Neste trajeto, elas perdem boa parte de seu peso. Neste período, depen-dem quase exclusivamente de sua reserva de gordura. Em quarenta e sete, outorgou-se proteção total a elas pela Comissão Baleeira Interna-cional e, em anos recentes, o governo mexicano estabe-leceu para elas santuários e reservas. Atualmente, a baleia cinza já não é considerada como espécie ameaçada.

— Sabemos que as fêmeas prenhas são as primeiras a chegar nas lagunas e aqui parem os baleatos — Am-brosio aproveita o repentino ataque de atenção — nascem das costas, nós vimos. Aju-dam em cada parto outras duas fêmeas; as tias, nós dizemos.

— Sim, atuam de parteiras, Viveca. Este assunto é dos mais agradáveis — eu lhe digo.

— Francisco, como se chama aquele baleato que nasceu no dia do seu ani-versário? Você se lembra? Demos-lhe um nome... — Ambrosio me pergunta, logo

a dar uma gargalhada.Tentei me lembrar, mas

não consegui. Tornou-se im-possível para mim.

ΩConto a meu grupo de

turistas que, ainda que seja proibido ficar a menos de trinta metros destes cetáce-os, às vezes a baleias-mães, dominadas pela curiosidade, dirigem-se com suas crias até os barcos e até deixam ser tocadas. Eles gritam emocio-nados quando se dão conta de que meu comentário é mais uma advertência do que qualquer outra coisa, porque uma das baleias já havia se acercado, saca seu olho por sobre a água e nos borrifa com sua pequena ducha salgada. Exibe umas manchas brancas na pele, causadas por cracas e outros parasitas. Escutamo-la respirar e, com prazer, voltamos a nos deixar molhar por seu esguicho. Ambrosio mostra um cartaz bastante atraente, em cores vivas, que anuncia um preço bastante módico para aque-les valentes que desejassem acariciar a pele da baleia.

— Os cetáceos permane-cem nas lagunas por dois ou três meses, de janeiro a meados de março. Aprovei-tem agora para tocá-los — Ambrosio tenta convencer — Já está quase se acabando a temporada.

Os turistas correm e fazer uma grande fila no convés. Todos vão pagar por aquela recordação tão única. Como Viveca viaja conosco hoje, eu a olho. Ela está do outro lado, parada perto do timão. Estu-do seu perfil. Uma das velas possui a mesma cor que seus

olhos. Está triste. Aproximo-me um tanto indeciso.

— Amanhã é o décimo dia, filha. Você vai com a transportadora? Voltará?

— Não. Vou ficar outros dez dias mais.

Fico feliz.— Que bom! Assim po-

demos passar mais tempo juntos.

Ela me encara. Sem ro-deios, desafiante. Seu olhar é gélido. A comissura de seus lábios se aperta de modo de estranho.

— Temos de conversar, Francisco. Por isto vou ficar.

ΩÉ possível. Pode ser? Não

reajo. Minha intenção é tentar entendê-la, mas não consigo. Ela me conta, fala para mim, confessa-me uma mar de palavras sem fundo. Exige de mim.

— Como não pude perce-ber? Passei o resto de minha vida odiando-o, esquecen-do-o, brincando de crise ner-vosa em crise nervosa. Veja minhas unhas, roídas, masti-gadas até a metade do dedo. Quase não tenho unhas, qua-se não durmo. Nunca sonhei depois do que me você me fez. Sempre tenho pesadelos. Sonho que você retorna e volta a fazer-me o mesmo. Como pode dizer-me agora que não se lembra? Tenho es-tado internada em sanatórios, postergando meus estudos, afetando minhas notas, para que hoje você me diga que não se lembra do que me fez? Tenho tentado até ago-ra superar meus fantasmas.

65www.samizdat-pt.blogspot.com

Vim vê-lo a pedido de meu psiquiatra. E isto é tudo que você consegue me dizer? Que não se lembra?

Como explicar-lhe? Como se vive depois desta opressão atravessando-lhe o peito? O coração volta a bater igual, após do que lhe foi dito, após do que lhe foi informado? Es-tou me dando conta? Pode-se voltar a respirar com seme-lhante perturbação sobre as têmporas?

Caminho sobre o con-vés com os olhos cheios de lágrimas. Ergo o olhar para as velas içadas. Retorno ao timão e lhe dou uma leve volta. Vamos decididos, meu barco e eu. Vou apontar com o dedo para Viveca. Vou gri-tar. Não posso ficar impávi-do. Não sou culpado do que me acusa. Vou protestar. Vou renegar e negá-lo.

Esqueço-me que a acu-sação não foi feita hoje. Foi anos atrás. Esqueço-me que Viveca não está para que eu a confronte, que não sei de Ambrosio há séculos, que já não sou guia de nada. Esque-ço-me que minha filha não pôde agüentar a dor de viver com algo tão forte. Esqueço-me seu rosto sem vida, suas veias abertas, a poça escarlate sobre o convés, as velas man-chadas e as baleias farejando fluídos raros. Esqueço-me de seus gritos noturnos, suas pernas de batalhadora, suas bofetadas enquanto empurra. As perdas são demasiadas cinzas, muito mais cinzas que as baleias adormecidas. Esqueço-me porque, no fun-do, dói e lembro-me demais.

http://www.flickr.com/photos/liboni/383009619/sizes/o/

6666 SAMIZDAT agosto de 2008

tradução

PEquENaS CoiSaS

Raymond Carvertradução: Henry Alfred Bugalho

Raymond Carver (25 de Maio de 1938 – 2 de Agosto de 1988)Escritor norte-americano, célebre por seus contos e poemas minima-listas.Carver nasceu em Clatskanie, Oregon e cresceu em Yakima, Wa-shington. Carver estudou por um tempo com o escritor e teórico John Gardner na Chico State College em Chico, Califórnia. Publicou um grande número de contos em diver-sos periódicos, incluindo The New Yorker e Esquire, contos que mais tarde foram reunidos em livros. Suas histórias têm sido incluídas nas mais importantes coleções norte-ameri-canas, como Best American Short Stories and O. Henry Prize Stories.A escrita de Carver é normalmen-te associada ao minimalismo. Seu editor na Esquire, Gordon Lish, foi fundamental neste processo. Por exemplo, quando Gardner aconse-lhava Carver a usar 15 palavras ao invés de 25, Lish aconselhava Car-ver a usar 5 no lugar de 15. Durante este tempo, Carver também submeteu suas poesias a James Dickey, então editor de poesia da Esquire.Carver morreu em Port Angeles, Washington, aos 50 anos, vítima de um câncer.Fonte: Wikipédia

http://www.flickr.com/photos/smoulaison/2288614209/sizes/o/

67www.samizdat-pt.blogspot.com

Mais cedo naquele dia, o clima mudou e a neve derretia em água suja. Veios es-corriam da pequena janela, à altura dos ombros, que dava para o quintal. Carros patinavam na rua lá fora, que começava a escurecer. Mas estava escurecendo dentro também.

Ele estava no quarto socando roupas para dentro duma valise quando ela apareceu na porta.

Estou feliz que você esteja indo embora! Estou feliz que você esteja indo embora! ela disse. Você está ouvindo?

Ele continuou pondo suas coisas na vali-se.

Filho da puta! Estou tão feliz que você esteja indo! Ela começou a chorar. Você nem consegue olhar na minha cara, consegue?

Então ela avistou a foto do bebê sobre a cama e a apanhou.

Ele olhou pra ela, ela enxugou os olhos e o encarou antes de se virar e voltar para a sala-de-estar.

Traga isto de volta, ele disse.

Apenas pegue suas coisas e saia, ela disse.

Ele não respondeu. Fechou a valise, vestiu o casaco, escrutinou o quarto antes de apa-gar a luz. Então ele foi para a sala-de-estar.

Ela estava na passagem para a pequena cozinha, segurando o bebê.

Eu quero o bebê, ele disse.

Você está louco?

Não, mas eu quero o bebê. Vou mandar alguém vir buscar as coisas dele.

Nem pense em tocar neste bebê, ela disse.

O bebê começou a chorar e ela descobriu a manta de sobre a cabeça dele.

Oh, oh, ela disse, olhando para o bebê.

Ele se moveu em direção a ela.

Pelo amor de Deus! Ela disse. Ela recuou para dentro da cozinha.

Eu quero o bebê.

Fora daqui!

Ela se virou e tentou manter o bebê er-guido num dos cantos atrás da estufa.

Mas ele veio. Ele alcançou por sobre o fogão e apertou com suas mãos o bebê.

Solte-o, ele disse.

Saia, saia! Ela gritou.

O bebê estava corado e berrando. Na escaramuça, eles derrubaram um vaso que pendia atrás da estufa.

Então ele a prensou contra a parede, tentando fazê-la soltar. Ele segurou o bebê e empurrava com toda sua força.

Solte-o, ele disse.

Não, ela disse. Você está machucando o bebê, ela disse.

Não o estou machucando, ele disse.

Pela janela da cozinha não passava luz. Na penumbra, ele se ocupava dos dedos em punho dela com uma das mãos e com a outra agarrou o bebê pelo braço perto do ombro.

Ela sentiu seus dedos se abrirem à força. Ela sentiu o bebê sendo tirado dela.

Não! Ela gritou assim que suas mãos se afrouxaram.

Ela ficaria com ele, com este bebê. Ela agarrou o outro braço do bebê. Ela segurou o bebê pelo pulso e se reclinou para trás.

Mas ele não desistiria. Ele sentiu o bebê escorregando de suas mãos e puxou para trás com muita força.

Desta maneira, o assunto havia sido deci-dido.

“Pequenas Coisas” de Where I’m Calling From: The Selected Stories Atlantic Monthly Press, 1988. Copyright © 1988 por Tess Gallagher.

O conto foi publicado como “Meu” em Furious Seasons And Other Stories Capra Press, 1977 e como “Mecânica Popular “ em What We Talk About When We Talk About Love Knopf, 1981.

Fonte: http://www.carversite.com/story.html

6868 SAMIZDAT agosto de 2008

autor Convidado

Ana Mello

miNiCoNtoSFugaO ônibus é rápido.

Na janela tudo passa - árvores, rio, nuvens.

Não passa a saudade, não volta a cidade.

Nem o amor da Maria.

amor adolescenteDelicioso aquele beijo.

Primeiro amor tem gosto de chocolate novo, de água depois do futebol.

Tem cor de primavera e cheiro de alfaze-ma.

Dizem que amor é tão forte que até dói.

Mas o que dói mesmo é namorar menina com aparelho nos dentes.

quimera

As panelas brilhavam o fogão também, tudo bem areado.

As desilusões e amarguras, Maria extrava-sava na cozinha.

Sempre sonhou com príncipe, não de ri-queza ou coroa. Realeza no carinho, no amor sincero e incondicional.

Não foi possível.

A vida lhe deu somente um homem, cala-do e trabalhador.

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/so

ft/1

1683

9115

/

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

crim

inal

inte

nt/1

6651

9907

/siz

es/l/

69www.samizdat-pt.blogspot.com

dilema

Do outro lado das grades – a liberdade.

Mas fazer o quê depois de 30 anos na prisão?

Morreu enforcado, um dia antes de ter cumprido a pena.

Coração assaltadoQuando botou o anúncio na rádio, não

esperava ter a bolsa devolvida. Tudo estava no lugar, mais um bilhete do ladrão:

- Quero só uma chance, te observo há dias.

Vamos sair para dançar?

No inferno V

Não comi o pão que o Diabo amassou.

Mas as empadinhas, não resisti.

a autora, por ela mesma

“De profissão sou téc. Química. Escrever é para mim diversão e uma forma de interagir com as pessoas, fazer amizades, aprender. Tenho alguns prêmios literários, um conto premia-do pela Carris, poesia nas janelas dos ônibus e trens de Porto Alegre e haicai selecionado em concurso da UFRGS. Todos estão também em livros. Adoro minicontos e além de publicá-los no meu blog MINICONTANDO, sou editora da REVISTA VEREDAS e tenho oficina de mini-contos. Além disso, sou colunista do site SORTIMENTOS.COM e coordenadora do Movimen-to Internacional Poetrix no RS.”

Conheça mais do trabalho de ana mello

Minicontando: http://minicontosanamello.blogspot.com/

Revista Veredas: http://www.veredas.art.br/

Sortimentos.com: http://www.sortimentos.com/gente/ana_mello-080707.htm

http

://fa

rm1.

stat

ic.fl

ickr

.com

/176

/372

3959

37_0

f98d

0901

6_o.

jpg

7070 SAMIZDAT agosto de 2008

teoria Literária

ENCHENdo LiNGüÍStiCa Na Samizdat

Volmar Camargo [email protected]

“ O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta. ”

Ricardo Piglia © E

duar

do G

ross

man

71www.samizdat-pt.blogspot.com

1. Num de seus cadernos de notas Tchecov registrou este episódio: “Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida”. A forma clássica do conto está condensada no núcleo dessa narração futura e não escrita.Contra o previsível e convencional (jogar-perder-suicidar-se) a intriga se esta-belece como um paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a histó-ria do suicídio. Essa excisão é a chave para definir o caráter duplo da forma do conto.

2. Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em pri-meiro plano a história 1 (o relato do jogo) e constrói em segredo a história 2 (o relato do suicídio). A arte do con-tista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da história 1. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de um modo elíptico e fragmentário.O efeito de surpresa se produz quando o final da história

secreta aparece na superfície.

3. Cada uma das duas histórias é contada de ma-neira diferente. Trabalhar com duas histórias significa trabalhar com dois sistemas diversos de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simultaneamente em duas lógicas narrativas antagônicas. Os elementos essenciais de um conto têm dupla função e são utiliza-dos de maneira diferente em cada uma das duas histórias.Os pontos de cruzamento são a base da construção.

4. No início de “La Muer-te y la Brújula”, um lojista resolve publicar um livro. Esse livro está ali porque é imprescindível na armação da história secreta. Como fazer com que um gângster como Red Scharlach fique a par das complexas tradições judias e seja capaz de armar a Lönrot uma cilada místi-ca e filosófica? Borges lhe consegue esse livro para que se instrua. Ao mesmo tempo usa a história 1 para dissi-mular essa função: o livro parece estar ali por conti-

guidade com o assassinato de Yarmolinsky e responde a uma causalidade irôni-ca. “Um desses lojistas que descobriram que qualquer homem se resigna a comprar qualquer livro publicou uma edição popular da “Historia Secreta de los Hasidim”. O que é supérfluo numa his-tória, é básico na outra. O livro do lojista é um exem-plo (como o volume das “Mil e Uma Noites” em “El Sur”; como a cicatriz em “La For-ma de la Espada”) da matéria ambígua que faz funcionar a microscópica máquina narra-tiva que é um conto.

5. O conto é uma narrati-va que encerra uma história secreta. Não se trata de um sentido oculto que depende da interpretação: o enigma não é senão uma histó-ria que se conta de modo enigmático. A estratégia da narrativa está posta a servi-ço dessa narrativa cifrada. Como contar uma história enquanto se está contando outra? Essa pergunta sinteti-za os problemas técnicos do conto.Segunda tese: a história

ENCHENdo LiNGüÍStiCa Na Samizdat

Já estava planejando essa coluna há algum tempo. Na comunidade do Orkut da Oficina da E-TL (a mãe da SAMIZDAT), criei um tópico com esse mesmo título. O objetivo é discutir assuntos teóricos pertinentes, algo que refletisse as dúvidas momentâneas dos oficineiros. Dessa forma, resolvi transferir alguns dos melhores temas discutidos na comunidade-mãe aqui para a revista-filha. Queremos dividir com o leitor

não só as nossas criações, mas também as nos-sas dúvidas, nossos dilemas de trabalhadores da escrita.

Nessa primeira edição do Enchendo Lingüís-tica trago o primeiro tema que propus para os oficineiros. Os créditos da tradução e da fonte estão logo abaixo do texto.

teses sobre o contoricardo Piglia

7272 SAMIZDAT agosto de 2008

secreta é a chave da forma do conto e suas variantes.

6. A versão moderna do conto que vem de Tche-cov, Katherine Mansfield, Sherwood Anderson, o Joyce de “Dublinenses”, abandona o final surpreendente e a estrutura fechada; trabalha a tensão entre as duas histó-rias sem nunca resolvê-las. A história secreta conta-se de um modo cada vez mais elusivo. O conto clássico à Poe contava uma história anunciando que havia outra; o conto moderno conta duas histórias como se fossem uma só.A teoria do iceberg de Hemingway é a primeira síntese desse processo de transformação: o mais im-portante nunca se conta. A história secreta se constrói com o não dito, com o su-bentendido e a alusão.

7. “O Grande Rio dos Dois Corações”, um dos textos fundamentais de Hemingway, cifra a tal ponto a história 2 (os efeitos da guerra em Nick Adams) que o conto parece a descrição trivial de uma excursão de pesca. Hemin-gway utiliza toda sua perícia na narração hermética da história secreta. Usa com tal maestria a arte da elipse que consegue com que se note a ausência da outra história.O que Hemingway faria com o episódio de Tchecov? Nar-rar com detalhes precisos a partida e o ambiente onde se desenrola o jogo e técnica utilizada pelo jogador para apostar e o tipo de bebida que toma. Não dizer nunca que esse homem vai se suici-dar, mas escrever o conto se o leitor já soubesse disso.

8. Kafka conta com clare-

za e simplicidade a história secreta e narra sigilosamente a história visível até transfor-má-la em algo enigmático e obscuro. Essa inversão funda o “kafkiano”.A história do suicídio no argumento de Tchecov seria narrada por Kafka em primeiro plano e com toda naturalidade. O terrível estaria centrado na partida, narrada de um modo elíptico e ameaçador.

9. Para Borges a história 1 é um gênero e a história 2 sempre a mesma. Para atenuar ou dissimular a monotonia essencial dessa história secreta, Borges re-corre às variantes narrativas que os gêneros lhe oferecem. Todos os contos de Borges são construídos com esse procedimento.A história visí-vel, o jogo no caso de Tche-cov, seria contada por Borges segundo os estereótipos (leve-mente parodiados) de uma tradição ou de um gênero. Uma partida num arma-zém, na planície entrerriana, contada por um velho solda-do da cavalaria de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi. A narração do suicídio seria uma história construída com a duplicidade e a condensa-ção da vida de um homem numa cena ou ato único que define seu destino.

10. A variante fundamen-tal que Borges introduziu na história do conto consis-tiu em fazer da construção cifrada da história 2 o tema principal.Borges narra as manobras de alguém que constrói perversamente uma trama secreta com os mate-riais de uma história visível. Em “La Muerte y la Brújula”, a história 2 é uma construção

deliberada de Scharlach. O mesmo ocorre com Acevedo Bandeira em “El Muerto”; com Nolan em “Tema del Traidor y del Héroe”; com Emma Zunz.Borges (como Poe, como Kafka) sabia transfor-mar em argumento os pro-blemas da forma de narrar.

11. O conto se constrói para fazer aparecer artificial-mente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta. “A visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não numa longínqua terra incógnita, mas no próprio coração do imediato”, dizia Rimbaud.Essa iluminação profana se transformou na forma do conto.

Ricardo Piglia é escritor ar-gentino, autor de, entre outros, “Respiração Artificial” (Ilumi-nuras) e “Dinheiro Queimado (Companhia das Letras). O texto acima foi publicado ori-ginalmente em “O Laboratório do Escritor” (Iluminuras).

Tradução de Josely Vianna Baptista

(http://www.portrasdas-letras.com.br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/como-fazer )

73www.samizdat-pt.blogspot.com

Esse texto trouxe-me um problema sério. Eu nunca havia pensado em termos de “história 1” e “história 2”, nem para escrever, nem para ler um conto. Agora, relembran-do os textos que eu escrevi, e boa parte dos que li aqui na Oficina, chego a conclusão que essa É a regra e não a exceção.

Vamos com um exemplo prático, um conto meu: “O Convite” (publicado aqui na Samizdat mês passado).

1930. Uma menina chega em casa com os pais, após uma ida até o banco. A mãe guarda o dinheiro dentro de uma lata de farinha. O irmão chegará à noite e ela começa a arrumar a casa para o jantar em sua home-nagem. Durante a faxina, a porta se abre e ela faz uma brincadeira, convidando o recém-chegado invisível para entrar. Durante a mesma noite, a menina acorda com a impressão de haver alguém dentro de casa. Em instantes, ouve-se barulho na cozinha e constata-se que um ladrão roubou as economias da família. Depois desse evento, a família começou a ficar po-bre e endividada. A menina acompanha as mudanças em toda a cidade: pessoas ficam pobres de repente, bancos fecham, famílias esperam ajuda do governo até para comer. Seu pai recebe uma proposta de trabalho com o cunhado, e aceitando, põe a casa onde vivem à venda. Quando estavam fazendo a mudança, a menina dá-se conta que esqueceu o album de fotografias, voltando para

a casa deserta. Em seu quarto encontra uma pessoa desco-nhecida e misteriosa: uma mulher velha de aparência horrível. Esta apresenta-se como a Miséria, que tempos antes a mesma menina a havia convidado gentilmente para entrar.

A história um é, obvia-mente, a narração desses eventos: banco, faxina, jantar, assalto, visão das mudanças na cidade, mudança de casa. A história dois é o advento do convidado invisível. A presença desse convidado, a Miséria, é explicado à medi-da que as coisas vão “pioran-do” na vida da protagonista: as economias são roubadas, o pai perdeu o emprego, o irmão afasta-se outra vez da família, as instituições ban-cárias vão à falência, a sua família vende a casa e preci-sa mudar-se.

O conto mostra-se sur-preendente por causa da “ação” dessa história dois, que é revelada no final. Quan-to à segunda tese, Piglia foi bastante preciso ao dizer que essa história secreta é o que vai determinar os modos que o autor vai valer-se para contá-la.

Para mim, enquanto leitor, essas teses trouxeram uma nova luz - ou melhor, uma luz mais clara para a lanter-ninha que eu vinha usando. Enquanto escritor... bem. Vou começar a observar melhor.

http://www.flickr.com/photos/flyzipper/342012313/sizes/o/

7474 SAMIZDAT agosto de 2008

Crônica

Henry Alfred [email protected]

SÓ oS PoBrES mErECEm BaLaS-PErdidaS

75www.samizdat-pt.blogspot.com

Nas últimas semanas, a população brasileira ficou chocada com algumas ações desastradas da polícia. Num curto intervalo de tempo, policiais do Rio de Janeiro e do Paraná, perseguindo ban-didos, abordaram automó-veis errados e fuzilaram pessoas ino-centes — uma criança, uma jovem e, mais recentemente, o refém dum assalto, foram executados.

Estas tragédias comoveram as pessoas, pois se aqueles indivíduos pagos para prote-gerem os cidadãos são justa-mente quem os matam, que tipo de segurança é esta?

Mas deixando de lado a dor dos familiares, vítimas do absurdo que é a seguran-ça pública no Brasil, toda a ênfase dada ao despreparo dos policiais é duma hipocri-sia sem tamanho.

Qualquer um que já foi alvo da violência urbana sabe qual é o primeiro pen-samento que se tem poste-riormente: “bandido bom é bandido morto”.

A maioria das pessoas não hesitaria, caso questio-nadas, em condenar a pena de morte, mas se alguém em sua família for seqüestrado, estuprado, ou assassinado, o desejo natural é de retalia-ção. Logo se esquece de todas as aulas de catequese, de “dar a outra face”, e queremos o “olho por olho, dente por dente”. Este é o sentimen-to mais instintivo possível:

punição na altura do crime cometido.

E o clamor popular é sem-pre o mesmo — basta de im-punidade. Não adianta tapar o sol com a peneira e aguar-dar que alguma instância do

judiciário, ou do sistema penitenciá-rio resolva o problema da criminalida-de. Alguns preferem comprar um revólver e deixar em

cima do armário, outros preferem que a polícia atue como justiceira e, mais do que manter a ordem, atuem também como juízes e exe-cutores. E isto é o que tem ocorrido no Brasil há déca-das. Quem não se lembra da chacina da Candelária? Ou da execução do seqüestrador do ônibus 174 no Rio? Ou quem já não ouviu sobre a reputação da Divisão An-tiseqüestro do Paraná, que praticamente erradicou este tipo de crime no estado porque os bandidos eram executados? Ou quem nunca viu imagens do carro blinda-do do BOPE — vulgo “Cavei-rão” — invadido as favelas e mandando bala pra todo o lado?

Não é de hoje que a polí-cia “mata a cobra e mostra o pau” e, no fundo, num lugar bem escondido, é o que todos desejamos. Se a Justiça não funciona, alguém tem de dar cabo da impunidade. Não é isto parte do fascínio que o filme “Tropa de Elite” exerceu sobre o brasileiro, ver em ação uma equipe policial in-

corruptível e que faz alguma coisa?

No entanto, só os pobres merecem ficar em meio ao fogo cruzado. Deixe isto para os favelados, que desde há muito estão acostumados com trocas de tiro de ma-drugada, com balas-perdidas atravessando suas janelas, portas e paredes, perdendo seus filhos para o narcotrá-fico, ou sendo executados, equivocadamente, por poli-ciais. Enquanto o massacre e a carnificina estiverem nos morros ou nas baixadas, lon-ge das vistas e das câmeras de TV, então tudo bem!

Mas ai destes policiais despreparados se eles atin-girem um cidadão de classe média!

Pois, no Brasil, só pobre merece ser confundido com bandido...

Qualquer um que já foi alvo da violência urbana sabe qual é o primeiro pensamento que se tem posteriormente: “bandido bom é bandido morto”.

7676 SAMIZDAT agosto de 2008

Crônicaht

tp://

uplo

ad.w

ikim

edia

.org

/wik

iped

ia/e

n/4

/4c/

Due

rer-

apoc

alyp

se.p

ng

77www.samizdat-pt.blogspot.com

NotÍCiado

Fim do muNdoVolmar Camargo Junior

Inflação no Brasil, crise nas hipotecas americanas, polícia metralhando cidadãos e matando criança porque o vidro do carro era escuro, militares entregando rapazes de um morro para trafican-tes de outro morro, pais que jogam crianças do alto de edifícios, mães que jogam crianças no mato, ladrões que arrastam menino pelo cinto de segurança de carro roubado por quilômetros, mulher parindo no meio da rua, dezenas de crianças morrendo na maternidade, centenas de milhares de crianças sendo filmadas e fotografadas enquanto fazem sexo com maiores de idade, trabalhadores honestos se masturbam vendo fotos e filmes de crianças fazendo sexo com maiores de idade, canalhas que enriquecem ilicitamente manipulando o sistema financeiro brasi-leiro e não podem ser pre-sos porque um exército de advogados têm o respaldo do Supremo Tribunal Fede-ral para mandar soltá-los, os mesmos canalhas não podem aparecer na televisão

algemados porque representa uma arbitrariedade da polí-cia, país do Oriente Médio divulga cenas de mísseis sendo disparados contra seus vizinhos, Paris esteve em cha-mas, japonês esfaqueia pessoa na rua, norueguês (ou era sueco) mantinha a filha presa em um porão por décadas e tinha filhos com a própria fi-lha, pais ingleses dão sumiço à própria filha em Portugal, presidente de país africano manda matar opositores e qualquer um que não vote nele no pleito democrático, menino mata colega com o revólver do pai – mas era só uma brincadeira, não sabia que estava carregada.

E dizem que o mundo vai acabar por causa do peido das vacas.

Página anterior: Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse de Albrecht Dürer“Quando o Cordeiro abriu o quar-to selo, ouvi a voz do quarto ser vivente dizendo: Vem!E olhei, e eis um cavalo amarelo e o seu cavaleiro, sendo este cha-mado Morte; e o Inferno o estava seguindo, e foi-lhes dada autori-dade sobre a quarta parte da terra para matar à espada, pela fome, com a mortandade e por meio das feras da terra.” (Ap. 6:7-8)

7878 SAMIZDAT agosto de 2008

CoNtadora dE HiStÓriaS

Crônica

Giselle [email protected]

http://www.flickr.com/photos/89509548@N00/1070827696/sizes/o/

79www.samizdat-pt.blogspot.com

Todos os dias faço um café, pego a caneca preferida e ligo o computador.

Pesquisas, traduções e trabalhos variados.

À medida do possível, organizo a bagunça e vão surgindo as idéias. Uso 50% de muita perseverança, 40% da mais pura teimosia e 10% sobra para a velha intuição.

Escrever uma crônica é um exercício maravilhoso, vou contando os fatos e visu-alizando as situações.

Algumas vezes um per-sonagem se rebela e toma conta da situação. Perco o fio da meada e o jeito é recome-çar, vou adaptando a história inicial e colocando o abusa-do nos eixos.

Contos infantis. Puxo de um lado e ajeito de outro, criança é exigente e sincera.

Meus pequenos leitores mandam e-mails exigentes: -Querida tia Gi, seu conto é legal, mas muito triste, pode-ria mudar o final?

A maioria envia histórias e redações. São crianças talentosas e cheias de imagi-nação. Pedem conselhos.

Poesias. Essas brincam com o escritor, embotam os sentidos e confundem a intenção.

Tomam rumos inespera-dos. As palavras ganham vida e a idéia inicial cresce na entrega de sentimentos.

Momentos pessoais e vivências. Ser imparcial na criação do poema é cabo de guerra entre razão e sensibi-

lidade.

Mas criar é realmente um vício. Irresistível apelo da imaginação do narrador.

Contar histórias faz meu dia mais feliz, partilho um pouco do riso, experimento um novo caminho, algumas vezes apenas distraio o leitor. E isto me basta.

E pensar que tudo começa bem cedinho, aproveitando a brisa da manhã e um café quentinho recém coado.

Com cães e gatos ao re-dor buscando companhia e embalando o soninho com o som do teclado.

8080 SAMIZDAT agosto de 2008

Poesia

Carlos Alberto [email protected]

SoNEto da Boa mortE

A vida foi a mim mais que suprema,

Se fez mais do que bela, mais que intensa.

E nessa tarda idade o tolo pensa

Que estou a caducar sobre tal tema.

Não julgue, ó sábio tolo, que o emblema

Que levas em teu peito te dispensa

Da vida, aos desamores, tão propensa;

Da marca, em teu espírito, da algema.

Contudo, desamores vêm de amores

E, saibas tu, que muitos tive eu,

Amando plenamente, sem favores.

Vai, liberta-te! Siga o exemplo meu!

E poupe da tua morte as fortes dores

De alguém que chega ao fim e não viveu.

http://www.flickr.com/photos/chefranden/1580191743/sizes/l/

81www.samizdat-pt.blogspot.com

Guilherme Rodrigues

SoNEtoSAmargonia

Dor... a dor bem sentida é inspiraçãoEla pode transformar lágrimas em versosDor de amar, amargura, todo o coraçãoEle inteiro; inteirinho em sonhos imersos.

Desejar e sofrer; sofrer e desejar.Querer, não querer, continuar a sofrerMas sempre –e intensamente amar de verdadePara sempre, te amar por toda eternidade.

As lágrimas são cachoeiras de rimarA dor com amor e sofrer com florescer,A morte com sorte, solidão com paixão

E você comigo –toda a vida florida.Os versos são campos cheios de margaridaPoesia feita, esfacelado coração.

Eu tão sozinho sonho sonho tantoQue tudo eu tenho e não tenho nadaO sol, lua, uma terra encantada...Eu morro, morro, me calo - em pranto.

Você bela Rainha deste ReinoEncantado e do outro... dou meu Amor.... u’a rosa, minha vida, uma florE com tanta beleza me fascino.

Você partiu sem ao menos ter vindoIlusões... por noites passei sorrindoJunto de você... é muita saudade.

Sonhos... delírios... algo que me agrade...Sou o Príncipe esperando a Rainha...Eu sinto tão feliz... mas me definha...

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/ar

iela

riel

arie

l/691

4363

72/siz

es/l/

8282 SAMIZDAT agosto de 2008

Poetrix Volmar Camargo [email protected]

LaBoratÓrio PoÉtiCo iV

mito

O que é, não sei.

Nunca vi, nem senti.

Mas existe.

FiLa

“Ama

o teu próximo como a ti mesmo.”

— Ok. Próximo!

moNÓLoGo

“abre aspas

Tenho dito.

fecha aspas”

modEraÇÃo

“Cu”, tudo bem.

“Merda”, também.

“Amor”, eu hein?

Poesia

Gata No Cio

Manhosa

Dengosa

Goza.

uNiÃo

Sol e chuva, casamento de viúva

Chuva e sol, casamento de espanhol

Arco-íris, não tem casamento?

raPoSa

Era uma vez uma raposa

Conheceu um raposo

E acabou o conto de fadas.

VadiaGEm

É manhã.

É dia.

E daí?

VErmiNoSE

Estranhas estranhas

Entrando em tantas

Entranhas.

doCE NoStaLGia

Leite condensado, caramelizado

Com flocos crocantes

Coberto com o delicioso sabor do passado.

triStE ProBLEma mENSaL

Irrompeu fúria, rasgou vestidos,

Derrubou pratos, quebrou mobília

Hormônios da mãe, hormônios da filha.

83www.samizdat-pt.blogspot.com

Tudoconstrói

O mundo aqui.O mundo lá, levanta-se

Para ver o que aqui acontece.Aqui nada acontece há tanto tempo

que era melhor mesmo que o outro mundoviesse para cá e terminasse com tudo de uma vez.

Manda chamar o outro mundo que esse aqui já deu!

PoESia CoNCrEta

Volmar Camargo Junior

a Pirâmide

CaPitaLPedro Faria

Parei meu carro em frente ao Cristo RedentorCambaleou pra perto um homem mascarado“O que é que você vem pedir ao meu Senhor?”Falei que tava com um pneu furadoEu não acredito que a crença seja o melhor pra mimEntão eu sigo me sentindo, como um sonho ruimEu perguntei pra ela, “qual é o problema, meu bem?”Ela disse que iria viajar pra longeEu disse, ”por favor, não se vá. Se você for eu não vou esperar”Me disseram que eu era louco, e eu acreditei.Então esqueça tudo que eu falei.Alguém alguma vez te disse, a cor dos seus olhos?Pois eu te digo, são castanhos, verdes, pretos ou azuisCaiu minha máscara e eu quero ficar sempre com vocêO carro já está bom, vamos embora

http://www.flickr.com/photos/soldon/2511914905/sizes/l/

8484 SAMIZDAT agosto de 2008

Poesia

BriNCaNdo WitH CoLE PortEr

Será que você ouve Cole Porter like I do?‘Cause a voice within me keeps repeating you, you, you...E como I’ve got you under my skinEu queria acreditar que, um dia, I could win

E porque pr’a mim, baby, you’re the topMais que o Coliseum e o Louvre MuseumE a Tow’r of Pisa e a MonalisaE o Mickey Mouse e o Big BenI wonder if you think of me assim também!

E te ver é sempre uma alegriaMas na tua ausência I miss you till I dieE lá vou eu from major to minorEverytime we say goodbye...

E porque sempre que te encontroYou do something to meFico pensando em minha vida –Sem você, what should it be?

Você preenche meus sonhos e meus devaneios acordadaNight and day you are the oneNão consigo desejar mais nadaOnly you beneath the moon and under the sun...

Então, se birds do it, bees do it, even educated flees do itWhy not, nós dois, devagarinho...Let’s do it, let’s fall in love, só um pouquinho!

(Sempre me ponho na vida a rimar português com english wordsOs versos são mancos...Coração não combina com heart, nem amor com love...Também fora do papel, nada combina com nada, but the feelings flow...Por que tanta complicação?I look for the answer in the skies above and in hell below...Como chamar esse sentimento estranho?Como transformar, dentro de mim, versos brancos em alexandrinosHai-kais em sonetosDissonâncias dodecafônicas em perfeita harmonia?

Que será dessa voz desafinada que soa em mimE deseja,E desafia?)

Marcia [email protected]

85www.samizdat-pt.blogspot.com

Marcia [email protected]

Carta dE amor

Queria te escrever uma cartaQue não fosse de despedidaQue, antes, fosse mesmo de chegada,De começo, de ponto de partida,Onde eu pudesse, amigo, te proporEste meu jeito estranho de definir amor:

Norte na bússola dos sentimentos,Referência a cada um desses momentosEm que alguém se sente engolfado pelo vendaval dos acasos...

Companhia doce, terna, absolutamente especialNas cotidianas banalidades que chamamos vida-realAlegres champanhes, ternos abraços, tristes silêncios...

Um tanto de desejo, de suave intimidadeConstruída sobre o sólido pilar da liberdade:A confiança absoluta em si mesmo e no outroA ponto de não se preocupar se é muito ou pouco...

Grandeza sem medida, sem espaço ou tempoQue no instante derradeiro, na presença clara da morte,Nos sirva de conforto, justificativa e alento...

É tênue a fronteira entre amor e amizade,Mera linha pontilhada feita de fumaçaQue esmaece tanto mais quanto mais o tempo passa...

Sentimento sem nome, toca o realSentimento sem tempo, portanto eternoNem grande nem pequeno, já que absoluto...

(Certamente Fernando Pessoa tinha razão:Todas as cartas de amor são ridículas, a minha não é exceção.Mas, afinal, amar não é também essa espécie de flageloEm que se mostra o ridículo, esperando que o outro enxergue o belo?)

85www.samizdat-pt.blogspot.com

http

://w

ww.fl

ickr

.com

/pho

tos/

feve

rblu

e/10

0788

1390

/siz

es/l/

8686 SAMIZDAT agosto de 2008

Sites ou páginas pessoais:

Ana Mello

Minicontando: http://minicontosanamello.blogspot.com/

Revista Veredas: http://www.veredas.art.br/

Sortimentos.com: http://www.sortimentos.com/gente/ana_mello-080707.htm

Alian Moroz

http://forumdelinha.blogspot.com/

Carlos Alberto Barros

http://desnome.blogspot.com

LiNKS dESta EdiÇÃo

http://www.sgeier.net/fractals/fractals/06/Robot%20Spider%20Web.jpg

Ligações

87www.samizdat-pt.blogspot.com

Giselle Natsu Sato

http://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso.net/

Henry Alfred Bugalho

www.maosdevaca.com

José Espírito Santo

http://www.riodeescrita.blogspot.com/

Marcia Szajnbok

http://marcia-poeticamente.blogspot.com/

Pedro Faria

http://civilizadoselvagem.blogspot.com/

Revista SAMIZDAT

www.samizdat-pt.blogspot.com

Sven Geier

http://www.sgeier.net/fractals/

Volmar Camargo Junior

http://humanoempereiropolis.blogspot.com/

Yolanda Arroyo Pizarro

http://narrativadeyolanda.blogspot.com/

referências:

Enchendo Lingüística na SAMIZDAT

http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/comofazer

Flickr

http://www.flickr.com/

Pequenas Coisas

8888 SAMIZDAT agosto de 2008

http

://w

ww.la

bnew

s.co

.uk/

cms_

imag

es/Im

age/

Mar

ch_2

/318

239_

4385

web

.gif

http://www.carversite.com/story.html

http://pt.wikipedia.org/wiki/Raymond_Clevie_Carver%2C_Jr.

Tabacaria

http://www.insite.com.br/art/pessoa/ficcoes/acampos/456.html

http://omj.no.sapo.pt/bio2.htm

http://www.colegiosaofrancisco.com.br/alfa/fernando-pessoa/carta-adolfo.php

http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81lvaro_de_Campos

A Voz Feminina de Florbela Espanca

http://www.vidaslusofonas.pt/florbela_espanca.htm

http://www.mulheres-ps20.ipp.pt/Florb-Espanca.htm

Wikipédia

http://www.wikipedia.org/

89www.samizdat-pt.blogspot.com

SOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDATSOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDATSOBRE OS AUTORES DA

SAMIZDAT

SOBRE OS AUTORES DASAMIZDAT

SOBR

E OS

AUTO

RES

DA

SAM

IZDA

T

http

://w

ww.la

bnew

s.co

.uk/

cms_

imag

es/Im

age/

Mar

ch_2

/318

239_

4385

web

.gif

89

Alian MorozFormado em Matemática pela

UFPR,lecionou durante 20 anos. For-mado ainda pela Faculdade de Belas Artes do Paraná em Licenciatura em Desenho,trabalhou junto a Estúdios de pro-paganda e no setor editorial. Historiador e Filósofo amador, venceu em 2006 o Prèmio ‘Destaque cultural’ promovido pela secre-taria de Cultura de Curitiba com o livro ‘ Desvendando a História e os mitos Bíblicos’. Lançou em 2007 a primeira edição de ‘ O Manuscrito XXXII’,seu primeiro romance , pela Editora Corifeu. Poeta e músico nas horas vagas, têm como principais influências,Umberto Eco e Luis Fernando Veríssimo.

[email protected]

Carlos Alberto Barros

Paulistano, filho de no

rdestinos, desenhis-

ta desde sempre, artis

ta plástico formado,

escritor. Começou sua

vida profissional como

educador e, desde entã

o, já deixou seu ras-

tro por ONG’s, Escolas

e Centros Culturais,

através de trabalhos a

rtísticos e pedagógi-

cos – experiências que

têm forte influência

sobre seus escritos. A

tualmente, organiza

oficinas de ilustração

para crianças, estuda

pós-graduação em Histó

ria da Arte e escreve

para publicações na in

ternet.

[email protected]

om

http://desnome.blogspo

t.com

9090 SAMIZDAT agosto de 2008

http

://bo

nfire

blaz

e.file

s.w

ordp

ress

.com

/200

7/12

/gra

fiti_w

all.j

pg

Guilherme RodriguesEstudante Letras na

Universidade do Sagrado Coração, em Bauru, onde sempre morou. Nutre grande paixão por Línguas, Literatura e Lingüística, áreas em que se dedica cada vez mais.

Giselle SatoGiselle se autodefine apenas como uma contadora de his-

tórias carioca. Estudou Belas Artes e foi comissária de bordo — cargo em que não fez muita arte, esperamos. Adora viajar (felizmente!) e fala alguns idiomas.

Atualmente se diverte com a literatura, participando de concursos e escrevendo para diversos sites pela net. Gosta de retratar a realidade, dedicando-se a textos fortes que chegam a chocar pelos detalhes, funcionando como um eficiente pa-norama da sociedade em que vivemos, principalmente daquilo que é comumente jogado para baixo do tapete pelos veículos de comunicação.

[email protected]://www.trilhasdaimensidao.prosaeverso.net/

José Espírito Santo

Informático com licenciatura e pós

graduação na Faculdade de Ciências da

Universidade de Lisboa, trabalha há largos

anos em formação e consultoria, sendo

especialista em Bases de Dados, Sistemas

de Gestão Transaccional e Middleware de

“Messaging”. A paixão pela escrita surgiu

recentemente, tendo no ano de 2007

produzido os livros “Esboços” (contos) e

“Onde termina esta praia” (poesia). Vive

com a família em Portugal em Alverca, uma pequena cidade um pouco a norte de

Lisboa. [email protected]

http://www.riodeescrita.blogspot.com/

Henry Alfred Bugalho

É formado em Filosofia pela UFPR, com

ênfase em Estética. Especialista em Literatura e

História. Autor de quatro romances e de duas

coletâneas de contos.

Mora, atualmente, em Nova York, com sua

esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.

[email protected]

www.maosdevaca.com

Joaquim BispoEx-técnico de televisão,

xadrezista e pintor amador, licenciado recente em His-tória da Arte, experimenta agora o prazer da escrita, em Lisboa.

91www.samizdat-pt.blogspot.com

Zulmar Lopes

Zulmar Lopes é carioca. Formado em jorna-

lismo pela Universidade Gama Filho, trabalha

como assessor de imprensa. Alma provinciana e

coração suburbano, encontra-se provisoriamen-

te exilado na cosmopolita Copacabana, bairro

fonte de inspiração de personagens e situações

que compõem seus contos. Escreve para fugir

do marasmo.

Marcia Szajnbok

Médica formada pela Facul-

dade de Medicina da Univer-

sidade de São Paulo, trabalha

como psiquiatra e psicanalista.

Apaixonada por literatura e lín-

guas estrangeiras, lê sempre que

pode e brinca de escrever de vez

em quando. Paulistana convicta,

vive desde sempre em São Paulo.

[email protected]

Volmar Camargo Junior é gaúcho. Formado em Letras pela Universidade de Cruz Alta, não leciona por sua própria vontade. Entrou na ECT em 2004, e desde então já morou em meia dúzia de “Pereirópolis” pelo Rio Grande. Atualmente vive com a esposa Natascha em Canela, na Serra Gaúcha. Dividem o apartamento com Marie, uma gata voluntariosa e cínica.

[email protected]://recantodasletras.uol.com.br/autores/vcj

Pedro FariaEstuda Matemática na Univer-

sidade Estadual do Rio de Janeiro, músico amador e escritor quando dá na telha. Nascido e criado no Rio.

[email protected]

http://civilizadoselvagem.blogspot.com/

Maria de Fátima SantosNasceu em Lagos, Algarve, mas tem Angola, onde

viveu a adolescência, como a sua mãe-terra. Licencia-da em Física tem sido professora de Física e Química. Com poemas em vários livros, em co-autoria, é às pe-quenas histórias, que lhe voam no teclado, que chama “meus contos”. O blog Repensando (www.intervalos.blogspot.com ) tem sido seu parceiro e motivador na escrita dos últimos anos. Escreve pelo gosto de deixar que as palavras vão fazendo vida. Escreve pelo gozo.

9292 SAMIZDAT agosto de 2008

Também nesta edição,textos de

alian moroz

ana mello

Carlos alberto Barros

denis da Cruz

Giselle Natsu Sato

Guilherme rodrigues

Henry alfred Bugalho

Joaquim Bispo

José Espírito Santo

marcia Szajnbok

maria de Fátima Santos

Pedro Faria

Volmar Camargo Junior

zulmar Lopes