salvos pela graça.pmd 1 25/10/2018, 10:35...1979) [a bíblia e o futuro] e antropologia teológica...

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  • SUMÁRIO

    Abreviaturas .............................................................................. 6Introdução: In memoriam ......................................................... 7Prefácio ...................................................................................... 9

    1. Orientação ......................................................................................... 112. A questão da “Ordem da Salvação” ................................................. 183. O papel do Espírito Santo .................................................................. 344. União com Cristo ............................................................................... 585. O chamado do Evangelho .................................................................. 716. Vocação eficaz .................................................................................. 827. Regeneração ..................................................................................... 938. Conversão .......................................................................................... 1119. Arrependimento ................................................................................. 11910. Fé .................................................................................................... 13011. Justificação ...................................................................................... 14812. Santificação ..................................................................................... 18313. A perseverança do verdadeiro crente ............................................. 221

    Notas .......................................................................................... 243Bibliografia ............................................................................... 267

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  • INTRODUÇÃO: IN MEMORIAM

    SALVOS PELA GRAÇA É O SÉTIMO LIVRO DE ANTHONYHOEKEMA e o último de três estudos expositivos sobre tópicos centraisda teologia reformada. O presente exame da doutrina da salvação completauma série que compreende livros sobre escatologia (The Bible and the Future,1979) [A Bíblia e o futuro] e antropologia teológica (Created in God’sImage, 1986 [Criados à imagem de Deus].

    Tony completou o manuscrito deste estudo um pouco antes do seu 75ºaniversário. Seria seu último aniversário e seu último livro. Alguns mesesdepois, em 17 de outubro de 1988, ele morreu de um ataque cardíaco sofridodois dias antes. Assim, sua vida de estudos e ensino chegou ao fim, e suaexperiência com o amor redentor de Jesus Cristo entrou em novo estágio.

    O autor dedicou este livro à memória de seus pais, um alfaiate da Frísia,e uma mãe firme, mas amorosa, que compartilhou da alegria do filho quantoao seu chamado ministerial, mas morreu antes que seu primeiro livro fossepublicado (The Four Major Cults, 1963) [As quatro maiores seitas]. Nossatristeza pela sua perda é moderada pela gratidão pelos seus 44 anos de mi-nistério na igreja por meio da pregação, do ensino e da escrita e, ao ver queeste livro estava sendo preparado para publicação, acrescentamos umarededicação à sua memória.

    Anthony Andrew Hoekema nasceu em Drachten, Holanda, em 1913 emudou-se dos Países Baixos para os Estados Unidos, junto com seus pais edois irmãos, em 1923. Tony estudou no Baxter Christian School, graduou-sepelo Grand Rapids Christian High School e recebeu seu título de bacharelno Calvin College, em 1936 – caminho que foi seguido, também, trinta anosdepois, por seus quatro filhos. Recebeu o grau de Mestre em Psicologia, naMichigan University, em 1937, e o grau de Mestre em Teologia, no CalvinTheological Seminary, em 1944. Prosseguiu seus estudos, tendo recebido ograu de Doutor em Teologia no Princeton Seminary, em 1953. Após suaordenação ao sagrado ministério, em 1944, serviu como pastor em três igre-jas cristãs reformadas: Twelfth Street, em Grand Rapids, Bethel, em Paterson,Nova Jersey, e Alger Park, em Grand Rapids.

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  • 8 SALVOS PELA GRAÇA

    Em 1956, Tony foi chamado a continuar seu ministério por meio doensino, primeiro no Calvin College e, depois, de 1958 até sua aposentadoriaem 1978, no Calvin Seminary, onde manteve a cadeira de Professor de Teo-logia Sistemática. Ele é lembrado por seus alunos e membros de igrejas –assim temos sido frequentemente avivados em nossa lembrança nos mesesapós sua morte – por sua clareza de mente, sua precisão de expressão, seucaloroso interesse pessoal por todos aqueles cuja vida tocou a sua própriavida, bem como por sua fraqueza por piadinhas horríveis. Todas essas ca-racterísticas, exceto a última, esperamos, são evidentes nos seus escritos.

    Quando da morte de Tony, este estudo estava já na fase de produção,faltando apenas completar algumas tarefas editoriais: a leitura das provas eo acréscimo dos índices. Não foi uma obrigação, mas um privilégio dar essamodesta contribuição para completar a obra erudita e pastoral de Tony.

    Não sabemos das alegrias que ele goza agora na presença de nossoSalvador, mas esperamos e rogamos que sua luta para articular o ensinobíblico no que diz respeito à salvação aprofunde o entendimento de outrosquanto às riquezas do dom da graça que recebemos mediante o amor ilimi-tado de Deus.

    18 de Fevereiro de 1989

    RUTH BRINK HOEKEMADAVID A. HOEKEMA

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    PREFÁCIO

    ESTE É O TERCEIRO DE UMA SÉRIE DE ESTUDOS DOUTRI-NÁRIOS. O primeiro, The Bible and the Future [A Bíblia e o futuro], foiuma apresentação da escatologia cristã ou doutrina das últimas coisas.O segundo, Created in God’s Image [Criados à imagem de Deus], trata daantropologia cristã ou doutrina cristã do homem.

    Este livro diz respeito ao que os teólogos chamam de soteriologia oudoutrina cristã da salvação. Tenho tentado tirar as respostas às minhasquestões nessa área principalmente a partir da Bíblia. Minha posição teo-lógica é a do cristianismo evangélico interpretado de uma perspectiva re-formada ou calvinista.

    O entendimento reformado das Escrituras começa com o reconheci-mento da soberania de Deus em todas as coisas, incluindo nossa salvação.Um dos ensinamentos centrais da Bíblia, repetidamente ecoado, como o temade uma sinfonia, é o de que somos salvos inteiramente pela graça, por meio dapoderosa obra do Espírito de Deus, sobre a base da obra todo-suficiente denosso Salvador, Jesus Cristo.

    Ao mesmo tempo, entretanto, a Escritura ensina que Deus nos salva,não como marionetes, mas como pessoas, e que devemos, então, ser ativosem nossa salvação. A Bíblia, de uma maneira misteriosamente profunda,combina a soberania de Deus com nossa responsabilidade no processo dasalvação. Mas nós somente podemos amá-lo porque ele nos amou primeiro.A ele, portanto, seja todo o louvor.

    Gostaria também de agradecer aos meus muitos alunos do CalvinTheological Seminary pelas perguntas, pelos desafios e pelos comentáriosfeitos em classe, que me ajudaram a aprofundar meu discernimento a res-peito desse aspecto do ensino das Escrituras.

    Sou grato pelo uso que pude fazer dos excelentes recursos da bibliotecado Calvin Theological Seminary, bem como pelo privilégio de poder usaruma das salas da biblioteca depois de minha aposentadoria. De maneiraespecial, meus agradecimentos ao bibliotecário, Peter De Klerk, pela suaprestimosidade excepcional.

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    O corpo editorial da Eerdmans Publishing Company forneceu-me otipo de conselho especialista que é caro ao coração de um autor. Quero agra-decer especialmente a Jon Pott e Milton Essenburg.

    Devo à minha esposa, Ruth, a maior gratidão do que consigo expressar,por seu interesse e estímulo, suas várias sugestões e por sua ajuda quanto àbibliografia. Sem ela, este livro teria ficado sem brilho.

    Acima de tudo, devo agradecer e louvar o Deus de toda graça, que medeu força para escrever. Ao longo deste estudo, senti-me esmagado nova-mente pela grandeza incompreensível de sua misericórdia para com pecado-res como nós. Esperamos ansiosamente em antecipação pela perfeição finalda obra que ele começou em nós, quando o veremos face a face para contara história, “salvos pela graça”.

    Grand Rapids, Michigan

    ANTHONY A. HOEKEMA

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    CAPÍTULO 1Orientação

    PELA SUA TOTAL OBEDIÊNCIA AO PAI E PELO SEU SOFRI-MENTO, morte e ressurreição, nosso Senhor Jesus Cristo conquistou-nos asalvação do pecado e de todas as suas consequências. Mas essa obra salvíficade Cristo não tem nenhum valor para nós até que tenha sido aplicada ao nossocoração e à nossa vida pelo Espírito Santo. O estudo da aplicação da obra daredenção ao povo de Deus é chamado soteriologia – termo derivado de duaspalavras gregas, soteria e logos –, que significa “a doutrina da salvação”.

    A soteriologia não foi sempre entendida da mesma forma. CharlesHodge, por exemplo, define-a incluindo o plano da salvação (predestinaçãoe aliança da graça), a pessoa e a obra de Cristo e a aplicação dessa obrapelo Espírito Santo para a salvação do crente.1 William G. T. Shedd temuma visão um tanto mais estreita; para ele, a soteriologia inclui a obra deCristo (excluindo a sua pessoa) e a aplicação da salvação pelo Espírito.2

    Nesta obra, entretanto, a soteriologia ou “doutrina da salvação”, como émais comumente chamada, deve ser entendida incluindo o estudo da apli-cação das bênçãos da salvação ao povo de Deus, e sua restauração aofavor de Deus e à vida de comunhão com ele em Cristo. Fica subentendidoque essa aplicação é obra do Espírito Santo ainda que tenha que ser apro-priada pela fé.

    O ponto de vista teológico representado neste livro é o do cristianismoevangélico a partir de uma perspectiva reformada ou calvinista. A soteriologiareformada tem muito em comum com outras soteriologias evangélicas, maspossui certas ênfases distintas. Entre essas ênfases estão as seguintes:

    (1) O fator decisivo para a determinação de quem será salvo do pecadonão é uma decisão dos seres humanos envolvidos, mas a graça soberana deDeus – ainda que a decisão humana tenha papel significativo no processo.

    (2) A aplicação da salvação ao povo de Deus tem suas raízes no decretoeterno de Deus, segundo o qual ele escolheu seu povo para a vida eterna,

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    não com base em qualquer mérito da parte desse povo, mas somente pelopróprio prazer de Deus.

    (3) Embora todos que escutam a mensagem do evangelho sejam con-vidados a aceitar Cristo e sua salvação, e são honestamente conclamados atal aceitação, a graça salvadora de Deus, no sentido mais estrito da palavra,não é universal, mas particular, sendo concedida só aos eleitos de Deus(aqueles que foram escolhidos por Deus em Cristo para a salvação).

    (4) A graça salvadora de Deus é, assim, eficaz e impossível de serperdida. Isso não quer dizer que, deixados por si mesmos, os crentes nãopossam desviar-se de Deus, mas, pelo contrário, significa que a vontade deDeus não permite que seus escolhidos percam a salvação. A segurançaespiritual dos crentes, portanto, depende, principalmente, não de que elesse segurem em Deus, mas de que Deus os segure.

    (5) Embora a aplicação da salvação ao povo de Deus envolva, nos aspec-tos mais distintos da regeneração, no seu sentido mais restrito, vontade huma-na e obras, ainda assim a aplicação é, principalmente, obra do Espírito Santo.

    Essas ênfases distintas formam a soteriologia reformada. Embora realcea soberania da graça de Deus na aplicação da salvação, a teologia reformadanão nega a responsabilidade humana no processo de salvação.

    Num estudo anterior tentei desenvolver um aspecto desse pensamentoem um capítulo intitulado “O homem como pessoa criada”.3 Ressaltei alique o ser humano é ao mesmo tempo uma criatura totalmente dependente deum Deus soberano, e uma pessoa que toma decisões responsáveis. Essa com-binação de total dependência e liberdade de decisão constitui o mistériocentral do homem.4 Como essa visão do homem afeta nosso entendimentodo processo de salvação? Embora Deus tenha de regenerar os seres huma-nos e dar-lhes nova vida espiritual, os crentes têm uma responsabilidade noprocesso de sua salvação: no exercício de sua fé, na sua santificação e emsua perseverança.

    Desde que os seres humanos estão por natureza mortos nos pecados,Deus tem de vivificá-los; a regeneração, num sentido restrito,5 tem de serobra exclusiva de Deus. Mas nos aspectos do processo da salvação, que sãodistintos da regeneração, tanto Deus quanto os crentes são envolvidos –podemos falar de salvação nesse sentido como sendo tanto obra de Deusquanto tarefa nossa. Algumas vezes estes aspectos – arrependimento, fé,santificação, perseverança, e outros – são descritos como obras de Deus nasquais os crentes cooperam. O problema com essa colocação, entretanto, é queela parece implicar que cada um, Deus e nós, faz uma parte da obra. Seriamelhor dizer que nesse aspecto de nossa salvação (distinto da regeneração),Deus trabalha e nós trabalhamos. Nossa santificação, por exemplo, é, aomesmo tempo, cem por cento obra de Deus e cem por cento nosso trabalho.

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    Paulo nos oferece uma expressão clássica a essa “misteriosa cooperação”do trabalho e Deus e do nosso trabalho, em Filipenses 2.12-13: “Assim,pois, amados meus, como sempre obedecestes (...) desenvolvei a vossa sal-vação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querercomo o realizar, segundo a sua boa vontade”.6

    O CONCEITO DE PARADOXO

    Podemos dizer que aqui estamos lidando com o que é comumente cha-mado de paradoxo – isto é, a combinação de dois pensamentos que parecemcontradizer-se. Não nos parece possível harmonizar em nossa mente estesdois aspectos da verdade bíblica: que de um lado somente Deus deve nossantificar, mas que, de outro lado, nós precisamos operar nossa santificaçãopelo aperfeiçoamento de nossa santidade. Nem parece possível harmonizarestes dois pensamentos aparentemente contraditórios: que Deus é totalmentesoberano sobre nossa vida, dirigindo-nos segundo sua vontade, mas é requeri-do que tomemos nossa própria decisão, sendo totalmente responsabilizadospor ela.

    Precisamos crer, contudo, que os dois lados desse conjunto de pensa-mentos, aparentemente contraditórios, são verdadeiros, pois a Bíblia ensinaambos. Por exemplo, a Bíblia ensina claramente a soberania de Deus: “Comoribeiros de águas, assim é o coração do rei nas mãos do SENHOR; este, segundoo seu querer, o inclina” (Pv 21.1); “Nele, digo, no qual fomos também feitosherança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisasconforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11); “Ou não tem o oleiro direitosobre a massa, para do mesmo barro [a referência é feita a seres humanos]fazer um vaso para honra e outro, para desonra?” (Rm 9.21). Mas a Bíbliatambém ensina claramente a responsabilidade humana: “Por isso quem crêno Filho, tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filhonão verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus” (Jo 3.36); “Porque oFilho do homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos, e entãoretribuirá a cada um segundo as suas obras” (Mt. 16.27); “E eis que venhosem demora, e comigo está o galardão que tenho para retribuir a cada umsegundo as suas obras” (Ap 22.12).

    Em pelo menos duas passagens, esses dois aspectos da verdadebíblica se encontram: Lucas 22.22 (“Porque o Filho do Homem, na verda-de, vai segundo o que está determinado, mas ai daquele por intermédio dequem ele está sendo traído!”); e Atos 2.23 (“sendo este entregue pelo de-terminado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-opor mãos de iníquos”). Deus certamente decretou a morte de Cristo; aindaassim, aquele que traiu a Jesus e os que o mataram são responsabilizadospelas suas obras iníquas.

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    Se desejamos entender as Escrituras, precisamos aceitar o conceito deparadoxo, crendo que aquilo que não conseguimos entender com nossa mentefinita se harmoniza, de alguma forma, na mente de Deus.

    A necessidade de aceitar verdades paradoxais é reconhecida por muitosteólogos reformados. João Calvino é um deles. Calvino, conforme diz EdwardDowey, estava disposto a combinar doutrinas claras em si mesmas, maslogicamente incompatíveis uma com a outra, já que ambas estão na Bíblia.7

    Calvino, pois, estava plenamente convencido de que havia um altograu de clareza e compreensividade nos temas individuais da Bíblia,mas era, também, tão submisso ante o mistério divino, que preferiacriar uma teologia que continha muitas inconsistências lógicas, emvez de optar por um todo racionalmente coerente (...) Clareza de temasindividuais, incompreensividade das suas inter-relações – essa é amarca registrada da teologia de Calvino.8

    James Packer, teólogo anglicano reformado, tem algumas coisas úteisa dizer a respeito dessa questão:

    A soberania de Deus e a responsabilidade humana são-nos ensinadaslado a lado na mesma Bíblia; algumas vezes, na verdade, no mesmotexto. Ambas são-nos garantias pela mesma autoridade divina; ambas,portanto, são verdadeiras. Segue-se que elas precisam ser mantidasjuntas e não lançadas uma contra a outra. O homem é um agentemoral responsável, ainda que seja também divinamente controlado;o homem é divinamente controlado, ainda que seja, também, umagente moral responsável. A soberania de Deus é uma realidade assimcomo a responsabilidade humana o é também.9

    Depois de advertir do perigo de enfatizar um aspecto enquanto se negao outro, Packer prossegue dizendo:

    A antinomia que enfrentamos agora [entre a soberania de Deus e aresponsabilidade humana] é apenas uma dentre muitas que a Bíbliacontém. Podemos estar certos de que tudo encontra conciliação namente e no conselho de Deus, e podemos esperar que no céu nós asentenderemos também. Mas, enquanto isso, será prudente de nossaparte dar ênfase equilibrada tanto num como noutro caso de verdadesaparentemente conflitantes, mantendo-as juntas na mesma relaçãoem que a Bíblia as coloca, e reconhecendo que aí há um mistério quenão podemos esperar que seja resolvido neste mundo.10

    Num ensaio magistral sobre o assunto, Vernon Grounds colocou a ques-tão da seguinte maneira: “No cristianismo, a meu ver, o paradoxo não é umaconcessão: é uma categoria indispensável, é pura necessidade – uma neces-

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    sidade lógica! – para que nossa fé seja inabalavelmente bíblica”.11 Eletermina seu artigo dizendo: “Asseveremos ‘verdades aparentemente opos-tas’ lembrando, como uma espécie de critério, que provavelmente estamossendo leais à Bíblia enquanto sentimos em nossa mente a tração das tensõeslógicas. Que nós, sem hesitação como evangélicos, postulemos paradoxos”.12

    O surpreendente aforismo de G. K. Chesterton expressa esse ponto deuma forma brilhante: “O cristianismo sobrepujou a dificuldade de combinaroposições ferozes acatando os opostos e mantendo-os ferozes”.13

    Precisamos, assim, afirmar ambas as verdades: a soberania de Deus ea responsabilidade humana; tanto a vontade de Deus quanto nossa partici-pação ativa no processo de salvação. Só faremos justiça ao ensino bíblico semantivermos posição firme nos dois lados do paradoxo. Uma vez que Deusé o Criador e nós somos suas criaturas, Deus deve ter prioridade. Daí, preci-samos manter que o fator decisivo no processo de nossa salvação é a graçasoberana de Deus.

    INTER-RELAÇÕES

    Algo mais deve ser dito sobre as relações entre a soteriologia e osoutros aspectos da teologia cristã. É óbvio que a soteriologia está intima-mente ligada à doutrina de Deus, pois lida com o modo como Deus nossalva dos nossos pecados. Um entendimento inadequado de Deus resultanuma compreensão inadequada da soteriologia. A ênfase unilateral e ex-clusiva na soberania de Deus dá a ideia de que Deus salva seu povo damaneira como os computadores controlam os robôs. A ênfase exclusivana responsabilidade humana, por outro lado, produz um Deus totalmentedependente das decisões humana, de modo que ele espera que as pessoassejam bastante boas para aceitar o convite para a salvação, mas sem con-trole algum sobre suas vontades. Essas duas formas de ver a soteriologia,entretanto, não são bíblicas.

    A soteriologia também se relaciona intimamente com a antropologiateológica, ou “doutrina cristã do homem”. Nosso entendimento da pessoahumana é decisivo para que compreendamos como se dá a salvação. Sugerirque os seres humanos nasçam em estado de neutralidade moral e espiritual eque não precisam ser regenerados, mas devem ser apenas adequadamentetreinados e cercados por bons exemplos, resulta na teologia pelagiana.Ensinar que a natureza humana depois da Queda é apenas parcialmente de-pravada, e que os seres humanos não estão mortos no pecado, mas apenasdoentes, precisando, assim, dar o primeiro passo na regeneração, e que tal-vez possam ainda perder a salvação após tê-la recebido, pressupõe umasoteriologia semipelagiana. Se, entretanto, cremos que a natureza humanaapós a Queda é total ou difusamente caída (de modo que os seres humanos

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    estão, por natureza, mortos no pecado), e que, portanto, as pessoas precisamser regeneradas, ou precisam receber nova vida espiritual, pelo ato graciosoque vem unicamente da obra de Deus, e que a salvação, assim outorgada porDeus, não pode ser perdida, nós nos comprometemos com a soteriologiareformada ou calvinista.14

    A soteriologia tem também um relacionamento próximo com acristologia, ou a doutrina da pessoa e da obra de Cristo. Somente quandoaceita a completa divindade de Cristo pode alguém entender a doutrina dasalvação no sentido bíblico; Atanásio, em oposição a Ário, que negava adivindade de Cristo, colocou essa questão em termos incisivos: “Jesus, aquem tenho conhecido como meu Redentor, não pode ser menos do queDeus”. Somente aceitando a genuína humanidade de Cristo pode alguémcrer que Jesus é o nosso Salvador do pecado, já que, conforme diz o Cate-cismo de Heidelberg (talvez a mais conhecida confissão de fé reformada):“A justiça de Deus requer que a mesma natureza humana que pecou devepagar pelo seu pecado....”.15 Além do mais, é essencial que se entenda osacrifício expiatório de Cristo para compreender a doutrina da justificação;e entender que a contínua intercessão de Cristo pelo seu povo é indispensá-vel para se compreender a doutrina da perseverança dos santos.

    A soteriologia também se relaciona com a doutrina do Espírito Santo.O Espírito Santo inspirou os escritores da Bíblia e ilumina nosso coração àmedida que a lemos, habilitando-nos a entender as Escrituras. O Espíritoregenera-nos, santifica-nos e capacita-nos a perseverar na fé. Em outras pa-lavras, o processo todo tratado pela soteriologia é a descrição da obra doEspírito Santo, da forma como ele aplica à nossa vida a salvação que Cristoadquiriu para nós.

    Há também uma relação estreita entre soteriologia e escatologia (a dou-trina das últimas coisas). Primeiro precisamos distinguir entre a escatologiainaugurada e a futura. Por escatologia inaugurada entendemos o presentegozo de bênçãos escatológicas. Desde que a vinda de Cristo à terra inaugu-rou os “últimos dias”, podemos dizer que as bênçãos da salvação que rece-bemos por meio de Cristo são aspectos escatológicos que usufruímos aindanesta vida. O derramamento do Espírito Santo no dia de Pentecostes – frutoda obra completa de Cristo – foi a entrada do futuro dentro do presente.16

    Recebendo o Espírito Santo, os crentes se tornam participantes de um novomodo de existência associado com a era futura. O Espírito é a primícia (Rm8.23) e o depósito ou caução (2Co 5.5; Ef 1.14) de bênçãos futuras, o selo degarantia de que somos propriedade de Deus (2Co 1.22) e a garantia denossa filiação (Rm 8.15-16), a completa riqueza daquilo que não será revela-do até que Cristo venha outra vez (Rm 8.23). Nesse sentido, a soteriologia éum aspecto da escatologia.

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    Por escatologia futura queremos dizer a discussão de eventos escatológicosque ainda estão por vir. De diversas formas, as bênçãos soteriológicas querecebemos nesta vida são uma amostra de bênçãos maiores para as quaisolhamos no porvir. O fato de termos sido levantados com Cristo agora (Ef 2.6;Cl 3.1), por exemplo, antecipa e garante nossa ressurreição no último dia.Nossa justificação pela fé, na presente vida, antecipa e garante nossa final edefinitiva justificação ante o trono do juízo de Cristo. O processo de nossasantificação neste lado do túmulo aguarda ansiosamente pela sua perfeiçãogloriosa na nova terra.

    Por meio de tudo isso entendemos que nossa salvação, nesta vida, émarcada por uma real tensão entre o “já” e o “ainda não”. O crente já é umparticipante da nova existência associada com um novo tempo, mas não seencontra ainda em seu estado final. Conquanto agora precisemos lutar con-tinuamente contra o pecado, sabemos que a luta findará. Mesmo que seja-mos agora genuinamente novas pessoas em Cristo, um dia seremos total-mente novos. Sabemos que Deus começou uma boa obra em nós, e estamosconfiantes de que um dia ele levará esse trabalho à sua plenitude. Ainda quesejamos cidadãos do reino de Deus, esperamos ansiosa e animadamente pelafase final desse reino no porvir, quando a terra se encherá do conhecimentode Deus como as águas cobrem o mar.17

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