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Samantha Souza de Moura Ribeiro A Dinâmica dos Direitos Coletivos a partir da Auto- Compreensão do Estado Democrático de Direito DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DEPARTAMENTO DE DIREITO Programa de Pós-Graduação em Direito Rio de Janeiro, março de 2007

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Samantha Souza de Moura Ribeiro

A Dinâmica dos Direitos Coletivos a partir da Auto-Compreensão do Estado Democrático de Direito

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

DEPARTAMENTO DE DIREITO Programa de Pós-Graduação em Direito

Rio de Janeiro, março de 2007

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510787/CA

Samantha Souza de Moura Ribeiro

A Dinâmica dos Direitos Coletivos a partir da Auto-Compreensão do Estado Democrático de Direito

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-Rio como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Gisele Guimarães Cittadino

Rio de Janeiro Março de 2007

DBD
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510787/CA

Samantha Souza de Moura Ribeiro

A Dinâmica dos Direitos Coletivos a partir da Auto-Compreensão do Estado Democrático de Direito Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Direito do Departamento de Direito da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profa. Dra. Gisele Guimarães Cittadino Orientadora

Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. Carlos Alberto Plastino Esteban Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. Joaquim Leonel de Rezende Alvim Universidade Federal Fluminense

Prof. João Pontes Nogueira Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de

Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 28 de março de 2007.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Samantha Souza de Moura Ribeiro

Bacharel em Direito pela PUC-rio. Bosista CAPES.

Ficha catalográfica Ribeiro, Samantha Souza de Moura.

A Dinâmica dos Direitos Coletivos a partir da Auto-Compreensão do Estado Democrático de Direito / Samantha Souza de Moura Ribeiro; orientador: Gisele Guimarães Cittadino. – Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2007.

1 v., 123 f.: il. ; 29 cm

1. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito.

Inclui referências bibliográficas. 1. Direito – Teses. 2. Direitos Individuais. 3. Direitos

coletivos. 4. Estado democrático. 5. Identidade. 6. Pertencimento. 7. Intersubjetividade. 8.Pluralismo. I. Cittadino, Gisele Guimarães. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III. Título.

CDD 340

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À minha mãe que acompanha de perto todas as

etapas de formação da minha identidade desde a

forma mais elementar de reconhecimento, com

amor incondicional marcado pela ambigüidade de

alegrias e sofrimentos do longo processo que vai da

simbiose à individualização.

Te amo!

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Agradecimentos

Primeiramente, agradeço à minha turma do mestrado. Que turma! Por

certo a experiência de aprendizado vivida pelo grupo superou todas as

expectativas. Foram trocas fantásticas. Além das discussões teóricas, uma

constante lição prática de que interesses individuais podem ser harmonizados em

um grupo. Mesmo àqueles que não se tornaram grandes amigos, um

agradecimento especial pela participação enriquecedora nessa etapa tão

importante.

Às amigas Adriana Vidal e Lívia França um agradecimento todo especial.

Pela amizade verdadeira, pelas trocas acadêmicas, pelos constantes e

indispensáveis desabafos. Elas juntamente com a Karen se mostraram amigas

sinceras e professoras surpreendentes.

Agradeço à minha orientadora Gisele Cittadino, pela orientação em si e

pelas conversas que sempre me esclareciam e acalmavam. Muito obrigada

também a todo o corpo docente do curso de mestrado pelas inesquecíveis aulas.

Um agradecimento especial ao prof. Florian Hoffmann pelos diálogos constantes e

sempre enriquecedores. Um muito obrigada também à Carmen e ao Anderson por

toda a ajuda em absolutamente tudo o que eu precisei.

Por fim, um agradecimento profundo aos meus pais. O apoio, o incentivo e

o carinho deles tornam cada etapa mais agradável e cada conquista mais valiosa.

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Resumo

Ribeiro, Samantha de Souza Moura; Cittadino, Gisele Guimarães (orientador). A Dinâmica dos Direitos Coletivos a partir da Auto-Compreensão do Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro, 2007. 123p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Com o início da consolidação do Estado Democrático de Direito, de

orientação liberal e individualista, ficou claro que o ideário liberal da igualdade e

da liberdade trouxe a garantia formal de direitos fundamentais que, na prática não

eram assegurados a todos. Iniciou-se, então, um movimento de crítica a esse

modelo de estado que seria individualista e voltado apenas ao estímulo dos

interesses egoístas de seus cidadãos. Nesse contexto surgiu a idéia dos direitos

coletivos cuja titularidade é atribuída a um grupo de pessoas. O presente trabalho

pretende discutir o problema conceitual dos direitos coletivos diante da estrutura

liberal do Estado Democrático de Direito. Serão analisados: a origem das críticas

ao cunho individualista da teoria liberal, a retomada da idéia de identidades

coletivas, a relação entre direitos individuais e direitos coletivos e os diferentes

entendimentos sobre os direitos coletivos e sobre a teoria liberal do estado

democrático de direito. Por fim, serão procuradas as formas de tornar os direitos

coletivos compatíveis com o modelo de Estado Democrático de Direito, de forma

que possam servir à auto-realização dos indivíduos, sem a necessidade de

subversão de toda a teoria do direito, pensada com base em um modelo

subjetivista e individualista.

Palavras-chave

Direitos individuais, Direitos coletivos, Estado democrático, Identidade, Pertencimento, Intersubjetividade, Pluralismo.

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Abstract

Ribeiro, Samantha de Souza Moura; Cittadino, Gisele Guimarães (orientador). The Dynamics of Collective Rights from the Self-Comprehension of the Democratic State of Law. Rio de Janeiro, 2007. 123p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The consolidation of the democratic state of law, based on a liberal and

individualist doctrine, had made clear that the liberal ideas about freedom and

equality were not enough to really assure the fundamental rights for everybody.

This perception has begun a critical moment. The democratic state standard was

considered too individualistic and was seen as an encouragement to self-centered

interests. At this point, the idea of collective rights has emerged. Though, I intend

to discuss the concept of collective rights, considering the structure of the liberal

democratic state of law. I will analyze: the origin of the criticism about the liberal

theory’s individualistic basis; the idea of collective identities; the relation between

individual rights and collective rights and the different comprehensions about the

collective rights and the democratic state of law, in a liberalist view. Finally, I

intend to look for means to make collective rights compatible with the democratic

state of law, in a way that makes possible for people to achieve happiness and

make also possible to keep valid the modern theory of rights, based on an

individualistic and subjectivist model.

Keywords

Individual rights, Collective rights, Democratic state, Identity,

Membership, Inter-subjectivity, Pluralism.

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Sumário 1. Introdução 9 2. A Genealogia do debate. 13 2.1. Introdução 13 2.2. O Indivíduo Auto-Suficiente. 14 2.3. O Ideal de Inclusão 16 2.4. Independência e Liberdade 17 2.5. John Stuart Mill: a liberdade protegida pela individualidade. 20 2.6. Alexis de Tocqueville: combate ao individualismo 27 2.7. Conclusões 38 3. O Indivíduo e o Grupo 41 3.1. Introdução 41 3.2. Liberdade dos modernos versus Liberdade dos antigos 42 3.3. Jürgen Habermas: Equiprimordialidade das Autonomias 45 3.4. Axel Honneth: a Formação da Identidade 56 3.5. Conclusões 67 4. Direitos dos Grupos 71 4.1. Introdução 71 4.2. Os Direitos Coletivo na Formação da Cidadania 72 4.3. O Surgimento dos Direitos Coletivos 76 4.4. Direitos Individuais e Interesses Coletivos 78 4.5. Direitos Coletivos: uma Revolução Processual 81 4.6. Conclusões 83 5. Os Direitos de Grupo sob a Ótica Liberal 86 5.1. Introdução 86 5.2. Os Direitos Diferenciados de Grupos 88 5.2.1. Direitos de Grupo nos Estados Multiculturais 90 5.2.1.1 Direitos de auto-governo 91 5.2.1.2. Direitos poliétnicos 95 5.2.1.3. Direitos especiais de representação 98 5.2.2. O Liberalismo Bem Compreendido 100 5.3. A Liberdade Individual no Pluralismo 107 5.4. Conclusões 111 6. Conclusão 115 7. Bibliografia 119

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1 INTRODUÇÃO

Antes das grandes revoluções que trouxeram o ideário liberal de que os

homens nascem livres e iguais, dando fim aos privilégios de nascimento, os

direitos eram vinculados à noção de status e eram atribuídos com base na posição

ocupada pelo indivíduo na ordem vertical estratificada. Os direitos eram

atribuídos em função do pertencimento a determinado grupo.

O Estado Liberal Democrático veio como reação a essa forma de

atribuição de direitos, anunciando que todos os homens são livres e portadores de

iguais direitos. Essa noção de liberdade individual trouxe a noção de

consentimento individual e também de responsabilidade individual. Foi sendo

difundida a crença de que todos os homens nasciam em igualdade de condições e

eram capazes de prosperar em todas as esferas da vida. Assim, se um indivíduo

não conseguia um bom nível de vida, ou não conseguia um emprego, a ninguém

mais podia culpar, a não ser a si próprio. Todos podiam conseguir o que

quisessem desde que se esforçassem.

Entretanto, com a consolidação do Estado Democrático de Direito, foi se

tornando claro que essa idéia de uma igualdade de condições original não

correspondia à verdade. A garantia dos direitos civis individuais, tão caros ao

modelo de Estado Liberal, não ultrapassava o formalismo. Na prática tal garantia

mostrava-se insuficiente para gerar na vida das pessoas condições de igualdade e

de liberdade. De fato, parecia impossível dentro dessa estrutura de estado atribuir

igual valor aos ideais de igualdade e de liberdade. Assim, surgiu um aparente

paradoxo dentro do ideário liberal.

Toda a estrutura do Estado Liberal Democrático foi pensada com base na

liberdade original que tornou os indivíduos capazes de consentir livremente com a

formação de uma comunidade composta de indivíduos livres e portadores de

direitos exigíveis iguais. Assim, surgiu um modelo de Estado interligado à noção

de direitos individuais subjetivos. O ideal a ser alcançado é a garantia de iguais

liberdades subjetivas para todos e dos direitos de cidadania necessários à

legitimação democrática.

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Ocorre que, com a lógica individualista do modelo liberal, ficou a

impressão de que a liberdade era garantida em detrimento da igualdade. Com base

nessa suposta ineficiência intrínseca do sistema, surgiram críticas e movimentos

militantes que questionavam a visão liberal. O objetivo era combater a premissa

de que o indivíduo considerado isoladamente precede a sociedade e a conclusão

que daí pode surgir no sentido de que os interesses individuais devem prevalecer

sobre os públicos, bem como a autonomia privada deve ter precedência sobre a

pública. Exatamente no combate a essas idéias que surgiu o impulso de se recorrer

aos grupos e aos direitos coletivos.

A igualdade material, de fato, só pode ser realizada se os sujeitos, no

exercício de sua autonomia pública, conseguem considerar as diferenças e tomar

uma decisão sobre os critérios de igualdade e desigualdade que utilizarão para

analisar as diversas situações e definir o tratamento a ser dado aos cidadãos.

Alguns indivíduos são privados da realização plena da sua cidadania em função de

algum aspecto de sua identidade. Em função dessa mesma privação, inicia-se a

luta por direitos diferenciados dentro do Estado Democrático.

Diante disso, cabe refletir sobre a possibilidade de se considerar os direitos

coletivos inseridos na estrutura desse modelo de Estado Democrático, pensado e

estruturado sobre bases individualistas. Caberá verificar se é possível considerar

um grupo como sujeito de direitos dentro da estrutura consolidada de Estado

Democrático ou se, para aderir à idéia de direitos coletivos, faz-se

necessariamente uma opção no sentido de colocar abaixo toda a teoria de direitos

individuais subjetivos, sobre a qual se consolidou o Estado Democrático de

Direito. Ou seja, a proposta é pensar sobre possibilidades de conciliar a auto-

realização individual com as disputas axiológicas entre grupos e também

investigar se os direitos coletivos existem conceitualmente ou fazem parte de uma

estratégia para realizar na prática os direitos que eram garantidos em teoria.

Com o fim de realizar tal investigação, será apresentada uma dissertação

eminentemente teórica que é resultado de pesquisas bibliográficas. A utilização de

autores com marcos teóricos aparentemente distintos poderia ter sido um

empecilho metodológico, contudo, em virtude do corte temático, tal união não se

tornou um problema. Cabe ressaltar ainda que, com o objetivo de dar ao leitor a

possibilidade de um estudo mais direcionado, optou-se por capítulos com

introdução e conclusão próprias, apesar de interligados.

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O trabalho será dividido em quatro capítulos: A Genealogia do Debate, O

Indivíduo e o Grupo, Os Direitos dos Grupos e Os Direitos de Grupo Sob a Ótica

Liberal.

O primeiro capítulo versará sobre o surgimento e consolidação do Estado

Liberal e seu ideário. Serão apresentados os conceitos de indivíduo, liberdade e

igualdade preenchidos de acordo com os princípios iluministas e liberais da época.

O pensamento de John Stuart Mill voltado para a realidade paradigmática da

Inglaterra será trazido para discutir esses conceitos, em especial a liberdade. Em

seguida será explorado o trabalho de Aléxis de Tocqueville sobre a democracia

que surgia na América, onde os cidadãos eram originalmente livres. O objetivo

será discutir as expectativas e receios que rodeavam o surgimento do modelo

liberal de estado e apontar os germes de discussões atuais sobre a igualdade e a

liberdade; o indivíduo e o grupo.

No segundo capítulo que conta com marcante influência dos ensinamentos

da psicanálise freudiana, será abordada a discussão sobre precedência entre

soberania popular e direitos humanos e também a questão da formação

intersubjetiva da identidade. Nesse sentido, será utilizado o pensamento

habermasiano que demonstra através da teoria do discurso a necessária co-

originalidade e equiprimordialidade das autonomias pública e privada dentro da

estrutura do Estado Democrático de Direito. A partir deste ponto, será trazido o

trabalho de Axel Honneth que compartilha com Habermas as idéias de que a

formação da identidade pressupõe a alteridade e a interação e que o direito

funciona como fator de equilíbrio entre as necessidades e aspirações do ego e a

necessidade de interação. Honneth apontará a importância das lutas por

reconhecimento nas diversas dimensões de formação da identidade. Nesse

capítulo ficará destacada a importância dos grupos para a auto-realização do

indivíduo.

O terceiro capítulo, então, abordará a discussão teórica sobre as origens e

conceituações dos direitos coletivos. Inicialmente, a visão sociológica de T. H.

Marshall será utilizada para identificar o surgimento dos direitos atribuídos a

coletividades. Depois, a partir de posicionamentos teóricos encontrados na

doutrina especializada, serão apresentadas outras formas de se pensar o

surgimento dos direitos coletivos. Mais adiante será desenvolvida uma

contraposição entre as noções de direitos coletivos e de direitos individuais para,

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por fim, fazer uma análise do forte caráter processual da noção de direitos

coletivos que revolucionou o acesso aos direitos.

Por fim, o último capítulo será preenchido pela resposta que pode ser

encontrada, dentro do pensamento democrático e liberal para o problema da

inserção dos direitos coletivos na estrutura do Estado Democrático de Direito.

Apontando os cuidados e preocupações exigidas pela coerência e lealdade aos

ideais liberais, serão procuradas formas de inserção dos direitos de grupos sem a

subversão da teoria de direitos do Estado Democrático. Para essa busca, os

pensamentos de Jürgen Habermas e de Will Kymlicka extremamente elucidativos

serão apresentados em detalhes.

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2 A Genealogia do debate. 2.1 Introdução

Neste primeiro capítulo, serão abordados os precedentes e a

contextualização do surgimento e da consolidação do ideário do Estado Liberal.

Tal análise torna-se fundamental para a compreensão das origens do debate

contemporâneo sobre o problema conceitual dos direitos coletivos inseridos na

estrutura do Estado Democrático de Direito. Primeiramente, serão apresentados

brevemente a importância e o conteúdo atribuídos aos conceitos de indivíduo,

igualdade e liberdade quando do surgimento do Estado Liberal na Europa dos

séculos XVIII e XIX. O caso inglês, enquanto precursor do Estado Liberal e,

portanto, paradigmático, será a grande referência dessa exposição.

Em seguida, serão trazidos os pensamentos do inglês John Stuart Mill e do

francês Alexis de Tocqueville. Através do primeiro, torna-se possível refletir, de

forma mais aprofundada, sobre os pilares do Estado Liberal que se formava na

Inglaterra, sobretudo o conceito de liberdade. Já com Tocqueville, o olhar deixará

um pouco o contexto europeu e se voltará para os primeiros passos da democracia

dos Pais Fundadores, no século XIX. A partir das magistrais observações desse

liberal francês, é possível identificar e discutir os avanços e os problemas desse

Estado liberal e democrático que se formava.

O consenso histórico aponta as lutas políticas vencedoras da Revolução

Gloriosa como o marco do surgimento do liberalismo1. Entre a Revolução

Gloriosa e a Revolução Francesa, o liberalismo era identificado com a forma de

governo existente na Inglaterra, fundada em poder monárquico limitado e na

garantia de liberdades civil e religiosa. A gradual divisão e limitação do poder do

Estado que resultou nos Estados ocidentais industriais e democráticos a partir de

1870 significava o início do processo de consolidação dos ideais liberais, como a

1 MERQUIOR, José Guilherme. O Liberalismo Antigo e Moderno. Tradução Henrique de Araújo Mesquita. Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 1991. Pág. 16

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mobilidade social, a liberdade religiosa, o sistema representativo, a legalidade e os

direitos humanos.

2.2 O Indivíduo Auto-Suficiente.

Na Inglaterra, com o processo de industrialização, o modelo do Estado

Liberal começou a ser formulado tendo como centro o perfil do homem vitoriano,

que servia como modelo de generalização do indivíduo médio ou do indivíduo

ideal. O homem vitoriano era o homem trabalhador de classe média que venceu

por si mesmo, libertando-se das restrições e barreiras provenientes dos privilégios

da velha ordem aristocrática. Era o homem com caráter, ou seja, capaz “de se

elevar acima dos instintos e paixões sensuais e animais, por meio da força de

vontade” 2. Para esse indivíduo, sempre estaria garantida, na nova ordem, a

possibilidade de conseguir independência e igualdade nas relações contratuais,

dispensando caridades e o paternalismo da aristocracia.

Tais indivíduos participavam do processo de substituição das relações

verticais, baseadas na dependência e no patronato, pela ordem das solidariedades

horizontais de classe, na qual havia oportunidades para qualquer indivíduo

esforçado e talentoso.

“A visão de uma hierarquia natural foi abandonada e substituída pela idéia de que os indivíduos nasciam livres e iguais e possuíam direitos derivados de suas habilidades inatas como seres humanos. O contrato substituiu o status como princípio organizador da sociedade. Em vez de constranger os indivíduos, a ordem social refletia os acordos e as associações que eles firmavam livremente em seu próprio benefício. Os indivíduos não estavam mais confinados às suas respectivas posições e deveres, mas tinham a obrigação de trabalhar arduamente e receber as recompensas a que seus talentos os habilitavam”. 3 Era uma sociedade de livre mobilidade social em que a ascensão e o

sucesso de cada um dependia exclusivamente de sua capacidade e de seu próprio

esforço. Qualquer fracasso ou incapacidade de se adaptar ao ritmo da nova ordem

industrial era considerado consequência de perversão e falta de caráter. Disso

resultava que o progresso e a modernização da sociedade dependiam do esforço e

2 BELLAMY, Richard. Liberalismo e Sociedade Moderna. Tradução de Magda Lopes. Editora Unesp. São Paulo, 1992. Pág. 22 3 BELLAMY. Op. Cit. Pág. 28

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da moralidade de cada um. Da mesma forma, a ausência de tal esforço e energia

geraria a decadência nacional, com a soma de indivíduos pervertidos e sem

caráter.

Uma vez que o raciocínio liberal vinculava o sucesso coletivo e individual

ao caráter e à moralidade individuais, a abordagem dos problemas e das evoluções

eram sempre individualistas e a preocupação era garantir todas as condições

favoráveis ao desenvolvimento e aperfeiçoamento pessoais. Nesse contexto, o

Estado devia intervir o menos possível e a política do laissez-faire era defendida

ardorosamente em nome da livre concorrência que seria a força que impulsionaria

os homens a se adaptar ao novo ritmo da economia e do comércio, gerando a

modernização da sociedade. A competição levaria ao equilíbrio social.

O liberalismo, de uma forma geral, foi formado pela luta por direitos. A

cultura moderna liberal se relacionava com a ampliação quantitativa e qualitativa

de direitos individuais. A reforma protestante e todas as revoluções que puseram

abaixo os paradigmas orgânicos da velha ordem estratificada, trouxeram a

afirmação da consciência individual e uma visão atomista do mundo.

“Somente na visão liberal do homem e do mundo, o indivíduo ocupa o lugar central... A individualidade plena dotada de um potencial de desenvolvimento, próximo ao infinito era uma peculiaridade do homem moderno que não existia no homem medieval, nem no grego ou romano”. 4

A visão da sociedade civil composta por indivíduos independentes que

antecediam a formação da sociedade e eram capazes de enfrentar o mundo por si

foi coroada pela promulgação do Código de Napoleão, o código dos direitos civis

do cidadão médio proprietário5. Nesse contexto, a noção de direitos como

reivindicações, com um forte lado subjetivo, em substituição à noção mais

genérica de direito como justiça, foi se tornando um dos pilares do Estado Liberal.

O próprio direito natural foi reformulado, partindo, segundo a formulação

de Grotius, da natureza das coisas para a natureza do homem. A formulação

individualista foi o cerne do contratualismo. As obrigações passaram a decorrer de

4 MERQUIOR, José Guilherme. Algumas Reflexões sobre os Liberalismos Contemporâneos. Instituto Liberal. Rio de Janeiro, 1991. 5 Cabe ressaltar que o conteúdo dessa codificação e das ulteriores codificações de legislação civil corroboram a interpretação de Macpherson, para quem a concepção de indivíduo proveniente do século XVII estava ligada conceitualmente à noção de proprietário. MACPHERSON, C. B. A Teoria Política do Individualismo Possessivo. De Hobbes a Locke. Tradução de Nelson Dantas. Paz e Terra, 1979.

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promessas feitas livremente e de pactos firmados por indivíduos livres. Bem antes

de Hobbes e de Locke, já havia a teoria do consentimento como base da

autoridade legítima, mas tal ato era tido como corporativo e emanado da

comunidade.

Coube aos pensadores modernos do século XVII a tarefa de trazer a noção

de consentimento pelos indivíduos. Locke inovou ao caracterizar o consentimento

como periódico e condicional. Por considerar que os indivíduos tinham direitos

que precediam o Estado, ele considerou que, no pacto social, os indivíduos apenas

alienaram o direito de uso da força, mas mantiveram todos os outros. Por esse

motivo, há na teoria política de Locke o direito à resistência e à revolução.

Desse modo, em resumo, pode-se dizer que o marco da modernidade

liberal foi combinar direitos e consentimento com uma visão individualista e não

hierárquica da sociedade. Ou seja, a partir do indivíduo, via-se um mundo de

liberdades iguais.

2.3 O Ideal de Inclusão

É importante notar que, diferentemente da qualidade “livre” que contém

em si um significado absoluto, a qualificação de igual precisa de complemento. Se

existe a afirmação de que alguém é igual, logo vêm as indagações: “igual a

quem?” “igual em que?”.6

O postulado revolucionário liberal que ecoou por toda a Europa Ocidental

quando do fim do Antigo Regime já surgiu respondendo a primeira pergunta e

pretendendo dar um conteúdo absoluto à igualdade a partir da declaração “todos

são iguais”. O que havia de mais revolucionário nessa afirmação não era o

predicado, tão vago, mas sim o sujeito; a amplitude do sujeito. Pela primeira vez

se abrangeu “todos”. A tão temida igualdade ganhou um significado absoluto não

pelo termo em si, mas pelo “todos”. Mesmo que fosse um dever ou um castigo,

indiferentemente do conteúdo que preenchesse essa idéia de igualdade, ela devia

abranger todos, no lugar de alguns ou de um estamento.

6 BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. Tradução Carlos Nelson Coutinho. 3ª Edição. Ediouro. Rio de Janeiro, 1997. Pág.23.

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Posteriormente, os liberais que bradavam pela igualdade sofreram com a

ambiguidade de seus sentimentos que, por um lado, apontavam para o fim de

privilégios e pulsavam pela igualdade e, por outro, relutavam em aceitar a

extensão do princípio a todos. Preocupavam-se com os males que a igualdade

poderia causar à individualidade e à liberdade.

O fato é que com a formação do Estado Liberal Burguês, o princípio da

igualdade surgiu como uma grande conquista, mas ficou reduzido a uma

concepção puramente formal. Concebida para pôr fim aos privilégios do Antigo

Regime e para impedir discriminações decorrentes da hierarquia estratificada da

sociedade de classes, a igualdade tendia a se efetivar apenas através da proibição

de leis que desigualassem os homens ou que fossem aplicadas de forma

diferenciada.

Estabelecida a igualdade entre os homens, a partir da quebra dos

privilégios de nascimento da ordem aristocrática estratificada, cabia agora

garantir, a cada um, o espaço de liberdade necessário para o auto-

desenvolvimento. Assim, o ônus da justificação cabia não à ação individual, mas à

intervenção do Estado que, em regra, devia atuar minimamente, apenas garantindo

a paz e a segurança.

2.4 Independência e Liberdade

Pode-se dizer que o ideário liberal, apesar de ter expandido, ultrapassando

essa relação, surgiu, com grande força, da tensão entre o indivíduo e o Estado. O

progresso tecnológico e científico veio inaugurar uma visão antropocêntrica do

mundo que procurava afirmar o indivíduo. Era necessário fazê-lo ante o Estado.

Nesse sentido, não obstante ser possível utilizar o caso inglês como paradigmático

do modelo de Estado Liberal europeu, cumpre ressaltar que, nessa relação, a

Inglaterra se diferenciou bastante de casos como o francês, e como o da maioria

dos Estados, que implementou os ideiais liberais de forma mais abrupta.7

A rápida ascensão de agricultores livres na Inglaterra superou a hierarquia

da sociedade tradicional. O Estado unitário precoce foi formado com base em

7 MERQUIOR. Op. Cit. Págs 27 e 28.

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indivíduos independentes, criando uma relação mais de parceria do que de

subordinação. Na França, somente a Revolução foi capaz de romper a ordem

hierárquica fechada. Repentinamente a legitimidade política do Antigo Regime se

perdeu e diante da falta de uma ordem legítima estabelecida, era necessário que o

Estado libertasse os indivíduos a partir da garantia de direitos. O Estado que

surgiu daí mantinha-se como a única fonte de autoridade e inacessível à sociedade

civil. Por esse motivo, a relação entre Estado e indivíduo na França se consolidou

de uma forma muito mais tensa do que na Inglaterra. Em consequência, na França,

o que se buscava era fortalecer o Estado, a fim de garantir a igualdade diante da

lei, enquanto na Inglaterra, os liberais lutavam pela completa limitação do poder

estatal. Surgiram daí duas escolas de pensamento.

Havia, por um lado, a Escola inglesa, que historicamente se identificava

com a preocupação da garantia de liberdade, como ausência de coerção. A noção

histórica de liberdade, identificada com virtude cívica foi frontalmente combatida

desde Hobbes, para quem somente a liberdade civil importava, uma vez instituído

um governo. A liberdade do pensamento clássico inglês era identificada como

liberdade exterior à lei e não por meio dela, como a tradicional liberdade política.

Trata-se da idéia de liberdade negativa.

Por outro lado, a Escola Francesa, tendo como marco teórico Jean-Jacques

Rousseau, defendia a autodeterminação como a mais elevada forma de liberdade e

considerava que a política devia refletir a autonomia da personalidade. Rousseau

era um individualista radical. Sua luta era contra o particularismo e não contra o

individualismo. Rousseau usou o conceito de soberania indivisível para

subordinar o governo ao povo, substituindo a autocracia pela democracia.

De uma forma geral, o pensamento liberal clássico, seguindo a tendência

inglesa, compreendia liberdade como ausência de constrangimento, impedimento

ou coerção. Mas dessa definição ampla, há incontáveis desdobramentos. É

possível depreender quatro tipos básicos de liberdade que se apresentam na ordem

histórica de surgimento. São elas: liberdade como intitulamento, liberdade

política, liberdade de consciência e de crença e, por fim, liberdade de realização

pessoal.8

8 MERQUIOR, José Guilherme. Op. Cit. Pág. 23 e ss.

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A primeira é definida como fruição sem interferências arbitrárias de

direitos estabelecidos, decorrentes de papéis sociais protegidos pela lei ou pelo

costume. Apesar de relacionado a um sentimento de dignidade, tal sentimento é

vinculado a determinadas posições sociais. A segunda é a que garante a

participação na administração da comunidade. A terceira se relaciona ao

pluralismo religioso e à secularização do Estado. Por fim, a liberdade

individualista, como realização e conquista pessoais, a liberdade de dirigir a vida

conforme as próprias concepções de bem.9

De outra forma, pode-se reduzir essa classificação e considerar apenas os

dois sentidos de liberdade: negativo e positivo. O primeiro, relativo à ação e se

caracteriza pela ausência de impedimento ou de constrangimento. A liberdade

positiva é relativa ao querer, no sentido de poder orientar a vontade e tomar

decisões sem estar submetido ao querer dos outros. A liberdade positiva também

tem o sentido de autonomia ou autodeterminação.10

Cabe notar, nesse ponto, que grande parte da discussão liberal sobre a

liberdade acabou se situando nessa contraposição entre as liberdades negativa e

positiva, através de leituras das tendências já apresentadas, trazidas pelas Escolas

de pensamento inglesa e francesa, respectivamente.11

Muito importante, no que concerne ao pensamento liberal, era a noção de

liberdade vinculada inafastavelmente à individualidade, promovendo e sendo

promovida pela busca dos indivíduos pelo autodesenvolvimento. Nesse particular,

o pensamento de John Stuart Mill, como expoente do liberalismo inglês, trouxe

contribuições valiosíssimas. Como será demonstrado adiante, ele dava

importância primordial à liberdade, que considerava fundamental para a

realização pessoal e para o progresso social. O conceito de liberdade, para ele,

estava necessariamente vinculado ao caráter,12 que era o que distinguia os homens

9 Tal conceito de liberdade que pode ser dito o mais moderno e mais liberal dos quatro apresentados tem um papel central no pensamento de Johns Stuart Mill, como será demonstrado mais adiante. 10 Bobbio ressalta que a liberdade negativa normalmente é definida com relação apenas à ausência de impedimento por um motivo histórico: quando o problema da liberdade se tornou politicamente relevante, com a luta pelas liberdades civis, o que se tinha a combater eram impedimentos e não constrangimento. Igualdade e Liberdade. Tradução Carlos Nelson Coutinho. 3ª Edição. Ediouro. Rio de Janeiro, 1997. Pág 50. 11Muito citado, com relação a essa discussão, é o ensaio de Benjamin Constant, “Liberdade Antiga e Moderna”, em que ele contrapõe a liberdade dos antigos ( a positiva e política) e dos modernos (a negativa e privada). 12 No sentido explicitado anteriormente.

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dos animais. Desvinculada de caráter, a liberdade degenera-se em licenciosidade

animal.

2.5 John Stuart Mill: a liberdade protegida pela individualidade.

Nascido em 1806, na Inglaterra, John Stuart Mill, desde cedo recebeu

educação e foi preparado pelo pai James Mill, ardoroso seguidor de Bentham,

para ser o herdeiro legítimo da filosofia utilitarista. Na mocidade, seguiu os planos

do pai e foi um utilitarista radical. Mais tarde, depois de sofrer uma crise nervosa,

passou a questionar os ensinamentos do pai e se dedicou a enaltecer o governo

popular. De fato, ao mesmo tempo em que declarava que a melhor forma de

governo era a democrática, argumentava contra alguns de seus princípios

fundamentais. 13 Tal ambigüidade com relação ao governo popular era bem

característica do pensamento liberal inglês. Cabe ressaltar que, ultrapassando a

relação entre o Estado e o indivíduo, era com a liberdade individual de opinião

que Mill se preocupava, buscando protegê-la contra a interferência da autoridade

coletiva da opinião pública, conforme sua tese na obra “Da Liberdade”.

Dizia ele que o problema da limitação do poder do Estado havia sido

superado pelo surgimento dos governos representativos eletivos e temporários.

Contudo, tal estrutura originou outro poder a ser temido e limitado. A idéia de que

o governo representativo correspondia diretamente ao governo pelo povo, sendo o

interesse manifestado por ele o interesse da nação, podendo, portanto, prescindir

de limitação, mostrou-se falsa.

“O ‘povo’ que exerce o poder nem sempre é o mesmo povo sobre o qual se exerce o poder; e o ‘autogoverno’ de que se fala não é governo de cada um por si mesmo, mas o de cada um por todos os restantes. Além disso, a vontade do povo significa praticamente a vontade da parte mais numerosa ou mais ativa do povo – a maioria ou aqueles que conseguem fazer-se aceitos como maioria; em consequência, o povo pode desejar oprimir uma parte da sua totalidade, tornando-se necessárias precauções contra essa atitude bem como contra qualquer outro abuso de poder”. 14

13 Defendia a tese da maximização da responsabilidade, através do voto plural para os mais bem qualificados e sem voto secreto. 14 MILL, John Stuart. Da Liberdade. Tradução de E. Jacy Monteiro. Coleção Clássicos da Democracia. Vol. 1. IBRASA. São Paulo, 1963. Pág 6.

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Para Mill, era de extrema importância limitar a interferência da opinião

coletiva na esfera de decisão da vida individual, com o objetivo de evitar a “tirania

da maioria” que seria tão perversa quanto qualquer despotismo político. Mesmo a

moralidade, as preferências e aversões da sociedade, ou da sua parte poderosa,

eram fator determinante das regras de observação geral.

Na Inglaterra, segundo o autor, a opinião tinha mais peso e a lei menos do

que em outros lugares. Isso porque subsistia a prevenção contra a interferência

direta do legislativo e do executivo na vida privada, posto que ainda eram vistos

como portadores de interesses contrários ao público. Quando a maioria começasse

a sentir o poder do governo como seu, a liberdade individual estaria ameaçada

pelo governo tanto quanto já era pela opinião pública. Era preciso encontrar uma

fórmula capaz de proteger a liberdade individual contra interferências da

sociedade.

Mill sustentava o que chamava de “princípio muito simples”, segundo o

qual, a “autoproteção” era o único fim que justificava a intervenção individual ou

coletiva dos homens entre si. Ou seja, era necessário demonstrar que a conduta

que se pretendia impedir causaria dano a outrem,15 pois, o indivíduo só era

responsável perante a sociedade pela parte da sua conduta que se relacionava com

terceiros; naquela parte que dizia respeito somente a si mesmo, a liberdade e

independência do indivíduo haviam de ser absolutas.16

Essa esfera de liberdade individual relacionada exclusivamente ao próprio

indivíduo compreendia, de acordo com o princípio, o domínio interior da

consciência, a liberdade de pensamento, de sentimento, de opinião e, inclusive de

expressão, que, apesar de já estar ligada a relações com terceiros, é parte

inseparável das outras. O princípio também prescrevia que houvesse liberdade de

gostos e ocupações, que os indivíduos pudessem viver a vida conforme o que

desejassem, sem impedimentos de terceiros. Ele relacionava a felicidade humana

15 Mill ressaltava que a conduta a ser afastada também podia consistir em um ato omissivo, igualmente capaz de causar danos a outrem. Sendo a interferência, então também justificada. Op. Cit. Pág. 14. 16 A única exceção nesse ponto é a de que o indivíduo não estaria livre para se tornar não-livre. A venda de si como escravo seria nula. Considerava o casamento, apesar de costumeiramente válido, também um contrato de abdicação da liberdade.

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ao desenvolvimento do caráter. Assim, a experiência suficiente e a satisfação

racional das vontades transformariam o indivíduo em um ser superior.17

Não desvinculava o direito da idéia de utilidade, mas utilizava o conceito

de utilidade no sentido mais amplo de interesses permanentes do homem voltado

ao progresso. Assim, ainda que julgassem a conduta errônea e insensata, terceiros

não podiam intervir, a menos que fosse para evitar danos. Por último, decorria do

princípio, a liberdade de os indivíduos combinarem suas liberdades e unirem

esforços para qualquer fim.

Nenhuma sociedade poderia ser livre se não garantisse essas liberdades em

conjunto e de forma absoluta. Essa doutrina, segundo o autor, não era nova, mas

era a mais oposta à opinião e à prática existentes. A tendência geral e

generalizante era forçar os indivíduos aos padrões de escolhas pessoais e sociais,

impedindo a divergência de opiniões. Ele via uma forte inclinação no sentido de

dilatação dos poderes da sociedade sobre o indivíduo, e tal processo deveria ser

combatido através da proteção e ampliação das liberdades de pensamento e de

expressão, parte da política de qualquer país que aceite a tolerância religiosa e as

instituições livres.

A tese defendia pelo autor consistia na defesa, em qualquer circunstância,

do direito de todo e qualquer indivíduo de expressar suas opiniões, ainda que

fossem divergentes e minoritárias. O silenciamento de uma opinião, ainda que ela

seja única e contrarie a opinião pacífica de uma sociedade inteira, só pode resultar

em mal.

Em primeiro lugar, a opinião não se torna infalível por ser sustentada pela

grande maioria. A história é rica em exemplos que demonstram como a opinião de

uma época e de um povo inteiro pode ser tão falível, como a de qualquer

indivíduo isoladamente.18 O sentimento de certeza que alguém pode ter em

relação a uma doutrina não é mal em si, diz respeito apenas ao indivíduo. O que

não se deve permitir é que essas pessoas que têm certeza decidam por terceiros,

sem permitir que estes ouçam o outro lado.

Algumas pessoas chegaram a defender que uma opinião ou doutrina que

surja em oposição à dominante deverá sofrer perseguição, pois, sendo verdade,

17 Acreditava que apenas os prazeres inferiores poderiam divergir, não considerava a possibilidade de choques entre as liberdades superiores. 18 O autor dá exemplos da condenação de Sócrates e de Jesus.

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passaria por essa provação. Mill, mais uma vez, usou a história para demonstrar a

falsidade desse argumento, já que a verdade não tem um poder superior inerente à

qualidade de verdade. Na Inglaterra, do seu tempo, não havia mais pena de morte

para hereges, mas havia ainda penalidades sociais e legais vinculadas à expressão

de determinada opinião.19 Ele chamava a atenção para o fato de que ainda existia

intolerância e perseguição religiosa no seu país.20

A segunda hipótese é a da verdade da opinião dominante. Caso ela não

seja combatida e discutida, tornar-se-á dogma morto. A verdade e a utilidade de

uma posição é reavivada e aprofundada, à medida em que ela é contestada,

fazendo transparecer aspectos não considerados da questão. Para defender de

forma eficiente uma posição, é salutar que se conheça as razões contrárias.

A terceira hipótese e mais comum ocorre quando a opinião dominante

corresponde à verdade, mas não à toda verdade. Há uma outra parte que aparece

na opinião divergente.

“Quando se encontram pessoas que formam exceção à unanimidade aparente do mundo com respeito a qualquer assunto, mesmo se o mundo estiver do lado da razão, é sempre provável que os dissidentes tenham algo a dizer digno de ouvir-se, e que a verdade perderia algo se não se manifestassem”. 21

Afinal, é a oposição que conserva cada qual nos limites da razão e a

verdade consiste em reconciliar opostos, a partir da luta entre posições

antagônicas. Deve-se apenas cuidar para que sempre sejam ouvidos todos os

lados:

“Quando atentam para um único os erros endurecem em preconceitos e a própria verdade deixa de exercer o efeito de verdade, passando a ser exagerada em mentira”. 22

19 Nesse ponto, é extremamente pertinente o exemplo que o autor destaca sobre o depoimento de ateus nos tribunais. Só podiam testemunhar perante os tribunais aqueles que acreditavam em um deus, pois, caso contrário, o juramento não tinha valor. Ele aponta para a incoerência da norma que, assumindo que os ateus eram mentirosos, só admitia o testemunho dos que mentiam dizendo professar uma determinda fé, rejeitando os que se mantinham fiéis aos seus princípios, admitindo ser ateus. MILL. Op. Cit. Pág 35. 20 O autor transcreve o discurso do Subsecretário de Estado, em 1857, referindo-se aos hindus: “A tolerância para com a fé que professam (de cem milhões de súditos ingleses) superstição que chamam de religião, por parte do governo britânico teve por efeito retardar a ascendência do nome inglês, impedindo o desenvolvimento salutar do cristianismo...A tolerância foi pedra angular das liberdades religiosas desse país, mas que ninguém abuse desta preciosa palavra ‘tolerância’. Conforme a entendia, significava liberdade para todos, liberdade de culto, entre cristãos, que cultuam sob o mesmo fundamento”. MILL. Op Cit. Pág. 37. 21 MILL. Op. Cit. Pág 55. 22 MILL. Op. Cit. Pág. 59

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Defendida a importância da garantia da liberdade de opinião, o autor se

dedicou a demonstrar a importância de propiciar as condições necessárias para

que os indivíduos orientem as suas ações de acordo com suas opiniões, sem

obstáculos físicos ou morais. Em questões não relacionadas primariamente com

terceiros, a individualidade deve se afirmar. Onde a regra de conduta dos

indivíduos não se origina do caráter de cada um, mas, ao contrário, baseia-se nas

tradições e nos costumes, não há campo fértil para o progresso individual e social.

Mill tentava evitar o perigo de a sociedade se sobrepor ao indivíduo, o que, para

ele, ameaçava a natureza humana, a partir da deficiência de impulsos e

preferências pessoais. Ele identificava individualidade com desenvolvimento.23

Dizia que a única fonte de desenvolvimento é a liberdade, posto que ela possibilita

a existência de tantos centros de melhoramento independentes quantos são os

indivíduos.

Em relação à interferência do Estado, pelas mesmas razões pelas quais

defendia o livre comércio, ele sustentava que a interferência, mesmo quando não

atinge a liberdade por não estar ligada a restrições, também deve suscitar objeções

por motivo de eficiência, (quando os indivíduos podem agir melhor do que o

governo no assunto determinado); para evitar a rigidez e o autoritarismo da

burocracia; e para estimular a moralidade individual.

Nos Estados Unidos, o povo acostumado a resolver seus problemas de

perto não teria dificuldades para improvisar um grupo de cidadãos para levar

adiante o negócio público se ficassem sem governo. Nunca uma burocracia faria

homens como esses suportar o que não lhes agradasse. Mas quando tudo se faz

por meio da burocracia, o oposto se dá. Quanto mais perfeita for essa organização,

mais ela atrairá as pessoas de maior capacidade, acabando com a possibilidade de

oposições talentosas na sociedade.24

Faz parte da educação agir. Por isso são recomendáveis as instituições

locais e municipais livres e populares e a conduta mediante associações

voluntárias. Tal prática faz parte da educação de um povo livre, posto que faz com

que os indivíduos saiam do seu círculo egoísta de interesses pessoais e familiares,

23 O valor de um Estado no correr do tempo consiste no valor dos indivíduos que o formam. 24 Por esse mesmo motivo, Mill era contra o monopólio pelo Estado da educação. Dizia que isso daria muito poder à burocracia que poderia moldar o caráter dos indivíduos. A educação e a avaliação correta dos próprios interesses andam juntas.

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acostumando-se com os empreendimentos em comum e passando a agir por

motivos públicos e por objetivos que os unam ao invés de isolá-los uns dos outros.

Dizia, todavia, que ao Estado cabia o dever de vigilância sobre a forma

como um indivíduo exercia poder sobre o outro. E, nesse ponto, defendia uma

visão progressista em relação à mulher.

“Não será preciso comentar aqui o poder quase despótico dos maridos sobre as mulheres, porque nada mais seria necessário para remoção completa do mal senão conceder às mulheres os mesmos direitos, fazendo com que recebam a mesma proteção da lei de que gozam todas as outras pessoas; e porque, neste assunto, os defensores da injustiça estabelecida não se prevalecem da alegação de liberdade mas se apresentam como campeões do poder”. 25

A interferência seria legítima quando do ato do indivíduo decorresse dano

ou risco definido de dano. O caso deixava a esfera da liberdade e passava à da

moralidade e à da lei.26 Quando a conduta, sendo prejudicial aos outros, não

chegava a violar-lhes direitos constitucionais, podia ser punida apenas pela

opinião, nunca pela lei. As pessoas têm o direito de exercer sua individualidade e

este compreende a faculdade de agir conforme a opinião desfavorável que têm das

outras. Contudo, o público não pode intervir na conduta puramente pessoal. A

opinião da maioria não pode ser imposta à minoria como lei, no que tange às

escolhas pessoais.

Essa limitação deve ser cuidadosamente garantida, de vez que uma das

inclinações humanas mais universais consiste em estender tais limites no sentido

de dilatar a política moral e usurpar a liberdade do indivíduo. Nesse sentido, o

autor faz observações que não poderiam ser mais atuais, sobre a sugestão dada por

um escritor27 de realizar não uma cruzada, mas uma “civilizada” contra certa

comunidade poligâmica que considerava retrógrada.

“Assim também se me afigura, mas não percebo que tenha qualquer comunidade o direito de forçar outra a civilizar-se. Enquanto os que sofrem em virtude da lei má não invocarem o auxílio de outras comunidades, não posso admitir que venham pessoas, que relação alguma têm com eles, exigir que se ponha fim a uma situação que parece satisfazer a quantos estão diretamente interessados, só porque constitui escândalo a pessoas situadas a milhares de quilômetros de distância, que não tomam parte nem têm interesse nela.”

25 MILL. Op. Cit. Pág 118. O autor escreveu um ensaio apenas sobre a questão feminina: The subjection of Women (1869). 26 Não sendo certo o dano, ao Estado cumpre avisar. Por exemplo marcando um veneno com uma palavra expressiva dos males que pode causar. 27 Ele não revela o nome. MILL, Op. Cit. Pág. 105.

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Mill acreditava na diferença como fator impulsionador do progresso.

Através da livre discussão, da diversidade de opiniões e experiências, era, para ele

possível chegar a caminhos e soluções originais, levando ao progresso e ao

desenvolvimento.28 Dizia que a desigualdade entre as pessoas estimulava o

melhoramento a partir da comparação e possibilitava a combinação das vantagens

de um tipo e de outro para gerar um terceiro ainda melhor.

“Não é desgastando no sentido da uniformidade tudo que é individual nos homens, mas cultivando-o e suscitando-o, dentro dos limites impostos pelos direitos e interesses de terceiros, que os seres humanos se tornam objeto de contemplação, nobre e belo; (...) Na proporção do desenvolvimento da própria individualidade, cada pessoa se torna de maior valia para si mesma, sendo, portanto, capaz de se tornar mais valiosa para outrem.” 29

O autor temia as massas uniformizadas que formavam a mediocridade

coletiva e dessas massas provinha a chamada opinião pública. A tirania da opinião

pública considerava indesejável tudo o que pudesse estimular ou demonstrar de

forma clara a individualidade. O desejo, de acordo com o pensamento do autor,

era de que todos se conformassem ao padrão aprovado. Assim, o despotismo do

costume se instauraria, constituindo obstáculo a qualquer ambição de algo melhor

do que o costumeiro.

A uniformização e a igualdade entre os homens eram também alguns dos

fatores que mais preocupavam Alexis de Tocqueville, ao analisar o Estado Liberal

Democrático que se formava na América e contrastá-lo com a forma de Estado

que via surgir na Europa. Essa e outras apreensões do pensamento do autor ficarão

evidentes na exposição que segue. 30

28 Nesse ponto, Bellamy chama atenção para o fato de que segundo a teoria de Mill, os indivíduos civilizados não tinham outra escolha senão agir como partícipe do autodesenvolvimento racional. Essa posição é contraditória com a defesa da diversidade e originalidade como fundamentais. BELLAMY. Op Cit. Pág 56 29 MILL. Op. Cit. Pág. 71 30 É importante notar que a obra de Tocqueville foi de grande influência para algumas obras do inglês John Stuart Mill. Por uma questão de melhor arrumação do trabalho e também por serem contemporâneos, optou-se na exposição do pensamento dos autores por esta ordem que aqui se apresenta.

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2.6 Alexis de Tocqueville: combate ao individualismo

Alexis de Tocqueville, nascido em 1805, era um aristocrata francês sem

nenhuma experiência democrática que resolveu voltar seu olhar para a democracia

que se consolidava na América, a fim de buscar alternativas para a sua sociedade.

A Europa estava dominada pelo discurso liberal que identificava o Estado com a

esfera do político, cujo dever era garantir o bom funcionamento das relações da

sociedade civil, identificada com o mercado. A igualdade era restrita à

participação no mercado e a liberdade ao princípio da representação política.

Nesse sentido, Tocqueville considerava o discurso dos liberais despótico.

Ao analisar a sociedade democrática da América, em 1831, Tocqueville ao

mesmo tempo que se encantava, hesitava. Ele admirava a liberdade e a igualdade

que encerrava o regime do povo americano, mas considerava que a democracia

ocasionava o isolamento e o egoísmo e podia ser perigosa, além de medíocre. Ele

tentava achar, a partir da observação dessa realidade que tinha diante de si,

alternativas que evitassem o despotismo e o individualismo.

Tocqueville acreditava que as sociedades democráticas, por serem

fortemente baseadas na igualdade entre os homens, acabavam por gerar em cada

um a necessidade de se voltar para si. Diferentemente de Mill que enxergava no

individualismo o único caminho para combater a uniformização decorrente da

igualdade, ele acreditava que o individualismo era um dos males que advinham da

igualdade. No Livro II da Democracia na América, Tocqueville dedicou alguns

capítulos31 à questão do individualismo e às formas que, na visão do autor, o povo

americano encontrou para combatê-lo.

Ele descreveu o individualismo como um sentimento pacífico que leva o

cidadão ao isolamento, retirando-se com a sua família a ponto de formar uma

pequena sociedade que o faz dispensar a grande a qual pertence. Para ele, o

individualismo diferia do egoísmo. O primeiro é de origem democrática e

desenvolve-se à medida em que a igualdade se consolida, é mais uma avaliação

errônea do que um sentimento depravado. O segundo é um vício destruidor de

31 Cpítulos II a VIII da segunda parte.

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virtudes, um instinto cego e está presente em qualquer forma de sociedade. Apesar

das diferenças, o individualismo pode se intensificar tornando-se egoísmo32.

O autor sustentava que nas sociedades aristocráticas, a falta de mobilidade

social e as instituições criavam um vínculo entre os homens da mesma classe. Os

homens se sentiam ligados a algo que estava fora deles e se tornavam dispostos a,

por vezes, esquecer de si próprios em nome de outros. Apesar de não existir

concretamente a noção de semelhante ou de causas da humanidade, havia o

sacrifício de um homem por outros determinados.

No Estado democrático, a mobilidade social desfez a separação estanque

entre as classes, tornando variável a composição de cada uma. Assim, as pessoas

se tornavam indiferentes e estranhas entre si, tendendo a se voltar para si e sua

família.

“À medida que as condições se igualam, encontra-se maior número de indivíduos que, não sendo mais bastante ricos nem bastante poderosos para exercer grande influência sobre a sorte de seus semelhantes, adquiriram e conservaram muitas luzes e bens para poder bastar-se a si mesmos. Estes nada devem a ninguém, e por assim dizer nada esperam de pessoa alguma; habituam-se a se considerar sempre isoladamente, e de bom grado imaginam que seu destino inteiro está entre as suas mãos”. 33

O povo americano, segundo Tocqueville, vivendo em uma sociedade

democrática, encontrou formas de combater as possibilidades de mal que podem

advir dessa tendência ao individualismo.

Nas sociedades aristocráticas um pequeno número de homens ricos e

poderosos pregavam os deveres do homem, sustentando a glória de se esquecer de

si e fazer o bem sem qualquer interesse pessoal. As belezas da virtude eram

sempre discutidas, mas nunca a sua utilidade.

Nos Estados Unidos, não se dizia que a virtude era bela, mas sempre se

afirmava a sua utilidade. Sabia-se que os homens, estando em condições de

igualdade crescente, necessariamente seguiriam seus interesses e não se lutava

contra isso, apenas mostrava-se que o interesse dos homens era a honestidade.

Assim, através da chamada doutrina do interesse bem compreendido, havia um

esforço para orientar e esclarecer o interesse individual.

32 TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. Tradução e notas de Neil Ribeiro da Silva. Ed Itatiaia, Belo Horizonte, 1987. Pág. 386 33 TOCQUEVILLE. Op. Cit. pág. 387

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Para Tocqueville, tal doutrina era clara e segura, alcançando os objetivos a

que se propunha. Não provocava grandes dedicações, mas pequenos sacrifícios

diários. Não criava a virtude, mas gerava cidadãos corretos. E, principalmente,

derrubava a crença de que o útil nunca era honesto e se dedicava a tirar os

indivíduos da ignorância, sugerindo interpretações úteis para seus interesses

individuais.

“Se os indivíduos, ao se tornarem iguais, continuassem ignorantes e sem educação, é difícil prever até qual estúpido excesso poderia chegar seu egoísmo, e não se poderia dizer de antemão em que vergonhosas misérias mergulhariam eles próprios, temendo sacrificar alguma coisa do seu bem-estar à prosperidade de seus semelhantes.”34

Outro grave problema que poderia advir das condições iguais e do

individualismo conseqüente era o estabelecimento de condições propícias para o

despotismo: o isolamento e o desinteresse pelo público. Além da doutrina do

interesse bem compreendido, o povo americano encontrou na necessidade de

liberdade outro grande aliado no combate ao individualismo e à possibilidade de

despotismo.

Quando os cidadãos são forçados a se ocupar de assuntos públicos,

necessariamente esquecem seus assuntos particulares por um tempo. Quando os

homens tratam juntos de assuntos comuns percebem que não são tão

independentes quanto supunham e que, para obter apoio, é necessário um esforço

voltado não apenas para si. Assim, através da instituições livres e do sistema

eleitoral, a sociedade americana criava o elo que aproxima os cidadãos. Ainda que

a disputa eleitoral transforme alguns homens em inimigos, aproxima uma

multidão de cidadãos que, de outra forma, permaneceriam estranhos.

Do ponto de vista local, é mais fácil para um homem compreender bem

seu interesse individual e perceber como está conectado com o interesse geral.

Pode ser difícil fazer um cidadão entender que as decisões sobre os destinos

maiores do Estado afetarão a sua vida, entretanto, é fácil para ele notar que a

decisão sobre uma obra a ser feita nas adjacências da sua residência afetará o seu

cotidiano. Encarregando os cidadãos dos pequenos negócios, seria possível

despertar o interesse pelo público e a necessidade de interação com os outros.

34 TOCQUEVILLE. Op. Cit. pág. 403.

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“As liberdades locais, que levam grande número de cidadãos a prezar a afeição de seus vizinhos e de seu próximo, conduzem, pois, sem cessar, os homens uns para os outros, a despeito dos instintos que os separam, e os forçam a ajudar-se mutuamente.”

As instituições livres e os direitos políticos recordavam a todos os

americanos, sejam ricos ou pobres, que viviam em sociedade35. O interesse

individual pela utilidade acaba sendo orientado para o bem dos concidadãos e a

liberdade, ainda que possa criar ódios particulares, evita a indiferença geral,

tornando-se remédio eficiente para os males que podem decorrer da igualdade.

Para Tocqueville, a grande vantagem dos americanos é que eles não se

tornaram iguais, nasceram iguais. Nos Estados Unidos, não havia as mesmas

queixas que havia na Europa com relação à propriedade e não havia ameaças aos

direitos políticos. Isso porque cada um tinha um bem particular ou um direito a

defender, logo, reconheciam de forma consensual os direito de propriedade e os

políticos. Todos tinham algo a perder. Sem o respeito a direitos, não existem

grandes povos e nem mesmo sociedade, pois não se pode chamar tal uma reunião

de seres humanos mantida pela força.

“O homem que obedece à violência, curva-se e se faz servil; quando, porém, se submete ao direito de mandar que reconhece a seu semelhante, eleva-se, de certa forma, acima daquele mesmo que o comanda”. 36

O momento de concessão de direitos políticos é sempre de crise. O

momento em que se descobre uma liberdade da qual se estava privado até então.

Daí surge a vantagem do povo americano que teve seus direitos políticos

reconhecidos antes de serem privados deles e em uma época em que não era fácil

usá-los mal, já que havia poucos cidadãos de costumes simples. Ou seja, mais

uma vez os americanos aprenderam a ponderar a igualdade com a liberdade e

assim evitar o despotismo.

O povo americano respeita as leis e o direito como resultado de um

processo do qual cada um participa.

35 Mesmo os ricos, na democracia, percebem que precisam dos pobres. Fazer bem a eles mantendo a distância não basta, pois a população não quer o sacrifício do dinheiro, mas o do orgulho. O governo democrático não protege o interesse de todos, mas o do maior número. Assim, sendo os pobres os que governam, são os ricos que temem o abuso do poder. 36 TOCQUEVILLE. Op. Cit. Pág. 184.

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31

“Ainda que a lei seja malsã, o habitante dos Estados Unidos submete-se a ela, por isso mesmo sem dificuldades, não somente por ser obra da maioria, mas ainda por ser obra também sua...” 37.

Nesse contexto de promoção dos interesses da maioria e de centros de

decisão locais multiplicados, Tocqueville voltou o seu olhar para um novo

fenômeno que ia surgindo aos poucos na sociedade democrática americana. Eram

as associações criadas pela vontade e iniciativa dos indivíduos que se dirigiam aos

assuntos mais diversos; políticos ou civis. Havia associação para fins de segurança

pública, comércio, moral, religião etc. Tudo se confiava ser possível atingir a

partir da ação simples do poder coletivo dos indivíduos.

As associações políticas podem mesmo se transformar em pequenas

nações ou em centros de governo dentro do governo. Isso ocorre quando

partidários de uma mesma opinião reúnem-se e nomeiam mandatários realizando

um genuíno sistema representativo. Os representantes daquela associação passam

a levar consigo toda a força coletiva de seus participantes. Não podem formular

leis, mas podem discuti-las, atacá-las e sugerir outras em substituição.

A liberdade de associação que era ilimitada nos Estados Unidos tornou-se

uma garantia indispensável contra a tirania da maioria. As associações lá não eram

como os partidos na Europa que julgavam, cada qual, representar os interesses da

maioria. As associações americanas pretendiam fazer com que vozes que

eventualmente não estivessem acompanhadas pela maioria também fossem

ouvidas. Tornaram-se uma estratégia de luta e resistência.

“Nos Estados Unidos, uma vez que um partido se tenha tornado dominante, todo o poder público passa para as suas mãos; (...) É preciso que a minoria oponha a sua força moral inteira ao poder material que a oprime.. É, pois, um perigo que se opõe a um perigo a mais a temer”. 38

Para Tocqueville, apesar de a liberdade ilimitada de imprensa e de

associação não ser um bem, nos casos de governos democráticos, serviam para

impedir um mal maior, que seria despotismo. Apesar de o perigo de anarquia que

essa liberdade trazia consigo, ela também representava garantia e evitava

conspirações, de vez que onde há associações livres, não há sociedades secretas.

O autor então salientava que o mais natural para o homem, depois da

liberdade de agir sozinho, é unir esforços para agir em comum, por esse motivo, o

37 TOCQUEVILLE. Op. Cit. Pág. 186. 38 TOCQUEVILLE. Op. Cit. Pág. 149.

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direito de associação, por sua natureza, parecia-lhe tão inalienável quanto a

liberdade individual.

Para os americanos, a associação é a forma que a minoria tem para

verificar seu número e conjugar esforços para descobrir argumentos que possam

chamar a maioria e, em nome dela, dispor do poder. Na Europa, as associações

procuravam o combate e não o convencimento. Onde não há experiência e a

compreensão da liberdade é precária, o primeiro pensamento é a guerra, só mais

tarde chega a idéia de persuasão.

Nos Estados Unidos, onde havia sufrágio universal, nenhuma associação

podia pretender representar a maioria. Caso contrário, teria o poder em mãos e

poderia fazer as modificações necessárias, não precisando reivindicar. Na Europa,

as associações pretendiam realizar à força a vontade da maioria oprimida e assim

agiam. Muitas vezes havia tirania e falta de representatividade no seio da própria

associação, o que lhe roubava toda a força moral. Os americanos, ao contrário,

multiplicavam seus governos democráticos, guardando sempre as liberdades

individuais.39

Dentro dessa mesma idéia de múltiplos governos democráticos, os

americanos se dedicavam também às associações de caráter civil para a obtenção

de outros resultados comuns que não a garantia contra o despotismo. Com isso,

ainda que não tivessem por objetivo a política acabavam por aprofundar o

exercício de seus direitos políticos e civis, de vez que usufruíam ainda mais de sua

liberdade. Diferentemente do que ocorria na Inglaterra, da onde vieram muitos dos

seus costumes e onde os homens consideravam a associação um poderoso meio de

ação, os americanos não consideravam nenhum objetivo tão pequeno que não

precisasse da união e, com isso, viam na associação o único meio de ação.

Comparando esses costumes com o que ocorria em uma sociedade

aristocrática, Tocqueville percebeu que na aristocracia, em meio a uma multidão

de indivíduos que nada podiam, havia poucos muito poderosos que podiam

executar sozinhos grandes feitos. Cada cidadão poderoso funcionava como o líder

de uma associação formada por todos aqueles de que dispunha para realizar seus

objetivos. Já na democracia, todos são independentes e frágeis, ninguém pode

39 TOCQUEVILLE. Op. Cit. Pág.151.

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obrigar os outros e, portanto, caem quase na impotência se não aprendem a se

ajudar livremente.

Se em uma sociedade democrática os homens não se unissem para fins

políticos, poderiam conservar por muito tempo suas riquezas e as suas luzes,

apesar de terem a sua independência e liberdade ameaçadas. Se, todavia, em uma

sociedade também democrática, os cidadãos não se unissem na vida civil,

colocariam a própria civilização em perigo.

“Um povo no qual os particulares perdessem o poder de fazer isoladamente grandes coisas, sem adquirir a faculdade de produzi-las em comum, logo retornaria à barbárie”. 40

Seria possível pensar que caberia ao governo se fortalecer para realizar o

que os indivíduos não mais realizam isoladamente.

“A moral e a inteligência de um povo democrático não correriam menores perigos que seu negócio e sua indústria, se o governo viesse por toda parte tomar o lugar das associações. Os sentimentos e as idéias não se renovam, o coração não cresce e o espírito não se desenvolve a não ser pela ação recíproca dos homens uns sobre os outros. Mostrei que essa ação é quase nula nos países democráticos. É necessário criá-la artificialmente. E somente as associações são capazes de fazê-lo”. 41

Para Tocqueville, o que chamava mais a atenção nas sociedades

americanas, eram as associações com fins morais, religiosos e intelectuais, já que

não conhecia nada que com elas se assemelhasse. Nos países democráticos,

qualquer desenvolvimento depende do desenvolvimento das associações. Há,

segundo o autor, uma lei fundamental que rege as sociedades humanas, segundo a

qual é necessário que o ato de se associar se desenvolva e se multiplique na

mesma medida em que as condições entre os homens se igualam. Só assim é

possível a civilização.

Outra relação que Tocqueville percebeu é a necessidade de crescimento e

fortalecimento da imprensa proporcional à medida da igualdade entre os homens.

Para ele, o jornal e a associação andam juntos. É o jornal que mantém a

comunicação, o entendimento e as idéias comuns no espírito de cada indivíduo,

além de fornecer os meios de execução em comum. É a forma como os membros

40 TOCQUEVILLE. Op. Cit. Pág. 392. 41 TOCQUEVILLE. Op. Cit. Pág. 393

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de uma associação podem se falar todos os dias, ainda que não se encontrem. Por

isso, quase não podia haver associação sem jornal.

Quanto mais os homens são iguais e quanto menos são fortes como

indivíduos, menor é a chance de se manterem firmes em uma opinião que é

apenas individual. Todo jornal traz consigo uma associação, formada por seus

diferentes leitores habituais. Ele fala com cada um em nome dos outros e, assim,

vai criando o comum e arrastando o individual.

Quando a associação é permitida apenas em certos casos, os homens

passam a encará-la como rara e excepcional, já quando são livres para se associar,

acabam por considerar a associação o meio universal e único, através do qual são

capazes de obter o que desejam. Enquanto fossem feitos os esforços necessários

para afastar os homens das associações proibidas, seria possível ver que não se

pode obrigá-los a realizar as permitidas. Se não se acostumam a se associar para

as grandes coisas, não terão disposição para fazê-lo em nome das pequenas.

Tocqueville ainda criticou aqueles que viam na liberdade de associação

política uma ameaça para a tranqüilidade dos governos. As associações civis são,

de certa forma, conseqüência das políticas e dirigem os espíritos para longe dos

negócios públicos, fazendo com que concentrem esforços na consecução de

objetivos comuns que seriam impossibilitados por qualquer intranqüilidade

pública. Desviam as revoluções. Gozando de uma liberdade perigosa, os

americanos evitavam os perigos da liberdade. Ao mesmo tempo em que as

associações políticas criam germes de poder que poderiam confrontar o governo,

as associações civis criam interesses comuns e hábitos que fazem com que os

americanos prezem a tranqüilidade e tenham algo a perder em revoluções.

Nessas condições, um ponto que surpreende na obra de Tocqueville são as

observações e previsões feitas pelo autor sobre o papel que os negros ocupavam

na sociedade, como os homens que não tinham nada a perder. Sendo possível até

que se duvide quanto ao mais, difícil será discordar que já no início do século

XIX, Tocqueville descreveu de forma precisa e crítica os germes da formação de

um dos principais movimentos coletivos que perduram. Ainda hoje o principal

objetivo comum dos negros é o de serem reconhecidos como iguais pelos brancos,

que, já nos tempos do autor, tentavam realizar a igualdade de condições, mas

apenas entre si.

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Inicialmente, observava ele, o cristianismo extinguiu a servidão, mas

voltou a admiti-la, no século XVI, apenas como exceção e, tendo o cuidado de

restringi-la a uma raça humana apenas. Diminuíram o mal quantitativamente, mas

o tornaram praticamente insuperável.

Na servidão que tinha lugar entre os antigos, o que separava o senhor do

seu escravo era apenas a liberdade. O escravo pertencia à mesma “raça” 42 que o

seu senhor e, por vezes, era superior em educação e sabedoria. Uma vez que o

escravo obtinha a sua liberdade através da alforria, rapidamente se misturava aos

que foram seus senhores. Ainda que os traços da servidão subsistissem no

preconceito natural que os homens guardam contra aqueles que já foram

inferiores, as semelhanças entre os homens cuidavam para que se tornasse difícil

distinguir os ex-servos dos ex-senhores, tornando assim possível e natural a

mistura. Difícil foi modificar as leis para acabar com a servidão, o que depois se

seguiu foi a natural confusão entre os homens de origem livre e os antigos servos.

Nos tempos modernos, a modificação das leis apenas deu início às reais

dificuldades. A realidade imaterial da escravidão combinou-se com a realidade

material e imutável da diferença de “raças”. A “raça” perpetua a lembrança da

escravidão, carregando sempre consigo o estigma da inferioridade. As leis podiam

pôr fim à escravidão, mas nada destruiria as suas marcas. No homem de

características físicas diferentes, introduzido pela servidão, nascido na

degradação, o europeu branco apenas via as condições gerais de humano. Pouco

faltava para que o considerasse um intermediário entre o animal e o homem.

“Para que os brancos deixassem a opinião que formularam da inferioridade intelectual e moral de seus antigos escravos seria preciso que os negros mudassem, e eles não podem mudar enquanto subsistir essa opinião”. 43

Uma vez abolida a escravidão, os modernos encontravam o desafio de

destruir os preconceitos. O negro se tornava livre, mas não podia partilhar nem os

direitos, nem os prazeres, nem as dores e nem os trabalhos dos brancos. Não

podiam se sentar ao lado dos brancos; nos hospitais, ficavam à parte e podiam até

invocar o mesmo Deus, mas nunca rezar no mesmo altar. E quanto mais a lei os

igualava aos brancos, o preconceito se acirrava e os separava.

42 Optou-se por manter a terminologia utilizada pelo autor e condizente com o pensamento da época, apesar de se saber que atualmente essa noção de raça está superada por noções de etnia, características fenotípicas e nacionalidade. 43 TOCQUEVILLE. Op. Cit.Pág. 262. Nota 80.

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Diante dessa descrição, o autor se indagava sobre o que levou os brancos a

quererem pôr fim à escravidão na América. Não encontrou dificuldade em afirmar

que tal se deu pelo interesse dos brancos e não dos negros como se poderia

imaginar, e passou a explicar tal assertiva.

Com o passar do tempo, foi ficando patente que as províncias, onde não

havia escravos, eram mais prósperas. Os habitantes eram obrigados a cultivar o

próprio solo ou remunerar outro pelos serviços. Não havia solo cultivado por

esforços não remunerados. Havia trabalho e despesa que geravam mais

prosperidade do que o ócio e a economia. A servidão também era ruim para o

senhor.

Nos lugares onde o trabalho passou a ser associado ao progresso e à honra,

ao invés de escravidão e degradação, havia mais estímulo e mais alegria para os

homens de zelo e saber se dedicarem à transformação da natureza em benefício

próprio. A indústria se desenvolvia de forma muito mais acelerada. O homem

vendia seu trabalho em troca de remuneração e o escravo, que nada ganhava pelos

seus trabalhos, devia ser sustentado e mantido pelo senhor durante toda a sua vida

produtiva ou não. Na realidade, o escravo custava mais que o homem livre e, por

ter menos estímulos, seu trabalho não dava os mesmos frutos. Quando o homem

livre passou a concorrer com o escravo,44 fez-se sentir a inferioridade deste e a

base da escravidão foi atacada no interesse do senhor.

Nos Estados Unidos, quando a escravidão foi abolida no Norte, os negros

viram-se submetidos à tirania das leis e dos costumes e privados de direitos.

Muitos sucumbiram à miséria e muitos migraram para o Sul. Lá, sendo mais

profundas as relações que legitimavam a escravidão, não era possível adotar o

mesmo processo de transição para a abolição que foi adotado no Norte. Emancipar

as gerações futuras, mantendo as presentes em cativeiro era criar uma ruptura que

causaria inquietações e retiraria o poder moral da escravidão, revelando-a como

mero abuso de poder. Os negros numerosos que, enquanto escravos, aceitavam

que somente os brancos possuíssem a terra, a indústria e o saber, enquanto

homens livres, não teriam porque aceitar tal gama de desvantagens.

44 Especialmente, com o fim da lei de sucessões, o que trouxe a igualdade de partilha diminuindo as fortunas das famílias e obrigando os homens a se proverem. TOCQUEVILLE. Op. Cit. Pág. 268.

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“Os negros podem por muito tempo permanecer escravos sem se queixar; mas desde que entrem no número dos homens livres, indignar-se-ão imediatamente por serem privados de quase todos os direitos de cidadãos, e, não podendo tornar-se iguais aos brancos, não tardarão a mostrarem-se seus inimigos”. 45

Enquanto homens livres, os negros não poderiam ser impedidos de se

instruírem e se unirem. Assim, não restava mais do que duas alternativas aos

brancos e negros colocados lado a lado, como povos estranhos, em um mesmo

solo: ou se confundiam inteiramente ou se separavam.46

Diante disso, sendo a mistura pacífica entre as raças um desdobramento

pouco provável da abolição no Sul, a previsão era de uma luta entre as raças com

desfecho imprevisível. Os brancos tinham consigo o saber e os meios, mas os

negros traziam a vantagem do número e a energia do desespero.

Tocqueville não pretendia justificar ou defender a escravidão, mas

salientar que aqueles que outrora a defenderam e a difundiram, não estavam livres

para simplesmente destruí-la. Não considerando a hipótese de misturar-se aos

negros, os homens do Sul eram coerentes e tentavam continuar isolados mantendo

a escravidão o máximo possível. Não que todos a considerassem um bem, muitos

havia que a consideravam um mal necessário.

Na Antiguidade, os servos ainda podiam ler e pensar e, por isso,

permaneciam com o espírito livre. De forma diferente, os modernos, horrorizados

com a possibilidade de um dia se aproximarem dos negros, impediam-nos

enquanto escravos de ler e de se instruir, mantendo-os o mais próximo possível

dos animais. Assim, tornaram a alforria perigosa em si, pois acabaram com a

possibilidade de haver uma real igualdade entre os homens. Criaram futuros

líderes de movimentos revoltosos quando deram aos negros a liberdade os

deixando na miséria marcados pela degradação.

“Violaram para com o negro, todos os direitos da humanidade, e depois lhe ensinaram a inviolabilidade desses direitos. Abriram as fileiras para seus escravos e quando estes tentavam penetrar, perseguiram-nos com ignomínia”. 47

Tocqueville encerrou sua análise sobre a questão dos negros afirmando

que independentemente dos esforços empreendidos pelos homens do Sul, não

45 TOCQUEVILLE. Op. Cit. Pág. 276. 46 Mesmo onde o cruzamento entre brancos e negros gerou uma terceira raça, qual seja a dos mulatos, não se falava em mistura e os mulatos costumavam se posicionar ao lado dos brancos.TOCQUEVILLE. Op. Cit. Pág. 273 47 TOCQUEVILLE. Op. Cit. Pág. 278.

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conseguiriam manter a escravidão para sempre. Se a liberdade fosse negada aos

negros do Sul, eles a tomariam à força.

“A escravidão, encerrada em um só ponto do globo, atacada como injusta pelo cristianismo, como funesta pela economia política; a escravidão, em meio à liberdade democrática e às luzes da nossa época, não é de forma alguma uma instituição que possa durar”. 48

2.7 Conclusões

Com os olhos de quem estava arraigado às tradições de uma sociedade

aristocrática, dividida em grupos, em classes, Tocqueville não separava suas

descrições de seus juízos de valor, sempre atentos para os perigos da falta de uma

estrutura que mantivesse os indivíduos unidos uns aos outros em grupos maiores

do que os familiares, em grupos que unissem esforços, cada um a seu modo, para

o desenvolvimento da sociedade maior.

Cabe ressaltar o brilhantismo da exposição que faz sobre a situação dos

negros nos Estados Unidos. O surgimento de um grupo de atores sociais que

foram mantidos à parte de todas as conquistas e evoluções democráticas e

privados de toda forma de educação. Indivíduos que têm um vínculo forte gerado

pela privação, pela negação de reconhecimento enquanto sujeitos49 e um vínculo

que foi arraigado nas suas características físicas, na cor da sua pele. Depois de

discorrer sobre as formas de unir os homens para criar vínculos entre eles e afasta-

los do isolamento, o autor nos faz deparar com o exemplo de homens que se

tornaram inseparáveis por estarem todos eles mantidos à parte de todos esses

recursos.

As descrições de Tocqueville nos mostram os modos como o coletivo pode

surgir como positivo, através de um uso bem compreendido das liberdades e das

instituições democráticas, e, por outro lado, as formas como o coletivo surge a

partir da negação e da privação de todas essas conquistas. Nos dois casos, é

possível notar que o coletivo surge como estratégia de luta empreendida pelos

48 TOCQUEVILLE. Op. Cit. Pág. 278. 49 No sentido dado por Honneth. HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: A Gramática Moral dos Conflitos Sociais. Tradução Luiz Repa. São Paulo, Ed. 34, 2003.

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indivíduos que buscam ser ouvidos na condição de minorias ou na busca por

reconhecimento de cidadania.

Alguns pontos aproximaram, como vimos, Mill e Tocqueville: os dois se

preocupavam com os males que podiam advir de uma sociedade com igualdade de

condições e os dois acreditavam que a participação democrática tinha um grande

valor educativo.

É interessante ressaltar que, apesar disso, Mill conseguia defender o

individualismo como um bem indispensável à liberdade e, portanto, forma de

combater a igualdade, no sentido de padronização, enquanto Tocqueville apontava

o individualismo como uma das consequências maléficas da igualdade de

condições. Mesmo com essa grande diferença no que diz respeito à compreensão

do individualismo, os dois autores viam nas associações livres formas de

combater os males que observavam, fazendo os homens se interessarem pelos

bens comuns e, nesse ponto, Mill deixa de ser tão individualista defendendo que,

em certos assuntos, os homens deviam agir coletivamente.

Da mesma forma, os dois autores defendiam o governo democrático, mas

apresentavam tendências elitistas nos seus pensamentos, especialmente vinculadas

à educação. Mill chegava a se referir a estágios de evolução das sociedades. São

extremamente progressistas em certos assuntos, como as observações sobre os

negros na obra de Tocqueville e o papel que Mill concede às mulheres em sua

visão do mundo.50 Por outro lado, tornam-se retrógrados em outros, como na

abordagem sobre os prazeres inferiores feita por Mill e na nostalgia aristocrática

demonstrada por Tocqueville.

Por fim, cabe refletir sobre o fato de Mill fazer menção ao que se chama de

um caráter qualitativo do conceito de maioria,51 enquanto nas descrições e

previsões de Tocqueville sobre a democracia, a maioria tem realmente um caráter

quantitativo. Apesar de nem contar com a população negra ou mulheres, sua visão

de democracia pressupõe a participação de todos os atores considerados, sem

quaisquer vícios que o afastassem das decisões políticas. Nesse contexto, as

associações nasciam como forma de dar voz a minorias realmente quantitativas.

50 Mill também chegou a propor a reforma agrária e cooperativas de produtoras. 51 Como visto anteriormente, (pág. 8), Mill esclarece que a opinião e as decisões da maioria podem ser provenientes de uma parcela da sociedade que se faz aceita como maioria. No contexto europeu, não havia sufrágio universal ainda.

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Torna-se interessante refletir a partir desse ponto, sobre que tipo de

democracia foi construída desde então, e sobre como o fato de termos ampliado os

atores partícipes do processo político, com a inclusão de mulheres e negros

principalmente, ampliou o alcance do processo de deliberação democrática ou

trouxe também para o contexto democrático, o caráter qualitativo da maioria no

acesso aos debates e aos centros de poder. Criando-se, assim, grupos

determinados como novos sujeitos de direitos diferenciados.

Para uma reflexão mais aprofundada sobre essa questão e sobre a possível

adequação do conceito de direito coletivo às estruturas conceituais e normativas

do Estado Democrático de Direito, faz-se mister uma análise das significações

emprestadas contemporaneamente aos termos “indivíduo”, “liberdade” e

“igualdade”. Este será o objetivo do próximo capítulo.

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3 O Indivíduo e o Grupo 3.1 Introdução

Com o início da consolidação do Estado Democrático de Direito como

desdobramento de todo o ideário do Estado Liberal, foi surgindo um paradoxo

aparentemente insuperável: construir uma sociedade que tivesse como pilares a

igualdade e a liberdade, no mesmo grau de importância. A visão moderna da

democracia veio se distinguir da clássica por estar vinculada a um direito positivo,

cogente e estruturado individualisticamente. Sendo resultado de normas

produzidas por um legislador e sancionadas pelo Estado, este direito garante

liberdades subjetivas. A interpretação liberal vislumbra a realização da

autodeterminação democrática dos cidadãos por meio desse direito, porém, isso se

dá de tal forma que a idéia dos direitos humanos e da soberania popular passa a

ser segunda fonte de legitimação.

Por esse motivo, pode-se dizer que o ideário liberal iniciou uma série de

discussões sobre precedência referentes a contrapontos como indivíduo ou

sociedade, liberdade ou igualdade, autonomia privada ou autonomia pública, ou

seja, sobre a relação entre princípio democrático e Estado de direito. Os conceitos

que eram definidos de uma forma estanque conflitavam entre si fazendo parecer

impossível e paradoxal a formulação do Estado Democrático de Direito.

Será utilizado o pensamento de Habermas para expor como essas

discussões são em verdade superadas pela formulação do Estado Democrático de

Direito. Será demonstrada, através da Teoria do Discurso, a relação existente,

dentro da esfera jurídica, entre direitos subjetivos e direitos públicos, que reflete

na relação entre direitos humanos e soberania popular. Logo, ficará claro que

liberdade e igualdade, indivíduo e sociedade não apenas podem ter, mas devem ter

o mesmo peso na construção de uma sociedade democrática, de vez que esta

depende da consideração simétrica da liberdade individual. Os conceitos que, na

modernidade, eram pensados de forma compartimentalizada e conflitante,

contemporaneamente são vistos de forma interdependente.

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Uma vez demonstrada essas equiprimordialidade, passaremos à análise da

relação entre indivíduos e grupos travada nessa sociedade pós-tradicional em que

é necessário compatibilizar o espaço de autonomia dos sujeitos com o ambiente

intersubjetivo de interação no qual estão inseridos. Será trazido, nesse ponto, o

pensamento de Axel Honneth. A partir dele, ficará evidenciado o papel do Direito

como vetor de equilíbrio dessas relações, na medida em que amplia a

individualidade, a partir das liberdades juridicamente concedidas, mas também

potencializa e cria o sentimento de pertencimento, através do reconhecimento.

Cabe notar ainda que esse segundo capítulo será inteiramente marcado

pela influência de Sigmund Freud, cujos pensamentos serão trazidos para

corroborar as idéias expostas ou dialogar com os autores diretamente trabalhados.

3.2 Liberdade dos modernos versus Liberdade dos antigos

Com o fim da sociedade de privilégios e a valorização do indivíduo e de

seu espaço de autonomia, a modernidade foi marcada pelo culto e proteção às

liberdades privadas. Os liberais se batem pela primazia da liberdade “dos

modernos” que seria o cerne dos direitos civis subjetivos: as liberdades de crença,

de consciência, de expressão, de ação em geral, bem como o direito à vida, à

propriedade e à liberdade em sentido amplo. Contra esse posicionamento, veio ao

debate a visão dos chamados republicanos que acreditam e defendem

entusiasticamente a precedência da liberdade “dos antigos”, que seriam os direitos

políticos de participação e comunicação.

Apesar dessa divergência fundamental, há muitos pontos de

convergência entre liberais e republicanos. Os dois grupos, ao analisar a realidade,

consideram de grande relevância a questão do pluralismo de visões de mundo

como característica das sociedades contemporâneas e ambos partem do

pressuposto de que os homens são livres e iguais originariamente. Além disso,

ambos buscam um ideal de sociedade justa e, para tanto, concordam, que é

necessário que previamente se defina o perfil da constituição, estrutura normativa

da sociedade; a estrutura do sistema de direitos fundamentais; e a atuação dos

intérpretes da norma. A partir da definição desses pontos, que os grupos se

distanciam ao procurar objetivos diametralmente opostos, quais sejam o de

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justificar a prevalência e precedência da autonomia privada sobre a pública ou

vice-versa, respectivamente.

Para os liberais, a Constituição deve existir com o fim de garantir os

direitos humanos, direitos fundamentais dos cidadãos. A prioridade conferida às

visões individuais de mundo, faz com que os liberais queiram proteger e assegurar

os direitos individuais contra qualquer interferência, inclusive ou sobretudo contra

a soberania popular. Por isso, são chamadas liberdades negativas, representam

limites à soberania popular.

Há, para os liberais, um núcleo básico e prioritário de direitos que é

inalienável e que deve ser igualitariamente atribuído aos indivíduos. Tal núcleo

não pode ser violado nem pela autoridade constituinte, sob pena de não mais se ter

uma sociedade justa e democrática. Essa posição deve informar também a

interpretação constitucional, no sentido de que esses direitos, componentes do

núcleo, devem ter sempre absoluta prioridade, já que expressam a concepção de

justiça, os ideais e valores políticos que o povo, autor da constituição pretende

preservar. Não existe nenhum objetivo coletivo capaz de se sobrepor a um direito

individual. É exatamente nesse sentido que se afirma que os direitos devem ser

levados a sério, 1 ou seja, devem ser prioritários em qualquer circunstância.

Já os republicanos divergem veementemente dessa posição. Não aceitam a

existência de qualquer direito individual que seja inacessível à soberania popular.

Não concebem os direitos humanos como pré-políticos, mas como resultado da

autodeterminação do povo. Por esse motivo, para eles, a constituição é um projeto

social e serve para garantir a soberania popular. O desenvolvimento dos direitos

se dá em função da comunidade e dentro dela, por esse motivo, devem ser

primordialmente garantidas as liberdades positivas que se destinam a assegurar a

participação ativa do cidadão no processo de deliberação política.

A questão é que, para os liberais, os direitos fundamentais têm um

conteúdo substancial, enquanto que, para os republicanos, o conteúdo é

procedimental. O direito fundamental é o de participar do processo político

deliberativo, onde os demais direitos serão definidos. Não pode haver direitos

anteriores à comunidade, de vez que os direitos são definidos no âmbito do

diálogo social. A visão republicana dos princípios constitucionais, diferentemente

1 DWORKIN, Ronald. Los Derechos em serio. Traducion de Marta Guastavino.2ª Ed. Barcelona, Ariel, 1989

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da liberal que é deontológica, é teleológica, ou seja, permite uma constante

atualização e adaptação. Os liberais, ao colocar os direitos fundamentais como

imutáveis e prioritários, ignoram as diferenças e impedem as políticas de

reconhecimento igualitário2 que, para os republicanos, é essencial para a

convivência de distintas identidades culturais.

Diante desse contexto de disputas é que Habermas aponta:

“Por isso, a muitos parece que a fundamentação normativa do Estado democrático de direito pressupõe o estabelecimento de uma hierarquia entre o princípio dos direitos humanos e o da soberania popular: ou as leis, inclusive a Lei Fundamental, são legítimas, quando coincidem com os direitos humanos, independentemente da origem e do fundamento da sua legitimidade (...); ou as leis, inclusive, a Lei Fundamental, são legítimas, quando surgem da formação democrática da vontade”. 3

A necessidade de tal escolha parece intuitivamente, no mínimo insensata.

No primeiro caso, abre-se a possibilidade de decisões soberanas que ignorariam a

soberania popular sem se importar com qualquer prejuízo que pudesse decorrer

deste ato. Na segunda hipótese, torna-se possível que a decisão democrática seja

completamente arbitrária, podendo mesmo contrariar a própria constituição. À

primeira vista, é possível sentir que nenhuma dessas possibilidades atenderia os

ideais procurados de sociedade justa e democrática.

É exatamente, tendo em vista a necessidade de complementação das duas

hipóteses, que Habermas demonstra a necessidade recíproca das duas autonomias

e, logo, procura dar fim à disputa entre liberais e republicanos, bem como

solucionar o paradoxo apontado no Estado Democrático de Direito que garante

como princípios fundamentais tanto a soberania popular quanto os Direitos

Humanos.

2 Esse é o entendimento que prevalece no debate acadêmico. Contudo, como veremos no próximo capítulo, há liberais que defendem tais políticas em determinadas circunstâncias. 3 HABERMAS, Jürgen. O Estado Democrático de Direito – uma amarração paradoxal de princípios contraditórios? In. Era das Transições. Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 2003. Pág. 154

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3.3 Jürgen Habermas: Equiprimordialidade das Autonomias

Nascido em 1929, Jurgen Habermas é considerado o último dos

integrantes da Escola de Frankfurt.4 Sucessor dos fundadores da Teoria Crítica,

Habermas se posicionou teoricamente em contraste com seus antecessores, sem,

contudo, sair da tradição da qual fazia parte. A Teoria Crítica foi primeiramente

descrita por Horkheimer em “Teoria Tradicional e Teoria Crítica” (1937) como

referente ao campo teórico do marxismo. Mais tarde passou a ser entendida, em

sentido mais restrito, como toda uma tradição de pensamento inaugurada em 1937

por esse artigo de Horkheimer e representada pela linha teórica assumida por ele,

Marcuse e Adorno5. Os teóricos dessa linha não se limitam a descrever a

sociedade, mas tentam compreendê-la à luz da orientação para a emancipação que

é possível e bloqueada pela organização social vigente.

Aos poucos, os teóricos dessa linha (Horkheimer, Adorno e depois

Habermas) foram se distanciando do Marxismo. Sem abandonar os princípios da

Teoria Crítica, foram dando a ela novas formulações. Habermas, por sua vez

distanciou-se de Horkheimer e Adorno. Ele concordou com a obra “Dialética do

Esclarecimento”dos dois autores, quanto ao diagnóstico de que o capitalismo

passou a ser controlado pelo Estado e, portanto, as tendências de emancipação da

teoria marxista (colapso interno devido à queda na taxa de lucro e organização do

proletariado) foram neutralizadas6. Contudo, ele se diferenciou, pois não concluiu

que todas as oportunidades para emancipação estavam bloqueadas

estruturalmente.

Para Habermas, a razão é uma forma de organizar a comunicação humana,

com objetivo de alcançar uma verdade intersubjetivamente aceita. Não acredita

na perversão irreversível das consciências, apesar de sua análise da tecnocracia, da

ciência e da técnica enquanto ideologias. O bloqueio ideológico, em verdade,

pressupõe a exigência de justificação, do contrário, seria desnecessário. São falsas

respostas que existem devido à existência das perguntas.

4 ROUANET Sergio Paulo. Teoria Crítica e Psicanálise. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro. 1986 5 HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento. A Gramática Moral dos Conflitos Sociais. Tradução Luiz Repa. Ed. 34. São Paulo, 2003. 6 HONNETH, A. Op. Cit. Pág. 12 e ss.

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Como Marcuse, ele buscava projetos alternativos. Era necessário repensar

o próprio sentido de emancipação, de forma que se tornasse mais adequado à

modernidade. Para ele, os conceitos originais da Teoria Crítica não eram mais

críticos o suficiente diante da realidade atual, de vez que ignoravam aspectos

importantes das relações sociais.

Diante disso, Habermas formulou a teoria da racionalidade dual. A razão

humana, com a evolução histórica se diferenciou em dois tipos: o primeiro é a

razão instrumental, voltada ao êxito, vinculada ao trabalho, à dominação da

natureza e à organização da sociedade, possiblitando a reprodução material da

mesma. O segundo é a razão comunicativa, voltada ao entendimento que

possibilita a reprodução simbólica da sociedade. A esse conceito dual de

racionalidade, veio corresponder um conceito de sociedade em dois níveis: o

sistema e o mundo da vida.

Em toda a sua teoria, é possível ver a influência de Freud. Graças à

psicanálise, Habermas conseguiu manter articuladas crítica e reconstrução na

medida em que vislumbrou na psicanálise um fator desencadeador de sínteses

progressivas tendo como norte o consenso e como regente a ação comunicativa7.

O sujeito, para Freud, se exterioriza em objetivações lingüísticas e em ações que

são deformadas de uma forma sistemática e não acidental. Ilude-se sobre si

mesmo ao mesmo tempo em que ilude os outros. Os processos responsáveis por

essa distorção vêm de uma parte do sujeito que se tornou inacessível para ele

próprio, vítima de um contexto sobre o qual não tem controle. Todavia, cabe a ele

reapropriar-se dessa parte inacessível e assumir a sua libertação8. A partir da

psicanálise, Habermas desenvolveu a percepção do saber crítico como saber

imediatamente interessado. Assim, utilizou o interesse emancipatório como fio

condutor para perceber o quadro transcendental do saber técnico e do cultural.

Para Habermas, a modernidade se caracteriza pelo fato de a orientação da

ação para o entendimento estar efetivamente inscrita nas relações sociais.

Comparando a sociedade moderna pós-tradicional com a tradicional, Habermas

conclui que nas duas etapas havia a preocupação de legitimar um sistema de

dominação caracterizado pela distribuição desigual da riqueza. Nas sociedades

tradicionais, recorria-se às ideologias que reconheciam explicitamente a

7 ROUANET Sergio Paulo. Op. Cit. Pág. 355 8 ROUANET Sergio Paulo. Op. Cit. Pág. 319.

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dominação e a justificavam. Na etapa liberal no capitalismo, a dominação é

encoberta pela autoridade do mercado que se baseia em leis coercitivas e justas

pela reciprocidade. Com a evolução dessa etapa a percepção nítida da dominação

é evitada pela autoridade técnica e tecnológica.

Esse é o ponto mais perigoso, pois, além de ocultar as estruturas de poder,

remove as categorias através das quais seria possível pensar em outras formas de

organização social, com outros pilares não instrumentais. Nesse sentido, mais do

que a busca por interesses suprimidos de classe é necessário que se busque

resgatar ou preservar o interesse intrínseco da espécie humana na existência em

condições de ampliação da intersubjetividade em um contexto de comunicação

livre de violência ou distorções. Afinal, a espécie humana só pode manter-se e

reproduzir-se com afirmações que aspiram a verdade e normas que aspiram a

legitimidade, ou seja, o interesse comunicativo faz parte da autoformação da

humanidade.9

Habermas encontrou na própria Teoria Crítica de Adorno e Horkheimer os

germes do paradigma comunicativo. A partir disso, passou a buscar um novo

padrão de racionalidade sem abandonar a modernidade e seu projeto. Acreditando

nas vertentes do projeto da modernidade que não haviam sido levadas adiante,

quis voltar, refletir e trilhar um novo rumo crítico e emancipatório do projeto

moderno10.

É exatamente nesse contexto que ele busca, em um de seus principais

trabalhos, desenvolvido pela primeira vez em “Direito e Democracia entre

faticidade e validade” (1992), explicar a co-originalidade da democracia e do

Estado de Direito através da Teoria do Discurso, como passamos a ver.

A teoria do discurso, bem como as teorias contratualistas, parte de um

estado inicial simulado. Este estado é o discurso racional em condições ideais, ou

seja, pessoas, em qualquer número, decidem livremente participar de um discurso

argumentativo que será a prática constituinte. Sem liberdade não é possível

situação discursiva, mas apenas uma situação de falso discurso, onde o possível

consenso é sempre ilusório em que nem a verdade e nem a legitimidade da norma

podem ser fundadas. Só há possibilidade de consenso fundado se os participantes

9 ROUANET Sergio Paulo. Ib. pág 284 10 NOBRE, Marcos. “Apresentação. Luta por Reconhecimento: Axel Honneth e a Teoria Crítica”In. HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento. A Gramática Moral dos Conflitos Sociais. Tradução Luiz Repa. Ed. 34. São Paulo, 2003.

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do discurso forem capazes de distinguir entre realidade e ilusão; essência e

manifestação; fatos e valores.

Além disso, a interação só é possível a partir da suposição de que o outro

age de forma consciente, intencional e justificada. Tal ficção apesar de necessária

é de fato ilusória dado que muitas vezes os indivíduos agem de forma

inconsciente por estarem iludidos por ideologias ou obstruções psíquicas. Fato é

que não há como verificar a existência da situação lingüística ideal ou do discurso

livre, logo, o consenso eventualmente alcançado pode ser ilusório. Todavia, o

discurso só é possível a partir dessa suposição11, caso contrário, não seria possível

distinguir o falso do verdadeiro e qualquer forma de comunicação interativa

ficaria inviabilizada. Desse modo, é importante ter em mente que a situação

lingüística ideal serve como um norte. Apesar de contrafática, é o único critério

que permite avaliar a distância entre a situação concreta nas condições atuais e as

condições ideais viabilizadoras de um consenso perfeito. Trata-se de um telos,

uma suposição e uma antecipação.

O que há de peculiar nesse telos é que não se apresenta como uma utopia

apenas. O discurso supõe a situação lingüística ideal e a interação supõe a

comunicação livre. Sem tais suposições não é possível nem discurso e nem

interação. Assim, empiricamente trata-se de ideais utópicos, mas, enquanto

suposições necessárias são princípios constitutivos. Ou seja, ao contrário do que

se pode pensar a primeira vista, a teoria habermasiana não pressupõe a existência

de consenso, mas antecipa e ao mesmo tempo busca as condições que tornariam

tal consenso possível.

Cabe notar que as próprias condições de validade do discurso não podem

ser objeto de argumentação discursiva, sob pena de se iniciar um círculo vicioso.

Tais condições podem ser extraídas do modelo de situação lingüística ideal. Essa

situação se concretiza quando não há perturbações externas (violência) e nem

internas (deformação sistemática, como ideologias e neuroses), proporcionando a

todos os participantes da relação dialógica chances simétricas para assumir os

diversos papéis.

11 Rouanet aponta para o risco de essa suposição levar a crer que o consenso alcançado em condições de comunicação deformada é o consenso ideal. Isso pode gerar um discurso conservador no sentido de validação das condições dialógicas existentes. ROUANET Sergio Paulo. Op. Cit. Pág. 313

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Assim, as condições ideais são complementadas pela igualdade originária

derivada da liberdade de arbítrio; pelo fato de todos estarem reunidos com o

mesmo fim, qual seja o de regular a futura convivência com os meios de direito

positivo; pela disposição de todos de preencher os pressupostos pragmáticos de

uma prática argumentativa, já que pretendem participar de discursos práticos; e,

finalmente, pela disposição para traduzir o sentido dessa prática na realização de

tarefas construtivas12.

Em um primeiro momento, os participantes concluem que, uma vez que

pretendem utilizar para a realização do seu projeto os meios do direito, precisam

criar uma ordem que garanta a todos os membros atuais e futuros da associação o

status de portador de direitos subjetivos. Todavia, para introduzir tal ordem de

direito positivo é imperativo que se assegure a exigência de legitimidade e

assentimento geral, o que pode ser feito, segundo Habermas, a partir da garantia

de três categorias de direitos sempre de conteúdo concreto variável, a saber:

direitos fundamentais, resultantes da configuração autônoma do direito, que prevê

a maior medida possível de liberdades subjetivas de ação para cada um; direitos

fundamentais que resultam da configuração autônoma do status de membro de

uma associação livre de parceiros do direito; e direitos fundamentais que resultam

da configuração autônoma do igual direito de proteção individual, portanto da

exigibilidade de direitos subjetivos.13

Com tais categorias de direitos garantidas, todos os participantes do

discurso passam a se reconhecer mutuamente como portadores de direitos

subjetivos protegidos e, portanto, reclamáveis. Antecipam as condições nas quais

desejam viver como destinatários do direito. Todavia, como pretendem fundar

uma estrutura na qual os cidadãos são não só destinatários, mas também autores

das leis, para manterem a autonomia, precisam assegurar também direitos

políticos que os possibilitem a autotransformação em legisladores políticos.

Precisam se garantir também direitos fundamentais resultantes da configuração

autônoma do direito para uma participação, em igualdade de condições, na

legislação política.

As três primeiras categorias de direitos referidas garantem a existência da

institucionalização jurídica, o próprio direito. Esta quarta categoria, no entanto,

12 HABERMAS, Jürgen. 2003. pág. 168 13 HABERMAS, Jürgen. Op. Cit. 2003. pág. 169

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garante a configuração política desse direito, sem a qual não é possível a este

obter conteúdos concretos. A partir dessa definição conceitual do projeto

constituinte e da linha que pretendem seguir em relação ao que devem considerar

direitos fundamentais, os participantes devem abandonar os esclarecimentos

filosóficos e passar a delinear o conteúdo concreto dos direitos. Uma vez que os

direitos fundamentais não são criados de forma abstrata, sendo sempre

particulares de conteúdo concreto, devem, a partir das circunstâncias históricas,

determinar as matérias a serem reguladas e os direitos correspondentes.

Só através do contato real e próximo com as exigências, riscos e

necessidades da comunidade é que será possível à reunião constituinte tomar

decisões. A partir da vivência no ambiente, é que se torna possível a percepção

dos nossos interesses e da necessidade dos direitos. Há assim dois níveis a ser

considerados: um que se conclui na esfera da fala, que diz respeito à linguagem

dos direitos subjetivos, na qual a associação de parceiros livres e iguais está

incorporada, bem como o princípio da soberania popular; e outro referente à

esfera da ação, âmbito da realização prática desse princípio. Uma vez que se

entenda e se acostume com o procedimento ininterrupto de autodeterminação para

a definição de direitos fundamentais, o princípio da soberania popular restará

concretizado.

A segunda ordem de regras, então, é justamente a que confere forma

jurídica ao princípio do discurso, dando origem ao princípio da democracia. O

princípio da democracia é o regulador da formação discursiva da vontade e

definidor das condições de institucionalização jurídica do poder político pelo

processo legislativo. É ele que garante a legitimidade do direito moderno. O

pluralismo de visões de mundo característico das sociedades modernas torna não

mais possível se falar em valores morais universais. Por esse motivo, o

procedimento democrático torna-se o único instrumento capaz de tornar legítimos

os atos de produção e aplicação do direito, já que permite a participação de todos

na formação da vontade e opinião públicas.

Nesse sentido, é necessário um olhar voltado para o âmbito da moral e de

sua relação com o direito. Primeiramente é interessante notar que, no campo da

moral, a autonomia é um bloco monolítico. Só a partir da institucionalização

jurídica, necessária à construção da sociedade democrática e a partir da pergunta

sobre “Que direitos pessoas livres e iguais precisam garantir umas às outras

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quando querem regular seu convívio com os instrumentos do direito positivo

coercivo?”14, é que houve a cisão da autonomia.

A autodeterminação moral é a obediência às normas que se considera

obrigatórias, conforme juízo imparcial próprio. A autodeterminação jurídica,

devido ao caráter de positividade do direito, cinde-se na autonomia privada e na

autonomia pública. Assim, visto que é da autonomia moral institucionalizada que

provém a dupla autonomia jurídica, também é importante, dentro da perspectiva

de superação da dualidade entre as autonomias pública e privada, trabalhar a

dualidade direito e moral.

Não há como ver o direito apenas como o resultado de disputa de forças

pragmáticas sem qualquer conteúdo moral e nem há como subordina-lo

inteiramente à moral, ignorando a parte pragmática, ética e comunicativa do

direito. O direito se fundamenta a partir de um consenso comunicativo gerado no

procedimento do discurso racional e argumentativo (autonomia pública). Neste

procedimento que deve ser dotado de certo grau de coercitividade e legitimidade,

definem-se os direitos e liberdades que devem ser mutuamente conferidos aos

membros da comunidade e também determina-se como será exercida a autoridade

política (autonomia privada).

Direito e moral não existem em uma relação de subordinação, mas de

coordenação, complementam-se reciprocamente. Não há separação estanque. As

razões de ordem moral penetram no direito, ainda que não sejam suficientes para

justificar uma norma, (são necessários também argumentos empíricos,

pragmáticos, éticos e comunicativos), estão sempre presentes e são consideradas.

Por outro lado, o direito complementa a moral, conferindo a esta maior

determinação do ponto de vista cognitivo e maior segurança no aspecto

motivacional, já que positiva e impõe de forma coercitiva as expectativas de

comportamento. O direito busca legitimidade na moral e esta busca efetividade no

direito.

Nessa direção, o princípio da democracia, ao institucionalizar

juridicamente o projeto de sociedade definido através do discurso público,

14 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do outro. Tradução George Sperber, Paulo Astor Soethe, Milton Camargo Mota. São Paulo, Edições Loyola, 2002. Pág. 90

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implementa a dimensão de faticidade do direito15. A tensão entre validade e

faticidade que é intensificada pela positivação e atribuição de coercitividade das

expectativas de comportamento, vai ser atenuada apenas dentro do discurso, que

considera variadas esferas de argumentação. Isso porque a moral sozinha mostra-

se inadequada para resolver essa tensão já que determina padrões de

comportamento que entram em conflito com a realidade, sem considerar a

possibilidade de tensão entre a validade pretendida e a faticidade.

Freud, em sua visão de superego cultural que pode ser entendido como

uma representação na teoria psicanalítica dos padrões morais, dizia que:

“O superego cultural desenvolveu seus ideais e estabeleceu suas exigências. (...) Ele também não se preocupa de modo suficiente com os fatos da constituição mental dos seres humanos. Emite uma ordem e não pergunta se é possível às pessoas obedecê-las”. 16

Somente com o princípio do discurso, que introduz o tratamento igualitário

entre os indivíduos e o consenso racional através do qual há o assentimento livre e

racional dos destinatários da norma, é que o princípio moral adquire o caráter de

regra argumentativa e somado a outras ordens de argumento, dá ao princípio do

discurso o caráter de universalidade, completando, então o princípio da

democracia.

Nesse contexto, a definição conceitual dos direitos fundamentais e todos

os passos preparatórios revelam as exigências inafastáveis para qualquer

procedimento de auto-legislação democrático que pretenda se moldar pelo direito.

Assim, os princípios da democracia e do Estado de Direito encontram-se em uma

relação de dependência recíproca.

No mesmo sentido, a realização aproximada do princípio do discurso só

pode se dar pela institucionalização jurídica de procedimentos democráticos de

formação da opinião e da vontade. Ou seja, no campo da realidade, só é possível

chegar perto da correção e da legitimidade, através da democracia. Além disso,

uma democracia em que as exigências da racionalidade discursiva possam ser

realizadas aproximadamente só é possível se os direitos políticos fundamentais e

15 LEITE, Roberto Basilone. Equiprimordialidade de direitos humanos e soberania popular em Jurgën Habermas. Tese de mestrado orientada pelo prof. Dr. Rogério Silva Portanova, na Universidade Federal de Santa Catarina, 2004. 16 FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Imago Ed. Rio de Janeiro, 1997. págs. 107/ 108.

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os direitos humanos forem garantidos e exercidos com suficiente igualdade de

oportunidades.17

O poder das leis não precede a vontade da soberania popular, nem

tampouco deriva dela, está inscrito na auto-legislação política, no sentido de que

somente são legítimas as normas que podem ser aprovadas em um consenso

racional em que todos sejam tratados com igual respeito.18 O exercício regular e

legal da auto-legislação liga-se às características constitutivas do direito. Por esse

motivo, a reciprocidade existente entre soberania popular e Estado de Direito se

reflete na relação entre a autonomia pública e a autonomia privada.

A positividade do direito obriga, sem dúvida, à divisão da autonomia. A

obrigatoriedade das normas jurídicas provem não apenas da compreensão do que

é bom para todos, (como ocorre em se tratando de normas morais), mas também

das decisões tomadas coletivamente pelas instâncias de criação e aplicação do

direito. Há aí uma divisão teórica entre o papel de criador do direito e o de

destinatário. Todavia, a divisão não implica em uma relação de prevalência ou

subordinação, ao contrário, só o fato de os dois papéis serem produtos da mesma

divisão, revela que surgiram ao mesmo tempo e se originam do mesmo bloco

monolítico.

O que ocorre é que a obrigatoriedade e coercitividade do direito positivo

têm o alcance limitado à esfera da ação, não chegam até a motivação. O máximo

que o direito pode exigir é um comportamento de acordo com as leis, sem a

perquirição dos motivos. De vez que não necessariamente a obediência à lei se dá

por existir realmente uma aquiescência e um respeito a ela pelo sujeito, a

autonomia privada passa a ser garantida no sentido de permitir uma configuração

própria da vida, limitada apenas ao reconhecimento da mesma autonomia aos

demais membros da comunidade. São as liberdades subjetivas. Contudo, deve-se

garantir a possibilidade de obediência ao direito pelo real respeito à lei e tal

hipótese só poder ser viável se o direito for legítimo. Ou seja, somente se o direito

for constituído por um procedimento democrático, capaz de gerar a suposição de

aceitação racional. É necessário que seja garantida a possibilidade de uso público

da razão.

17 ALEXY, Robert. Teoria Del Discurso y derechos humanos. Traduccíon e Introduccíon Luis Villar Borba. Universidad Externado de Colombia, 1995. Pág. 129/130. 18 Da mesma forma que a autolegislação moral está contida no imperativo categórico, segundo o qual somentes são legítimas as máximas generalizáveis. HABERMAS, Jürgen. 2003. pág. 171.

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Ao esclarecer que cidadãos politicamente autônomos são aqueles que se

compreendem em conjunto como autores das leis às quais se submetem,

Habermas conclui que:

“A relação dialética entre autonomia privada e pública só se torna clara por meio da possibilidade de institucionalização do status de um cidadão como esse, democrático e dotado de competências para o estabelecimento do Direito, e isso somente com o auxílio do direito coercivo. No entanto, porque esse direito se direciona a pessoas que, sem direitos subjetivos, não podem assumir de forma alguma o status de pessoas juridicamente aptas, as autonomias privada e pública dos cidadãos pressupõem-se reciprocamente”. 19

O que ocorre é que a autonomia pública e a privada constituem fins em si

mesmas, mas são também complementares e igualmente necessárias, constituindo

uma o meio para a outra. A orientação para o bem comum se liga à autonomia

pública e constitui uma expectativa racional na medida em que, apenas através do

procedimento democrático, é possível realizar de forma plena a autonomia

privada, possibilitando a todos o igual gozo das liberdades subjetivas. Por outro

lado, somente com a autonomia privada assegurada, a autonomia pública pode ser

otimizada e utilizada corretamente.

A questão sobre a co-originalidade e relação de implicação mútua entre as

autonomias pública e privada adquire uma relevância ímpar não apenas para a

superação do aparente paradoxo existente na formulação básica do Estado

Democrático de Direito, como também para a reflexão sobre a idéia habermasiana

de TODOS.20 A mesma dinâmica das disputas sobre a prevalência da autonomia

pública sobre a privada e vice-versa pode ser observada nas disputas ideológicas

pela prevalência do indivíduo sobre a sociedade ou o contrário. Ocorre que, há

aqui também uma relação de co-originalidade e implicação mútua, a identidade

subjetiva do indivíduo se forma em função do pertencimento, no interior da

comunidade, junto com a identidade de cidadão. Ao mesmo tempo em que se

formam os indivíduos, se forma a comunidade.

Não é possível explicar a natureza humana sem a alteridade. Habermas faz

uma reconstrução dialógica da moralidade kantiana. Unindo Freud a Marx,

19 HABERMAS, Jürgen. 2002. pág. 91 20 Trata-se da noção habermasiana de TODOS no sentido de que todo ser humano é sujeito de direito e capaz de reflexão e crítica, sendo, portanto, sempre desejáveis procedimentos democráticos e abertos. HABERMAS, Jürgen. O Estado Democrático de Direito – uma amarração paradoxal de princípios contraditórios? In. Era das Transições. Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 2003.

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afirma que o sujeito é construído a partir do trabalho e da interação. Há a auto-

produção através do controle da natureza e auto-formação através de processos

interativos. Junta Kant e Weber, mas modifica o foco da subjetividade no sentido

de consciência individual para a intersubjetividade. O que caracteriza o humano é

a necessidade do outro, a capacidade de estabelecer relações intersubjetivas. Para

se formar, o indivíduo precisa do mundo da linguagem, do registro da

argumentação, do diálogo. Une a teoria e a prática a partir do marco

comunicativo.

Não é possível explicar o indivíduo sem o outro. O novo indivíduo não é

mais aquele kantiano que enfrenta o mundo sozinho, através da racionalidade. A

individualização ocorre pela socialização, a partir da capacidade de comunicação

lingüística, de reflexão e de crítica. Como assinala Habermas, os indivíduos

“Só se constituem enquanto tal porque ao crescerem como membros de uma particular comunidade de linguagem se introduzem em um mundo da vida intersubjetivamente compartilhado. Nos processos comunicativos se formam co-originariamente a identidade do indivíduo e a do coletivo”. 21

As pessoas só são livres se são limitadas apenas pelas normas das quais

foram co-autoras, ou seja, das normas que são o produto de um procedimento

democrático legítimo. O procedimento democrático só é legítimo, quando conta

com a participação de todos os destinatários das normas em posição de igualdade

e liberdade.

Nesse contexto, torna-se clara a necessidade e a correção do que Habermas

chama de autonomia simétrica, a idéia de que nenhum indivíduo é livre enquanto

houver uma única pessoa que não esteja gozando da mesma liberdade. Torna-se

incontestável que “a inclusão de grupos marginalizados e a elevação de classes

sub-privilegiadas fazem com que melhorem os pressupostos para a legitimidade

dos processos democráticos existentes”. 22

21 Cf. Jürgen Habermas, Objecciones de Hegel a Kant, in Escritos sobre Moralidad e Eticidad, Barcelona, Paidós, 1991, págs. 105-106. Apud. Cittadino, Gisele. Invisibilidade, Estado de Direito e Política de Reconhecimento. Trabalho apresentado no XXVII Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), Caxambu, outubro de 2003. Pág.8. 22 HABERMAS, Jürgen. O Estado Democrático de Direito – uma amarração paradoxal de princípios contraditórios? In. Era das Transições. Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 2003. pág. 166.

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Com base nessa assertiva, cabe uma análise mais detida sobre a formação

da identidade e as relações entre indivíduos e grupos na sociedade pós-tradicional.

Para isso, será exposto o pensamento de Axel Honneth como contribuição para o

debate dessas questões em uma sociedade caracterizada por uma pluralidade de

concepções de bem, impeditiva de uma moral universal.

3.4 Axel Honneth: a Formação da Identidade

Nascido em 1949, Axel Honneth pode ser incluído também entre os

integrantes da Teoria Crítica. Sucessor de Habermas na Universidade de

Frankfurt, tal como este que apresentou seu primeiro trabalho teórico em contraste

com a teoria de seus antecessores, Honneth também desenvolveu uma teoria

crítica em relação à teoria habermasiana. Aplicou a Habermas a mesma

metodologia aplicada por ele, buscando caminhos promissores, porém não

trilhados no próprio pensamento habermasiano.

Os elementos não explorados são aqueles vinculados ao processo de

construção social da identidade, cujo elemento central é a luta por

reconhecimento. Para Honneth, o grande erro de Habermas foi não ter explorado o

entendimento de intersubjetividade comunicativa como algo estruturado pela luta

e pelo conflito social. Honneth também busca uma Teoria Crítica com

componentes universalistas, mas calcada na intersubjetividade. Ele sustenta que a

base da interação é o conflito, por isso, segue a proposta interpretativa de uma

interação social que é também uma disputa pela forma de organização

instrumental. As mudanças sociais devem ser explicadas com base nas pretensões

normativas inscritas nas relações de reconhecimento.

Com esse fim, utilizou o pensamento de Hegel como ponto de partida, e

trouxe da psicologia social de G. H. Mead o conceito de pessoa, originado na

intersubjetividade, em que a possibilidade de uma auto-relação saudável depende

de três formas de reconhecimento: amor, direito e estima. A obra de Honneth é

extremamente importante para que se compreenda a complexidade que o conceito

de indivíduo adquiriu e o modo de formação das identidades individuais e

coletivas.

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Preliminarmente, pode-se dizer que os sujeitos devem sua identidade à

experiência de reconhecimento intersubjetivo. Há três formas de reconhecimento

recíproco e a relação positiva da pessoa consigo mesma se intensifica ao passar

pela seqüência dessas três formas, que são o amor, o direito e a estima. Se uma

pessoa não tem a experiência da reação do outro a si, se não percebe o outro, não

tem como desenvolver sua autoconsciência, pois não tem como perceber suas

reações como suas produções próprias.

Sendo certo que a integridade do ser humano se deve a padrões de

assentimento e reconhecimento, a identidade de cada um se constrói no

entrelaçamento entre individualização e reconhecimento, depende o tempo todo

de um e do outro juntos. Uma experiência de desrespeito, ou de negação

vinculada a qualquer uma das formas de reconhecimento é capaz de gerar graves

lesões, ou mesmo desmoronar uma identidade pessoal.

A forma mais elementar de reconhecimento é a construída a partir do

amor, cerne estrutural de toda a eticidade.23 Só a ligação simbioticamente

alimentada, surgida da delimitação reciprocamente querida, cria a medida de auto-

confiança indispensável para a vida privada do sujeito e para a participação

autônoma na vida pública.

O desrespeito que afeta tal forma de reconhecimento é o que toca a

integridade corporal, como por exemplo, tortura e maus-tratos. Uma vez

submetida à vontade de outrem, surge na pessoa uma vergonha social com a perda

da confiança em si e no mundo. Essa forma de auto-confiança psíquica vem do

equilíbrio subjetivo entre fusão e delimitação. Assim, essa experiência de

desrespeito não varia de acordo com a história ou com o quadro de valores

referenciais. Será sempre acompanhada do colapso da crença no mundo social,

por mais distintos que sejam os processos de legitimação.24

Uma vez superada a etapa do reconhecimento construída pelo amor, pode-

se dizer que, ampliando o comportamento reativo social até os nexos normativos

da ação, a auto-imagem vai da cognição à prática. O sujeito coloca-se na

perspectiva de seu parceiro de interação. O outro adquire suas referências

axiológicas morais e estas são aplicadas ao próprio sujeito. Este, então, assume as

23 Para Hegel, conforme expõe Honneth in HONNETH, Axel. Op. Cit. Pág. 160 24 Apesar da importância do amor na formação da identidade do indivíduo, nesse trabalho, serão priorizadas, as duas outras formas de reconhecimento trazidas por Honneth, dado que são mais importantes para a compreensão do tema principal desta investigação teórica.

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normas sociais de ação do “outro generalizado” e passa a se entender como

membro socialmente aceito da comunidade.

O indivíduo aprende não só as obrigações que tem que cumprir diante da

coletividade, mas também que tem pretensões que deve esperar legitimamente que

sejam respeitadas, já que há direitos que lhe pertencem. Nesse sentido, a segunda

etapa do reconhecimento se constrói a partir da concessão de direitos.

“Reconhecer-se reciprocamente como pessoa de direito significa que ambos os sujeitos incluem em sua própria ação, com efeito de controle, a vontade comunitária incorporada nas normas intersubjetivamente reconhecidas de uma sociedade”. 25

De qualquer forma, a relação de reconhecimento não será completa se não

expressar de forma positiva as diferenças individuais entre os cidadãos, ou seja, o

potencial criativo de cada um. Da mesma forma que acontece entre a criança e a

mãe, a relação aqui deve ser, ao mesmo tempo e na mesma medida, de simbiose e

individualização. É de extrema importância para a auto-realização do indivíduo

que se sinta membro da coletividade, mas também que se sinta importante e

insubstituível na sua individualidade.

Os protagonistas de uma intersubjetividade interativa querem ser

reconhecidos como únicos, insubstituíveis e insuscetíveis de serem englobados

por categorias universais, mas só podem exprimir-se como únicos a partir dessas

mesmas categorias universais que negam essa particularidade em certo sentido.

Habermas defende que a não-identidade está na estrutura da comunicação comum.

“Através de atos lingüísticos representativos, os sujeitos se afirmam e se

reconhecem como não-idênticos, no médium de categorias universais, produtoras

de identidade”. 26

Trava-se uma disputa entre as pretensões de realização do indivíduo e a

internalização das regras do “outro generalizado”, simbolizando o que a

coletividade espera do indivíduo. O sujeito vive um eterno conflito entre os seus

impulsos excedentes e os imperativos da realidade. Até mesmo a relação com o

trabalho não ocorre naturalmente. “O homem precisa ser compelido ao trabalho,

25HONNETH, Axel. Op. Cit Pág 138 26ROUANET Sergio Paulo. Op. Cit. Pág. 316

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através de um sacrifício pulsional, em parte compensado pela gratificação

substitutiva induzida pelas legitimações coletivas”. 27

Sendo assim, para que a pessoa chegue à auto-realização, ela passa a

buscar um ideal contrafático que seria a existência de uma coletividade que

permitisse a realização total das suas autonomias e liberdades, sem com isso,

deixar de reconhecê-la como seu membro. Nessa perspectiva, ela passa a buscar

reconhecimento a partir da obtenção de direitos que permitem um maior espaço de

atuação individual e de autonomia.

O sujeito só se torna capaz de se saber como portador de direitos, no

sentido de que suas pretensões legítimas serão atendidas, a partir do momento em

que reconhece suas obrigações diante do outro e da coletividade. Ele passa a

reconhecer os outros como ele próprio quer ser reconhecido: como livre e como

pessoa. Tal espécie de reconhecimento se constrói historicamente.

Foi preciso que se desvinculasse o reconhecimento de direitos das

características particulares do sujeito, tais como status, privilégios, nascimento. Só

assim foi possível se ater a uma base mais universal de reconhecimento de

direitos, qual seja a atrelada à condição de ser humano. É necessária a

dependência com relação a princípios morais universalistas.28 Só quando o

sistema jurídico passou a ser visto como a expressão de interesses

universalizáveis, que ele se desvinculou de qualquer característica individual e de

privilégios e exceções.

O reconhecimento jurídico parte do pressuposto kantiano de que todo

indivíduo é um fim em si, todos são pessoas e livres, sem qualquer forma de

graduação. Os direitos se desvinculam dos papéis sociais dos indivíduos e devem

ser concedidos a todos os sujeitos em igual medida. Dessa forma, em um contexto

de moral pós-convencional, o reconhecimento como pessoa de direito se afasta

completamente da medida da estima social, que passa a ser uma outra forma de

respeito.

“...sujeito é capaz de se considerar, na experiência do reconhecimento jurídico, como uma pessoa que partilha com todos os outros membros da coletividade as propriedades que capacitam para a participação numa formação discursiva da

27 ROUANET Sergio Paulo. Op. Cit. Pág. 334 28 Para Hegel, conforme expõe Honneth in HONNETH, Axel. Op. Cit.Pág. 181

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vontade; e a possibilidade de se referir positivamente a si mesmo desse modo é o que podemos chamar de “auto-respeito”. 29

Só mediante o auto-respeito, o cidadão reconhece a sua ação como

autônoma e respeitada. Ele passa a respeitar a si próprio a partir do respeito da

coletividade. Isso só pode se dar com a formação de direitos universais

adjudicados de igual maneira a todos, como sujeitos iguais, livres e moralmente

imputáveis. Nesse sentido, a propriedade universal a ser protegida está

relacionada à nova forma de legitimação. As normas só são legítimas quando

baseadas em um acordo racional feito por indivíduos autônomos e iguais. Por isso,

toda sociedade moderna pressupõe a imputabilidade moral de todos os seus

membros.

“...Uma disposição para a obediência de normas jurídicas só pode ser esperada de parceiros de interação quando eles puderem assentir a elas, em princípio, como seres livres e iguais, migra para a relação de reconhecimento do direito uma nova forma de reciprocidade, altamente exigente: obedecendo à mesma lei, os sujeitos de direito se reconhecem reciprocamente como pessoas capazes de decidir com autonomia individual sobre normas morais.” 30

A definição do que é necessário para que um sujeito seja capaz de agir

autonomamente com discernimento racional depende do que se vai definir como o

procedimento de acordo racional. Conforme essa definição, alteram-se as

propriedades necessárias para que alguém participe como igual. A definição do

que caracteriza um sujeito como pessoa depende do que se consideram

pressupostos para a participação na formação racional da vontade.

A luta por direitos, a partir dos valores morais universais, sempre se deu

com base na exigência de igual valor como membro da coletividade. Mesmo os

direitos de participação, ligados até então a status, a modificações jurídicas e

políticas, passaram a ser exigidos pelos grupos excluídos a cujas exigências não

foi possível contrapor nenhum argumento. Com isso, foi se consolidando a idéia

de que a todo membro da coletividade deve caber igual direito de participação na

formação democrática de vontade.

Contudo, apenas esse reconhecimento formal não bastou. As massas

permaneceram afastadas do exercício dos direitos políticos já que não tinham

nível de vida e segurança econômica que possibilitasse uma real inserção na vida

29 HONNETH, Axel. Op. Cit. Pág 197 30 HONNETH, Axel. Op. Cit. Pág. 182

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pública. Tal participação efetiva só é assegurada àqueles que têm um nível

mínimo de vida. Por esse motivo, ampliou-se o conjunto das capacidades que

caracterizam o ser humano como pessoa, incluindo-se uma medida mínima de

formação cultural e capacidade econômica indispensáveis para a ação autônoma

com discernimento racional. Assim, hoje, reconhecer-se mutuamente como pessoa

está atrelado não apenas à capacidade abstrata de poder se orientar por normas

morais, mas também à propriedade concreta de merecer nível de vida para isso.

Com essas limitações, a problematização discursiva fica inviabilizada

pelas neuroses e pelas instituições. A sociedade impede que motivações

indesejáveis sejam transformadas em ação e removem as interpretações

simbólicas correspondentes. Os motivos se tornam inconscientes. O símbolo

lingüístico correspondente ao desejo torna-se insuscetível de ser comunicado. A

comunicação real é substituída pela pseudo-comunicação entre sujeitos incapazes

de articular desejos incompatíveis com aquelas normas. Assim, a falsa consciência

individual, somada às legitimações ideológicas, faz a comunicação

sistematicamente deformada. As relações de poder não são tematizadas, de vez

que há a “deformação sistemática do processo comunicativo por sistemas de

dominação que impedem (...) a problematização discursiva das instituições que

regulamentam aquelas relações de violência”. 31

Apesar da deformação do processo comunicativo e democrático, é de se

reconhecer que o processo político de lutas por direitos, além de ampliar o rol de

atribuições necessárias para a capacidade de um sujeito, foi também ampliado do

ponto de vista social, sendo transmitido a um número crescente de membros da

sociedade. O direito ganhou em conteúdos materiais, havendo uma consideração

jurídica crescente das diferenças de chances individuais nas condições de

realização das liberdades e, também ganhou universalização, passando a abranger

grupos, até então excluídos e desfavorecidos, de forma igual.

O fato é que esse sistema de direitos serve de parâmetro para que o sujeito

encontre o reconhecimento da sua capacidade de formação de juízo autônomo.

Daí vem o nexo entre reconhecimento jurídico e auto-respeito. A posse de direitos

individuais é a possibilidade de impor pretensões aceitas e, com isso, sentir-se

respeitado. Através da possibilidade de reclamar direitos, é dado um meio de

31 ROUANET, Sergio Paulo. Op. Cit. Pág. 335. Para o autor, a teoria freudiana é emancipatória exatamente por desmistificar a história humana, apontando essa lógica do sistema.

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expressão cuja efetividade demonstra a medida do seu reconhecimento como

sujeito moralmente imputável.

O reconhecimento como sujeito de direitos dá ao indivíduo o sentimento

de confiança vinculado ao auto-respeito. Cabe notar que a comprovação do

fenômeno do auto-respeito é extremamente difícil, pois ela só se torna perceptível

na forma negativa, a partir da comparação de grupos em que há o destaque de

alguns em virtude do sofrimento advindo da experiência do desrespeito.

Quando o sujeito permanece estruturalmente excluído da posse de

determinados direitos, (entendidos como as pretensões individuais com cuja

satisfação uma pessoa pode contar legitimamente, de vez que participa da mesma

forma que os outros membros da sociedade), há rebaixamento moral. Se tal

participação lhe é negada, afirma-se que a imputabilidade moral daquele sujeito

não é igual à dos demais, ocasionando a perda do auto-respeito.

De vez que o considerado moralmente imputável varia em função do

tempo e do local, a experiência da privação deve ser aferida não só pelo grau de

universalização de direitos, mas também pelo alcance material daqueles que são

institucionalmente garantidos. Nesse contexto, o que se busca é a ampliação da

comunidade no sentido de garantir mais direitos aos indivíduos, aumentando o

espaço de todos e também no sentido de esses direitos serem transmitidos a um

número cada vez maior de pessoas. A partir da generalização dos axiomas dos

parceiros de interação, é possível chegar a finalidades comuns de toda a

coletividade.

Nessa direção, Honneth afirma que a forma mais profunda de

reconhecimento é a solidariedade universal. Esta ocorre no momento em que o

amor se purifica e todos os membros da comunidade passam a se respeitar em

suas particularidades. Mas por que deveriam os indivíduos experimentar tais

sentimentos para com os outros? É preciso o estímulo de uma experiência que

ensine que partilhamos uns com os outros, num sentido existencial, a exposição a

certos perigos. Só é possível determinar quais desses nos vinculam previamente a

partir das concepções em comum acerca de uma vida bem sucedida.

O reconhecimento só é viável quando existe entre os sujeitos um horizonte

de valores e objetivos compartilhados. Duas pessoas só podem valorizar suas

propriedades individuais mutuamente como contribuição, se compartilham o

mesmo objetivo. Assim, cada um contribuirá para a vida do respectivo outro.

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Já que os padrões de estima social são cambiantes, foi necessário um

desacoplamento entre o reconhecimento jurídico e a estima social. Desse modo,

foi possível falar em princípios universalistas. Toda forma de reconhecimento por

estima está ligado a um quadro de valores de determinada comunidade. Como os

valores sociais mudam, a estima social pode assumir inúmeras formas. O aspecto

universal da honra tomou a forma de “dignidade”, no sentido de universalização

jurídica e o aspecto privado, a forma de “integridade”, subjetivamente definido. A

dignidade foi ligada ao sentimento de pertencimento à sociedade que ocorre no

momento em que são concedidos direitos e a estima social se dissociou de

qualquer privilégio jurídico e de qualidades morais da personalidade.

Quanto mais aberto e plural for o quadro de valores da comunidade e

quanto mais a hierarquia for substituída pela concorrência horizontal, mais a

estima social ocasionará traços individualizantes e relações simétricas. Nesse

contexto, as propriedades dessa forma particular de reconhecimento podem ser

percebidas a partir da passagem da sociedade tradicional para a moderna, com a

transição do conceito de honra para o de reputação e prestígio social. Apenas na

modernidade a legitimidade dos valores éticos das sociedades tradicionais

passaram a ser questionados com base nas inovações culturais. A ordem

hierárquica de estima sofreu uma mudança estrutural.

O sistema referencial valorativo das sociedades tradicionais que tinham

sua legitimidade assegurada pelas religiões e pela metafísica, começou a ruir a

partir da perspectiva de que os valores éticos são definidos a partir de disputas

intramundanas. O referencial de valores perdeu seu caráter objetivo e a

capacidade de definir uma escala de prestígio social. Não era mais possível

normatizar comportamentos com base em propriedades previamente atribuídas a

grupos inteiros. A partir de então, a estima social passou a se ligar a características

individualizadas, cabendo ao direito absorver a parte universal de validade com o

conceito de “dignidade humana”. O valor da pessoa a partir de características que

ela não partilha com todas as outras deixou de ser determinada de forma

coletivista. Não era preciso fixar a pertença do indivíduo a determinado

estamento, já que tal referência ia se diluindo.

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“A individualização das realizações é também necessariamente concomitante com a abertura das concepções axiológicas sociais para distintos modos de auto-realização pessoal...” 32

Com base nesse novo contexto de universalização e individualização,

Honneth observa que a solidariedade ocorre no interagir de grupos que querem

elevar suas interpretações de valores sociais e reconhecem entre seus membros as

capacidades individuais que contribuem para isso em cada um. Tal conceito se

aplica precipuamente às relações de grupo que se iniciam na resistência à

repressão: a concordância no objetivo prático gera o horizonte de valores comum,

no qual cada um reconhece a capacidade do outro.

Tal estima ocorrida dentro do grupo também se adequa à forma

estamental, mas, com a individualização, muda o modo como o indivíduo se vê. O

sujeito não precisa mais referir o respeito que goza socialmente ao grupo todo,

refere-se a si próprio. Surge uma confiança emotiva na posse de valores

reconhecidos pelos demais do grupo. Surge a auto-estima. Quando todos os

membros da sociedade conseguem estimar a si próprios dessa forma, pode-se falar

em um estado de solidariedade social pós-tradicional.

Nas sociedades modernas, a solidariedade está ligada à estima simétrica

entre sujeitos individualizados e autônomos. Estima simétrica não quer significar

quantificação ou gradação das estimas, mas sim a chance que cada sujeito recebe,

sem graduações coletivas, de experienciar a sua forma de auto-realização como

valiosa para a sociedade. Honneth, então salienta que somente nesse sentido, a

concorrência individual por estima social pode ser isenta de dor.

Como ocorre com as outras formas de reconhecimento expostas

anteriormente, também a estima pode ser negada ao indivíduo, gerando perdas

graves para a identidade e, logo, afetando a capacidade do sujeito de participar do

discurso racional. É certo que se trata de experiência subjetiva autônoma inserida

em um processo histórico, de vez que só se torna factível a partir da

individualização dos padrões de estima social. É a degradação cultural de padrões

de auto-realização que gera a perda da auto-estima. Subtrai-se da pessoa o

assentimento social dado à forma de auto-realização que ela encontrou para si.

Tendo em vista as perdas trazidas pela privação da posse de direitos e

também pelo rebaixamento cultural de formas de auto-realização, pode-se afirmar

32 HONNETH, Axel. Op. Cit. Pág. 205

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que tanto o reconhecimento jurídico quanto a estima social são importantes para a

auto-realização do ser humano. Os dois são baseados nas propriedades do sujeito,

mas o primeiro se refere a propriedades universais que fazem dele uma pessoa e o

segundo, às propriedades que o diferenciam das outras pessoas. Logo, ao tratar do

primeiro, cumpre indagar sobre como se determina as propriedades universais da

pessoa enquanto tal, ou seja, trata-se da capacidade pela qual os sujeitos se

respeitam mutuamente quando se reconhecem como pessoas de direitos.33

A auto-afirmação acontece quando o sujeito consegue afirmar as suas

pretensões em face da coletividade, ou seja, quando se insere em uma comunidade

jurídica ampliada. Só é possível defender as exigências individuais, diante de uma

comunidade com mais espaço para a liberdade e autonomia pessoal. A evolução

se deve em grande parte à liberação social progressiva da identidade individual.

Há, de fato, um desencadeamento histórico do potencial da individualidade pela

via de um aumento do espaço de liberdade juridicamente concedido. Nesse

sentido, a luta pela ampliação dos direitos concedidos tem o fito de ampliar a

individualidade e também o reconhecimento.

A importância desse espaço de reconhecimento jurídico, torna-se

cristalino, quando mais uma vez se volta o olhar para a psicologia social. O que se

afirma é que quando as normas que refreiam a ação são violadas pelo próprio

sujeito, surge o sentimento de culpa; já quando são violadas pelos parceiros de

interação, surge no sujeito o sentimento de indignação. No primeiro caso, o

sujeito se sente diminuído por ter ferido seus próprios ideais do ego, no segundo,

ele se sente sem valor porque outros ferem normas cuja observância o fez valer

como a pessoa que ele deseja ser conforme os ideais do seu ego.

Os sintomas são as reações emocionais negativas, como os sentimentos de

vergonha social. Tais reações negativas que acompanham essas experiências

podem ser a base motivacional para a luta por reconhecimento. Aí está o elo que

pode ligar o desrespeito social à ação de luta ou reconhecimento: no elemento

psíquico das reações emocionais negativas.

A repressão é condição estrutural do próprio processo de humanização. O

homem é condenado à repressão e à fantasia que pode servir de base para a

libertação progressiva. Contudo, Freud reconhece a repressão em função do grau

33 Em condições pós-convencionais, deve-se ater não apenas à posse dessa capacidade, como à possibilidade de seu exercício efetivo pela pessoa.

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de controle da natureza e também a sobre-repressão decorrente da desigual

distribuição das riquezas. Privações adicionais decorrentes da dominação racial e

de classes. Tais grupos oprimidos transformam a utopia em crítica.

As ilusões coletivas oferecem uma utopia que pode se realizar ou não.

Nesse sentido, o pessimismo cultural de Freud vinha da sua visão de repressão no

contexto da comunicação deformada, definida pelos interesses de classes.

Consistia na negação de uma predestinação teleológica. Ou seja, o progresso

social é alcançado por uma atividade crítico-prática, na esfera da ação

comunicativa, que contesta o poder, dissipando as ideologias obsoletas.34 Tal

desmistificação ocorre através dos processos coletivos de auto-reflexão,

conduzidos por representantes dos grupos oprimidos. Há a reapropriação da

história esquecida dos grupos. A base motivacional é o sofrimento.

É uma luta por reconhecimento que, como força moral, promove

desenvolvimentos e progressos na realidade da vida social do ser humano. A

experiência do desrespeito é a fonte emotiva e cognitiva de resistência e levantes

coletivos. Quando o sujeito não pode mais agir por conta de um desrespeito às

pretensões do seu ego, ele se sente dependente para a constituição da sua própria

pessoa do reconhecimento do outro. O sentimento se torna transformador quando,

de alguma forma se generaliza, mas o objetivo é a realização de cada indivíduo.

A auto-realização, como visto, acontece a partir da inserção em uma

relação de reconhecimento recíproco, na qual o sujeito se sabe como pessoa que

se distingue de todas as outras por suas particularidades.35 Nesse ponto, Honneth

apresenta sua crítica à Mead que, em uma tentativa de criar uma teoria neutra

sobre o surgimento da idéia de auto-respeito, afirmou que tal relação de

reconhecimento se efetiva pela divisão funcional do trabalho. É verdade que os

membros da sociedade se sentem únicos ao cumprir de forma eficiente as tarefas

que lhe foram impostas. Contudo, tal relação não ocorre de forma independente

das finalidades éticas, pois, é com base na concepção comum de vida boa que se

determina a valência das funções do trabalho. O sujeito pode se conceber como

insubstituível se a sua própria forma de auto-realização é vista como uma

contribuição positiva para a sociedade.

34 ROUANET. Op. Cit. Pág. 336 35 HONNETH, Axel. Op. Cit. Pág. 149

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Com o embasamento na divisão do trabalho, torna-se impossível superar o

problema de impor limites às finalidades éticas. Tais limites devem ser tais que a

concepção de vida boa, intersubjetivamente vinculante seja formulada de tal

forma que deixe ao membro da comunidade a possibilidade de determinar seu

modo de vida no quadro dos direitos que lhe cabem. O objetivo é alcançar uma

eticidade em que o horizonte cultural seja aberto de tal sorte que os sujeitos, com

iguais direitos, possam se reconhecer reciprocamente em suas particularidades

individuais pelo fato de cada um contribuir, à sua maneira, para a reprodução da

identidade coletiva. Somente uma eticidade democrática propiciaria isso, sendo

capaz de alcançar o problema de integração ética das sociedades modernas36.

Em que medida a integração social das sociedades depende

normativamente de uma concepção comum de vida boa é o debate entre liberais e

comunitarianos.37 A questão é que ainda que não se saiba como determinar um

horizonte comum ou como distinguir entre o universalizável e o particular, sabe-

se que existem características existenciais que nos vinculam previamente. Nesse

sentido, as reflexões recaem sobre o modo de determinar um sistema de valores

que deve ser aberto o suficiente para permitir formas individuais de auto-

realização, mas também deve servir de critério de estima. Nesse contexto, travam-

se as lutas ideológicas e por reconhecimento.

3.5 Conclusões

Nas sociedades tradicionais, quando um súdito olhava para o outro era

como se olhasse no espelho. Não havia diferenciação entre eles. A fala política

vinda do topo dava a eles homogeneidade. Eram as chamadas sociedades

mecânicas.

O iluminismo e o contratualismo trouxeram a razão para o centro das

decisões operando uma grande mudança. Cada um passou a ter uma racionalidade

36 HONNETH, Axel. Op. Cit. Pág. 152/153. 37 HONNETH, Axel. Op. Cit. Pág. 154. Liberais seguem uma linha teórica de tradição kantiana, com base no individualismo atomista e em uma essência individual universal a ser protegida. São monológicos , baseiam-se na moral, no bem, em princípios. Os comunitarianos vêm de uma tradição hegeliana e têm como base a coletividade, a dialogia, a ética, o bom e os valores. Para uma visão mais ampla e profunda, v. CITTADINO Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2000.

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própria e, por isso, todos se tornaram capazes de escolher seu destino. Cada um

considerado individualmente, mas todos, não importando as diferenças e posições

sociais, se tornaram capazes de reflexão. Eram capazes de criar elos substantivos,

de compartilhar valores. Surgia a idéia de bem comum. Não vinha do topo a

verbalização de como o sistema devia funcionar. Reinava a ideologia da justa

troca. Havia um todo, mas as partes eram consideradas separadamente. Era a

sociedade convencional orgânica.

Aos poucos a ideologia da justa troca foi se mostrando falha. Surgiu a

sociedade pós-convencional, onde a sociedade civil organizada atua paralelamente

ao mercado. O Estado passa a intervir para balizar o desenvolvimento da

sociedade, em uma ação que parte do político para o subsistema, na mesma

direção que ocorria nas sociedades mecânicas. A diferença é que isso se dá de

uma forma ideologizada e pretensamente apolítica. As intervenções são

legitimadas pela técnica. É um mundo tão plural que não há valores ou

convenções de conteúdo universalizável. Quando um indivíduo olha para o outro

vê um estranho. A sociedade permite que cada um individualmente escolha e

persiga o seu projeto de vida. É um mundo de estranhos, onde a unidade pode ser

garantida apenas pelos elos procedimentais.

Trata-se de uma sociedade formada por indivíduos com concepções

distintas de bem e grupos com identidade étnicas religiosas, sociais e culturais

diferentes38. Ainda que não haja um caldo de cultura que possibilite o consenso,

ainda é possível manter o projeto da modernidade, como o primeiro projeto da

humanidade que faz menção à noção de todos, como conjunto inteiro das pessoas

que formam a sociedade. Refere-se a todos como seres capazes de auto-reflexão e

crítica39. Nessa sociedade, não há possibilidade de consenso substantivo, mas

apenas o procedimental que será legítimo na proporção de realização da

participação de todos como autores e destinatários das normas.

Tendo em vista essa realidade e vislumbrando como norte as condições

ideais do discurso, Habermas utiliza a psicanálise para pensar o mundo do ponto

de vista emancipatório. Pela leitura dele, Freud deixa de ser trágico e passa a herói

cultural de um mundo regido pela ação comunicativa, que autoriza, num marco

consensual, sínteses progressivas. A psicanálise deixa de ser invocada “para salvar

38 Uma sociedade que une, na prática, as concepções liberal e comunitariana de pluralismo. 39 Ainda que nem todos tenham condições para realmente usufruir dessa capacidade.

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da falsa consciência indivíduos e grupos minoritários, mas para deflagrar

processos de argumentação social em que todos os interessados possam

tendencialmente participar, com vistas à cristalização consensual da verdade”. 40

A psicanálise é uma teoria derivada da reflexão sobre a “experiência da

comunicação sistematicamente deformada que visa dissolver falsas objetivações

através de propostas de interpretação em que os interessados possam, finalmente,

reconhecer-se, reapropriando, assim, uma parte perdida da sua própria

subjetividade”. 41 A partir da teoria psicanalítica, é possível uma a ampliação do

espaço de realização do desejo, com a contínua reinterpretação das necessidades.

Assim, a única moral compatível com o grau de desenvolvimento alcançado é

uma ética comunicativa, através da qual, são válidos apenas os preceitos objeto de

um consenso alcançado com a participação de todos.

Nesse marco de consenso procedimental, o valor conferido a diversas

formas de auto-realização e a forma como se definem as propriedades e

capacidades correspondentes se medem pelas interpretações que predominam

historicamente sobre as finalidades sociais42. Ou seja, tudo depende de qual grupo

de pessoas, (ligadas por características contingenciais ou unidas pelo sentimentos

negativos da privação), conseguirá interpretar de forma pública suas realizações e

formas de vida como particularmente valiosas. Assim, a práxis exegética é um

conflito cultural de longa duração: diversos grupos tentando elevar socialmente as

capacidades relacionadas à sua forma de vida.

O resultado das lutas, que se caracteriza por uma estabilização temporária,

depende do poder de dispor de forças simbólicas. Tal poder se traduz na bem-

sucedida tentativa de chamar a atenção da esfera pública. Uma vez tendo

conseguido essa atenção os membros do grupo apontam de modo coletivo a

importância de suas contribuições individuais. Importância até então

negligenciada. Surge, dessa forma, a possibilidade de elevar a reputação dos

membros do grupo43.

40 ROUANET Sérgio Paulo. Op. Cit. Pág. 327 41 ROUANET Sérgio Paulo. Op. Cit. Pág. 326. 42 HONNETH, Axel. Op. Cit. Pág 207. 43 Essas lutas estão associadas muitas vezes aos padrões econômicos. De acordo com a teoria habermasiana, o erro dos partidos socialistas foi confundir a teoria, a conscientização e a organização estratégica. A aceitação sem coação pelos interessados torna a teoria mais forte, porém, a validade continua incerta. A corroboração final só poderia ocorrer quando todos os potencialmente interessados participassem da argumentação discursiva. Isso é incompatível com a luta que implica na incapacidade de classes antagônicas participarem de um processo discursivo. A

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As interpretações culturais que concretizam os objetivos abstratos da

sociedade continuam a ser determinados por disputas entre pessoas organizadas

em grupos, de forma contingencial. Tudo se define pelos interesses dos grupos

sociais na valorização das suas capacidades. Contudo, ao fim e ao cabo, dentro da

ordem de valores definida pelo conflito, a reputação dos sujeitos se mede pelas

realizações individuais, pelas formas particulares de auto-realização.

Habermas nos mostrou a esperança de emancipação ao apontar para a

capacidade inafastável e deontológica de reflexão e crítica de que todo ser

humano é dotado. Através da Teoria do Discurso, ficou comprovada a necessária

interdependência entre direitos humanos e soberania popular, entre indivíduo e

sociedade. Honneth explorou a dinâmica dos conflitos que têm lugar em uma

sociedade na qual, todos têm o potencial para o agir autônomo, mas alguns são

privados das condições favoráveis ao desenvolvimento dessa autonomia. Os dois

autores afirmam que a formação do indivíduo autônomo se dá concomitantemente

ao surgimento do sujeito que pertence ao grupo. Honneth demonstrou que a

negação do reconhecimento pela comunidade provoca graves conseqüências na

formação da identidade do indivíduo. Os sentimentos negativos gerados podem

ser fator de formação de grupos cujos membros travarão uma luta em busca da

auto-realização.

Se é certo que a formação do indivíduo se dá de forma dialógica e que o

grupo influi na formação da identidade do indivíduo, também é certo que os

direitos fundamentais são definidos, reconhecidos e assegurados como direitos

individuais. Diante dessas verdades intersubjetivamente aceitas e, com base na

estrutura individualista do Estado Democrático de Direito, cabe analisar a

natureza do peculiar instituto do Direito Coletivo. Em uma sociedade formada por

estranhos e calcada pela superação das dicotomias em favor da co-originalidade e

da equiprimordialidade, cabe refletir sobre como deve ficar a relação entre direitos

individuais e direitos coletivos. Esse será o objeto do próximo capítulo.

exclusão do adversário do diálogo, por ele estar preso a interesses particulares não se coaduna com a formação discursiva da vontade possível para todos. Sempre um grupo vai ter interesses particulares nessa dinâmica. ROUANET Sergio Paulo. Op. Cit. Págs. 346/347

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4 Direitos dos Grupos 4.1 Introdução

No Brasil, a Constituição de 1988 consagra os direitos metaindividuais,

que seriam direitos situados no centro da dicotomia público-privado e que teriam

como titular não o indivíduo e nem o Estado, mas uma coletividade. Ou seja,

seriam garantias que transcenderiam o privado, sendo mais amplas dos que as

referentes a direitos individuais, sem, contudo, chegar à categoria de público.

Tais direitos são classificados em três categorias, de acordo com o Código

de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90, art. 81)1: difusos, coletivos e individuais

homogêneos. Os primeiros são direitos transindividuais, indivisíveis cuja

titularidade pertence a pessoas indeterminadas ligadas por circunstâncias de fato.

A segunda categoria se refere a direitos também transindividuais e indivisíveis,

mas cuja titularidade pertence a um grupo, categoria ou classe de pessoas

determinadas ou determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma

relação jurídica básica. Por último, os direitos individuais homogêneos

caracterizam-se por serem essencialmente individuais, porém, tutelados

coletivamente. São divisíveis e pertencentes a grupos, classes ou categorias

determináveis de indivíduos2.

Nessa parte do trabalho, o foco será o surgimento, dentro do paradigma do

Estado Democrático de Direito de cunho liberal individualista, da idéia de direitos

atribuídos a coletividades. Será estudada a evolução da idéia de direitos de grupos

que surgiu e ganhou força até ser adotada no Brasil da forma expressa acima. A

partir de uma breve pesquisa doutrinária, serão expostos os conceitos

1 A tipologia adotada pelo sistema brasileiro é de José Barbosa Moreira, cujo trabalho pioneiro “A Ação Popular como Instrumento de Tutela Jurisdicional dos Chamados Interesses Difusos” foi publicado em 1977. 2 Apesar da diferenciação entre essas três categorias de direitos metaindividuais e, sabendo que algumas análises e conclusões podem ser pertinentes a todas as categorias de direitos metaindividuais, cabe salientar que o trabalho se aterá principalmente aos direitos coletivos em sentido amplo, não abordando os direitos individuais homogêneos.

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identificados, desde a teoria clássica do sociólogo T.H. Marshall sobre o

surgimento de diferentes categorias de direitos, até as idéias mais atuais de

diversos autores brasileiros.

4.2 Os Direitos Coletivo na Formação da Cidadania

Olhando para a Inglaterra do século XX, T. H. Marshall expõe uma visão

sociológica da evolução dos direitos3, identificando uma conquista grande de

direitos, agrupa-os em diversos momentos históricos. Com base no histórico de

formação da cidadania que o autor nos apresenta4, nota-se que os direitos civis

conquistados nas revoluções e reformas liberais, essencialmente do séc. XVIII,

formaram a estrutura primeira sobre a qual foram adicionados os direitos políticos

e sociais, para a formação integral da cidadania. Assim, foi sobre uma concepção

individualista de direito, que surgiram respectivamente, nos séculos XIX e XX os

direitos políticos e sociais.

A formação dos direitos civis é caracterizada pela adição de novos direitos

como extensão do princípio básico que é o da liberdade individual, assegurada a

todos os membros adultos da comunidade5. O reflexo econômico básico dos

direitos civis foi o direito a trabalhar no lugar e na ocupação de escolha, tendo

apenas o treinamento técnico prévio como pré-requisito. Qualquer restrição a esse

direito era considerada “uma ofensa à liberdade do súdito e uma ameaça à

prosperidade da nação”. A universalização de tal liberdade tornou possível

generalizar a cidadania.

Quando os direitos civis já estavam minimamente consolidados, a

distribuição dos direitos políticos que era deficiente passou a ser revista. Os

direitos políticos, em verdade eram tidos como secundários com relação aos

3 MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status.Tradução de Meton Porto Gadelha. Zahar Editores. Rio de Janeiro, 1967. Para Ricardo Lobo Torres, a visão apresentada por Marshall é historicista e ingênua, com um evolucionismo que coloca a completa fruição dos direitos sociais na vitória do Estado de Bem-Estar Social, como melhor forma de organização política. TORRES, Ricardo Lobo “A Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos”in TORRES, Ricardo Lobo. (org). Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª Edição. Editora Renovar, Rio de Janeiro, 2001. 4 Cabe notar que o pensamento dele é delineado a partir da realidade que observa na Inglaterra, mas, ainda que exista peculiaridades, é possível ampliar o alcance das observações históricas. 5 Marshall salienta que o status da mulher era peculiar em alguns aspectos importantes. MARSHALL. Op. Cit. Pág 66.

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direitos civis, no século XIX. Sendo assegurados os direitos civis, o voto

censitário a priori não retirava de ninguém o direito de votar. Qualquer cidadão

que respeitasse a lei e fosse são, era capaz de conseguir remuneração e adquirir

propriedades para, então, usufruir dos direitos políticos relacionados. Somente no

século XX, com o sufrágio universal, os direitos políticos passaram a ser

distribuídos com base em status pessoal e não econômico e se tornaram

associados diretamente à cidadania.

Para entender a natureza dos direitos coletivos, na visão de T. H. Marshall,

caberá uma análise mais detida sobre o surgimento dos direitos sociais. Para o

autor, a participação nas comunidades locais e nas associações funcionais foi a

origem dos direitos sociais. Primeiramente houve uma cisão e uma disputa entre a

lógica individualista e liberal e os direitos sociais, sendo estes colocados muitas

vezes em oposição à cidadania.

Qualquer tentativa de regulamentação salarial ou de normas trabalhistas

era tida como contrária à liberdade no setor econômico que previa o direito de

trabalhar sob um contrato livremente estipulado. Os próprios interessados se

sentiam desrespeitados como cidadãos. As iniciativas no sentido de ajustar a renda

real às necessidades sociais eram tidas como assistencialistas. Ao invés de

servirem como instrumento de realização efetiva da cidadania, tais políticas eram

oferecidas somente aos idosos, incapazes ou qualquer pessoa disposta a deixar de

ser cidadão.

A cidadania calcada nos direitos civis minou a desigualdade de um sistema

de classes estratificadas, acabou com a justiça de classe e com a servidão.

Contudo, sobre esse fundamento de igualdade trazido pela cidadania foi sendo

construído um novo arranjo de desigualdade. Apesar da igualdade perante a lei, os

remédios jurídicos que asseguravam a efetividade dos direitos não estavam

acessíveis a todos. De um lado o preconceito e a parcialidade dos juízes e, de

outro, os custos de uma ação judicial, fizeram com que direitos garantidos a todos

em princípio fossem efetivos apenas para alguns.

Nesse sentido, um grande triunfo político do século XIX foi o

reconhecimento do direito de dissídio coletivo. Ou seja, o progresso social e o

status econômico eram buscados através do fortalecimento dos direitos civis que

são, todavia, acentuadamente individuais. Com a personalidade jurídica, foi dada

a grupos a possibilidade de agir legalmente como indivíduos. E, nesse contexto,

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os sindicatos tinham uma posição ainda mais peculiar. Sem personalidade

jurídica, podiam exercer “direitos civis vitais coletivamente em nome de seus

membros sem a responsabilidade coletiva formal”.

No século XIX o poder político propiciou o surgimento do sindicalismo ao

trazer aos trabalhadores a possibilidade de usufruírem coletivamente de seus

direitos civis. Até então os direitos políticos eram os vetores de ação coletiva e os

direitos civis eram inerentemente individuais. Criou-se uma cidadania industrial

secundária e os direitos civis coletivos eram utilizados não apenas para barganha,

mas também para a afirmação de direitos básicos.

No século XX, surgiu uma preocupação com a garantia de serviços

sociais, com o objetivo de reduzir as desigualdades. O princípio mais utilizado era

o do mínimo garantido que visava a assegurar a todos um padrão mínimo de vida

civilizada. Aqueles que não chegassem a tal padrão por meios próprios, podiam

contar com assistência. A ampliação dos serviços sociais não é necessariamente

uma forma de igualar rendas, mas o mais importante era a igualdade de status que

é mais relativa a indivíduos membros de uma comunidade, do que a classes.

Trata-se de experiência nova para todos. Ocorre que o aspecto qualitativo do

serviço deve ser considerado, sob pena de se tornar mais um fator de estratificação

das desigualdades do que um vetor para a igualdade.

Fica difícil para o Estado prever o custo de suas obrigações, ainda mais

tendo em vista que o aumento do padrão dos serviços torna os encargos ainda

mais pesados. Nesse sentido, os direitos individuais ficam sujeitos aos planos

nacionais. Marshall apontava para um aspecto coletivo dos direitos sociais,

concernente a um plano de vida comunitária. O Estado têm obrigação perante a

sociedade, como um todo. As reivindicações referentes a tais obrigações devem

ser feitas através do poder político. Não são reivindicações a serem atendidas em

cada caso quando apresentadas. Não são obrigações para com indivíduos que

podem ser reclamadas em tribunais de justiça. O equilíbrio entre os aspectos

coletivos e os individuais desses direito é de grande importância para Marshall6.

6 Ele traz o exemplo do direito à habitação. Ao tratar de reivindicações individuais, o Estado tenta adotar uma escala de prioridade e necessidade. A questão se complica quando envolve um cortiço inteiro a ser derrubado ou uma grande área a ser desapropriada. As reivindicações individuais ficam subordinadas ao planejamento relativo ao progresso social, fazendo surgir desigualdade. O progresso do atendimento ao que seriam direitos sociais coletivos gera a desigualdade provisória entre indivíduos.

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“A posição era insustentável e podia apenas ser transitória. Os direitos não constituem um objeto próprio de barganha. Ter de barganhar por uma remuneração numa sociedade que aceita a remuneração essencial para viver como um direito social é tão absurdo (...) Ainda assim, o início do século XX tentou dar algum sentido a esse absurdo. Admitiu a barganha coletiva como uma operação de mercado normal e pacífica, enquanto reconhecia, em princípio, o direito do cidadão a um padrão mínimo de vida civilizada, que era justamente aquilo pelo que os sindicatos acreditavam, com razão, que estavam lutando para conseguir para os seus membros com a arma da barganha”. 7

Marshall se preocupava não com o direito de greve decorrente desses

sindicalismos, mas com as concepções sobre salário justo. Em relação à

remuneração de profissões, o sistema não prevê status igualitário, mas

hierárquico. A barganha coletiva necessariamente envolve a classificação dos

trabalhadores em grupos. Tais grupos de trabalhadores, bem como outros grupos e

associações que surgiram tinham um papel funcional. “Os membros desses grupos

em combinação diferem grandemente em nível social, e as organizações são para

eles nada mais do que instrumentos racionalmente criados para obtenção de certos

fins específicos e limitados.” 8

Para Marshall, a cidadania foi um importante ingrediente de integração,

pois exigia um elo baseado num sentimento de participação numa comunidade9.

Apesar de não ter acabado com a desigualdade, abriu o caminho para as políticas

igualitárias ao difundir a concepção de igual valor social. Esse foi o sentimento

que estimulou as tentativas de remoção das barreiras que excluíam algumas

pessoas do acesso efetivo aos direitos. O paradoxo estava em que o incentivo em

uma sociedade de livre mercado e iniciativa individual é o de lucro pessoal e o

dos direitos sociais é o de dever público. Por esse motivo, surgiram organizações

que procuravam mediar e conciliar os interesses e deveres pessoais, de um lado, e

os públicos, de outro.

7 MARSHALL. Op. Cit. Pág. 103 8MARSHALL. Op. Cit. Pág. 131 9 Para Kymlycka, a teoria da função integradora da cidadania desenvolvida por Marshall serviu apenas no caso da classe trabalhadora na Inglaterra. Não funciona para outros grupos excluídos. KYMLICKA, Will. Multicultural Citizenship: a liberal theory of minority rights. Clarendon Press. Oxford Political Theory. 1995.

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4.3 O Surgimento dos Direitos Coletivos

Na doutrina é recorrente a colocação do surgimento dos direitos coletivos

como uma etapa da consolidação dos direitos humanos, que não poderiam ser

reduzidos a direitos individuais. Os direitos humanos seriam, portanto, divididos

em três gerações: 1) direitos civis e políticos; 2) Direitos sociais, econômicos e

culturais e 3) Direitos de fraternidade ou solidariedade10.

O subjetivismo da primeira geração de direitos que obedeceu a uma lógica

liberal e individualista não resistiu às profundas alterações sociais. O fenômeno de

massificação trouxe uma grande gama de modificações para as relações sociais

trazendo conflitos de natureza difusa. No início do século XX, com a aceleração

do capitalismo, os direitos humanos se tornavam vazios e o Estado passava a

intervir cada vez mais nas questões particulares.

A segunda geração de direitos veio para assegurar concretamente a vida

digna ao homem. Ou seja, veio para efetivar o que já estava formalmente

prescrito. Depois da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, o

foco da atenção saiu da justificação dos direitos para a efetivação e proteção dos

mesmos. Depois então surgiram os direitos destinados à tutela de interesses de

pessoas indeterminadas, do gênero humano. (paz, meio-ambiente,

autodeterminação). Eram os direitos de 3ª geração, por natureza, incompatíveis

com o individualismo ou com a idéia de grupos específicos, de vez que

pressupõem o ser humano como cidadão do mundo.

Cabe notar que a principal crítica a esse modelo de análise dos direitos,

sob o critério das gerações, é relativa à idéia de superação de uma pela outra, de

fim de uma para o nascimento da seguinte. Na verdade, é melhor usar o termo

dimensões e ver todos os grupos de direitos como complementares. Esse olhar

também evita as incorreções decorrentes da generalização da ordem de

surgimento dos direitos. Nesse contexto, não há que se falar em superação do

modelo subjetivista, mas apenas no surgimento de novas estruturas com o objetivo

de complementar a primeira. Todas as dimensões são interdependentes e

10 Sobre o tema v. Direitos Metaindividuais, livro de artigos organizado por LEITE, Carlos Henrique Bezerra . Rio de Janeiro, LTR, 2005.

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indivisíveis11.

Independentemente da forma de classificação, há certo consenso

doutrinário no sentido de que os direitos coletivos teriam surgido a partir do

questionamento e do afrouxamento da separação estanque que existia entre o

público e privado, entre o indivíduo e a sociedade. O homem sujeito de direitos

passou a ser considerado na sua individualidade e com as suas diferenças. O

homem deixou de ser considerado em gênero e como originariamente igual. O

direito a iguais liberdades deixou de ser marco inicial para ser norte, tornando

necessário considerar as peculiaridades e os vários aspectos que vinculam cada

indivíduo, para, a partir deles, procurar garantir as iguais liberdades.

As sociedades do laissez-faire cresceram muito e as relações foram

assumindo caráter mais coletivo do que individual. A noção individualista foi

perdendo espaço para a de coletividade. Surgiu para o Estado Juiz o dever de

solucionar litígios que diziam respeito não a um ou a alguns indivíduos, mas a um

número indeterminado. A noção de interesse público passou a abarcar não apenas

o bem geral, mas os interesses de um segmento, de um grupo ou até de indivíduos,

quando indisponíveis os interesses12.

Foram surgindo grupos que intermediavam a relação entre o Estado e o

indivíduo. Apesar de a associação haver sido descoberta há muito pelos homens13,

naquele período, houve um aumento significativo, tanto na quantidade, quanto na

qualidade das associações: eram partidos, sindicatos etc. O corporativismo tomou

força a partir da consciência do coletivo, ou seja, da percepção de que o indivíduo

isolado pode muito pouco, mas, unindo-se, indivíduos com as mesmas pretensões

e condições podem influenciar as tomadas de decisões.

O indivíduo buscou o grupo como forma de encontrar a realização pessoal.

Além do instinto gregário que leva o homem à associação, há também um aspecto

funcional, no sentido de que os interesses são atendidos de forma mais eficaz

11 Nesse sentido, MELLO, Celso de Albuquerque. Para ele, a situação dos direitos humanos se torna ainda mais precária porque os Estados teimam em dividi-los em de um lado, civis e políticos e, de outro, econômicos, sociais e culturais. “O Parágrafo 2º do Artigo 5º da Constituição” in TORRES, Ricardo Lobo. (org). Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª Edição. Editora Renovar, Rio de Janeiro, 2001. 12 GRAEFF, Thais. Cidadania e Tutela dos Direitos Difusos – Uma Análise do Papel do Ministério Público. Dissertação apresentada ao Departamento de Direito da PUC-Rio para a obtenção do título de Mestre, sob a orientação da Dra. Gisele Cittadino, 1996. 13 Como nos mostraram os ensinamentos de Tocqueville, expostos no primeiro capítulo deste trabalho.

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quando exercidos de forma coletiva14. As novas classes de indivíduos unem-se

contra a opressão.

“...o indivíduo integrado numa multidão adquire, pelo único fator do número, um sentimento de potência invencível, graças ao qual pode se permitir ceder a instintos que antes, como indivíduo isolado, teria forçosamente refreado. E se abandonará, ainda mais satisfeito, a tais instintos, pelo fato, de, sendo a multidão anônima e, consequentemente, irresponsável, desaparecera para ele o sentimento da responsabilidade, poderoso e constante freio dos impulsos individuais”. 15

Esse movimento foi responsável pelo surgimento do conceito de interesse

coletivo: aquele que nascia nas organizações de classes, categorias ou grupos,

manifestando-se enquanto coletividade para defender interesses definidos como a

síntese, e não a soma, dos interesses dos respectivos componentes. O interesse

coletivo surgiu através da atuação das entidades representativas dos grupos, a

partir da organização. É consentâneo com o homem socialmente vinculado.

Interessa aos indivíduos pertencentes à coletividade, numa visão ampla, sem

atentar-se para o interesse individual dos membros. Apesar de a satisfação desses

interesses favorecer os membros da coletividade, não se confunde com os

interesses particulares16.

Pode-se dizer que a evolução social trouxe a necessidade de identificar a

titularidade de certos bens a categorias de pessoas, ou mesmo da própria

coletividade, em detrimento do indivíduo que as integra. Assim surgiram os

direitos coletivos como direitos relativos a vários sujeitos considerados por sua

qualidade de membros de grupos. 17

4.4 Direitos Individuais e Interesses Coletivos

A noção de direitos individuais surgiu quando o indivíduo assumiu posição

de destaque na sociedade, marcando a distinção entre as relações da vida privada

14 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos: conceito e legitimação para agir. Editora Revista dos Tribunais, 6ª Edição, São Paulo, 2004. 15 Le Bom in FREUD, Sigmund. “A Psicologia das Massas e a Análise do Eu” Obras Completas de Sigmund Freud.Tradução Dr. C. Magalhães de Freitas. Rio de Janeiro, Delta. 16 CHAMBERLAIN, Marise M. Cavalcanti Direitos ou Interesses Metaindividuais e sua Classificação, p.39 17 BASTOS, Celso. A Tutela dos Interesses Difusos no Direito Constitucional Brasileiro, Revista de Processo, n. 23, p. 40, São Paulo, RT, jul-set. 1981. Apud. MANCUSO, Rodolfo de Camargo, Op. Cit. P. 62

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do indivíduo e os assuntos de interesse público. “O interesse individual é a

situação favorável à satisfação de uma necessidade egoísta, concernente ao âmbito

privado da pessoa envolvida e delimitado, nos seus efeitos, à pessoa que aspira

àquele bem, objeto da querença”.

Por outro lado,

“O interesse coletivo é a situação favorável à satisfação de necessidade que atenda à (sic) uma comunidade de pessoas, ou seja, quando a relação entre pessoas e bem atingiu, quantitativa e qualitativamente, dimensão tal que impõe um agir concentrado”. 18

Os direitos coletivos foram concebidos a partir da identificação de

organismos que sintetizavam os interesses individuais. Depois as relações

jurídicas transcenderam os grupos, fazendo necessária a revisão do conceito de

coletividade. Os direitos coletivos então, vêm da identificação de circunstâncias

comuns aos integrantes de certa comunidade organizada, de forma que seus

interesses transcendam os individuais.

Nesse sentido, na doutrina pátria especializada, é citado, de forma

recorrente, o pensamento do professor Rodolfo de Camargo Mancuso19. Para o

autor, com o esfacelamento do sistema feudal, os indivíduos se sentiram

desprotegidos antes da constituição do Estado. Cada um devia contar apenas

consigo mesmo, dando início à teoria individualista. “Individual é o interesse cuja

fruição se esgota no círculo de atuação de seu destinatário.”

Já o interesse coletivo não é a soma, mas a síntese dos interesses

individuais. Quando os valores individuais são atraídos por semelhança e

harmonizados em busca do fim comum, ficam amalgamados e afetados a um ente

coletivo. Surge daí uma realidade nova do espírito coletivo e o novo interesse

coletivo se desgarra dos interesses individuais originários. Os interesses egoísticos

são deixados em um plano secundário em nome de um interesse mais geral e

generoso que precisa de esforços comuns. A reunião dos esforços individuais é a

forma mais eficaz de conseguir o bem comum20. Dessa forma, o interesse coletivo

se transforma no interesse direto e pessoal do grupo, legitimando-o a representar a

coletividade como um todo.

18 CHAMBERLAIN, Marise M. Cavalcanti Op. Cit., p.41 19 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos: conceito e legitimação para agir. Editora Revista dos Tribunais, 6ª Edição, São Paulo, 2004. 20 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit. P. 55

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Para Mancuso, os direitos coletivos contam com as seguintes

características: organização mínima para que os interesses ganhem a coesão

necessária; afetação dos interesses a um grupo determinado ou determinável; e um

vínculo jurídico básico comum a todos os componentes do grupo que os coloque

em uma situação jurídica diferenciada21.

A oposição que normalmente se faz coloca de um lado os interesses

individuais, de cunho egoístico e, de outro os metaindividuais. Discorrendo sobre

os tipos de interesse e a sua natureza, o autor afirma que a forma de exercício de

um interesse não altera a sua essência e o que determina se um interesse é

individual ou coletivo é a finalidade.

Quando o objetivo é comercial, não há nenhuma preocupação

metaindividual, portanto o interesse será sempre egoístico ou individual. Assim,

salienta que a soma de interesses individuais para um exercício coletivo não

transforma a essência dos interesses22. Por outro lado, pode-se dizer que um

interesse é metaindividual, quando ultrapassa aquilo que é atribuído ao indivíduo

e diz respeito a valores de uma comunidade ou segmento social.

Os sindicatos, por exemplo, defendem os interesses individuais dos

trabalhadores, mas fazendo isso tutela o direito ao trabalho, que é uma liberdade

pública. Não há um interesse público que não se resolva finalmente em uma

vantagem procurada à dês individus23. No fundo, o autor diz que a divisão dos

interesses entre o coletivo e o individual se dá em função do aspecto

preponderante no caso concreto.

O autor aprofunda a discussão ao tratar da lógica dos direitos subjetivos. O

termo direito, em si, suscita a idéia de direito subjetivo relativa a interesses

juridicamente protegidos de titularidade de um indivíduo. Ao abordar os direitos

difusos, Mancuso nos mostra como esse esquema fica subvertido.

Os interesses juridicamente protegidos, os direitos subjetivos guardam

uma relação necessária com a titularidade. Somente contam com tutela

jurisdicional os interesses relevantes para a ordem jurídica e que contem com um

titular. Daí vem a possibilidade de sanção e o aspecto coercivo do Direito. Os

21 MANCUSO. Op. Cit. P. 62. Cabe notar que aqui ele se refere aos direitos coletivos em sentido estrito, não se referindo aos direitos difusos que não contam com tal classificação. 22 Nesse sentido, critica a opção do legislador brasileiro de colocar os interesses individuais homogêneos como subespécie dos direitos coletivos, em sentido amplo. 23 MANCUSO. Op. Cit. pág 45. Jean Rivero

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interesses difusos contrapõem-se a esse esquema, dado que a tutela não pode se

basear na titularidade, mas apenas na relevância social. Tal relevância não decorre

da titularidade, mas do fato de um interesse ser relativo a toda a coletividade ou

grande parte dela. A nova lógica é: se o interesse atribuível a um indivíduo merece

proteção, com ainda mais razão, deve ser protegido o interesse de muitos, ainda

que indetermináveis.

O direito difuso é um direito coletivo que não conta com qualquer

momento associativo. E a exigência de organização prévia ou aglutinação em

torno de um ente personalizado, poderia deixar sem tutela os interesses que mais

precisam de proteção justamente por não ter um ente organizado a reclamá-los.

São interesses que unem as pessoas por circunstâncias de fato e não por um liame

jurídico.

O fato é que essa construção do direito como subjetivo e atribuível sempre

apenas ao indivíduo teve por base a noção de indivíduo como ser abstrato e

isolado. Por esse motivo, as mudanças sociais que demonstravam, a cada dia, a

ineficiência de se pensar o indivíduo isolado, também demonstrou que as

estruturas que normalmente se prestavam à mediação dos conflitos não davam

conta dos interesses que transcendiam o indivíduo.

4.5 Direitos Coletivos: uma Revolução Processual

A tutela de direitos coletivos e difusos, além dos tradicionais individuais,

visa à ampliação do acesso à justiça. O direito de acesso efetivo se tornou

fundamental, de vez que, sem ele, nenhuma titularidade de direito tem sentido24.

O Direito continuava sendo médium para a questão social, mas houve uma

acentuada ultrapassagem das normas de direito substantivo pelas normas de

direito processual. Ao invés da regulação e intervenção do Estado para a

sociedade, surgiram mecanismos que possibilitavam aos agentes sociais intervir

no Estado25. O que ocorreu foi a modificação da legitimidade processual ativa. A

24 CAPPELLETTI, Mauro e GARTH Bryan. Acesso à Justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre. Ed. Fabris, 1988. 25 VIANNA, Luiz Werneck e BURGOS, Marcelo. “Revolução Processual do Direito e Democracia Progressiva” in VIANNA, Luiz Werneck (org). A Democracia e os Três Poderes no Brasil. Belo Horizonte, Editora UFMG, Rio de Janeiro, IUPERJ/ FAPERJ, 2002.

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titularidade dos direitos foi estendida do indivíduo ao grupo26.

Ibraim Rocha sugere que a Lei da Ação Civil Pública e a do Código de

Defesa do Consumidor foram resultados da inclusão no Direito de fatos sociais

relativos aos conflitos de massa, de vez que não era possível aplicar, a estes, a

estrutura sobre a qual foi construído o Direito Processual Civil.27 Há direitos que

surgem de situações híbridas, entre o público e o privado, cuja proteção exige a

concretização de mecanismos especiais de acesso.

A demanda coletiva iguala os litigantes28, concedendo aos titulares de

direitos metaindividuais, a possibilidade de, mediante autorização legal, ser

representados por instituições e organizações especializadas. A desigualdade em

relação ao acesso pode ser resolvida se os indivíduos encontram formas de

agregar suas causas, pois, os obstáculos no acesso à justiça são potencializados

para litigantes individuais.

Há na tutela coletiva e na substituição processual um componente

democrático de representação, servindo de estímulo à participação popular. O

tratamento em uma dimensão coletiva aumenta a relevância social do bem jurídico

protegido.

“A solução dos conflitos (...) como demandas coletivas, além de permitir o acesso mais fácil à justiça, pelo seu barateamento e quebra de barreiras socioculturais, evitará a banalização pela técnica da fragmentação e conferirá peso político mais adequado às ações destinadas à solução desses conflitos coletivos”. 29

A possibilidade de tutelar os direitos de forma organizada e coletiva ainda

traz as vantagens de unir litigantes eventuais em torno de um ente que será um

litigante habitual. Dessa forma, contarão com algumas vantagens, tais como

melhor planejamento e maior experiência, economia de escala, já que são mais

casos, relações informais com responsáveis pelas instâncias decisórias e risco

pulverizado, além da possibilidade de uso de estratégias testadas30.

Enquanto alguns grupos conseguem organizar seus interesses, (como os

26 JUNIOR, José Alcebíades de Oliveira. “Os Desafios dos Novos Direitos para a Ciência Jurídica” in JUNIOR, José Alcebíades de Oliveira e LEITE, José Rubens Morato. (orgs). Cidadania Coletiva. Paralelo 27, Florianópolis, 1996. 27 Apud. CHAMBERLAIN, Marise M. Cavalcanti Op. Cit., p.47 28 Normalmente há superioridade econômica e técnica do causador da lesão. 29 WATANABE, Kazuo, Apud. JUNIOR, José Alcebíades de Oliveira “O Desafio dos Novos Direitos para a Ciência Jurídica” in JUNIOR, José Alcebíades de Oliveira e LEITE, José Rubens Morato. (orgs). Cidadania Coletiva. Paralelo 27, Florianópolis, 1996. P.137 30 CAPPELLETTI, Mauro. Op. Cit.

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trabalhadores), outros não conseguem e esbarram nesses obstáculos do acesso à

justiça. Afinal, é necessário congregar esforços e dinheiro para ter uma

organização especializada na representação dos interesses. De fato, os direitos

defendidos por associações, podem ser exigidos em juízo individualmente, com

base no mesmo fato e com a mesma pretensão de ressarcimento, mas não é a

melhor estratégia.

O fato jurídico comporta diversas abordagens e quando é objeto de litígio

pode ensejar numerosas pretensões. O que faz um direito ser coletivo ou

individual não é apenas o conteúdo, mas também o objeto da pretensão31. As

dimensões nas quais se classificam os direitos fundamentais não se distinguem

pela natureza ou conteúdo, mas pela perspectiva a partir da qual são vistos. Tais

perspectivas foram sendo redimensionados para acompanhar as exigências

históricas.

Outra vantagem do exercício coletivo dos interesses é evitar múltiplas

demandas individuais idênticas, com risco de decisões discrepantes e aumento da

morosidade no Judiciário. Parte-se do pressuposto de que “existem interesses que

não são individualizados, pois correspondem a um grupo, a uma comunidade ou à

sociedade”. “Não se vislumbra quem é que poderia, em seu próprio nome,

defender esses interesses”. 32 Permitir a qualquer pessoa reclamar determinados

direitos, seria inviável na prática do acesso à justiça.

4.6 Conclusões

O que se pode concluir é que a construção dos direitos coletivos é muita

mais estratégia processual com o objetivo de tutelar e garantir efetivamente os

direitos individuais, do que uma construção de direito material. Teoricamente,

qualquer pessoa poderia entrar com uma ação contra uma empresa que esteja

poluindo o ar, ou esteja até mesmo fugindo à tendência de controle de emissão de

gás carbônico, afinal, a saúde da pessoa está sendo afetada e, com ela, a sua vida

31 O próprio art. 81 do Código de Defesa do Consumidor ressalta que os direitos podem ser exercidos de forma individual ou coletiva. 32 Abi-Ackel in VIANNA, Luiz Werneck e BURGOS, Marcelo. “Revolução Processual do Direito e Democracia Progressiva” Apud VIANNA, Luiz Werneck (org). A Democracia e os Três Poderes no Brasil. Belo Horizonte, Editora UFMG, Rio de Janeiro, IUPERJ/ FAPERJ, 2002.

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que, indiscutivelmente é um direito e um interesse individual. Ocorre que, na

prática, não seria possível ao sistema judiciário dar conta de todo o leque de

demandas idênticas e repetitivas que seria ensejado, caso fosse dado a qualquer do

povo a legitimidade ativa para tais ações.

Além disso, no Brasil, principalmente, há uma falta de conscientização

que não permite que aquele direito, patrimônio ou interesse que é de todos seja

visto como seu por cada um. Dessa forma, a construção processual dos direitos

coletivos e da substituição processual acaba por distribuir entre as associações,

organizações e o Ministério Público a responsabilidade por cuidar do que é de

todos ou da sociedade, que ainda parece desvinculada dos indivíduos33.

As definições encontradas de direitos coletivos34 o colocam como aqueles

relativos a direitos que ultrapassam os interesses egoístas de um indivíduo e

passam a interessar toda a coletividade. O exemplo que é dado como interesse

individual paradigmático é o do interesse do credor em receber seu crédito35. É

possível, contudo, discordar desse ponto de vista. Há sim um interesse social e

coletivo por trás do interesse do credor. O não recebimento de um crédito por um

Banco, por exemplo, aumentará os juros cobrados por empréstimos e dificultará a

obtenção de novos empréstimos, o que prejudicará todo um segmento de pessoas

que realiza esse tipo de contrato com o Banco.

Sempre é possível ver um interesse coletivo por trás de um interesse

individual, pois os membros de todas as coletividades buscam sua auto-realização

e a frustração do direito individual de um, ameaça o direito individual do outro.

Por outro lado, por trás da luta por direitos coletivos, há sempre a busca pela

garantia efetiva e material dos direitos individuais.

Nesse sentido, cabe salientar a posição de René Ariel Dotti, para quem,

“os interesses coletivos não constituem uma categoria distinta, em essência, dos

interesses individuais, porém uma perspectiva de sua proteção em âmbito geral,

de modo a legitimar a própria comunidade na invocação da tutela jurisdicional”. 36

33 Em países europeus por exemplo, qualquer pessoa se sente legitimada para reclamar o seu direito a ter uma rua limpa, diante de alguém que a suje. 34 Em sentido amplo. 35 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit. 36 “A Tutela Penal dos Interesses Coletivos”. In: GRINOVER, Ada Pellegrini (coord.), A Tutela dos Interesses Difusos. São Paulo, Max Limonad, 1984, p. 69. Apud MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. Cit. P. 82. No mesmo sentido, GIDI Apud FERNANDES, Jefferson de Araújo. “A tutela Antecipada na ação civil pública em defesa de direitos difusos e coletivos” in CASTRO, Dayse Starling Lima (org). Direitos Difusos e Coletivos. Belo Horizonte, Castro Assessoria e

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Para Mancuso, é impossível harmonizar inteiramente o individual e o

coletivo. O primeiro está relacionado ao egoísmo da natureza humana e o

segundo, apesar de representar preocupações metaindividuais, traz o risco da

massificação em detrimento da liberdade. Porém, ele diz que se não há um meio

termo perfeito entre o individual e o coletivo, pode-se ao menos afirmar que o

caminho está na direção de uma sociedade pluralista, numa democracia.

Os direitos fundamentais nascem e se fundamentam na soberania popular,

que é exercida de forma individual através dos direitos políticos, do voto,

particularmente. A solução encontrada, diante das alterações das relações sociais,

foi associar o acesso coletivo à justiça ao caráter de direito fundamental que, além

de ser mais efetivo na proteção jurisdicional, traz mais importância às ações que

procuram dar fim aos conflitos coletivos.

No entanto, a indivisibilidade, dentro de uma visão democrática e liberal,

está no objetivo de garantir a dignidade humana. Para isso, é necessário que sejam

protegidos todos os direitos em todas as dimensões37. A lógica do subjetivismo, se

interpretada sob o novo prisma concernente ao indivíduo que se forma na

sociedade e concomitantemente a ela não é contrária à universalidade. O objetivo

é que todos tenham efetivamente os direitos civis individuais. Já os direitos

coletivos podem ser oponentes da universalidade. Em regra são, mas cabe refletir

sobre formas de inseri-los de modo positivo e útil na estrutura do Estado

Democrático de Direito.

Uma vez apresentada uma visão geral sobre o que são direitos coletivos,

cabe um mergulho nos pensamentos teóricos que buscam harmonizar esse tipo de

direitos com a organização de Estado ocidental. Dessa forma, não será necessária

nem subverter a ordem do Estado Democrático e nem abrir mão de uma estratégia

de luta que pode ser útil para a efetivação dos direitos fundamentais.

Consultoria, 2003. “Os direitos coletivos surgem para dar efetividade aos direitos individuais.Não são conceitualmente direitos de um grupos”. P. 141 37 COMPARATO, Fabio Konder, Apud. LOSER, Juliana Carlesso “Direitos Humanos e Interesses Metaindividuais”in LEITE, Carlos Henrique Bezerra.(org). Direitos Metaindividuais. São Paulo, LTR, 2004. p.20, nota 29.

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5 Os Direitos de Grupo sob a Ótica Liberal 5.1 Introdução

O Estado Democrático de Direito contemporâneo encontra toda a sua

fundamentação nas idéias contratualistas de formação da sociedade. Indivíduos

que se associam e resolvem criar uma comunidade de sujeitos de direitos livres e

iguais. A partir dessa idéia, constrói-se um Estado de Direito que, por si, é

inseparável das noções de direito subjetivo e do indivíduo como portador de

direitos. As Constituições Modernas surgiram com o objetivo de garantir de forma

efetiva um Estado Democrático baseado em uma teoria do Direito formulada em

termos individualistas. Os bens sociais, os direitos fundamentais são possuídos ou

exercidos de forma individual.

Nesse contexto, é necessário refletir sobre de que forma é possível

compatibilizar a idéia dos direitos coletivos com a estrutura teórica do Estado

Democrático de Direito. Faz-se mister pensar em uma conceituação de direitos

coletivos que não exceda os limites de uma estrutura moldada de forma

individualista para que, com isso, seja possível ainda garantir iguais liberdades

subjetivas para todos em conexão com os direitos de cidadania decorrentes da

autonomia política. Dito de outra forma, a noção de direitos coletivos não deve ser

uma barreira para a efetivação da idéia de co-originalidade das autonomias

públicas e privadas no interior de um processo verdadeiramente democrático que,

como tal, garanta possibilidades de realização para todos e cada um.

O direito moderno é formal: tudo o que não é proibido, é permitido. É

individualista: a pessoa em particular é o portador de direitos subjetivos. É

coercivo. É direito positivo: retrograda às decisões de um legislador político. É

escrito por via procedimental, já que legitimado mediante procedimento

democrático. Uma ordem jurídica é legítima quando assegura por igual a

autonomia de todos os cidadãos. Tal autonomia só existe quando os destinatários

das normas são também seus autores. Tais autores só são livres quando o

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procedimento legislativo for de tal maneira que as regras firmadas possam

merecer concordância geral e motivada1.

Sob o aspecto normativo, não há Estado de Direito sem democracia. Ao

tratar de um problema como problema jurídico, vem à tona um conceito de direito

moderno que tem em si a estrutura do Estado de direito, que é individualista. Isso

ocorre também ao tratar do problema da igualação jurídica e do reconhecimento

de grupos, ou seja, de coletividades cujos integrantes querem se distinguir das

outras coletividades, como forma de realização da própria identidade.

Mesmo quando o direito moderno tutela, através do Estado, relações de

reconhecimento intersubjetivo, trata-se da defesa das pessoas individuais. Ainda

que se reconheça que a integridade do indivíduo depende das relações de

reconhecimento mútuo, será que uma estrutura de Estado calcada em uma teoria

do direito de orientação tão individualista pode dar conta de lutas por

reconhecimento, onde estariam em jogo identidades coletivas? 2

Nas arenas políticas, discutem agentes coletivos sobre objetivos e

distribuição dos bens coletivos. Apenas na mediação de interesses, diante de um

tribunal ou em um discurso jurídico é que se trata imediatamente de direitos

individuais, exigidos através de ação judicial. O direito vigente também precisa de

novas interpretações diante das necessidades e situações atuais. Essa disputa pela

interpretação que irá prevalecer também se dá entre agentes coletivos que tentam

defender sua dignidade. Articulam-se experiências históricas coletivas de

integridade ferida. É possível conciliar tais fenômenos com uma teoria do direito

individualista?

Olhando para o movimento emancipatório burguês e para o movimento de

trabalhadores europeus, parece que sim. Ambos ocorreram para acabar com a

privação de direitos sofrida por grupos desprivilegiados. Contudo, a luta social

contra a opressão desse grupo se deu sob a forma da luta pela universalização dos

direitos do cidadão.

“As injustas condições sociais de vida da sociedade capitalista devem ser compensadas com a distribuição mais justa dos bens coletivos. Esse fim é plenamente conciliável com a teoria do direito, porque os ‘bens fundamentais’ (no sentido proposto por Rawls) ou são distribuídos individualmente (tal como

1 HABERMAS. A Inclusão do Outro. Tradução George Sperber, Paulo Astor Soethe, Milton Camargo Mota. São Paulo, Edições Loyola, 2002. Pág. 250 2 HABERMAS. A Inclusão do Outro. Pág. 237

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acontece com dinheiro, tempo livre ou prestações de serviço, ou são utilizados individualmente (tal como se dá com as infra-estruturas do sistema viário, de saúde e educação), e portanto se pode preserva-los sob a forma de reivindicações individuais de benefícios”. 3 Essa lógica parece diferente quando se trata de identidades coletivas ou

igualdade de direitos para formas de vida culturais. Ora, o reconhecimento de

formas de vida e tradições culturais marginalizadas não exige o reconhecimento

de ao menos um tipo de direito coletivo que faz ruir a auto-compreensão de

Estado Democrático de Direito subjetiva e liberal?

Para tentar responder todas essas indagações, utilizaremos as idéias

apresentadas por Will Kymlycka, em sua obra Multicultural Citizenship: a

Liberal Theory of Minority Rights4 e também a teoria habermasiana, cujos

principais pontos concernentes ao tema tratado encontram-se nos seus trabalhos

Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade e A Inclusão do Outro5.

5.2 Os Direitos Diferenciados de Grupos

A partir de uma análise da situação dos Estados Modernos que são

complexos e contam com realidades em que coexistem culturas plurais, Kymlycka

discorre sobre os direitos diferenciados de grupos, reivindicados especialmente

por minorias nacionais e étnicas6. Nessa exposição, ele mostra como a teoria de

direitos liberal é interpretada erroneamente e como, a partir de uma compreensão

diferente, seria possível conciliar os chamados direitos coletivos, que surgem nas

realidades sociais contemporâneas, com a estrutura e a dinâmica do Estado

Democrático de Direito.

3 HABERMAS. A Inclusão do Outro. Pág. 239 4 KYMLICKA, Will. Multicultural Citizenship: a Liberal Theory of Minority Rights. Clarendon Press. Oxford Political Theory. 1995. 5 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Vols. I e 2 Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2003. A Inclusão do outro. Tradução George Sperber, Paulo Astor Soethe, Milton Camargo Mota. São Paulo, Edições Loyola, 2002. 6 Apesar de o Brasil não ter como problemas principais as questões de minorias nacionais e de minorias étnicas, (no sentido de imigração apontado pelo autor), várias análises encontram cabimento na realidade nacional, especialmente no que diz respeito aos negros e aos movimentos sociais, cujas reivindicações muito se assemelham com as relativas ao deseja do integração. O país também é diretamente citado pelo autor, no que concerne ao problema dos indígenas, exatamente pela negação do problema. KYMLYCKA. Op. Cit. Pág. 21

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Inicialmente cabe trazer os esclarecimentos de Will Kymlycka sobre os

possíveis significados atribuídos ao termo multiculturalismo e qual o conceito

adotado por ele. De acordo com os ensinamentos do autor, a palavra “cultura”

pode ter vários sentidos, do mais localizado ao mais amplo. Pode ser referente a

costumes, perspectivas e valores fundamentais de um grupo ou associação, como

a cultura gay ou a cultura burocrática. Já cultura no sentido mais extenso pode ser

usada significando civilização, como, por exemplo, dizer que as democracias

ocidentais compartilham a mesma cultura: a mesma civilização moderna, urbana,

secular e industrializada.

Na abordagem de Kymlycka, o termo cultura aparece mais fortemente

ligado à idéia de nação ou povo, no sentido de uma comunidade inter-geracional,

mais ou menos completa institucionalmente, ocupando um dado território ou terra

natal, compartilhando uma língua e uma história. Nesse sentido, um estado é

multicultural se seus membros pertencem a diferentes nações (estado

multinacional) ou se conta com emigrantes de diferentes nações (estado

poliétnico) e, no caso de esse fato ser um importante aspecto da identidade pessoal

e da vida política das pessoas.

A marginalização de mulheres, homoafetivos, e deficientes existe tanto

nas culturas majoritárias e nos Estados Nações, quanto nas minorias nacionais e

nos grupos étnicos. Todavia, é muito importante manter o sentido de cultura e

multiculturalismo, tendo em vista que homoafetivos e mulheres não formam uma

outra cultura da mesma forma que os quebecoises formam uma cultura diferente

no Canadá.7 É importante distinguir minorias nacionais (sociedades distintas e

potencialmente auto-governantes incorporadas a um estado maior), dos grupos

étnicos (imigrantes que deixaram a sua comunidade nacional para entrar em outra

sociedade), e esses dois dos “movimentos sociais” (mulheres, homoafetivos,

deficientes, pobres) de pessoas que foram marginalizadas dentro da sua própria

sociedade nacional ou do seu grupo étnico.

Portanto, no conceito utilizado não estão incluídos os enclaves de estilo de

vida, os movimentos sociais e as associações voluntárias. O motivo não é a falta

de importância, até porque o autor tem como certo que acomodar diferenças

nacionais e étnicas é somente uma parte de uma luta maior por uma democracia

7 KYMLYCKA. Op. Cit. Pág. 19

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mais inclusiva e tolerante. Além disso, muitas vezes as demandas dos grupos

sociais em desvantagem são análogas à dos grupos étnicos, já que os dois são

excluídos pela diferença. Trata-se apenas de uma questão de opção, de vez que a

proposta dele é tratar dos estados multinacionais e poliétnicos.

O autor aponta para a importância de estar atento para as diferenças

existentes entre as realidades igualmente abarcadas pelo termo multiculturalismo.

Tanto os estados multinacionais, quanto os poliétnicos são chamados de

multiculturais8; entretanto, a natureza das minorias e os seus desejos em relação à

sociedade maior diferem de um tipo de estado para o outro. No primeiro caso, são

minorias nacionais que normalmente querem se manter como sociedades distintas

e exigem formas de autonomia e auto-governo para assegurar sua sobrevivência

como tal. No segundo caso, trata-se de grupos étnicos que querem se integrar na

sociedade maior e ser aceitos como membros completos dela. Procuram maior

reconhecimento da sua identidade cultural não para se separar, mas para tornar a

sociedade principal mais acolhedora das diferenças culturais.

A maioria dos autores negligencia a distinção entre os grupos. Walzer faz

uma diferenciação, mas de uma forma ineficiente, segundo Kymlycka9. Ele

relaciona o chamado novo mundo com a imigração e o velho mundo com a idéia

de nações. Essa visão é muito simplista. Há minorias nacionais no novo mundo,

bem como há imigração no velho mundo. Há um número considerável de pessoas

cujos ancestrais foram incorporados no curso da expansão norte-americana pelo

continente. Ainda há a situação dos afro-americanos que é diferente, já que não

pode ser enquadrada em nenhum dos tipos.

5.2.1 Direitos de Grupo nos Estados Multiculturais

A questão das minorias muitas vezes é deixada de lado com base no

argumento de que se devem tratar todos como indivíduos sem considerar a etnia

ou a nacionalidade, com o foco no que compartilhamos como humanos e não no

que nos diferencia. A simplificação reflete e perpetua uma longa história de

8 Existem também, por óbvio aqueles estados que são multinacionais e poliétnicos, como o Canadá. Todavia, essa diferenciação é importante para distinguir as diferentes aspirações das minorias. 9 KYMLYCKA. Op. Cit. Pág.20

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negação de direitos10. Existe, sem dúvida, uma dimensão nacional na vida política

com aspectos que inevitavelmente favorecem profundamente a maioria

quantitativa ou dominante. A consciência disso deve fazer com que se previnam

injustiças. Por esse motivo, deve-se falar em direitos poliétnicos e de

representação, para acomodar minorias étnicas e outros grupos discriminados

dentro da comunidade política e pensar em direitos de auto-governo para dar certa

autonomia às minorias nacionais11. Sem essas medidas tratar as pessoas

simplesmente como indivíduos é encobrir um profundo mecanismo de injustiças.

É importante então a exposição de um panorama daquelas que, segundo

Kymlycka, são as três principais espécies de direitos a ser atribuídos a grupos, em

um contexto de estados multiculturais. São eles direitos de auto-governo, direitos

poliétnicos e direitos especiais de representação12.

5.2.1.1 Direitos de auto-governo.

De acordo com a Carta da ONU, todos os povos têm o direito à auto-

determinação. Todavia, não se define o conceito de “povo” e tal direito é

geralmente aplicado apenas às colônias longínquas e não às minorias nacionais.

Há também um esquema de proteção das minorias implementado pela Liga das

Nações Unidas para minorias nacionais européias que garantia tanto direitos

universais individuais como direitos especiais de grupo relativos à educação,

autonomia local e línguas.

A questão dos direitos de grupos nacionais foi suscitada, principalmente

pelas colônias e também por movimentos no continente europeu, como conflitos

10 O Brasil, por exemplo, insiste na inexistência de minorias nacionais em seu território e, com isso, a dizimação das tribos indígenas está quase confirmando tal afirmação. As atitudes racistas estão diminuindo com relação às tribos, mas no sentido de considerar os indígenas uma minoria racial ou um grupo étnico que requer integração à sociedade principal. Nunca se reconheceu como um povo distinto com cultura diferente, mas não inferior. KYMLYCKA, Op. Cit. Pág. 22 11 Para o autor, o Canadá, com a sua estrutura bilíngüe e o reconhecimento dos direitos de auto-governo dos aborígines é um dos poucos países que reconheceram e endossaram oficialmente a multinacionalidade e o poli-etnicismo. 12 Alguns grupos podem pretender legitimamente mais de um desses tipos de direitos. Os indígenas podem pretender direitos especiais de representação, enquanto marginalizados e auto-governo, enquanto povo ou nação. Já os deficientes podem ter direitos de representação, mas não tem legitimidade para pretender auto-governo.

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nacionalistas. Era uma ameaça constante antes da 2ª Guerra Mundial. Depois, tais

conflitos foram substituídos pela Guerra Fria.

A idéia geral é a de que um Estado multinacional que concede direitos

individuais universais sem considerar o pertencimento a grupos nacionais pode

parecer neutro, mas no fundo privilegia sistematicamente a nação majoritária em

assuntos como educação, língua, feriados, fronteiras internas. Inevitavelmente

promove certas identidades culturais, deixando outras em desvantagem. Essas

decisões reduzem o poder político e a viabilidade cultural das minorias.

A justiça requer que os mesmos benefícios e oportunidades sejam

concedidos às minorias nacionais. Não há uma separação completa entre estado e

etnia, a idéia da negligencia benigna é um mito. Um Estado pode não ter uma

Igreja oficial e pode trocar objetos religiosos por outros seculares na Corte, mas

não pode se furtar de determinar uma língua oficial. Se existem políticas que dão

suporte à língua, cultura e identidade das nações e grupos étnicos dominantes, há

o argumento da igualdade pela garantia de tentativas no sentido de prover suporte

similar aos grupos minoritários, como direitos poliétnicos e de auto-governo.

No entendimento de Habermas, inevitavelmente há questões na vida

política, cujas regulamentações vão definindo a identidade coletiva da nação. Por

esse motivo, as minorias culturais iniciam batalhas nas quais se defendem contra a

opressão proveniente da cultura majoritária. O que desencadeia tais batalhas não é

a neutralidade, mas a necessária “impregnação ética de cada comunidade jurídica

e de cada processo democrático de efetivação de direitos fundamentais”. 13

As pretensões de auto-governo tomam forma se existir uma unidade

política substancialmente controlada pelos membros da minoria nacional e

correspondente à sua terra natal ou a território históricos. Tais pretensões não são

temporárias e nem funcionam como remédio a uma opressão a ser eliminada. Ao

contrário, esses direitos são tidos como inerentes e permanentes. Por isso as

minorias nacionais querem-nos assegurados na Constituição.

Muitos defensores dos direitos diferenciados para grupos, no caso de

minorias étnicas e nacionais argumentam que a acomodação das diferenças é a

essência da verdadeira igualdade e tais direitos são necessários para este fim. Os

sacrifícios exigidos dos não membros de grupos minoritários para a existência

13 HABERMAS. A Inclusão do Outro. Pág. 254

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desses direitos diferenciados são bem menores do que o enfrentado pelos

membros na ausência desses direitos. Esse argumento baseado na igualdade só

endossa direitos especiais para minorias nacionais se realmente existir uma

desvantagem relativa ao pertencimento cultural e se os direitos realmente servirem

para corrigir essa desvantagem.

Outro argumento em defesa de direitos especiais para minorias nacionais é

que eles são frutos de acordos históricos, como o tratado de direitos para

indígenas e acordos entre dois ou mais povos para a federação. A forma como a

minoria foi incorporada muitas vezes gera direitos especiais para grupos. Para

avaliar as reivindicações de direitos especiais, é necessário saber se os direitos

pretendidos estão corrigindo desvantagens ou são reconhecimentos de acordos

históricos, frutos dos termos da federação. Os argumentos baseados na história e

os de igualdade devem andar juntos.

Se houve uma federação voluntária, alguns direitos podem ser consagrados

nos termos da federação. O respeito aos acordos é importante não apenas para o

respeito à auto-determinação das minorias, mas também para garantir a confiança

dos cidadãos nas ações do governo. O federalismo é freqüentemente usado para

acomodar diversidade nacional,, incluindo-se os poderes atribuídos às unidades

federais entre os direitos coletivos das minorias nacionais. É claro que não há

conexão inerente entre federalismo e diversidade cultural. Este pode ser resultado

de acidentes históricos de colonização ou mera forma de descentralização

administrativa. O federalismo só serve de mecanismo de auto-governo se a

minoria nacional formar maioria em alguma das unidades federadas, como

Quebec.

Se a incorporação foi involuntária (colonização), a minoria nacional pode

ter uma pretensão de auto-determinação, sob a lei internacional que pode ser

exercida pela renegociação dos termos da federação para fazê-la mais voluntária.

As tribos e bandos indígenas, por exemplo, estão territorialmente localizados

dentro de estados/ províncias existentes e devem coordenar seu auto-governo com

as agências desses estados/províncias. Uma recente declaração internacional sobre

o direito dos povos indígenas enfatiza a importância do auto-governo político.

Entretanto, em muitas partes do mundo a esperança de poderes políticos é quase

utópica e o objetivo mais imediato é simplesmente assegurar a existência das

terras de origem de uma maior erosão por parte de colonizadores e fomentadores

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de recursos. A maior causa de conflitos étnicos é a luta dos indígenas pelos

direitos das suas terras.

A terceira defesa dos direitos especiais para minorias nacionais apela para

o valor da diversidade cultural. Os liberais exaltam a virtude de haver diversos

estilos de vida dentro de uma cultura, logo, eles também apóiam a diversidade

adicional decorrente de duas ou mais culturas no mesmo país. A diversidade inter-

cultural contribui para enriquecer a vida das pessoas, tanto quanto a diversidade

intra-cultural. Esse argumento atrai muitas pessoas, pois deixa de se basear apenas

nos benefícios para os membros de grupos minoritários e fala de benefícios para a

sociedade como um todo14.

Há que se fazer uma ressalva, entretanto: a existência de duas ou mais

culturas no mesmo estado expande as escolhas dos indivíduos, mas somente em

um grau limitado, logo, não pode ser a justificativa primeira para os direitos de

minorias. Os sacrifícios exigidos só são consistentes com a justiça se forem

necessários, não para dar benefícios à maioria, mas para evitar um mal ainda

maior para as minorias. Outro problema é que os liberais aceitam a proteção

externa, mas nunca a restrição interna15 e o argumento da diversidade não faz essa

distinção. Além disso, é improvável que a maioria aceite os direitos nacionais com

base somente em interesse próprio, se não acreditarem que têm a obrigação de

justiça de aceitá-los. Os argumentos de diversidade complementam, mas não

podem substituir os históricos e de igualdade.

As demandas por auto-governo enfraquecem os laços com a comunidade

política maior. São, em regra, reivindicações das minorias nacionais. Há mais de

uma comunidade política e a legitimidade das decisões da comunidade maior é

questionada dentro da menor. É tentador ignorar as demandas de minorias

nacionais e continuar agindo como se a cidadania fosse uma identidade comum

partilhada por todos os indivíduos, sem consideração de grupos.

O liberalismo deve estar preocupado fundamentalmente com a liberdade e

o bem-estar dos indivíduos e não com o destino dos estados, logo a secessão não

deve ser uma ameaça. A unidade nacional depende de valores compartilhados.

14 Este foi o argumento utilizado pela Suprema Corte americana em defesa das políticas de ação afirmativa adotadas pela Faculdade de Direito de Michigan, voltadas para a formação de um corpo discente diversificado. V. Grutter vs. Bollinger e Gratz e Hamacher vs. Bollinger in Westlaw Download Summary Report for ALVES,CLEBER F 4668592 Monday, November 10, 2003 14:05:52 Central 15 Tais conceitos serão mais explorados posteriormente neste capítulo.

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Um estado multinacional somente sobreviverá se os vários grupos nacionais

forem leais à comunidade política maior que coabitam. Trata-se de um patriotismo

compartilhado e não de uma identidade nacional comum. Em estados patrióticos,

mas culturalmente diversificados, a base da união muitas vezes está no orgulho

comum por conquistas históricas, reforçado na literatura e nas escolas16.

O autor defende que se existe um modo de promover a solidariedade e os

propósitos comuns em um estado multinacional, este envolveria acomodação e

não subordinação das identidades nacionais. Uma sociedade fundada em uma

profunda diversidade não tende a ficar unida, a menos que as pessoas respeitem e

valorizem a profunda diversidade, por si.

5.2.1.2 Direitos poliétnicos.

O estado poliétnico surge da aceitação ampla da imigração, combinada

com a permissão de manutenção de certas particularidades étnicas. Exemplos são

a Austrália, o Canadá e os Estados Unidos, onde guest-workers, vistos como

residentes temporários, tornaram-se imigrantes de fato, a exemplo dos turcos na

Alemanha. O que distingue nações civis das nações étnicas não é a ausência de

componente cultural na identidade nacional, mas o fato de qualquer um poder

integrar a cultura comum, sem consideração de raça ou cor.

Em relação aos imigrantes, o que um Estado Democrático de Direito pode

exigir é a socialização política. Ou seja, os imigrantes devem aderir à cultura

política da nova pátria, assimilando a forma como se institucionaliza a autonomia

dos cidadãos e como se dá o uso público da razão, sem precisarem abandonar as

suas origens culturais. Dessa forma, fica garantida a identidade da república sem a

exigência de exclusividade da forma de vida adotada pela maioria17. Na prática,

porém, os imigrantes se vêem obrigados a aprender a língua e a história da nova

sociedade, não bastando jurar lealdade aos princípios do novo estado.

Diferentemente do que ocorre com as minorias nacionais, uma minoria

étnica não tem suas liberdades asseguradas por meio da secessão, a menos que

esteja espacialmente concentrada, o que é muito raro. Assim, a forma de eliminar

16 KYMLYCKA traz os exemplos da Suíça e dos EUA. KYMLYCKA. Op. Cit. Pág. 189 17 HABERMAS, A Inclusão do Outro. Pág. 266

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a discriminação, em regra, não é a independência, mas a inclusão sensível às

diferenças individuais e culturais específicas. A independência com base na

autodeterminação não resolve o problema das minorias, apenas muda a

configuração do conjunto de cidadãos que participam dos processos democráticos

de tomada das decisões, fazendo surgir novas minorias. A coexistência de

diversas comunidades em igualdade não pode existir ao preço da fragmentação da

sociedade.

O que as minorias étnicas buscam é o direito de expressar livremente suas

particularidades na sociedade maior, sem medo de preconceito ou discriminação.

As demandas dos grupos étnicos se expandiram e ficou claro que eram

necessários passos positivos para desenraizar a discriminação, especialmente com

relação às minorias visíveis. Por isso, políticas anti-racismo, como mudanças no

currículo escolar para reconhecer a história e contribuição das minorias, são

consideradas parte da política do multiculturalismo no Canadá e na Austrália.

Todavia, essas políticas são diretamente direcionadas a assegurar o exercício

efetivo dos direitos comuns de cidadania e, logo, não são realmente direitos de

cidadania diferenciados para o grupo.

A demanda mais controvertida de grupos étnicos é a de isenção de leis e

regulamentações que são desvantajosas para eles, devido às suas práticas

religiosas. Tais medidas específicas para grupos pretendem ajudar os grupos

étnicos e as minorias religiosas a expressarem suas particularidades culturais e seu

orgulho sem temer pelo seu sucesso nas instituições econômicas e políticas da

sociedade dominante. São medidas que promovem a integração e não o auto-

governo.

Os imigrantes não têm legitimidade para reivindicar direitos de auto-

governo, já que chegaram voluntariamente ao novo estado18. Além disso, os

grupos étnicos, normalmente, ficam dispersados, misturados e integrados demais

para exercer autonomia coletiva. Nos Estados Unidos, por exemplo, não obstante

a existência de discriminação e segregação, sempre existiu o ideal nacional de

formação de uma identidade étnica nova e unitária: a de americano. Os imigrantes

não querem criar instituições autônomas, eles querem reconhecimento e

visibilidade dentro da sociedade.

18 Pensamento de Walzer trazido por Kymlycka. KYMLYCKA. Op. Cit. Pág. 63

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Nesse ponto, Kymlycka coloca o problema controvertido dos refugiados

que, apesar de não deixaram o país por opção, só podem contar com direitos

poliétnicos de imigrantes. O fato é que a injustiça foi cometida pelo país deles e

não parece possível pedir que o governo que os recebe compense essa injustiça.

O autor também observa que, atualmente, a linha entre refugiados e

imigrantes pode se mostrar muito tênue. Há injustiça massiva na distribuição

internacional de recursos e diferentes níveis de respeito aos direitos humanos. Se

uma pessoa de um país pobre emigra para os Estados Unidos, a decisão é

voluntária em um sentido muito estrito. Mesmo que ela não esteja sofrendo

perseguição, é a única forma de garantir minimamente uma vida decente para ela

e para a família. Surge o termo: refugiados econômicos. Sendo a distribuição

internacional de recursos mais justa, os imigrantes não teriam reivindicações

plausíveis para recriar a sua cultura no novo país. Enquanto essa injustiça não for

superada, talvez os imigrantes de países pobres tenham reivindicações fortes.

O objetivo em relação aos imigrantes é a integração, que é o que a maioria

dos novos grupos de imigrantes quer. É um erro descrever direitos poliétnicos

como promotores de guetos. Os imigrantes querem a reforma das instituições da

sociedade para reconhecer o valor da sua herança cultural. É uma reivindicação

por inclusão consistente com a participação e o comprometimento nas instituições

da sociedade.

Outra questão muito importante trazida pelo autor é a situação indefinida

dos negros trazidos para as sociedades ocidentais. A situação dos afro-americanos

é peculiar, pois difere profundamente daquela dos grupos étnicos, em geral. Ao

invés de terem imigrado voluntariamente, os negros foram trazidos à força como

escravos. Além disso, foram proibidos de integrar as instituições da cultura

majoritária, ao invés de encorajados. Por outro lado, não podem ser definidos

como minoria nacional, de vez que não têm terra Natal na América e nem uma

linguagem histórica comum. Vieram de diferentes culturas e aqueles que tinham a

mesma formação viram suas famílias separadas e foram proibidos de tentar recriar

sua própria cultura. Não puderam se integrar, como imigrantes e nem manter sua

cultura anterior ou criar novas associações culturais e instituições, como minorias

nacionais.

Houve tempos em que afro-americanos céticos quanto à possibilidade de

integração, tentaram um auto-governo territorial, o objetivo era formar um estado

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negro. O projeto não foi adiante porque não há concentração de negros em um

determinado território, ao contrário, há muita mistura com os brancos e, além

disso, a maioria dos negros não quer uma identidade nacional distinta. Eles se

vêem como titulares de completo pertencimento à nação maior na qual se

encontram, ainda que os brancos tenham negado esses direito de nascimento.

Assim, com o objetivo de proporcionar a participação completa e igual dos

negros, alguns liberais americanos acham que é possível adotar o modelo de

integração de imigrantes. Contudo, essa proposta se mostrou insuficiente em

virtude das diferenças em relação às atitudes da sociedade diante de imigrantes

voluntários e diante dos negros. Por tudo isso, há uma aceitação ampla da

necessidade de um novo modelo de integração específico para esse problema19.

Com a decisão da Suprema Corte norte-americana no caso Brown vs.

Board of Education of Topeka20 no sentido de que os negros deveriam ser

incluídos nas instituições da sociedade dominante, houve quem quisesse aplicar o

mesmo raciocínio com relação à questão das minorias nacionais. Como já foi

salientado, o caso dos negros é atípico e a aplicação desse princípio de integração

é incompatível com as pretensões das minorias nacionais. Fazendo uma

comparação com os povos indígenas, pode-se dizer que o racismo contra negros

vem da negação pelos brancos de que os primeiros sejam completos membros da

sociedade, já o racismo contra índios vem da negação de que eles sejam povos

distintos com cultura e comunidade próprias.

5.2.1.3 Direitos especiais de representação.

Não existe uma fórmula que defina que direitos devem ser concedidos a

que grupos. É necessário pensar não apenas na justiça dos direitos especiais para

grupos, mas também na justiça dos processos decisórios pelos quais tais direitos

são definidos e interpretados. A sub-representação não é apenas um problema para

minorias étnicas, nacionais e raciais, há também a questão de gênero entre outras.

19 V. as exposições de Tocqueville trazidas no primeiro capítulo, para um entendimento mais aprofundado sobre o caso dos negros, enquanto grupo marginalizado na sociedade americana. 20 Caso em que a Suprema Corte americana determinou o fim da segregação racial.

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Nos EUA 80% da população fazem parte de grupos oprimidos21. Todos, exceto os

homens americanos, brancos, bem de vida, relativamente jovens, saudáveis

fisicamente e heterossexuais.

A sub-representação dos grupos historicamente em desvantagem é um

fenômeno geral. Um jeito de modificar essa situação é fazer os partidos políticos

mais inclusivos, outra possibilidade é adotar alguma forma de representação

proporcional. Também há idéia de reservar assentos no legislativo para membros

desses grupos marginalizados. Esses direitos de representação de grupo são

defendidos como uma resposta a uma desvantagem ou barreira sistêmica no

processo político que impede que as visões ou interesses sejam efetivamente

representados. Assim, são mais plausivelmente vistos como medidas temporárias

em busca de uma sociedade onde não haja mais necessidade de representação

especial – uma forma de ação afirmativa política.

A sociedade deve buscar eliminar a opressão e a desvantagem sistêmica,

eliminando, assim, a necessidade desses direitos. Essa questão de direitos

especiais de representação é complicada porque é por vezes defendida como

corolário de auto-governo e não contra opressão. O poder de auto-governo seria

muito enfraquecido se pudesse ser revisto unilateralmente por um corpo externo,

no qual a minoria não tivesse representação, como o Supremo. Por esse motivo,

deveria ser garantida a representação das minorias em todos esses órgãos. O auto-

governo é inerente e permanente, a representação tem essa garantia além da de

luta contra a opressão.

Há propostas de adotar alguma forma de representação proporcional que

levaria a uma legislatura mais representativa. Não há critérios para saber se o

representante do grupo que ocupará o assento especial, de fato vai agir em

conformidade com o que o grupo quer. É difícil compatibilizar representação

espelho e responsabilidade democrática. Os defensores da representação especial

acreditam na necessidade da prestação de contas, mas ainda não se sabe a forma

de fazê-la.

O fato de uma pessoa não se sentir representada no processo político leva à

alienação e ao questionamento da legitimidade do processo. Assim, o desejo de

ser representado no legislativo deve ser levado seriamente, pois, não sendo o

21 YOUNG, I. 1989 Apud. KYMLYCKA. Op. Cit. Pág. 145

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único caminho para a representação, é de extrema importância. O sentimento é o

de que um grupo de cidadãos está representado em uma legislatura se um ou mais

membros da assembléia pertencem àquele mesmo grupo. Esta definição contrasta

com a idéia mais básica da democracia, que define a representação pelo

procedimento através do qual os mandatários são eleitos e não por suas qualidades

pessoais. Nessa visão, um grupo de cidadãos está representado quando participa

da eleição de um ou mais membros da assembléia.

Por esses motivos, alguns acreditam que a representação de grupo é uma

separação radical em relação às concepções existentes de democracia

representativa, o que poderia minar normas liberais democráticas relativas a

direitos individuais e cidadania responsável. Outros acreditam que a representação

de grupo é a extensão lógica dos princípios e mecanismos existentes de

representação. É, portanto, consistente com a cultura política liberal democrática.

Além disso, a regra da maioria só é legítima em estruturas governamentais

capazes de assegurar sensibilidade adequada às preocupações das minorias.

5.2.2 O Liberalismo Bem Compreendido

A democracia liberal surgiu em parte como uma reação contra a forma

com a qual o feudalismo definia os direitos políticos e as oportunidades

econômicas pela condição de membro de grupos. Mais tarde, houve uma

tendência no pós-guerra de subsumir o problema das minorias nacionais à garantia

de direitos individuais básicos a todos os seres humanos. Os liberais

repetidamente se opuseram à idéia de que a específicos grupos étnicos e nacionais

devesse ser dada uma identidade política permanente ou status constitucional.

Afinal, para eles, os direitos humanos tradicionais, como liberdade de expressão,

de associação e de consciência, enquanto atribuídos a indivíduos, são tipicamente

exercidos com outros, logo provêem proteção para a vida em grupo. Onde tais

direitos individuais são firmemente protegidos, não seria necessário atribuir outros

direitos a membros de etnias específicas ou de minorias nacionais.

Iniciou-se uma luta para separar o estado da etnia, a exemplo do que se

deu em relação à religião. A idéia é que os membros de grupos nacionais e étnicos

são protegidos contra discriminação e preconceito e são livres para manter a parte

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da sua herança ou identidade que quiserem, mas os esforços devem ser puramente

privados. Essa separação entre estado e etnia impede qualquer reconhecimento

legal ou governamental de grupos étnicos e impede o uso de critérios étnicos na

distribuição de direitos, recursos e deveres.

Entretanto, a realidade das comunidades políticas mostrou que os direitos

das minorias não são atendidos pelos direitos humanos tradicionais. A liberdade

de expressão não indica a política de línguas mais apropriada, o direito de voto

não diz como as fronteiras políticas devem ser desenhadas ou como o poder deve

ser distribuído entre os níveis de governo, a liberdade de locomoção não define a

melhor política de imigração e naturalização22. Essas questões são deixadas ao

usual procedimento de decisão majoritária dentro de cada estado. O resultado é

entregar as minorias culturais nas mãos da maioria, gerando injustiças e

exacerbando os conflitos étnico-culturais.

Por esse motivo, uma teoria da justiça completa em um estado

multicultural teria que incluir direitos universais, assegurados aos indivíduos sem

considerar o seu pertencimento a grupo, e direitos diferenciados de grupo23 ou

status especial para culturas minoritárias. A garantia dos direitos civis é de

extrema importância para a proteção das diferenças, mas nem sempre é suficiente.

Os direitos das minorias são, em certo sentido, condições para os direitos

humanos e devem ser complementares a estes.

Para muitos, entretanto, a idéia de direitos diferenciados de grupos se

baseia em uma filosofia oposta à do individualismo. Parece tratar indivíduos como

meros portadores da identidade e dos objetivos do grupo e não como

personalidades autônomas com identidades e objetivos próprios na vida. As várias

formas de direitos diferenciados são, em regra, incluídas na denominação de

direitos coletivos. A categoria se torna muito ampla e heterogênea24 e sugere que

os direitos de grupos, sendo atribuídos a uma coletividade, estão sempre em

oposição aos direitos individuais. A nomenclatura “direitos coletivos” levou a

assumir que o debate era entre individualistas e coletivistas, sobre a prioridade

relativa do indivíduo e da comunidade. Em suma, os direitos diferenciados para

22 KYMLYCKA. Op. Cit. Pág. 5 23 Tradução livre do termo usado pelo autor. No original group-differentiated rights. Mais uma vez o autor traz o exemplo do Canadá como estado que garante, ao lado dos direitos individuais, direitos de comunidade. 24 Inclui todos aqueles direitos vistos no capítulo anterior, como direitos difusos, individuais homogêneos, de categorias, de associações etc.

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grupos parecem refletir uma perspectiva coletivista e comunitariana ao invés da

crença liberal na liberdade e igualdade individuais.

Essa retórica generalizada de rivalidade entre direitos coletivos e

individuais é inútil. Os tipos de direitos englobados sob a terminologia “direitos

coletivos” têm pouco em comum e há, sem dúvida, formas de direitos

diferenciados de grupos que não conflitam com os direitos individuais. Há,

inclusive, muitas formas de cidadania diferenciada de grupo exercida de fato pelos

indivíduos. Kymlycka sustenta que existem direitos diferenciados de grupo

conferidos a indivíduos do grupo, ao grupo como um todo, ou ao estado federado

ou província no qual o grupo forma maioria25. Todos são direitos especiais de

grupo, já que são conferidos com base no pertencimento cultural.

O que se deve ter em mente é que os direitos de minoria só podem ser

endossados pelos liberais se forem consistentes com a liberdade ou autonomia dos

indivíduos. A idéia de que os direitos coletivos estão inerentemente em conflito

com os direitos individuais é verdade ou não dependendo do conceito atribuído às

duas categorias de direitos.

Não é verdade que a tradição liberal é contrária aos direitos das minorias.

No séc. XIX e entre as Grandes Guerras, esses direitos faziam parte da teoria e da

prática liberais. Era vista como injusta a negação das liberdades civis e políticas às

minorias, bem como a negação de seus direitos nacionais de auto-governo que

eram considerados complemento essencial dos direitos individuais26.

Hoje muitos liberais afirmam que as liberdades individuais impedem a

aceitação dos direitos coletivos e o compromisso com direitos universais impede a

aceitação de direitos especiais de grupo. Esses argumentos não são parte da

tradição liberal e, provavelmente, surgiram de alguns fatores do pós-guerra, tais

como o medo político real com relação à paz internacional, o compromisso com a

igualdade racial e a preocupação com o possível aumento das demandas dos

imigrantes. Além disso, a opinião pública impressionada pelas minorias desleais

estava mais apta a encurtar do que expandir os direitos das minorias. Via-se mais

25 No mesmo sentido do entendimento já apresentado de Habermas, Kymlycka também demonstra que os direitos são atribuídos a indivíduos ou usufruídos por indivíduos. Traz exemplos de atribuição a diferentes sujeitos. (pág. 45). O direito dos francófonos usarem o francês nas Cortes do Canadá é um direito conferido a e exercido por indivíduos, o direito de educar as crianças em escolas francesas é atribuído aos indivíduos, mas apenas onde existe número significativo de interessados. Já o direito de caça atribuído à tribo não pode ser exigido pelo indivíduo isoladamente. E o direito dos quebecoises de promover sua cultura é exercido pela província. 26 A base da liberdade estaria na autonomia de um grupo nacional. KYMLYCKA, Op. Cit. pág. 50

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ameaça doméstica do que internacional. Assim, foi sendo consolidada uma

mudança de postura dos liberais contemporâneos.

Nenhum desses argumentos, entretanto, derruba as idéias liberais que dão

suporte aos direitos das minorias. Para os liberais, a liberdade individual, a

promoção da individualidade e o desenvolvimento da personalidade humana estão

ligados de forma fundamental ao pertencimento a um grupo nacional. Além disso,

os direitos especiais para grupo podem promover a igualdade entre as minorias e a

maioria. É possível pensar os direitos especiais para grupos sem sacrificar o

compromisso com a liberdade individual e igualdade social.

Dessa forma, quando se pensa sobre a conexão entre liberdade e cultura, é

possível ver que os direitos de minorias podem aumentar a liberdade individual27.

A liberdade individual envolve sempre escolhas e, por isso, está ligada ao

pertencimento a grupos. A nossa cultura social provê as opções e dá significado a

elas. Com base nela, identificamos as experiências como valiosas. Essa conexão

entre a escolha individual e a cultura é o primeiro passo para uma defesa liberal de

alguns direitos diferenciados de grupo.

Os princípios básicos do liberalismo são princípios de liberdade

individual. O liberalismo confere a cada indivíduo certas liberdades fundamentais.

Existem assim dois requisitos necessários para os liberais. Os indivíduos devem

ter os recursos e liberdades necessárias para levar a vida de acordo com os seus

valores e crenças, sem medo de discriminação ou punição; e os indivíduos devem

ser livres para questionar essas crenças. Por isso existe a tradicional defesa liberal

da educação, liberdade de expressão e associação.

Com base nesses fundamentos, uma análise liberal dos direitos

diferenciados para grupos deve ser iniciada pela distinção entre, de um lado os

direitos das minorias que objetivam prover proteções externas para os grupos em

face da sociedade na qual estão inseridos e, de outro, os direitos de minorias que

se tornam permissivos de restrições internas. Os primeiros refletem desejos de

inclusão, enquanto os segundos significam a busca pelo isolamento. No primeiro

grupo, está o perigo de opressão individual, de que são exemplos as culturas

27 O autor usa o termo societal cultures para se referir às culturas das sociedades, ligada a grupos nacionais. Uma cultura que provê seus membros com significativos modos de vida por uma grande gama de atividades, incluindo vida social, educacional, religiosa, recreativa e econômica, englobando as esferas pública e privada. Essas culturas tendem a ser territorialmente concentradas e baseadas em uma língua compartilhada. Envolvem, além de memórias e valores, instituições e práticas comuns.

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teocráticas e patriarcais com mulheres oprimidas e com uma religião obrigatória.

Já o perigo do segundo é gerar injustiça entre os grupos, com a marginalização de

um para preservar o outro. Os críticos citam o apartheid como exemplo trágico de

proteção de um grupo minoritário diante do resto da sociedade.

O autor defende que os liberais podem e devem endossar certas proteções

externas, quando produzirem justiça entre os grupos, mas apenas para promover a

igualdade, e diminuir a vulnerabilidade das minorias, corrigindo desvantagens. As

restrições internas devem ser rejeitadas, de vez que limitam o direito dos

indivíduos de questionar e rever as autoridades e práticas tradicionais.

As medidas de proteção externa não apenas são consistentes com a

liberdade individual, já que respeitam a autonomia dos membros do grupo, mas

até mesmo promovem tal liberdade. Essa proteção pode ser conseguida por

direitos especiais de representação, por direito de auto-governo e direitos

poliétnicos. O perigo é que esses direitos de auto-governo e poliétnicos podem ser

usados também para restrição interna, em alguns casos.

Kymlycka traz exemplos de tribos indígenas. Há líderes indígenas que,

apesar de buscarem isenção da aplicação das declarações de direitos, afirmam seu

compromisso com os direitos e buscam ainda ser submetidos ao Tribunal

Internacional de Direitos Humanos, como qualquer outro estado soberano. O que

eles não suportam é a idéia de ter suas decisões revistas por órgãos da sociedade

dominante, que sempre foram coniventes com a colonização e desalojamento dos

seus povos e terras. A grande maioria desses grupos busca realmente a proteção

externa e não restrições individuais, mas há exceções. Existe o caso da tribo

americana Pueblo que conseguiu uma proteção para não aplicar a Declaração de

Direitos americana e com isso, manteve Estado e religião unidos e se recusou a

conceder benefícios sociais àqueles que haviam se convertido ao protestantismo.

Os direitos poliétnicos também podem ser usados para opressão individual

impondo práticas tradicionais, sob a alegação de proteção da cultura. Há receio de

que o multiculturalismo levado ao extremo possa justificar a imposição por cada

grupo aos seus membros de práticas legais tradicionais, mesmo quando colidentes

com os direitos humanos básicos e os princípios constitucionais28.

28 KYMLYCKA. Op. Cit. Pág. 41

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O importante é saber que, não obstante as exceções, a grande maioria das

demandas por direitos específicos de grupo é para proteção externa. Nem sempre

é fácil fazer distinção entre as medidas de proteção e as de restrição interna, pois

as medidas de proteção externa freqüentemente têm implicações nas vidas dos

membros da comunidade, minimamente aumentam os impostos já que custam

dinheiro para o administrador.

A diferença entre restrições internas e proteção externa é normalmente

ignorada pelos defensores e críticos dos direitos diferenciados. Os críticos liberais

assumem que todas as formas desses direitos são afetadas pela deficiência inerente

de colocar o grupo além do indivíduo. Isso é uma objeção relevante para as

restrições internas, mas não se aplica às proteções externas. A Suprema Corte

norte-americana mais de uma vez rejeitou a idéia de que direitos de restrição e de

proteção têm que andar juntos. Ao contrário, as mesmas razões que levam a apoiar

as proteções externas levam a rejeitar as restrições internas.

Um Estado Democrático de Direito pode conformar várias culturas e

formas de vida, mas não todas. Direitos de minorias de restringir a liberdade de

seus membros não serão endossados por uma ordem liberal. Existe o

compromisso de garantir aos indivíduos a chance de escolher quais aspectos da

sua cultura querem seguir. O liberalismo é comprometido com o objetivo de

garantir aos indivíduos a liberdade e a capacidade de reflexão e crítica em todos

os aspectos, inclusive, naquele relativo às tradições de sua comunidade.

De acordo com a lição de Habermas, qualquer doutrina que conduza à

intolerância em relação à liberdade individual é incompatível com o Estado de

Direito. O Direito deve deixar a cada um a possibilidade de se orientar de acordo

com a sua concepção do bom, mas não pode privilegiar ou tutelar a reivindicação

de exclusividade para uma determinada forma de vida. Visões fundamentalistas

não permitem a autocrítica e nem o desacordo razoável.29

Ou seja, a concepção liberal não vai acomodar uma minoria, cuja estrutura

contrarie a lógica da liberdade individual. Surge então um paradoxo: a tolerância é

um valor liberal fundamental. Entretanto, a promoção da liberdade individual e da

29 A ironia está em que, para Habermas, os movimentos fundamentalistas tentam atribuir ultra-estabilidade a um mundo vital que se encontra ameaçado pelo impulso modernizador. Tentando manter e imitar uma tradição já decaída, torna-se um movimento de reação também moderno, por si. Observa também que o nacionalismo pode se transformar em fundamentalismo e que todas as religiões já geraram seu movimento fundamentalista e não apenas nos estados que sofriam mudanças radicais. HABERMAS. Op. Cit. Pág 260

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autonomia pessoal traz a intolerância em relação a grupos não liberais. Ou seja, a

teoria liberal de compromisso com a autonomia individual, pode ser vista como

não-liberal pelo fato da intolerância. Há um grande debate sobre qual o principal

valor liberal: a tolerância ou a liberdade individual.

Os liberais que enfatizam a tolerância tem uma posição diferente da

apresentada pelo autor. A tolerância liberal requer que as minorias sejam deixadas

sozinhas, logo, são contrários a qualquer direito de proteção externa. Os liberais

podem apoiar os não liberais, desde que estes não tentem impor seus valores e não

lutem por ajuda externa. Uma ética da não-interferência recíproca. Admite

restrições internas, mas não proteção externa.

A concepção liberal tradicional de tolerância é dependente de um

compromisso com a autonomia. A noção de tolerância envolve liberdade de

consciência individual. Protege o direito dos indivíduos de dissentir do seu

respectivo grupo e protege os grupos contra perseguições do Estado.

Kymlycka inicia assim uma reflexão sobre como um Estado Liberal deve

tratar minorias não-liberais. Qualquer direito diferenciado para grupos que

restrinja os direitos civis dos membros do grupo é incompatível com os princípios

liberais. Se um governo particular desrespeita esses direitos individuais, cabe

investigar se alguém terá autoridade para intervir.

Os liberais contemporâneos abandonaram a idéia de intervenção direta e

buscam promover os valores liberais através da educação, persuasão e incentivos

financeiros. Estão mais relutantes em impor o liberalismo a países estrangeiros,

mas continuam propensos a impô-lo a minorias nacionais. As instituições liberais

se mostraram instáveis e passageiras quando provenientes de imposição externa.

Sendo as reformas liberais mais eficazes quando feitas por movimentos

internos, o que os liberais de fora do grupo devem fazer é dar suporte para as

iniciativas nesse sentido. Existe uma diferença entre impor o liberalismo e

oferecer incentivos às reformas. É possível, por exemplo, a inclusão pela

economia, que condiciona certos benefícios à adoção dos valores liberais. Todas

as nações liberais tiveram passados iliberais e a liberalização requereu um longo

processo de reforma institucional. Assumir que uma cultura é inerentemente

iliberal e incapaz de reforma é etnocêntrico e ahistórico. O liberalismo tem graus.

Considerar que o mundo está dividido entre culturas completamente

iliberais e outras completamente liberais é impedir a construção de um diálogo

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entre culturas. Se o objetivo é aumentar o número de opções valiosas, devemos

abandonar a idéia de culturas separadas para promover um mélange de

significados culturais de diferentes fontes. As opções são disponíveis se fazem

parte do vocabulário da vida social, incorporado em práticas sociais, baseadas em

uma linguagem compartilhada. Aprender caminhos e palavras com outras culturas

não significa negar pertencimento a uma cultura social separada.

5.3 A Liberdade Individual no Pluralismo

A integração dos cidadãos assegura lealdade a uma cultura política

comum. As disputas se dão dentro de um horizonte interpretativo comum, onde se

discute a melhor interpretação para os mesmos direitos e princípios fundamentais.

Dentro de uma comunidade jurídica, somente essa força motivacional pode tornar

possível a associação entre pessoas livres e iguais. Não se pode, por motivo de

disputas interpretativas entre grupos e identidades coletivas, “sacrificar as

conquistas normativas de uma autocompreensão nacional fundamentada na noção

de cidadania no âmbito de um Estado, e não mais em velhas noções étnicas”. 30

A coexistência eqüitativa dos diversos grupos étnicos não pode ser calcada

em um tipo de direito coletivo que necessariamente estaria além dos limites de

uma teoria do direito individualista orientada para atender pessoas individuais.

Tais direitos, se incorporados pelo Estado seriam não apenas desnecessários, mas

também questionáveis do ponto de vista normativo.

O problema desaparece quando se atribui aos portadores de direitos

subjetivos uma identidade concebida de forma intersubjetiva. As pessoas somente

são individualizadas, a partir da coletivização em sociedade. Assim, uma teoria

dos direitos, bem compreendida exige a preservação da integridade do indivíduo,

também nos contextos vitais formadores de sua identidade. Para isso não é preciso

corrigir o viés individualista, mas apenas realizá-lo de forma coerente.

A constituição-jurídica-estatal só pode permitir formas de vida capazes de

coexistir de modo eqüitativo, com base no reconhecimento recíproco das

condições culturais concernentes aos grupos. Cada pessoa, como membro de uma

30 HABERMAS. A Inclusão do Outro Pág. 275

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comunidade em torno de uma concepção diversa de bem, deve ser reconhecida.

Tal base deve servir para aumentar a sensibilidade para a pluralidade e integridade

das diversas formas de vida que coexistem em um Estado multicultural. As

comunidades eticamente integradas não podem ser vítimas de usurpação da

cultura majoritária que, utilizando o mecanismo estatal, com base na equidade,

nega o reconhecimento.

Para Habermas, “faz parte do caráter social das pessoas físicas o fato de

elas se desenvolverem em meio a formas de vida compartidas

intersubjetivamente, para se tornarem indivíduos e estabilizarem sua identidade

em condições de reconhecimento recíproco”. 31 A partir de um ponto de vista

jurídico, a pessoa só pode ser protegida juntamente com seu contexto social de

processos de formação e com acesso às redes sociais e formas da vida cultural.

O teor intersubjetivo dos direitos exige proporções simétricas de

reconhecimento entre direitos e deveres. É necessário que se parta de um conceito

de direito que atribua igual peso à integridade do indivíduo e à integridade da

comunidade em que os indivíduos possam se reconhecer tanto como indivíduos

quanto como membros do grupo32. O que se busca é uma política de respeito por

todas as diferenças que, ao mesmo tempo, universalize os direitos subjetivos.

Portanto, são necessárias políticas de reconhecimento. O objetivo das políticas de

reconhecimento não é a equalização das condições sociais, mas a proteção da

integridade de formas de vida e tradições com as quais os membros dos grupos

discriminados possam se identificar33.

A proteção de formas de vida e de tradições geradoras de identidades deve

servir ao reconhecimento dos membros do grupo. As tradições reproduzem-se ao

convencer os indivíduos que as assumem e internalizam do valor que têm. Elas

persistem ao estimular os indivíduos. A garantia da sobrevivência da reprodução

cultural iria privar os membros da possibilidade de dizer sim ou não. Não se

podem colocar as culturas sob um regime de preservação das espécies. Tal regime

seria inconciliável com as condições hermenêuticas para uma reprodução

promissora. As formas de vida se mantêm graças a uma força de

31 HABERMAS A Inclusão do Outro. Pág. 164 32 Projeto republicano.HABERMAS. A Inclusão do Outro. Pág. 281. 33 A questão é que normalmente o não reconhecimento cultural coincide com condições sociais de demérito. Há uma retro-alimentação.

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autotransformação. Mesmo culturas majoritárias necessitam de uma revisão

irrestrita.

Em sociedades multiculturais, a coexistência eqüitativa das formas de vida

dá a cada cidadão a possibilidade de pautar a sua vida de forma segura em seu

universo de origem e de proporcionar também aos seus filhos a chance de poder

escolher orientar sua vida dentro daquela tradição ou em outras, a partir de um

processo de autocrítica e ruptura. As culturas só sobrevivem quando são capazes

de autotransformação, a partir da crítica e da cisão. As garantias jurídicas só

podem existir com base na possibilidade que cada indivíduo tem, dentro da sua

cultura de regenerá-la. Esse ímpeto de regeneração e de autotransformação vem

do isolamento e também do intercambio.

Um grupo de pessoas constitui um povo com direito ao auto-governo

democrático de acordo com o acaso histórico, com o resultado de guerras e

disputas. Assim, uma nação de cidadãos é composta por pessoas que, devido aos

processos sociais de formação da identidade, encarnam simultaneamente

diferentes formas de vida. A idéia de nação vem trazer a ilusão de que as

diferenças e a contingência podem ser superadas a partir de um direito à

autodeterminação.

O povo se torna detentor do direito à soberania nacional pelo fato de ele

próprio se definir como povo homogêneo. Porém, a hipótese de um povo

homogêneo traz conseqüências indesejáveis. Qualquer heterogeneidade seria uma

anormalidade e uma ameaça à paz. Pressupor uma identidade coletiva

indisponível dá ensejo a políticas repressivas de imposição da identidade e

eliminação das diferenças. Em regra os estados não surgem a partir de uma etnia

isolada, ao contrário, muitas vezes surgem oprimindo, assimilando e

marginalizando povos inferiores. Sendo assim, luta pela homogeneidade ou

etnonacionalismo, normalmente se deu à base de sangrentos conflitos de limpeza

étnica.

A busca pela equiparação de situações de vida e posições factuais de poder

não podem ocorrer por meio de intervenções padronizadoras que privem os

pretensos beneficiários da liberdade de escolher suas formas de vida. Por esse

motivo, a neutralidade do direito em face das diferenciações éticas se explica pelo

fato de que nas sociedades complexas, não é possível manter a coesão entre os

cidadãos, por meio de um consenso substancial de valores, mas apenas por um

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consenso quanto ao procedimento quanto ao exercício do poder e à legitimidade

das ações. Há um consenso procedimental que se fia no procedimento

democrático como melhor modo de favorecer o interesse eqüitativo de todos34.

É necessária uma transformação da compreensão paradigmática do direito.

Deve-se apresentar uma concepção procedimental do direito. Um processo

democrático capaz de assegurar a um só tempo as autonomias privada e pública.

Os direitos subjetivos que objetivam garantir autonomia privada não serão

formulados de forma adequada sem que os próprios atingidos possam antes

articular e fundamentar em discussões públicas, os aspectos relevantes para o

tratamento igual ou desigual de casos típicos. Apenas com a ativação do exercício

da cidadania no espaço público, é que se pode garantir autonomia privada.

“Os sujeitos privados do direito não poderão sequer desfrutar das mesmas liberdades subjetivas enquanto não chegarem ao exercício conjunto de sua autonomia como cidadãos do Estado (...) e enquanto não chegarem a um acordo acerca das visões relevantes segundo as quais se deve tratar como igual o que for igual e como desigual o que for desigual”. 35

Nesse ponto, cumpre salientar a importância da noção hebermasiana de

todos, utilizada no sentido de que todas as pessoas são sujeitos de direitos, pessoas

capazes de reflexão e crítica. O procedimento democrático visa a efetivar a

participação de todos no discurso. Ainda que o conteúdo substantivo das decisões

democráticas seja sempre o resultado de lutas ideológicas entre grupos, o

importante é que sempre se garanta um espaço aberto em que todos, ainda que

membros de grupos minoritários possam ser ouvidos. Daí a necessidade de se

falar em identidade coletiva sem que a visão da perspectiva de grupo com base

nas diferenças modifique o sujeito de direitos que deve ter voz não enquanto raça,

gênero ou grupo, mas enquanto cidadão.

Nesse sentido, é importante frisar que em todo caso o que se busca

proteger é a efetivação de direitos do indivíduo e a realização da sua autonomia.

Através dos direitos coletivos, busca-se assegurar o exercício igual da autonomia

política para todos. A base da cidadania continua sendo a identidade política e não

o grupo ou a raça. Não se pode pensar em uma sociedade permanentemente

dividida. Uma vez que se consiga propiciar a compreensão democrática da

34 HABERMAS. A Inclusão do Outro. Pág. 263 35 HABERMAS. A Inclusão do Outro. Pág. 242

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efetivação de direitos fundamentais, nem será preciso um modelo que introduza

direitos coletivos, estranhos ao próprio sistema.

5.4 Conclusões

Sem dúvida, o grande medo dos liberais é que as noções de identidade

coletiva e de direitos diferenciados de grupo atribuídos com base no

pertencimento aos grupos, façam ruir a noção de cidadania que é o pilar da

estrutura do Estado Democrático de Direito.

Nesse ponto, Kymlycka traz uma questão que pode parecer contraditória.

Ele observa que, para muitos liberais, o único modo de desenvolver uma

identidade cívica compartilhada é ter um status comum e não-diferenciado de

cidadania. Em uma sociedade que reconhece direitos diferenciados para minorias,

os membros de um grupo são incorporados à comunidade política através do

grupo e seus direitos passam a depender, de certa forma, do pertencimento ao

grupo. Diante disso, torna-se necessário verificar se tais direitos são compatíveis

com os requisitos a longo-prazo de uma democracia liberal estável. Cabe indagar

se é possível falar em cidadania em uma sociedade em que os direitos são

distribuídos com base no pertencimento ao grupo.

Para alguns liberais, isso é contraditório. Afinal, os direitos de cidadania

gerariam um senso de pertencimento à comunidade, com base na lealdade à

civilização como posse comum36. Cidadania é tratar igualmente as pessoas como

indivíduos, com direitos iguais diante da lei. Isso é, para os liberais, exatamente o

que distingue a cidadania democrática de outros regimes pré-modernos, nos quais

o status político das pessoas era determinado com base no pertencimento a uma

classe, uma religião ou uma etnia37.

Kymlycka, entretanto, diz que cidadania é inerentemente uma noção

diferenciadora de grupos. A maioria dos liberais começa falando da igualdade

entre as pessoas e termina falando da igualdade entre cidadãos sem nem explicar

ou notar a mudança. A existência de estados e do direito dos governos de

controlar a entrada nas fronteiras do Estado gera, na visão do autor, um paradoxo

36 Teoria da função integradora da cidadania de Marshall. V. cap. 3 37 RAWLS John e PORTER John. Apud. KYMLYCKA. Op. Cit. Pág. 174.

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para os liberais. A maioria deles defende suas teorias com base no “igual respeito

pelas pessoas” e “iguais direitos para os indivíduos”. Isso sugere que todas as

pessoas têm igual direito de entrar em um estado, participar da sua vida política e

compartilhar seus recursos naturais.

Mas na prática, esses direitos são reservados aos cidadãos e nem todos

podem se tornar cidadãos, ainda que queiram jurar lealdade aos princípios

liberais. Ao contrário, há milhões de pessoas querendo ter a cidadania em

democracias liberais e são recusadas. Mesmo o país mais aberto do Ocidente

aceita somente uma fração do número de pessoas que iria para lá se realmente

existissem fronteiras abertas. Os imigrantes são pessoas que têm recusados os

direitos de entrar e participar em um determinado estado porque não nasceram no

grupo certo.

Se o liberalismo trata as pessoas apenas como indivíduos, sem considerar

o pertencimento ao grupo, fronteiras abertas são preferíveis, de vez que

aumentariam a mobilidade e as oportunidades para os indivíduos. A menos que

haja um único governo para o mundo ou fronteiras abertas entre os estados, a

distribuição de direitos e de benefícios com base na cidadania continuará sendo

feita com base no pertencimento a grupos.

Considerando esse ponto de vista, toda a estrutura do Estado Democrático

de Direito que seria incompatível com direitos diferenciados de grupo teria sido

montada com base em uma espécie de direitos diferenciados atribuídos a uma

coletividade. Reconhecendo a existência de direitos de autodeterminação e de

auto-governo atribuídos a um povo, com exclusão de todos os outros indivíduos, a

estrutura do Estado Democrático de Direito ficaria comprometida?

Por óbvio, a teoria dos direitos construída a partir da auto-compreensão do

Estado Democrático de Direito tem lugar dentro do Estado. A igualdade entre os

indivíduos de fato estaria mais próxima se houvesse um único governo mundial.

Ocorre que essa ainda é uma hipótese distante, de vez que nem há a consolidação

de estruturas eficientes, capazes de coerção na ordem internacional. Dessa forma,

os direitos de autodeterminação concedidos aos povos, são direitos que geram

uma identidade coletiva do Estado na ordem externa, em face dos outros Estados

soberanos, mas internamente existem identidades individuais formadas

intersubjetivamente.

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Nesse sentido, Habermas salienta que compreendendo bem Kant e

Rousseau, é possível dizer que a autodeterminação democrática não tem um

sentido coletivista excludente da independência e da singularidade nacionais, mas

tem o sentido de uma auto-legislação que inclui de modo uniforme todos os

cidadãos. O objetivo é incluir e equiparar os marginalizados, sem confiná-los à

homogeneidade.

Segundo a teoria racional do direito, as condições jurídicas decorrem das

relações individuais do reconhecimento intersubjetivo. Quando a

autodeterminação democrática vem no sentido de auto-afirmação e auto-

realização coletivas, pressupõem um povo constituído como Estado Nação38.

Nessa perspectiva, “o direito coletivo de todos os povos a uma existência própria

na forma de estado é condição necessária para a garantia eficiente de direitos

individuais iguais para todos”. 39 Nos casos de disputas por dominação e

colonialismo, a resistência se dá não em função de um suposto direito coletivo à

autodeterminação, mas em função das violações aos direitos fundamentais

individuais. A reivindicação da autodeterminação se dá para a concretização dos

direitos de cidadania iguais para todos.

Assim é possível compatibilizar a noção de direitos coletivos com a

estrutura do Estado Democrático de Direito. Para isso, basta que se entenda a

identidade individual, como fruto de contínuas relações intersubjetivas e que se

perceba que os chamados direitos coletivos nada mais são do que um instrumento

ou uma estratégia de luta para ampliar o acesso aos direitos individuais,

permitindo que mais pessoas alcancem a realização pessoal.

Como se tornou claro, a partir do pensamento de Habermas, a

consideração de fins coletivos não dissolve a estrutura do direito, não destrói a

forma jurídica como tal e nem acaba com a diferenciação entre direito e política.

Toda ordem jurídica reflete uma forma de vida particular e não somente a

universalização dos direitos fundamentais. “Ordens jurídicas são eticamente

impregnadas na mesma medida em que nelas se refletem a vontade política e a

forma de vida de uma comunidade jurídica concreta”. 40

38 Habermas traz o pensamento de Carl Smith que veio fundar um direito coletivo. HABERMAS. Op. Cit. Pág. 167 39 HABERMAS A Inclusão do Outro. Pág. 167 40 HABERMAS. A Inclusão do Outro. Pág. 264

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Uma teoria do direito, entendida de forma correta jamais ignora as

diferenças culturais. Os direitos comuns de cidadania pensados para o homem

branco cristão não podem acomodar as necessidades especiais desses grupos. É

necessário considerar as diferenças para uma cidadania completamente

integradora. Os direitos diferenciados em função do pertencimento se justificam

quando são necessários para criar a cidadania no ponto de partida.

“In a society where some groups are privileged while others are oppressed, insisting that as citizens, persons should leave behind their particular affiliations and experiences to adopt a general point of view serves only to reinforce the privilege; for the perspective and interests of the privileged will tend to dominate this unified public, marginalizing or silencing those of other groups”41

A solução está num reconhecimento explícito e na representação dos

grupos oprimidos. A dominação histórica de alguns grupos por outros, deixou um

rastro de barreiras e preconceito que torna muito difícil a participação efetiva dos

grupos oprimidos no processo político. Os direitos diferenciados são como uma

resposta temporária a essa opressão até uma sociedade na qual o respeito pelas

diferentes tradições torna-los-á desnecessários.

Os medos em relação à quebra da estabilidade do Estado liberal em virtude

das demandas de grupos discriminados e de imigrantes não têm razão de ser. As

demandas por direitos são reivindicações por inclusão, por uma participação

completa na comunidade maior42. Dessa forma, se o liberalismo pretende ver seus

ideais prosperarem, deve atender explicitamente as aspirações das minorias Os

limites são: a igualdade entre os grupos; e liberdade e igualdade dentro dos

grupos.

41 YOUNG, Íris. Apud KYMLYCKA. Op. Cit. Pág. 141. 42 KYMLYCKA Op. Cit. Pág. 192

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6 CONCLUSÃO

O trabalho apresentado foi desenvolvido com base no pensamento de

diversos autores. O motivo subjacente à escolha desses autores por certo foi

informado pelo corte temático que norteou o trabalho. Como é sabido, toda

escolha é subjetiva e arbitrária e todo grupo se forma por motivos contingenciais

que apontam algum traço comum, seja um interesse ou uma característica,

suficiente para reunir pessoas, até então separadas. A formação do grupo de

autores apresentados para a abordagem do tema escolhido não fugiu à regra.

Cumpre então apontar os traços comuns responsáveis por essa reunião.

O objetivo de refletir sobre o tema dos direitos coletivos no Estado

Democrático de Direito nos levou à origem desse modelo de Estado. Assim, os

pensamentos de Mill e Tocqueville serviram ao papel introdutório, de vez que

com eles, foi possível passar os principais receios e avanços percebidos no

surgimento do Estado Democrático.

Os dois autores estabelecem um diálogo interessante que, partindo de

pressupostos e receios por vezes distantes, chegam à mesma proposta no combate

a seus respectivos males. Para os dois autores, a principal inovação da democracia

foi trazer a igualdade entre os homens.

Para Mill essa igualdade não se efetivava na prática. O princípio da

soberania do povo não correspondia à verdade, pois o sistema majoritário

entregava todo o poder à parte mais numerosa ou dominante do povo que podia

oprimir a outra parte. Como defendia que qualquer opinião devia ser ouvida, por

mais isolada ou dissidente que fosse, ele acreditava que a igualdade trazida pela

democracia oprimia a individualidade que, para ele, era indispensável à realização

da liberdade.

Tocqueville acreditava que a igualdade entre os homens, por ter dissolvido

os vínculos que os uniam aos grupos pré-estabelecidos como os estamentos, criou

o egoísmo e o isolamento que trazia o desinteresse pelo público e a alienação.

Achava que a liberdade nesse contexto tornava-se um mal necessário, pois

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havendo liberdade individual, por conseqüência os homens seriam livres para unir

esforços e, assim deixar o egoísmo e o isolamento.

Por caminhos tão diferentes, um considerando o individualismo um bem e

outro considerando-o um mal a ser eliminado, os dois autores chegaram à

associação como a forma de combater seus respectivos receios. Para Mill, através

da união de esforços, os indivíduos à parte das decisões de poder controladas pela

maioria, poderiam enfim ter voz e participar da formação de opiniões. Para

Tocqueville, as associações como desdobramento da liberdade era o instrumento

de união dos homens em torno de interesses mais nobres e úteis do que aqueles

egoístas privados.

É importante observar a partir daí os pontos de contato que se delineiam

entre os pensamentos apresentados no primeiro capítulo e aqueles dos capítulos

subseqüentes. Primeiramente, quando Mill defende que toda e qualquer opinião

deve ser ouvida e quando ele afirma que a liberdade é a melhor fonte de

desenvolvimento por fazer de todo indivíduo um centro de melhoramento é

possível ver um traço da teoria habermasiana de que todos são capazes de reflexão

e crítica e, portanto, devem participar dos processos democráticos de decisão.

Nesse mesmo contexto, Mill mostra-se mais desconfiado em relação ao

procedimento democrático, já que teme por uma tirania da maioria que oprimiria

os outros indivíduos.

Mill também se preocupa com a tirania da opinião publica. Nesse ponto é

possível traçar uma paralelo com Habermas e Honneth no sentido da idéia de

deformação da comunicação e de que para haver uma efetiva participação no

processo democrático é preciso que se garanta condições mínimas econômicas e

educacionais para que a democracia não se transforme e despotismo. Nesse

sentido, mais uma vez o pensamento de Tocqueville é contrastante no

desenvolvimento, mas no fim busca evitar o mesmo mal. Ele considerava a

uniformização da opinião um bem, achava que a persistência das opiniões

individuais isoladas trazia a alienação em relação aos assuntos públicos deixando

caminho aberto para o despotismo. As associações eram um meio de potencializar

a força dos indivíduos e trazê-los para o espaço público.

Nesse sentido, o pensamento de Honneth sobre as lutas por

reconhecimento vem mostrar a dinâmica das disputas interpretativas dentro do

meio democrático e aponta as conseqüências para a auto-realização do indivíduo

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(tão caro a Mill) quando existe a privação da participação e representação dentro

da coletividade na qual se insere o indivíduo. Compartilhando com Habermas as

idéias acerca da intersubjetividade e do direito enquanto vetor de equilíbrio das

relações na sociedade pós-convencional, Honneth aponta as lutas por

reconhecimento como determinantes da interação e do desenvolvimento social.

Nessa linha, um olhar para a situação dos negros, primeiramente apontada

por Tocqueville, e reapresentada pelo ponto de vista de Kymlycka se mostra um

exemplo marcante das privações e das conseqüentes lutas por reconhecimento que

podem ser travadas em um Estado Democrático de Direito. A atribuição de

direitos, deixando algumas pessoas à parte comprometendo sua individualidade,

sua estima e seu reconhecimento enquanto sujeito portador de direitos e membro

daquela coletividade gera a formação de subgrupos que se enfrentam em eternas

disputas interpretativas.

Os negros trazidos à força para integrar um Estado desconhecido, não

tiveram nem direitos de cidadania, nem de inclusão e nem de auto-determinação

reconhecidos. Como caso de uma minoria visível, formam um trágico exemplo de

um grupo formado em função do desrespeito sofrido na relação com a

coletividade. Sendo o desrespeito ligado às características físicas, como observou

Tocqueville, o pertencimento ao grupo deixa de ser contingencial e passa a ser

uma marca imutável. Nas constantes e diversas disputas interpretativas entre

diferentes grupos, este é um grupo que já se encontra, em um sentido, pré-

formado.

Ficou claro, a partir de tudo o que foi apresentado e, principalmente com o

pensamento de Marshall e posteriormente de Kymlycka, que os direitos coletivos

dentro do estado de direito e em relação aos cidadãos desse Estado, representam

uma estratégia de luta à qual recorrem aqueles grupos de pessoas unidas pelo fato

de não conseguirem o acesso aos direitos teoricamente garantidos para o

desenvolvimento pleno de suas cidadanias. Nesse sentido, trata-se, em suma, da

efetivação de direitos para minorias, sendo certo que essa minoria, como já ficou

claro no pensamento de Mill nem sempre é numérica.

Dessa forma, de acordo com a lição de Kymlycka, os direitos coletivos

podem ser conciliáveis com o pensamento liberal, desde que, para essa análise

seja considerada a diferença entre proteção externa e restrições internas. Sendo os

primeiros pretensões de inclusão e o segundo de isolamento.

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É interessante notar que já nos pensamento de Mill e Tocqueville no início

do modelo liberal de estado, eram vistas as preocupações liberais decorrentes das

duas espécies de direitos. Mill temia pela opressão individual, com base na

inclusão às custas da uniformização e Tocqueville mostrava o pavor do

isolamento e do egoísmo. Kymlycka mostrou que o isolamento não deve ser uma

preocupação liberal.O comprometimento liberal é com a proteção do indivíduo e a

tolerância com relação às diversas concepções individuais de bem. Mais uma vez

o pensamento de Mill se mostra atual pelo posicionamento no sentido contrário às

cruzadas pela civilização, o que é corroborado por Kymlycka que defende o

incentivo e não a imposição dos ideais liberais.

A acomodação das diferenças e a efetivação prática da teoria de que todos

são portadores de direitos em igualdade de condições parecem informar todo o

pensamento liberal apresentado. Mill já exaltava a diversidade e o diálogo aberto

defendendo que a livre troca de idéias e de experiências gera soluções originais e

desenvolvimento. Nesse sentido, pode-se dizer que o pensamento de Mill trouxe

os germes dos pontos mais importantes desenvolvidos na exposição dos trabalhos

dos outros autores. Tocqueville, apesar de destoar em algumas colocações, em

parte por não conseguir se distanciar totalmente da sua história aristocrática,

também mostrou-se de extrema importância para o estudo desenvolvido,

especialmente no que toca ao esclarecimento do recurso ao coletivo como forma

mais efetiva de consecução de fins e também pela brilhante exposição sobre a

questão dos negros.

Por todos esses motivos, os pensamentos desses autores puderam ser

misturados às lições trazidas por Habermas, Honneth e Kymlycka em torno do

tema dos direitos coletivos. A partir de um diálogo aberto defendido por todos

eles, (ainda que como um mal necessário no caso de Tocqueville), espera-se ter

sido possível provocar reflexões em nome de uma solução útil que possibilite

pensar os benefícios trazidos pela estratégia do coletivo no sentido da

consolidação da dignidade humana para TODOS, dentro do consenso

procedimental democrático.

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