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1 Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Sagas do “comércio justo” e percepções da modernidade na selva central peruana Ricardo Luiz Cruz Rio de Janeiro 2010

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Sagas do “comércio justo” e percepções da modernidade na

selva central peruana

Ricardo Luiz Cruz

Rio de Janeiro

2010

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Sagas do “comércio justo” e percepções da modernidade na selva central peruana

Ricardo Luiz Cruz

Tese de doutorado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Antropologia Social,

Museu Nacional, da Universidade Federal

do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título

de Doutor em Antropologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Federico Neiburg

Rio de Janeiro

2010

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Sagas do “comércio justo” e percepções da modernidade na selva central peruana

Ricardo Luiz Cruz

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia Social

Aprovada por:

________________________________________________

Prof. Dr. Federico Neiburg (Orientador, PPGAS/MN/UFRJ)

________________________________________________

Profa. Dra. Lúcia Helena Alves Muller (PUC-RS)

________________________________________________

Prof. Dr. Mauro William Barbosa de Almeida (UNICAMP)

________________________________________________

Prof. Dr. Carlos Fausto (PPGAS/MN/UFRJ)

________________________________________________

Prof. Dr. Fernando Rabossi (IFCS/UFRJ)

________________________________________________

Profa. Dra. Giralda Seyferth (Suplente, PPGAS/MN/UFRJ)

________________________________________________

Prof. Dr. John Comerford (Suplente, CPDA/UFRRJ)

Rio de Janeiro

2010

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Cruz, Ricardo Luiz.

Sagas do “comércio justo” e percepções da modernidade na selva central peruana/ Ricardo Luiz Cruz. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional, 2010.

xiii, 277 p.

Tese (doutorado) – UFRJ/Museu Nacional/Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, 2010.

1. Antropologia social 2. Antropologia da Economia. 3. Modernidade. 4. Comércio Justo 5. Selva central peruana I. Neiburg, Federico II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título.

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho tem a minha assinatura, mas certamente não seria possível de ser

feito sem o apoio que recebi de duas instituições e diversas pessoas ao longo dos

últimos anos. Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

(CNPq), agradeço pela bolsa de doutorado que me foi concedida. Já ao Programa de

Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, sou grato por ter me

oferecido um ambiente acadêmico de alta qualidade.

Federico Neiburg, fique sabendo que desde nosso primeiro encontro, depois de

uma palestra sua em São Paulo, continuo em débito contigo pelo que vem me

ensinando. Não falo apenas de um ofício que você exerce com bastante maestria, mas

também de uma seriedade diante do pensamento alheio. Obrigado pela orientação e pelo

respeito, qualquer retribuição aos seus ensinamentos deve ser entendida como uma

forma de manter uma amizade que tanto estimo.

Ao Fernando Rabossi, Carlos Fausto, Mauro Almeida e Lucia Müller meus

sinceros agradecimentos por terem aceitado compor a banca examinadora. Um

agradecimento especial, aos dois últimos, por virem de tão longe participar da defesa e,

aos dois primeiros, por estarem por perto ao longo dos últimos anos.

Ao professor Otávio Velho e à saudosa professora Lygia Sigaud, agradeço pelos

melhores cursos de antropologia que já tive.

Junto dos alunos e alunas do PPGAS minha estadia no Rio de Janeiro não

poderia ter sido melhor. Obrigado meus amigos, acima de tudo, pela agradável

companhia. Seria injusto nomear cada um de vocês que estiveram ao meu lado nestes

anos de mestrado e doutorado, pois poderia me esquecer de alguém. É verdade que teve

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uma aluna que marcou ainda mais a minha vida, mas prefiro citar o nome dela no final

desses agradecimentos.

Minha pesquisa de campo no Peru não poderia ter sido possível sem a

receptividade que encontrei entre os membros da Cooperativa La Florida. Obrigado, do

fundo do meu coração, por terem me deixado participar de suas vidas e poder contar

suas histórias. Espero que esta tese sirva para ressaltar ainda mais o papel de vocês

como verdadeiros heróis dentro da selva central peruana. Em especial, gostaria de

agradecer ao Abiel, Edinson, Rachel e sua mãe, Madeleine, Heber, David, os irmãos

Pérez, Aldo, Chipana, Dario, Julia e Felix Marin.

Aos técnicos da Cooperativa Huadquiña, agradeço por permitirem que os

acompanhasse no seu trabalho junto aos produtores.

Aos membros das demais organizações de cafeicultores que pude conhecer

durante minha estadia no Peru, obrigado pela atenção e confiança.

Aos irmãos Gonzáles e aos que, assim como eu, tiveram o privilégio de se

hospedar na sua casa ao longo de 2006, em especial, aos meus amigos Sven, Stephan e

Jena, agradeço pelos bons momentos em Lima e em nossas viagens pelo país. Obrigado

também ao Lucho, que esteve conosco em muitas destas ocasiões e que gentilmente me

hospedou em Madri.

Ao Beto, mi hermano en el Perú, agradeço pelas risadas, acima de tudo.

Não posso deixar de agradecer aos meus “padrinhos”, Gomes e Márcia, e aos

meus “amigos da escola” que, apesar da distância, continuaram presentes nos momentos

mais importantes. À Claudia, obrigado pelas deliciosas refeições ao longo da reta final

do doutorado.

À Mirca e ao Theo, agradeço pela acolhida e pelo divertimento.

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Aos meus pais, obrigado pelo apoio material, afetivo, existencial e tudo mais.

Ao meu irmão, com quem compartilho o privilégio de fazer parte de uma família

maravilhosa, e à Bruna, sua futura esposa, agradeço pela prazerosa convivência.

Flávia, meu amor, saiba que a escrita desta tese somente deixou saudades porque

esteve intercalada com a sua presença ao meu lado. Obrigado por fazer com que a

feitura deste trabalho fosse permeada de tantos momentos inesquecíveis. Só estes

momentos já compensaram todo o esforço aqui empregado.

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Os homens não fazem apenas

“sobreviver”: eles sobrevivem de

certa maneira. (Marshall Sahlins)

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RESUMO

A selva central é uma região peruana situada entre a cordilheira andina e a

floresta amazônica. Trata-se de uma zona de “selva alta” organizada economicamente

ao redor da produção e do comércio de produtos agrícolas, com destaque para o café.

Esta tese focaliza os cafeicultores da selva central envolvidos com o sistema de

“comércio justo” regulado pela chamada Fair Trade Labelling Organizations

International (FLO). As histórias desses sujeitos se constituem em verdadeiras sagas e

têm como direção o que estes vêem como seu “progresso” ou “desenvolvimento”

individual e coletivo. O objetivo aqui é entender estas histórias. Isso significa discutir

como ocorrem, na prática, a constituição das percepções locais da modernidade, as

transformações nos seus significados e suas relações com as percepções estrangeiras da

modernidade.

Palavras-chave: Antropologia da economia, modernidade, comércio justo, selva central

peruana.

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ABSTRACT

The Peruvian central jungle region is situated between the Andes and the

Amazon rainforest. It´s an area of "high jungle" economically organized around the

production and trade of agricultural products, especially coffee. This thesis focuses on

the central jungle growers involved with what is called the "fair trade" system governed

by the Fair Trade Labelling Organizations International (FLO). The stories of these

individuals constitute themselves into true sagas and have the direction of what they

regard as their individual and collective "progress" or "development". The goal here is

to understand these stories. This means discussing how occur, in practice, the

constitution of local perceptions of modernity, the transformation in their meanings and

their relations with foreign perceptions of modernity.

Key-words: Anthropology of economy, modernity, fair trade, Peruvian central jungle.

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Dedico este trabalho aos heróis da

La Florida e à minha avó Nina (in

memoriam), uma pessoa também

exemplar.

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SUMÁRIO

Introdução ...................................................................................................................... 1

Capítulo 1 – A pedagogia em torno da agricultura orgânica certificada................ 21

1.1 Introdução............................................................................................................ 21

1.2 A agricultura orgânica certificada ...................................................................... 25

1.3 Em campo ........................................................................................................... 29

1.4 Santa Teresa ........................................................................................................ 33

1.5 As “visitas de campo” ......................................................................................... 39

1.6 Minhas primeiras visitas ..................................................................................... 41

1.7 De volta a Sahuayaco ......................................................................................... 50

1.8 Lucmabamba ...................................................................................................... 54

1.9 A realização de um ideal em torno de um mercado global certificado .............. 64

Capítulo 2 – As sagas de um grupo de migrantes andinos na selva central............ 68

2.1 Introdução ........................................................................................................... 68

2.2 Modernos e atrasados ......................................................................................... 70

2.3 A modernidade da Cooperativa La Florida ........................................................ 77

2.4 Entre os moradores do povoado ......................................................................... 85

2.5 O êxodo andino ................................................................................................. 100

2.6 De peões a cafeicultores ................................................................................... 103

2.7 Uma comunidade de migrantes ........................................................................ 111

2.8 Comunidade como modernidade ......................................................................121

2.9 O ocaso e a “refundação” da cooperativa ......................................................... 127

2.10 Identidades e diferenças .................................................................................. 132

2.11 O sucesso da cooperativa através do comércio justo ...................................... 138

Capítulo 3 – Novos sentidos da ascensão social e do desenvolvimento coletivo.... 146

3.1 Introdução ......................................................................................................... 146

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3.2 Desenvolvimento como competitividade ......................................................... 150

3.3 Os Santos .......................................................................................................... 156

3.4 A precariedade das escolas e das condições de vida dos moradores ................ 161

3.5 Os esforços em prol da educação ..................................................................... 168

3.6 Os nativos ......................................................................................................... 174

3.7 A desigualdade entre os colonos andinos ......................................................... 180

3.8 Os “mais antigos” ............................................................................................. 183

Capítulo 4 – Para além do “raio de ação” da cooperativa...................................... 191

4.1 Introdução ......................................................................................................... 191

4.2 A chegada à selva central e o encontro com Leonel ........................................ 193

4.3 O foco de Abiel no comércio de café ............................................................... 196

4.4 A conversa com o presidente ............................................................................ 199

4.5 O trabalho de Leonel na cooperativa ................................................................ 205

4.6 A Ecologic Chanchamayo ................................................................................ 213

4.7 FENCOCAFE à JNC ........................................................................................ 228

4.8 Contatos ............................................................................................................ 237

4.9 O concurso ........................................................................................................ 240

4.10 Entre a Cooperativa La Florida e a Ecologic Chanchamayo .......................... 243

4.11 A dedicação exclusiva de Leonel à Ecologic Chanchamayo ......................... 248

4.12 A nova geração ............................................................................................... 257

Conclusões finais ........................................................................................................ 264

Bibliografia ................................................................................................................. 272

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Introdução

Vivemos num mundo em que os países são comumente classificados como

“desenvolvidos” ou “em desenvolvimento”. Mas a idéia de progresso, por detrás dessa

classificação, também permeia diversas outras experiências dos habitantes desses

países. Por exemplo, é normal que dêem sentido às suas ações através de narrativas que

envolvam noções como “melhoria das condições de vida”, “redução da pobreza” e

“modernização”. Tais concepções têm em comum o fato de representarem expectativas

ou esperanças de um futuro melhor, mesmo que os significados desse porvir e dos

meios para atingi-lo sejam os mais distintos possíveis. Elas são parte do que pode ser

chamado de campo semântico da modernidade.1

Esta pesquisa focaliza um conjunto de cafeicultores peruanos integrados ao

sistema de “comércio justo” regulado pela Fair Trade Labelling Organizations

International (FLO).2 Trata-se de tomar essa integração enquanto uma conjuntura

significativa para se pensar as sagas que dão sentido à vida destes agricultores. Isso

porque estas histórias dizem respeito ao que eles vêem como seu “desenvolvimento” ou

“progresso” individual e coletivo. O recurso a estas narrativas implica em olhar para o

comércio justo através de outros referenciais que não apenas o que seus organizadores e

estudiosos definem como a “melhoria das condições de vida” dos produtores.

1 James Ferguson (2005), por exemplo, afirma que a modernidade é capaz de ser percebida como uma “categoria nativa” compartilhada por uma vasta e heterogênea população. 2 De acordo com a FLO: “Fairtrade is an alternative approach to conventional trade and is based on a partnership between producers and consumers. Fairtrade offers producers a better deal and improved terms of trade. This allows them the opportunity to improve their lives and plan for their future. Fairtrade offers consumers a powerful way to reduce poverty through their every day shopping. When a product carries the Fairtrade Mark it means the producers and traders have met Fairtrade standards. The standards designed to address the imbalance of power in trading relationships, unstable markets and the injustices of conventional trade.” (www.fairtrade.net/about_fairtrade.html)

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As quedas acentuadas e prolongadas no preço internacional do café marcaram a

sua comercialização ao longo das últimas duas décadas. Após o final do Acordo

Internacional do Café, em 1989, não houve nenhum arranjo político global em torno da

construção de condições mais favoráveis para os cafeicultores.3 Vale ressaltar que estes

indivíduos vivem em países tropicais geralmente incapazes de lhes proporcionar

quaisquer garantias mais substanciais para se manterem sem depender de uma dinâmica

mercantil. Não é sem razão que cada vez mais agricultores vêm participando dos novos

mercados de café difundidos justamente durante os últimos vinte anos e que

aparentemente têm lhes garantindo um maior retorno econômico.

O Peru é um dos principais países exportadores de café através do sistema de

comércio justo regulado pela FLO. Essa destacada participação dos cafeicultores

peruanos naquilo que, do ponto de vista de muitos habitantes dos países desenvolvidos,

há de mais moderno em termos comerciais, se constituí num caso privilegiado para se

observar, no âmbito das regiões cafeicultoras peruanas, as experiências em relação às

concepções estrangeiras de modernidade. Tais regiões se espalham através do que é

conhecido no país como sendo a “selva alta”; um amplo espaço geográfico situado

basicamente entre a cordilheira andina e a floresta amazônica.4

A pesquisa de campo que fundamentou esta tese de doutorado teve como

objetivo inicial entender o comércio justo (regulado pela FLO) da perspectiva dos

3 Os Acordos Internacionais do Café, em vigor entre 1962 e 1989, formaram uma série de convênios firmados, sob os auspícios das Nações Unidas (ONU), entre os ditos países produtores e os países consumidores do grão e que resultaram na regulação do mercado global do produto “em prol da oferta”, ao estabelecerem “cotas de exportação” para as nações produtoras. A vigência destes acordos se deu notadamente através de uma convergência entre os interesses dos EUA, maior país consumidor de café, e os interesses do Brasil, principal produtor do grão. (Lafer, 1979) Segundo Topik & Samper (2006), a participação dos Estados Unidos nesses convênios deve ser entendida como uma estratégia política tomada a partir do contexto que se seguiu à revolução cubana de 1959. Isso porque a manutenção de preços relativamente altos para o café supostamente ajudaria a conter o “clima revolucionário” que passou a permear as nações produtoras. Para estes autores, não foi por acaso que a saída dos EUA destes acordos se deu logo após a derrubada do muro de Berlim, isto é, com o final da chamada Guerra Fria. 4 No norte do país existe uma pequena porção de selva alta entre a cordilheira andina e o litoral do oceano pacífico. Trata-se também de uma zona economicamente organizada ao redor da cafeicultura.

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cafeicultores peruanos integrados a esse sistema comercial. Após uma breve

permanência numa região cafeicultora localizada no sul do país, acabei me dirigindo

para a chamada selva central. Foi então neste último cenário que conduzi a maior parte

do meu trabalho de campo. Minha inserção entre os produtores de café da selva central

acabou me colocando em contato com diversos significados a respeito de fenômenos

que, sob determinados pontos de vista, eram associados ao campo semântico da

modernidade.

Um exemplo evidente desses fenômenos é o comércio justo, pelo menos da

perspectiva dos seus organizadores e estudiosos. Mas como dito acima, as incursões dos

agricultores da selva central nesse sistema comercial faziam parte de verdadeiras sagas

que marcavam suas vidas e eram igualmente pensadas com base em noções que

envolviam a expectativa ou esperança de um futuro melhor. Com o passar do tempo,

meu interesse inicial em observar a presença do comércio justo entre eles se desdobrou

numa preocupação em entender as suas histórias. Esta preocupação se transformou na

principal questão desta tese e dela derivam outras três questões que também permeiam o

presente trabalho: (1) a constituição das percepções da modernidade entre os

cafeicultores; (2) as transformações nos significados dessas percepções e (3) as relações

entre percepções locais e estrangeiras da modernidade.

Apesar dos quatro capítulos abordarem estes assuntos, cada um deles reflete

sobre um em especial. O primeiro focaliza as relações entre percepções locais e

estrangeiras da modernidade e, ao contrário dos demais capítulos, não retrata os

produtores de café da selva central, mas de outra região cafeicultora. De qualquer modo,

os problemas que levanta igualmente aparecem entre os agricultores deste primeiro

espaço e também de outros lugares. Já o capítulo seguinte, de caráter mais histórico,

aborda a constituição das percepções da modernidade entre um conjunto de

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cafeicultores da selva central. Os dois últimos capítulos continuam tendo como

referência estes sujeitos, só que com o foco nas transformações dos significados das

suas percepções da modernidade.

O primeiro capítulo se apóia na minha experiência entre os membros de uma

cooperativa de cafeicultores situada no sul do país. Ele procura entender a adoção de

uma prática bastante comum entre os produtores de café que participam do comércio

justo: a agricultura orgânica certificada. Trata-se de uma análise focada nos funcionários

da cooperativa e nas suas ações que visam ensinar aos agricultores as regras que

caracterizam os “certificados orgânicos” que acompanham ou acompanharão seus cafés.

Tais ações são vistas ao longo do capítulo como um elemento central por detrás da

crença dos produtores na agricultura orgânica certificada enquanto um meio legítimo

para atingirem melhores condições de vida.

O segundo capítulo retrata as sagas de um grupo de migrantes andinos no

interior da selva central. Tais “colonos” fazem parte da cooperativa peruana que mais

exporta café dentro e fora do comércio justo. Através da reconstituição das histórias

destes sujeitos, procuro mostrar como a transformação deles em cafeicultores envolveu

a constituição de duas grandes narrativas capazes de dar sentido às suas ações ao longo

do tempo. Uma destas narrativas pode ser identificada com o “desenvolvimento” da

cooperativa e a outra com o “progresso” ou “ascensão social” dos produtores e seus

descendentes. Trata-se de dois referenciais temporais interdependentes que envolvem o

que é capaz de ser visto como as sagas que marcam a vida dessas pessoas.

Já o terceiro capítulo focaliza o presente vivido pelos agricultores evocados no

capítulo anterior. O objetivo é entender as mudanças nos significados que acompanham

as duas grandes narrativas que dão sentido às suas ações ao longo do tempo. Isso

implica em levantar as características dos agentes que vêm conduzindo as alterações nas

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suas noções de “desenvolvimento” coletivo e de “progresso” individual e familiar. O

foco é, primeiramente, no gerente da cooperativa e em seu nacional e

internacionalmente reconhecido projeto de torná-la “competitiva”. Em seguida, procuro

mostrar como os produtores que vivem no território onde atua essa organização

percebem suas diferenças. A partir dessa descrição, é possível entender o

reconhecimento local dos agricultores que enfatizaram no passado o que chamam do

“investimento” na educação dos filhos e que hoje em dia se tornou um valor dominante

entre os cafeicultores.

O quarto capítulo focaliza a trajetória profissional do filho de um dos

agricultores associados à cooperativa destacada nos dois capítulos anteriores. Pude

acompanhar de perto um período crucial da vida desse sujeito e que girou em torno da

sua transformação de funcionário desta organização em um comerciante “privado” de

café. O interesse em retratar essa etapa de sua vida reside, de um lado, no fato dele ter

feito com que o comércio privado de café, então basicamente visto como contrário às

noções que os produtores associavam ao campo semântico da modernidade, passasse a

ser identificado com base nessas noções.

Por outro lado, ele é um exemplo, entre outros ao seu redor, de alguém que pode

ser identificado como parte de uma nova geração de pessoas ligadas à cooperativa de

seus pais e que, para além do território onde os sócios dela vivem, vêm se apoiando nas

conquistas dessa organização de cafeicultores para com base nelas promover a melhoria

das condições de vida de outros produtores de café. Tal movimento pressupõe uma

“objetivação” e uma “incorporação” destas conquistas enquanto os principais meios

através dos quais estes descendentes dos agricultores exercem o que vêem como uma

“missão” e uma “vocação” em prol das pessoas dedicadas à cafeicultura.

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Nas conclusões retomo a questão mais geral da tese e as três questões dela

derivadas que igualmente permeiam os quatro capítulos. Nela procuro ressaltar as duas

grandes narrativas que dão sentido às ações dos cafeicultores da selva central e de seus

descendentes focalizados ao longo do texto. Além disso, enfatizo novamente que não só

os significados dessas histórias vão sendo alterados, na medida em que são repensados

no decorrer das circunstâncias contingentes vividas por estas pessoas, como também se

relacionam com as percepções da modernidade oriundas de outros lugares, como é o

caso do comércio justo. Igualmente discuto com as visões dos organizadores e

estudiosos desse sistema comercial e que tendem a encará-lo com base em narrativas

nas quais se pressupõem que as ações dos produtores derivam basicamente das suas

situações “materiais” ou econômicas.

Por fim, procuro discutir o fato de que as histórias dos indivíduos focalizados

nesta tese podem ser percebidas como verdadeiras sagas. Isso porque a “mitologia” ou

“cosmologia” da modernidade existente entre eles acaba positivando as dificuldades

com as quais se defrontam, na medida em que os modos como determinados agentes as

superaram fazem deles verdadeiros modelos a serem seguidos. Trata-se de uma

historicidade calcada numa visão dos “sujeitos exemplares” enquanto os principais

responsáveis pelas mudanças nos significados das narrativas que dão sentido às ações

das pessoas ao longo do tempo.

A seguir apresento o caminho que me levou em direção aos indivíduos e ao tema

sobre os quais se debruçou a pesquisa de campo que fundamenta esta tese.

* * *

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Em julho de 2000, me dirigi ao Peru com o propósito de participar de um

encontro latino-americano de estudantes de antropologia e arqueologia na cidade de

Lima. Mas o ponto alto da viagem se deu após o término desse evento. Foi quando

segui até Cuzco, antiga capital do Império Inca e parada quase que obrigatória para

quem visita o país, onde me juntei a um grupo de turistas que empreenderia nos

próximos quatro dias uma fascinante caminhada até as ruínas de Machu Picchu. Nesse

trajeto, é possível contemplar não apenas impressionantes monumentos arqueológicos,

como também a incrível paisagem de transição entre os Andes e a Amazônia; um

espaço de selva alta no qual se localiza o destino turístico por excelência do Peru. Logo

depois estaria visitando o entorno menos conhecido de Cuzco e compartilhando, mesmo

que por breves momentos, o cotidiano de seus habitantes descendentes de povos pré-

hispânicos.5 O contato com o interior peruano e sua gente marcou-me profundamente

desde então. Cinco anos se passariam até meu regresso ao Peru. A justificativa principal

dessa segunda viagem também tinha a ver com questões acadêmicas, na medida em que

havia escolhido esse país como cenário do trabalho de campo que deveria fundamentar

minha tese de doutorado.

Finalizada a dissertação de mestrado (Cruz, 2005), passei a navegar pelas

páginas eletrônicas da internet em busca de algo que inspirasse um novo objeto de

pesquisa e que, de algum modo, me levasse para longe do universo estudado

anteriormente. É verdade que, do mestrado a respeito de um mercado financeiro,

pretendia manter o foco nos mercados.6 Mas isso estava aliado ao desejo de se afastar

5 Vale ressaltar que também explorei o dia e a noite de Cuzco como qualquer turista que visita essa cidade. Foi em Cuzco que notei, pela primeira vez e de modo bastante claro, a superestima que os peruanos depositam naqueles que vêm de fora, algo incomparável com o que tinha experimentado em outros países. 6 O interesse principal da minha dissertação de mestrado se concentrou no entendimento de um mercado

organizado com base no ideal da auto-regulação e no qual eram comercializados contratos de compra e venda futura de gado pronto para o abate.

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do mundo das finanças e de seus personagens, cujo modo de vida acabou não

despertando suficientemente minha curiosidade, a ponto de continuar investigando-o

por mais tempo. Dada a conjuntura acadêmica que vivenciei naquele momento, era

tanto possível quanto valorizado conduzir um trabalho de campo fora do país. Foi então,

nesse contexto, que me deparei com o anúncio, numa página da internet, de uma marca

inglesa de café chamada Cafedirect Organic Machu Picchu Fresh Ground.

Na embalagem desse produto é assim destacada uma belíssima foto das ruínas

com as montanhas ao seu redor. Para quem, depois de dias caminhando, pôde observar

o nascer do sol do alto de uma dessas montanhas, a imagem de Machu Picchu talvez

fique para sempre gravada na memória. Essa lembrança, trazida à tona pela fotografia,

me levou, em certo sentido, de volta às paisagens e pessoas que conheci no Peru.

Imediatamente me imaginei conduzindo um trabalho de campo entre os produtores do

café em questão, mesmo sem saber ao certo quem eram eles. Havia chegado até esse

produto através de uma pesquisa na internet sobre os bens identificados com

certificados de comércio justo. Um selo em cima da foto na embalagem atestava a

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9

participação dos referidos cafeicultores no sistema regulado pela FLO. A justificativa

que encontrei para o retorno ao país seria justamente entender a presença desse sistema

de comércio justo entre esses agricultores. Mal sabia que meu trabalho de campo iria

também envolver outras regiões cafeicultoras peruanas.

Acontece que durante minha breve estadia de duas semanas entre um grupo de

cafeicultores situados no entorno de Machu Picchu, decidi visitar o que estes

consideravam como sendo a mais conhecida zona produtora de café do país:

Chanchamayo. Apesar de participarem com bastante afinco do comércio justo, não

encontrei entre estes agricultores do sul do Peru uma recepção suficientemente calorosa

que me deixasse confortável para visitá-los novamente no ano seguinte, tendo em vista

uma permanência mais prolongada. Havia estado entre eles desde o começo de julho de

2005; em meados desse mês parti então para outro local onde também deveria encontrar

um ambiente propício para se observar a presença desse sistema comercial, de acordo

com o que estes sujeitos me informaram.

As duas semanas que permaneci em Chanchamayo, uma das três províncias que

formam a selva central, acabaram me permitindo estabelecer um contato bastante

consistente com um de seus habitantes e a partir do qual pude acessar, ao longo de sete

intermitentes meses do ano seguinte, uma rede de relações sociais que abarcava as mais

distintas regiões cafeicultoras do país. Isso porque este sujeito era funcionário da

cooperativa peruana que mais exportava café dentro e fora do comércio justo. Tal

posição de destaque dessa cooperativa fazia com que muitos de seus membros, como

era o caso desse indivíduo, intermediassem a participação de outras entidades similares

nesse sistema comercial então em voga entre as organizações de produtores de café do

país. Contudo, essa intermediação se realizava com maior vigor dentro da selva central

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e foi justamente nessa região que permaneci mais tempo conduzindo meu trabalho de

campo.

Para além da “observação participante”, também me apoiei numa série de

publicações e documentos produzidos por distintas organizações peruanas de

cafeicultores.7 A isso se deve somar o recurso a uma bibliografia sobre o Peru e, mais

especificamente, a respeito da selva central. Como deve ficar claro ao longo das

próximas páginas, não se trata de uma tese produzida por um especialista nesse país ou

nessa região. O uso de qualquer material escrito esteve basicamente subordinado a uma

melhor compreensão das histórias das pessoas da selva central envolvidas com o

comércio justo.

* * *

É possível afirmar que a produção e o comércio de produtos agrícolas, como é o

caso do café, em especial, se constituem nos eixos em torno dos quais gira a vida

econômica da selva central. (Santos & Barclay, 1995) Nesse sentido, os mercados se

colocam como os principais meios através dos quais os seus habitantes dispõem, não só

para adquirir seu sustento, como para atingirem melhores condições de vida.8

A colonização maciça da selva central, um espaço ocupado primeiramente por

indígenas amazônicos de língua aruaque, se deu a partir da segunda metade do século

passado e, em grande medida, por pessoas das mais diferentes localidades andinas do

7 Entre as publicações utilizadas nesta pesquisa se destacam as revistas Café Peru e El Cafetalero. A primeira se trata de um “órgão informativo” da antiga Central de Organizações Cafeicultoras “Café Peru” e cuja circulação se deu entre os anos de 1977 e 1988. Já a segunda revista é uma publicação da Junta Nacional do Café e vem sendo produzida desde meados de 1997. 8 “Si algo caracteriza a los productores agrarios de la selva central es la marcada lógica mercantil de su producción y su fuerte dependencia respecto del mercado para la venta de sus productos y la adquisición de medios de subsistencia. No se trata ya de productores campesinos, sino de pequeños y medianos parceleros y agricultores que, como se ha visto, dedican la mayor parte de su trabajo y de sus tierras a una producción mercantil. Por ello la reproducción de estas unidades domésticas depende enteramente de su relación con el mercado.” (Santos & Barclay 1995 p. 333 – 334)

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país.9 Muitos vieram trabalhar na colheita de café e se estabeleceram definitivamente na

região enquanto produtores do grão. Encontraram assim um ambiente agrícola

organizado ao redor de um produto geralmente mais valorizado economicamente do que

os que eram cultivados nos Andes. Mas estes agricultores igualmente se depararam com

o que viam como uma situação caracterizada pela presença incipiente e precária de

serviços públicos (hospitais e escolas, por exemplo) e de infra-estrutura (estradas, em

especial).

Dado o foco inicial da minha pesquisa de campo nas pessoas ligadas ao

comércio justo regulado pela FLO, era de se esperar que me aproximasse das

organizações de cafeicultores que dele participassem. Em certa medida por ter

planejado, e em parte por acaso, acabei me envolvendo mais de perto com as

organizações de produtores de café, de diversas partes do país, mas principalmente da

selva central, que se destacavam nesse tipo de comércio. Isso acabou fazendo com que

também entrasse em contato com outras entidades com as quais elas se relacionavam.

Desse modo, me deparei com relações baseadas na importância concedida nas regiões

cafeicultoras ao comércio justo, pois muitos agricultores encontravam nesse sistema

uma meio crucial para colocarem em prática suas concepções de progresso e

desenvolvimento.

O foco da pesquisa nas pessoas ligadas, de alguma maneira, com as

organizações de produtores de café envolvidas no comércio justo teve como referência

uma realidade cafeicultora bastante específica. Em 2005, por exemplo, somente 28%

dos cafeicultores do país estavam associados a alguma destas organizações. (Castillo, 9 Até a reforma agrária de 1969, a produção agrícola mercantil na selva central era dominada pelo latifúndio e o qual estava sob controle das elites do país e também de estrangeiros. Desde então, o minifúndio predomina nessa região e tem nos migrantes andinos e seus descendentes os seus principais proprietários. (Barclay & Santos, 1991) Os indígenas amazônicos, hoje minoria na selva central, sempre estiveram à margem dos processos econômicos mais amplos que perpassaram esse cenário e que foram dominados, primeiro, pelo cultivo da cana-de-açúcar, a partir de meados do século XIX, e depois pela produção de café desde o final desse século.

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12

2006) Das quase trezentas destas entidades então existentes, apenas 23 exportavam seus

cafés e todas estas o faziam principalmente através do comércio justo regulado pela

FLO. Assim, é importante ter em mente que minha pesquisa focalizou uma pequena

porção do universo cafeicultor peruano. No entanto, esta pequena porção se destacava

justamente através de seu contato com um sistema comercial que passou a ser bastante

valorizado em grande parte desse universo.

Existem ao redor de 150.000 famílias que se dedicam à produção de café no

Peru. (JNC, 2005) Por volta de 90% dessas famílias têm entre meio a cinco hectares de

terra e a esmagadora maioria delas é formada por migrantes andinos e seus

descendentes. (idem) Tais características dessas famílias se refletem na própria

configuração das organizações de produtores de café. Em outras palavras, estamos

diante de entidades, criadas desde meados da década de 1960, que dão continuidade ao

processo de colonização andina das regiões cafeicultoras peruanas. A integração destas

entidades no comércio justo regulado pela FLO se coloca como uma etapa mais recente

desse processo.

* * *

A FLO é a entidade que atualmente se responsabiliza pela regulação do principal

canal global de comercialização do café e de outros produtos através de um certificado

ou selo de comércio justo. A primeira experiência de comercialização de um produto

qualquer com base num selo de comércio justo foi feita em 1988. Nesse ano, uma

organização não-governamental holandesa passou a garantir que um certificado,

presente nos cafés cultivados por um grupo de agricultores mexicanos, realmente

indicava que estes produtores tinham recebido um “preço justo” com a venda desses

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grãos. Esta organização não-governamental holandesa e outras quinze experiências

nacionais semelhantes, criadas na América do Norte e Europa depois dela, iriam fundar

a FLO em 1997.10 O início dessas práticas de certificação, em torno do comércio justo,

pode ser entendido enquanto um movimento de ampliação da oferta de determinados

produtos para espaços tais como as grandes redes de supermercados, o que por sua vez

se relaciona com a expansão do chamado consumo ético na Europa e nos Estados

Unidos.11

Desde pelo menos a década de 1960, ou talvez antes, existem no continente

europeu e nos EUA produtos que são vendidos, em feiras e bazares “solidários”, como

provenientes de “organizações de pequenos produtores do terceiros mundo”. (Raynolds,

Murray & Wilkinson, 2007 p.7) Seus consumidores estariam supostamente dispostos a

pagar um preço considerado “justo” por estes produtos. Estamos assim diante de novos

hábitos que são colocados e vistos, principalmente nos países do chamado primeiro

mundo, como o que há de mais “moderno” em matéria de consumo.

10 Desde a criação da FLO até 2008, o preço mínimo de exportação de um café “arábico lavado convencional” no comércio justo foi de US$ 121,00 a saca (de 46 kg). Um café lavado, comumente encontrado no Peru, é aquele que passou por um beneficiamento através de água e não de tipo seco, como costuma acontecer no Brasil, por exemplo. Beneficiamento é, basicamente, o processo de separação do grão de café da polpa que o envolve. Por sua vez, a variedade arábica é aquela predominante no Peru (onde praticamente não se encontra café robusta, a outra variedade própria para o consumo humano). Dentro do comércio justo regulado pela FLO, os cafés de tipo lavado e da variedade arábica, certificados como orgânicos, recebiam por saca, até junho de 2007, um acréscimo (ao preço mínimo) de US$ 15,00 que, a partir dessa data, subiu para US$ 20,00. Também foi aumentado, nessa ocasião, o “prêmio social” por cada saca de café vendida, independentemente da variedade e beneficiamento do café. Esse bônus, que era de US$ 5 e foi para US$ 10, deve ser usado pelas próprias organizações de produtores na construção de escolas e postos médicos para a coletividade, ou na melhora da infra-estrutura da organização, por exemplo, melhorias estas feitas supostamente a critério das decisões comuns dos sócios em assembléia, tal como estabelecem as regras da FLO. 11

Em 2007, as chamadas “redes de produtores” passaram a ser também, ao lado das ditas “iniciativas certificadoras nacionais” (situadas nos países do primeiro mundo e responsáveis pela promoção do comércio justo nestes países), os controladores da FLO. Uma rede de produtores da América Latina e do Caribe, uma da África e outra da Ásia compõem atualmente, junto de 20 iniciativas certificadoras nacionais, a direção executiva da FLO, a qual se reúne através de assembléias anuais. É difícil encontrar processos de transformação social de dimensões internacionais que sejam conduzidos por produtores de café. A participação destes na direção da FLO (através das redes de produtores) é um caso raro no qual podem influir na regulação das transações de café numa escala que vai além dos limites nacionais. Vale ressaltar que foram eles que pressionaram pelo aumento nos preços pagos aos cafeicultores dentro do comércio justo.

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Atualmente a FLO concede seu selo de comércio justo para “organizações de

pequenos produtores” e/ou “órgãos conjuntos de trabalhadores” ligados aos seguintes

produtos: banana, cacau, café, algodão, flores, frutas frescas, mel, sucos, nozes, arroz,

pimentas/ervas, bolas esportivas, açúcar, chá, vinho e “produtos alimentícios

compostos” (de diferentes tipos desses bens certificados pela FLO). No caso do café, o

comércio justo regulado pela FLO se constitui num nicho do mercado internacional no

qual os cafeicultores só podem participar se estiverem filiados a alguma cooperativa ou

associação e em tese não utilizarem mão-de-obra permanentemente contratada em suas

plantações (o que, de acordo com a FLO, faz deles “pequenos produtores”). Uma vez

certificada, por um “inspetor”, as “organizações de pequenos produtores de café”

podem então vender seus grãos para “compradores” igualmente certificados e que as

remunerem de acordo com as normas estipuladas pela FLO. Essa remuneração se baseia

tanto num “preço mínimo”, acima dos custos médios globais de produção do café, que

proporciona aos seus produtores certa margem de lucro (de 10 a 20 por cento), quanto

num “prêmio social” a ser investido em suas organizações (e não repartido entre eles).

Os compradores de tais cafés são as entidades responsáveis pela torrefação dos mesmos,

para daí, embalados, receberem o selo do comércio justo da FLO.12 O consumo de café

certificado pela FLO encontra assim no selo impresso na embalagem do produto um

sinal de distinção.

As organizações de pequenos produtores, os órgãos conjuntos de trabalhadores e

os compradores, uma vez certificados pela FLO, são então anualmente revisitados por

seus inspetores, os quais verificam se estão correspondendo com os critérios do

12 As torrefadoras que trabalham exclusivamente com cafés certificados pela FLO são bem críticas com relação às outras, geralmente de grande porte, como é o caso da Nestlé, por exemplo, cujas vendas de café desse tipo representam uma pequena porcentagem das suas vendas totais do grão. Algo em torno de um por cento dos cafés vendidos globalmente são certificados pela FLO, sendo que respondem por aproximadamente um quarto dos valores gerados com a venda dos produtos certificados por esta entidade, fazendo desse grão o principal item negociado com base num selo de comércio justo.

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comércio justo. Todas estas inspeções são pagas pelos que recebem os certificados. As

inspeções nos compradores procuram saber se estão pagando às organizações de

pequenos produtores ou aos órgãos conjuntos de trabalhadores os preços mínimos e

prêmios sociais e, além disso, se estão cumprindo seus contratos com estas entidades. Já

as inspeções nas organizações de pequenos produtores ou nos órgãos conjuntos de

trabalhadores verificam se estão remunerando corretamente os seus associados e

investindo de maneira apropriada o prêmio social. Além disso, os inspetores que visitam

qualquer uma dessas duas entidades demandam um entendimento, por parte de seus

membros, dos chamados “critérios genéricos” do comércio justo certificado pela FLO.13

O “braço” da FLO responsável pelas certificações é uma empresa que se sustenta

através dos pagamentos aos seus inspetores. O restante da FLO funciona graças à

“cooperação” internacional (holandesa, irlandesa e, em menor medida, alemã) e tem

como propósito estabelecer padrões internacionais de comércio justo, desenvolver e

promover esse mercado.

As agências responsáveis pelas certificações, com base em princípios da

agricultura orgânica, são entidades que adotam critérios públicos ou privados. São os

certificados outorgados por estas agências que devem embasar os cafés orgânicos que

circulam no comércio justo regulado pela FLO. Na verdade, o comercio justo

certificado está intimamente conectado com a agricultura orgânica certificada. Isso

porque grande parte dos produtos que circulam identificados com um selo da FLO é

classificada como orgânica pelas agências certificadoras.14 Por exemplo, o logotipo

13 Estes critérios genéricos giram em torno dos seguintes temas: desenvolvimento social, desenvolvimento sócio-econômico, desenvolvimento ambiental e condições laborais. 14 Daniel Jaffee (2007) afirma que por volta de 60% dos cafés vendidos nos EUA através do comércio justo são certificados como orgânicos. Em se tratando das exportações de café do Peru, no ano de 2004, por exemplo: “El café orgánico conforma la fracción mas importante (71%) de los cafés especiales, seguido por cafés de comercio justo (14%), sostenibles (11%), y gourmet (4%). En el año de 2004 se exportaron 560.000 quintales al mercado de cafés especiales, lo que representa un 13,48% de la producción total de 4 millones 153 mil qq.” (Schwarz, 2005 p. 33)

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presente no canto esquerdo inferior da imagem de uma embalagem de café reproduzida

anteriormente representa uma certificação orgânica.

Mas meu interesse inicial pelo comércio justo esteve relacionado com o fato de

que queria investigar um mercado organizado com base num ideal de solidariedade. Já

no começo da minha pesquisa no Peru, pude entrar em contato com pessoas que

trabalhavam na intermediação das relações dos cafeicultores com as demandas das

empresas torrefadoras de café autorizadas pela FLO para vender o grão identificado

com o selo dessa entidade. Entre essas demandas se destacava justamente a necessidade

dos cafés serem certificados como orgânicos.15

Os Estados Unidos e os países europeus são os principais compradores de café

do Peru. (JNC, 2005) Para se vender um produto identificado como orgânico nos EUA é

preciso que o mesmo seja certificado com o selo USDA/NOP (United States

Department of Agricultural/National Organic Program) ou que acompanhe uma

certificação “privada” credenciada pelo ministério da agricultura desse país. A União

Européia também tem um selo que deve acompanhar os produtos demarcados como

orgânicos que circulam entre seus membros, caso estes bens não sejam etiquetados com

um certificado privado validado pelo órgão europeu que regula a agricultura orgânica.

Todos estes selos são outorgados por agências que atuam em diversos países.16 Na

verdade, diversos certificados se encontram difundidos entre as organizações peruanas

de produtores de café. Tais entidades que comercializam cafés certificados costumam

15 Outro fator importante é a qualidade dos grãos. Isso porque o comércio justo certificado pela FLO é um sistema que prima pela qualidade dos produtos que comercializa, mas que de modo algum faz dele um mercado de cafés “finos” ou “gourmet”, como geralmente são chamados os grãos diferenciados pela “qualidade da taça” que produzem. O principal critério internacional de classificação de um café com base na sua degustação é o da Associação Norte-Americana de Cafés Especiais. 16 Tais agências também oferecem os certificados “sustentáveis”. Trata-se de selos baseados em normas que mesclam critérios sociais e ambientais, mas que são consideradas menos exigentes do que aquelas presentes nos certificados orgânicos e de comércio justo, por exemplo. Vale também ressaltar que, fora do comércio justo, os cafés certificados como orgânicos são pagos com base nos preços correntes do grão no seu mercado internacional, acrescido de um valor determinado, chamado plus (acréscimo, em inglês), variável de acordo com a oferta e a procura por esse tipo de café.

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17

possuir um “sistema de controle interno” que procura adequar os agricultores e seus

cultivos às normas dos selos que devem acompanhar seus grãos. Isso lhes permite estar

preparados para as visitas dos representantes das agências certificadoras.

* * *

A literatura sobre o comércio justo é bastante recente. Grande parte dela gira em

torno dos chamados estudos sobre o “impacto” desse sistema comercial entre os

produtores.17 Estes textos se baseiam em visões essencialmente normativas; não é à toa

que são produzidos por pessoas, em sua maioria, vinculadas a organizações não-

governamentais. Tais investigações procuram verificar se o comércio justo “contribui”

para a “melhoria das condições de vida” e a “redução da pobreza” entre os agricultores.

Já as obras sociológicas e antropológicas a respeito desse mercado se concentram nas

condições sociais, econômicas, políticas e culturais por detrás da sua realização. De

qualquer maneira, nelas não há uma preocupação mais consistente em compreender a

participação dos produtores no comércio justo com base nas narrativas que eles se

utilizam para dar sentido às suas ações ao longo do tempo.

O livro Fair Trade – The challenges of transforming globalization trata-se de

um trabalho organizado pelos sociólogos Laura T. Raynolds, Douglas Murray e John

Wilkinson (2007) e que reúne outros 13 pesquisadores. Seu objetivo é oferecer uma

visão da dinâmica global mais recente do comércio justo enquanto um “mercado” e um

17 Como exemplos desses estudo podem ser citados: The Impact of Fair Trade on producers and their organizations: A case study with Coocafé in Costa Rica, de Loraine Ronchi (2002); Confronting the Coffee Crisis: Can Fair Trade, Organic, and Specialty Coffees Reduce Small-Scale Farmer Vulnerability in Northern Nicaragua?, de Chritopher Bacon (2005); Etude d´impact du commerce equitable sur les organizations et familles paysannes et leurs territories dans la filiere café des Yungas de Bolive, de Nicolas Eberhart (2006); The effects of Fair Trade on marginalized producers: an impact analysis on Kenyan farmers, de Leonardo Becchetti e Marco Constantino (2006) e Assessing the Potential of Fair Trade for Poverty Reduction and Conflict Prevention: A Case Study of Bolivian Coffee Producers, de Sandra Imhof e Andrew Lee (2007).

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“movimento” em contínua interação. Apesar de contemplar diversos “estudos de caso”

envolvendo os ativistas, compradores e produtores, esta obra procura destacar a

emergência de um período em que a expansão desse mercado estaria sendo controlada

com mais intensidade pelo seu movimento. Esta expansão se realizou, em grande

medida, através das empresas multinacionais que passaram a vender seus produtos com

o certificado outorgado pela FLO. Contudo, mediante uma maior ênfase no seu

controle, o comércio justo despontaria mais do que nunca como um meio para uma

“nova globalização” da economia, isto é, que não esteja subordinada às empresas

multinacionais.

Um olhar bastante parecido com este permeia o livro Brewing Justice – Fair

trade coffee, sustainability, and survival, de Daniel Jaffee (2007). Isso porque seu autor

também vê o comércio justo como um meio para transformar o comércio internacional e

igualmente acredita que uma transformação dessa magnitude é o principal caminho para

se alcançar um futuro melhor para os produtores. Jaffee morou durante dois anos numa

região cafeicultura mexicana e através dessa sua experiência, realizada no que chamou

de um contexto de “crise nos preços do café”, chegou à conclusão de que os agricultores

que estavam vinculados ao comércio justo se encontravam numa melhor situação do que

os demais diante dessa crise. Para este sociólogo, os benefícios ainda restritos desse

sistema comercial só podem ser maximizados se os seus participantes se congregarem

com o que ele denomina de “movimentos de justiça global”.

Farmers of the Golden Bean: Costa Rican Households, Global Coffee, and Fair

Trade é um livro escrito pela antropóloga Deborah Sick (2008) a partir do seu trabalho

de campo entre um conjunto de cafeicultores costa-riquenhos. Ela adota uma concepção

genérica de racionalidade, centrada na noção de estratégia, para dar sentido às ações dos

agricultores ao longo do tempo. Seu argumento mais geral é de que a diversificação dos

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ingressos econômicos foi a saída encontrada pelos produtores para a “crise nos preços

do café” que os assola desde o final da década de 80. O comércio justo é entendido

como uma opção a mais para as “estratégias familiares de sobrevivência e mobilidade”

e que, como as outras opções, seria avaliada em termos dos “custos percebidos, dos seus

riscos e benefícios”.

Em Fair trade and a global commodity – Coffee in Costa Rica, o antropólogo

Peter Luetchford (2008) focaliza o universo simbólico que serve de referência para um

grupo de cafeicultores envolvidos com o comércio justo. Isso porque ele enxerga na

“cultura ocidental” e suas raízes cristãs às razões por detrás da persistência de uma

determinada economia moral no mundo moderno. Essa cultura valorizaria a relação do

produtor com seu produto e veria com olhos negativos qualquer intermediação

mercantil. Haveria então uma ambivalência imanente à participação dos agricultores no

comércio justo, na medida em que dependeriam sempre de uma estrutura burocrática

responsável pela comercialização.

Nestes quatro livros sobre o comércio justo, assim como em outros trabalhos a

respeito das transações de café (Clarence-Smith & Topik, 2003), a noção de “cadeia

mercantil” é utilizada nas análises que fazem dos intercâmbios desse produto. Segundo

estas investigações, a organização de uma cadeia mercantil reproduziria as hierarquias

decorrentes da distribuição desigual de poder entre seus participantes. Nessa

perspectiva, os cafeicultores ocupariam um lugar subalterno dentro de um mercado de

dimensões internacionais. Isso se refletiria no fato de ficarem com a menor porcentagem

do valor embutido no grão ao longo de sua produção e comercialização.

Os esforços dos participantes da “cadeia mercantil do café” para se apropriarem

de uma maior parte do valor gerado por esse produto aparecem nas pesquisas citadas

acima como uma “meta-narrativa” capaz de dar sentido às ações desses agentes ao

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longo do tempo. Desse ponto de vista, a criação de cooperativas e o ingresso no

comércio justo são como que os principais “meios” ou “instrumentos” à disposição dos

cafeicultores para exercerem essa apropriação. Contudo, ao não focalizar as meta-

narrativas que os agricultores adotam para pensar suas ações ao longo do tempo, essa

abordagem não consegue enxergar os sentidos historicamente construídos destes

“meios” ou “instrumentos” e os acabam essencializando tendo em vista um objetivo

mais geral: a apropriação de valor pelos produtores.

Estamos assim diante de uma entre tantas outras noções que se encontram

associadas ao campo semântico da modernidade.18 Já o propósito desta tese é olhar para

as narrativas que os próprios agricultores utilizam para dar sentido às suas ações ao

longo do tempo. Tal como descobri durante meu trabalho de campo entre eles, estas

narrativas se apoiavam em noções que faziam parte do campo semântico da

modernidade. Mas a particularidade do modo como as vivenciavam imprimiam no

comércio justo outros significados para além dos que seus organizadores e estudiosos

tem em mente.

18 Tendo em vista esse ideal de apropriação do valor pelos produtores, não é à toa que muitas pessoas consideram que a modernidade se realizará de maneira mais acabada ou completa somente através do controle generalizado dos produtores em cima dos valores gerados pelo produto de seu trabalho.

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Capítulo 1 – A pedagogia em torno da agricultura orgânica certificada

1.1 Introdução

A agricultura orgânica é, por definição, um modelo de cultivo que se contrapõe

ao uso de fertilizantes e pesticidas inorgânicos nas plantações. Trata-se de um ideal que

enfatiza a utilização de materiais facilmente degradáveis no meio ambiente enquanto

uma maneira de preservá-lo de qualquer transformação mais radical produzida pela

intervenção humana. Existem diversas normas, tanto públicas quanto privadas, que

servem de parâmetro para que as chamadas agências certificadoras identifiquem uma

mercadoria como oriunda de um cultivo orgânico. Cada norma é representada por um

selo que acompanha os produtos certificados por essas agências. Isso permite aos

consumidores se deparar com um sistema que controla a relação dos agricultores com os

insumos produzidos sinteticamente. Este capítulo tem como objetivo analisar o que

chamo de uma pedagogia em torno da agricultura orgânica certificada entre um grupo

de cafeicultores associados a uma cooperativa situada nas redondezas de Machu Picchu.

O foco da análise é na relação que estes produtores mantêm com os “técnicos”

que trabalham nessa cooperativa. Parte do trabalho desses técnicos envolve o controle

das práticas dos agricultores, tendo em vista as inspeções dos representantes das

agências responsáveis pela certificação das plantações como orgânicas. Contudo,

olhando de perto esse papel desempenhado pelos funcionários da cooperativa é possível

perceber que suas indicações feitas aos cafeicultores também procuram criar e reforçar

um sentimento de que a agricultura orgânica é uma alternativa viável. Neste sentido, se

focaliza aqui um processo vivenciado por muitos dos sujeitos retratados nos próximos

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capítulos, na medida em que durante meu trabalho de campo eles se encontravam

certificados como “orgânicos” ou estavam em vias de receber essa certificação.

Um fato comum entre as inúmeras organizações de produtores de café que

visitei no Peru era de que seus funcionários se constituíam, em sua esmagadora maioria,

de filhos de cafeicultores. Tais pessoas empregadas pelas cooperativas tinham

geralmente concluído o segundo grau e cursaram ou pretendiam cursar uma faculdade.

Já seus pais eram basicamente migrantes andinos que por razões notadamente

econômicas não foram muito além do ensino primário, apesar de valorizarem bastante

os indivíduos que progrediram no sistema educacional. Outro dado comum entre os

progenitores destes funcionários era de que eram “sócios” das entidades onde seus

filhos trabalhavam.

Contudo, essa descendência certamente se colocava como uma variável menos

importante do que a escolarização quando se tratava da seleção dos empregados das

cooperativas. Assim, não era raro haver cargos nestas entidades ocupados por sujeitos

sem nenhuma relação de parentesco com seus associados. De qualquer maneira, a

familiaridade com o universo cafeicultor era algo que os sócios prezavam bastante em

um funcionário que trabalhava na organização à qual eram filiados. Tal familiaridade

envolvia principalmente uma maneira respeitosa e paciente de se comportar perante os

produtores e a qual estes diziam não estar presente nas pessoas das camadas mais alta da

sociedade peruana.

Em suma, a mediação da relação dos agricultores com os novos mercados de

café era conduzida basicamente por filhos de produtores desse grão. Essa mediação não

pode ser entendida sem levar em conta o processo histórico de ascensão social entre os

migrantes andinos que afluíram em massa para a selva alta peruana a partir de meados

do século passado. Isso porque são os descendentes desses migrantes que se constituem

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basicamente nos funcionários das cooperativas de cafeicultores. Os capítulos seguintes

retratam os quadros temporais mais amplos que permeiam as sagas destes sujeitos. O

curto período de tempo que permaneci entre os agricultores retratados no presente

capítulo não permitiu que me aprofundasse nas suas histórias.

Sem sombra de dúvida que o cargo de gerente era o mais remunerado e

prestigiado em qualquer organização de cafeicultores do país. Todos os ocupantes desse

cargo que conheci tinham completado o terceiro grau e o mesmo se dava com os

“engenheiros” responsáveis pelos “programas de cafés orgânicos” das cooperativas. Os

técnicos, funcionários por excelência destes programas, muitas vezes também chamados

de engenheiros pelos agricultores, nem sempre tinham freqüentado o ensino superior.

Porém, era bastante comum encontrar um técnico que havia cursado uma faculdade e,

entre os que nem chegaram a se matricular no terceiro grau, praticamente todos que

conheci tinham em mente fazer isso o mais rápido possível, na medida em que já

haviam terminado o ensino médio.

Outros funcionários comumente encontrados nas cooperativas também tinham,

em geral, freqüentado o terceiro grau, como era o caso, por exemplo, do

“administrador” de seus bens, da secretária do gerente e das pessoas responsáveis pelo

controle da qualidade dos cafés. Por outro lado, a educação não era um diferencial em

se tratando dos sujeitos que trabalhavam com o armazenamento e o transporte dos

grãos. O presidente e demais “dirigentes” de uma cooperativa, ou seja, os

“representantes” dos seus associados, igualmente exerciam funções que podiam ser

desempenhadas por indivíduos sem um grau de escolarização mais expressivo. Nesse

sentido, o elemento fundamental para ocuparem esses cargos era o de serem bem vistos

pelos sócios; sem falar que os dirigentes se constituíam basicamente de agricultores

mais velhos do que os empregados da organização. Porém, ser um dirigente não era algo

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que despertava o interesse da maioria dos produtores, mesmo porque se tratava de uma

posição que não conferia nenhum prestígio mais expressivo e não proporcionava

nenhuma remuneração excepcional.

Além das características descritas acima, os técnicos das cooperativas eram em

geral jovens do sexo masculino, solteiros e que ambicionavam alcançar o que pode ser

chamado de uma típica vida de classe média peruana. Nesse caso, seus salários ao redor

de 1.200 soles (US$ 400) por mês não eram capazes de lhes proporcionar esse tipo de

vida; ao que se deve somar o fato de que se encontravam geralmente nesse emprego

através de “contratos temporários”. Em resumo, eles não se viam num estagio mais

avançado de um processo de ascensão social, como era o caso, por exemplo, da situação

vivida pelos gerentes das cooperativas.

Mas o foco desse capítulo no trabalho dos técnicos tem como objetivo ressaltar

seu papel em mediar as relações dos agricultores com a produção orgânica. A questão

aqui é mostrar como através de certas práticas e determinadas propriedades socialmente

reconhecidas, estes funcionários conseguiam fazer com que os produtores se

interessassem por essa forma de cultivo. Isso nos permite perceber como uma

concepção estrangeira de modernidade entra num universo cafeicultor, um processo

que, de um modo mais geral, se repetia entre a maioria dos agricultores peruanos que

conheci.

Apesar dos consumidores de café viverem praticamente do outro lado do mundo,

é possível então dizer que presença dos pontos de vista destes sujeitos sobre a

modernidade é algo que se faz presente entre os cafeicultores. Em grande medida,

como este capítulo procura mostrar, esta presença se dá através do trabalho

desempenhado pelos técnicos das cooperativas. Isso não significa dizer, obviamente,

que os agricultores não tenham suas próprias perspectivas a respeito do que

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genericamente pode ser chamado de modernidade; os próximos capítulos focalizam

justamente estas visões. Entretanto, é preciso ter em mente que outros olhares habitam o

universo desses sujeitos e são partes da sua vida cotidiana, mesmo quando esses olhares

são oriundos de indivíduos que não estão presente entre eles.

1.2 A agricultura orgânica certificada

Como dito na introdução da tese, meu trabalho de campo no Peru teve como

propósito inicial investigar a presença do comércio justo certificado pela Fair Trade

Labelling Organizations International (FLO) entre os cafeicultores desse país.

Igualmente fora assinalado que a íntima relação entre esse sistema comercial e a

agricultura orgânica se assenta no fato de que grande parte dos produtos que circulam

identificados com um selo da FLO é classificada como orgânica.19 Contudo, não é de se

estranhar que as experiências dos produtores diante do comércio justo se dêem

principalmente através de um comprometimento com as normas de produção orgânica

exigidas pelas agências que certificam as plantações. Isso porque os inspetores da FLO

visitam basicamente a burocracia das organizações de cafeicultores e apenas abordam

os agricultores para lhes perguntar a respeito dos chamados critérios genéricos do

comércio justo.20

19 Essa classificação, como comentado anteriormente, é feita com base em diversos selos que, por sua vez, representam normas de cultivo estabelecidas por instituições públicas ou privadas. De qualquer maneira, cabe às autoridades de cada país definir quais selos podem identificar como “orgânicos” os produtos, supostamente dessa natureza, que venham a circular em seu território. Em geral, as organizações peruanas de cafeicultores, que participam do comércio justo regulado pela FLO, procuram que seus associados sejam certificados com os selos vigentes nos Estados Unidos, Japão e Europa. Isso porque os compradores de seus produtos se encontram basicamente nesses lugares. Cabe então às organizações de produtores contatarem as agências responsáveis pela certificação de tais selos e, conseqüentemente, prepararem seus associados para as “inspeções” conduzidas por estas agências. 20 Como enfatizado na introdução da tese, estes critérios giram em torno dos seguintes temas: desenvolvimento social, desenvolvimento sócio-econômico, desenvolvimento ambiental e condições laborais. Igualmente fora assinalado que as inspeções na burocracia das organizações de produtores verificam se estão repassando corretamente a remuneração das vendas aos seus associados e investindo de maneira apropriada o “prêmio social”.

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Tal como retratado neste primeiro capítulo, durante a fase inicial da minha

pesquisa no Peru, pude acompanhar as “visitas de campo” dos funcionários de uma

cooperativa junto aos produtores associados a esta entidade. Isso permitiu com que

visualizasse o controle feito em cima desses agricultores, que os preparava para as

“visitas” dos inspetores do comércio justo e também das certificações orgânicas. Com

base na etnografia que permeia o presente capítulo, é possível afirmar que os

cafeicultores são preparados mais intensamente para receber as inspeções das agências

que emitem os certificados orgânicos do que a da própria FLO.

É um dado comum não só ao Peru o fato de que, normalmente, os produtores de

café, filiados às organizações que participam do comércio justo, afirmem não estar

familiarizados com esse mercado.21 Para aqueles que dizem ter ouvido falar do

comércio justo, este é freqüentemente associado com a produção orgânica de café, algo

obviamente mais próximo da realidade cotidiana dos agricultores que não se envolvem

no dia-a-dia da burocracia das suas organizações.22 Como dito acima, a FLO tem

cobrado, através de seus inspetores, o reconhecimento, por parte dos cafeicultores, dos

critérios genéricos do comércio justo. Caso esse reconhecimento não seja verificado, a

entidade inspecionada recebe uma “advertência”.

Mas olhando de perto o trabalho dos “técnicos” retratados nas próximas páginas,

também é possível perceber que suas ações visam conquistar os interesses dos

produtores em prol dos cultivos orgânicos.23 A participação dos agricultores nos

21 Murray, Raynolds & Taylor (2003) discutem sete estudos de caso a respeito de cooperativas de cafeicultores do México e da América Central que participam do comércio justo regulado pela FLO. Eles chegaram à conclusão de que existe um desconhecimento generalizado desse sistema por parte dos produtores de café e que só quem esta na liderança das cooperativas parece compreendê-lo.

22 Daniel Jaffee (2007 p. 91), por exemplo, constata isso entre um grupo de cafeicultores mexicanos. 23 O processo de certificação de um agricultor como “produtor orgânico” leva geralmente de dois a três anos, dependendo do(s) certificado(s) em questão. Não é então a organização de produtores que é certificada, mas sim seus associados que se interessam em participar dos dois ou três anos de “transição” para se tornar “orgânico”. Nesse sentido, muitos “sócios” não se preocupam em serem “certificados” e outros que não cumprem com os pré-requisitos são rebaixados durante ou depois do processo de transição ou mesmo eliminados desse processo.

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mercados onde se comercializa café orgânico, como é o caso do comércio justo

regulado pela FLO, envolve assim tanto a certificação e, conseqüentemente, o controle

de suas práticas quanto a cooptação de seus interesses, ou seja, um esforço para levá-los

a se interessar em produzir “organicamente”. Considerar esse duplo movimento nas

ações dos técnicos focalizados a seguir é extremamente importante. A preocupação

principal deste capítulo, em torno da compreensão dos procedimentos de

convencimento que levam os produtores a adotar a agricultura orgânica, não deve

encobrir o fato de que, desprovidos de suas devidas certificações, a circulação dos cafés

em determinados mercados se vê comprometida.

Porém, o ponto aqui é o de que sem nos perguntarmos pelos elementos que

envolvem esse convencimento não é possível entender os motivos que levam os

cafeicultores, abordados no presente capítulo, a praticar a agricultura orgânica, de

acordo com as indicações advindas dos funcionários da cooperativa da qual fazem parte.

É verdade que, dentro e fora do sistema de comércio justo regulado pela FLO, os cafés

certificados como orgânicos são geralmente mais remunerados do que aqueles sem essa

certificação. Mas será que o valor pago pelos grãos é o único motivo capaz de

convencer os cafeicultores a adotarem a produção orgânica? Não haveria outras

mediações que atuariam em prol desse convencimento? Quais seriam então os

elementos da crença na agricultura orgânica?

É importante, antes de qualquer coisa, apontar que essa maneira considerada

ecologicamente correta de produzir café é colocada aos cafeicultores como um processo

que, com o passar do tempo, tende a apresentar resultados mais positivos. A ausência

generalizada de recursos que os produtores têm para investir em seus cafezais orgânicos

é justamente a principal explicação que lhes vêm à mente do porquê de não se

beneficiarem, de modo mais consistente e imediato, das supostas vantagens desses

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cultivos. Vigoram assim, junto aos agricultores, determinadas indicações que buscam

reforçar a crença na produção orgânica. Tais indicações são conduzidas por certas

pessoas, comumente chamadas de técnicos, e se realizam com base em práticas e

representações, acionadas por estes sujeitos, a partir de um repertório simbólico

reconhecido pelos cafeicultores e que deriva do mundo social no qual se encontram

inseridos.

Certamente que qualquer acompanhamento cotidiano do trabalho desses técnicos

vai perceber que a intenção de suas indicações é também enquadrar as ações dos

produtores dentro das normas de produção que referenciam as inspeções das agências

certificadoras, cabendo aos “inspetores” (os representantes dessas agências) verificarem

o cumprimento desses parâmetros de plantio. Não é nenhum mistério a noção de que

sem suas devidas certificações os cafés não podem circular em determinados mercados.

Mas a participação dos agricultores nesses mercados envolve igualmente a criação e o

reforço de certos hábitos em torno do aprimoramento dos seus cultivos orgânicos. A

adoção desses hábitos realça de tal maneira essas práticas produtivas, mesmo quando

não se mostram economicamente vantajosas diante das alternativas disponíveis.24

Existe um sentimento de prazer, capaz de ser claramente percebido entre os

produtores, quando comentam a respeito da sua produção ecologicamente correta.25 Ao

incorporarem o que, com base em Pierre Bourdieu, poderia ser chamado do habitus ou

24 Entre as alternativas comumente disponíveis aos cafeicultores peruanos estão não apenas as diferentes estratégias de comercialização e produção de café como também o trabalho informal nos centros urbanos e a dedicação a outros produtos agropecuários. É claro que estas atividades podem ser conduzidas, em diferentes momentos, por uma mesma pessoa; o que não impede que esta concentre suas energias em determinada direção. Também é evidente que para a minoria dos produtores que teve acesso ao ensino superior as opções de trabalho são menos restritas. 25

Jaffee (2007 p. 147) comenta o seguinte a respeito dos membros da Cooperativa Michiza (entre os quais residiu durante seu trabalho de campo no México): “Either way, the level of dedication to organic coffee practices visible among some Michiza members cannot be explained by economics alone – especially given that their net cash return from the additional investment of time and labor is not great. Something else, something intangible, seems to be at work here: a kind of labor of love, backed by a quasi-spiritual fervor. Marcos Levya, the executive director of the NGO EDUCA in Oaxaca City and a longtime unpaid adviser to Michiza, says the organization has developed what he terms ‘una mística de café orgánico’ – a mysticism of organic coffee”.

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“sentido do jogo” da agricultura orgânica, estes sujeitos passam, dessa maneira, a

acreditar numa própria racionalidade desse cultivo, a despeito das evidências que lhes

parecem mostrar o contrário.26 O que é uma imposição dos compradores de café aparece

entre os cafeicultores também como uma escolha, ou seja, como algo que

corresponderia aos ditames de suas próprias consciências. Por exemplo, alguns

agricultores me disseram que a produção orgânica era uma “nova proposta de

desenvolvimento” com a qual felizmente haviam entrado em contato.

Mas antes de entrar nos pormenores dos procedimentos de convencimento que

levam os produtores a adotar a agricultura orgânica, vejamos como cheguei a tomar

contato com estes cafeicultores peruanos e, conseqüentemente, com os profissionais que

os animam quanto à adoção dessa forma de cultivo. A narrativa da minha inserção em

campo igualmente nos ajuda a entender a recepção entusiasmada que eles têm dos que

vêem como possíveis compradores de seus cafés.

1.3 Em campo

A presença marcante, nas páginas eletrônicas da internet, de uma organização de

produtores de café filiada ao sistema de comércio justo regulado pela FLO, e

aparentemente situada nas proximidades de Machu Picchu, direcionou minha ida ao

Peru logo no primeiro ano do doutorado. Assim, em julho de 2005 parti do Brasil tendo

apenas um destino certo: a XXII feira anual da Central de Cooperativas Agrarias

26 “Sendo o produto da incorporação da necessidade objetiva, o habitus, necessidade tornada virtude, produz estratégias que, embora não sejam produto de uma aspiração consciente de fins explicitamente colocados a partir de um conhecimento adequado das condições objetivas, nem de uma determinação mecânica de causas, mostram-se objetivamente ajustados à situação. A ação comandada pelo ‘sentido do jogo’ tem toda a aparência da ação racional que representaria um observador imparcial, dotado de toda informação útil e capaz de controlá-la racionalmente. E, no entanto, ela não tem a razão como princípio.” (Bourdieu, 1990 p. 23)

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Cafeteleras COCLA.27 Este evento se realizou entre os dias 25 e 28 desse mês na cidade

de Quillabamba; pólo comercial da região de selva do departamento de Cuzco e um

lugar praticamente apartado dos fluxos de turistas. Da cidade de Cuzco até Quillabama

foram 14 horas dentro de um ônibus viajando por uma precária estrada de terra sobre as

montanhas andinas, até quase que literalmente despencar na Amazônia peruana, um

trajeto bastante apreciado pelos ciclistas estrangeiros mais radicais, mas que de qualquer

modo não chegam até Quillabamba.

Antes, um trem vindo de Cuzco, margeando o rio Urubamba, parava em

Quillabamba. Mas uma enchente, em 1998, varreu os trilhos a partir da cidade de Santa

Teresa, numa das fronteiras da província cuzquenha de La Convención. O transporte

terrestre na província passou então a ser feito apenas por estradas, todas de terra. Em

certos lugares é apenas possível se chegar de barco ou helicóptero, como é o caso das

instalações de extração de gás natural em Camisea, um projeto comandado por

empresas estrangeiras em plena selva peruana e aclamado pelo governo federal. Apesar

deste projeto render um aporte considerável de tributos para La Convención, a

economia desta província de pouco mais de 200.000 habitantes gira basicamente em

torno da agricultura. Em 2004, por exemplo, foram produzidas aproximadamente 9.000

toneladas métricas de batata e 7.000 de milho, produtos esses característicos da dieta

andina. Mas é o café, produzido exclusivamente para o mercado internacional, que vai

dar o tom do comercio local. Se no mercado central de Quillabamba – capital de La

Convención e onde mais de 70% do comércio desta província é realizado – podemos ver

os pequenos comerciantes vendendo os produtos básicos da dieta andina lado a lado das

cholas (senhoras camponesas) que trocam esses mesmos alimentos via trueque (uma

27 No Peru, as organizações de produtores de café podem ser tanto cooperativas quanto associações, uma distinção eminentemente legal, mas com suas repercussões no funcionamento de cada uma delas. As “centrais” de organizações de produtores de café são entidades legais de “segundo grau”, isto é, ao contrário das duas primeiras, cujos membros são os próprios cafeicultores, nestas os associados são suas organizações.

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espécie de escambo), tal como acontece em qualquer mercado andino, são nas

dependências da COCLA e da AIKASA (uma empresa privada exportadora local) que

vão passar a maior parte da produção de café da região (25.000 toneladas métricas em

2004 ou aproximadamente dezessete por cento da produção total do país).28

Ao longo da minha estadia em Quillabamba, transitei basicamente pelas barracas

(ou stands) da feira da COCLA, onde as 23 cooperativas filiadas a esta entidade

expunham seus cafés (entre outros produtos de menor importância econômica), e

procurei dessa maneira estabelecer contatos com os expositores (funcionários e sócios

dessas cooperativas, basicamente). Pude acessar o discurso oficial sobre esse evento

tanto através de um informe entregue ao público quanto por meio das cerimônias de

abertura e encerramento. A necessidade de se impulsionar o turismo na província de La

Convención era um leitmotiv desses discursos e um dos sentidos principais da feira. Na

cerimônia de abertura, os dirigentes da COCLA enfatizaram a importância do

cooperativismo e da “busca de mercados” por parte dessa organização enquanto uma

“empresa social” que procura sua “eficiência administrativa” e a “união dos seus

cafeicultores associados”; isso num contexto de “ausência de apóio estatal ao

cooperativismo”. “Mantemo-nos sem a ajuda do governo”, reiteraria o presidente da

COCLA durante o encerramento da feira. Na platéia da abertura havia autoridades do

governo regional de Cuzco e compradores estrangeiros de cafés especiais. Todos estes

eram cortejados pelos dirigentes da central também durante as refeições e momentos de

lazer.

Os moradores de Quillabamba e dos distritos vizinhos pareciam participar da

feira com o propósito principal de assistir aos shows musicais que aconteciam à noite,

quando então o evento atingia seu público mais numeroso. Nas minhas visitas aos

28 Estas informações foram obtidas através de um pequeno e singelo livro (San Martin, 1994) sobre a província de La Convención. Adquiri esse exemplar na própria cidade de Quillabamba.

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stands das cooperativas, era sempre confundido com os “gringos do comércio justo”,

isto é, com um dos não mais do que 10 compradores estrangeiros de café certificado que

também perambulavam pela feira. Assim que me apresentava e desfazia o mal

entendido, uma enxurrada de perguntas sobre o café brasileiro, vindas dos expositores,

caía sobre mim. Em questão de minutos me tornei especialista no café do Brasil e isso

continuou até o final da viagem. Na verdade, as perguntas eram em sua maioria

genéricas e de respostas fáceis, mesmo para um leigo no assunto. Obviamente que a

simpatia de ambos os lados facilitava a continuidade das interações, pelo menos

momentaneamente.

Foto 1 – Interior da Feira COCLA Foto 2 – Stand da Cooperativa Huadquiña

No stand de uma cooperativa em particular, de nome Huadquiña, me chamaram

a atenção determinadas amostras de café nele expostas, cada uma demarcada com o

nome de seu produtor e o selo de certificação do produto. Sete amostras estampavam a

certificação orgânica própria da união européia e outra um selo de sustentabilidade de

uma organização não-governamental, ambos outorgados por agências certificadoras. Da

conversa com os expositores surgiu, logo de cara, o convite do presidente da

cooperativa para uma visita às dependências da organização. Mas quando este dirigente

se deu conta de que estava diante de alguém interessado na condução de uma pesquisa e

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não em comprar café, mesmo não desfazendo o convite, me questionou sobre os

benefícios que a pesquisa os traria. Disse-lhe que isso era uma questão pertinente, mas

difícil de ser respondida naquele momento.29 Mesmo assim me apresentou ao “técnico”

Juan Carlos, com o qual fiquei de me encontrar no dia 2 de agosto na cidade sede da

cooperativa. O contato com Juan e outros membros da organização permaneceu

constante até o final da feira; fui o fotógrafo “oficial” da cooperativa durante a

premiação do concurso no qual a entidade (na verdade, um de seus associados) alcançou

o primeiro lugar pela qualidade de seus grãos de café, numa competição que envolvia as

outras cooperativas (e seus respectivos sócios) também filiadas à COCLA. Adiantando

o expediente, parti com Juan no dia 30 até a cidade de Santa Teresa, um povoado

arrasado por uma enchente em 1998 e reconstruído precariamente morro acima com a

presença do então presidente Alberto Fujimori.

1.4 Santa Teresa

O descontentamento com o governo foi o tema principal da conversa entre os

passageiros na van que nos levou até Santa Teresa e, assim como acontecia nas minhas

viagens pelas estradas do país, nessa ocasião também ressaltaram que o sistema

rodoviário só não estava em piores condições por conta dos investimentos feitos pelo

ex-presidente Fujimori. Já em Santa Teresa, este era rememorado por sua visita durante

a fase de reconstrução da cidade após a enchente que a arrasou por inteira. De qualquer

modo, o caráter outrora provisório das habitações desse povoado aparecia então como

aquilo que enfim seus habitantes tinham de conviver. Residi numa das três ou quatro

29 Esse mesmo senhor aludiu ao fato de que muitas pessoas vão até eles conduzir suas pesquisas e nunca mais dão qualquer tipo de satisfação; “vocês escrevem suas teses e se esquecem de nós”, me disse. Vale ressaltar que encontrei ao longo das minhas andanças entre os cafeicultores peruanos pelo menos quatro estudantes estrangeiros pesquisando o comércio justo.

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hospedagens, igualmente precárias, disponíveis aos turistas advindos de uma trilha

alternativa a Machu Picchu que passava por Santa Teresa. A diária de um quarto com

cama de casal, mais um chuveiro coletivo com água quente, era de 12 soles ou quatro

dólares.

No meu segundo dia na cidade, acordei logo de manhã cedo e fui procurar pelo

técnico Juan Carlos em sua casa, conforme havíamos combinado no dia anterior.

Chamei-o algumas vezes e um senhor que vivia em frente informou-me que deveria

procurá-lo na sede da Cooperativa Huadquiña. Gentilmente este mesmo senhor me

acompanhou até lá. Cortamos o caminho através de sua chacra (nome comumente

usado pelos peruanos para falar das propriedades agrícolas de pequena extensão) que

ficava entre esta entidade e o povoado, numa área bastante pendente.30 A cooperativa,

por sua vez, se localizava numa região próxima ao rio Salkantay e era nas margens

desse rio que estava Santa Teresa antes de ser devastada pelas águas.

Descendo até a cooperativa, fui tomando contato, pela primeira vez na minha

vida, com uma plantação de café. Realmente o lugar era bastante agradável e bonito, ao

contrário do povoado logo acima. A pluralidade de cultivos dessa chacra me fez

entender a diversidade de produtos expostos no stand da cooperativa na feira em

Quillabamba. Seu proprietário ia me informando sobre a perfeita adequação da mesma

às normas de produção orgânica. Ele era um dos ex-presidentes da cooperativa e

trabalhava na plantação de café com a ajuda da sua família e a de seu irmão. A extensão

do seu terreno era de três hectares (cada hectare corresponde a 10.000 metros

quadrados; vale lembrar que um campo de futebol “oficial”, isto é, de 90 metros de

largura e 120 de comprimento, tem 1.08 hectares ou 10.800 metros quadrados).

30 As propriedades agrícolas de maior extensão são chamadas de fincas, fondos ou haciendas.

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Foto 3 – A Sede da Cooperativa Huadquiña

Chegamos às dependências da cooperativa e imediatamente nos juntamos a um

grupo de sócios e seus dirigentes (que também eram sócios) reunidos no local.

Conversamos todos por mais de uma hora e acredito que, com bastante simpatia,

consegui contornar minha ignorância e tornar o diálogo agradável. Disseram-me,

inicialmente, que a cooperativa tinha 420 associados. Através da COCLA, vendiam café

para as companhias estrangeiras Cafédirect e Twin Tradind (o nome da cooperativa e do

próprio sócio, dado que a certificação orgânica recaía sobre ele, iam impressos nas sacas

exportadas).31 Nesse sentido, concluíram meus interlocutores, o papel da COCLA era

apenas o de conquistar mercados, cabendo aos sócios, auxiliados pelas cooperativas, o

cuidado com a produção.

31 Essas duas empresas são torrefadoras de café que trabalham apenas dentro do comércio justo. Em comparação com outros países, o consumo per capita de café no Peru é bastante baixo, ao redor de 450 gramas para cada habitante ou 200.000 sacas de café verde por ano, segundo me disse um especialista no assunto. Os cafés mais consumidos no país são os solúveis, produzidos por empresas multinacionais, com exceção de uma tradicional marca nacional, de uma companhia que também é a principal exportadora de “café verde” ou “não-torrado”. O café solúvel comercializado no Peru é geralmente vendido em pequenos saches, pois de acordo com os responsáveis pela venda desse tipo de café no país, essa é a forma mais adequada que encontraram para corresponder ao baixo poder aquisitivo da população nacional. A Nestlé, por exemplo, fechou sua fábrica no Peru e abastece o mercado a partir de suas instalações na Colômbia, usando inclusive café peruano como matéria-prima. O Peru, ao contrário de diversos países desenvolvidos e em desenvolvimento, não é considerado um exportador de cafés solúveis, muito menos de cafés torrados e moídos e torrados e em grãos, geralmente de maior valor agregado e os quais são vendidos principalmente pelas nações do primeiro mundo. A COCLA não é apenas a organização de cafeicultores que mais exporta no país como também a única que alcançou algum destaque com a venda de café torrado. Recentemente essa entidade passou a oferecer cafés torrados e moídos de qualidade superior numa rede nacional de supermercados destinada a um público de renda elevada e na qual vinha ocupando o segundo lugar na preferência dos consumidores desses grãos.

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No momento da minha visita, três técnicos trabalhavam na Cooperativa

Huadquiña e tinham como obrigação “monitorar” os sócios. Meus interlocutores

citaram, como um exemplo desse monitoramento, os “cursos de capacitação”.

Informaram-me, em seguida, que a cooperativa dispunha, no total, de 20 funcionários e

quatro caminhões. Disseram que o tamanho médio das chacras dos associados era de

três hectares, variando entre dois a cinco. Segundo eles, em torno de quatro assembléias

aconteciam por ano com todos os membros, sendo que a última se destaca das demais,

na medida em que era nela que o resultado de todas as vendas era enfim anunciado.

Estes associados enfatizaram a necessidade de seguir as normas das agências

certificadoras. Afirmaram que, no geral, os sócios cumpriam com essas exigências;

“apenas um ou outro foi expulso da cooperativa”.

Discutindo com eles o cronograma das atividades junto aos associados, falaram

das “inspeções internas” que antecedem as “inspeções externas” conduzidas pelos

inspetores das agências certificadoras.32 As primeiras inspeções eram feitas pelos

técnicos de uma “cooperativa base” da COCLA e entre 15 a 20 sócios “capacitados”

dessa mesma cooperativa.33 Estes visitavam, em dois ou três dias, todas as chacras dos

associados de outra cooperativa base. Isso se passava com as 23 cooperativas bases em

dezembro, dado que em março começavam as inspeções externas. Estas atingiam em

torno de 30% dos membros das cooperativas, escolhidos ao acaso pelos inspetores

considerados externos.34 Entre estes últimos, os do comércio justo seriam os mais

exigentes; “eles pedem para não discriminarmos os sócios que produzem pouco, apesar

32 Um cronograma organizado em torno das inspeções “internas” e “externas” é comum às organizações de produtores que comercializam cafés especiais no Peru. Participei de alguns encontros e congressos envolvendo estas entidades e nos quais intercambiavam suas experiências com relação ao “sistema de controle interno” (responsável justamente pelas inspeções internas). A partir de 2007, a FLO passou a exigir, das organizações que participam ou queiram participar do comércio justo, a existência de um sistema de controle interno. 33 Vale lembrar que a COCLA é uma “organização de segundo grau” e, conseqüentemente, cujos sócios são as cooperativas e não os produtores. 34 Ser um inspetor externo não significa necessariamente ser um estrangeiro ou ter vindo de fora do país. Muitos peruanos trabalham para as agências certificadoras e algumas destas têm seus escritórios no Peru.

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37

destes também usarem da mesma forma a assistência técnica”, exemplificou um dos

agricultores presentes.

É possível dizer que o cronograma de atividades da cooperativa girava em torno

das chamadas inspeções externas. Mas é preciso ter em mente, como deve ficar claro ao

longo do capítulo, que o ponto de vistas dos “inspetores externos” acompanhava o dia-

a-dia dos sócios, notadamente daqueles cujas plantações eram certificadas como

“orgânicas” ou que se encontravam “em transição” (de “convencional” para

“orgânico”). Nesse caso, é preciso se perguntar pelas mediações envolvidas no processo

de interiorização dessa perspectiva “externa”. O trabalho dos técnicos, retratado nas

próximas páginas, se coloca justamente como um lócus privilegiado para se observar

estas mediações.

No final da minha conversa com os sócios, ouvi algumas reclamações. Disseram

que antes o preço do café (certificado como) “orgânico” era alto, mas que agora, com o

aumento da oferta, caiu bastante. “Mas as empresas certificadoras vivem disso”,

ponderou um deles aos demais, “afinal estas empresas cobram por café certificado”.

Reclamaram também da “total falta de apoio do governo” para com eles; “o Estado só

nos oferece imposto”, acrescentou um dos produtores mais exaltado.

Segui com um dos sócios até sua chacra, a uns 30 minutos a pé da sede da

cooperativa, também na parte “baixa” ou “antiga” da cidade, outrora arrasada pela

enchente do rio local. A chacra tinha dois hectares e estava a quinze anos em suas mãos.

Oito anos atrás, antes do início do “programa de café orgânico” e do comércio justo na

cooperativa, sua chacra era completamente diferente, segundo me informou. Enquanto

conversávamos, ao longo de uma estrada ao lado de sua propriedade, ele recolhia os

poucos lixos (latas e garrafas de plástico) deixados por pessoas que passaram por ali. O

local por onde andávamos era extremamente agradável, a tal ponto que se pudesse me

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hospedar nele nem sequer subiria até a cidade, mas o risco e principalmente o medo de

uma nova enchente faziam com que até mesmo esse sócio vivesse morro acima, onde

por sinal ele tinha uma loja.

Diversos assuntos ligados ao café apareceram em nossa conversa. Ele se

mostrava extremamente orgulhoso de sua “chacra orgânica”, de modo que meu único

elogio era referente à beleza da mesma.35 Explicou-me sobre o princípio de ayni, no

qual as famílias cooperam entre si na colheita do café, numa relação não-monetizada e

que, segundo ele, seria valorizado pelo comércio justo (na verdade, eram os

funcionários da cooperativa que se interessavam em obter esse tipo de informação a

respeito do trabalho nas chacras).36 Por outro lado, também utilizava trabalhadores

assalariados durante a colheita, mas foi enfático quando disse que “o comércio justo

proíbe o trabalho de crianças”. Perguntei por que não havia, aparentemente, cultivo de

coca naquela região, e ele me respondeu que isto não era bem visto pelos americanos.37

35 Durante minhas estadias mais prolongadas entre os cafeicultores de outra região peruana, ouvi freqüentemente deles um elogio bastante enfático à produção orgânica, na medida em que também permitiria uma maior presença dos pássaros. Isso porque estes animais traziam distintas sementes consigo que, ao germinarem, criavam um ambiente considerado extremamente agradável pelos produtores. 36 Sobre as trocas recíprocas de trabalho na cultura andina, ver a coletânea Casa, Chacra y Dinero de Enrique Mayer (2004). Estas trocas podem ser encontradas na construção de uma casa ou na abertura de uma plantação, por exemplo, e se constituem num contraponto secular às transações monetárias e uma linguagem preferencial na constituição de grupos. 37 No dia 28 de julho de 2005, assisti do quarto do hotel, em Quillabamba, um evento que se mostrou bastante significativo para compreender o clima político do país naquele momento. Nesse dia os peruanos comemoram sua independência e o presidente ritualmente pronuncia do congresso um discurso transmitido pelo rádio e televisão. Previamente à fala presidencial, um renomado analista político expunha (no canal que sintonizei) sua visão de que o Peru “pode ser pobre e corrupto, mas não é desunido”, se referindo especificamente às recentes atitudes do governo regional de Cuzco em prol do aumento do espaço legal dedicado ao cultivo de coca nesse departamento. Isso ia de encontro com as diretrizes do governo nacional e a constituição do país, além de contrariar os interesses norte-americanos, reforçados naquele período com a visita do secretario de estado dos EUA. No seu discurso, o presidente Alejandro Toledo ressaltou o “incremento substantivo das exportações” e junto disso o fato de que o país não exportava mais apenas minérios, mas também produtos agrícolas. Ele estava se referindo ao incremento das exportações de produtos agrícolas “não-tradicionais”, notadamente o de aspargos, cultivados em grandes propriedades irrigadas na costa peruana, movimento este impulsionado por um acordo de livre comércio com os EUA e assentado no combate ao narcotráfico.

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Foto 4 – O sócio e seu cafezal

Enquanto me contava sobre a necessidade do “sócio orgânico” providenciar uma

“barreira” de oito metros de distância em relação a um “vizinho não orgânico”, um

vizinho seu, “sócio e orgânico”, passou e nos cumprimentou. Ao se referir a esse

senhor, assim que este se afastou de nós, me disse que mesmo não compreendendo as

normas, era capaz de praticá-las. De aparência menos citadina que meu interlocutor, ele

vivia em sua chacra afastado do núcleo populacional.

1.5 As “visitas de campo”

As seções seguintes apresentam o trabalho dos técnicos da Cooperativa

Huadquiña juntos aos produtores associados a esta entidade. Obviamente que as praticas

desses profissionais visam controlar e, conseqüentemente, educar os cafeicultores, tendo

em vista as inspeções das agências certificadoras. Mas ao longo da narrativa que se

segue é possível perceber alguns comportamentos dos técnicos, em prol do

aprimoramento das atitudes dos agricultores, com o objetivo manifesto de capacitá-los

para um uso “mais racional” de seus recursos. Essa racionalização das práticas dos

produtores certamente deve corresponder aos critérios próprios das certificações

orgânicas. Acontece que esse processo de racionalização (presente nas “visitas de

campo” focalizadas a seguir) também pode ser percebido como uma espécie de ritual de

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convencimento que procura criar e reforçar a crença na racionalidade das praticas

orgânicas. Os técnicos incentivam os sócios do mesmo modo como um técnico de

futebol incentiva seus jogadores, ao incutir neles a possibilidade e os meios de

superação. A crença nesses incentivos os afasta, em certa medida, das demais

alternativas de conduta nas quais poderiam concentrar ainda mais suas energias. O

ponto é que essa crença se sustenta, principalmente, apoiada na autoridade dos técnicos,

na legitimidade de suas práticas e no reconhecimento das representações que acionam

em suas falas.

A autoridade dos técnicos se assenta, basicamente, sobre seus graus de

escolarização, estudos e experiências. Já a legitimidade de suas práticas decorre

fundamentalmente do caráter técnico das mesmas, em oposição a um senso comum

visto não apenas como improdutivo, mas também prejudicial ao meio ambiente. As

representações que estes profissionais acionam em suas falas, tendo em vista a

motivação dos produtores em prol da agricultura orgânica, se apóiam tanto nas

expectativas do retorno financeiro quanto no ideal de preservação da natureza.38 Isso

significa dizer que o trabalho desses técnicos pressupõe uma socialização anterior dos

cafeicultores numa sociedade dominada pelas relações mercantis, onde o espírito

técnico-científico é valorizado e também que percebe o esgotamento dos recursos

naturais como uma realidade evidente.39 Mas esse trabalho deve igualmente levar em

38 A importância de se preocuparem com a qualidade dos grãos de cafés a serem vendidos é algo visto pelos produtores como um fator de ordem eminentemente econômica. Isso porque os mesmos, enquanto eventuais consumidores de café, não se preocupam de modo algum com a questão da qualidade, tal como vem sendo colocada recentemente entre os consumidores situados principalmente nos grandes centros urbanos dos países desenvolvidos. 39 Ver Neiburg (2007) para uma discussão a respeito da importância dos processos de socialização para o entendimento das práticas que são desempenhas pelos que este autor entende como sendo os “profissionais da economia”. Evidentemente que os cafeicultores, enquanto tais, já se encontram, por definição, em contato com uma economia de mercado. Também é natural que, ao fazerem parte de uma sociedade que tem na ascensão social através da educação escolar um dos seus pilares fundamentais, vejam um valor crucial na ciência e na tecnologia. Já o desgaste generalizado dos solos das regiões cafeicultoras é um dos sinais mais evidentes, para os produtores, da inviabilidade de suas práticas tradicionais de cultivo.

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conta determinadas mediações, próprias do universo simbólico dos agricultores,

adquiridas pelos técnicos com base no convívio nesse meio. Isso pode ser tanto o uso da

língua nativa (o quéchua, no caso) quanto um determinado tipo de comportamento que

envolva o estabelecimento de uma relação de confiança ou proximidade com os

produtores (o que pode acarretar num convite destes para um almoço, por exemplo).

Estes pormenores, na verdade, são muitas vezes extremamente imprescindíveis para

captar a atenção dos cafeicultores. Vejamos então tudo isso mais de perto.

1.6 Minhas primeiras visitas

No meu terceiro dia na cidade de Santa Teresa, acordei ainda de madrugada e fui

encontrar o técnico Juan Carlos na cooperativa, para então acompanhá-lo em suas

“visitas de campo”, de acordo como havíamos combinado. Cheguei lá antes dele e,

enquanto aguardava-o, um senhor (que se identificou como sócio da cooperativa) sentou

ao meu lado. Ele também esperava por Juan. Outrora funcionário da Huadquiña, estava

em “fase de transição dois (para café orgânico)”.40 Apesar de já vender há tempos “café

planta” (café não-certificado) para a cooperativa, havia se tornado sócio há apenas dois

anos. Café planta era como o “café convencional”, nome mais usado em todo o Peru,

também era chamado nessa região, e cujo preço tendia a ser menor que o café dito

certificado.41 A chacra desse senhor tinha um hectare e nela seria possível encontrar

bananeiras, árvores de frutas cítricas, entre outros cultivos.

40 A transição de “produtor convencional” para “produtor orgânico” leva três anos no caso da Cooperativa Huadquiña. De qualquer maneira, mesmo após certificado, o agricultor continua sendo “inspecionado”. 41 Neste ano de 2005, a produção de café no país foi demasiadamente baixa, em decorrência da escassez de chuva, o que fez com que os preços do café convencional aumentassem e não diferissem muito do que era pago aos cafés certificados como orgânicos. Os chamados comerciantes intermediários ou as “empresas privadas exportadoras” tendem a receber cafés de qualidade inferior do que os aceitos pelas organizações de cafeicultores que trabalham com o comércio justo. Quando o preço internacional do café convencional aumenta acima dos valores do comércio justo, estes últimos têm de acompanhar o primeiro, segundo as próprias regras da FLO. Acontece que, ao verem equiparados os preços desses dois tipos de

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Fui dar uma volta pelas dependências da cooperativa enquanto ele conversa com

Juan e Raul (um técnico também chamado de “Russo”), que tinham acabado de chegar

(ambos eram de Quillabamba e dividiam uma mesma moradia em Santa Teresa). Entrei

no armazém e vi a seguinte classificação escrita na parede: café orgânico, café

sustentável (sostenible) e café planta.42 Abaixo de café orgânico, havia uma segunda

classificação, só que com relação ao local de origem do café ou sua cuenca (bacia

hidrográfica, em espanhol): Quellomay, Yanatile e Suriray. O armazém também

funcionava como uma sala de reunião, de acordo como podia ser percebido através da

lousa num de seus cantos e dos diversos bancos empilhados uns nos outros.

Sou chamado para subir até o escritório dos técnicos e encontro Juan escrevendo

seu relatório da feira da COCLA, no qual constava, por exemplo, quantos produtos

foram vendidos pela Cooperativa Huadquiña. Começo então a “fuçar” nos arquivos

referentes aos sócios da cooperativa. Em cada pasta de “registro de dados do agricultor”

havia inúmeras “fichas de recomendações”, “fichas de visita de campo”, “contratos de

compra e venda”, “compromissos de produção de café orgânico”, entre outros

documentos. Tratava-se de um imenso mecanismo integrado de controle por parte da

burocracia da Huadquiña. Não é à toa que ela participava de um “sistema de controle

interno” entre as cooperativas que faziam parte da COCLA. Eu estava diante de todo

um aparato que visava, acima de tudo, preparar as organizações e seus associados para

as “visitas” dos “inspetores externos”. Vale ressaltar que cheguei a participar de alguns

café, muitos produtores podem se sentir tentados em vender para os comerciantes intermediários ou às empresas privadas exportadoras e não às organizações filiadas ao comércio justo, por conta dos critérios mais rígidos dessas últimas entidades. Os comerciantes intermediários e as empresas privadas exportadoras aceitam cafés mais úmidos e com mais impurezas (tais como folhas, gravetos e terra), o que faz com que o peso destes aumente e, conseqüentemente, o valor pago aos agricultores também. 42 Como dito na introdução da tese, no Peru os cafés considerados sostenibles são os identificados com selos que mesclam critérios sociais e ambientais. Trata-se de cafés produzidos de acordo com normas supostamente menos exigentes do que aquelas presentes nos certificados orgânicos e de comércio justo. Os principais selos de sustentabilidade são o Utz Kapeh e o Rainforest Alliance. Os cafés demarcados com esses certificados são pouco valorizados economicamente, se comparados com os que acompanham os outros selos.

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eventos envolvendo as cooperativas peruanas de cafeicultores e nos quais fora

enfatizado a possibilidade de se utilizar do “sistema de controle interno” para um

planejamento mais racional das atividades destas entidades, e não apenas como um

instrumento de fiscalização.

Foto 5 – Os técnicos no seu escritório

Mario, o único dos três técnicos que era casado e que não havia freqüentado uma

universidade, além de ser o mais velho dos três, passou a me explicar detalhadamente a

“ficha de visita de campo”. Ele propôs que eu também aplicasse essa ficha, mas recusei

a idéia, não só por não ter a competência, mas porque queria observá-los em ação. Meu

interesse era perceber, entre outras coisas, como esse artefato era construído. Mas não se

tratava de me restringir às práticas de “tradução dos interesses” por parte dos sujeitos

envolvidos nessa construção, de acordo como Bruno Latour (1998) propõe que se

investigue o processo de constituição dos “fatos científicos” e dos “artefatos técnicos”,

para se entender a “estabilidade” nas interações humanas que se mantém através desses

objetos.43 Isso porque as representações desses sujeitos, e sobre eles, também deveriam

indicar os elementos que legitimavam sua autoridade. Do contrário, como explicar a

crença nos seus discursos sem levar em conta o lugar que ocupam no imaginário que 43 Estabilidade para Latour significa a ausência de “controvérsias” entre as pessoas.

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compartilham com aqueles que os ouvem? E se as pessoas não acreditarem em seus

discursos, como então agirão de acordo com eles?

Foto 6 – Os registros de dados do agricultor Foto 7 – Registro de dados do agricultor

Partimos nas duas motos da cooperativa para fazer as visitas de campo; eu fui

com Raul, Juan e Mario seguiram na outra moto. Depois de quarenta minutos de

viagem, chegamos ao local onde as motocicletas ficaram estacionadas. Desse lugar,

fomos a pé visitar as chacras dos sócios localizados na região, conhecida como

Sahuayaco, um dos 20 “comitês” da cooperativa nos quais estavam agrupados. Na área

onde deixamos as motos, havia uma escola, um campo de futebol, um restaurante e

algumas barracas que vendiam bebidas engarrafadas e guloseimas para os diversos

turistas que descansavam da caminhada até Machu Picchu. Após os técnicos decidirem

quais associados iriam visitar, segui com Raul morro acima à direita e os outros dois

foram pela esquerda. Cada um deles visitaria dois sócios (eles costumam visitá-los

sozinhos, e não em duplas). Deixamos o local às 11 da manhã e o combinado era de se

encontrar nesse mesmo lugar às três da tarde.

Raul tinha 27 anos, cinco a mais que Juan, sendo que ambos eram formados em

agronomia por uma universidade pública localizada em Quillabamba. Mario era um

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“técnico florestal” formado em um instituto, “e não numa universidade”, me disse Raul

no caminho até a chacra do primeiro sócio que iríamos visitar. Ele também me contou

que trabalhava há um ano na Cooperativa Huadquiña, além de ser dono de uma chacra

situada nas proximidades de Quillabamba. Na verdade, era como produtor que dizia

querer se “desenvolver”, o que o levou a apontar para o fato de que não pretendia ficar

por muito tempo trabalhando como técnico. Ganhava 1.200 soles mensais

(aproximadamente US$ 400) exercendo essa profissão, além de uma ajuda

complementar para o transporte.

Antes de chegarmos à chacra do primeiro sócio que iríamos visitar, passamos em

frente da propriedade de seu vizinho, que não era associado à cooperativa. O que

encontramos pelo caminho foi uma quantidade impressionante de lixo espalhado entre

as árvores. Na área do sócio, a situação era completamente diferente; sem falar que o

café do produtor não-associado era “heterogêneo demais” (decorrente de uma “colheita

e beneficiamento tradicional” e não de uma “colheita seletiva e beneficiamento

técnico”, me informou Raul) e estava sendo secado numa lona preta de plástico próxima

ao chão de terra (e não numa laje de concreto, de acordo como a cooperativa exigia de

seus sócios). Na ocasião, lembrei imediatamente do que um membro da Huadquiña

havia me dito no dia anterior: “o mercado quer homogeneidade”.

Foto 8 – Café secado “próximo ao chão” Foto 9 – Café secado numa “laje de concreto”

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Chegando à propriedade do associado em questão (propriedade inclusive no seu

sentido jurídico, pois a área era reconhecida legalmente), Raul foi logo conversando, em

quéchua, com a mulher do proprietário. Ela explicou que a ausência de seu marido se

devia ao fato dele estar trabalhando no reparo da estrada logo abaixo. Seguimos então

adiante e entramos na área de outro não-sócio; o lixo e o modo de secar não permitido

pela cooperativa mais uma vez me chamaram a atenção. Nas chacras dos associados

pelas quais íamos passando, era possível perceber uma variedade impressionante de

árvores frutíferas e outros cultivos, entre eles a granadilla, uma fruta local de sabor

indescritível e que havia provado na feira de Quillabamba justamente pelas mãos de

Raul.44 Chegamos enfim na chacra de outro sócio que ficamos de visitar, mas que, em

decorrência do seu falecimento, estava sob responsabilidade da sua viúva. O técnico

conversou em quéchua com ela e comentou comigo em seguida: “primeiro as

observações e conversas, depois as recomendações de acordo com as potencialidades da

chacra”.

São estas recomendações, assim como os planos de produção e demais

indicações, que, além de servirem para controlar as práticas dos agricultores com base

nas certificações, também podem ser pensados como elementos fundamentais para a

criação e o reforço do comprometimento deles com a produção orgânica. O importante,

acima de tudo, é ter em mente que o contato prolongado dos produtores com essas

indicações pode incutir neles um determinado hábito. Isso os torna pré-dispostos para

aceitar a agricultura orgânica, a despeito das supostas desvantagens desse cultivo que

possam aparecer. Essa interiorização de um hábito, adaptado a uma determinada

44 Existe um discurso, comumente presente entre as organizações peruanas de cafeicultores, a respeito da importância de seus associados diversificarem suas fontes de ingressos econômicos. No caso da Cooperativa Huadquiña, como deve ficar claro ao longo do texto, a ênfase no cultivo da granadilla é colocada pelos técnicos como algo que, antes do que contradizer seus discursos em torno da produção orgânica de café, serve justamente para garantir esse tipo de produção entre os agricultores que apresentam certas desvantagens produtivas com relação aos seus pares.

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condição objetiva, no caso, às demandas dos compradores de café certificado como

orgânico, é o que deve explicar a socialização dos cafeicultores nos mercados onde esse

produto circula. O controle das práticas dos agricultores, tomado como um processo

isolado, apenas garantiria a circulação desse bem.

Esta última chacra que visitei com Russo tinha cinco hectares. A proprietária e

seu filho mais velho usavam roupas com a marca Adidas estampada; eu também. Eles

escutavam pelo rádio as mesmas músicas em voga nas cidades do país e que nada mais

eram do que huaynos bastante populares em todo o Peru.45 Numa barraca de lona no

quintal da chacra, um parente bastante enfermo da sócia parecia apenas esperar por sua

morte, tendo ao lado sua mulher. Crianças brincavam no quintal e junto delas as

galinhas cuidavam dos seus pintinhos. Entrei na cozinha – repleta de porquinhos da

índia (cuyes), uma iguaria no Peru – e encontrei Raul pedindo os “documentos” à sócia.

Estes documentos, cujas cópias compunham o “registro de dados do agricultor” em

mãos da Huadquiña, eram: “declaração jurada”, “fichas de recomendação” (de visitas

anteriores) e “plano de produção”.46 Outro filho da sócia se aproximou de nós vestindo

uma camisa de time de futebol local, boné e tênis de uma marca internacional. Os filhos

mais novos andavam sujos e rasgados, os mais velhos não. Todos conversavam em

quéchua.

A sócia em questão ainda não era “orgânica”; estava em (fase de) “transição

dois”. Raul reclamou para eles dos (poucos, no meu entender) lixos que tínhamos visto

pelo caminho, já dentro da propriedade. Um dos filhos disse que iria juntá-los e

depositá-los na “lixeira inorgânica”. O técnico os lembrou que essa lixeira estava cheia,

e a família imediatamente se comprometeu em construir uma nova. Eles também

45 Na ocasião, o huayno mais tocado era o da cantora Sônia Morales, em cujo refrão a mesma repetia: “quero morrer, quero morrer”. Essa música fala de um amor fracassado, um tema recorrente nas canções desse estilo. As músicas de huayno se utilizam de instrumentos tanto de origem européia quanto andina. 46 Vale ressaltar que eram feitas, por ano, de três a quatro visitas a cada sócio, por isso as inúmeras fichas nas pastas dos agricultores que tinha visto na sala dos técnicos.

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afirmaram que iriam erguer uma laje de concreto (para a secagem dos grãos), mas só em

janeiro, pois no momento não teriam dinheiro suficiente. Russo lhes perguntou se o

lucro da família vinha mais do café ou da granadilla; o filho da dona respondeu que era

a granadilla a fonte principal de dividendos deles.

Foto 10 – Raul conferindo os documentos Foto 11 – Transmitindo as “recomendações”

Raul também os questionou a respeito da quantidade de patos e galinhas que

possuíam, entre outras perguntas do gênero, as quais poderia observar diretamente.

Tudo que anotava na ficha de visita de campo era fruto de perguntas e não de

observações. Indagado mais tarde sobre isso, me respondeu: “o importante é observar a

produção de café”. Mas como ele e Juan supostamente já conheciam bem a propriedade,

dessa vez essa observação foi bastante superficial: “quando o técnico visita uma chacra

nova, ele olha atentamente todo o cafezal”, apontou. Enfim, a visita me pareceu bastante

burocrática. No final, Raul e o filho mais velho desenharam um croqui da propriedade.

O técnico também fez uma estimativa da inclinação da chacra e repassou suas

recomendações através de uma cópia da ficha de visita de campo. “Em setembro os

técnicos regressam a essa propriedade”, avisou. Eles eram sócios da cooperativa há

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treze anos, mas só recentemente estavam “virando orgânicos” (como dito anteriormente,

muitos associados não eram “orgânicos”).

Segui com Raul de volta à propriedade do sócio que estava ausente durante

nossa visita à sua chacra. Logo que entramos, novamente, no sítio desse agricultor, o

técnico cavou até a raiz de uma árvore de café e encontrou uma praga chamada pria-

pria. Segundo ele, esta praga era bastante comum e prejudicial. Numa segunda planta

verificada, não a encontrou. Ele também foi me mostrando as diversas árvores frutíferas

que compunham o local. De qualquer maneira, constatamos, através de sua mulher, que

o sócio ainda não havia retornado. “O produtor pode entregar menos, mas nunca acima

de sua cota”, me disse Raul no caminho de volta até as motos (essa cota aparece na

“declaração jurada do produtor” e é uma maneira de não permitir que os cafés não

certificados sejam vendidos sob o rótulo de “orgânico”).

Durante o jantar, no restaurante que a esposa de um associado mantinha em

Santa Teresa, Raul comentou com os dois técnicos e outro funcionário da cooperativa

(Frei, o “chefe dos empregados”) sobre o doente que havíamos encontrado na chacra de

uma sócia. Conversamos também sobre outros assuntos (futebol e café brasileiro, em

especial) e depois cada um seguiu para sua casa. Raul e Juan moravam juntos em frente

ao restaurante. A casa deles era pequena, sem fogão, tanque e outros utensílios que

também não havia em minha casa no Rio de Janeiro.47 Vivíamos os três uma típica vida

de estudante solteiro saído da graduação e isso nos aproximava. De qualquer modo, a

autoridade destes técnicos perante os produtores parecia ocorrer de maneira

incontestada. Chamados freqüentemente de “engenheiros” pelos agricultores, estes

empregados da cooperativa eram, dessa maneira, associados ao ensino superior e a uma

profissão extremamente respeitada entre os cafeicultores.

47 Contudo, os padrões de higiene eram bastante distintos. Na verdade, a falta de higiene era algo com o qual freqüentemente me depararia nas habitações dos jovens solteiros no Peru. Em certo sentido, a limpeza doméstica é nesse país basicamente associada ao trabalho feminino.

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1.7 De volta a Sahuayaco

O dia seguinte foi também dedicado às visitas de campo com os técnicos.

Cheguei à cooperativa e, mais uma vez, um sócio os esperava no andar de baixo do

sobrado. Subi e o agricultor veio em seguida. Ele queria marcar uma data para a visita

de campo em sua chacra, dado que estava ausente quando da última visita. Sua conversa

com os técnicos foi feita em quéchua, mas pedi para um deles traduzi-la para o

espanhol; entre outras coisas, Mario lembrou esse cafeicultor para estar com os

documentos em mãos no dia da visita.

Voltamos os quatro para Sahuayaco, o mesmo comitê cujos moradores visitamos

no dia anterior. O programado era encontrar os produtores de granadilla dessa região

para uma reunião que, dado à ausência destes, não aconteceu. Os três técnicos

debateram então quais sócios iriam visitar. Segui com Juan morro acima.

A mais de dois mil metros de altura (medidos com o GPS da cooperativa em

mãos de Juan), podemos encontrar as árvores de granadilla, uma fruta cujo sabor, como

já disse, é indescritível. Tais frutas eram vendidas, em geral, aos comerciantes, mas a

idéia da cooperativa era criar uma associação de produtores para assim “organizar um

mercado do produto”, conforme Juan comentou comigo. Esse projeto deveria começar

no ano seguinte. Acontece que acima de dois mil e duzentos metros o terreno não se

torna vantajoso para o cultivo de café, pois como informou Juan aos sócios que

visitaríamos nesse dia, apesar de nessa altura a qualidade do produto ser ótima, sua

“produtividade” é pequena.48

48 Dialogando, no dia anterior, com um dos filhos mais novos da sócia que visitei com Raul, esse menino me disse que o volume da produção tem a ver com os “despachos” feitos “à terra”. É evidente que, numa certa altura, as plantas de café vão produzir menos frutos. Mas o uso da categoria “produtividade”, num contexto onde a relação do homem com a natureza não é meramente técnica, mas também envolve dons e contra-dons, certamente coloca algumas questões. No décimo segundo item da “ficha de campo (documento sobre a produção)”, intitulado “Aspectos Culturais”, encontra-se a seguinte pergunta: “Que

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51

Conversando com Juan sobre sua função na cooperativa, escutei que ele e Raul

eram “assistentes técnicos em café e granadilla”; Mario era “apenas assistente técnico

em café”. Ainda segundo ele, os dois eram “engenheiros” (agrônomos), enquanto Mario

seria um “técnico”. Apesar de não existirem cursos de granadilla, afirmou que sua

experiência com o produto vinha da leitura de livros e do contato com os produtores.

Também comentou sobre o fato de que o “curso de capacitação para sócios” durava

sempre um dia. Por exemplo, um curso dado em Sahuayaco ia juntar não só os sócios

desse “comitê” como também aqueles do comitê vizinho de Lucmabamba (e vice-

versa). Desse modo, um mesmo sócio freqüentava de dois a três cursos por ano. O

regulamento da cooperativa exigia a presença do associado nesses cursos, nos quais

entre 30 a 50 produtores participavam. Eles eram realizados pelos três técnicos da

cooperativa e mais um da COCLA.

Perguntei para Juan o que ele queria dizer quando se referia a uma aprendizagem

mútua, entre técnicos e sócios, nesses cursos de capacitação. “Na universidade

aprendemos o controle químico e orgânico, mas, por exemplo, com relação ao fungo

ayahuayco, os produtores o controlam com urina (humana) fermentada no limão, e foi

com eles que aprendi isso”, me disse. Ainda segundo ele, “os técnicos dizem se o que os

produtores estão fazendo é certo ou errado”. Penso que é preciso ter certa cautela com

relação à sua visão de um “aprendizado mútuo” entre técnicos e produtores. Em

princípio, essa via de mão-dupla existe do seu ponto de vista. Por outro lado, o poder de

nomear o certo e o errado nas práticas das pessoas “não pode ser visto sempre como

manifestações culturais você conhece e em quais participa?”. Aí os técnicos anotavam, entre outras coisas (ligadas a festas e a religião, por exemplo), se na chacra em questão era costume fazer despachos ou “pagamentos à terra”. No item nove dessa mesma ficha cujo título é “Saúde, Bem- estar e Segurança dos Trabalhadores” pode se ler o seguinte: “1. – Sistema de Trabalho: Que tipo de trabalho mancomunado realiza? Ayni (sim) (não), Rol (sim) (não), Familiar ( ) NA ( ).” O que quero chamar atenção, com esses dois exemplos retirados dessa ficha sobre a produção das chacras, é que na sua própria lógica há espaço para o ponto de vista não técnico sobre a produção.

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violência simbólica entre grupos antagonicamente posicionados. Por vezes é assim, mas

a sua base não é a violência, mas a docilidade.” (Pina Cabral, 2005).49

O primeiro sócio que visitamos era um “produtor orgânico”, isto é, certificado

dessa maneira. Chegamos enquanto ele colhia suas granadillas (com a ajuda de quatro a

cinco pessoas). Inicialmente, Juan lhe repassou as informações sobre um “sistema de

irrigação”; o sócio se interessou pela sugestão, mas o custo do empreendimento parecia

o desencorajar. O técnico o aconselhou a adquirir uma parte pequena do sistema, a título

de experiência. Como deve ficar claro a seguir, se tratava de uma entre outras propostas

feitas pelo funcionário da cooperativa a este agricultor e como o objetivo manifesto de

aprimorar sua produção orgânica.

Continuamos entre as granadillas, apesar do propósito da visita ser o café. O

almoço ficou pronto e fomos convidados à mesa (a comida estava ótima!).50 Terminado

o almoço, ganhei um saco enorme de granadilla. Dado que a parcela onde esse

associado cultivava café ficava num local morro abaixo, passamos a caminhar entre

outras chacras e até por um caminho do tempo dos inkas que ia dar na antiga cidade de

Vilcabama, de acordo com o que nos informou o produtor. Chegando ao terreno com

cultivo de café, o técnico fez a habitual inspeção no cafezal. Ele cobrou do sócio (que se

comprometeu) a reconstrução de um poço para o ano seguinte, já que neste ele não

possuía os recursos necessários.51

Juan observou onde deveria ser feita a poda do café e indicou isso para o

agricultor. Falou também da importância de se usar abacate na produção de adubo

orgânico: “as minhocas gostam de coisas úmidas”. Continuamos andando e, pelo 49 Mesmo porque, no caso dos cafeicultores, eles são os proprietários das cooperativas e estão presentes, através de seus representantes, no comando da própria FLO. Por sinal, o gerente da COCLA é o atual representante de todos os agricultores latino-americanos e caribenhos no comércio justo. 50 Conversamos, durante o almoço, a respeito da filha do produtor que estudava na mesma universidade outrora cursada por Juan (ela iria se formar em engenharia de alimentos). O sócio também comentou que uma parcela, em sua região, custava 1.500 soles (US$ 500) por hectare. 51 Este poço serviria para armazenar as águas resultantes do beneficiamento do café. Isso as impediria de atingir os rios.

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caminho, o produtor recolheu uma garrafa de plástico jogada em sua propriedade. Logo

em seguida, o técnico acionou o GPS e comentou: “é importante saber a altura, pois

acima de 2.200 metros é melhor plantar granadilla e não café”. O aparelho eletrônico

marcou 2.190 metros.

Seguimos morro acima, em direção à chacra do tio desse sócio. A conversa de

Juan com esse senhor foi feita quase que inteiramente em quéchua, intercalada com

comentários que recebia deste técnico em espanhol. Durante a visita ao cafezal, ele

sugeriu ao agricultor que plantasse mais árvores de granadilla: “dá mais dinheiro”,

conclui o técnico a respeito desse cultivo, ainda observando: “a qualidade do café é boa,

mas o rendimento é baixo nessa altura”.

Foto 12 – Juan inspecionando as instalações Foto 13 – Informando a altura da chacra

Nessa chacra, a sujeira “inorgânica” era difícil de ser percebida. No final da

visita, Juan repassou ao sócio suas recomendações: (1ª) “poda seletiva” (não pegar os

ramos velhos) e “poda total” em plantas determinadas pelo técnico, (2ª) “barreiras

naturais”, (3ª) composto orgânico no adubo e (4ª) melhor limpeza das instalações.

Terminada a visita, descemos e nos encontramos com Mario e Raul no local onde

estavam estacionadas as motos. Um sócio, dono de uma lanchonete ao lado, nos

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ofereceu um delicioso café. Juan brincou com ele dizendo que eu era um inspetor

estrangeiro; o associado reagiu com reverencia.

1.8 Lucmabama

No dia seguinte, acordei cedo, ainda de madrugada, e encontrei com os técnicos

na cooperativa. Pude conversar bastante com Jaime, um sujeito de 37 anos que se

identificou como um técnico, mas que não era considerando como tal pelos outros três

(eles o viam apenas como um sócio da Huadquiña). No meu entender, o classificaria

dessa maneira, pois realizava visitas de campo e administrava cursos para os associados.

É verdade que não tinha uma mesa no escritório, ao contrário dos demais, mas

igualmente trabalhava no local (era como uma exceção que parecia confirmar a regra,

em se tratando das propriedades socialmente reconhecidas dos técnicos). Ele não cursou

o terceiro grau; contou-me que aprendeu o que sabia na prática, entre os produtores, e

através de livros. Disse que gostava de ler e que queria fazer em breve uma faculdade.

Visitaria com ele dois sócios nesse dia.

Ainda no escritório junto aos técnicos, Jaime comentou comigo que os

produtores escolhiam a cooperativa à qual se filiavam independentemente da distância

da sede desta entidade até suas chacras. Por exemplo, os técnicos da Huadquiña iriam

realizar um curso para os sócios que viviam numa localidade para além de Quillabamba,

já na área considerada de selva baixa (diversas cooperativas bases da COCLA tinham

sua sede em Quillabamba). Não acompanhei este curso por questões de logística; ainda

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queria conhecer uma região cafeicultora no centro do país e uma viagem para lá de

Quillabamba iria tomar muito tempo.52

Conversei também com ele sobre o calendário anual das atividades da

cooperativa. Terminado o tempo presente das visitas de campo, durante quinze dias de

setembro eram realizados os “cursos de capacitação”. Como dito anteriormente, cada

curso tinha duração de um dia e era feito na chacra de um sócio, na qual eram reunidos

os produtores de dois a três comitês adjacentes. O curso era dividido em duas partes: a

“parte teórica” e a “parte prática”. Para o curso que seria realizado nos próximos dias no

local para além de Quillabamba, a parte teórica já havia sido previamente discutida com

os associados numa outra ocasião. Segundo os técnicos, era mais fácil ensinar “na

prática”, aos produtores, o conteúdo do curso. Os que não apareciam nos cursos, e

também nas assembléias, eram punidos financeiramente quando fossem receber o

dinheiro da venda de seu café.

Quanto ao conteúdo dos cursos, Jaime citou como exemplo os seguintes temas:

“como dar e o que dar de alimento para as minhocas, a poda, como escrever no diário e

o que é comércio justo”. Em outubro e novembro também não havia visitas de campo;

nesse período os sócios tinham que se preparar para as “inspeções internas” de

dezembro, realizadas por membros das cooperativas filiadas à COCLA. Em janeiro e

fevereiro, meses de chuva, era tempo de plantar o café. No final de março, chegavam os

inspetores estrangeiros para as “visitas externas” e as quais duravam uma semana. De

abril a julho era a época da colheita, com as visitas de campo recomeçando na primeira

semana de julho e terminando em agosto.

“Antes não havia tratamento técnico das parcelas”, comentou Jaime. O

significado de “tecnificar a agricultura” me foi explicado por ele através de exemplos:

52 Segundo Jaime, a competição entre as cooperativas aparecia principalmente em conversas informais, ou seja, ela quase nunca era explicitada, com a exceção do que se passava num campeonato de futebol (em dezembro) e nos jogos da feira COCLA.

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“controle orgânico das pragas, adubagem, poda, distanciamento com relação às chacras

não orgânicas e cultivo de árvores que servem de sombra para as plantas de café”. A

presença de árvores nos cafezais era tida como importante não apenas para proteger as

plantas dos raios solares, como também para impedir que as precipitações atingissem

com força o solo, levando embora os nutrientes tão essenciais para o desenvolvimento

dos cultivos.

Discutimos em seguida sobre a falta de chuva no país durante esse ano. Jaime

falou que o ano anterior havia sido bom para os produtores de café, mas que nesse a

agricultura não os sustentaria, o que fez com que muitos fossem até as cidades em busca

de outras oportunidades de ganhar dinheiro. A sua “parcela” estava em “transição dois”

e ele vendia atualmente seu café para a cooperativa sob o rótulo de “sustentável”

(sostenible). Perguntei o porquê de não plantar coca e me disse que antes, em Santa

Teresa, havia esse tipo de plantação, mas que nos lugares onde se deu esse cultivo “nada

mais crescia” e, além disso, “o clima aqui é frio para a coca”.

Nesse dia, visitamos os sócios do comitê de Lucmabamba. Saindo da

cooperativa e seguindo por volta de trinta e cinco minutos na estrada que beira o rio

Salkantay (responsável pela inundação de Santa Teresa em 1998) se chega a

Lucmabamba (cinco minutos antes de Sahuayaco, onde estive nos dias anteriores).53

Logo de cara, os técnicos discutiram sobre quais produtores cada um iria visitar. Segui

com Jaime e Mario. O primeiro sócio de Jaime não estava; vale ressaltar que todos os

sócios tinham uma placa de identificação na porta de suas casas.

Jaime me informou sobre os elementos de uma chacra orgânica “completa” ou

“ideal”. A laje “secadora” de cimento seria importante para controlar a umidade do café,

dado que com muita umidade o café demora a secar. O teto para a “planta de

53 Fui até Lucmabama na caçamba da caminhonete da cooperativa.

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beneficiamento” impediria que o calor mudasse a cor do produto.54 A “adubadora”

serviria para armazenar a polpa que envolve o grão, a qual era usada como adubo para

as suas plantas e as de mandioca, milho, entre outros cultivos. Havia também o

armazém onde as sacas de café eram guardadas protegidas do sol e da chuva.

Entramos num cafezal e, em seguida, ele comentou comigo sobre as “barreiras

vivas” (árvores de granadilla, por exemplo) e as “barreiras mortas” (paus e pedras) que

protegiam a terra não a deixando ceder durante as chuvas, o que acarretaria a perda de

nutrientes cruciais para o bom desenvolvimento das plantas. Estávamos numa

propriedade orgânica que, como todas as outras propriedades, teve baixa produção este

ano. A chacra era pequena, deveria “entregar” no máximo 14 quintais de café (cada

quintal corresponde a 46 quilos) à cooperativa, de acordo como fora estipulado por

algum técnico. 55 Seu proprietário estava colhendo o grão num local distante. “Quero ver

os documentos”, disse Jaime gentilmente ao pai do sócio, para logo em seguida

perguntar ao irmão mais novo dele: “quem foi à capacitação, seu irmão?”.

O código do associado, tal como aparecia na placa pendurada na porta de sua

casa, era 102.SU.183. “Quantas parcelas seu irmão tem?”, perguntou Jaime. “Três”,

respondeu o irmão do sócio. “As três estão certificadas?”, questionou Jaime para logo

em seguida verificar a resposta nos documentos entregues pelo menino. O cafezal em

questão tinha vinte anos e era todo da variedade “típica”.56 Maio foi o auge da colheita e

março o início. A propriedade tinha três hectares, com 2,8 cobertos de café. Em 2004,

foram 41 quintais colhidos; em 2005, a estimativa era de 14 quintais e para 2006, a

54 A retirada da polpa que envolve o café colhido (“em cereja”) o transforma em café “pergaminho”. É esse o trabalho de beneficiamento feito nas propriedades dos agricultores. A máquina usada para conduzir esse processo se chama justamente “despolpadora”. 55 Dos 20 sócios do comitê de Lucmabamba, um deveria entregar (em 2005) nove quintais para a cooperativa, três entre 10 e 15 quintais, três entre 15 e 20 quintais, dois entre 20 e 25 quintais, dois entre 25 e 30 quintais, três entre 30 e 35 quintais, dois entre 35 e 40 quintais e quatro entre 50 e 55 quintais. 56 No Peru, esta é uma variedade comumente presente nos cafezais e, hoje em dia, bastante valorizada, por conta da qualidade dos seus grãos. Contudo, durante certo tempo, outras variedades foram preteridas quando a produtividade dos cafezais era a variável dominante, em especial, durantes os anos 80.

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previsão dos técnicos, com base nas flores de café que podiam ser observadas, apontava

para 41 quintais. Nas suas três parcelas, o sócio estava certificado para produzir até 35

quintais em 2005. Ele e seus familiares praticavam o ayni e também empregavam

trabalhadores nos seus cafezais. A altura da parcela na qual estávamos era de 1.904

metros. No momento, um quintal rendia 190 soles para o produtor (aproximadamente

64 dólares). Outra fonte de recursos era o mel de suas abelhas vendido para os

comerciantes que vinham até a propriedade ou que eram encontrados na cidade de Santa

Teresa. Além disso, o irmão mais novo do sócio montava uma mesinha no caminho dos

turistas que passavam numa trilha ao lado de sua casa (trilha de pedra feita pelos inkas,

por sinal) e aos quais ele vendia suas frutas e bebidas industrializadas que comprava na

cidade.

Foto 14 – Jaime inspecionando a planta de beneficiamento

Jaime me explicou o sistema em torno da “planta de beneficiamento”: o café é

colhido e com casca, isto é, ainda em cereja, é colocado no “poço de cerezo”. Insere-se

água no poço, o café entra num moinho manual, dele saí “pilado” e caí no “poço de

fermentação”. Por se tratar de uma região de altura elevada, o grão fermenta em torno

de 15 a 18 horas. Logo depois, é lavado e a água que sobra (aguas miel) é armazenada

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num poço para não entrar em contato com o rio, de acordo com as normas das agências

de certificação orgânica. O café é então levado para secar. Com sol durante o dia todo,

em três dias está pronto para ser guardado em sacas no armazém no produtor.

Chegamos à propriedade de outro sócio, o qual estava “devolvendo ayni” num

local distante. Em outras palavras, ele se encontrava retribuindo a ajuda laboral que

alguém lhe teria feito num momento anterior. Vale ressaltar que alguns agricultores se

dedicavam ao comércio na cidade e outros trabalham com os turistas. Todos estes,

segundo o técnico me informou, “deixam as chacras de lado”. Ainda de acordo com ele,

“melhor é conversar com o dono, e não com seus filhos”.

Entramos, logo em seguida e para minha surpresa, na propriedade de Basílio, o

mesmo produtor cujos grãos sostenibles estavam expostos na feira da COCLA. Ele

estava podando as plantas de café numa de suas “parcelas”. Seu filho nos levou até ele.

Nesse pedaço de terra cultivavam o grão desde a reforma agrária (de 1963); o pai do

agricultor começou a plantá-lo nesse período e passou em seguida suas propriedades

para seus filhos. No ano anterior (2004), Basílio entregou 22 quintais à cooperativa,

nesse ano a previsão era de 11 quintais a serem entregues e para 2006 ele previa 25, o

mesmo número da sua cota. O “caderno do produtor” de Basílio não estava passado a

limpo e isso deveria ser feito “até a próxima semana”, lhe avisou Jaime. Tal prática,

segundo o técnico, era bastante comum: “eles não gostam de escrever”, comentou.

Transcrevo parte da conversa entre ele e Basílio:

- Quantos abacateiros você tem na parcela 2? (Jaime) - Uns setenta, oitenta abacateiros. (sócio)

Jaime anotou 75. A aproximação era uma prática comum entre os técnicos. Com

relação aos “aspectos culturais”, ele escreveu o seguinte, depois de questionar o sócio:

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“assembléia, fainas, costumes”. A altura da parcela era de 2.045 metros. Agora

transcrevo um diálogo em torno do “plano de produção”.

- O que vamos fazer Don Basílio? (Jaime) - Poda. (sócio) - Qual outra tarefa? (Jaime) - Trabalhar entre setembro e dezembro em um hectare de milho. (sócio) - Tem que fazer o poço de cerezo! (Jaime) - Em dezembro faço. (sócio)

O número mínimo de tarefas que o sócio tinha que cumprir, enquanto “plano de

produção”, eram sete. Jaime repreendeu mais uma vez o produtor pelo fato dele não

passar a limpo no “caderno de registro” aquilo que diariamente anotava num outro

caderno. “No curso ensinam como usar o caderno (de registro)”, comentou Basílio. Os

sócios tinham que anotar basicamente tudo o que faziam com relação à agricultura. Na

“ficha de recomendação” Jaime escreveu:

(1) Teto para a planta de beneficiamento (2) Tem que juntar os lixos espalhados pela propriedade na lixeira inorgânica (3) Construir o poço de cerezo (4) Fazer placa de identificação do sócio de madeira e não de papel (5) Cumprir com o plano de produção

Tudo isso deveria estar em dia até a primeira semana de dezembro, quando começava a

“inspeção interna” (ou “controle interno”) feita entre as cooperativas bases da COCLA.

Jaime seguiu até outro sócio e, no caminho, encontrei com Mario terminando

uma de suas visitas (a última sua do dia). O associado em questão era vizinho e irmão

de Basílio. Ele estava em “transição dois”, ou seja, no próximo ano seria “orgânico” (a

floração do seu café com a qual nos deparávamos resultaria num produto que iriam ser

vendidos sob este rótulo). Por conta disso, teve de assinar, com o polegar direito, a

“declaração jurada do produtor orgânico”. Neste documento aparecia especificada a

quantidade de café certificado que deveria entregar à cooperativa. Este agricultor, assim

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como seu irmão, anotava tudo num “caderno auxiliar”. Contudo, deveria passar a limpo

as informações no “caderno de registro das atividades diárias”, disse Mario que, por

sinal, foi quem concebeu esse caderno. Já a “ficha de campo” fora produzida pelo

“comitê técnico” da COCLA.

Foto 15 – A “declaração jurada”

Como de praxe, o “controle interno” foi quem aprovou o sócio de “transição

um” para “transição dois”. Em sete de julho (quase um mês antes), esse produtor esteve

num curso, também freqüentado por seu irmão, cujos temas foram: comércio justo,

manejo de registros, poda de café, entre outros assuntos. Mario comentou com eles que

era importante ter um banheiro em boas condições, por isso a necessidade de arrumarem

o teto caído do toalete da família. “Não podemos encontrar lixos pela chacra”, avisou o

técnico. “As crianças levam o lixo”, respondeu o sócio.

Mario comentou, na frente do produtor e de sua esposa, sobre a “preguiça”

destes em escrever e registrar suas atividades diárias. Ele passou então a fazer um

“controle pedagógico” em cima do sócio. “Tem que saber sobre o uso das plantas

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medicinais”, questionou o técnico para logo em seguida perguntar sobre as propriedades

medicinais das plantas que o agricultor dizia dispor. Ele e sua mulher pareciam

conhecer bem tais propriedades. “Conhecem zonas de barreira?”, perguntou Mario.

Acontece que todos os vizinhos desse produtor eram orgânicos, daí que não havia, para

sua chacra, “risco de contaminação” por produtos químicos.

Mario me falou da importância de se “respeitar as tradições, a cultura”. Citou

como exemplo el pago a pachamama (“pagamento à mãe-terra”, em quéchua) e

perguntou ao sócio e a sua esposa se praticavam esses rituais (eles responderam que

não). “O que podem cumprir este ano?”, questionou o técnico para logo em seguida

completar: “quais são os defeitos?”. Algumas das sete recomendações indicadas por

Mario, e que deveriam estar prontas até dezembro, foram:

(1) Ampliar o armazém (2) Usar o registro – (“o espelho do produtor”, nas palavras de Mario) (3) Fazer o letreiro de identificação da parcela (exigência das certificadoras)

Voltei com Mario andando até Santa Teresa. Conversamos longamente pelo

caminho. Primeiramente me informou que a região em torno dessa cidade era

antigamente uma hacienda (fazenda, em espanhol), cujo dono plantava cana-de-açúcar e

produzia aguardente. Este teria “castigado” com freqüência seus trabalhadores e

mandado matar os que se juntassem aos “rebeldes”. Mas foram justamente estes

últimos, como era notadamente o caso de Hugo Blanco, que para este técnico

inspiraram a “rebelião popular”. No seu entender, e de muitos peruanos com quem

conversei, se os fazendeiros não fossem tão violentos com os camponeses essa reforma

não teria acontecido. De acordo com Mario, a reforma agrária deu em média três

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hectares para cada camponês.57 Nas partes altas, era possível ter 100 hectares com a

autorização do Ministério da Agricultura, para pasto e conservação ambiental. Não era a

toa que “no alto” estavam os gados dos camponeses e a paisagem era bastante

“selvagem”.58

“A venda de café é muitas vezes insuficiente para a reprodução da família”,

ressaltou Mario. Contudo, ele via o comércio justo como algo imprescindível para os

sócios da cooperativa. Já no final da nossa conversa, o técnico chamou atenção para um

problema. O preço atual do café no mercado interno estava mais alto do que na Bolsa de

Nova Iorque, dado a pouca produção no país.59 Esse descompasso “anularia” as

vantagens do comércio justo. “O produtor desanima: é todo um esforço para vender pelo

mesmo preço de quem não é certificado”, comentou. “Mas isso não ocorre todo ano”,

disse apontando para o fato de que o “orgânico mantém os preços do café”. De acordo

com ele, todos os cafés dos sócios já estavam vendidos, mesmo com os cafezais ainda

57 Ele esta se referindo à reforma agrária local de 1963 e não à que atingiu o país no final dessa década (através do governo militar instaurado em 1968). No começo dos anos 60, a província de La Convención, no departamento de Cuzco, contava com mais de 100 sindicados de camponeses e que, em 1962, iniciaram uma verdadeira rebelião popular em prol da reforma agrária. Hugo Blanco, um sujeito de origem mais abastada, foi o líder desta revolta que resultou na criação de uma lei em 1963 que declarou La Convención como “zona inicial da reforma agrária”. Com base na minha experiência de campo, posso afirmar que nos rincões do Peru a narrativa comum sobre a reforma agrária enfatiza a libertação dos camponeses e trabalhadores de uma situação generalizada de exploração violenta. Já nos ambientes urbanos da costa peruana, a reforma agrária tende a ser vista como uma experiência fracassada de modernização da agricultura nacional. Ver La Reforma Agraria en el Perú de Matos & Mejía (1980) para uma visão obviamente mais apurada desse fenômeno. 58 Em frente à cooperativa fica a outrora sede da antiga hacienda Huadquiña. Uma provocação, perguntei diante da recorrência desse nome. Mario disse que sim. Ele também me contou que a cooperativa foi quem construiu a estrada pela qual estávamos andando, visando nela transportar a colheita de seus sócios. Sobre a questão do pago a pachamama, me falou que a própria cooperativa realizou esse ritual recentemente e que inclusive fora filmado por um turista estrangeiro. 59 O preço internacional de mercado do café arábico é o preço estabelecido no final de cada dia de negociação do contrato futuro “C” mais negociado da Bolsa de Nova Iorque (New York Board of Trade – NYBOT). O Peru produz basicamente apenas esse tipo de café. Os cafés da variedade robusta têm seu preço cotado na Bolsa de Londres (London International Financial Futures and Option Exchange – LIFFE). Em ambas as Bolsas se negociam “contratos futuros” que estabelecem de antemão o preço do café para datas padronizadas futuras (janeiro, março, maio, julho, setembro, novembro). Geralmente o contrato na “segunda posição” é o mais negociado nas Bolsas. Por exemplo, num dia qualquer de abril o contrato de café com vencimento (ou liquidação) em julho seguinte tende a ser o mais negociado e, dessa maneira, deve informar o preço do café nesse dia nas compras e vendas internacionais desse grão

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na fase de floração, dado os contratos que a cooperativa tinha feito com as empresas

compradoras de café certificado pelo comércio justo.

1.9 A realização de um ideal em torno de um mercado global certificado

No universo da agricultura orgânica certificada unem-se consumidores e

produtores de distintas partes do globo. Mas a crença nesse universo certamente não é

automática e nem depende apenas da sua tradução em valores econômicos. Isso vale

igualmente para consumidores e produtores. Uma afirmação de Marshall Sahlins (2007)

ilustra bem o valor predominante no ambiente consumidor dos grandes centros urbanos

existentes nos países desenvolvidos:

Vivemos hoje em um mundo que se encanta com objetos semioticamente construídos e culturalmente relativos, como o ouro, a seda, as cepas de pinot noir, o petróleo, o filé mignon, os tomates "primeira colheita" e a água pura de Fiji. Assistimos a uma construção da natureza por meio de esquemas culturais historicamente determinados, mas cujas qualidades simbólicas são transformadas em qualidades pecuniárias, cujas fontes sociais são atribuídas a desejos individuais e cuja satisfação arbitrária é travestida em escolha universalmente racional. Mas, como é impelido à competição pelo interesse financeiro, esse encantamento produz uma infinidade de objetos, enquanto ainda for possível metamorfosear as distinções sociais dos sujeitos e dos objetos em mercadorias rentáveis.

Certamente que a busca de uma distinção social não é a razão principal dos

produtores colocarem em prática a agricultora orgânica certificada; a narrativa feita ao

longo desse capítulo ilustra bem isso. Mas o demorado processo, de dois a três anos,

que geralmente envolve a certificação, dificilmente pode ser pensado exclusivamente

em termos dos valores econômicos que deve proporcionar aos seus participantes. O que

parece estar fundamentalmente em jogo na adoção desse modelo de cultivo é a relação

entre os cafeicultores e os técnicos que os assessoram. Isso porque a tradução da

agricultura orgânica certificada para os agricultores se mostra possível se levarmos

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principalmente em consideração a autoridade dos técnicos, a legitimidade de suas

práticas e o reconhecimento das representações que acionam em suas falas.

Em Paris, Chicago ou Nova Iorque, por exemplo, a partir do momento que as

pessoas amplamente consideradas representantes do que há de mais “moderno” passam

a consumir produtos orgânicos, é bem provável que essa prática se torne um recurso

eficaz de distinção social, de produção de identidades coletivas e de novos tipos de

gostos. No caso dos produtores, os técnicos se colocam como seus referentes na medida

em que reconheçam estes profissionais como legítimos mediadores de suas relações

com a produção de café. Através dos técnicos, pode-se dizer que uma concepção de

modernidade originária dos países desenvolvidos (no caso, a agricultura orgânica) acaba

vigorando entre os cafeicultores.

Afirmar que os agricultores vivem imersos num mundo que não se reduz ao

âmbito agrícola não deve ser nenhuma surpresa para qualquer antropólogo familiarizado

com uma literatura, que talvez tenha como ponto de partida as considerações de Robert

Redfield (1953), a respeito do meio urbano como algo constitutivo dos ambientes rurais.

Minha própria aproximação aos cafeicultores peruanos ilustra bem a atitude,

preponderante entre eles, de olhar com reverência para aqueles que parecem advir dos

centros decisórios, situados basicamente nas cidades dos países desenvolvidos, algo

aparentemente bastante evidente para qualquer um que queira vender seus cafés. Em se

tratando desse grão, “os gringos” que detêm então a palavra final. Uma OPEP dos seus

produtores deveria levar em conta algumas dezenas de milhões de pessoas com poder de

decidir igualmente a respeito do controle da produção.60

60 OPEP é a sigla da Organização dos Países Produtores de Petróleo. Em torno de três quartos da produção global de café é feita através de propriedades de não mais do que cinco hectares, ou seja, a maior parte de seus produtores não é formada por grandes latifundiários, mas sim por pequenos agricultores, uma situação que basicamente se repete no Peru, com suas mais de 150.000 famílias produtoras. (JNC, 2005) Isso significa que é praticamente impossível haver qualquer tipo de coordenação, entre as famílias cafeicultoras ao redor do globo, que produza os mesmos efeitos em torno do controle da

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66

A relação dos cafeicultores com os técnicos é uma mediação de uma relação

mais geral entre produtores e consumidores de café. A análise dessa mediação deve

justamente levar em conta determinados elementos próprios do universo simbólico dos

agricultores. Isso pode ser tanto o uso da língua e de trejeitos lingüísticos usados pelos

produtores quanto o tratamento destes com base em determinadas regras de etiquetas.

São estes pormenores que, em muitos casos, fazem com que os cafeicultores se sintam

confortáveis diante dos técnicos.

Diante disso, é possível que as imposições dos compradores de café, como é o

caso da certificação orgânica para os produtos que circulam dentro do comércio justo,

apareçam aos produtores como uma escolha que corresponderia aos ditames de suas

próprias consciências. É claro que as transações desse grão se articulam em torno de um

mercado de dimensões globais onde as intenções dos agricultores, a respeito de suas

ações, acabam se deparando com outras intenções dotadas de um maior poder de decidir

os sentidos desses intercâmbios. Sendo assim, dificilmente os cafeicultores deixarão de

ser o elo mais fraco do sistema econômico do qual fazem parte. Conseqüentemente, é

bem provável que continuarão a ter de se adaptar às novas modas surgidas entre os

consumidores do grão. Mas isso parece não impedir que os agricultores permaneçam

depositando suas expectativas nos mercados de café.61 Afinal, porque uma subordinação

qualquer deveria significar sempre um ato de imposição e nunca de esperança?

A resposta a esta pergunta também permeia os próximos capítulos. O primeiro

deles focaliza o que chamo das sagas dos produtores da selva central peruana que fazem

produção que aqueles alcançados pelos membros da OPEP. Os Acordos Internacionais do Café que vigoraram entre 1962 e 1989 certamente influíram na obtenção de melhores preços para os países produtores, ao terem estabelecidos determinadas cotas de produção para cada uma dessas nações. Mas pelos menos no Peru, com bem demonstrou Shoemaker (1981), essa situação serviu mais para fortalecer a burocracia estatal do que as famílias cafeicultoras ou suas respectivas cooperativas. 61 “Aliás, quem pensaria realmente em minimizar o papel do mercado? Mesmo elementar, é o lugar predileto da oferta e da procura, do recurso a outrem, sem o que não haveria economia no sentido comum da palavra, mas apenas uma vida ‘encerrada’ (o inglês diz embedded) na auto-suficiência ou na não-economia. O mercado é uma libertação, uma abertura, o acesso a outro mundo.” (Braudel, 1998 p. 12)

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parte da cooperativa que mais exporta café no país através do comércio justo. Esse

sistema comercial se mostrou fundamental para a continuidade das narrativas que estes

agricultores utilizam para dar sentido às suas ações ao longo do tempo. Já estas

narrativas estão imbricadas na própria identidade destes sujeitos enquanto cafeicultores.

Em outras palavras, a transformação deles de migrantes andinos em produtores de café

na selva central envolveu a constituição de dois quadros temporais de referência a partir

dos quais passaram a pensar seu passado, presente e futuro. O capitulo seguinte retrata

justamente a gênese destas percepções.

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Capítulo 2 – As sagas de um grupo de migrantes andinos na selva central

2.1 Introdução

A La Florida é a cooperativa peruana que mais exporta café dentro e fora do

comércio justo. Mas foi através de sua destacada participação nesse sistema comercial

que ela obteve seu reconhecimento nacional e internacional. Isso obviamente faz dela

um lugar bastante significativo para se perceber os sentidos desse sistema do ponto de

vista dos cafeicultores. Contudo, para compreender esse ponto de vista é preciso

primeiro entender como estas pessoas vieram a se identificar como produtores de café.

A questão que permeia este capítulo é apreender a gênese dessa categoria entre os

migrantes andinos ligados à Cooperativa La Florida. Isso porque a identificação destes

sujeitos com a cafeicultura está conectada com as narrativas que dão sentido às suas

ações ao longo do tempo e o comércio justo se colocou justamente como um elemento

fundamental para a continuidade destas narrativas.

Tratar da gênese da categoria “cafeicultor” significa não tomar como um dado a

identificação das pessoas com base nessa categoria. Tal naturalização tem acompanhado

os estudos sociológicos e antropológicos que focalizam os produtores de café. Estes

estudos abordam principalmente as condições “materiais” da vida destes agricultores e

suas lutas em busca da melhoria destas condições. Os títulos de alguns desses livros

exprimem bem a ênfase de seus autores em retratar os conflitos que envolvem os

cafeicultores: Peasant Politics – Struggle in a Dominican Village, de Kenneth Evan

Sharpe (1977); The Peasants of El Dorado – Conflict and Contradiction in a Peruvian

Frontier Settler, de Robin Shoemaker (1981).

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Em San José: Subcultures of a “Traditional” Coffee Municipality, Eric Wolf

(1956) igualmente cristaliza uma identidade dos produtores de café em torno da

produção e comercialização desse grão. Dessa naturalização derivam as duas principais

questões que são analisadas ao longo do texto. A primeira delas trata do que esse autor

identifica como uma cultura cada vez mais dependente de um único cultivo. Já o

segundo ponto tem a ver com o que acontece com essa cultura quando o produto

derivado desse cultivo perde importância no mercado mundial.

Wolf escreveu seu trabalhado tendo como referência um período em que os

preços internacionais do café estavam em queda. Sharp (1977) e Shoemaker (1981), por

sua vez, conduziram suas pesquisas numa época de altos preços do grão. De qualquer

maneira, ambos acabam adotando outras variáveis para também pensar as dificuldades

em relação à subsistência dos produtores. O primeiro deles se concentra na escassez de

terra e no caráter sazonal da cafeicultura, já o segundo elege o que ele chama de

“colonialismo interno”.

Estes três autores compartilham uma mesma visão economicista que permeia os

trabalhos acadêmicos sobre o comércio justo. Em todos estes casos os quadros de

referência dos produtores parecem derivar basicamente de suas circunstâncias

materiais.62 Dito de outro modo, as atitudes dos agricultores são encaradas como tendo

como horizonte principal a superação de uma determinada conjuntura econômica. Mas

como bem colocou Marshall Sahlins (1987), uma conjuntura pode ser vivenciada com

base em referenciais que dão sentido a um período de tempo mais amplo em torno da

vida das pessoas. Ao levarmos em conta a “longa duração” dos processos históricos

vividos pelos cafeicultores, podemos perceber os significados que os acompanham para

além das situações nas quais se vêem envolvidos.

62 A “crise internacional no preço do café” é o contexto por excelência no qual os textos sobre o comércio justo procuram enquadrar as ações dos cafeicultores.

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No caso dos produtores destacados neste capítulo, eles encaram suas ações ao

longo do tempo através de noções como a de “progresso” e “desenvolvimento”. Em

outras palavras, estes agricultores adotam referenciais associados ao campo semântico

da modernidade para dar sentido aos seus projetos individuais ou coletivos. Isso envolve

um reconhecimento de que não desfrutam de condições de vida que possam ser

identificadas a este campo semântico.63 O que suas sagas exprimem são justamente os

seus esforços em busca dessas condições de vida para si e seus familiares. Trata-se de

narrativas através das quais qualquer conjuntura é principalmente vista com base numa

perspectiva de longo prazo.

2.2 Modernos e atrasados

A sede da Cooperativa La Florida fica na cidade de La Merced. Ela é um lugar

de convergência das coisas e pessoas que circulam pela região da selva central.64 O fato

de abrigar o único terminal rodoviário que liga as três provinciais dessa região reflete

bem essa sua centralidade dentro desse território mais amplo. La Merced esta localizada

a 305 quilômetros de Lima através de uma estrada asfaltada bastante sinuosa que cruza

a cordilheira andina; esta rodovia é considerada o trajeto mais curto entre a capital do

país e a floresta amazônica. Nesse agradável centro urbano de aproximadamente 20.000

habitantes e capital da província de Chanchamayo se concentram também as agências

63 De acordo com James Ferguson (2006 p. 168): “To say that people live lives that are structure by a modern capitalist world-system or that they inhabit a social landscape shaped by modernist projects does not imply that they enjoy conditions of live that they themselves would recognize as modern”. 64 “A nivel de la apropiación del espacio, encontramos que desde la época colonial hasta la actualidad se ha dado un proceso de creciente articulación de las diversas áreas que hoy componen la selva central, el cual ha culminado en la creación de un espacio regional cuyas vías de comunicación, flujos migratorios y comerciales, circulación de capitales, bienes y tecnologías tienen como punto nodal a la ciudad de La Merced.” (Santos & Barclay, 1995 p. 331)

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turísticas e hotéis de melhor padrão da selva central.65 Trata-se da principal porta de

entrada para os visitantes desse espaço regional. Mas para adentrar no distrito onde vive

a grande parte dos sócios da cooperativa é preciso percorrer pelo menos mais 25

quilômetros na mesma rodovia asfaltada que passa por La Merced.

Mapa I – As cidades de La Merced e Perene (no alto à direita)

O distrito de Perene é o maior da província de Chanchamayo e representa 60%

ou 115.874 hectares da sua área total. (Desco, 2005a) É verdade que o território (de

aproximadamente 35.000 hectares) onde vivem os sócios da Cooperativa La Florida

também abarca algumas pequenas porções de outros dois distritos vizinhos. Mas a

maior parte desses produtores de café reside em Perene. Ao longo da segunda metade da

década de 2000, estiveram associados à cooperativa por volta de 1.200 homens e

mulheres. O censo nacional de 2007 oferece alguns dados bastante reveladores sobre a

população desse distrito aos olhos quantitativos do poder público.66 Tais dados se

mostram ainda mais importantes se considerarmos como um ponto de vista que pode

65 Chanchamayo é uma das três províncias que formam a “região sub-administrativa da selva central”. As outras duas são Satipo (que assim como Chanchamayo pertence ao departamento de Junín) e Oxapampa (pertencente a Pasco). Essa é a delimitação não apenas oficial da selva central, como também aquela mais usada no país, principalmente por aqueles que vivem ou transitam nessas três províncias. Uma obra bastante detalhada sobre essa região é o já citado livro de Fernando Santos e Frederica Barclay (1995) intitulado Ordenes y desórdenes en la Selva Central: Historia y economía de un espacio regional. 66 As informações referentes a este censo se encontram disponíveis na página eletrônica do Instituto Nacional de Estatística e Informática (www.inei.gob.pe).

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embasar políticas públicas, intervenções de organizações não-governamentais e

trabalhos acadêmicos sobre essa localidade.

De acordo com este censo, o número de habitantes de Perene é de 56.292

pessoas. Na sua área rural (nos chamados anexos e nas “comunidades nativas”) moram

51.2% desses indivíduos e nos espaços urbanos (a capital distrital e os “centros

povoados”) os restantes 48.8%.67 Quase a metade dos residentes do distrito é formada

de migrantes e 7.1% têm algum parente vivendo em outro país. As principais ocupações

de seus moradores são a de trabalhador não-qualificado ou informal (36.1%), agricultor

(33.8%), trabalhador do setor de serviços (9.7%) e trabalhador da construção civil

(7.8%). Em relação à população economicamente ativa, 61.8% trabalham na agricultura.

Daqueles que têm entre seis e 11 anos de idade 93.2% freqüenta o sistema educativo, de

12 a 16 anos essa freqüência é observada em 84.3% dos casos e de 17 a 24 anos em

23.8%. O analfabetismo atinge 4.5% dos homens e 13.9% das mulheres. Na zona rural

11.3% dos cidadãos são analfabetos e na urbana 6.3% não sabem ler nem escrever. As

pessoas do sexo masculino com ensino superior completo ou incompleto correspondem

a 14.5% da população do distrito e as do sexo feminino 11.9%.68

A posse de algum tipo de seguro de saúde pode ser verificada em 25.7% dos

homens e em 28.6% das mulheres (não existe um serviço público de saúde gratuito e

universal no Peru, ao contrário do que acontece no Brasil, por exemplo). No espaço

urbano 22.8% dos indivíduos estão cobertos por um plano dessa natureza e no campo

esse número é de 31.1%. Aproximadamente 100% dos casos tratam-se dos planos

públicos Seguro Social de Saúde (EsSalud) e Sistema Integrado de Saúde (SIS). O

67 De acordo com a página eletrônica da Municipalidad Distrital de Perené (www.muniperene.gov.pe), vivem na capital do distrito ao redor de 12.000 pessoas. Ainda segundo essa página, Perene conta com 40 “comunidades nativas”, oito “centros povoados” e mais de 140 “anexos”. 68 “En el distrito de Perené funcionan 188 centros educativos. Los profesores asignados son un total de 572 para 13.738 alumnos”. (Desco, 2005a p. 31) A grande maioria destes centros educativos é de escolas de primeiro grau e o restante de colégios de segundo grau. Há um modesto instituto de ensino superior na capital do distrito.

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primeiro é dirigido para aqueles, normalmente trabalhadores assalariados, capazes de

arcar com uma determinada mensalidade e cobre 5.7% e 2% da população urbana e

rural do distrito, respectivamente. O segundo é gratuito e destina-se aos que vivem em

condição de “pobreza extrema”. Ele abarca 15.3% daqueles que residem nos centros

povoados e 28.2% dos que moram nos anexos ou comunidades nativas.69

Ao redor de 80% das pessoas do distrito têm o espanhol como língua materna; o

restante, os idiomas andinos ou amazônicos. Um pouco mais do que a metade dos

moradores se identifica como católico; um terço se define evangélico.70 As mulheres

(em idade fértil) que vivem em Perene têm 2.5 filhos em média (2.2 na área urbana e 2.8

no campo). Em relação às residências, 63% têm piso de terra e 26.7% de cimento. Por

volta de um terço das casas conta com água encanada e ao redor da metade desses

imóveis esta ligada a uma rede elétrica. Aproximadamente 70% dos lares contam com

aparelhos de rádio, 40% possuem televisão, 9.5% geladeira, 4.1% telefone fixo, 18.7%

telefone celular e 0.3% tem acesso à internet. Menos do que 20% dos domicílios esta

conectado à rede pública de saneamento e 73.3% usa lenha para obter energia para

cozinhar.71

Enquanto um ponto de vista próprio do poder público, o censo nacional de 2007

encara o distrito de Perene como um espaço economicamente organizado ao redor da

69 “De los 18 establecimientos que el Ministerio de Salud ha instalado en el distrito de Perené, apenas uno es clasificado como centro de salud, mientras que los 17 restantes son puestos de salud.” (Desco, 2005a p. 29) Os hospitais mais próximos do distrito se encontram em La Merced e em outras duas cidades localizadas também em distritos vizinhos. 70 “En años recientes, todo el ámbito del Perené ha sido impactado por una fuerte presencia de la religión evangélica. Comunidades íntegras pertenecen tanto a la Iglesia Evangélica Adventista como a la Pentecostal.” (Desco, 2005 p. 346) 71 A título de comparação, alguns dados deste mesmo censo, só que a respeito do país como um todo, ajudam a entender melhor as informações a respeito do distrito de Perene e, nesse sentido, a visualizar sua posição em relação à média nacional. Por exemplo, 75.9% dos peruanos vivem em ambientes urbanos e 24.1% em espaços rurais; 31.1% freqüentaram o ensino superior; 7.1% são considerados analfabetos; 42.3% possuem seguro saúde; 83.9% têm o espanhol como língua materna e 15.9 outras línguas; 72.1 têm rádio e 61.1% televisão; a posse de telefone fixo é encontrada em 27,7% dos habitantes e de celular em 42.9%; 6.8% possuem conexão à internet e 32.4% têm geladeira; 55.6 utilizam fogão a gás e 30.2% a lenha; 81.3% são católicos e 12.5 evangélicos; a média de filhos por mulher em idade fértil é de 1.7; 43.4 das casas têm piso de terra e 38.2% de cimento.

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agricultura. Um número relevante dos seus habitantes possui algum parente no exterior

e isso o enquadra dentro de uma dinâmica própria do país.72 A educação e a saúde estão

focalizadas em determinados segmentos da população e não se encontram

universalmente disponíveis. Pode-se dizer que o distrito é composto de uma minoria

indígena “nativa” bastante expressiva. Já a taxa de natalidade de Perene não se mostra

muito elevada para um ambiente ligado ao campo. As informações a respeito das

condições de vida de seus moradores revelam um cenário onde diversos serviços

públicos e outras comodidades normalmente associadas ao mundo moderno não são

amplamente disseminados.

Foto 16 – La Florida (um dos oito centros povoados do distrito de Perene)

Para alguém de fora acostumado com essas comodidades, é bem provável que

lhe saltará aos olhos a precariedade não só das casas dos habitantes de Perene como

também daquilo que existe ao redor destes imóveis.73 Praticamente tudo o aparecerá

72

“Segundo pesquisa de opinião do Instituto Apoyo, um dos mais conceituados do Peru, pelo menos 75% dos jovens peruanos deixariam sua terra natal se pudessem, para tentar a sorte em outro país.” (trecho extraído de uma reportagem da BBC Brasil de 05/06/2006 e publicada em www1.folha.uol.com.br/folha/ bbc/ult272u53828.shtml) 73 “Los niveles de pobreza en el ámbito distrital afectan indistintamente a colonos y nativos, aunque estos últimos presentan índices negativos más agudos. Según el indicador de las necesidades básicas insatisfechas (NBI), el 79% de la población de la provincia de Chanchamayo es pobre. En el caso del distrito de Perené, el 88,3% de los 6.345 hogares censados presenta por lo menos una NBI. En total, el 90,5% de la población distrital se halla en esta situación. Respecto a la incidencia de pobreza, los datos

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como um remedo ou simulacro de algo mais acabado: as estradas são todas de terra e

esburacadas, os solos se encontram bastante desgastados, não há nenhum hospital nas

redondezas e muitas escolas estão literalmente caindo aos pedaços. Os estabelecimentos

comerciais de Perene oferecem basicamente aquilo que um pobre morador pode

comprar; não é sem razão que os seus principais atrativos turísticos se resumem às suas

cachoeiras e “comunidades nativas”.74 Trata-se de um passeio padrão, vendido pelas

agências turísticas localizadas em La Merced ou em Lima, que leva os viajantes a

conhecer, em um dia, “a natureza e a tradição” ao redor do rio que dá nome ao distrito.

Foto 17 – A área rural do distrito

departamentales de la Encuesta Nacional de Hogares para Junín, departamento en que se halla Perené, muestran una leve disminución de esta, aunque aún se mantiene por encima de los promedios nacionales.” (Desco, 2005b p. 343) 74 Na verdade, apenas uma comunidade nativa é visitada nos passeios guiados. Evidentemente que esta comunidade se encontra previamente preparada para receber os turistas de acordo com uma imagem estilizada daquilo que seria uma tribo indígena. A página eletrônica de uma agência de turismo localizada em Lima oferece a seguinte descrição da visita de um dia ao “vale do Perene” incluída num passeio (chamado Alternativo) de três dias na selva central: “06:00 hours. Arrival to La Merced, reception and transfer to accommodation chosen. 08:00 hours. Breakfast. 09:00 hours. We start the tour observing Native Dormido which is an amazing geological formation. We continue the path for Yurinaki Port, after a brief walk; meet the charming and surprising Bayoz and Velo de la Novia cataracts, relaxing in crystal waters and natural pools. Return to enjoy a typical lunch. We move to Zutsiki Port for a boat ride to an outboard motor on the Perene River. Arriving at the Native Community Ashaninka “Pampa Michi” where we learn their history, enjoy their native music and dance. We end our day in this place enjoying in a typical Ashaninka campfire with live music. Finally, we visit a Mini Coffee Processing Plant and fruits (tasting and buying) return to accommodation. Overnight.” (www.butterflyexpedictions.com) Para um estudo a respeito de uma comunidade nativa vizinha a esta visitada no passeio, ver Aranda (1978).

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Acontece que também existem os visitantes de Perene que vão atrás de algo

ligado ao que tem de “moderno” do ponto de vista desses olhares externos. Trata-se dos

cafeicultores e demais pessoas envolvidas com o comércio de café, além de

representantes de organizações não-governamentais, interessados em conhecer de perto

a nacional e internacionalmente reconhecida experiência da Cooperativa La Florida. Um

artigo publicado num jornal suíço ilustra bem esse amplo reconhecimento atingido pela

cooperativa. Transcrevo abaixo um trecho desse artigo:

Qui ne connaît pas La Florida ? Pour les accros à la caféine équitable, le nom de cette coopérative péruvienne de Haute-Amazonie est presque devenu synonyme de petit noir du matin. Vendu aux quatre coins de la planète, le café La Florida fait vivre quelque 2 800 familles, stimulant un renouveau coopérativiste dans tout le pays. Presque éteint il y a dix ans, ce secteur s’affiche désormais numéro un mondial de la production biologique et du commerce équitable. Un succès qui n’est pas qu’économique, puisque le modèle La Florida s’appuie sur un fonctionnement démocratique et un concept de « développement intégral », où les gains obtenus par la commercialisation alternative du café servent à assurer diversification, formation et progrès sociaux. (Pérez, 2006)

Minhas visitas ao povoado de La Florida e demais espaços onde vivem os sócios

da cooperativa não podem então ser compreendidas sem levar em conta o

reconhecimento dessa organização para além desse contexto local. Aos olhos desses

agricultores eu seria quase sempre associado a um estrangeiro interessado em conhecer

de perto as experiências em torno dessa entidade. Na verdade, qualquer gringo que

fosse até a região para ver outra coisa que não suas cataratas e comunidades nativas

muito provavelmente também seria imediatamente identificado dessa maneira. “Você

esta com a cooperativa?”, me perguntavam freqüentemente muitos dos moradores de

Perene. As representações que os membros da cooperativa têm do que entendem como

“moderno” devem ser compreendidas levando em conta justamente as visões que

aqueles (estrangeiros ou peruanos) que estes vêem como representantes da

“modernidade” têm deles. Nestes olhares externos a vanguarda e o atraso se misturam.

Isso porque os produtores são tanto associados a uma realidade vista como precária

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quanto fazem parte de uma organização admirada aos olhos de quem eles têm bastante

consideração.

2.3 A modernidade da cooperativa

No dia 16 de agosto de 2005 fui conhecer o pueblo de La Florida.75 Trata-se de

um dos oitos “centros povoados” que existem no distrito de Perene e lugar de origem da

cooperativa que leva o seu nome. Saindo de La Merced chega-se até esse local em

aproximadamente duas horas de viagem num dos automóveis que fazem esse percurso

diariamente. Parte do trajeto é feita pela única rodovia asfaltada da selva central e o

restante através de uma estrada de terra mantida com os tratores da cooperativa e que

são abastecidos com o combustível comprado com os recursos adquiridos pelo pedágio

que existe na entrada dessa pista. Estava portando uma carta de recomendação escrita

por um funcionário da La Florida numa das páginas do meu caderno de campo e na qual

ele dizia o seguinte:76

Amigo Gorbachov!

Antes te envio un cordial saludo en igual a tu familia. Aprovecho también para pedirte un favor por mi amigo Ricardo Cruz q`vienne de visita. Que le de una atención necesaria en lo q´ es planta de Beneficio en Humedo. Sin otra reitero mis saludos y agradecerte de antemano tu atención. Atte. Leonel

75 La Florida se constituiu como um centro povoado em 1964. Essa informação me foi passada pelo seu “prefeito”, o qual também me informou que em 2005 os “gastos” deste pueblo foram de 12.320 soles e seus “investimentos” da ordem de 4.000 soles. No ano seguinte, esses valores ficaram em 26.000 soles e 8.000 soles, respectivamente. Já para 2007, a previsão era de que teria 50.000 soles à disposição no total. Um trecho extraído de uma notícia publicada no diário peruano El comercio de 12 de maio de 2008 trata justamente da situação então vivenciada pelos prefeitos dos centros povoados: “Dos mil alcaldes de los centros poblados del país se reunirán en Lima el 30 de este mes para debatir sobre las dificultades por las que atraviesan sus gestiones, porque la Ley Orgánica de Municipalidades no especifica sus funciones y por la escasa transferencia de recursos económicos que reciben de las municipalidades provinciales.” 76 O capítulo quatro focaliza justamente a transformação desse funcionário em um comerciante de cafés especiais. Ele foi meu primeiro contato entre as pessoas envolvidas com a Cooperativa La Florida e, através dele, acabei conhecendo outros sujeitos também ligados a essa organização, em especial, os jovens familiarizados com um ambiente urbano de classe média, como era justamente o caso desse sujeito que, fortuitamente, conheci assim que cheguei à selva central advindo do sul do país.

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78

Foto 18 – O centro povoado de La Florida visto do alto

Assim que o automóvel entrou no povoado, seu motorista me levou direto ao

encontro de Gorbachov (apelido do sujeito também chamado de gringo, por conta

justamente de suas características físicas distintas do padrão andino e amazônico).

Encontrei-o em frente ao galpão que abrigava a principal “planta de beneficiamento

úmido” da Cooperativa La Florida, uma infra-estrutura da qual era o responsável. Esse

equipamento e outro de menor tamanho aparecem descritos da seguinte maneira na

página eletrônica da cooperativa:

Planta de Beneficio en Húmedo “LA FLORIDA”, ubicado en el Centro Poblado La Florida, distrito Perené en la provincia Chanchamayo , Región Junín. Su construcción obedece a la necesidad de lograr la concentración del café desde las distintas fincas para su proceso homogéneo y mantener la calidad de nuestro café. Esta Planta centralizada actualmente beneficia a las siguientes comités de Desarrollo Integral: La Florida, Alto la Florida, Chincarmas, Miguel Grau, José Olaya, las Palmas, José Galvez, Alto Incariado, Buenos Aires, Alto Yurinaki, Los Zorzales y Sancachari. Planta de beneficio en húmedo Eneñas, Ubicado en el Centro Poblado de San Miguel de Eneñas, distrito de Villa Rica provincia de Oxapampa Región Pasco. Esta planta está al servicio de los socios del comité de Desarrollo Integral Eneñas. (www.lafloridaperu.com)

Logo de cara fui informado de que o normal seria a diretoria da cooperativa

autorizar as visitas à “planta”, mas prosseguimos mesmo assim. Gorbachov então abriu

a porta de ferro do galpão e dei de frente com um ultramoderno sistema de

processamento de café que me deixou boquiaberto, por conta principalmente do que me

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parecia um contraste evidente entre a modernidade desse sistema e a rusticidade do

povoado ao seu redor.

Foto 19 – O galpão Foto 20 – A planta no seu interior

La Florida é um “centro povoado” relativamente pequeno se comparado com os

outros que existem no distrito de Perene. Na época da minha visita, nele viviam em

torno de 200 pessoas; 60 eram sócios da cooperativa (segundo me disse um de seus

habitantes que trabalhou como técnico desta organização de produtores).77 Essa

presença avassaladora de associados da La Florida se refletia na inexistência de

qualquer “comerciante intermediário” de café no local, ao contrário do que podia ser

percebido nos demais pueblos do distrito. É verdade que, em alguns aspectos, não

diferia muito de outros centros povoados ao seu redor. Isso porque dispunha de

determinados estabelecimentos públicos e privados que podiam ser encontrados em

qualquer um desses aglomerados urbanos. Um exemplo era o colégio público de

primeiro e segundo grau onde estudavam aproximadamente 400 alunos. A maioria

destes estudantes residia nas propriedades rurais situadas nos “anexos” mais próximos e 77 Com base num relatório de 2006 do departamento técnico da cooperativa, é possível afirmar que o “comitê zonal” de La Florida tinha, nesse ano, 61 sócios: 49 “produtores orgânicos”, oito no “terceiro ano de conversão”, dois no segundo e outros dois no primeiro. Vale ressaltar que a cooperativa contava com 36 “comitês zonais (ou locais) de desenvolvimento”. A maioria dos agricultores era certificada com os seguintes selos “orgânicos”: Naturland (certificado com base em normas privadas e destinado ao mercado europeu), BioSuisse (também outorgado com base em normas privadas e dirigido ao mercado suíço), Ocia (privado e relacionado ao mercado norte-americano), Ocia/Jas (normas públicas e mercado japonês) e NOP/USDA (normas públicas e mercado norte-americano).

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os quais geralmente contavam com escolas públicas de primeiro grau. Também era

possível encontrar em La Florida um posto de saúde que oferecia serviços de

enfermagem e obstetrícia para a população local (os casos mais graves tendiam a ser

encaminhados para o hospital localizado em La Merced). Existiam ainda algumas

pequenas lojas dentro das casas dos próprios moradores e que vendiam arroz, açúcar,

atum enlatado, pilhas e outros produtos básicos de uso doméstico.

Mas não era apenas a modernidade da planta de beneficiamento que se destacava

nesse povoado. Isso porque nele também se encontrava o chamado Centro Educativo

Ocupacional de Agricultura Sustentável (CEOAS).78 Tratava-se de uma complexo

educacional mantido pela Cooperativa La Florida e que oferecia os mais diversos tipos

de “capacitação” para seus sócios, técnicos e membros de alguma organização de

produtores ligada à Central Café Peru.79 Tanto o CEOAS quanto a planta de

beneficiamento foram construído e eram mantidos, em grande medida, através dos

recursos provenientes de um convênio de 10 anos firmado em 2000 com a organização

não-governamental belga chamada SOS Faim. Ambos igualmente reproduziam uma

mesma política comercial de sucesso que vinha pautando o gerenciamento da

cooperativa ao longo dos últimos anos.80 Eles eram como que uma representação local

78 Num artigo publicado na revista El Cafetalero de novembro de 2003 e intitulado CEOAS La Florida – Una alternativa de capacitación científica y tecnológica para caficultores, o “diretor” dessa instituição diz o seguinte: “Se ha propuesto como metas para este año la capacitación de un mínimo de 250 socios del Programa de Café Orgánico y 100 socios en transición del mismo programa; así como la enseñanza a 20 extensionistas, 18 alumnos del CEOAS y 40 alumnos como promotores agropecuarios.” 79 A Cooperativa La Florida é o mais influente membro da Central de Organizações Produtoras de Café e Cacau do Peru – “Café Peru”. Dela fazem parte mais quatro cooperativas de cafeicultores da selva central e cinco de outras regiões do país. A La Florida também é o “acionista majoritário” e principal incentivador da Corporação de Produtores “Café Peru S.A.C.” Desta última entidade também são acionistas outras três cooperativas de cafeicultores da selva central e duas de regiões mais ao sul do país. Outras dez organizações de produtores de café da selva central fazem parte do chamado “consórcio cooperativo” da corporação. Esta atua na área de comercialização de café e a “Central Café Peru” se dedica basicamente à capacitação dos sócios e funcionários das organizações filiadas a ela. (Informações extraídas, em meados de 2008, das páginas eletrônicas da Corporação Café Peru e da Central Café Peru) 80 Cesar Rivas ocupa o cargo de gerente da Cooperativa La Florida desde 1997. Entre 1987 e 1990, Felix Marin ocupou esse cargo e passou a “assessorá-la” desde esse último ano até 1999. Numa conversa, ele me disse que o CEOAS foi criado por Cesar, em 1997, para servir como uma “escola de empresários cafeicultores”. Contudo, “dada às exigências das agências certificadoras, acabou se concentrando na

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da “competitividade” da La Florida enquanto um dos traços distintivos de sua

“vanguarda” dentro dos mercados.

Foto 21 – O CEOAS

Gorbachov gentilmente me explicou, etapa por etapa, como funcionava o

chamado beneficiamento úmido realizado através da infra-estrutura da qual era o

responsável. No momento da minha visita, as máquinas ainda não estavam funcionando;

sua limpeza e manutenção eram assim as principais atividades conduzidas por este meu

cicerone e outros dois funcionários da cooperativa sob sua supervisão. “Aqui tudo é de

aço inoxidável, para que não aja contaminação”, afirmou ele. Estas instalações nada

mais eram do que uma versão ampliada do maquinário presente nas chacras dos

produtores de café. Isso porque o que estava em jogo, em ambos os casos, era a

obtenção do chamado café pergaminho. Já a retirada desta película que envolve o grão,

formação de técnicos para a cooperativa”, afirmou para em seguida ressaltar a respeito do atual gerente: “Cesar quem motivou essa mudança de enfoque dos CEOAS”. De acordo com o que Cesar comentou comigo: “através do CEOAS buscamos abrir os olhos dos jovens, para que o desenvolvimento da chacra seja mais eficiente e para que eles desenvolvam outros negócios”. Ainda segundo ele, “os melhores alunos são escolhidos para trabalhar na cooperativa, outros ainda chegam a trabalhar em outras organizações de cafeicultores da região”.

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para poder ser exportado, se realizava somente na “planta de beneficiamento seco” que

a cooperativa mantinha próximo ao porto de Callao.

Num morro acima do galpão, onde se encontrava o maquinário, havia um

enorme recipiente de concreto, no qual os produtores deveriam depositar o “café em

cereja” recém colhido. No mesmo local iria funcionar um escritório – até então

inacabado – onde os sócios registrariam a entrega do produto. Do recipiente onde o café

ia ser depositado, este seria prontamente canalizado para o processamento de acordo

com sua certificação. Um tanque cheio de água, também ao lado do recipiente,

abasteceria a planta. Os cafés desceriam por tubos, de acordo com a certificação, e

aqueles considerados ruins sairiam, com o fluxo de água, antes da entrada da maquina

que retiraria a polpa que envolveria os grãos não rechaçados. Já essa polpa seria

transportada sem água, numa esteira rolante (a casca da cereja do café deveria ser

eliminada com água por outro lugar). A máquina (de fabricação colombiana) que

retiraria a polpa podia trabalhar com até 10.000 quilos de café em cereja por hora, e

mais duas máquinas similares a esta podiam ser adicionadas à planta, cuja capacidade

era de 50.000 quintais por safra.81

Acontece que a excepcionalidade dessa infra-estrutura sob responsabilidade de

Gorbachov também se relacionava com sua própria narrativa a respeito da cooperativa.

Pude acessar essa história enquanto descíamos o morro em cima do galpão onde se

encontrava guardado a sete chaves o valioso maquinário da La Florida. O pai deste meu

interlocutor era um dos chamados fundadores da cooperativa, mas que no momento de

81 A safra de 2006 marcou o início da utilização da planta de beneficiamento situada no povoado de La Florida. Na “assembléia extraordinária” da cooperativa realizada em outubro desse ano, seu gerente pôde expor para os sócios sua visão da importância desse equipamento. De acordo com suas próprias palavras: “Os cafés que entregamos na planta estão relacionados com as estratégias de marketing da cooperativa. Estamos promovendo a qualidade do café, por isso estamos com preços melhores. Estamos correspondendo à demanda. A diferença (de preço) que vocês recebem tem a ver com isso. O cliente quer contêineres e não apenas alguns sacos de boa qualidade. A planta de beneficiamento nos dá segurança. Trata-se de uma realidade que o mundo nos impõe à força. Estou fazendo isso porque creio que é o melhor para o futuro, para nossos filhos e para sermos competitivos”.

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nossa conversa vivia em Lima com as irmãs de Gorbachov, que se dizia o único

membro da família que ainda se interessava pelo campo. A narrativa contada por

Gorbachov retratou uma história vivenciada por muito daqueles associados à La

Florida.82 Tal história me viria a ser contada por essas pessoas como uma verdadeira

saga e é sob esta e outras sagas próprias dos seus participantes que este capítulo se

debruça. Evidentemente que Gorbachov tinha consciência de que seu relato histórico

também se colocava como algo que despertava a atenção daqueles que visitavam a

cooperativa.83 Como dito anteriormente, minha incursão entre os cafeicultores que

vivem no território onde a La Florida opera também fora mediada pela visão que estes

tinham do reconhecimento externo dessa entidade. Eu era mais um gringo interessado

em conhecer a vida dessas pessoas.

82 Ele me informou que a área onde está o povoado se encontrava antes dentro dos limites do terreno da Peruvian Corporation, uma empresa britânica que, segundo Gorbachov, fora contratada pelo governo peruano para construir uma ferrovia entre a cidade andina de La Oroya e a de Pampa Whaley na selva central. Nesta última cidade, ainda se poderia ver os restos da planta de beneficiamento montada por estes ingleses há muito tempo atrás, mas que, de acordo com meu interlocutor, seria a única, em todo Peru, similar em tamanho àquela que acabamos de visitar. Continuando a história da companhia inglesa, ele disse que apesar desta cumprir grande parte do contrato com o governo peruano, tanto na parte da construção da ferrovia quanto numa outra referente à alocação de colonos europeus na região, esta empresa não conseguiu exercer inteiramente com o prometido. A pena então estipulada era de que a companhia deveria entregar ao governo um quarto de suas terras. O pai de Gorbachov vivia numa região mais acima junto de outros “colonos serranos”; estes descem e, aproveitando o litígio em cima das terras da empresa, fundam o povoado de La Florida. O início do cultivo de café foi impulsionado pela qualidade das novas terras, mas estes colonos se sentiam explorados pelos intermediários e isso, segundo Gorbachov, fez com que o ideal do cooperativismo fosse colocado em prática. Ele ressaltou o fato de que antes da “subversão” (palavra comumente usada pelos peruanos, ao lado de “terrorismo”, para se referir às ações dos movimentos de extrema-esquerda Sendero Luminoso e Tupac Amaru) que se inicia com força no final dos anos 80, o povoado de La Florida havia atingido um nível alto de prosperidade que fez com que recebesse até uma agência do Banco Agrário (estatal). Mas os membros do Sendero Luminoso teriam não só acabado com a infra-estrutura da cooperativa como assassinaram diversos de seus sócios. “Em um dia mataram cinco pessoas, inclusive uma freira”, me disse. Em decorrência, segundo ele, da fuga dos produtores para as grandes cidades, a cooperativa acabou ficando com uma dívida muito grande em suas mãos. O banco credor a ameaçou então com o embargo e confisco de seu patrimônio. “Os anos de 1991, 1992 e 1993 são os piores para a cooperativa”, lamentou Gorbachov. Um suíço que morou no povoado de La Florida se colocou como intermediário de uma ajuda financeira que a cooperativa obteve para saldar sua dívida. Esse dinheiro veio de uma “associação suíço-peruana”, segundo meu interlocutor. Ele afirmou que foi quando o atual gerente da cooperativa iniciou sua gestão, em 1997, que “as coisas começaram a mudar (para melhor)”. Falou também da ajuda que a cooperativa recebe da organização-não governamental SOS Faim e do fato de César (o atual gerente) ter conscientizado os sócios para que entregassem seus cafés à cooperativa, já que desde 1990 muitos deles vinham entregando os grãos para os comerciantes intermediários locais. 83 Uma versão dessa história aparece na página eletrônica da organização não-governamental SOS Faim.

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O período em que se deu minha pesquisa de campo esteve principalmente

marcado pela visão dos produtores de que havia um descompasso entre o

reconhecimento comercial alcançado pela cooperativa e a pouca produtividade de seus

cafezais.84 Muitos me diziam que a La Florida estava “mais ou menos”. Em outras

palavras, o que queriam dizer é que estavam bem comercialmente e mal

produtivamente. Pelas notícias que recebi deles, acredito que esse momento terminou

com os US$ 4.9 milhões que conseguiram obter, em 2008, através de um concurso

público, e que deveria justamente ser usado na renovação de suas plantações. Tal

investimento lhes permitiria aproveitar melhor os bons preços obtidos com as vendas de

seus cafés. De qualquer maneira, existem certos eventos marcantes na vida dessas

pessoas que acabam servindo de divisores de água em diversos relatos históricos. Mas

antes de apresentar nesse capítulo uma narrativa com base nesses relatos, é importante

continuar descrevendo minha experiência no território onde vivem esses agricultores.

Isso porque essa experiência refletia também uma inserção num ambiente social ao

redor da Cooperativa La Florida no qual vigoravam diversas representações coletivas a

respeito da modernidade que não apenas o desenvolvimento ou progresso atingido pela

cooperativa dentro ou fora dos mercados.

84 É verdade que outras críticas à cooperativa eram também feitas pelos seus associados e pessoas que viviam ao redor desses sujeitos. Estas críticas tratavam, por exemplo, da ausência dos chamados reintegros ao longo dos últimos anos, dos “descontos” aplicados aos produtores e dos juros referentes aos empréstimos que tomavam dela. No final de 2006, voltariam a ter os reintegros (o dinheiro que podem receber, no término de cada ano, dependendo do balanço final das vendas da cooperativa); já os descontos (derivados das penalidades aplicadas aos sócios ou destinados à melhoria da infra-estrutura da organização e das estradas, por exemplo) variavam de caso a caso e eram facilmente justificados pelos funcionários da La Florida. O mesmo se dava diante dos juros, na medida em que eram os mais baixos em relação a qualquer instituição financeira ao alcance dos agricultores da região. Uma situação aparentemente similar à que encontrei junto à Cooperativa La Florida também foi observada por Peter Luetchford (2008) na Costa Rica. Ele conduziu seu trabalho de campo entre os membros de uma comercialmente bem sucedida cooperativa que igualmente reclamavam do descompasso entre esse sucesso comercial e suas difíceis condições de vida. De acordo com este autor: “The cooperative, it seems, is caught between the requirements of business success and social and moral responsibility.” (idem p.140) O ponto é que tanto o gerente da La Florida quanto seus associados reconheciam que a vanguarda dessa organização também deveria residir na melhoria das condições de vida de seus membros. Nesse sentido, uma própria noção de modernidade se confundia com outra de moralidade, algo não visualizado por Luetchford.

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2.4 Entre os moradores do povoado

Meu retorno ao povoado se deu no dia 17 de outubro do ano seguinte (2006).

Nessa ocasião, estava acompanhado do irmão mais novo de um dos funcionários da

Central Café Peru. Essa instituição de “segundo grau” é não apenas encabeçada pela

Cooperativa La Florida como também tem como seus principais empregados filhos de

sócios desta última entidade. Um destes funcionários havia organizado minha estadia

entre os associados da cooperativa e me colocado em contato com um jovem chamado

Alejandro para que pudesse me deslocar entre esses agricultores. Minha familiaridade

prévia com os filhos de alguns desses cafeicultores permitiu então que adentrasse com

maior profundidade naquilo que pode ser definido como uma comunidade em torno da

La Florida.

Alejandro tinha 19 anos nessa época em que o conheci. Ele trabalhava como

motorista no trajeto entre La Florida e La Merced. Normalmente, Alejandro saia todos

os dias às seis da manhã de La Florida e chegava a La Merced por volta das nove. À

uma da tarde deixava essa cidade para chegar ao povoado em torno das três. Contudo,

era capaz de retornar até La Merced caso houvesse um número suficiente de passageiros

ou quando alguém estivesse disposto a pagar 50 soles pela viagem. Dizia ganhar 140

soles em média por dia que, descontados os 80 soles que gastava diariamente com

gasolina, lhe proporcionavam um lucro de 60 soles (aproximadamente US$ 20).

Tratava-se de um valor bastante elevado se comparado, por exemplo, com a diária de 10

soles que era comumente paga aos que eram contratados (informalmente) para trabalhar

nos cafezais ou em qualquer outro cultivo realizado na selva central durante esse

período. Esta era a categoria profissional menos remunerada da região e abrangia não só

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os habitantes locais desprovidos de propriedades agrícolas como também trabalhadores

sazonais e agricultores com pouca extensão de terra.85

Cada passageiro pagava seis soles por um assento num dos cinco automóveis

(todos da marca japonesa Toyota) que faziam o caminho entre La Florida e La

Merced.86 O padrão era o veículo transportar seis pessoas; duas no banco ao lado do

motorista e quatro no banco de trás. Obviamente que isso era ilegal. Porém, outra

prática também comum, entre os motoristas que cruzavam a rodovia asfaltada da selva

central com seis ou mais passageiros no interior de seus veículos, era dar um sol em

dinheiro para os policiais que supostamente deveriam fiscalizar quem passava pela

estrada. Como me disse um desses motoristas, “os policiais rodoviários são que nem os

inkas: adoram um sol”.

Na verdade, Alejandro vinha trabalhando como motorista há apenas uma

semana; mas mesmo assim dizia já se sentir cansado e entediado com o trabalho. Diante

disso, pretendia voltar para Lima nos próximos dias. Disse que iria morar com seu

irmão mais velho e se inscrever num curso pré-vestibular (algo que realmente acabou

fazendo). Sua mãe, que desde há muito tempo vivia nos EUA, havia enviado US$ 7.000

para que, junto de seus outros dois irmãos, comprasse o automóvel com o qual vinha

trabalhando. O restante do dinheiro necessário para a compra do veículo fora retirado do

85 Com relação ao distrito de Perene: “La mayoría de los agricultores de la zona, sean éstos colonos o nativos, poseen tierras. En relación con su manejo, y de acuerdo con el promedio de tenencia en la región (de ocho a diez hectáreas por familia, el 50% de las tierras agrícolas (entre tres y cuatro hectáreas) se encuentra, generalmente, en producción; y el otro 50% en descanso, en su mayor parte, y sin uso agrícola, en una menor cantidad (dos hectáreas en promedia). El principal cultivo es el café, que cubre prácticamente el 90% de las tierras agrícolas. Es seguido por el plátano, un cultivo complementario, y en menor escala por los cítricos, piñas y paltos. La mayor parte de la producción se destina a la comercialización y un porcentaje menor se deja para el autoconsumo.” (Desco, 2005b p. 350-351) 86 Alejandro comentou brevemente comigo a respeito dos outros motoristas que faziam esse trajeto. Todos eram filhos de cafeicultores. Um destes, por exemplo, ganhou o automóvel de seu pai (que comprou o veículo por US$ 11.000) e lhe dava 20 soles por dia. Era casado, tinha treze irmãos, dois filhos e “não seguiu adiante com seus estudos”. Seu pai pretendia lhe dar cinco hectares onde iria cultivar café e, com o dinheiro do cultivo, compraria outro automóvel, dado que não queria trabalhar na chacra. O avô de Alejandro empregou seu pai quando este era jovem e trabalhava como “peão” nos cafezais. “Antes se trabalhava cinco anos e o patrão dava um pedaço de terra”, me disse Alejandro que também ressaltou o fato de seu avô ter sido peão.

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“capital social” da Cooperativa La Florida, onde seu pai tinha investido certa quantia,

antes de ser assassinado pelos guerrilheiros do Partido Comunista do Peru - Sendero

Luminoso (PCP-SL). Essa trágica história era lembrada em muitas das narrativas que

me foram contadas pelos produtores da região e aparece descrita da seguinte maneira no

relatório final da Comissão de Verdade e Reconciliação:

El 27/09/1990, aproximadamente 40 miembros del PCP-SL ingresaron al anexo [sic] La Florida, distrito de Perené, e incendiaron las instalaciones y maquinaria de la Cooperativa Cafetalera La Florida, además de dinamitar la posta médica de la localidad. Después los subversivos capturaron a Juan Pérez, Efigenia Marín, Luis Pérez, Pedro Pizarro Mucha y dos pobladores más, quienes fueron conducidos a una esquina donde los amordazaron y les dispararon. Algunos subversivos que se quedaron en el pueblo mataron dos días después a Herbert Pérez Marín. Su hijo de cuatro años fue secuestrado por los terroristas, quienes lo encargaron a un anciano que vivía en el monte. Un año después el menor fue encontrado por el Ejército Peruano. (www.cverdad.org.pe)

Após esse fatídico incidente, Alejandro e seus dois irmãos passaram a morar

com a mãe de seu pai.87 Conversei com essa sua avó logo que chegamos ao povoado de

La Florida (onde ela vivia em sua própria casa). Seu falecido marido e o igualmente

falecido filho mais velho de ambos eram considerados uns dos “fundadores” tanto do

pueblo (no começo da década de 1960) quanto da cooperativa (em meados dessa

década). Ao nosso lado, durante a conversa, estava uma filha sua e um sujeito que

Alejandro depois me diria se tratar de um obrero (uma maneira talvez mais sutil de se

chamar os “peões” que trabalham nos cafezais). Reproduzo mais à frente parte da

história que me foi contada por essa senhora. Trata-se da narrativa de uma pessoa

envolvida nos primórdios do que pode ser definido como uma comunidade que

organizou a colonização maciça da região ao redor de La Florida e criou a cooperativa

que recebeu esse nome. Mas esse seu relato também fala da experiência de ascensão que

ela e seus familiares experimentaram da condição de obreros para a de cafeicultores.

87 Eles herdaram de seu pai uma chacra próxima ao povoado. Contudo, não se dedicavam à produção de café nesta propriedade.

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Através dele é possível perceber que estamos diante de uma comunidade organizada do

ponto de vista de um grupo de indivíduos que “progrediram na vida” por meio do

cultivo de café. O destino de seus filhos e netos (dentro ou fora da cafeicultura) era

então avaliado como parte desse “progresso”.

A questão é que esse processo geracional de ascensão, realizado no interior das

famílias cafeicultoras reunidas através da Cooperativa La Florida, se colocava como

uma narrativa vigente entre elas tanto quanto os relatos sobre o desenvolvimento

alcançado pela cooperativa. Essa dualidade, existente na experiência temporal desses

indivíduos, permearia o discurso de outro morador do povoado de La Florida que

Alejandro me apresentou; um tio seu casado com a filha de sua avó que esteve presente

na minha conversa com essa senhora.88 Assim como sua sogra, este senhor (chamado

Jaime) era bastante reconhecido no âmbito da cooperativa e também adveio da mesma

região andina (província de Celendín) que ela para trabalhar na colheita de café na selva

central (a senhora chegou em 1955, na companhia de seu marido e de seus filhos; ele

veio sozinho em 1965). É verdade que, ao contrário da avó de Alejandro, não foi um

dos “fundadores” do povoado, mas alguém que comprou um pedaço de terra de um

desses sujeitos depois de ter trabalhado por mais de dez anos como obrero. Jaime usava

um boné da Central Café Peru enquanto dialogávamos na loja que mantinha com sua

88 “Todos sentimos carinho pela Cooperativa La Florida, vestimos a sua camisa, nosso objetivo era de que nossa empresa fosse dirigida por nossos filhos; quem tem mais educação entra”, apontou esse senhor ressaltando que “os que tiveram oportunidade mandaram seus filhos para estudar numa universidade ou faculdade em Lima; outros não puderam educar seus filhos para além da primária (primeiro grau)”. “Aqui há medianos e pequenos produtores, antes eram todos iguais, mas uns venderam suas terras e outros seus filhos cresceram e tiveram que dividi-las com eles”, comentou. Ele também falou da ênfase de Cesar (o gerente da cooperativa) na produção de cafés certificados como orgânicos e disse que primeiro se concentram na obtenção de uma infra-estrutura para que a La Florida pudesse competir no mercado e que “agora vamos solucionar o problema dos sócios”. “Cesar é muito inteligente, com ele fomos recuperando a confiança”, assinalou completando que os “cafés de nicho” demandam uma infra-estrutura que garanta a qualidade dos grãos. Lembrou que a “planta de beneficiamento úmido” construída no povoado, através de um empréstimo, acabou se transformando numa doação. Jaime igualmente enfatizou que a cooperativa estava buscando mais fontes de financiamento para seus associados e que não seria apenas para o crédito de “pré-colheita” (usado basicamente no pagamento dos obreros).

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esposa junto da casa onde viviam.89 O nosso encontro posterior seria num jantar nessa

sua residência e nele estaria presente sua mulher, sua filha, o marido desta e o irmão de

Alejandro que trabalhava na central. Das quatro filhas deste senhor, as duas mais velhas

residiam em Lima e as mais novas em La Merced. Estas últimas eram proprietárias de

um estabelecimento de acesso a internet nessa cidade onde moravam; uma delas era

justamente a que estava no jantar acompanhada de seu esposo e o qual era o gerente da

Crediflorida (a agência de crédito da Cooperativa La Florida).90

Este último comentou, durante o jantar, sobre o que entendia como sendo a

existência de certos “grupos de poder” dentro da cooperativa e que tendiam a informar

mal os sócios. Ele mesmo havia se desentendido com alguns associados. Mais

especificamente, entrou em conflito com um senhor com o qual coincidentemente pude

conversar no veículo que me trouxe ao povoado.91 Sobre este sujeito, disse: “ele se

89 Eles também tinham uma residência na cidade de San Ramón (vizinha a La Merced) onde se instalaram durante o auge do fenômeno do “terrorismo” na região. Sobre esse período delicado na história desses agricultores, Jaime lembrou que inicialmente “os terroristas falavam coisas bonitas, que iam trazer professores de Lima para cá e levar os daqui para Lima”. Afirmou também que “havia jovens que iam junto com eles (os guerrilheiros)”. “Os subversivos controlavam nossas saídas e chegadas de La Florida”, destacou. A situação passou a se complicar com o passar do tempo: “éramos maltratados pela subversão e pelo exército”. O povoado ficou então abandonado diante da crescente violência e intimidação: “em La Florida só ficaram três pessoas”. “Um dia mataram sete pessoas aqui”, assinalou como que justificando o porquê do abandono generalizado do pueblo. 90 A Crediflorida originou-se de um departamento de crédito, dentro da cooperativa, que fornecia os recursos para os produtores usarem na manutenção de seus cafezais. Um de seus funcionários me disse que esse departamento acabou se estruturando como uma cooperativa de ahorro y crédito, tendo em vista a obtenção de recursos de fontes estrangeiras (até então a cooperativa só conseguia financiar um quarto de seus associados). Os recursos teriam vindo de uma organização não governamental de “crédito solidário” e da SOS Faim. A primeira emprestou US$ 150.000 (com juros entre 9% e 12% ao ano) e a segunda US$ 200.000 (com juros entre 8% e 9%). Os sócios pagavam uma taxa de 17% ao ano de juros e os que não eram sócios (como era o caso dos produtores das outras cooperativas que faziam parte da Corporação Café Peru) pagavam entre 19% a 22%. Os empréstimos iam de US$ 5.000 até US$ 10.000. Dos 600 sócios que utilizaram os recursos da Credifloria, apenas quatro ou cinco não quitaram suas obrigações. “Esses quatro ou cinco estão com seus bens hipotecados e a cooperativa vai liquidar esses bens”, afirmou o funcionário e o qual completou falando a respeito das condições para os empréstimos com juros mais baixos: ser “sócio ativo”, ter título de propriedade e “não estar endividado na praça”. 91 Logo de cara, este senhor me perguntou se eu “estava com a cooperativa” e lhe respondi que não (diversas pessoas de fora do país eram convidadas para visitar as instalações dessa organização; ele obviamente me associou inicialmente a esses indivíduos). Disse que era natural do departamento andino de Andahuaylas e que chegou à selva em 1960. Trabalhou como obrero por 15 anos e, em 1975, comprou 18 hectares de “monte real” (virgem), num dos anexos situados ao redor do povoado de La Florida. Afirmou que a Cooperativa La Florida estava “mais ou menos”. Reclamou dos juros pagos pelos sócios à cooperativa e que “agora não somos nada para eles; o empregado é o dono da empresa”. “Antes a cooperativa tinha mais máquinas para a estrada, investia no colégio e no posto de saúde; agora só pensa

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pensa como o dono da cooperativa”. Jaime concordou e afirmou que estava tentado

mudar a visão excessivamente crítica desse sócio. O gerente da Crediflorida dividiu os

associados entre aqueles mais antigos e identificados com a cooperativa e os mais novos

que não se comportariam desse modo. De qualquer maneira, ainda de acordo com seu

ponto de vista, “os mais antigos não estão capacitando os sócios novos dentro do

cooperativismo”.

Terminado o jantar, seguimos todos até a festa de formatura dos alunos do

colégio de primeiro e segundo grau que ficava em La Florida.92 Um destes alunos era o

irmão de Alejandro que vivia no povoado. Na verdade, eu estava hospedado na casa que

seu pai lhes deixou e na qual este irmão de Alejandro residia tendo em vista a conclusão

de seus estudos secundários no colégio local. Ele havia comentado comigo que não

costumava falar muito com as pessoas do pueblo: “foram eles que denunciaram meu pai

para os terroristas”, me explicou. Afirmou também que, por conta da “inveja das

pessoas do povoado”, estes teriam dito para os “terroristas” que seu avô era explorador

e ambicioso. Este irmão de Alejandro era um sujeito que parecia querer acentuar em si

em dinheiro”, ressaltou reclamando também do administrador da organização: “ele nos olha mal”. “As instalações da cooperativa estão bonitas, bem pintadas, mas as chacras estão ruins, produzem pouco”, comentou assinalando que o empréstimo de US$ 600 que os sócios vinham recendo (em três parcelas), para renovar seus cafezais, não seria suficiente. “O administrador e o gerente andam com os certificadores e não mostram para eles como estão mal os sócios”, concluiu seu raciocínio. Ele permaneceu na sua chacra durante a “época do terrorismo”, quando então vendia seus cafés para os comerciantes de La Merced. Entendia que a cooperativa “sobreviveu” (ao contrário de outras organizações de cafeicultores) pelo fato de “serem zonais”: “foram os maus manejos que quebraram as cooperativas, mas não havia corrupção na La Florida porque conhecíamos os nossos vizinhos que retiravam os empréstimos”. “Nas cooperativas que não eram zonais os sócios retiravam os empréstimos e nunca mais apareciam”, acrescentou ele para quem a existência da La Florida também se devia muito “ao engenheiro Felix Marin”. Aproveitou também para criticar o atual gerente: “se o gerente fosse bom, teria capacitado outro para substituí-lo; ele quer ser o dono (da cooperativa)”. 92 A festa aconteceu numa espécie de galpão. Os pais e seus filhos se mostraram bastante acanhados durante o início do evento. O consumo de álcool passou então a ser generalizado após a entrega dos certificados de formatura. Já ébrios todos se soltaram e começaram a dançar. O irmão mais velho de Alejandro me recriminou bastante enquanto eu dançava. Isso porque, ao não ter bebido, eu estaria me comportando de maneira estranha aos olhos das pessoas presentes. Insisti mesmo assim em não beber, pois não estava bem do estômago. Seu irmão do meio (o qual justamente estava se formado), por seu lado, não só consumiu bebida alcoólica em demasia como fumou muitos cigarros ao longo da noite. Seus colegas também fizeram o mesmo. Todos se comportavam como se estivessem numa danceteria de uma cidade qualquer do país. É verdade que, para alguém acostumado com a principal discoteca de La Merced ou mesmo com algum igualmente sofisticado estabelecimento do gênero localizado em Lima, por exemplo, a festa de formatura parecia uma imitação bastante precária desses ambientes.

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os trejeitos típicos de um jovem de classe média da capital do país e isso igualmente

transparecia nas suas roupas. Alguns dias depois da festa de formatura, ele estaria

morando com seus irmãos em Lima (não era à toa que o sobrado que mantinham em La

Florida tinha um aspecto bastante provisório).

Acontece que alguns filhos de sócios (incluindo estes últimos) residiam ou

vieram a residir num mesmo apartamento localizado na capital do país (a maioria havia

cursado o terceiro grau e exercia uma profissão relativamente estável e bem

remunerada; o restante freqüentava um curso pré-vestibular) e esse grupo bastante coeso

de jovens compartilhava certos referenciais com outros filhos de sócios que, do mesmo

modo, haviam progredido ou se encontravam ascendendo no sistema educacional e

almejavam ou tinham um emprego mais estável e remunerado do que a cafeicultura.

Na verdade, por uma dessas coincidências que a vida nos coloca, a casa onde

costumava me hospedar em Lima ficava na mesma rua deste apartamento. Tratava-se de

um moderno e recém construído imóvel que eles alugaram em Pueblo Libre (um típico

bairro de classe média da capital do país). Nessa cidade, costumávamos nos divertir

como um grupo qualquer de jovens de classe média; o mesmo se dava em relação às

nossas viagens de fim de semana para um balneário local, onde estes meus amigos e

seus colegas de trabalho e de estudo, todos de ascendência notadamente andina,

sonhavam em ter uma casa de veraneio perto da praia. Mas é importante assinalar que

não cheguei a freqüentar com eles certos espaços de lazer, ocupados principalmente

pela classe média branca do país, e aos quais costuma ir acompanhado de meus colegas

europeus e dos donos da casa onde morávamos em Lima. 93

Mas é preciso ter em mente que uma minoria de produtores filiados à

cooperativa pôde acumular recursos suficientes para manter seus filhos vivendo uma

93 De qualquer maneira, a ascendência andina dos donos desta casa parecia ser uma barreira para interagirem, de igual para igual, com os freqüentadores desses locais de “classe média branca”, ao contrário do que se passava comigo e com os seus outros hospedes.

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típica vida de classe média urbana. Isso aconteceu, basicamente, entre os que foram

capazes de oferecer as condições materiais para que os jovens pudessem cursar o ensino

superior. Tais filhos de sócios acabaram geralmente se identificando com outro meio

social que não o que existia entre seus pais; essa identificação permitia que os membros

dessa geração mais nova se reconhecessem com base num referencial em comum.

Tratava-se de um reconhecimento mútuo para além da comunidade organizada ao redor

da cooperativa, apesar de ter se originado dela. Vale ressaltar que estou falando de um

grupo minoritário e destacado de filhos dos sócios da La Florida. Pude me inserir

facilmente dentro desse grupo por conta justamente do fato de compartilharmos as

disposições típicas de uma classe média urbana.

Outro sujeito ao qual fui apresentado no povoado de La Florida foi um dos filhos

da avó de Alejandro. Ele ocupava o cargo de presidente da Central Café Peru e o irmão

mais velho de Alejandro era seu secretário.94 Também ocupava um dos cargos de

regidor do distrito de Perene (de acordo com a página eletrônica da prefeitura de

Perene, os oito regidores eleitos são, ao lado do prefeito, as “autoridades” do distrito e

trabalham nas igualmente oito “comissões” existentes, como a de infra-estrutura, a de

transporte e a de comércio, por exemplo).95 Era o sócio número 258 da cooperativa e foi

94 Até o começo de 2010, este irmão de Alejandro continuaria trabalhando na Central Café Peru, principalmente com as questões relativas ao melhoramento da qualidade dos cafés entregues pelos produtores. Mas já em 2006 havia terminado a gestão de seu tio na presidência da central. Conversando com o sujeito que lhe sucedeu no cargo, este me confessou sua visão de que havia uma disparidade muito grande de poder nas organizações de produtores. Tal disparidade se daria entre as pessoas que trabalhavam nas suas burocracias e a grande maioria de agricultores incapaz de influir substancialmente na condução dessas organizações. Ele era membro de uma cooperativa do norte do país e parecia se sentir bastante acuado diante dos funcionários. Vale ressaltar que o gerente da central e o responsável pelos projetos realizados por esta entidade eram filhos de um conhecido sócio da La Florida. O mesmo se passava com outro funcionário e sua irmã que também veio a trabalhar (com o tema de “desenvolvimento de mercados”) nela um tempo depois dele ter saído e ido trabalhar numa empresa privada exportadora de café. Em suma, os seus funcionários eram basicamente filhos de sócios da La Florida e viviam juntos – com a exceção do gerente, que era casado – num mesmo apartamento em Lima. 95 Segundo ele me informaria, durante uma carona que me ofereceu até La Merced (na sua moderna picape da marca Nissan), o orçamento do distrito de Perene (em 2006) era de 3.600.000 soles. Além disso, o distrito tinha à disposição 6.000.000 de soles para serem usados na construção de obras de infra-estrutura. Esse dinheiro adveio da União Européia e do Banco Mundial através de convênios do governo nacional junto a esses organismos.

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o número um da Credifloria até que, “por reclamar demais”, passou a ser o número seis

(dos produtores que viviam no povoado, era um dos que tinha maior extensão de terra

em sua chacra). Segundo me disse, seu irmão fora assassinado pelos “terroristas” porque

“era rico” e não queria pagar as “contribuições” (cupos) exigidas por estes sujeitos.

A distinção de sua família em La Florida parece ser um fenômeno de longo

prazo que remontava ao estabelecimento pioneiro de seus pais na região ao lado de

outros “fundadores”. 96 Ele próprio teve que deixar o povoado, em dezembro de 1988,

diante de um ataque que os guerrilheiros fizeram à sua família, dado que era o tenente-

governador do pueblo e havia anteriormente “castigado” os “delinqüentes” locais que

justamente vieram a se juntar ao Sendero Luminoso.97 Reencontraria com ele na festa

que se seguiu a uma assembléia da cooperativa realizada no final do ano, na qual era um

dos sócios mais descontraídos e brincalhões. Na ocasião, fez gentilmente questão de

relembrar, na minha presença, o passado da La Florida junto de outras pessoas que

vivenciaram essa história coletiva.

Pude entender melhor a posição social dele e de seus familiares ao caminhar

sozinho pelo povoado e me encontrar com um jovem produtor sem quaisquer vínculos

presentes com a Cooperativa La Florida. Ele tinha 30 anos e junto de seus irmãos e

outros jovens cafeicultores estava criando uma cooperativa local que tinha como

96 Pude conversar também com a esposa de seu filho. Ela era natural da cidade de Pichanaki (capital de um distrito vizinho) e tinha, junto com seu marido, uma chacra (outrora do pai dele) de cinco hectares (vizinha à chacra de Alejandro). Nessa sua chacra possuíam dois hectares de café (plantados há algum tempo), um hectare recém plantado e outro mais antigo que praticamente não produzia mais. Eles entregaram 38 sacos de café para a Cooperativa La Florida em 2006, através da planta de beneficiamento úmido localizada no povoado, e receberam 1,90 soles por quilo (o preço padrão para os que entregavam seus grãos através dessa planta). Seu marido trabalhava em La Merced como motorista da cooperativa. De acordo com ela, ele “não tem tempo para processar o café em pergaminho” e “é (com ele trabalhando) como motorista que temos dinheiro”.

97 “En los centros poblados existe el cargo de teniente gobernador y agente municipal. Ambos son elegidos por los pobladores. Mientras que la función del primero es mantener el orden y la tranquilidad de la población, el agente municipal tiene como una de sus funciones principales gestionar, ante el gobierno local y otras instituciones, proyectos o actividades relacionadas con el desarrollo del centro poblado al que representa.” (Desco, 2005b p. 357) No final do jantar do qual participei em sua casa, Jaime comentou sobre o “calabouço” que existia no povoado e onde os “delinqüentes” eram trancados. Ele contou que os próprios moradores iam buscar os infratores em suas casas. Também falou sobre a existência de jovens dentro do pueblo que estariam roubando galinhas e os quais, no seu entender, deveriam ser “castigados”.

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propósito escoar seus cafés para compradores que valorizassem a qualidade desses

grãos.98 Isso porque eram produzidos em propriedades situadas numa zona de maior

altitude e a altura vinha sendo considerada internacionalmente uma variável crucial para

se determinar a qualidade do produto (“nossos cafés são de 80 pontos”, me disse ele se

valendo da classificação empregada pela Associação Norte-Americana de Cafés

Especiais). Acreditavam que assim poderiam conseguir melhores preços do que os

oferecidos pela La Florida aos seus associados. Estavam radicalizando um sentimento

de descontentamento com a cooperativa então existente entre grande parte dos

produtores da região. Essa posição extremamente radical condizia com o próprio

discurso desse meu interlocutor a respeito do que ele via como um uso desonesto dos

recursos da La Florida por parte de seus funcionários.

Seu pai (um migrante andino, como a maioria dos que se estabeleceram na selva

central) sempre trabalhou como obrero e nunca conseguiu comprar uma chacra, apenas

uma modesta casa no pueblo.99 Formavam uma das duas ou três famílias que

98 O líder desse grupo (de aproximadamente 20 pessoas, todos jovens e não associados à cooperativa) era seu irmão, o qual estudou no CEOAS: “estão buscando quem pague melhor”, acrescentou a respeito desses produtores. Estes agricultores estavam situados junto aos 24 sócios pertencentes ao “comitê” de Alto La Florida. Destes associados, 19 eram “orgânicos” (incluindo o próprio gerente da cooperativa), um estava no “terceiro ano de conversão”, outro no segundo e mais três no primeiro. Meu interlocutor disse que alguns destes sócios haviam se interessado em participar de uma nova organização de cafeicultores. Ele mesmo trabalhou como técnico agropecuário na cooperativa durante um ano. Largou esse emprego porque passou a acreditar que ganhava mais trabalhando na sua chacra, onde inclusive pode aplicar seus conhecimentos (por serem sete irmãos, não precisariam contratar personales para trabalhar na chacra). Assinalou que os jovens desconfiam da cooperativa, mas os mais velhos ainda se sentiam identificados com a entidade. “Antes a cooperativa era melhor, mas há quatro anos não existe reitegro, a cooperativa não faz aparecer para seus sócios o que ganha acima da Bolsa e se algum destes reclama é marginalizado”, salientou e ressaltou que o principal motivo do descontentamento dos sócios era justamente o não recebimento dos reintegros ao longo dos últimos anos. Ele suspeitava que parte dos descontos (como o frete do transporte e as taxas da aduana, por exemplo) era, na verdade, desonestamente apropriada “pelo pessoal da cooperativa”. “A cooperativa vende por 141 dólares (o quintal de café), nos paga 100 e rouba 41 para ela”, acusou e perguntou: “aonde então vai parar esses 41 dólares?”. “A cooperativa comprou por cinco soles (o quilo de café pergaminho), se houver reintegro dizem que vai ser de 5,50 soles”, comentou para em seguida apontar que a empresa Café Montanha (localizada na cidade de Pichanaki) adquiriu seu café por 6,50 soles o quilo. “Nós os chamávamos por telefone e eles vinham buscar o café”, disse e ponderou: “o engenheiro Antônio Sanchez (um sujeito que tinha um armazém em La Merced) estava comprando por sete soles, se soubéssemos antes, teríamos vendido para ele”. 99 Segundo me disse esse jovem (tendo ao colo um de seus três filhos pequenos): “entre os moradores do pueblo a diferença é que você é um peão de outro”. Ele afirmou isso depois de ressaltar que “foram os fundadores que trouxeram os peões” e que “a maioria (dos habitantes do povoado) só trata de sobreviver”.

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permaneceram em La Florida durante o auge do fenômeno do “terrorismo” na região,

dado que “não tinham aonde ir” para escapar dessa trágica situação que custou a vida de

muitas pessoas que viviam dentro ou fora do povoado. Eram verdadeiros outsiders na

dinâmica das relações locais; se colocavam como “os outros” por excelência dos

discursos a respeito de uma identidade coletiva entre os cafeicultores.

Lembro que, certa vez, estava no escritório da Central Café Peru, em Lima, e

pude conversar sobre as diferenças entre os cafeicultores com o irmão mais velho de

Alejandro. Essa conversa se deu enquanto ele fazia cópias de recibos ligados às

“cooperativas bases” dessa central e que iriam fazer parte de um informe semestral que

deveria ser entregue para a organização não-governamental SOS Faim. Ele me disse que

as diferenças entre os produtores dependiam da família e da cultura de cada um; “uns

estão fechados na chacra”, completou e continuou: “eles guardam (dinheiro) para as

festas deles, as festas patronales, e nas quais há corta-arvores, olimpíadas locais,

parques de diversões e tudo isso se dá uma vez por ano.” Também afirmou que estes

economizam seus recursos econômicos para os carnavais e aniversários: “eles trabalham

duro para isso; nós vendemos os produtos nessas feiras”. Perguntei-lhe então quem seria

os “eles”, para o que me respondeu: “são os peões, gente do campo”. Esse irmão de

Alejandro igualmente ressaltou que as diferenças entre os agricultores eram econômicas

e no tamanho das terras. “Poucos têm capacidade para administrar o dinheiro”,

assinalou enfatizando: “a maioria é (também) peão e trabalha para nós”.

Conscientemente ou não ele estava dividindo aqueles que supostamente seriam

produtores e obreros dos demais cafeicultores que não precisariam trabalhar em chacras

alheias. Num ambiente social que valoriza a ascensão de um “peão” à condição de

agricultor, é evidente que os que não completaram esse processo tendem a ser menos

valorizados e, conseqüentemente, capazes de serem associados apenas à categoria mais

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subalterna. Mas é preciso ter em mente que um obrero é geralmente alguém que é de

fora, ou seja, o outro por excelência dentro de um espaço cafeicultor.

De acordo com o irmão mais velho de Alejandro, “o peão esta todo o tempo

trabalhando na chacra e incute isso nos seus filhos; o patrão e seus filhos podem

estudar”. Ele também falou de uma “simbiose” entre educação e economia: “se você dá

dinheiro para um agricultor sem educação, esse dinheiro vai ser mal gasto; se há

dinheiro mal gasto, então também é um problema de educação”. “Para sair da pobreza o

agricultor tem que ter um enfoque empresarial, de investimento, mas eles vivem o

momento”, disse. “Se construo uma piscina na minha casa em La Florida, eles vão ter

inveja disso”, assinalou ele que igualmente lembrou o fato de seus pais e avós terem

sido comerciantes. “Os pais de todos aqui foram ou são comerciantes”, comentou a

respeito dele e dos seus amigos que trabalhavam na central. “Os comerciantes têm outro

tipo de vida, eles têm tempo para a leitura”, afirmou destacando em seguida que nos

pueblos os “jornais de fofoca” eram comprados pelos “peões” e os jornais como o El

Comercio e o El Peruano (dois dos mais importantes jornais lidos pelas classes altas do

país) iam para os comerciantes e os “estudados”. “Os comerciantes tem acesso a outros

lugares, pessoas e modos de vida”, salientou. Ele acreditava que “filho de pai fazendeiro

(finquero)” tem educação dos pais e do colégio; já “os filhos de peão só tem educação

de colégio”. “Estar na posição de empregado te limita”, opinou num tom auto-reflexivo

e conclui: “quem esta acima tem mais liberdade”.100

O irmão do meio de Alejandro, e que estudava em La Florida, esteve comigo

durante minha visita aos indígenas que residiam numa “comunidade nativa” próxima ao

100 Outro funcionário da central e filho de sócio da cooperativa entrou na conversa e nos disse ironicamente: “peão uma vez ao ano toma cerveja que nem gringo” (isso significa que um obrero gastaria basicamente suas economias com bebidas alcoólicas para viver num dia do ano o que os estrangeiros viveriam de um modo mais freqüente).

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povoado.101 Ele havia me dito que seu avô sempre “apoiou” esses indivíduos e que

igualmente mantinha uma boa relação com eles. A Comunidad Nativa Eschormes fica a

uns 20 minutos de caminhada do pueblo, andando pela estrada de terra que, bem mais à

frente, dá na principal rodovia da selva central. É um território juridicamente constituído

e então formado por 20 famílias (nucleares, ou seja, cada uma composta de um casal e

seus possíveis filhos) de duas “etnias”: ashaninka e yanesha. Essa informação me foi

repassada pela primeira destas pessoas com a qual pude entrar em contato. Tratava-se da

“chefa” da comunidade e com quem agendei um encontro a ser realizado justamente

nesse lugar. Ela e seus quatro irmãos eram sócios da Cooperativa La Florida (ao

contrário dos outros indígenas da comunidade) e pude também os reencontrar na

assembléia da cooperativa realizada no final desse ano.102 A descontraída participação

deles na festa que se seguiu a esse evento demonstrava claramente que a história dessa

organização transcendia qualquer fronteira étnica ou cultural entre os agricultores.

101 “A partir de la Ley de Comunidades Nativas, promulgada en 1974, el estado peruano reconoce la existencia de los pueblos indígenas bajo la forma de comunidades nativas. Las comunidades nativas necesitan tener su personería jurídica para gestionar su título de propiedad comunal, o para realizar cualquier otra gestión ante el estado. Sin embargo, la Constitución del Perú reconoce la existencia de las comunidades nativas aún cuando no tienen su personería jurídica. Con la Ley de Comunidades Nativas de 1974, es estado reconoció título de propiedad comunal sobre el área demarcada a favor de las comunidades. En 1978 esta ley se reformó, a partir de lo cual, el estado otorga título de propiedad a la comunidad sólo sobre las áreas de aptitud agropecuaria y cede en uso exclusivo las áreas de aptitud forestal. Esto debe a que es estado considera los bosques como propiedad pública. Según la ley, las comunidades pueden usar los recursos del bosque para el consumo directo, mientras que para la extracción de madera con fines comerciales, deben obtener permisos anuales del INRENA.” (Instituto del Bien Común, 2006 p. 15) 102 Um dos seus irmãos comentou sobre a relação deles com a Cooperativa La Florida. Apontou o fato de que os quatro eram sócios da entidade, ao contrário dos outros indígenas da comunidade: “estes são convencionais”, assinalou contrastando com sua posição de produtores certificados como orgânicos. Ele falou das capacitações que recebiam da cooperativa e da dificuldade que tinham em melhorar a produção: “não temos poupança”, justificou. Ainda a respeito dos outros nativos: “os outros produzem pouco, tem meia parcela (meio hectare) e não podem ingressar na cooperativa”. “O colégio dos nossos filhos esta garantido, mas não temos dinheiro para mandá-los para a universidade”, comentou ressaltando: “o governo não nos apóia”. Reclamou também dos juros altos cobrados pela La Florida. Conversando com “os outros” nativos, me disseram que tinham que trabalhar em chacras alheias, pois aquilo que produziam em suas propriedades não cobriria nem suas necessidades alimentares.

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Foto 22 – A Comunidade Nativa Eschormes

Acontece que essa história se perpetua através das gerações mediada pelos

eventos que vão ocorrendo ao longo do tempo. A preocupação em participar

diretamente do desenvolvimento da cooperativa e de seus associados pode ser ofuscada

nas gerações mais novas diante dos processos de ascensão social que estejam

experimentando. Um exemplo disso é o caso de Alejandro e seus irmãos. O contrário

também é verdadeiro e possível de ser percebido através da experiência de uma jovem

moradora do povoado e sócia da cooperativa que me acompanhou durante uma visita

aos arredores do pueblo. Seu nome era Celina e na época presidia o Comitê de

Desenvolvimento Familiar da Cooperativa La Florida (a havia conhecido numa ocasião

anterior a essa minha visita a região).103 Ela me disse que a primeira turma de alunos

que concluiu o segundo grau no colégio do povoado se deu em 1985. No ano seguinte,

outros 15 alunos se formariam; cinco destes teriam cursado uma universidade e entre os

quais se inclui essa minha interlocutora. Celina citou um amigo seu que trabalhava 103 Ela explicou o papel deste comitê durante sua apresentação num “encontro de mulheres cafeicultoras”, organizado pelo grêmio nacional das organizações de produtores de café, na cidade de Lima, em novembro desse ano. Afirmou inicialmente que esse comitê trabalhava com as famílias cafeicultoras enquanto “empresas familiares”. Nele estavam inscritas 420 mulheres de 21 “comitês zonais”. Disse que o objetivo das empresas familiares era de que cada uma fosse sostenible, isto é, “capaz de se financiar com seus próprios recursos”. “As mulheres retiram (da Crediflorida) empréstimos entre US$ 150 e 200 para realizarem projetos viáveis, como a produção de derivados de leite, tecidos e bebidas”, ressaltou lembrando também do artesanato produzidos pelas indígenas ligadas à cooperativa. Momentos antes de começar a assembléia da La Florida no final de 2006, ela comentaria comigo que estes empréstimos faziam parte de uma carteira de crédito, dentro da Crediflorida, no valor de US$ 22.000 e podiam ser concedidos às sócias e às esposas ou filhas de sócios. Sobre esses financiamentos recairiam juros mensais de 0.80% e anuais de 10%.

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como dentista na Argentina e outro que exercia a profissão de advogado numa grande

cidade andina: “estamos melhor do que os outros que não foram até a universidade”,

acrescentou.

De acordo com ela, através do órgão governamental chamado Fondo de

Cooperación para el Desarrollo Social (FONCODES), o povoado havia recentemente

passado a contar com água potável clorada e uma rede secundária de eletricidade. De

qualquer maneira, Celina acreditava que “antes do terrorismo” o pueblo estava em

melhores condições. Ela falou do trabalho desenvolvido (em meados da década de 80)

pelos “engenheiros” Juan Lucas (um suíço) e Felix Marin no incentivo à diversificação

de fontes de alimento e como isto acabou sendo copiado por outras cooperativas. Só

com o governo de Alberto Fujimori (1990 – 2000) é que o estado teria chegado até La

Florida e para isso ela citou a escola que fora criada numa associação entre a

cooperativa e o FONCODES em 1996.104 Celina completou dizendo que essa escola se

colocou como “embrião” do CEOAS e que acabou assim dando continuidade ao

trabalho iniciado por Juan Lucas e Felix Marin.

Foto 23 – Crianças jogando futebol no centro do povoado de La Florida

104 O reconhecimento extremamente positivo do governo de Fujimori se colocou como algo recorrente nos discursos das pessoas com quem conversei ao longo da minha permanência na selva central.

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100

A experiência de Celina em torno de seu desenvolvimento pessoal parecia

convergir com sua visão do progresso vigente na cooperativa e na região onde esta

atuava. Mesmo porque essa moça se colocava como uma das protagonistas desse

progresso ao presidir o “comitê de desenvolvimento familiar” da La Florida. Tal como

Gorbachov, Celina era uma jovem que se sentia parte de um moderno empreendimento

coletivo realizado no interior do país. Ambos aparentavam estar vivenciando um mesmo

sentimento de realização pessoal e coletiva que muito provavelmente seus pais sentiram

quando vieram a prosperar enquanto produtores de café e membros da cooperativa. Essa

afinidade inter-geracional permitia uma verdadeira reprodução da comunidade entre os

sócios e de uma história que lhe era correlata.

O foco das seções seguintes é no passado da comunidade que precedeu a criação

da Cooperativa La Florida e que se perpetua através dela até os dias de hoje. Trata-se de

mostrar como, ao longo do tempo, a mobilidade social dos cafeicultores e o

“desenvolvimento” da La Florida caminharam juntos. Vale a pena então trazer

inicialmente a tona um cenário mais amplo em torno da vida das pessoas que

protagonizaram esses dois processos. Isso porque esse cenário não só nos permite

enquadrar suas experiências num contexto mais geral como também serve de referência

para esses próprios sujeitos se situarem fora do universo particular que vivenciam

conjuntamente ao redor da cooperativa.

2.5 O êxodo andino

Entre os textos acadêmicos que tratam do Peru, falar de migração é falar

principalmente de uma ocupação desenfreada de Lima por pessoas advindas da

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cordilheira andina.105 Até meados do século XX, a capital do país era uma cidade

habitada predominantemente por uma população identificada com o continente europeu.

Na verdade, as cidades peruanas seguiam sendo desde os tempos da colônia “reductos

privilegiados de criollos y mestizos viviendo una cultura de casi exclusiva raíz europea

y concentrando los instrumentos del poder.” (Matos Mar, 2004 p. 99) O universo andino

permanecia basicamente relacionado ao mundo rural. Mas essa relação não excluía uma

subordinação às estruturas coloniais e depois nacionais. (Golte, 2001 p. 116)

Era de se esperar que o expressivo crescimento demográfico que acometeu o

Peru, a partir dos anos 40, expandisse não só o tamanho da sociedade nacional como

também a mobilidade espacial no seu interior. (Contreras & Cueto, 2004 p. 300)

Fenômenos semelhantes a este vinham acontecendo em diversos países durante esse

período. A incapacidade de certas regiões rurais em prover os recursos demandados por

um número cada vez maior de pessoas socializadas numa economia de mercado se

mostrou como uma das principais causas da migração massiva aos lugares onde estes

recursos estavam concentrados. Esse deslocamento populacional acabou colocando em

xeque a capacidade de absorção dessa massa onde quer que tenha migrado.

Acontece que a capital peruana não foi o único destino dos migrantes andinos;

estes também se dirigiram em massa para outras cidades do país e zonas de fronteira

agropecuária. Neste último caso, se destacaram as regiões abarcadas pela floresta

amazônica.106 De qualquer maneira, a integração desse contingente populacional na

“sociedade nacional” se tornou uma das principais preocupações dos estudos

105 “Desde la década del sesenta persiste un boom en la literatura acerca de los procesos migratorios en el Perú, donde lo general se analizan los procesos migratorios hacia Lima. Sin embargo, son comparativamente pocos los estudios que se ocupan de los movimientos itinerantes hacia regiones rurales. (…) Los estudios acerca de la migración hacia ciudades de provincia, centros distritales u otras grandes urbes fuera de Lima también son escasos en la literatura. De esta manera Lima aparece como el punto de atracción central.” (Alber, 1999 p. 165) 106 Vale lembrar que a ocupação dessas regiões acabou sendo impulsionada através da construção da chamada Rodovia Marginal da Selva pelo governo de Fernando Belaúnde (1963-1968). De acordo com Contreras & Cueto (2004), essa estrada concretizava a visão que esse governo tinha da selva como uma válvula de escape para os conflitos que assolavam os cada vez mais inchados campos e cidades do país.

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acadêmicos a respeito do país como um todo. Um exemplo disso é o trabalho de José

Matos Mar (1984) sobre o que esse autor classificou como uma “crise do Estado” que

teria caracterizado o final do governo militar (1968-1980). De acordo com ele, essa

crise resultava numa incapacidade do poder público em atender as demandas populares

que aumentaram cada vez mais durante esse governo que justamente havia procurado se

legitimar enquanto condutor de uma revolução de caráter popular e anti-oligárquico.107

Vinte anos depois, Matos Mar (2004) continuaria falando de um divórcio ainda

existente no Peru entre a sociedade nacional e o Estado. Sua preocupação permanecia

sendo a respeito de, nessas condições, haver a mínima possibilidade de legitimação de

um poder público aos olhos da maioria da população.

Lo sucedido en estas dos décadas es de gran transcendencia, desborda lo imaginable. Como gobierno el país ha llegado a un límite muy peligroso de inviabilidad política. Al mismo tiempo coexiste una próspera macroeconomía nacional, con empresarios modernos y tradicionales – muchos surgidos de los emprendedores y exitosos sectores populares – debido en gran parte a la riqueza de nuestros recursos naturales, que muestra otra cara, la de una realidad exitosa. En contraste, más del 50% de la población total del país vive en situación de pobreza. (idem p. 128)

Essa desigualdade da qual fala Matos Mar também aparece ressaltada no

diagnóstico corrente de uma literatura que vem tratando daquilo que nela é definido

como uma incompletude ou anomalia da “modernidade latino-americana”.108 Tais

estudos partem do que concebem como sendo o moderno para apontar justamente o que

estaria por detrás da sua insuficiência nos países latino-americanos. A desigualdade que

tende a singularizar esses países é colocada nestes trabalhos como uma das principais

107 Julio Cotler (2005) fala de uma “crise do regime de dominação oligárquica” que precedeu a emergência desse governo militar através de um golpe de Estado em 1968. Já em relação às conseqüências desse governo: “Las reformas sociales decretadas por el Gobierno Revolucionario de la Fuerza Armada abrieron una caja de Pandora al impulsar el desarrollo y fortalecimiento de actores sociales que involucraban a capas populares y medias que, ciñéndose a los encendidos discursos revolucionarios, reclamaron participar en las decisiones oficiales, por lo menos, en aquellas que les concernía.” (idem p. 23) 108 Desta literatura destacaria José de Souza Martins (2000), Vivian Schelling (2000) e Nestor Garcia Canclini (2006). O acesso desigual aos benefícios comumente associados ao “mundo moderno”, entre os cidadãos latino-americanos, é um dos temas por excelência desses trabalhos. Em outras palavras, grande parte destes cidadãos estaria antes perversamente inserida na “modernidade” do que fora dela.

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explicações da realização parcial da modernidade nestes lugares. Isso porque o que esta

em jogo nestes textos é demonstrar e compreender o acesso desigual dos cidadãos

destes estados ao que seriam as conquistas próprias do “mundo moderno” e que

basicamente se realizariam mais plenamente nas nações ditas desenvolvidas. Nesse

sentido, esse acesso desigual é também creditado ao próprio contexto global

contemporâneo.

Mas ao contrário destas e outras perspectivas sobre a modernidade enquanto um

termo analítico, a ser definido e aplicado pelo pesquisador, o que se busca aqui, na

esteira das recomendações de James Ferguson (1999, 2005 e 2006), é percebê-la como

uma “categoria nativa” compartilhada por uma enorme e heterogênea população.109

Trata-se de relacionar as mais distintas concepções de modernidade que cruzam a vida

das pessoas, lembrando, como também coloca este autor, que o fato de habitarem um

universo social marcado por “projetos modernistas” não implica que desfrutem de

condições de vida que reconheçam como sendo “modernas”. Vejamos de perto um

exemplo disso e capaz de ser percebido com base principalmente nas experiências dos

indivíduos que participaram dos primórdios da Cooperativa La Florida.

2.6 De peões a cafeicultores

No livro Lives Together – Worlds Apart: Quechua Colonization in Jungle and

City, a antropóloga Sarah Lund Skar (1994) focaliza os deslocamentos de um grupo de

camponeses andinos entre o povoado natal destes sujeitos e a capital do Peru e também

entre o povoado e a selva central peruana. O vilarejo esta localizado na província de

Andahuaylas (departamento de Apurímac) e o livro é escrito da perspectiva da

109 “An anthropological account may make its most effective contribution to contemporary theoretical debates about modernity by turning an ethnographic eye toward conceptions (scholarly and popular alike) of the modern”. (Ferguson, 1999)

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comunidade de onde estes indivíduos partem e para a qual tendem a retornar após não

mais do que alguns meses fora. O recrutamento para o trabalho na colheita de café na

selva é geralmente feito, segundo a autora, através de agentes intermediários (os

engachadores) que com seus caminhões levam as pessoas da serra até um produtor que

precise dessa mão-de-obra.110 Quando ausentes de seu vilarejo, os camponeses são

chamados pelos seus conterrâneos de illaqkuna.

Illaqkuna of the montaña (selva) may see their moral career as compromised by their movement into a real dominated by the past and the rebellious forces of unconquered chunchos (indígenas amazônicos). Nevertheless, other contexts redefine life in the montaña as the place of the future, an open frontier where everyone can build. This is definitely the emphasis conveyed by government policy and investment in the region. Certainly most of the wealthier farmers with better lands and the misti populations in general who have other cultural affinities and wider political/economic experience see the montaña as the place of the future. (idem p. 214)

A autora aponta assim para dois fatores que condicionariam a permanência dos

migrantes andinos na selva: as políticas governamentais em prol da colonização da

floresta amazônica e uma afinidade prévia destes migrantes com a economia de

mercado. Trata-se de condicionantes não circunscritos à realidade que estes indivíduos

encontram quando estão trabalhando na colheita de café. Acontece que, durante a

permanência nas fazendas, é possível também que venham a tomar contato mais direto

com a cafeicultura e, dessa maneira, se sentirem encorajados a se tornar cafeicultores.

Fernando Santos e Frederica Barclay (1995) assinalam a existência dessa situação entre

os migrantes andinos que afluíram em massa à selva central a partir de 1950.

Cuando hacia 1950 el precio del café experimentó un alza sustancial, duplicando los precios promedio de 1940, este cultivo se convirtió en pieza clave de la estrategia de colonización y producción de los migrantes andinos, muchos de los cuales llegaron inicialmente a la selva central como cosechadores eventuales atraídos por el incremento de la demanda de mano de

110 Santos & Barclay (1995) ressaltam que a migração andina para as regiões cafeicultoras da selva central se dá basicamente enquanto mão-de-obra contratada para o trabalho nos cafezais. A esmagadora maioria dos cafeicultores com os quais me deparei na selva central era oriunda dos Andes e havia primeiro trabalhado em alguma propriedade cafeicultora antes de adquirir um terreno onde passou a viver e cultivar o café. A contratação de mão-de-obra para o trabalho nas plantações, o chamado engache, pode também ser feita por alguém da família produtora que se dirige até um povoado da cordilheira.

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obra por parte de las haciendas cafetaleras. En la medida que este cultivo permitía a los migrantes establecerse y acceder a la posesión de tierras, gracias a la posibilidad de obtener ingresos monetarios relativamente estables – complementarios o alternativos a la venta de su fuerza de trabajo – el mismo fue rápidamente incorporado a las pequeñas parcelas colonas. Este proceso fue facilitado por la propia práctica de los hacendados de emplear ‘mejoreros’ y ‘contratistas’ como mecanismo para ampliar sus cafetales, experiencia que otorgó a un amplio sector de colonos migrantes los conocimientos básicos requeridos para iniciar una pequeña producción independiente. Aprovechando la apertura de caminos forestales, adelantándose muchas veces a la llegada de carreteras, y ocupando tierras adjudicadas a haciendas, o desplazando a la población indígena local, la producción cafetalera fue el medio por el cual a partir de la segunda mitad de este siglo nuevas áreas fueron progresivamente incorporadas a la dinámica económica regional y nacional. (idem p. 116)

Mas a socialização na produção de café não deve ser entendida apenas como

uma familiarização com as técnicas em torno desse cultivo. É possível pensá-la também

como uma incursão numa espécie de comunidade criada inicialmente ao redor dos

cafezais. Essa é justamente a situação que parece ter permeado a experiência de muitos

dos trabalhadores que passaram pela fazenda de Hector Marin. Tratava-se de uma

grande propriedade situada numa região da selva central conhecida como Palomar. De

acordo com o que aparece na página eletrônica da cooperativa mantida hoje em dia

pelos filhos deste produtor:

Nuestros padres Héctor y Rosa nacieron en 1914 y 1916 respectivamente, en la región andina de Cajamarca - Perú, quienes por la difícil situación socio-económica en que atravesaban tuvieron que emigrar a Lima y luego a la Selva Central iniciando así este proceso de migración. Don Héctor a la edad de 28 años, quien luego de trabajar en diferentes labores es que en el año 1942 ingreso a la región de Villa Rica - Palomar en donde trabajo como aserrador de madera y con ello comprar sus tierras para la instalación de sus plantaciones de café, cultivo que realizo con mucha responsabilidad en la calidad, en lo ambiental, en lo social, logrando crear (en 1953) la primera escuela de la región en su finca, liderando la apertura de carreteras, la creación de centros de salud, y la creación de la primera cooperativa cafetalera del Perú (Cooperativa Villa Rica 1965) labores que sus seis hijos y sus familias continúan realizando a pesar de muchas dificultades (crisis mundial del café: precios por debajo del costo de producción y factores socio políticos nacionales). (www.coopchebi.com.pe)

Um dos filhos de Hector me contou que seu pai conseguiu guardar uma

considerável quantia de dinheiro trabalhando como madeireiro para um grupo de

colonos de origem tirolesa (austro-alemã) e com esse recurso pôde comprar 150

hectares de “monte virgem” da Colônia do Perene (cuja proprietária era a companhia

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inglesa Peruvian Corporation).111 Os trabalhadores que primeiro vieram trabalhar na

sua fazenda eram também naturais de Cajamarca (norte do Peru); depois ele passou a

trazer pessoas da província de Andahuaylas (sul do país). Segundo Manuel Manrique

(1982), Palomar se converteu na primeira zona loteada e vendida pela Peruvian

Corporation (as vendas dos lotes começaram a ser feitas em 1949). Foram vendidos 284

lotes e com 27 hectares em média de tamanho. (idem p. 53) Isso significa que a

extensão da propriedade de Hector Marin se destacava em relação àquelas ao seu redor.

Frederica Barclay (1989 p. 194) comenta o seguinte a respeito das conseqüências em

torno das vendas iniciais de terrenos dentro da Colônia do Perene:

Las ventas de tierras efectuadas por La Colonia en las zonas de El Palomar y Sanchirio dieron como resultado una mayor presión de parte de colonizadores para obtener tierras en venta. La presión sobre esta zona era ejercida desde dos frentes: desde el Paucartambo y desde la nueva colonia de Villa Rica. Esta última había sido fundada en 1925 al norte del lindero septentrional de la Colonia del Perené, y estaba conformada por colonos tiroleses venidos del Pozuzo, Oxapampa y el sur de Chile, a los que se sumaron colonos procedentes de la sierra. En la medida en que esta colonización fue convirtiéndose en un polo de atracción, la zona de El Palomar fue a su vez recibiendo mayor presión. Cuando estos núcleos iniciaron las

111 O contrato Grace, assinado pelo congresso peruano em 25 de outubro de 1889, e que cancelava a dívida peruana adquirida através de empréstimos nos anos anteriores, dava aos detentores dos bônus ligados a este contrato inúmeras vantagens, sendo as principais aquelas referentes à administração do sistema ferroviário nacional. Mas uma delas se destacava não apenas nos seus aspectos econômicos: “Se les concedió a los bonistas 2’000,000 de hectáreas en tierras de montaña para la creación de 4 colonias distintas en los lugares que más adelante serían determinados y los que habría que empezar a trabajar en un plazo máximo de três años y concluir-los en nueve. Para ello debían fomentar la inmigración pues existía el compromiso de colonizar estas zonas con gente de ‘raza blanca’.” (Barclay, 1989 p. 33) Uma área de 500,000 hectares de selva alta acabou enfim sendo utilizada com propósitos de colonização, num empreendimento que ficou conhecido com o nome de a Colônia do Perene, e realizado sob os auspícios de uma companhia inglesa, chamada Peruvian Corporation, criada em 1890 para “administrar os direitos e obrigações dos detentores dos bônus derivados do contrato.” (idem p. 34). Segundo a antropóloga peruana Frederica Barclay (idem p. 41), o interesse dos ingleses com esse empreendimento era produzir cafés de tão boa qualidade e, conseqüentemente, de retorno financeiro igualmente elevado, quanto os que eram obtidos com os cafés que produziram no Ceilão antes do declínio da produção cafeeira nesse país. Eles encontraram no entorno do rio Perene condições ecológicas semelhantes às das áreas onde o café era cultivado nessa nação asiática e, diante disso, restava desenvolver na selva peruana as condições tecnológicas para a produção de um grão de tamanha qualidade e valor. A tese da autora é que este projeto de colonização teve um impacto substancial tanto na configuração da região como um espaço econômico, social e político com características próprias quanto nas transformações que afetaram as populações nativas locais. A existência desse projeto, apoiado em capitais ingleses, permitiu que a integração dessa região no mercado internacional de café persistisse nos momentos de crise nos preços desse produto, ao contrário do que ocorreu naquelas regiões amazônicas assoladas por “booms”, como o da borracha, por exemplo.

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coordinaciones para construir una carretera que los vinculara a la carretera troncal, la presión sobre las áreas incultas de la Colonia empezó a hacerse intolerable.”

Hector também comprou um pedaço de terra numa região a leste de Palomar e

próxima de onde se localiza hoje o povoado de La Florida. Mas alguns de seus

trabalhadores decidiram não pagar à Peruvian Corporation pela posse de terrenos

situados nessa região. A avó de Alejandro se tratava justamente de alguém que

participou da ocupação desse território. Ela é natural do departamento de Cajamarca e

parente de Hector Marin. Durante nossa conversa, manteve em suas mãos o chapéu

característico dos cajamarquinos e o qual colocou sob sua cabeça assim que saiu de sua

casa.

Como assinalado anteriormente, ela mudou-se para a selva central em 1955 e na

companhia de seu marido e de seus filhos. Os dois e seu filho mais velho vieram

trabalhar como obreros na fazenda de Hector Marin. Ao mesmo tempo em que iam

conduzindo esse trabalho deram início, com a ajuda dos filhos mais novos, à ocupação

de um terreno próximo do atual povoado de La Florida. Para isso costumavam sair às

seis da manhã de Palomar e chegavam às seis da tarde nesse terreno: “o caminho não

era nem sequer uma trilha”, me disse essa senhora enfatizando assim a precariedade do

trajeto que faziam a pé. “Aqui era tudo monte (virgem), os espinhos nos arranhavam”,

ressaltou apontando também para o fato de que sua filha mais nova freqüentemente

desmaiava no trajeto dada a falta de água para beber.112

Durante essa época, a senhora, seu marido e o filho mais velho do casal

trabalhavam ao longo de uma semana em Palomar “como obreros” e na semana

seguinte se dedicavam ao seu terreno em La Florida, para então retornar até Palomar e

assim sucessivamente. Nessa última localidade, procuravam adquirir os recursos “para

112 Monte real ou monte virgem é como os colonos definem as terras não cultivadas. Também as caracterizam simplesmente como monte.

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comprar alimentos e vir poder trabalhar na chacra”. Com o dinheiro obtido em Palomar,

compravam alimentos no povoado de San Luis Chiaro, apesar de que também não havia

uma trilha propriamente dita entre esse povoado e La Florida. “Acabava a comida, tinha

que ir trabalhar para ter o que comer; agora há estradas e casas, antes não havia isso”,

ressaltou. De Palomar traziam sementes de frutas, mulas, cachorros e galinhas: “quem

construía sua casa ia vivendo aqui”.

Ela contou que seu marido chegou a ter uma chacra em Palomar comprada de

um determinado sujeito. Nessa chacra plantavam café e tinham uma casa de três pisos:

“mas lá demorava muito para produzir”, ponderou acrescentando que “em Palomar não

havia mandioca e a bananeira demorava demais para crescer”. “Como tínhamos muitos

filhos, tínhamos que ter mais”, assinalou apontando em seguida para o fato de que todos

os seus 11 filhos vieram a trabalhar na chacra de La Florida.

“Os primeiros (colonos) que entraram em La Florida sofreram”, sintetizou

afirmando também que estes colonos “tinham que ir de bote até Pampa Silva retirar os

papéis das chacras”. Ela estava se referindo à localidade onde ficava a sede da Colônia

do Perene. Antes dos colonos chegarem num acordo com essa empresa, a situação na

região que abarcava esse empreendimento era bastante tensa: “os gringos tinham quase

tudo, diziam que iam tirar os colonos e estes se preparavam para enfrentá-los”, disse.

Sobre a área dentro da qual vieram a se estabelecer: “aqui havia apenas (índios) campa,

os nativos tinham medo dos colonos e se retiravam mais para dentro”, destacou usando

uma expressão pejorativa para definir os indígenas da etnia ashaninka. Frederica

Barclay (1989 p. 200-201) oferece uma descrição abrangente da situação em torno dos

terrenos da Colônia do Perene durante a passagem dos anos 50 para os 60.

Cada vez se abrían nuevos frentes de conflicto en el área de la concesión de la Peruvian Corporation, lo que llevaría a la Colonia del Perené a intentar nuevos tipos de respuestas para las diferentes situaciones. En la margen derecha del Perené, donde la empresa no había establecido

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plantación alguna, la Colonia se había limitado anteriormente a alquilar algunos terrenos a colonos y nativos. Cuando los conflictos e invasiones estallaron, a raíz de la entrada masiva de colonos provenientes de Chanchamayo, Satipo y la sierra de Jauja, la Colonia enfrentaba aún el problema de Yurinaki. Aquí también los colonos formaron asociaciones con el fin de defenderse de las amenazas de la Colonia y poder ejercer presión sobre la opinión pública. Esta vez, la Colonia actuó recorriendo a una activa campaña publicitaria, que dio lugar a una verdadera batalla en los diarios de Huancayo, Jauja, Tarma y Lima, haciendo efectivas sus amenazas de utilizar la fuerza pública e incentivando la formación de asociaciones paralelas que debían enfrentarse a aquellos que la Peruvian Corporation consideraba invasores de sus tierras. Para lograr dividir el movimiento la Colonia procedió a vender lotes a aquellos dispuestos a celebrar un contrato de compra e venda e incluso cedió a algunas personas lotes en esta zona. En el año 1960, los conflictos alcanzaron su punto más álgido con continuas intervenciones policiales y desalojos.

A senhora e seus familiares estavam situados na margem esquerda do rio Perene

e faziam parte daquilo que Barclay define como “o problema do Yurinaki”, se referindo

ao nome de um dos rios que deságuam no Perene. Foram 25 colonos os primeiros a

repartir as terras da Colônia ao redor do povoado de La Florida e essa divisão se

realizou através de “seções”, segundo a avó de Alejandro, na sede da empresa.113 Os

lotes eram sorteados e tinham por volta de 20 hectares cada um. “Os filhos dos

fundadores pegaram os terrenos livres, não havia parcelamento, havia muito terreno

livre”, enfatizou se identificando como um dos “fundadores”. Em 1962, venderam a

chacra que tinham em Palomar e se mudaram definitivamente para La Florida.

Trabalhavam uma semana na propriedade de cada um dos outros colonos e estes faziam

o mesmo.114 Essa troca não-monetizada de trabalho perdurou ao longo de três anos.

“Quando já havia café, passamos a trazer gente da serra”, disse ressaltando que cada

chacra precisava de quatro a cinco “peões”. “Poucos obreros ficavam (morando em

definitivo) na selva, os que tinham suas chacras na serra voltavam”, explicou.115

113 Ela citou o nome de cinco desses fundadores e seus respectivos lugares de origem: Huánuco, Huancayo, Cajamarca, Villa Rica e Andahuaylas. Conversando, num outro momento, com um dos filhos dessa senhora, este me informou que as “reuniões” em Pampa Silva aconteceram em 1960. Já sobre a delimitação dos territórios em que vieram a se estabelecer: “medíamos com pita, 500 metros equivalia a 50 hectares, depois, com a medição atual, descobrimos que os terrenos eram menores, mediam 107 metros, o que dava 24 hectares, mas a idéia era cada um ter 50 hectares”. 114 Ela disse que muitos dos colonos voltavam até sua terra natal e de lá traziam suas esposas. 115 De acordo uma filha dessa senhora, seu pai chegou a trazer 15 personales do norte do país para trabalhar, ao longo de quatro meses, na sua plantação de café. Ele dava a passagem de volta gratuitamente para os que ficassem os quatro meses, mas “uns iam embora antes, não se adaptavam”.

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Como assinalado anteriormente, com base no discurso dessa senhora é possível

perceber uma representação em torno da mudança da condição de obrero para a de

produtor como um indicativo local de um processo mais geral de ascensão social. O fato

dela e seus familiares terem deixado de trabalhar como peões para cultivar café em sua

própria chacra em La Florida certamente foi uma conquista muito importante em suas

vidas. As dificuldades que enfrentaram para atingir esse objetivo parece ser assim a

tônica de seu discurso. Mas a questão é entender esse discurso no contexto de uma

espécie de comunidade (criada entre os trabalhadores de Hector Marin e expandida ao

longo do tempo) onde o enfrentamento desses percalços é justamente aquilo que une e

também distingue seus membros entre si. Passar da condição de peão para a de produtor

numa época onde, por exemplo, a infra-estrutura viária praticamente não existia é algo

que certamente ganha um maior relevo na medida em que essa infra-estrutura vai se

tornando menos precária.

Mas a narrativa desse sacrifício em se tornar cafeicultor também pode ser

entendida como uma justificativa para a posição quase que invariavelmente mais

privilegiada dos que se tornam produtores antes dos demais ao seu redor. Quem ascende

primeiro ao status de produtor de café tende a acumular mais recursos do que os

obreros que ascendem depois. Por exemplo, a família dessa senhora se tornaria uma das

economicamente melhor posicionadas entre as que colonizaram a região.116 Por outro

lado, existem os casos que estas pessoas chamam de “fracassos”. Muitos produtores

antigos explicam sua posição econômica inferior em relação aos mais novos pelo fato

de terem gasto “inutilmente” seu dinheiro em “festas” (incluindo não só os festejos

familiares como também casas de prostituição e bares localizados nos povoados maiores

116 Logo após se estabelecerem no povoado, a esposa do seu filho mais velho passou a vender comida para as pessoas que igualmente procuravam viver em La Florida. Com o dinheiro das vendas, puderam construir uma hospedagem nesse pueblo. Os recursos provenientes do café permitiram que fizessem um estabelecimento ainda maior.

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111

da região).117 Encontrei alguns desses agricultores, outrora considerados “fracassados”,

que diziam ter deixado de lado essa vida “errática” ao se tornarem evangélicos.

2.7 Uma comunidade de migrantes

Em 1960, o filho mais velho da senhora e outros migrantes andinos beneficiados

pela doação de terrenos por parte da Colônia do Perene fundaram e se tornaram os

dirigentes da chamada Associação de Pequenos Produtores do Baixo Yurinaqui. Os

agricultores me disseram que viraram dirigentes aqueles que tinham mais instrução; o

filho mais velho da senhora, por exemplo, havia cursado até o terceiro ano primário (em

outras palavras, ele sabia ler e escrever). A associação formada por estes, em sua

maioria, ex-trabalhadores de Hector Marin passou a organizar a ocupação de um

território da Colônia situado entre as cuencas (bacias hidrográficas, em espanhol) do rio

Yurinaki e do rio Ubiriki (outro afluente do Perene, só que mais a leste). Através de

encontros mensais no povoado de La Florida, os interessados em adquirir um lote

encontravam com um ou mais colonos que conheciam uma determinada zona (os

chamados fundadores deste local) e que lhes indicavam onde poderiam se estabelecer.

“Se não fosse a Associação (de Pequenos Produtores do Baixo Yurinaqui),

ninguém ficaria na selva”, me disse um desses produtores beneficiados.118 Ao longo da

década de 60, muitos obreros se depararam assim com uma instituição que lhes permitia

adquirir um pedaço de terra no território em nome da Colônia do Perene. É verdade que,

na medida em que esta aquisição foi vista como ilegal, seus dirigentes chegaram a ser

117 As principais categorias de acusação dos produtores que “não progrediram” são a de “bêbado” e a de “vagabundo” ou “conformista”. 118 Os interessados em participar da associação deveriam pagar uma cota que variava entre 10 a 20 soles. De acordo com um produtor: “esse valor era bastante alto para nós naquela época”. De qualquer maneira, esse valor era irrisório se comparado com o preço que a Peruvian Corporation cobrava pelos terrenos que estava vendendo nesse período: 200 soles, em média, para um hectare de terra. (Manrique, 1982 p. 66)

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presos por ordem da Colônia (apesar de alegarem que este empreendimento não havia

cumprido com seus compromissos contratuais, firmados com o governo, e que

implicavam na necessidade de uma promoção da colonização na região). Mais isso não

impediu que a associação permanecesse funcionando. A página eletrônica do distrito de

Perene descreve da seguinte maneira o contexto mais geral dentro do qual se deu esta

ocupação das terras então sob o domínio da Peruvian Corporation.

Entre 1950 y 1960, grupos organizados de Peruanos inician la toma de posesión de estas tierras, ingresando por diversos sectores como los pequeños Agricultores de Bajo Yurinaki, que se asentaron en la Florida, otros ingresaron por el puente Quimiri llegando a Villa Amoretti, otros grupos toman posesión en Villa Anashironi, Puerto Victoria, Sotani - Perené, etc.; todos ellos fueron denunciados y perseguidos como invasores, por la Peruvian Corporatión Limited. (www.muniperene.gob.pe)

Manuel Manrique (1982 p. 86) aponta para o fato de ter existido uma cooptação

dos “invasores” das margens direita e esquerda do rio Perene pelos partidos políticos da

época, a partir do momento em que o procurador geral da república passou a questionar

legalmente a posse dos terrenos pela Peruvian Corporation. Acontece que as “invasões”

nas terras desta empresa aconteceram num momento de grande efervescência e agitação

camponesa no país. Segundo Manrique (idem), os conflitos existentes em outras regiões

peruanas (localizadas nos departamentos de Cusco e Pasco) foram fatores determinantes

para o surgimento das organizações orientadas para a ocupação dos territórios entregues

à Peruvian. Nestas outras regiões, eram os próprios trabalhadores das fazendas e os

membros das comunidades próximas a elas que as invadiam. No caso da zona de

Perene, a maior parte dos invasores praticamente não tinha nenhuma relação com as

terras que vieram a ocupar.

No plano jurídico, a luta pelo reconhecimento das terras ocupadas pela Colônia

do Perene se desenvolveu na maioria dos casos de modo burocrático, através das

numerosas ações judiciais feitas pelos assessores legais de uma Federação de

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Comunidades Camponesas ligada a certos deputados de um importante partido político

da época (a União Nacional Odriísta).119 Por conta dessa modalidade burocrática de

ação, quem dirigia o movimento não eram os líderes escolhidos pelos camponeses, mas

os assessores legais da federação. Apesar de aludirem à ilegalidade da posse das terras

por parte da Peruvian Corporation, estes últimos não buscavam questionar os seus

direitos de posse (muitas vezes, inclusive, se aceitavam arranjos legais por meio da

compra dos terrenos), mas apenas aproveitavam essa situação de instabilidade da

empresa para que os camponeses tivessem acesso a uma parcela de terreno. Esses

assessores criaram instituições e órgãos de imprensa através dos quais vinculavam a

imagem de um vigoroso apoio por detrás destas invasões. Por seu lado, as associações

dos que ocupavam as terras da Colônia tiveram como papel principal coordenar a

divisão das propriedades. Nesse plano, houve sim constantes episódios de violência,

notadamente da polícia para com os “invasores”.

Vale ressaltar que o afluxo massivo de pessoas para a região em torno do rio

Perene se deu numa conjuntura internacional dentro da qual vigorava um aumento

bastante expressivo nos preços do café desde o final da década de 40. Isso significava

uma maior demanda das fazendas por trabalhadores e, conseqüentemente, mais gente

vinda de fora que passou a se interessar em obter um pedaço de terra. Segundo Santos &

Barclay (1995), a Reforma Agrária realizada em 1965 pelo governo de Fernando

Belaúnde na selva central procurou afastar dessa região a ocorrência de conflitos

119 “Hay que remarcar que la iniciativa para la conformación de la Federación de Campesinos de Jauja, no surgió de los mismos comuneros, sino que fue más bien producto de la labor desplegada, por personas provenientes de áreas urbanas. (...) El movimiento campesino de Jauja tuvo entre sus organizadores a dirigentes odriístas (...), quienes fueron los principales propulsores de las invasiones de tierras.” (Manrique, 1982 p. 86) A União Nacional Odriísta (UNO), partido do general e presidente peruano Manuel Odría (1948 -1956), competia com o partido Aliança Popular Revolucionária pela representação dos “invasores” da Colônia do Perene: “Para los distintos partidos políticos, este conflicto significó la oportunidad de buscar participación con el fin de ensanchar sus influencias como podría deducirse de las diversas manifestaciones de apoyo a los invasores por parte de representantes parlamentarios. Estas muestras de adhesión solo se hicieron significativas cuando se había ingresado a un período de abierto cuestionamento legal de la posesión de los terrenos de la Peruvian a partir de la demanda iniciada por el Procurador Genneral de la Republica”. (idem)

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agrários como os que vinham acontecendo nas fazendas no sul do país. 120 Isso acabou

resultando no fim da repressão policial em cima dos que ocupavam as terras da Colônia

do Perene.

O estabelecimento maciço de migrantes andinos na selva como produtores de

café deve ser entendido também dentro de uma conjuntura mais ampla em torno desses

migrantes e a qual foi definida nesse capítulo como o êxodo andino. Ao longo da

década de 60, a aquisição de um terreno dentro do território da Colônia do Perene

passou a encontrar cada vez menos opções, principalmente nas áreas próximas às

estradas.121 De acordo com Santos & Barclay (idem), a generalização de um mercado de

terra na selva central acabou sendo impulsionada mesmo diante da reforma agrária

promovida em 1969 pelo governo militar e que proibia a compra e venda de terrenos.122

A valorização dos sacrifícios por detrás do ato de compra de um pedaço de terra

pode ser percebida nas narrativas de diversos produtores. Um exemplo é trajetória de

um produtor que vivia numa zona mais afastada em relação ao povoado de La Florida.

Ele me disse que chegou em 1962 à selva central e na companhia de sua mulher (eram

recém casados e sem filhos, com ele só tendo cursado o primeiro grau). Os dois também

vieram acompanhados de seus vizinhos no povoado em que viviam quando moravam no

departamento andino de Apurimac (província de Andahuaylas). Na sua província não

havia muita oferta de trabalho e sua mudança para a selva central seria apenas para

ganhar algum dinheiro e depois ir até Lima. Trabalhou oito anos como “peão” em

Palomar. Dormia com sua esposa num pequeno quarto e ainda não tinha filhos.

120 “Las acciones de la Reforma Agraria belaundista en el Perené – donde se declaró la caducidad de la concesión de la Peruvian Corporation – y en Satipo – donde se afectaran los numerosos fundos abandonados – estuvieron orientadas a evitar que se afirmaran en la selva central movimientos campesinos y sindicales como los de La Convención y Lares”. (Santos & Barclay, 1995 p. 94) 121 Vale ressaltar que, durante essa época, uma epidemia de sarampo dizimou boa parte dos indígenas nativos que viviam no interior da selva central. 122 Muitos produtores costumavam dizer que adquiriram suas terras através de “transferências”. “En el marco de la pequeña propiedad estas transferencias se realizan en términos de venta de ‘mejoras’, es decir, lo que aparece como vendido no es la tierra, sino las plantaciones, pastizales, viviendas u obras de infra-estructura existentes en una determinada parcela.” (Santos & Barclay, 1995 p. 125)

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Ressaltou que não “gastava com festas” e que por isso mesmo pode juntar dinheiro e

comprar um terreno de nove hectares (a propriedade contava com uma casa e plantações

de café). Com essa aquisição acabou “progredindo” e deixando de lado sua intenção

original de usar as economias que adquirisse na selva para complementar sua educação

em Lima. O ponto é que ele encontrou um espaço social dentro do qual seus logros

eram valorizados: a Cooperativa La Florida.

Ela se constitui numa instituição que dá continuidade a uma comunidade

iniciada por alguns dos migrantes que estiveram empregados na fazenda de Hector

Marin em meados do século passado.123 Estes trabalhadores conduziram tanto a

fundação da Associação de Pequenos Produtores do Baixo Yurinaki quanto da

Cooperativa La Florida e a afinidade entre essas duas entidades reside no próprio “raio

de ação” desta cooperativa.

A constituição das organizações de produtores de café na selva central não pode

ser entendida sem levar em conta o seu processo de colonização e o cenário nacional

pró-cooperativista da década de 60 (em 1964 foi aprovada no país a “lei de

cooperativas”).124 De acordo com Santos & Barclay (2005 p. 124), com a expansão no

número de colonos produzindo café nessa região, começaram a funcionar na capital

regional, La Merced, armazéns de comerciantes intermediários, e os quais passaram a

financiar a colheita dos produtores em troca de seus cafés. Como reação frente ao

123 Lembro de um dia, durante minha hospedagem na sede da antiga fazenda de Hector Marin, quando seu filho Felix me mostrou dois quadros contendo um certificado cada um: o primeiro era de 1984 e assinado pelo Papa João Paulo II e o segundo de 1997 com a assinatura do então presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton. Ambos os documentos parabenizavam Don Hector pelas suas inúmeras atividades sociais (em especial, a de ter empregado deficientes mentais em seu supermercado localizado em Lima). Recentemente, Felix foi homenageado pelo congresso peruano. Para além dos campeonatos de futebol e outras atividades recreativas que Hector organizou entre seus obreros, acredito que foi ele quem plantou a semente para que a experiência em torno da La Florida surgisse. Em outras palavras, Don Hector certamente serviu de exemplo ou modelo de vida para Felix e também para estes sujeitos. Ele se mostrou uma referência concreta de que um migrante andino podia “progredir” (progresar) e levar consigo aqueles ao seu redor. 124 As medidas, em prol do cooperativismo, adotadas pelo governo militar instaurado em 1968, tiveram como resultado a integração em massa dos cafeicultores peruanos em cooperativas.

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monopólio exercido por estes comerciantes, os produtores organizaram, a partir de

meados da década de 1960, diversas cooperativas, tendo em vista a venda direta de seus

grãos para os exportadores em Lima. A primeira dessas organizações foi a Cooperativa

Vila Rica, fundada em 1965 pelos colonos tiroleses e andinos que estavam situados do

lado de fora da fronteira norte da Colônia do Perene (como era o caso de Hector Marin).

Ao contrário dessa cooperativa, que admitia como sócio qualquer produtor de café, a

Cooperativa La Florida, criada em 1966 pelos membros da Associação de Pequenos

Produtores do Baixo Yurinaqui, só aceitou a filiação dos agricultores localizados num

certo limite espacial.

Como assinalado anteriormente, o “raio de ação” da La Florida trata-se de um

território, de aproximadamente 35.000 hectares, dentro do qual vivem os produtores

autorizados a se associarem a ela. Sua configuração praticamente obedece aos limites da

colonização empreendida através da Associação de Pequenos Produtores do Baixo

Yurinaki entre a bacia hidrográfica do rio Yurinaki e a do rio Ubiriki. Em tal cenário, a

evidentemente difícil situação enfrentada pelas pessoas que procuraram melhorar de

vida, por meio do cultivo de café, era também levada em conta na justificativa das suas

“sociodicéias” (Bourdieu, 1998).125

Lembro da conversa que tive com o jovem produtor, não associado à

cooperativa, que vivia no povoado de La Florida. Seu pai havia migrado de Cajamarca

em 1976 para trabalhar na fazenda de Hector Marin. Contudo, “nunca comprou uma

chacra”. Perguntado por esse seu filho o motivo disso, respondeu: “eu trabalho somente

para dar de comer e educar vocês”. No final de nossa conversa, o jovem cafeicultor me

disse: “há terras livres, mas as pessoas não têm dinheiro, tem que levar semente de tudo;

quando os fundadores nos contam como se instalaram aqui, vemos o tanto que

125 “Max Weber dizia que os dominantes têm sempre necessidade de uma ‘teodicéia’ dos seus privilégios, ou melhor, de uma sociodicéia, isto é, de uma justificação teórica para o fato de serem privilegiados”. (Bourdieu, 1998 p. 59)

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sofreram”. Isso significa dizer que ele reconhecia os argumentos usados pelos

“fundadores” para justificar suas posições sociais privilegiadas, apesar de seu pai não

ter se tornado um proprietário de terra.

Fundador era uma categoria usada igualmente pelos “indígenas nativos” que

viviam na região. Um exemplo é o dos filhos de um dos fundadores da “comunidade

nativa” que fica a uns vinte minutos a pé do povoado de La Florida. Como dito

anteriormente, pude conversar com sua filha (a “chefa” da comunidade) e que junto de

seus irmãos eram considerados os que tinham mais recursos entre os 60 “nativos” que

moravam nessa localidade, além de serem os únicos filiados à Cooperativa La

Florida.126 Ela relembrou o seu pai e o irmão dele como os fundadores deste território

que mais tarde seria registrado legalmente enquanto uma “comunidade nativa”. Ambos

trabalharam na sede da Peruvian Corporation: “os dois vieram para cá numa época na

qual os nativos só povoavam as margens dos rios e não conheciam os bosques”. “Eles

chegaram aqui por volta de 1960 e depois veio a colonização (andina)”, me disse. Os

colonos andinos teriam usado os dois como guias e se apoiaram neles para construir um

“acampamento de chegada” e a armação e o teto da primeira escola que existiu em La

Florida. Esses dois irmãos e mais outro parente acabaram conseguindo juntos 120

hectares com a Peruvian Corporation durante a “titulação” promovida por essa

companhia entre os colonos.

Muitos produtores com quem conversei me contaram que adquiriram suas

propriedades de um fundador do “povoado” ou “anexo” onde vivem. Alguns receberam

o terreno como pagamento pelos serviços prestados aos fundadores e outros compraram

126 Um nativo que acanhadamente participava da nossa conversa interrompeu o discurso da chefa e de uma maneira um pouco constrangida afirmou ter meio hectare e que vendia seu café para os “intermediários”. “O terreno não é bom para o café”, ponderou. Em seguida, ressaltou que “são muitos os requisitos para entrar na cooperativa”. Logo após reclamar dos políticos, assinalou: “saio para trabalhar como peão, para alimentar o lar”. Um dos irmãos da chefa o interrompeu e lhe disse: “dá para se trabalhar com meia quadra, é só fazer bem feito”.

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parte ou a totalidade das terras de um desses pioneiros “colonizadores” da região. É

verdade que, num momento posterior à “fundação” de uma localidade, alguém pode ter

“agarrado” um pedaço de terra (ainda) “livre” (geralmente de difícil acesso e bastante

pendente) sem ter sido um fundador e, conseqüentemente, tê-lo vendido ou não. O

importante é ter em mente a carga simbólica em torno da figura do fundador dentro de

um contexto local mais amplo que incluem diversos anexos e alguns povoados. Isso

porque os míticos 50 “fundadores” da cooperativa são considerados figuras de destaque

nesse contexto. Trata-se tanto de um imaginário em torno de uma posição de destaque

ligada à colonização, que se perpetua através do fenômeno do cooperativismo, quanto

da continuidade de um reconhecimento ao redor das pessoas propriamente ditas que

ocupam essas posições.

A questão que surge dessa noção de “fundador” é a de que dar início a um

empreendimento qualquer nesse cenário é algo que proporciona bastante prestígio. Os

que primeiro plantaram café na região e conseguiram melhorar substancialmente suas

condições de vida são reconhecidos não apenas pelos seus logros, mas porque se

depararam com uma infra-estrutura (estradas e escolas, por exemplo) bem mais precária

do que aqueles que vieram depois. O mesmo vale para os sócios que iniciaram a

cooperativa e tiveram menos facilidades do que os que se filiaram quando esta já havia

se desenvolvido comercialmente e passado a oferecer uma ampla gama de serviços. Isso

também pode ser estendido para se pensar tanto os moradores “mais antigos” (mesmo

que não sejam fundadores) e os “mais novos” quanto os sócios que se filiaram num

determinado período e os que se filiaram posteriormente.

Existe uma percepção de que as coisas vão melhorando ao longo do tempo:

muitos peões se tornaram cafeicultores e os filhos de alguns destes chegaram até o

ensino superior. Isso é capaz de ser percebido, por exemplo, na família do agricultor,

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citado anteriormente, que comprou um pedaço de terra num anexo mais afastado do

povoado de La Florida. Ele me disse que, assim que adquiriu o terreno, organizou um

grupo de oito pessoas para construir uma escola para seus filhos (o sofrimento com o

qual entrou em contato na serra teria lhe sensibilizado sobre a importância de ter de

educá-los). Ao produzir bastante café em sua propriedade, pôde então ter dinheiro

suficiente para educar seus dois filhos fora da área rural, como também para comprar

veículos automotores e com o tempo adquirir um total de sete lotes (de tamanhos

diversos) de terra.127 “Os outros (colonos produtores de café) não tiveram recursos ou

seus filhos não se interessavam mesmo pelos estudos”, afirmou e completou: “eu,

graças a Deus, e com muito esforço e consentimento dos meus filhos, consegui educá-

los”. Ele falou que nunca fez uma festa sequer, nem mesmo de aniversário; já os outros

colonos “festejavam com bandas e com orquestras”. Contou ter sido sempre reservado e

considerava as despesas com festas um “gasto inútil”. Muitos migrantes teriam

inclusive vendido suas chacras para realizarem esses eventos.

O “progresso” é algo que vêem não só no interior de suas famílias, como

também na infra-estrutura local que vai se tornando menos precária, apesar de estar

longe do ideal desejado pelos moradores.128 Outro fato relevante a respeito da percepção

da existência de um “avanço” é o reconhecimento da cooperativa dentro e fora do país.

Mas acontece que o esforço por detrás desses logros também conta. A colonização tanto

quanto a cooperativa se constituem num projeto coletivo onde cada um de seus

participantes é avaliado não só em relação ao que tirou desse projeto, como também do

127 Ele recordou com saudosismo os seus anos iniciais como produtor de café, período em que teve “bons ganhos”. 128 Não estamos diante de um contexto onde não há uma experiência generalizada em torno da modernidade. Também não se trata de uma vivência mais geral em torno de um declínio dela. Essa última situação aparece descrita e analisada no livro de James Ferguson (1999) a respeito do retrocesso econômico que se abateu sobre os mineiros da Zâmbia.

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que nele colocou.129 Por exemplo, da perspectiva dos sócios que contribuem com o

dinheiro para que as máquinas aprimorem as estradas, os não-sócios que igualmente se

utilizam dessas pistas são vistos negativamente. Outro exemplo é o dos “sócios não

ativos” que apenas entregam seus cafés para a cooperativa quando isso lhes convém

economicamente.130 Em ambos os casos estamos diante de pessoas que, ao longo do

tempo, vão sendo vistas como meros “aproveitadores” e que acabam, desse modo,

reforçando sua exclusão de uma sociabilidade mais ampla entre as famílias cafeicultoras

(seja no dia-a-dia ou nas festividades locais, por exemplo). O presente vivido em

conjunto entre esses sujeitos não pode ser pensado separado de um passado igualmente

em comum. Para entender as suas experiências com a modernidade é preciso escutar

suas histórias e não só enquadrá-los naquilo que seriam as exigências do mundo

moderno (como é o caso do mercado de trabalho e o de café).

Reencontrei os sócios da cooperativa citados acima (a senhora e os indígenas

nativos), além de muitos outros que havia conhecido, numa assembléia dessa entidade

no final de 2006.131 Olhando a confraternização dessas pessoas após o término da

129 A Cooperativa La Florida é representada da seguinte maneira por seus membros na seção “noticias de nossas bases” da revista Café Perú de abril – setembro de 1982: “La Cooperativa ubicada en la margen izquierda del Rio Perené fue fundada el 30 Octubre de 1966 con cincuenta socios y actualmente es sin duda una de las más pujantes organizaciones asociativas de la provincia de Chanchamayo que le espera un gran futuro, por el esfuerzo y sacrificio que realizan constantemente y mayor mérito aún, porque todo lo que se ha hecho hasta ahora a sido sin ayuda alguna por parte del Estado.” 130 No final de 2006, a Cooperativa La Florida tinha em torno de 800 “sócios ativos” e 400 “sócios não ativos”. Para fazer parte do primeiro grupo era preciso que, durante pelo menos três anos seguidos, o sujeito entregasse seus cafés para a cooperativa de acordo com o montante estipulado anualmente pelos técnicos da organização. Os que ainda não tivessem cumprido esse “prazo de experiência” ou que, por ventura, deixaram de cumprir com seus compromissos, estavam excluídos de uma série de benefícios, como, por exemplo, o acesso a determinadas linhas de crédito, “voz e voto” em assembléias ordinárias, extra-ordinárias e reuniões dos chamados “comitês locais”. Essa classificação (sócios ativos e não- ativos), empregada pela La Florida, formalizava a visão nela corrente a respeito dos diferentes graus de fidelidade comercial dos associados para com a organização. Nesse sentido, a dicotomia representava dois “tipos ideais” de relação para com a cooperativa, ou seja, uma mais de longo prazo e não apenas comercial (sócio ativo) e outro de caráter mais mercantil (sócio não-ativo). 131 Re-encontrei, nesse evento, com a esposa do sócio, citado anteriormente, que havia comprado um pedaço de terra num local mais afastado do povoado de La Florida. Ela se mostrou uma pessoa bastante orgulhosa e contente perante os demais associados. Sua família era uma das que mais produziam café em seu anexo e uma das poucas cujos filhos haviam cursado o ensino superior, sem falar que a única loja da localidade onde viviam era justamente de propriedade dessa senhora e ficava dentro de sua casa. Seu marido era bastante cuidadoso com o cultivo e o processamento do grão, dada sua preocupação com a

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assembléia (na qual estava presente a grande maioria dos 800 “sócios ativos”) é que se

percebe que a vida social em torno dos produtores se realiza principalmente através dos

encontros promovidos pela La Florida.132 Trata-se de uma ocasião onde a bebida e a

comida são abundantes, além de que nela são anunciados e premiados os produtores que

mais entregaram café e os que entregaram os grãos de melhor qualidade. É verdade que,

de um modo mais restrito, as famílias cafeicultoras cujas chacras se encontram num

mesmo anexo podem confraternizar nos aniversários dessas localidades, por exemplo.

Mas pelo que pude perceber, essa confraternização parecia envolver mais os membros

de algum dos 36 “comitês locais” da Cooperativa La Florida do que os moradores dos

anexos. Em outras palavras, a dispersão e o isolamento entre as famílias cafeicultoras

tendiam a ser quebrados, acima de tudo, por conta da cooperativa.

2.8 Comunidade como modernidade

Outro ponto importante é o de saber se essa experiência coletiva ao redor da

Cooperativa La Florida pode ser pensada como uma regra ou uma exceção entre os

cafeicultores da selva central. Da perspectiva dos seus sócios, certamente estamos

diante de um valoroso caso particular. A explicação que dão para o fato desta ser uma

das poucas cooperativas da região que continuou existindo ao longo de várias décadas

resvala invariavelmente no reconhecimento mútuo que sempre houve entre muitos de

seus associados. Existe uma representação destes produtores sobre o que seria uma

qualidade do produto que entregava à sua “tão querida cooperativa”; por isso era bastante crítico com os sócios que não cuidavam adequadamente dos cafés que entregavam à La Florida e que seriam conseqüentemente misturados ao seu. Não era à toa que seu filho, outrora funcionário desta organização, desejava que sua família e aqueles ao seu redor se desligassem dela e, desse modo, aproveitassem a possibilidade de que seus cafés, por serem de uma região de altura elevada, pudessem lhes render mais ao serem vendidos para outros compradores. 132 Vale ressaltar que os “sócios ativos” que não comparecem numa assembléia são penalizados financeiramente. Por outro lado, a cooperativa arca com o transporte até o evento e a comida e a bebida que são oferecidas depois do encerramento da assembléia.

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excepcionalidade de suas relações e alguns chegam até a afirmar que são como uma

família. Eles dizem “vestir a camisa” da cooperativa e vêem com maus olhos os que não

adotam esse comportamento. Como exemplo dessa recriminação pode ser citado a

censura que recai sobre os sócios que não aprimoram a qualidade do café que entregam.

Um contraponto interessante a esta experiência coletiva é a comunidade

estudada por Robin Shoemaker (1981) na província de Satipo (uma das três províncias

que formam a selva central) ao longo do ano de 1974. A comunidade se chama Pérez

Godoy e foi “fundada” em 1961 por 28 colonos andinos (os “fundadores”) que afluíram

de diversas localidades da cordilheira até a região, logo após a reabertura de uma

estrada destruída em 1947 por um terremoto e única ligação viária com o restante do

país. “Most of the twenty-eight inmigrants who joined together in a kind of club called

Instituición Pérez Godoy had been in Satipo for over a year, working as farm laborers or

in other odd jobs while continuing to search for their own piece of land.” (idem p. 111)

Depois de algumas reuniões, eles decidiram ocupar uma área inutilizada, de

aproximadamente 1.000 hectares, pertencente a um comerciante descendente de

chineses, e próxima da capital da província. O argumento utilizado pelos migrantes,

para justificar a ocupação do terreno, era o de que seu proprietário o havia abandonado e

essa justificativa acabou sendo aceita pelas autoridades locais. Eles dividiram entre si o

território de maneira equitativa e receberam o apoio do governo na construção de uma

estrada, além de terem trabalhado conjuntamente em outras tarefas para o bem estar da

comunidade. Acontece que em 1966 o poder público interveio no local e dividiu as

terras desses colonos (até então cada família tinha 30 hectares) com outras 33 famílias

de migrantes também originários de diversas partes dos Andes.

The diverse ethnic origins of the settlers clearly establish, then, certain basic lines of cleavage in the colony. These social divisions are complicated by a variety of other factors. We have already seen how a fundamental split developed between the twenty-eight founding families of Pérez

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Godoy and the thirty-six families who were resettled there by the Peruvian government. This division, a product of the colony´s reorganization crisis, continues to the present day. I often heard members of the founding group speak in disparaging terms of the “opportunists” and “land grabbers” who entered the colony with government backing. In the ten years since the reorganization scheme was carried out there has never been a full rapprochement between these two factions, even though the intensity of the conflict has gradually subsided. Rather, colonists tend to trace the contemporary problems of Pérez Godoy back to the reorganization, saying that this event precipitated a steady decline in community spirit. The reorganized colony has become, in effect, a loosely articulated series of peasant homesteads, a social whole by virtue of juxtaposition rather than mutual self-conception. (idem p. 131)

Shoemaker chama a atenção para o fato de não ter existido em Pérez Godoy

instituições como os “clubes regionais” encontrados entre os migrantes andinos que se

dirigiram até a capital do país e que, através desses clubes, puderam criar uma

identidade coletiva.133 A “desunião” dos membros da comunidade era inclusive o

principal argumento usado para explicarem o fracasso daquilo que seria o mais próximo

de uma instituição comunitária local: a associação de pais de alunos da escola onde seus

filhos estudavam. O autor conclui sua visão dizendo: “As the case of Pérez Godoy

illustrates, the question of how to submerge differences and disagreements within a

larger framework of common interests and concerns remains unanswered.” (idem p.

137) Em suma, a narrativa dos moradores e a de Shoemaker, a respeito da ausência de

um “progresso” dentro da comunidade, se apóiam no que vêem como a inexistência de

um destino comum sentido pelos colonos e esse mesmo sentimento estaria, segundo ele,

presente entre os demais habitantes da província. “With no vehicle for the expression

and pursuit of class-related goals, the bulk of Satipo´s inhabitants will remain where

they are today: on the treadmill of day-to-day survival.” (idem p. 171)

Não cabe aqui especular a respeito da duração e consistência de outras

comunidades de cafeicultores dentro da selva central. O que interessa é utilizar uma

133 “The regional club is essentially elitist, composed of well-adjusted and successful migrants. That they have united in regional associations is not a result of feelings of solidarity with the copaisanos [sic] of the homeland or in Lima, but is probably more a result of prestige motivations. The regional association offers the successful migrant the opportunity to measure his success against the standards of the ‘old world’ and to have ir recognized by his copaisanos in Lima and in the homeland.” (Shoemaker, 1981 p. 137 apud Jongking, 1974 p. 481)

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vivência coletiva desse tipo para refletir sobre as experiências da modernidade entre

seus indivíduos. Se os moradores de Pérez Godoy pensam seu “atraso” como causado

principalmente pela desunião existente entre eles, os membros da Cooperativa La

Florida encaram seu “progresso” como, entre outras coisas, fruto da comunhão que

sentem entre si.134 Mas estes últimos também acreditam que uma comunhão dessa

abrangência não é apenas algo raro na selva central como é a principal razão (ou pelos

menos o elemento eminentemente autóctone) da vanguarda da cooperativa (e

conseqüentemente deles próprios) nessa região. Esse “sentimento de modernidade”

também é lembrado através da liderança política que exerciam entre as demais

organizações de cafeicultores do país durante os anos 70 e 80.

Tal sentimento igualmente aparece, por exemplo, expresso num texto de autoria

dos membros da La Florida e publicado na seção Notícias de Nuestras Bases da edição

de abril – setembro de 1982 da revista Café Perú.135 Evidentemente que, enquanto uma

publicação destina a um publico de fora, este artigo talvez representasse o ponto de vista

das pessoas envolvidas na burocracia da organização. De qualquer maneira, trata-se de

um texto que descreve um conjunto de projetos que estavam sendo colocados em prática

através da cooperativa. Três desses projetos (desenvolvimento viário, construção de 134 No seu livro intitulado Tropical Colonization: The case of Chanchamayo and Satipo in Peru, Peter Sjoholt (1988) analisa uma série de dados quantitativos referentes a duas províncias da selva central (Chanchamayo e Satipo) e que foram coletados em meados de 1981. A partir de um questionário aplicado a 60 famílias de uma comunidade local dessa região, este autor comenta o seguinte: “One of the most common complaints raised by key informants, were those of extreme individualism and lack of team spirit and solidarity among colonists. They are more interested in individual gain and expansion, often at the expense of their fellow-men rather than apt to consolidate and defend what has been created. This particular value pattern is said to be very different from that of the aboriginal population, who are more in a defense position. These groups find far more challenges in communal efforts than do the colonists, for whom there are few communal tasks with appeal. In the questionnaire to the households the colonists were asked to state what in their opinion were the main problems for their neighborhood. Lack of solidarity by far scored highest as a single complaint with about 30% of the responses. The score was even higher in the pioneering areas, but the number of cases were so low there that we should be careful in jumping to conclusions.” (idem p. 162) 135 Uma passagem deste texto diz o seguinte: “Son varios los proyectos que se han puesto en marcha en estos últimos años y todos merecen destacarlos, porque cada cual es importante y necesario en el desarrollo socio económico de la Florida y ninguno puede dejarse de lado, por la razón que éstos obedecen a un conjunto de necesidades que deben resolverse mediante el sistema cooperativo y a base de la voluntad y comprensión humana.”

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uma planta de beneficiamento de café e instalação de uma serralheria) eram financiados

com dinheiro público e outro (montagem de “hortas escolares”) com recursos vindos do

exterior. Este último ainda contou com a assessoria do engenheiro suíço que morou em

La Florida no início da década.

Os sócios invariavelmente apontam que, nessa época (o começo dos anos 80),

viviam uma situação mais otimista do que a vivenciada em grande parte do país. Com

os altos preços internacionais do café ao longo dos últimos anos, vários destes

produtores haviam comprado seus veículos (jipes, camionetes e caminhões) e/ou

erguido um imóvel em algum centro urbano (que, em muitos casos, pôde ser usado

pelos seus filhos que vieram a cursar o segundo grau ou mesmo o ensino superior).

Comparado com os dias atuais, muitos se sentiam mais próximos de uma boa condição

de vida; tanto é que esses mesmos bens, especialmente os veículos, bastante distintos

em relação aos seus similares mais atuais, continuam sendo o que os cafeicultores

possuem de maior valor material (para além de suas casas e terrenos). Por outro lado, os

que tiveram a felicidade de ver seus filhos cursarem uma faculdade e, mais ainda,

arrumar um emprego relativamente bem remunerado e estável (como um cargo

importante numa cooperativa ou empresa, por exemplo), são considerados, hoje em dia,

bem mais sucedidos do que qualquer um ao seu redor.

Do ponto de vista da experiência coletiva em torno da cooperativa, o ano de

1986 seria marcado por um revés no seu gerenciamento, o que acabou implicando numa

dívida de US$ 600.000.136 No ano seguinte, Felix Marin (um dos filhos de Don Hector)

assume a gerência da La Florida (depois de três anos trabalhando no departamento

técnico) e consegue quitar seus empréstimos com os bancos em dois anos. Ele havia se

tornado sócio da cooperativa em 1984 e, logo em seguida, passou a trabalhar nela como

136 O gerente teria sido “enganado” por um comprador.

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uma forma de realizar o estágio laboral necessário para receber o título de engenheiro

agrônomo da principal universidade de agronomia do Peru. Vale à pena ressaltar que

Felix era filho de um bem sucedido cafeicultor e pôde viver uma típica vida de um

jovem da classe média alta da capital do país.

Em 1990, já como gerente, ele vai até a suíça, numa viagem organizada pelo

engenheiro natural desse país que trabalhara na cooperativa no inicio dos anos 80. Felix

encontrou-se com seis representantes de empresas torrefadoras; cinco negaram qualquer

possibilidade de negócio por conta, de acordo com ele, da má imagem do Peru nos

mercados de café. Mas um destes que, ainda segundo Felix, não estaria a par dessa má

imagem, aceitou fazer negócios. Ambos acabaram fechando um contrato para que a

cooperativa entregasse dois contêineres de café.

Felix me disse que o que havia lhe impulsionado a ir até o exterior, para se

encontrar com os compradores de café, era que o sujeito ao qual a cooperativa

costumava vender seu produto se mostrava extremamente prepotente e condicionava

enormemente suas compras: “ele se pensava como um Deus e deixava os produtores

esperando um dia todo para atendê-los”. Durante essa primeira exportação da

cooperativa, e também a primeira de qualquer cooperativa peruana, os exportadores de

café teriam telefonado para o torrefador suíço dizendo que Felix o havia enganado. “As

grande multinacionais até me ameaçaram de morte”, me confessou e depois completou:

“aprendi que se tem que ir a feiras internacionais e também buscar financiamentos

internacionais”.137

137 É possível dizer que a vanguarda da cooperativa acabou desafiando o que Shoemaker (1981) chamou do “colonialismo interno” característico das relações comerciais no Peru: “If, under new civilian leadership, 900,000 additional families are to make a success of jungle settlement, the structure of internal colonialism must be dismantled along with the structure of foreign domination. Even if the dismantling of these structures proceeds only a step at a time, the steps must be coordinated in their internal and external dimensions.” (idem p. 252)

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Em agosto de 1990, uma assembléia da cooperativa ratificou um projeto

elaborado por ele e que deveria ser implantado ao longo dos próximos anos a partir de

um financiamento suíço. Este projeto incluía (1) a instituição de uma representação da

La Florida nos portos de Hamburgo e Nova Iorque, (2) alcançar uma produção de

200.000 quintais de café entre os associados (até então produziam 45.000 quintais) e

diferenciar o grão de acordo com cada um dos “comitês” (como uma forma de estimular

o aprimoramento de sua qualidade), (3) a construção de casas através da serralheria da

cooperativa, (4) a criação de um hotel em La Merced e (5) erguer um colégio nos

moldes de uma instituição de ensino que Felix conheceu na suíça. Contudo, esse plano

jamais veio a ser colocado em prática.

2.9 O ocaso e a “refundação” da cooperativa

No ano de 1989, o grupo guerrilheiro Sendero Luminoso havia convidado Felix

para ser o seu líder no departamento de Junín. Desde o ano anterior, esses insurgentes

lhe diziam querer reproduzir o modelo da La Florida por todo o país. “Eu convivia com

os terroristas para eles não se meterem na cooperativa”, ressaltou (a polícia inclusive

freqüentemente questionava-o a respeito dos motivos pelos quais entrava e saia

tranquilamente da região então dominada pelo Sendero Luminoso). Segundo ele, ao

tomar conhecimento de que membros desse grupo estavam estuprando diversas jovens

da selva central, isso o levou a se contrapor ao movimento. A reação deles foi então a de

se opor violentamente à cooperativa.

Nessa época, o presidente da La Florida era o filho mais velho da senhora

destacada nas páginas anteriores. Na minha conversa (reproduzida parcialmente numa

seção anterior) com outro filho dela, este comentou que, com o “desenvolvimento da

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cooperativa”, haviam construído a segunda maior serraria da província de

Chanchamayo, comprado geradores, montado duas cisternas e adquirido máquinas

secadoras de café. O povoado chegou a receber uma filial do Banco Agrário (então

principal instituição pública de fomento da agricultura), restaurantes e hotéis. Quando o

pueblo de La Florida e seus arredores estavam prestes a se tornar um distrito, teve início

a “subversão”.

No começo, a situação não seria tão tensa: “um dia seis terroristas chegaram

aqui, tinham deixado suas armas no rio e vieram jogar futebol, conversaram comigo,

convidei um deles para o almoço e lhe dei um par de pilhas”. Contudo, em agosto de

1988, os guerrilheiros lhe ameaçaram com uma arma no seu rosto e, ao fugir, conseguiu

se esquivar dos tiros que vieram em sua direção. “Por conta disso é que meu carro se

chama bala”, ironizou. Algumas semanas depois, estes mesmos sujeitos dinamitaram

seu automóvel dentro de sua garagem; seus filhos e esposa estavam dormindo nessa

ocasião e, diante da explosão, as portas e as janelas da casa quebraram e o mais jovem

deles acabou ficando com problemas de audição. Em dezembro desse ano, mudaram

para a cidade andina de Tarma por pressão de sua mulher.

Acontece que, como assinalado anteriormente, ele era tenente-governador do

pueblo de La Florida e dado que “costumava castigar os delinqüentes” teria que, de um

modo ou de outro, abandonar o povoado. Isso porque, segundo ele, “os delinqüentes

viraram terroristas”. Estes passaram a requisitar dinheiro de seu irmão mais velho, “o

qual era rico”. No dia 27 de setembro de 1990, os guerrilheiros colocaram esse último

(que havia se recusado a se submeter a estes indivíduos) e mais seis pessoas enfileiradas

em frente a um imóvel que fica ao lado da casa onde este meu interlocutor vive

atualmente. Os “terroristas” teriam procurado pela diretora do colégio, mas como não a

encontraram, acabaram incluindo nesse ato bárbaro uma freira bastante idosa que

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trabalhava como cozinheira no convento que existia no pueblo.138 As marcas das balas

que lhes foram dirigidas continuam presentes no muro.

Nas semanas seguintes, os membros do Sendero Luminoso dinamitaram a infra-

estrutura que havia sido adquirida pela cooperativa. Diante desse cenário desolador, não

é de se estranhar que “duas ou três famílias ficaram no povoado”, segundo ele. Isso se

repetiu por toda a região, com os produtores fugindo para os centros urbanos,

principalmente depois de terem tomado conhecimento do ato bárbaro do dia 27 de

setembro de 1990, mas também por conta de outros assassinatos perpetrados não só

pelos guerrilheiros como também pelo exército.

A cooperativa acabou terminando esse ano sem pagar US$ 300.000 em dívidas,

de acordo com Felix Marin. No seu entender, este descumprimento dos compromissos

com os bancos resultaria na “segunda quebra” da La Florida. A primeira teria se dado

em 1987 e fora contornada durante sua gestão como gerente. Ele deixou esse cargo

justamente em 1990, mas permaneceu “assessorando” a cooperativa ao longo da década.

Um grupo de mais ou menos 50 produtores, muitos dos quais seus fundadores,

continuou entregando seus cafés para essa entidade durante grande parte da primeira

metade dos anos 90: “praticamente os mesmo que fundaram a cooperativa a re-

fundaram”, me disse um deles.139 Nessa época, os agricultores se arriscavam adentrando

na região durante a colheita para depois voltar sorrateiramente até a sede da organização

em La Merced. Os poucos que permaneceram contam que não tinham para onde ir e que

138 No texto de autoria dos membros da La Florida, publicado na seção Notícias de Nuestras Bases da edição de abril – setembro de 1982 da revista Café Perú, também se lê: “Ha surgido la idea de formar Cooperativas Escolares en base a estas primeras experiencias de los huertos; para ello se cuenta con el apoyo de las Hermanas de la Congregación del Bueno Pastor, una de ellas la Hermana María Luisa que ocupa la Dirección del Centro Educativa de La Florida, conjuntamente con todos los profesores, iniciativa que debe concretarse después de los estudios preliminares y conocer los requisitos que se exigen por parte del Ministerio de Educación.” 139 De acordo com Felix, em 1991 os sócios da La Florida entregaram à cooperativa 2.000 quintais de café e só receberam o dinheiro depois que os grãos foram vendidos. Em 1992, foram entregues, desse mesmo modo, 2.500 quintais e, em 1993, 3.000. Essa última quantidade praticamente se repetiu no ano seguinte, com os produtores igualmente sendo pagos somente após as vendas. Vale ressaltar que em 1989 a cooperativa havia comercializado mais de 45 mil quintais e tinha por volta de 1.000 sócios.

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tiveram que “jogar” com o exército e com os “terroristas” para sobreviver (diziam para

os guerrilheiros que não tinham visto ninguém do exército quando perguntados e vice-

versa). A maioria dos que ficaram não entregavam seus cafés para a La Florida, pois

isso não era bem visto pelos insurgentes. A exceção foram uns dois ou três produtores

“que se mantiveram escondidos nos montes”.

Felix inicialmente assessorou os sócios através de reuniões “clandestinas” em

Lima (dado que, assim como outros produtores, estava “jurado de morte” pelos

guerrilheiros do Sendero Luminoso). Ele me disse que desde essa época tinha certeza de

que “um dia todo esse esforço ia ser reconhecido internacionalmente”. Também se

sentia motivado não só pelo fato de muito dos agricultores que participavam destas

reuniões “terem ajudado seu pai” (enquanto obreros), mas porque “se solidarizava com

o amor deles pela cooperativa”.

Tal como informa a edição de fevereiro de 2004 da revista El Cafetalero, a

Cooperativa La Florida voltou, em 1994, a realizar suas assembléias no povoado que

leva o seu nome, algo que não fazia desde 1990. Ainda segundo essa publicação, a La

Florida “experimentó su recuperación a partir de 1995”. Nesse ano, ela comercializou

11.000 quintais de café, quase o triplo do que vinha vendendo nos anos anterior.

Acontece que, em 1995, a cooperativa passou a contar com empréstimos da organização

não-governamental belga SOS Faim e que deveriam servir para regularizar suas relações

com os bancos que forneciam os recursos para que pudesse pagar os produtores logo

que entregassem o café. Entretanto, estes empréstimos não foram capazes de permitir

que cumprisse com todos os seus compromissos com as instituições financeiras.

Em 1996, as reuniões de Felix com os sócios da cooperativa deixaram de ser

feitas “clandestinamente”, segundo ele. Mas nessa época, a incapacidade dessa

organização em honrar suas dívidas chegou ao limite. Isso porque era iminente o

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confisco de seus bens que haviam sido oferecidos aos bancos como garantia dos

empréstimos. Diante dessa situação e do término, nesse mesmo ano, da gestão do

segundo gerente que o havia sucedido, Felix se voltou para um jovem funcionário da La

Florida e lhe disse: “Cesar, você é a nossa última carta”.

Acontece que Felix, ainda durante sua gerência, tinha “capacitado” 12 filhos de

sócios para que um destes pudesse comandar a cooperativa em seu lugar. Tratava-se de

uma “capacitação” para a qual 100 destes jovens se inscreveram. Cesar foi quem, aos

olhos dele, acabou se mostrando o mais adequado para ocupar esse cargo. Ele havia

cursado uma faculdade de administração de empresas em Lima e ido trabalhar na La

Florida logo depois de terminado o curso.140 Chegou a acompanhar Felix em sete feiras

internacionais: “no começo Cesar sofreu muito com o idioma, com o clima e a

alimentação”, comentou Felix e completou: “fiz com que ele desenvolvesse sua auto-

estima ao lhe obrigar a falar com os compradores”. Porém, Cesar recusou diversas

propostas para assumir a gerência da cooperativa nos anos que se seguiram à saída de

Felix, apesar de ter permanecido trabalhando nela.

“Num momento em que não restava mais nada a não ser a liquidação da

cooperativa, aceitei ocupar o cargo de gerente, mas com certas condições”, me disse

Cesar durante uma conversa em seu escritório. Ele afirmou que deu aos sócios duas

opções: “a primeira era o caminho do cooperativismo, necessitaria de 100% de

comprometimento dos produtores e seu retorno seria a longo prazo; a segunda, a

aplicação de um projeto empresarial, estaria dando retorno em quatro anos”. De acordo

com ele, “51% dos sócios aprovaram o segundo plano e esse plano acabou sendo

140 Os pais de Cesar são sócios da cooperativa desde meados da década de 70 e o haviam mandado, no começo dos anos 80, para uma cidade andina tendo em vista a realização de seus estudos secundários. Depois de terminar o segundo grau, se dirigiu para a capital do país, onde cursou o ensino superior e, no final desta última década, passou a trabalhar no escritório da La Florida em Lima.

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realizado em dois anos, isso porque com financiamentos solidários do exterior e com os

novos mercados foi possível reduzir os custos rapidamente”.

Já no seu primeiro ano como gerente, a cooperativa havia terminado “no azul”,

isto é, sem dívidas com os bancos, por conta principalmente de um empréstimo de US$

170.000 que fora conseguido no ano anterior, por intermédio do engenheiro suíço que

trabalhara na La Florida, e que deveria ser pago em cinco anos, mas sem qualquer tipo

de juros. Ainda em 1997, venderam 5% dos seus cafés através do comércio justo

regulado pela FLO.141 “No segundo ano vendemos 15%, no terceiro 20% e o volume foi

crescendo. Mas a busca de mercado, cooperação técnica e financiamento para

comercializar só nos ajudou porque tínhamos um plano”, afirmou ele que considerava

crucial o fato de ter convivido, durante a faculdade, com professores que ensinavam

“como um empresa moderna deve atuar”, ou seja, através da “redução de seus custos”

enquanto uma forma de ser “competitiva”. “Foi isso que nos salvou”, me disse.

2.10 Identidades e diferenças

Apesar de discordar em alguns pontos da gestão de Cesar na cooperativa, em

especial, o que chamou de uma “debilidade na parte social”, Felix me dizia que se não

fosse a competência desse seu atual gerente, a La Florida não teria alcançado o

reconhecimento dentro e fora do país que os sócios tanto prezavam. Em grande medida,

141 De acordo com suas próprias palavras: “El 97 asumo la gerencia de la cooperativa y empezamos a cambiar todo el sistema comercial. En esa época, en el Perú solo se exportaba café por volumen, pero en el mundo estaba apareciendo este café especial, relacionado con el medio ambiente, con el desarrollo sostenible: los exportadores no hacían nada por desarrollar este café. Así que buscamos apoyo de la cooperación técnica belga – que nos ha apoyado mucho -, y los productores empezamos a participar directamente en las ferias mundiales. En las ferias hicimos contactos y hasta desarrollamos ideas de marketing con los mismos clientes. Ellos nos preguntaban: ‘Podemos sacar una marca con esto?’. Nosotros decíamos: ‘Si podemos. Hay cantidad de café que les podemos proveer, nos les vamos a fallar’. Ahora tenemos cantidad de clientes, y con ellos hemos ido desarrollando marcas. Ese mismo camino lo han seguido muchas cooperativas, la gran mayoría. Y hoy el Perú es el primer productor mundial de café orgánico”. (Rivas, 2009 p. 9-10)

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esse prestígio era visto ou justificado de uma perspectiva ou “cidade” (Boltanski &

Chiapello, 2009) mercantil. Em outras palavras, era notadamente derivado de uma

reputação num mercado: o comércio justo. Essa reputação é capaz de ser entendida

como a confiança que os compradores depositavam em Cesar. Mas esse filho de sócios

também era julgado de um ponto de vista moral ou, para usar mais uma vez a

terminologia destes autores, de uma “cidade doméstica” (idem).

Como dito anteriormente, Peter Luetchford (2007) encontrou uma situação

aparentemente semelhante na Costa Rica. Tratava-se de uma cooperativa onde o seu

sucesso comercial era visto de modo ambivalente pelos produtores, na medida em que

também a julgavam a partir de uma “esfera moral” na qual qualquer intermediação da

comercialização de seus cafés podia ser vista negativamente. Mas no âmbito da

Cooperativa La Florida, não estava em jogo apenas a existência de duas dimensões, uma

de ordem moral e outra de ordem comercial, que serviam de referência para os

produtores julgarem as ações do gerente e dos demais funcionários. Elas também

podiam ser avaliadas com base num referencial que englobava essas duas dimensões: o

campo semântico da modernidade. Dessa perspectiva outra dicotomia parecia vir à tona:

a da parte e o todo. Isso porque eram capazes de pensar o “progresso” ou

“desenvolvimento” tanto individual quanto coletivo, pois viam o segundo como um

meio privilegiado para se atingir o primeiro.

Num contexto mais geral bastante precário e dominado por relações mercantis,

como é o caso da selva central, não é de se estranhar que a união entre os membros da

Cooperativa La Florida se destaque enquanto um capital crucial para o que vêem como

seu “desenvolvimento” coletivo e individual. Mas essa mesma união pode servir de base

para criticarem o modo como a dimensão coletiva desse desenvolvimento é gerenciada.

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Isso ficava evidente quando acusavam a atual gerência da cooperativa de ter uma visão

voltada mais para o “comercial” (mercado) do que para o “social” (os produtores).

Ao longo do meu trabalho de campo, o descompasso entre o suposto sucesso

comercial da La Florida e a suposta situação precária de seus associados era um

argumento usado por muitos destes agricultores e outros indivíduos no seu entorno para

sustentarem suas discordâncias em relação à cooperativa.142 O discurso em torno da

necessidade dela ser “competitiva” (dito freqüentemente pelo seu gerente) era visto

como tão legítimo quanto as considerações sobre a importância de ter o reconhecimento

de sua “base social” (Cesar igualmente reconhecia isso). Em outras palavras, existia um

senso comum de que deveria haver um “equilíbrio entre a parte social e a parte

comercial” de qualquer organização de cafeicultores.

Como assinalado antes, durante minha estadia entre os sócios da La Florida, o

que mais ouvi deles era que a cooperativa estava “mais ou menos”. Muitos reclamavam

de que os solos estavam ruins, as plantações velhas e que não havia dinheiro da

cooperativa para melhorar essa situação, apenas para o crédito de pré-colheita (usado

principalmente para pagar os obreros).143 Existia um consenso de que a La Florida

estava forte na “parte comercial”, mas faltava melhorar as condições produtivas dos

sócios para poderem aproveitar melhor os preços relativamente altos que vinham

conseguindo através principalmente do comércio justo.

Como também foi dito anteriormente, eles ganharam um concurso público em

2008 que lhes renderam US$ 4.9 milhões para a renovação dos seus cafezais. Meu

trabalho de campo entre esses agricultores se deu até dezembro de 2006; não pude então

acompanhar de perto a reverberação disso entre os sócios. Certamente trata-se de mais

um capítulo na história de dificuldades e superações dos cafeicultores da La Florida. É

142 Vale ressaltar que vários diziam, num tom acusatório, que “a cooperativa se tornou uma empresa”. 143 Também reclamavam dos juros cobrados pela La Florida, apesar de serem os menores da região.

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bem provável que os que continuaram “fiéis à cooperativa”, antes desse financiamento,

tiveram um motivo (a mais, no caso de muitos) para se destacarem perante os que a

abandonaram em busca de melhores preços ou que foram extremamente críticos (para

além da visão crítica e autocrítica de grande parte dos associados). Como me disse um

reconhecido produtor: “eu não posso fazer oposição ao gerente, pois sou apaixonado

pela minha cooperativa.”

Aquilo que presenciei durante meu trabalho de campo, dentro do “raio de ação”

desta cooperativa, não pode então ser entendido sem levar em conta uma história de

longa duração que pauta a vida de muitas das pessoas que vivem ou transitam nesse

território. A raridade dessa experiência coletiva não é derivada exclusivamente do

reconhecimento externo que lhe é dirigida atualmente, como também é fruto das

percepções que os próprios produtores têm dos meios que consideram adequados para

atingir o que vêem como uma melhor condição de vida. Ao se darem conta de que se

não fossem “zonais” (restritos a um território circunscrito) a La Florida talvez não

tivesse sobrevivido, estavam conscientes da importância de terem se mantidos

comprometidos com o “desenvolvimento” dessa instituição.

Juntos eles “progrediram” de uma maneira excepcional até a chegada dos

“terroristas” e, a despeito da tragédia que os abateu diante da incursão destes

guerrilheiros, prevalece hoje em dia, apesar das críticas que possam ser feitas à

cooperativa, a visão do “progresso” de uma organização de cafeicultores enquanto algo

historicamente possível. O passado, e não apenas o presente, lhes ensina que

comunidade pode significar um meio para se atingir uma melhor condição de vida, ou

seja, é possível dizer que a vêem como parte do campo semântico da modernidade. Essa

percepção positiva da “união dos produtores” atravessa as distintas gerações de pessoas

ligadas à La Florida.

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Por um lado, essa visão parece ir de encontro com as noções que em outros

lugares são comumente associadas ao campo semântico da modernidade, como é o caso,

por exemplo, das concepções ao redor do que se convencionou chamar de

“individualismo”. Para eles o sócio que se comporta em relação à cooperativa pensando

apenas no seu próprio interesse é visto negativamente e classificado como um

“aproveitador”. Contudo, é preciso ter claro que a identidade coletiva entre esses

sujeitos não excluía uma diversidade de experiências em relação ao ideal de ascensão

social que compartilhavam. Isso porque o desenvolvimento coletivo era visto como um

entre outros meios (como é o caso do sistema educacional, por exemplo) para o

progresso dos cafeicultores.

Como o capítulo seguinte procura mostrar, assim como os significados a respeito

do “desenvolvimento” da La Florida se transformavam ao longo do tempo (haja vista a

necessidade atual de ser “competitiva”), os sentidos da ascensão social igualmente

variavam. Por exemplo, se é verdade que a educação é um valor dominante entre os

produtores hoje em dia, quando os preços do café eram bem altos e os solos produziam

bastante muitos agricultores não viam razão de ter seus filhos trabalhando fora da

cafeicultura. Se no passado a produção do grão e a posse de veículos eram elementos

cruciais na diferenciação entre os cafeicultores, atualmente os que priorizaram o que

chamam de “investimento” na educação de seus descendentes são os que se destacam

perante os demais.

O filho do produtor, citado anteriormente, que comprou um pedaço de terra num

local mais afastando do povoado de La Florida, me contou sobre o fato de seu pai

sempre ter se preocupado e priorizado a educação de seus filhos. Ele falou com desdém

de um ex-presidente da cooperativa que adquiriu uma van (perua) para seu filho

trabalhar, em vez de “investir na sua educação”. Afirmou também que muitos dos

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amigos de seu pai, que antes se encontravam numa melhor situação do que a dele,

estariam agora “arruinados”. Isso porque, segundo ele, estes teriam se dedicado em

demasia “à diversão”. “A grande maioria aqui se dedica ao álcool”, disse. Em seguida,

comentou comigo a respeito do problema que se pai vinha tendo com a bebida ao longo

dos últimos anos, o qual depois das internações que seus filhos o submeteram lhes disse

ter o direito de “aproveitar a vida” depois de ter sido bem sucedido em seu trabalho, ter

educado seus filhos e os deixado suas propriedades.

Esse sujeito com quem conversei, e do qual fiquei bastante próximo, estudou

numa universidade situada numa cidade localizada em outra província da selva central e

havia se casado com uma jovem descendente de colonos alemães que viviam ou

viveram nessa província. Mas assim como outros filhos de sócio da La Florida e amigos

seus de infância, ele estava bastante aberto para as novas tendências de comportamento

e de consumo, por exemplo, que haviam surgido recentemente entre a classe média

peruana. É possível dizer que ele fazia parte, ao lado desses seus amigos, de um grupo

de pessoas bastante afim com as disposições típicas dos jovens dessa camada social.

Ele era filho de um produtor que conseguiu proporcionar aos seus filhos o acesso ao

ensino superior e a um imóvel na principal cidade da selva central (onde ele montou um

estabelecimento de acesso a internet).144

Certamente que a educação e uma ética ascética de trabalho são valores de longa

duração que estão intimamente relacionados com as visões de “progresso” individual e

coletivo dentro de uma sociedade organizada, em grande medida, com base em relações

mercantis e numa racionalidade econômica. Por outro lado, não nos deve estranhar o 144 Cada vez mais e mais estabelecimentos de acesso a internet estavam sendo criados em La Merced durante a segunda metade da década de 2000. Um outrora dono de um desses estabelecimentos me informou, em 2008, que ele teve que deixar a cidade esse ano e migrar para o exterior por conta justamente da impossibilidade de continuar mantendo o padrão de vida da sua família diante do número cada vez menor de clientes que recebia. Nas palavras de Francisco Durand (2004 p. 444), a respeito da economia peruana contemporânea: “La explosión demográfica y la escasa oferta de empleo bien pagado y estable hacen del asalariado un sector minoritario de la fuerza laboral. Para sobrevivir, la mayoría se vuelca al autoempleo o a ‘hacer empresa’ con familiares, logrando salir adelante unos pocos.”

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fato de muitos dos filhos de sócios não buscarem dar continuidade aos esforços de seus

pais em prol da cooperativa. Isso porque a ascensão social dessa geração mais nova

pode, em algum momento, prescindir desta instituição. A verdade é que os colonos

migraram para a selva em busca de uma vida melhor para suas respectivas famílias e

não tendo em vista o desenvolvimento de uma cooperativa.145 Este último processo

acabou se configurando como uma conseqüência do primeiro.

A distinção entre os produtores encontrava na cooperativa um contexto dentro

do qual podia ser reconhecida; mesmo porque, no plano local dos anexos, os

agricultores que ascendiam socialmente poderiam não encontrar um número

considerado por eles suficiente de pessoas que estivessem vivenciando tão

positivamente esse mesmo processo de ascensão. Para além de sua importância

econômica, a Cooperativa La Florida se constituiu num ambiente onde alguém que

conseguiu passar de peão para cafeicultor era valorizado de igual para igual; mais ainda

caso tivesse proporcionado aos seus filhos as condições para o acesso a um trabalho que

garantisse uma vida financeiramente mais estável do que a de produtor de café. Alguns

desses jovens acabaram acessando um meio social, a classe média urbana, que operava

mediante outros referenciais do que aqueles vigentes entre a maioria dos produtores

reunidos através da cooperativa. De qualquer maneira, eles estavam dando continuidade

ao processo de ascensão social vivido pelos seus pais.

2.11 O sucesso da cooperativa através do comércio justo

Pode-se dizer que o acesso pioneiro da La Florida ao comércio justo reforçou a

imagem que seus sócios fazem dela e, conseqüentemente, de si próprios, como

145 Num estudo sobre uma comunidade andina do departamento de Andahuaylas, o antropólogo Ronald Berg diz o seguinte: “People in Pacucha recognize the household, not the individual or a wider descent group, as the basic social unit. Most households consist of a nuclear family, i.e. a married couple and their unmarried children.” (Berg, 1984 p. 204)

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referenciais para os demais produtores de café da selva central. Em boa medida, esse

sucesso é creditado ao seu atual gerente. Não é à toa que Cesar ocupe atualmente o

cargo de presidente da Junta Nacional do Café (JNC), isto é, do grêmio das

organizações peruanas de cafeicultores. Em outras palavras, a Cooperativa La Florida se

tornou um modelo, não só entre os produtores da selva central, mas de outros cantos do

país, na medida em que este filho de um de seus sócios se destacou perante os

compradores de café certificado pela FLO. Esse destaque era algo extremamente

valorizado, pois o acesso a estes compradores era o ideal de qualquer uma das

organizações que participavam da JNC.

A criação deste grêmio, em 1993, foi capitaneada pelas quatro das cinco centrais

de cooperativas que igualmente haviam formado a Federação Nacional de Cooperativas

Agrárias Cafeicultoras do Peru (FENCOCAFE).146 A JNC representou uma maneira de

congregar os cafeicultores peruanos em torno do que poderia ser colocado como uma

saída para a dramática situação que vinham enfrentando desde o final dos anos 80 e que

era marcada, de maneira especial, pela queda vertiginosa e prolongada nos preços do

café, pelo fim do apoio estatal ao cooperativismo e pelos conflitos derivados da

insurreição dos grupos guerrilheiros de extrema-esquerda.

Em 2005, a JNC contava com 27 “sócios”, sendo sete deles centrais de

organizações de produtores, seis associações e 14 cooperativas, totalizando 36.242

produtores de café. Destes 27 associados, 23 deles exportaram diretamente seus cafés,

principalmente através do comércio justo, representando 19% das vendas externas do

produto, com um preço médio de US$ 119,73 a saca ou 21% acima da média nacional 146 “En 1993, como fruto del esfuerzo de las centrales sobrevivientes, se funda la Junta Nacional del Café (JNC). Este organismo se crea luego de la caída de Fencocafé, el combativo gremio del sector cafetalero creado en 1978, al que algunos critican haber peleado sólo por conseguir cuotas, negociar el crédito y evitar el impuesto a la exportación del café. Según Lorenzo Castillo, gerente de la JNC, el desarrollo estratégico no formó parte de la agenda de ese gremio, un aspecto que se quiso cambiar con la creación de la Junta.” (Simatovic, 2007) As centrais que criaram a JNC foram: Café Peru, CECOVASA, COCLA e Nor Oriente.

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das 74 instituições (privadas e organizações de produtores) que exportaram café.

(Castillo, 2006) Vale ressaltar que, em 1989, com o final do Acordo Internacional do

Café, os preços internacionais da saca do grão chegaram a cair de US$ 140 para US$

76. A partir da segunda metade da década seguinte houve uma retomada, mas de 1999

em diante a queda seria brusca, com a saca atingindo seu menor valor (US$ 35) na

metade de 2002.

No caso da Cooperativa La Florida, ela exportou, em 2005, um total de US$

4.239.312 em café, com um preço médio por saca de US$ 114,28. (JNC, 2005) Segundo

me disse seu gerente, ao exportar uma saca de café a um custo médio de US$ 14, a La

Florida atingiu um patamar de custo semelhante ao das empresas privadas exportadoras,

que varia entre US$ 12 e 14. Conseqüentemente, poderia ser capaz de oferecer pelo café

“convencional” os mesmos preços que estas empresas costumavam pagar sem incorrer

em prejuízo.147 Em se tratando das organizações de produtores de café, elas teriam

custos de exportação geralmente acima de US$ 18. Ao ter cursado, de acordo com suas

próprias palavras, o “melhor lugar para se estudar administração no Peru”, Cesar pôde,

como já foi dito, entrar em contato com “professores que trabalhavam em grandes

empresas privadas” e “com base nas experiências deles” foi capaz de aprender “na

prática” como uma empresa “moderna” deve atuar.

É possível afirmar que, no âmbito da JNC, impera uma visão de que a melhoria

nos serviços prestados aos agricultores deve vir após suas organizações estarem

devidamente preparadas para competir fora dos mercados de nicho. Isso porque uma

grande quantidade de café só poderia ser comercializada através do chamado mercado

147 “Os produtores sempre querem o melhor preço; temos que ser competitivos, o produtor quer o melhor preço e serviço, só 10% é estritamente fiel”, comentou comigo Cesar. “O comércio justo é uma oportunidade, deve primeiro ser aproveitado para fortalecer a relação da cooperativa com o mercado e posicionar um café de qualidade; caso o comércio justo desapareça, tomara que não, mas se isso acontecer o que importa é a qualidade do café, ser competitivo, estar num mercado e ter boa infra-estrutura, é importante se ter um horizonte sobre o que vai acontecer daqui a 20 anos.”, me disse.

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convencional. Suas organizações devem então se preparar para competir com as

“empresas privadas” pela exportação do café comumente negociado no país. Dito de

outro modo, a dependência excessiva dos mercados de “cafés especiais” deve ser um

fenômeno passageiro, tendo em vista a obtenção de uma infra-estrutura capaz de

permitir uma participação, sem prejuízos, num mercado dominado por essas entidades.

Tal como aparece na página da Junta, “la Visión de la JNC al 2015 es ser reconocida

como una organización de cafetaleros competitivos en el mercado y actores del

desarrollo regional y nacional.” Segundo o que disse Cesar, enquanto presidente da

JNC, num encontro de 2006 destinado aos jovens cafeicultores das suas organizações de

base:

Quando as organizações estão se reativando, muitos líderes pedem para as cooperativas pensarem a parte social. O que vou dizer eu disse há 15 anos na minha cooperativa e a cinco na Cooperativa Satipo. Quando você vê um mendigo com fome, você tem pena dele; se você tem um pão no bolso, você dá para ele, se não tem, não pode fazer nada. Primeiro temos que ordenar a casa, fazer a empresa funcionar bem, depois podemos brindar os serviços aos associados.

Conversando com Cesar, logo após sua fala nesse encontro, ele comentou

comigo uma diferença, no seu entender fundamental, entre a La Florida e a Central

Piurana de Cafeicultores (CEPICAFE).148 A primeira teria atingido um “nível mais alto

de competitividade” do que a última, na medida em que seus custos administrativos

seriam custeados com as vendas de café. A CEPICAFE, por sua vez, ainda dependeria

148 Durante sua fala ele havia dito que “a COCLA é um verdadeiro exemplo para nós”. Vale ressaltar que, incluindo as empresas privadas (de capital nacional ou internacional) e organizações de produtores, a COCLA ficou em quarto lugar no ano de 2005 entre as entidades que mais arrecadaram com a exportação de café (as outras três primeiras eram empresas privadas). A Cooperativa La Florida ficou em décimo terceiro lugar e a Corporação Café Peru em décimo quinto. As outras organizações de produtores que ficaram entre as vinte primeiras entidades exportadoras foram a Central de Cooperativas Agrárias Cafeicultoras do Vale de Sandia (CECOVASA), em décimo segundo lugar, e a CEPICAFE, em décimo oitavo. De acordo com Cesar, seu gerenciamento da Corporação Café Peru (uma entidade capitaneada pela La Florida) busca capitalizá-la através do comércio justo, dado que somente uma organização de segundo grau seria verdadeiramente capaz de competir pelos primeiros lugares entre todos aqueles que exportam café no Peru. Em 2005, a Corporação Café Peru exportou US$ 3.931.594; US$ 140 por quintal, ou seja, ela praticamente teve um preço médio de suas vendas em torno dos valores pagos (US$ 141, na ocasião) dentro do comercio justo regulado pela FLO. (JNC, 2005)

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de doações para custear sua assistência técnica. Se, de um lado, a Cooperativa La

Florida venderia 60% de seu café certificado como orgânico e através do comércio

justo, de outro, os 40% restantes seriam exportados como convencionais. Como disse o

representante da CEPICAFE nesse mesmo evento destinado aos jovens cafeicultores: “o

comércio justo nos deu estabilidade para conquistar o produtor, para ele ter fé na

organização, mas o desafio é como competir no mercado convencional”.

O acesso a bons preços através do comércio justo pôde garantir a muitos

cafeicultores peruanos uma das condições vigentes entre eles durante a época dourada

da cafeicultura no país: os anos 70 e 80. Mas acontece que, nesse período, além do valor

alto e constante do café (geralmente ao redor de US$ 150), também se deparavam com

um cenário onde os cafezais eram relativamente novos e os solos ainda não se

encontravam desgastados. Em outras palavras, os preços e a “produtividade” das

plantações eram considerados igualmente elevados. É a essa conjuntura que os

produtores creditam, para além de seus esforços, as razões de muitos deles terem podido

dispor de certos bens, como imóveis e veículos, por exemplo, mas principalmente o

motivo de seus filhos haverem progredido no sistema educacional. Isso porque as

instituições de ensino, notadamente no caso das faculdades, se encontravam, e ainda se

encontram, distantes do espaço rural e, conseqüentemente, custava e continua custando

caro para um cafeicultor manter alguém estudando nelas.

Não é então sem razão que a JNC passasse a demandar do governo uma política

em prol da renovação dos cafezais, na medida em que as cooperativas alegavam não ter

os recursos necessários para essa revitalização. Essa demanda ganhou força a partir da

segunda metade da década de 2010; na primeira metade dessa década a questão era a

luta (que acabou se mostrando em vão) para a criação de um “fundo público de

estabilização para os preços do café”. A capa da edição da revista da Junta, chamada El

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Cafetalero, tinha como título na edição de novembro de 2008: Ahora, a trabajar el Plan

Nacional del Café. Este plano pleiteava justamente a alocação de recursos públicos para

a renovação dos cafezais peruanos. A capa da edição seguinte, de setembro de 2009,

deu continuidade a essa tema e teve como título Edad de Plantaciones de Café: 70%

con más de 30 años – Asi NO somos competitivos. Mais especificamente, a JNC tinha

como proposta para o governo que este concedesse um empréstimo de US$ 1.000 por

hectare para renovar 50.000 hectares de café em cinco anos.

A primeira “resposta” do poder público a esta demanda se deu em 2008,

justamente através do prêmio de US$ 4.9 milhões que a Cooperativa ganhou num

concurso chamado “Pró-Investimento”. O programa, então bastante modesto, que a

cooperativa vinha fazendo de revitalização das plantações de café, no qual os sócios

eram obrigados a investir o dinheiro do programa na melhoria de seus cafezais (de

acordo com as recomendações técnicas), poderia assim ser expandido com base nesse

prêmio. Diante dessa situação estariam se aproximando das tão valorizadas condições

das décadas de 70 e 80 que serviram de base para que muitos produtores e seus

familiares ascendessem socialmente.

Como dito anteriormente, não estive entre eles durante ou depois desse período

em que ganharam o concurso. De qualquer modo, a renovação dos cafezais dá

continuidade aos esforços da La Florida em criar as condições produtivas e comerciais

vistas como ideais pelos seus associados. Isso significa proporcionar os meios

supostamente mais adequados para que os produtores e seus familiares possam

“progredir” na vida, tal como se deu de maneira mais generalizada durante os tempos

áureos da cafeicultura no país. O descompasso que viam até recentemente entre o

sucesso comercial da La Florida e suas dificuldades produtivas é capaz então de ser

atenuado diante dessa nova conjuntura.

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Em suma, o comércio justo, assim como a revitalização das plantações, pode ser

visto como um meio para a reprodução tanto de uma narrativa em relação ao

“desenvolvimento” da cooperativa quanto de outra a respeito do “progresso” dos

agricultores. A luta da JNC para que o governo coloque em prática um plano nacional

de renovação dos cafezais é um sinal evidente de uma esperança mais geral entre os

cafeicultores peruanos diante do cultivo de café.149 Essa crença na cafeicultura permite

justamente que as narrativas dos produtores sobre suas ações ao longo do tempo

continuem dando sentido às suas vidas. Por outro lado, a continuidade dessas narrativas

tem levado a diversas mudanças nos seus significados: as cooperativas agora devem ser

“competitivas” para se desenvolverem, o solo “recuperado” para produzir bem, a

agricultura “orgânica” para preservar o meio ambiente e mais do que nunca seus filhos

precisam ter progredido no sistema educacional. É com base nessas e outras

transformações que estas narrativas continuam oferecendo um horizonte para essas

pessoas enquanto cafeicultores.

O capítulo seguinte trata justamente das alterações que vêm ocorrendo nos

sentidos das percepções da modernidade entre os sócios da Cooperativa La Florida. Ele

se apóia na minha estadia entre esses produtores e seus vizinhos durante a segunda

149 O seguinte trecho de uma reportagem deixa claro a centralidade dessa luta no âmbito da JNC e o papel de Cesar nesse processo: “Unas 43 mil familias cafetaleras del Perú, primer productor mundial de cafés especiales, reeligieron como presidente de la Junta Nacional del Café a César Rivas Peña, gerente de la cooperativa La Florida. Con el 74 por ciento de votos, Rivas Peña logró ratificarse en el cargo, lo que ha sido considerado por los caficultores como una victoria del sur peruano, sobre todo de la Central de Cooperativas Cocla, que apostó por su postulación. Las elecciones fueron realizadas durante la XV Asamblea General Ordinaria de la Junta Nacional del café (…) Las elecciones se realizaron en medio de gran tensión, ya que primero tuvo que elegirse al comité electoral, el que como es tradicional, definiría las nuevas reglas de juego de la elección de la nueva directiva. El reelecto Rivas Peña estará en el cargo hasta el 2011, tras haber superado por 17 votos a su oponente más cercano, Luis Peña Parra de Aprocassi, ahora electo Director del Consejo Directivo. Las tensiones entre los cafetaleros del sur y del norte, responden a la competencia por las inversiones que el Estado ha anunciado aprobaría este año para la renovación de cultivos. La Junta Nacional del Café ha propuesto al ejecutivo la renovación de 100 mil Ha de cafetales (para empezar) para lo cual demanda un presupuesto inicial de unos 100 millones de dólares. El pedido no es descabellado si se entiende que el gobierno de Colombia piensa invertir 750 millones de dólares en nuevos cultivos de cafés especiales, que indudablemente afectarían el status peruano como primer productor de este tipo de café.” (www.agronegociosperu.org/noticias/040509_n1.htm)

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metade de 2006. Também são evocadas, logo no começo do capítulo, duas assembléias

que reuniram os sócios da cooperativa. A questão é entender quais as características dos

agentes que têm conduzido as transformações nos significados das duas grandes

narrativas que permeiam a vida desses sujeitos: o “desenvolvimento” da La Florida e o

“progresso” dos produtores. No primeiro caso, o foco é no atual gerente da organização

e, no segundo, nos seus associados que se sobressaíram perante os demais cafeicultores

ao terem “priorizado” o “investimento” na educação de seus filhos.

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146

Capítulo 3 – Novos sentidos da ascensão social e do desenvolvimento coletivo

3.1 Introdução

A realidade vivida atualmente pelos cafeicultores peruanos é geralmente vista

por eles como mais difícil do que a que experimentaram há 25 ou 35 anos atrás. Isso se

deve não apenas aos percalços que vêm enfrentando diante do comércio e da produção

de café, mas porque a vida fora da cafeicultura que muitos desejam para seus filhos

também se tornou mais complicada ou, como os próprios agricultores costumam dizer,

mais “competitiva”. Por exemplo, eles afirmam ter hoje em dia, mais do que em

qualquer outra época, consciência de que sem educação não é possível “prosperar”.

Diante dessa realidade contemporânea, o “progresso” ou o “desenvolvimento” dentro e

fora das chacras têm adquirido novos significados. O presente capítulo procura entender

o que distingue certas pessoas enquanto os agentes que vêm conduzindo estas inovações

semânticas entre os sócios da Cooperativa La Florida.

Um contraponto interessante à experiência presente destes agricultores é a dos

sujeitos entre os quais James Ferguson (1999) conduziu seu trabalho de campo no final

da década de 1980: os trabalhadores da indústria do cobre no norte da Zâmbia. A partir

dessa sua pesquisa, ele chegou à conclusão de que a “descrença na modernidade” por

parte desses indivíduos derivava principalmente do fato de estarem atravessando uma

intensa e prolongada “crise econômica”. De acordo com este antropólogo, a

modernidade para estes mineiros estaria ligada ao passado e não ao futuro, ao contrário

do que teria acontecido nas décadas de 1960 e 1970 quando se beneficiaram de um forte

surto de industrialização em torno do cobre (um metal abundante no país e então

bastante valorizado internacionalmente). Para Ferguson, estes sujeitos se sentiram

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basicamente “enganados” depois de terem acreditado que estavam predestinados a

atingir e manter um padrão de vida que consideravam e ainda consideram como sendo

“moderno”.

Ao contrário da situação encontrada por James Ferguson entre os mineiros do

norte da Zâmbia, o que este autor chama da “mitologia da modernização” era algo que

fazia bastante sentido para os cafeicultores da selva central com os quais convivi. De

acordo com um dos exemplos que ele forneceu dessa mitologia, entre estes

trabalhadores africanos o “mito da urbanização”, vigente entre eles com força nas

décadas de 1960 e 1970, teria perdido sua relevância diante do movimento de retorno

desses sujeitos ao campo a partir dos anos 80. Não é à toa que Ferguson associe a crise

econômica a uma crise de sentido e que seu interesse se concentre na experiência social

do declino das “metanarrativas da modernidade”.

Já na selva central os ideários de progresso e desenvolvimento individual e

coletivo, vigentes na segunda metade do século passado entre os produtores de café,

continuavam vigorando entre eles. Como exemplos desses ideários podem ser

justamente citados o “desenvolvimento” das cooperativas de cafeicultores e o

“progresso” familiar e pessoal destes agricultores. Tratava-se então de narrativas a

respeito de processos que estes sujeitos acreditavam estar acontecendo desde há muito

tempo, apesar dos seus retrocessos, das suas lentidões e dos modos desiguais através

dos quais vinham sendo vivenciados.

Por outro lado, é possível perceber diversas transformações mais recentes nos

sentidos comumente associados às “metanarrativas da modernidade” destes produtores.

Em outras palavras, o progresso e o desenvolvimento são cada vez mais relacionados

por eles com a “competitividade” de suas organizações, a produção de café “orgânico” e

de “qualidade”, o “investimento” na educação de seus filhos e o “empreendedorismo”.

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Trata-se de valores bastante afins com a realidade que vivenciam e a qual se caracteriza

principalmente pela difusão ou “desregulamentação” das relações mercantis numa

escala nacional e internacional, pelo ingresso deles nos novos mercados de café, pela

importância cada vez maior concedida à educação dentro e fora do mercado de trabalho

e pelo desgaste generalizado dos solos.

Se Ferguson se concentrou na experiência social do declínio das “metanarrativas

da modernidade” entre os mineiros do norte da Zâmbia, no caso dos cafeicultores da

selva central peruana a questão pertinente é a da experiência social da transformação

nos significados dessas metanarrativas. A integração destes agricultores no comércio

justo se constitui num contexto bastante significativo para se compreender essa

experiência, mesmo tendo em vista que a realidade que vivenciam não se reduz à

participação deles neste ou em outros mercados também surgidos recentemente. De

qualquer maneira, não se trata de uma realidade onde o que é visto como “progresso” ou

“desenvolvimento” deixou de fazer sentido, mas sim na qual estas idéias passaram a ser

percebidas de maneira diferente.

É importante ter claro que “progresso” e “desenvolvimento” se encontram no

cerne das representações vigentes entre estes produtores e que fazem parte do que pode

ser chamado do campo semântico da modernidade. A palavra “modernidade” ou mesmo

“moderno” estão bem menos presentes nas falas destes sujeitos. Contudo, vigora entre

eles uma visão de que são protagonistas de histórias que caminham na direção de um

futuro melhor para si e as demais pessoas ao seu redor. Estamos diante de verdadeiras

sagas que se colocam como as experiências por excelência destes agricultores em

relação ao que Ferguson chamaria da “mitologia da modernização”. Os novos modos

deles pensarem essas sagas estavam justamente em evidência durante meu trabalho de

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campo. Estas transformações se colocavam como exemplos evidentes do que Marshall

Sahlins (1987) chamou de “reavaliação funcional das categorias na prática”:

Por um lado, as pessoas organizam seus projetos e dão sentido aos objetos partindo das compreensões preexistisses da ordem cultural. Nesses termos, a cultura é historicamente reproduzida na ação. (...) Por outro lado, entretanto, como as circunstâncias contingentes da ação não se conformam necessariamente aos significados que lhes são atribuídos por grupos específicos, sabe-se que os homens criativamente repensam seus esquemas convencionais. É nesses termos que a cultura é alterada historicamente na ação. (idem p. 8)

Este capítulo focaliza os agentes que têm conduzido as reavaliações dos

significados presentes nas narrativas usadas pelos sócios da La Florida para dar sentido

às suas ações ao longo do tempo. Tais reavaliações são feitas tendo igualmente como

pano de fundo o que os agricultores visualizam como os imperativos de uma realidade à

qual eles e seus familiares têm de se adaptar para poderem alcançar melhores condições

de vida. Como assinalado anteriormente, entre estes imperativos se destacam a

necessidade cada vez maior de seus filhos progredirem no sistema educacional, das suas

cooperativas serem “competitivas” e dos cafezais se tornarem produtivos e

proporcionarem um café de qualidade.

O ponto é que o acesso dos produtores e de seus descendentes a uma condição

de vida que eles consideram adequada é visto na selva central como algo bastante

difícil, mas não impossível, como parece ser o caso do que acontece entre os moradores

de diversas regiões africanas, de acordo com Ferguson (2006). Não é à toa que nesta

zona peruana se destaquem os sujeitos capazes de proporcionar os meios para que a

situação precária daqueles ao seu redor seja superada ou, pelo menos, atenuada de uma

maneira considerada satisfatória. A questão deste capítulo é saber quais as

características destes sujeitos que exercem esse papel de destaque.

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3.2 Desenvolvimento como competitividade

Como assinalado nas últimas páginas do capítulo anterior, a gerência de Cesar

na Cooperativa La Florida vem sendo basicamente pautada pela sua busca em tornar

esta entidade a mais apta possível para “competir” pela compra e venda de café dentro e

fora do comércio justo. Trata-se de uma estratégia de gerenciamento cujo respaldo por

parte dos sócios da cooperativa pode ser percebido de maneira bastante significativa

através do que se passa nas suas assembléias. Isso porque estes eventos se constituem

em ocasiões nas quais os associados podem influir de modo mais direto nos rumos

tomados pela organização.

Em outubro de 2005, por exemplo, se realizou aquela que seria considerada a

mais tumultuada Assembléia Extraordinária da Cooperativa La Florida.150 Esse evento

ocorreu numa conjuntura, mencionada no capítulo anterior, na qual imperava um

sentimento latente dos produtores diante do que viam como uma contradição entre o

desenvolvimento comercial alcançado pela cooperativa e as dificuldades que

enfrentavam cotidianamente. Esse sentimento veio à tona justamente durante a

assembléia e através de uma conjunção de diversos fatores.

Entre estes fatores podem ser destacados: (1) a então recente visita de um

inspetor da FLO que resultou numa “advertência” à cooperativa; (2) a atitude do

“presidente do conselho de vigilância” em divulgar um relatório, ainda em fase

preliminar, que apontava para a possibilidade da organização ter que se desfazer de seus

bens para pagar suas dívidas com os bancos; (3) o não pagamento do chamado reitengro

aos agricultores (ou seja, do dinheiro resultante das vendas realizadas ao longo do ano),

dado que a cooperativa recebeu pelos cafés que vendeu valores menores do que aqueles

150 As Assembléias Ordinárias acontecem em março.

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pelos quais foram comprados, na medida em que teve de cumprir com seus contratos

“extras” firmados num contexto de altos preços internacionais que não perdurou (ao

contrário do que aconteceu com os preços dentro do país) e (4) a insatisfação dos

produtores com o tratamento que vinham recebendo do administrador da cooperativa

(um sujeito oriundo da classe média branca de Lima e nada familiarizado com o

universo cafeicultor).

Nessa assembléia, a pressão em cima do gerente chegou a tal ponto que este

ameaçou abandonar o cargo, apontando inclusive para o fato de que a confiança dos

clientes da cooperativa era para com ele e não em relação à entidade. “Se eu sair a

cooperativa quebra”, afirmou no ápice da tensão. Finda a pressão, depois de retrucar,

com bastante propriedade, as críticas que vinha recebendo e, desse modo, diante de

ânimos menos exaltados, ele adotou como resposta aos descontentamentos dos sócios, o

aumento nos recursos destinados à melhoria da comunicação entre a gerência e estes

agricultores. Isso significou, na prática, a contratação de dois profissionais: um

sociólogo e uma psicóloga. O investimento na produção de uma maior quantidade de

informes escritos não foi deixado de lado, apesar de que não era visto como algo eficaz

diante baixa escolaridade reinante entre os produtores.

A advertência do inspetor da FLO que visitou a cooperativa, em julho desse ano,

esteve apoiada nas seguintes observações: (1) dentro do comércio justo não é viável

uma assembléia com mais de 800 pessoas e (2) os dirigentes não sabiam o destino do

“prêmio social” do comércio justo. O gerente enviou uma carta à FLO contra-

argumentando que: (1) uma assembléia de delegados, de acordo com o que era sugerido

pela FLO para as cooperativas com mais de 800 sócios, ia de encontro com a lei

peruana de cooperativas que autorizava esse tipo de assembléia apenas para as entidades

com mais de 1.000 sócios (a La Florida tinha 800 sócios como direito a voz e voto nas

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assembléias) e (2) em março de cada ano, a cooperativa elege seus dirigentes e, em

julho, durante a visita do inspetor da FLO, os novos dirigentes ainda não estavam

familiarizados com a distribuição do “prêmio social”. A FLO aceitou esses argumentos

e retirou sua advertência à cooperativa.

Acontece que, durante a assembléia no final de 2005, o sócio que ocupava o

posto de “presidente do conselho de vigilância”, no seu afã de deslegitimar a gestão do

gerente, ascendeu os ânimos da platéia com uma cópia da advertência da FLO em mãos,

isso porque, segundo o que me disseram posteriormente alguns associados, havia um

interesse de sua parte em postular esse cargo. Ele então culpou Cesar por colocar em

risco o credenciamento da La Florida junto ao comércio justo. Muitos dos sócios

aplaudiram suas considerações. Estas também vieram acompanhadas de um relatório,

ainda em fase bastante preliminar, que apontava para a natureza supostamente crítica

das dívidas da cooperativa. Contudo, como informaria o gerente, logo em seguida,

diversas auditorias externas tinham comprovado que essas dívidas junto aos bancos

poderiam ser facilmente quitadas pela La Florida, sem a necessidade de ter de se

desfazer de seus bens. Após a assembléia, Cesar acabou processando criminalmente o

presidente do conselho de vigilância por difamação. Isso não impediu que suas

considerações repercutissem para fora do âmbito da cooperativa e comprometessem

alguns de seus contratos com os compradores de café.

Pude acompanhar a assembléia extraordinária seguinte, realizada em outubro de

2006. Praticamente todos os “sócios ativos” (com direito a voz e voto nas assembléias)

estavam presentes (para os que não compareceram, seria cobrada uma multa de 100

soles; já os que vieram receberiam uma ajuda de custo no valor de 40 soles).151 Cheguei

sozinho, mas, logo de cara, reencontrei diversos produtores que havia conhecido antes.

151 Os “sócios não-ativos” não são obrigados a fazer parte das assembléias e também não recebem qualquer tipo de bonificação para participar delas.

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Pelo fato de eu não ser um sócio, o gerente requisitou que um associado amigo meu

gentilmente me levasse para fora do grande armazém onde se realizaria o encontro. A

verdade é que as centenas de cadeiras dispostas nesse local não foram suficientes para

comportar todos os agricultores. Permaneci então junto daqueles que assistiram de pé a

assembléia.

Foto 24 – A assembléia de outubro de 2006 Foto 25 – O começo da festa após a assembléia

Logo no início do evento, o presidente do conselho de administração não só

louvaria a indicação de Cesar para a presidência da Junta Nacional do Café (JNC) como

também diria: “Cesar, mil desculpas, em nome dos nossos sócios, por aqueles maus

momentos”. Depois ele ainda ressaltaria que “as instituições financeiras depositaram

confiança em nós, dada nossa capacidade de produção” e concluiria sua fala dizendo:

“consolidamos nossa presença nos EUA e na Europa, falta consolidar no difícil mercado

japonês.”

Mas o clímax da assembléia se deu durante a divulgação que o gerente fez dos

valores dos reintegros que seriam pagos aos cafeicultores.152 Um sócio me disse que

estava lá apenas para escutar isso (não era à toa que trouxe uma calculadora). Nesse 152 Para os sócios que entregaram cafés orgânicos nas plantas de beneficiamento úmido seria pago 1.30 soles por quilo e para os não-sócios este valor era de 0.65 soles. Os cafés orgânicos entregues nos armazéns de La Marced ou Salcipuedes (este último era justamente o local onde se realizava a assembléia) receberiam um sol caso fossem entregues por sócios e 0.50 por não-sócios. Os cafés convencionais (sem certificação) só receberiam reintegro se fossem dos sócios: 0.65 soles para os que foram para as plantas de beneficio úmido e 0.50 para os que foram para La Merced e Salcipuedes. O pagamento dos reintegros seria feito em duas partes: metade na primeira quinzena de dezembro e a outra metade no final de janeiro. “O reintegro deve ir para as plantações, para mantermos a imagem da cooperativa”, aconselhou o gerente no final de sua fala.

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momento, o silêncio tomou conta dos produtores e só terminou quando o gerente

acabou de expor tais valores. A alegria de todos na festa que se seguiu à apresentação

desses números reproduzia a visão positiva generalizada diante dos resultados

comerciais alcançados pela La Florida nesse ano.

É possível afirmar que o poder de Cesar foi desafiado na assembléia de 2005.

Como também ficou claro nesse evento, tal poder se assentava, em grande medida, na

sua monopolização dos contatos com os clientes da cooperativa, em especial, dos

compradores de café através do comércio justo. Pude perceber melhor a importância

desse monopólio durante minhas conversas com o irmão de Cesar. Ele gerenciava uma

organização de produtores da selva central filiada à JNC; nosso primeiro encontro se

deu em dezembro de 2006, quando então ocupava há dois meses o cargo de gerente.153

“Estamos seguindo a Cooperativa La Florida”, me disse na ocasião. Sua preocupação

naquele momento era obter a “confiança dos sócios” para entregar os cafés com as

certificações orgânicas e de comércio justo. “Não temos nome na Europa, vendemos

para a Corporação Café Peru”, foram suas palavras para as quais completou: “o objetivo

de longo prazo é vender diretamente”.

A cooperativa que gerenciava foi fundada em 1974 e, segundo ele, “quebrou por

causa do terrorismo e da corrupção de seus dirigentes”. Ela “ressurgiu” em 2006: “mas

está mal, está com dívidas, os sócios querem liquidá-la e isso não é justo”, afirmou.

Durante essa nossa conversa, ele falou ao telefone com seu irmão e lhe fez algumas

perguntas sobre problemas práticos que vinha enfrentando no seu trabalho. No nosso

diálogo seguinte, em outubro de 2009, me informou que estavam certificados dentro do

comércio justo desde 2008; disse que ainda não exportavam diretamente, mas que

gostariam de fazer isso a partir de 2010. Comentou também que vendiam através da

153 Ele se formou em agronomia numa renomada universidade pública de Lima.

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Corporação Café Peru e de mais duas outras organizações. Questionei se era difícil

vender diretamente, ao que respondeu: “não, apenas não temos os contatos, aqui as

pessoas são bem ciumentas com seus compradores porque ganham comissão.” Ao

perguntá-lo se seu irmão não lhe poderia passar alguns contatos, ressaltou: “ele trabalha

bem para sua empresa, nem a mim dá informação, mas eu já tive a oportunidade de

viajar até uma feira nos EUA, onde conheci algumas pessoas; vamos começar (a

exportar diretamente) em 2010”, assinalou. Indaguei se vender pelo comércio justo

através da Corporação Café Peru (entidade também gerenciada por Cesar) daria no

mesmo que vender diretamente: “não, eles vendem com a marca deles, mas é nosso

café, e assim devem indicar nas suas embalagens, só que nos cobram uma comissão de

1.5% do valor FOB (preço do café exportado)”.

Com base, em grande medida, nos seus contatos com os compradores

certificados pela FLO, Cesar podia, por um lado, oferecer aos seus associados valores

relativamente altos pelos seus cafés, mas esse poder também lhe permitia imprimir sua

visão a respeito do que acreditava ser o caminho adequado para o “desenvolvimento” da

cooperativa e da central de organizações de produtores que ele igualmente

gerenciava.154 A necessidade de serem “competitivas” acabou justamente se colocando

como a marca principal de sua gestão. Para além da sua capacidade em contornar as

críticas dos sócios, o respaldo de sua estratégia de gerenciamento deve ser entendido

levando-se em conta que também está em jogo nessa noção de competitividade a oferta

de melhores preços para os cafés dos agricultores. Como ele próprio me disse: “Os

154 Em 2007, a Cooperativa La Florida vendeu US$ 5.534.658 em café, com um preço médio por saca de US$ 136.76. Com relação à Corporação Café Peru, os valores foram US$ 6.754.411 e US$ 137.98, respectivamente. No ano seguinte, a primeira vendeu US$ 7.735.787 a US$ 157.84 em média por saca; a segunda US$ 15.527.454 a US$ 139.02 em média. Em 2009, os valores foram US$ 9.444.770 a US$ 149.65 em média, no caso da La Florida; US$ 12.670.318 a US$ 149.15 em média, no caso da Café Peru. Em 2007, a saca de café exportada pelo Peru foi vendida por um preço médio de US$ 113.16. No ano seguinte, esse valor foi de US$ 131.98 e, em 2009, ficou em US$ 138.24. (www.juntadelcafe.org.pe)

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produtores sempre querem o melhor preço; temos que ser competitivos, o produtor quer

o melhor preço e serviços, só 10% é estritamente fiel”.

As próximas seções retratam parte do período em que permanecei junto aos

sócios da La Florida durante a segunda metade de 2006. O foco é nas pessoas que

vivem num dos inúmeros “anexos” que fazem parte do distrito de Perene e que

igualmente se encontram dentro do “raio de ação” da cooperativa.155 Através do que se

segue é possível perceber a proeminência de determinados cafeicultores e suas

respectivas famílias perante os demais agricultores ao seu redor. Tal proeminência é o

que explica, em grande medida, a introdução de novos sentidos à noção de progresso

vigente entre os produtores locais.

3.3 Os Santos

No final de setembro de 2006, havia retornado ao Peru para completar a última

etapa do meu trabalho de campo. Logo nos primeiros dias, estaria junto de meus amigos

da La Florida que trabalhavam no escritório da Central Café Peru (localizado na cidade

de Lima). Um deles estava organizando (com a assessoria informal de um funcionário

do Ministério do Turismo) um programa de “turismo vivencial” para ser realizado na

selva central e que ficaria a cargo de uma agência turística. O programa se chamava

“turismo com aroma de café” e era pensado enquanto uma “atividade complementar ao

café para aumentar os ingressos dos produtores”. Ele abarcaria três “circuitos turísticos”

e envolveria inicialmente duas famílias de colonos andinos e uma comunidade nativa

enquanto provedores da hospedagem aos turistas.

155 Como assinalado no capítulo anterior, o distrito de Perene conta com 40 “comunidades nativas”, oito “centros povoados” e mais de 140 “anexos”.

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157

Seu organizador havia, dois anos antes, levado um grupo de visitantes

estrangeiros à região e estes preferiram retornar até La Merced para dormir, por conta

da rusticidade das moradias dos agricultores. As duas casas familiares que deveriam

participar do programa eram as que apresentavam melhores condições entre as demais

ao seu redor, apesar de que mesmo assim o aprimoramento de suas infra-estruturas seria

financiado (no caso da comunidade indígena, esta iria fornecer um alojamento que os

nativos ainda estavam construindo). Uma dessas duas casas era da própria família do

organizador e a outra dos pais de um amigo seu de infância que também trabalhava na

Central Café Peru e irmão do gerente dessa mesma organização. 156 Foram nesses dois

imóveis que permaneci mais dias alojado junto aos sócios da Cooperativa La Florida.

Tais residências acabaram se mostrando como as únicas no seu entorno providas de uma

mínima comodidade (como vasos sanitários, por exemplo) para alguém não acostumado

com a precariedade de um ambiente rural composto majoritariamente por uma

população de baixa renda.

Mapa II – Em amarelo: alguns anexos e comunidade nativas dentro do “raio de ação” da Cooperativa La Florida (Desco, 2009)

156 O organizador do programa tinha em mente construir alguns bangalôs ao lado de sua casa para que os turistas pudessem dormir neles.

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158

Cheguei à chacra desse organizador do programa turístico no dia 10 de outubro.

Ela esta situada no anexo de José Galvez (à direita e acima do mapa II), um dos 140

anexos do distrito de Perene e dentro da “raio de ação” da Cooperativa La Florida.

Quem me levou até lá foi Alejandro (o jovem, retratado no capítulo anterior, que

também trabalhava como motorista entre o povoado de La Florida e La Merced) e ao

chegarmos à entrada da propriedade este foi correndo dizer aos moradores que “o

gringo” havia chegado.157 Na chacra estavam a mãe de meu amigo e sua irmã mais

velha chamada Suzana. Esta última se colocou como “minha guia” até a tarde do dia

seguinte, quando seu irmão mais novo retornou “da serra” (os Andes) junto de dois

obreros que havia conseguido contratar para trabalhar alguns meses no sítio.158

Ela tinha por volta de trinta e poucos anos e era formada em administração de

empresas numa faculdade situada na principal cidade dos Andes centrais peruanos

(Huancayo). Considerava a Cooperativa La Florida como uma “empresa privada” e

tinha consciência de que seus irmãos viam a cooperativa “de maneira mais positiva”.

Seu falecido pai havia migrado dos Andes na década de 60 para trabalhar na colheita de

café na selva central, com o passar do tempo adquiriu seu próprio cafezal e se tornou

um dos mais destacados sócios da La Florida (foi seu presidente nos difíceis anos de

1993 e 1994), além de que somente vendia seus cafés através dessa organização: “ele

era cooperativista”, comentou. Disse que pretendia tratar a chacra como uma “empresa

157 No caminho pude conhecer as famosas cataratas da região. Havíamos dado uma carona a uma senhora que tinha uma barraca nesse ponto turístico. Ela possuía também um hectare plantado com café, mas o qual “não cuidava”, dado que no seu entender o preço desse grão estava muito baixo. Essa senhora igualmente reclamou dos baixos preços pagos pelos compradores de banana, tangerina e abacate e que por isso “não compensava vender esses produtos”. Se mudou para a selva central em 1970, vindo de uma grande cidade da região central dos Andes peruanos. Seu irmão havia comprado um terreno na selva e lhe repassado a propriedade. Tratava-se de 16 hectares de uma terra bastante produtiva, do seu ponto de vista, se comparada com os terrenos andinos (“aqui se produz de tudo”, disse). O seu único filho e seus netos viviam na sua cidade natal e perto da qual tinha uma chacra. Ela vendia para os turistas refrigerantes, suco de laranja com mel e diversos tipos de petiscos. 158 Eles estavam há um mês sem personales. No ano anterior, haviam oferecido trabalho para pequenos produtores locais, mas estes teriam recusado (um destes teria oito filhos e apenas meio hectare de café).

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159

agrícola” e que se pudesse usaria produtos químicos nos cafezais.159 De acordo com

uma senhora amiga da família de um anexo vizinho e que iria me hospedar algumas

semanas depois em sua casa, “Suzana é uma moça do pueblo, foi um sacrifício trazê-la

para a chacra, mas agora ela não quer mais sair de lá”.

Suzana e sua mãe diziam não ter amizade com seus vizinhos e que quando saiam

da chacra iam direto para La Merced. Afirmavam “não ter tempo para fofocar” e esse

discurso parecia corroborar o caráter aparentemente compulsivo com que se dedicavam

às suas tarefas domésticas e no cuidado da chacra (por isso me sentia freqüentemente

atrapalhando seus afazeres durante nossas conversas).160 Minhas duas anfitriãs não se

mostravam interessadas em discutir o passado de sua família. De qualquer maneira, não

deixaram de me informar a respeito dos moradores do anexo (algo que fizeram num tom

bastante crítico).

A distinção dessa família (chamada aqui de Santos) no espaço local se apoiava,

sobretudo, no grau de instrução de seus membros e nos seus respectivos empregos.

Nessa época, a irmã de Suzana e um de seus irmãos viviam em Lima. A primeira

trabalhava numa pequena empresa privada exportadora de cafés especiais e na

organização não-governamental ligada a essa empresa. Já esse seu irmão eram um dos

funcionários da Central Café Peru (entidade na qual esta sua irmã iria trabalhar algum

tempo depois) até que se desligou dela para exercer um cargo numa grande empresa

privada exportadora de café. Seu irmão mais velho era casado e gerenciava uma

cooperativa de cafeicultores localizada no sul do país (um ano depois iria largar esse

159 Eles entraram no programa de cafés orgânicos da cooperativa em 1997; ano em que esse programa teve início. Nessa época, tinham entre seis e sete hectares de café e que, com base em insumos químicos, produziam 60 quintais por hectare. Ela disse também querer construir sua casa na chacra, onde recentemente plantou três hectares do grão. 160 A mãe de Suzana me contou que quando criança sua mãe jogava trigo no chão de propósito para que ela e seus irmãos “não ficassem ociosos”. Ela também me falou que admirava “os gringos (colonos alemães) de Villa Rica” porque eles “trabalham duro”. Sua chacra tinha muitas variedades de hortaliças, além de manga, banana, mandioca, abóbora, um poço com peixes, porcos, galinhas e gado. O que compravam era basicamente açúcar, sal macarrão e arroz. Já sua preocupação em me proporcionar uma alimentação bastante farta era porque “os outros poderiam pensar que aqui não se come bem”.

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160

emprego e ser gerente de uma cooperativa de produtores de café e cacau situada no

norte do Peru).

Suzana também tinha outro irmão casado e que morava em La Marced, onde

trabalhava como motorista da La Florida. Ele era o único que não havia completado

uma faculdade. Já o caçula da família estava vivendo com ela e sua mãe há alguns

meses, na medida em que recentemente tinha terminado a universidade e não arrumou

um emprego logo em seguida (seus irmãos o incentivavam a ir cursar um mestrado de

agronomia no exterior).

Os Santos se colocavam para os demais moradores como verdadeiros

referenciais ou modelos de vida. Esse destaque remonta ao já falecido patriarca da

família, chamado Alberto; tanto é que uma recém criada localidade em José Galvez

havia recebido seu sobrenome em sua homenagem. O problema era que as condições

que lhes permitiram ascender socialmente não estavam mais presentes hoje em dia, em

especial, os solos não produziam tão bem quanto há 20 ou 30 anos atrás e o preço do

café no seu mercado “convencional” era bem menor. Nesse cenário, os filhos de Alberto

Santos se posicionavam, assim como seu pai em outras épocas, enquanto os principais

introdutores das novidades no local. Por exemplo, era um deles quem incentivava o

turismo na região; sem contar que os Santos tinham sido uma das primeiras famílias a

plantar “café orgânico” no anexo. Mas o que representavam principalmente era um

exemplo concreto de que o “investimento” na educação podia ser um meio eficaz para o

“progresso” entre os agricultores.

O restante do capítulo procura entender a posição desta e de outras famílias

como referenciais entre os sócios da Cooperativa La Florida e seus vizinhos. Isso é feito

através de uma descrição centrada nas minhas conversas com os moradores locais.

Através das suas falas é possível perceber como compreendem aquilo que distingue as

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pessoas que entre eles se colocam hoje em dia como um modelo de conduta. Já na seção

seguinte, o valor do sistema educacional aparece claramente como algo central nesse

cenário. Por outro lado, como também se mostra evidente ao longo das próximas

páginas, a dificuldade dos filhos dos produtores em progredir nesse sistema é a tônica

das suas falas a respeito da importância das instituições de ensino na vida desses seus

descendentes. Essa dificuldade é principalmente pensada como derivada da própria

situação precária vivenciada pela maioria dos habitantes locais.

3.4 A precariedade das condições de vida dos moradores

Andando com Suzana por José Galvez logo pela manhã do dia seguinte à minha

chegada, nos dirigimos inicialmente à comunidade nativa local chamada Inkariado e que

ficava a uns 40 minutos de caminhada de sua casa (nessa comunidade era que se

encontrava a hospedagem, ainda em construção, que seria utilizada pelos participantes

do programa “turismo com aroma de café”). “Não venho há anos nesse pueblo”, me

disse Suzana assim que chegamos ao território indígena. No caminho até lá pude

avistar, do meio da estrada, muitas plantações de café e a casa de um produtor na qual

ele mantinha uma pequena loja onde vendia produtos como papel higiênico, sabonete e

demais mantimentos de uso cotidiano.

Foto 26 – A escola da “parte alta” de Inkariado Foto 27 – Vista da escola

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162

Na entrada da comunidade nativa morava um colono andino que também tinha

uma loja dentro de sua casa e onde inclusive comprava e armazenava café. Algumas

mulheres indígenas (que se disseram todas pertencer à etnia ashaninka) estavam

reunidas com seus filhos no posto de saúde que igualmente existia na entrada da

comunidade e que fazia parte de uma espécie de complexo comunitário formado por

uma escola, pela hospedagem em construção e por um campo de futebol com um palco

à sua frente. Uma campanha nacional de vacinação estava acontecendo nesse dia.

Durante nossa conversa com as mães das crianças que foram ser vacinadas, elas nos

ofereceram gentilmente um copo com masato (bebida tradicional indígena à base de

mandioca fermentada). Ao saber que Suzana era membro da localmente reconhecida

família Santos, uma delas lembrou que ambas estudaram juntas ao longo do primeiro

grau.

Estas mulheres ashaninka inicialmente se mostraram bem críticas em relação aos

migrantes andinos, apesar de uma delas ter se casado com um destes sujeitos e o qual

era dono da loja situada na entrada da comunidade. “Os colonos espantam os animais”,

disse uma das mais exaltadas. Outra comentou a respeito dos nomes pejorativos que os

migrantes costumavam chamá-los: “os serranos nos chamam de campa, mas não

gostamos disso e também não gostamos quando dizem que somos chunchos”. De

qualquer maneira, não deixaram de reconhecer que “bons colonos disseram para os

ashaninka titular o terreno”. Isso teria se dado num contexto onde determinados

“parentes” dessas mulheres teriam inclusive trocado seus terrenos “por apenas um

touro”. Elas acrescentaram também que desejavam ver seus filhos “ter uma profissão”,

mas que “com esse (baixo) preço do café” não seria possível disso acontecer, na medida

em que essa conjuntura dificultava ainda mais a obtenção dos recursos para que

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progredissem no sistema escolar. Igualmente afirmaram não produzir nenhum tipo de

artesanato que pudesse ser vendido.

Suzana ouviu calada as críticas que as indígenas dirigiram aos colonos e só se

pronunciou a respeito disso comigo ao voltarmos à sua casa. Ela ressaltou sua visão de

que os nativos eram “acomodados” e que nunca aceitaram as oportunidades de trabalho

que lhes ofereceu. No caminho de volta à sua residência, pude conversar com uma

mulher ashaninka. Esta me disse, inicialmente, que era “particular” (não era sócia de

nenhuma cooperativa) e que tinha 2.5 hectares de terra e em meio havia plantado café.

Nesse ano (2006), seu cafezal tinha produzido 30 quintais (vale lembrar que cada saca

tem um quintal ou 46 quilos) e os quais foram vendidos a 30 soles a “lata” (de 14

quilos). Em outras palavras, ganhou 1.000 soles com a venda de seu café.161

Afirmou não ter dinheiro para o frete de três soles por saca/quintal cobrado pelos

motoristas dos veículos que se dirigiam ao povoado mais próximo, por isso vendeu seu

café para um dos comerciantes intermediários que vieram até a comunidade. Estes

teriam dito que o preço do produto havia abaixado para um determinado patamar, mas

de acordo com ela “isso era mentira”.162 Contou que seu marido foi até a Cooperativa

La Florida a procura de um empréstimo, mas que fora negado pelo fato de não dispor de

qualquer documento que comprovasse a posse de um terreno ou imóvel. Comentando a

respeito dos gastos com material escolar e uniformes, falou que a professora da escola

teria dito para um de seus seis filhos que este não poderia freqüentar a instituição sem

sapatos. Outro filho do casal largou o seminário justamente porque não podiam arcar

com uma anuidade de 200 soles.

Dois dias depois estaria visitando de novo a comunidade nativa de Inkariado.

Desta vez estaria junto de Carlos, o irmão mais novo de Suzana, e que ao contrário dela

161 Nessa época, um dólar valia aproximadamente três soles. 162 Ela tinha comprado há pouco tempo atrás uma máquina para despolpar café, algo que a permitiria vender o grão em pergaminho e não em cereja.

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tinha uma visão positiva dos indígenas. Ao chegarmos à comunidade, ele se dirigiu para

um ashaninka amigo seu e disse num tom de brincadeira: “fala cunhado”. Através de

Carlos (então um jovem desempregado de trinta anos e formado em agronomia) pude

conhecer melhor não só os nativos como também outros moradores locais. Certamente

que o fato de ser do sexo masculino lhe permitia transitar com mais facilidade entre os

agricultores. De qualquer maneira, durante nossas visitas entrei em contato com dois

espaços nos quais os moradores se reuniam cotidianamente para além das relações mais

circunscritas que mantinham dentro das propriedades agrícolas: o complexo

comunitário logo na entrada de Inkariado e o aglomerado de nove residências próximo

da chacra de Carlos e ao redor de uma escola de primeiro grau. Mas acima de tudo, a

dispersão das famílias cafeicultoras é que parecia dominar a paisagem das relações

locais e o trabalho no sítio comandava suas experiências cotidianas. Isso significava que

para conversar com os produtores tínhamos que basicamente abordá-los em suas

próprias residências ou enquanto transitavam de um lugar para outro.

O aglomerado de casas a uns 10 ou 15 minutos de caminhada da chacra de

Carlos se chamava Vila Santos. O nome era uma homenagem ao seu pai que foi quem

teria dado o terreno onde os moradores construíram a escola. Mas acontece que esse

meu anfitrião nunca tinha estado no local e sua justificativa para essa sua ausência era

de que permaneceu muito tempo estudando numa universidade pública no norte do país

e só recentemente retornou para ficar um período mais prolongado na sua chacra. Vale

ressaltar que era do interesse dos habitantes de Vila Santos que esta localidade fosse

reconhecida pelos poderes públicos como sendo um anexo e, conseqüentemente,

desfrutasse das supostas benesses que envolviam esse reconhecimento. Um anexo era

juridicamente entendido como qualquer espaço rural conformado de no mínimo 28

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residências; se esse fosse o caso seus residentes encontrariam uma base jurídica para

demandar a realização de investimentos estatais no local.

Foto 28 – A escola de Vila Santos e seus alunos Foto 29 – Carlos olhando para Vila Santos

Pude conversar com o professor da escola.163 Ele inicialmente me pediu para que

eu entrasse em contato com o famoso jogador de futebol Ronaldinho, dado que tinha

visto numa reportagem que ele apoiou uma determinada instituição que ajudava

crianças carentes de Lima. Na verdade, sua preocupação com a melhoria da escola era

comovente. Ela se resumia a uma pequena e singela casa de madeira, de um só cômodo,

incapaz de proteger seus então 25 alunos da chuva e os quais deveriam se aglomerar

numa mesma sala de aula, apesar de estarem cursando séries diferentes. Ao lado do

imóvel, os pais desses alunos estavam construindo outro mais estruturado, mas que

ainda estava pela metade por falta de recursos. De acordo com o professor, “existem 50

produtores em Vila Santos e no máximo cinco produzem bem”.

163 Antes de me deparar com o professor, conversei com uma senhora que estava a 34 anos morando em Jose Galvez e que, no momento em que a abordei, ela conversava com outras moradoras em frente à loja que uma delas mantinha em sua própria casa. Essa senhora era natural de Cajamarca e me disse que quando chegou, com seu marido, à selva central, ambos trabalharam como obreros para um produtor de La Florida. Eles compraram os oito hectares de sua chacra e que estava situada numa outra parte do anexo; esta tinha três hectares plantados com café e que produziram 100 quintas nesse ano. Era sócia “orgânica” da Cooperativa La Florida e vendia toda sua produção para essa cooperativa. Tinha sete filhos, nenhum deles chegou a ir além do primeiro grau e todos tinham sua própria chacra.

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166

Ele me apresentou às crianças e essas me receberam de uma forma bastante

calorosa; quase todas me ofereceram um pedaço de seus lanches e o professor inclusive

comprou um refrigerante em minha homenagem na loja que uma moradora de Vila

Santos mantinha em sua própria casa. Comentou que costumava ir junto de seus alunos

de chacra em chacra em busca de um pouco de café dos produtores como uma forma de

contribuição para a melhoria da escola. Não teriam sido poucas as vezes que as crianças

voltaram na chuva carregando em suas costas pequenos sacos do produto. Nove pais

puderam fornecer os 4.000 soles que foram usados para comprar o terreno e a armação

da nova escola (faltavam ainda 2.000 soles para terminar a obra; 1.800 depois de uma

singela contribuição que lhes pude fazer e para a qual ficaram muito agradecidos e

emocionados). “Não sabíamos a quem recorrer”, me contou o professor que completou

dizendo que “o governo só ajuda a cidade, não vai até a zona rural”. Ainda de acordo

com ele, “a prefeitura e o Estado não fazem nada e os seus projetos não são colocados

em prática; melhor fazermos nós próprios”. O antigo professor era pago pela

comunidade (a qual ainda estaria em débito com ele) e teria contribuído bastante para a

constituição da escola. O atual era pago pelo estado e estava há um ano trabalhando no

local. Como trabalha numa “zona de emergência” (dada a precariedade da infra-

estrutura da parte rural do distrito de Perene), recebia mais do que se ocupasse esse

mesmo cargo numa escola pública urbana. Segundo ele, “a Cooperativa La Florida não

responde nossos pedidos de ajuda”. Depois de assinalar que “nasceu para ser professor”,

ressaltou que a maior dificuldade que enfrentavam era a falta de livros e que por isso os

alunos liam jornais como uma forma de compensar essa carência. Três alunos da escola,

que terminaram o primeiro grau, teriam abandonado o segundo por conta justamente da

falta de recursos.

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167

Foto 30 – Ao redor de Vila Santos

Para além da comida que poderiam trazer de suas casas, as crianças recebiam no

intervalo das aulas um biscoito doce supostamente vitaminado e um copo de leite que

eram fornecidos pelo governo. O professor reclamou comigo a respeito dessa merenda,

na medida em que o governo anterior proporcionava às escolas arroz, azeite, óleo,

macarrão, legumes e outros alimentos de maior sustância. “Doces dão fome rápido, o

melhor seria terem continuado a nos dar salgados”, disse ele.

A decisão dos habitantes de construir a atual escola, há então passados seis anos,

teve como pano de fundo, por um lado, o custo do transporte (um sol para ir e outro

para voltar) até aonde se encontrava a tradicional escola de Jose Galvez. Além disso,

esta última estava e ainda estaria em más condições e em risco de desabar em cima dos

alunos. De qualquer maneira, era evidente que nesse cenário a educação se colocava

como um valor dominante, apesar da precariedade das suas instituições de ensino e da

falta de recursos de grande parte dos moradores.

A própria subdivisão da comunidade nativa local entre “Alto Inkariado” e

“Baixo Inkariado” refletia o fato de que em cada uma dessas partes da comunidade

havia uma escola de primeiro grau (apesar de na chamada parte alta existirem outras

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instituições que congregavam os indígenas). O sistema educacional era o meio que os

habitantes viam como o mais propício para proporcionar as condições para que seus

filhos obtivessem uma “profissão”. As expressões utilizadas pelos produtores para falar

do que pensam sobre a educação podem ser visualizadas num trecho de um estudo,

também citado no capítulo anterior, a respeito da “desigualdade no distrito de Perene” e

que se baseou em entrevistas com seus residentes:

Tanto las mujeres como los varones consideran que la educación es muy importante. Las razones que dan son las siguientes: “sirve para el futuro”, “permite una formación personal” y “nos ayuda a realizarnos y progresar”. Específicamente, los varones sostuvieron que “mejora la actitud de la gente”, “permite desenvolverse mejor en la vida” y “permite responder mejor las oportunidades que se presentan”. (Desco, 2005b p. 369)

Evidentemente que nem todos conseguiam ver seus filhos progredir nesse

sistema e muito menos lograr obter um emprego relativamente estável e bem

remunerado. Essas diferenças entre os moradores decorrentes do devir educacional e

profissional de seus descendentes mais imediatos eram justamente o que os diferenciava

em relação aos seus respectivos “progressos familiares”. Mas é preciso também ter em

mente que essas diferenças não eram pensadas tendo apenas em vista as condições

materiais que poderiam facilitar ou não a ascensão através do sistema educacional. Isso

porque a perseverança dos produtores em fazer com que seus filhos avançassem dentro

desse sistema e o próprio esforço ou aptidão destes últimos eram igualmente levados em

conta no modo como entendiam o progresso escolar.

3.5 Os esforços em prol da educação

Logo que eu e Carlos deixamos a escola em direção à chacra de um produtor,

encontramos pelo caminho com um sujeito de meia idade que nos disse trabalhar há um

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ano como peão na região. Dois de seus três filhos estudavam na escola de Vila Santos e

moravam com o restante da família na casa do professor que dava aula na comunidade

nativa de Inkariado.164 Este lhe dava 200 soles mensais para que cuidasse da

propriedade. Além disso, esteve empregado recentemente numa obra viária local e

vinha trabalhando na chacra de um agricultor. Ganhava em média 10 soles diários que

só dariam “para o dia”. Era natural do norte do país e tinha 23 irmãos. Ficou órfão aos

nove anos e aos 10 virou “ajudante”. Chegou a estudar até o começo do segundo grau,

dado que quando jovem morou num ambiente urbano e, conseqüentemente, onde havia

uma maior facilidade para se acessar as instituições educativas de primeiro e segundo

grau. Veio para Chanchamayo junto de um primo; no norte a diária era de cinco a seis

soles. Disse que se não tiver dinheiro ou a “mentalidade” de seus filhos não ajudar, estes

terão que deixar a escola e ir trabalhar no campo.

A inaptidão pessoal para progredir no sistema educacional também seria

evocada na fala do próximo morador local com quem conversei. Havia seguido com

Carlos até a chacra de um dos chamados fundadores de Jose Galvez e que também era

sócio da Cooperativa La Florida. Quem nos recebeu foi um de seus filhos e amigo de

infância de meu cicerone (ambos eram vizinhos). O nome da propriedade (escrito numa

placa na sua entrada) era Fondo Las Estrellas. Tinha 33 hectares, sete destes plantados

com café e que produziam entre 15 a 20 quintais por hectare. Vendiam toda a produção

para a cooperativa; encontraria com esse jovem produtor – então com não mais do que

trinta anos de idade - na assembléia da La Florida que seria realizada no final do ano.

164 Trata-se de um professor de origem andina que há 10 anos dava aulas na comunidade nativa. Ele me disse que os materiais escolares custavam 300 soles por ano para cada aluno, fora o valor do uniforme que estes tinham de comprar. Vale ressaltar que esse professor morava na casa de um produtor outrora obrero do pai de Suzana. O fato de morar nessa residência era porque não podia voltar para sua propriedade dado que os filhos de um antes grande cafeicultor local haviam lhe feito diversas ameaças e eram considerados, por todos do anexo, como verdadeiros “delinqüentes” que não souberam aproveitar os “bons momentos” econômicos vividos por seu pai para se educarem.

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170

Um irmão de seu pai foi um dos fundadores do povoado de La Florida; foi ele quem o

convenceu em ir atrás de um terreno “perto de Inkariado”. Por conta do “terrorismo”,

abandonaram a região em 1992. Contudo, seu pai passou a retornar a partir do ano

seguinte para sorrateiramente colher os grãos. Nessa época, “tudo aqui estava vazio, não

se ouvia nem cachorro”. “Os terroristas não gostavam de progresso, nem dos lideres

locais e representantes do governo”, disse ele que afirmou que atualmente os moradores

“ainda estavam se levantando”.

Ele me contou que seu pai “apoiou” seus estudos e o de seus irmãos, mas que

não seguiram adiante porque não gostavam de estudar. Permaneceram trabalhando no

campo (um dos seus irmãos era casado e tinha 10 hectares próprios), apesar das

dificuldades como “os altos juros cobrados pela cooperativa” e os “solos pobres”

incapazes de serem adubados por conta da falta de dinheiro. Mas reconhecia que “a

vantagem da cooperativa é de que ela paga um pouco mais que a calle”, apesar de que

“ela também exige mais”.165 Afirmou que um “pequeno produtor” tinha entre dois a

cinco hectares de terreno e um “produtor mediano” entre 20 a 30 hectares.166 Eles eram

uma das únicas famílias locais que possuíam um caminhão e que pela idade do veículo

dava para perceber que fora comprado durante os altos preços internacionais do café

vigentes nas décadas de 70 e 80. Conversando conjuntamente com os agricultores de

Vila Santos num momento posterior, ele estaria usando roupas novas que aparentemente

lhe destacavam dos demais cafeicultores.167

165 A calle (rua, em espanhol) significa um espaço genérico de compra e venda de café do qual participam os comerciantes intermediários e as empresas privadas exportadoras. 166 De acordo com o estudo, citado anteriormente, de uma organização não-governamental a respeito da “desigualdade no distrito de Perene”, os habitantes desse distrito entendem como o principal problema daquilo que definem como um agricultor pobre “es que carece de la capacidad técnica y los recursos para explotar debidamente sus tierras. A diferencia de este, el agricultor medio posee de veinte a más hectáreas de tierra y su producción es mejor tanto en cantidad como calidad.” (Desco, 2005b p. 367) 167 Em frente à sua propriedade se encontrava uma chacra de 50 hectares visivelmente abandonada; a diversidade da sua vegetação ressaltava seu estado de abandono num cenário ao redor tomado pela cafeicultura. Porém, um obrero tomava conta do sítio. Já sua dona vivia em Lima e às vezes vinha visitá-lo. Alguns de seus filhos também moravam na capital do país e outros estariam residindo na Itália.

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171

Foto 31 – A casa do Fundo Las Estrellas Foto 32 – O caminhão

Carlos me levou até a casa de um antigo funcionário de seu pai e onde também

vivia o professor da escola situada na “parte alta” da comunidade nativa de Inkariado. A

propriedade estava localizada bem próxima dessa comunidade, de modo que levamos

praticamente uma hora para ir caminhando de Vila Santos até lá. Quase nenhum veículo

passou diante de nós, apenas dois carros da marca Toyota que levavam e traziam os

habitantes locais entre os anexos e os pueblos da região. Algumas poucas pessoas

cruzaram nosso caminho e meu anfitrião não conhecida nenhuma delas. Na verdade, a

estrada apenas recebia um número considerável de pedestres quando as crianças iam ou

voltavam da escola.168

Pareciam assim estar vivendo uma situação bem melhor do que a de grande parte dos produtores de Jose Galvez. Mas conversando com os moradores locais, também dava para perceber que antigamente e, mesmo nos dias atuais, ser cafeicultor se colocava como uma alternativa de vida mais valorizada do que diversas outras que estavam às suas disposições em outros cantos do Peru, especialmente nas regiões andinas. Os próprios obreros que vinham trabalhando na chacra dos Santos me disseram que se tivessem dinheiro comprariam um terreno em Jose Galvez. Isso porque eram produtores de batata nos Andes e esse cultivo era economicamente menos valorizado do que o café. Não era à toa que os que cultivavam batata vinham trabalhar para os cafeicultores e o contrário jamais acontecia. 168 Esta pista levou oito anos para ser construída e ficou pronta em 1979. O “presidente” do “comitê” responsável pela sua construção foi justamente o pai de Carlos. Para realizar essa obra viária foram usadas as máquinas da Cooperativa La Florida e as quais eram abastecidas com o combustível comprado com o dinheiro arrecadado entre os moradores locais. Na ocasião da minha visita à região, um trecho de 28 quilômetros entre Jose Galvez e outros dois anexos vizinhos estava sendo reparado com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) canalizados através do governo peruano.

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172

Foto 33 – A estrada

Na minha conversa com o outrora obrero do pai de Carlos também fora evocada

a questão do comprometimento com o progresso educacional. Este sujeito chegou em

1963 à selva central (ele tinha quinze anos nessa época). Deste ano até 1965 trabalhou

como mejorero (cuidava dos cafezais) em Palomar; até que estabeleceu um “acordo”

para trabalhar com o pai de Carlos. “Queria ter um terreno pequeno, não sou

ambicioso”, disse. Nesse período, havia apenas pequenas trilhas que chegavam até Jose

Galvez e só depois que começaram a ser construídos caminhos que comportavam a

passagem de mulas.169 Ele enfatizou bastante a dificuldade que as crianças tinham para

se deslocar até a escola: “era um atoleiro”. Quando fizeram a estrada, os animais

costumavam vagar pela pista, pois os produtores não possuíam os recursos para cercar

suas propriedades e, desse modo, “os pais continuaram preocupados com a locomoção

dos seus filhos”. Depois de produzir mais de 100 quintais por safra, ele pôde juntar

dinheiro suficiente para comprar uma chacra num anexo vizinho e a qual era mais

próxima de uma escola (aonde seus filhos vieram a estudar). Contudo, acabou se

separando de sua esposa, lhe deixando essa nova chacra e retornando para Jose Galvez

169 Afirmou ter trazido de Palomar mais de 1.500 plantas de café “no ombro”.

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(onde hoje em dia produz café).170 Era sócio da Cooperativa La Florida e demonstrava

orgulho em ter quitado todas suas dívidas com essa organização, apesar da tristeza que

não conseguia esconder a respeito do que definiu como seu “fracasso familiar” (o

divórcio).

O professor que vivia com ele também estava presente durante nossa conversa.

Disse que chegou em 1995 no anexo para ensinar os alunos da comunidade nativa local.

Nesta comunidade apenas uma pessoa seria “profissional” e se tratava justamente da

professora que também trabalhava lá. Além dela, outros dois indígenas teriam

completado o segundo grau. “Alguns alunos têm um só caderno, onde anotam tudo sem

fazer separações”, assinalou completando: “outros só têm um pedaço de cartolina.” De

acordo com ele, a Cooperativa La Florida abriu um linha de financiamento para que os

indígenas comprassem materiais escolares para seus filhos, mas alguns pais usaram o

dinheiro de outra forma e o crédito acabou sendo cortado (alga similar teria acontecido

com uma doação que deveria ser usada na melhoria da infra-estrutura da escola e

terminou indo, em boa parte, para o custeio do tratamento médico de determinados

ashaninka).171

170 Ainda sobre a cooperativa, comentou sobre o fato de que os 100 soles que eram cobrados de qualquer agricultor que queira fazer parte dela seria o motivo principal de muitos não se tornarem seus sócios (o mesmo se passaria com os 120 soles necessários para se fazer parte da Crediflorida). Sobre a época do “terrorismo”, afirmou que permaneceu na região e que “os terroristas vinham apenas pedir comida, mas não faziam nenhum mal.” 171 Conversei ainda com um senhor que vivia numa chacra em frente da do antigo obrero do pai de Carlos e também com a mulher do dono da loja que ficava um pouco mais à frente seguindo na estrada que ia dar na comunidade nativa. O primeiro disse que chegou à região em 1972 e que comprou em 1980 sua chacra, de um dos aproximadamente onze fundadores de José Galvez, depois de ter trabalhado como peão para alguns desses sujeitos. Ele voltou para Lima diante do fenômeno do “terrorismo” e retornou recentemente para o anexo, onde comprou uma nova chacra (seus dois filhos continuavam morando na capital do país e ambos cursavam o ensino superior). Ele era sócio da Cooperativa La Florida, tinha três hectares de café e que produziram nesse ano 18 quintais. Já a mulher do dono da loja me contou que esse estabelecimento não tinha muitos produtos por que “investiram tudo no café” (eles adubavam a terra com insumos permitidos pelas agências de certificação orgânica). Tinham 7.5 hectares plantados com café e dois que deveriam produzir a partir do próximo ano (os outros cultivos seriam para consumo próprio e alimentação dos obreros). A produtividade dos seus cafezais era de 23 quintais por hectare. Seu marido veio de Cajamarca, trabalhou como peão na região e comprou a chacra de um nativo há trinta anos por 70 soles. Há sete anos adquiriu uma segunda parcela ao lado. Ela disse que não tinham aonde ir na “época do terrorismo” e que não gostava nem de se lembrar desse período. Seus filhos cursavam o ensino médio.

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174

Esse professor classificou os nativos como sendo “conformistas”. Tal discurso se

contrastava com a sua visão positiva dos indígenas e crítica dos colonos que esteve

presente durante uma conversa anterior que tivemos depois de encontrá-lo caminhando

sozinho pela estrada. Nessa ocasião, ele havia assinalado que “os colonos são

ambiciosos.” Independentemente das mudanças em suas falas, as duas reproduziam um

senso comum vigente entre os habitantes da selva central. Tal senso comum pode ser

sintetizado nas seguintes frases freqüentemente repetidas pelos moradores locais: os

“nativos não se esforçam para progredir na vida” e os “colonos são ambiciosos.” Nessa

perspectiva, os ashaninka e demais “povos amazônicos” eram associados ao “atraso” e à

“ausência de progresso ou desenvolvimento”.

A seção seguinte focaliza justamente os indígenas da comunidade nativa de

Inkariado. Através das minhas conversas com estes sujeitos foi possível perceber a

maneira como pensavam o lugar subalterno com o qual se identificavam e eram

identificados. Para muitos dos colonos andinos, os nativos eram as pessoas

“conformistas” por excelência. Em outras palavras, estes últimos não procurariam se

esforçar em busca de melhores condições de vida. Evidentemente que os indígenas

discordavam desse estereótipo, além de retrucarem dizendo que o que lhes faltava eram

precisamente os meios para poderem “progredir”. De qualquer maneira, eles próprios se

viam como mais afastados do que os demais em relação à superação da situação

precária à qual vivenciavam.

3.6 Os nativos

A história dos ashaninka de Inkariado me foi contada, de modo mais extenso,

por um dos “líderes” dessa comunidade e com quem Carlos mantinha uma relação de

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amizade. De acordo com ele, antes mesmo dos colonos chegarem, existiam seis famílias

ashaninka que separadamente habitavam a região e se alimentavam basicamente da caça

dos animais que havia na selva. Ele lembrou que “em 1964 os colonos se organizaram

em Yurinaki para que seus direitos fossem garantidos” e o mesmo teria acontecido com

alguns indígenas locais entre 1965 e 1967 quando criaram uma escola e conseguiram

estabelecer um território próprio. Nesse último ano, uma epidemia de sarampo dizimou

a maioria desses indígenas e os poucos que sobreviveram passaram a repovoar o grupo.

Seu avô era justamente um destes sobreviventes e veio a se tornar um líder entre os

demais que permaneceram vivos. Este conseguiu aglutinar, em 1968, outros nativos

dispersos pela região, mas que se desgarrariam do grupo no ano seguinte e criariam

outras comunidades. Entre 1977 e 1978 iniciaram o cultivo de café em Inkariado; até

então trabalhavam “nas fazendas de Perene” em troca de dinheiro, roupa e escopetas.

Foram destas propriedades que adquiriram as sementes do grão e as quais plantaram tal

como faziam com o milho.

Em 1980 os cafezais começaram a produzir e seis anos depois todos os membros

da comunidade estariam cultivando seus próprios pés de café.172 Ele lembrou que essa

produção continuava sendo realizada de “maneira tradicional e não-técnica” até que

fizeram parte do “programa de café orgânico” da Cooperativa La Florida. No ano de

2000, os filhos dos sócios passaram a freqüentar as capacitações oferecidas pela

cooperativa no povoado de La Florida. Das 110 famílias que no momento da minha

visita congregavam os 400 habitantes da comunidade, quase que a metade teria alguém

associado a essa organização de produtores. “Queremos trabalhar a diversificação, a 172 A comunidade nativa de Inkariado foi legalmente registrada em 1987 e com uma área total de 1.603 hectares. A Central de Comunidades Nativas da Selva Central teria provido um apoio crucial para que a comunidade pudesse obter essa titulação de suas terras. Eles ainda continuariam participando dessa central e na qual meu interlocutor disse encontrar um espaço bastante importante para a troca de experiências entre as comunidades nativas. Sobre o fenômeno do “terrorismo”, afirmou que os indígenas de Inkariado teriam permanecido no local. “No terrorismo estávamos unidos, mas três comuneros desgarrados perderam sua vida”, assinalou acrescentando: “Inkariado dizia para os terroristas que poderia pedir ajudo do grande exército ashaninka”.

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agricultura sustentável”, afirmou citando o plantio de banana, a criação de animais e a

manutenção de hortas familiares como atividades que queriam desenvolver, mas que

necessitavam de “capacitação técnica” para isso. “Só temos dinheiro na temporada do

café, depois temos que sair para trabalhar como peões”, completou lembrando que

quase não existem mais animais na região para serem caçados e que para comerem

carne teriam que ir comprá-la no pueblo mais próximo.

Mas o problema maior de Inkariado seria o de que seus moradores contavam

com pouca quantidade de terra. “Cada agricultor dispõe geralmente de um hectare ou

um hectare e meio; uns poucos conseguem ter até quatro hectares”, comentou

ressaltando que “a população esta aumentando e o tamanho território permanece igual”.

“Há jovens que não têm chacras”, assinalou. Suas esperanças se voltavam para o cultivo

de café com base na agricultura orgânica; ele inclusive ia freqüentemente até outras

comunidades nativas formadas por pessoas associadas à La Florida e as reunia para lhes

explicar “o que é a agricultura orgânica”. Contudo, mesmo os sócios de Inkariado ainda

“deveriam ser capacitados em relação à agricultura orgânica”: “há agricultores que

vendem para outros que não a La Florida e estes produtores não estão pensando no

futuro, pois a cooperativa sempre dá algo”. Ele terminou nossa conversa afirmando que

na comunidade nativa onde morava só havia uma religião – a Igreja Batista do Sétimo

Dia – e que ele também tinha que “capacitar” os demais habitantes nessa crença, na

medida em que era um pastor.

Encontrei com um jovem e depois com uma jovem ashaninka pelo caminho

enquanto voltava junto de Carlos até sua casa. O primeiro havia recebido de seu pai três

hectares e cultivado café na metade deles. Tinha produzido esse ano 15 sacas (ou

quintais) do grão. Disse que, por conta da pouca extensão do território da comunidade

nativa local, recebiam terrenos pequenos para iniciarem suas chacras. Ele tinha cursado

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apenas o primeiro grau: “aqui em Jose Galvez não há escola de segundo grau e quando

se tem muitos filhos não se tem dinheiro para educação”, afirmou ele que também

contou ter nove irmãos ao todo. Outra informação que me passou foi a de que na “parte

baixa” de Inkariado só havia membros da família Mayunga e que estes deveriam se

casar com pessoas das demais famílias da comunidade então residentes da chamada

parte alta. A família Mayunga era a de sua mãe e de seus tios (entre estes últimos se

incluía o líder de Inkariado com o qual pude conversar): “aqui se casa com as cunhadas

dos pais, para casar tem que ser com uma família de outro sobrenome; não se pode casar

com primas”. 173 Ele citou o nome de duas dessas outras famílias: os Palomino e os

Camacho.

A jovem ashaninka com quem conversei depois dele era justamente dessa última

família e me contou sua versão da história de Inkariado com base nos casamentos entre

as famílias que fizeram ou faziam parte dessa comunidade. Após me relatar essa

história, se definiu em comparação aos demais nativos locais: “eu já sou um pouco mais

civilizada”.174 Ela tinha 23 anos; aos 20 havia terminado o segundo grau, mas não

possuiria dinheiro para ingressar no ensino superior. Suas duas irmãs eram casadas e

haviam apenas concluído o primeiro grau; uma morava em Inkariado e a outra num

centro povoado próximo. Seu pai era sócio da Cooperativa La Florida e certificado

173 A questão da “mistura” entre pessoas “corporalmente diferentes” é algo que parece permear muitas sociedades ameríndias e capaz de ser percebido através da junção nessas sociedades não só de povos distintos (como acontece com os yanesha e ashaninka que conjuntamente compõem muitas comunidades nativas da selva central, por exemplo) como também de famílias de uma mesma etnia que se diferenciam “substancialmente” por meio dos seus sobrenomes: “O estado originário de diferenciação precisa ser mantido como um traço por meio dos sobrenomes, pois são estes que permitem os casamentos no presente, mediante a diferenciação dos ‘sangues’. Essa imagem é familiar aos estudiosos das sociedades indígenas amazônicas desde que foi primeiro enunciada por Joanna Overing. Ela argumentava que essas sociedades se caracterizavam por uma mistura sutilmente administrada de diferenças perigosas, mas férteis, e de semelhanças seguras, mas estéreis.” (Gow, 2003) 174 Essa jovem participava de um programa de capacitação (em hortas familiares e criação de porcos da índia) promovido por uma organização não-governamental. Tal programa envolvia um grupo de moradoras de Jose Galvez e de outros anexos visinhos. Uma destas informou, durante uma reunião desse grupo, que essa jovem lhe disse que os nativos de Inkariado não queriam participar do programa porque “não queriam receber ordens”.

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como produtor de café orgânico. “Temos quatro hectares de café e que produzem 80

quintais”, afirmou lembrando que “alguns nativos têm um hectare ou meio, isso porque

têm muitos filhos”. De acordo com ela, “quem tem filho homem tem que dividir sua

terra”. Outro motivo de seu pai ter 15 hectares seria de que seu avô vivia na comunidade

e pôde lhe dar um maior pedaço de terra do que os que estiveram à disposição daqueles

que “vieram de fora”: “não há mais espaço para gente nova”, completou. Ao falar de

quatro indígenas locais que teriam entre três a quatro hectares de café (dois destes

possuiriam os únicos dois veículos existentes em Inkariado), ressaltou: “eles escolheram

trabalhar, tem gente que tem terra e não quer trabalhar, não quer ter mais”.

De acordo com um relatório de 2006 do departamento técnico da Cooperativa La

Florida, o “comitê zonal” de Inkariado tinha 37 “produtores orgânicos” e três no

“segundo ano de conversão”. De todos estes sócios, 15 tiveram sua produção estimada

para esse ano em até 15 quintais de café; 12 entre 15 e 20 quintas; seis entre 20 e 25;

três entre 25 e 30; um em 40; um em 46; um em 50 e um em 60. Acontece que não

existia uma relação necessária entre a extensão de terra que cada um destes produtores

possuía e a quantidade de café que produzia. De qualquer maneira, quanto mais um

agricultor produzisse, mais recursos ele provavelmente teria à sua disposição e isso

certamente seria uma vantagem perante os demais em relação à capacidade de prover as

condições para seus filhos progredirem no sistema educacional. Contudo, pode-se dizer

que até então esse progresso escolar era bastante efêmero entre os nativos, apesar de que

a infra-estrutura da escola da chamada parte alta de Inkariado estava em melhores

condições do que as de muitas escolas de primeiro grau ao seu redor.175 O problema era

que o acesso às instituições de ensino de segundo e terceiro grau demandava um

montante de recursos que os indígenas demonstravam não possuir. Ocorre que os

175 Esta escola havia sido reconstruída com recursos públicos durante a presidência de Alberto Fujimori. Tais recursos foram canalizados através do Fondo de Cooperación para el Desarrollo Social (FONCODES).

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nativos, de um modo geral, eram vistos e se viam como os representantes por excelência

da condição de extrema pobreza entre os habitantes do distrito de Perene. De acordo

com a pesquisa evocada anteriormente e baseada em conversas com estes habitantes:

En relación con los miembros de comunidades nativas, que pertenecen al grupo de los extremamente pobres, afirman que sus actividades agrícolas arrojan una producción de baja calidad y cantidad, por lo que se encuentran en una posición de desventaja frente a los colonos andinos en lo que respecta el acceso al mercado. Asimismo, señalan que, durante los períodos de muy baja producción agrícola, muchos nativos suelen emplearse como peones (jornaleros) en terrenos de cultivo que pertenecen a personas acomodadas con ingresos medios, pero que esta actividad los remunera con sueldos comparativamente más bajos que los que reciben los colonos andinos. (Desco, 2005b p. 367) A diferença entre as condições de vida dos nativos e dos colonos foi o assunto

principal do meu diálogo com o técnico da La Florida que trabalhava há dois meses

entre os 40 sócios de Inkariado (ele morava durante a semana nessa comunidade e nos

finais de semana retornava para sua casa num centro povoado próximo). Esse

funcionário me disse inicialmente que “os nativos não se nivelam com os colonos”. Isso

seria decorrente de uma “administração incorreta da economia familiar” entre os

primeiros. Estes ainda gastariam de forma muito rápida aquilo que ganhavam com a

venda de café e usariam de maneira desnecessária parte desse dinheiro em “festas e

diversão”. “Depois eles ficam sem dinheiro e saem para trabalhar em qualquer chacra na

qual possam encontrar trabalho”, apontou. Dos 40 sócios, 36 eram orgânicos e quatro

“em transição”. Apenas 10 a 15 destes sujeitos estariam conscientes da importância de

se dedicarem ao cultivo de café e isso se refletiria na melhoria das suas condições de

vida. Ele lembrou que “os que produzem mais de 25 quintais são sustentáveis.” “Eles

têm mais porque viram outros vizinhos melhorarem de vida e se espelharam neles na

condução de um bom manejo da plantação”, assinalou na esperança de que os outros,

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que produziam menos de 15 quintais, e que ele considerava como sendo “débeis”,

pudessem imitar esses “sustentáveis”.176

3.7 A desigualdade entre os colonos andinos

Tal como se passava em outros lugares do distrito, a situação vivida pelos

colonos de Vila Santos se apresentava de forma bem mais heterogênea do que a dos

indígenas da comunidade nativa próxima de suas casas. Isso ficou evidente durante

minha segunda visita com Carlos a estes colonos. Nessa ocasião, pude conversar com

alguns pais dos alunos da escola local reunidos pelo seu professor a meu pedido. Antes

de entrarmos na escola, estes senhores me receberam de maneira bastante cordial e se

mostraram muito agradecidos pela contribuição de 200 soles que fiz para o novo

estabelecimento de ensino que vinham construindo ao lado. O primeiro dos três

produtores presentes começou me contando sua história. Disse que veio em 1977 para a

selva central, deixando de lado a pobreza reinante na província de Celendín

(departamento de Cajamarca). Trabalhou como obrero durante um ano e meio para um

agricultor, um ano para um segundo, três anos e meio para um terceiro e se tornou

“sócio” de um quarto. Há oito anos comprou sua chacra (localizada a meia hora de Vila

Santos). Afirmou ter cinco hectares e meio de café e mais três recém plantados. Tinha

dois filhos “legítimos” (um com 14 anos e outro de 17 que já possuía meio hectare de

café) e um “político” (com 21 anos e que também ganhou dele um terreno); todos estes

176 De acordo com Santos e Barclay (1995 p. 305): “La producción agropecuaria comercial también tiene un importante impacto en la estructura y organización social indígena. Si bien por un lado ésta ha contribuido a congregar a las familias indígenas en torno a reivindicaciones que fortalecen sus actuales organizaciones, por otro ha generado cierto nivel de diferenciación socioeconómica interna, la cual restringe el ámbito de las relaciones de reciprocidad y con ellos las bases de la solidaridad intracomunal. En efecto, una vez que se descubre que el secreto del enriquecimiento de los no-indígenas está – como afirmaba un comunero ashaninka – en que ‘el colono guarda, guarda, pues’, algunas familias comienzan a optar por este mecanismo como un medio para capitalizar-se, autorrecortando el ámbito en el que mantienen relaciones basadas en la regla de reciprocidad con sus familiares más cercanos.”

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apenas cursaram o primeiro grau. Seus netos (filhos de seu filho “político”) estudavam

na escola de Vila Santos.

No meio da conversa, ele se virou para Carlos e lhe disse: “Vila Santos tem seu

sobrenome e vocês não nos ajudam, foi seu pai quem ia dar o terreno para a escola”.

Sem graça e visivelmente constrangido, Carlos permaneceu calado. O produtor então

retomou seu relato e trouxe à tona a “época do terrorismo”: “foram os pobres que

ficaram e eles estão aqui até agora.” Ele afirmou ter sido um dos poucos que

permaneceram em José Galvez durante esse período crítico e assinalou que os membros

do MRTA (Movimento Revolucionário Tupac Amaru) vinham até suas casas. Por conta

disso, o exército o teria levado até uma base militar num distrito vizinho para que fosse

interrogado. “Nessa época, os direitos humanos e a cruz vermelha estavam por lá; antes

o exército batia nas pessoas”, lembrou. Dois filhos de um antigo morador teriam sido

mortos pelos guerrilheiros. “Não dormíamos tranqüilos”, contou. “Com o tempo os

produtores iam e voltavam, depois foram se instalando quando viram que estava tudo

tranqüilo por aqui”, colocou.

Ele apontou para o fato de que “quem veio antes (para José Galvez) agarrou sua

chacra” e que “quem veio antes e trabalhou fez algo”. Reconhecia assim os esforços

daqueles que lhe precederam no local (“quando cheguei a estrada tinha acabado de ser

feita”) e os tomava como exemplo de vida: “a nossa idéia era fazer igual aos

fundadores”. Era recém associado à Cooperativa La Florida e disse ter entrado na

cooperativa “só pelo preço e por necessidade.” Já durante nossa conversa dentro da

escola, confessou de maneira visivelmente constrangida que também fazia parte de uma

central de associações de produtores cuja gerente era de Jose Galvez: “ela têm boas

idéias e bom ânimo”. Este ano estaria “analisando” qual das duas instituições seria

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economicamente mais vantajosa e com base nisso iria participar de apenas uma delas no

ano seguinte.

Outro dos moradores que nos acompanhava disse ter chegado à selva central em

1969. Nessa época, tinha 16 anos e passou a trabalhar como personal. Com 28 anos teve

sua primeira chacra num anexo mais a leste de Jose Galvez. Apesar de estar produzindo

120 quintais no começo da década de 1990, “em 1990, 1991 o café baixou para 0.50

centavos (o quilo); um saco de arroz valia um saco de café”. “Vendi a chacra por

pouco”, afirmou completando que com o dinheiro comprou uma casa na maior cidade

dos Andes centrais. Mas acontece que “não havia trabalho” nessa cidade e por isso se

desfez desse imóvel. Foi então que adquiriu sua chacra em Vila Santos. Ele tinha cinco

filhos - “apenas o mais velho chegou até o segundo grau; meus filhos não tinham

dinheiro na cidade” - e seu neto era um dos alunos da escola de Vila Santos.

“Os antigos tiveram dinheiro e educaram seus filhos”, assinalou acrescentando:

“em comparação com a serra, aqui quando se trabalha se tem dinheiro e nós viemos aqui

para progredir”. Contudo, “o vizinho não nos ajuda”, disse ele, nervoso e com lágrimas

nos olhos, para Carlos. Esse senhor era sócio da Cooperativa La Florida há um ano.

“Quero entregar para a cooperativa, mas falta algo em casa e tenho que vender o café na

calle” (para os comerciantes intermediários), apontou lembrando que esse ano não

entregou seu café para a La Florida, ao contrário do que fez no ano anterior. “Agora o

preço esta igual à calle, não convém entregar para a cooperativa; a cooperativa compra

com 12% de umidade, seco e bem branco, na calle se compra com 13%, 14% de

umidade”, colocou (quanto maior a umidade, mais pesado o café) e concluiu: “ano

passado entreguei seco e perdi quilos”. A calle estaria pagando 5.10 soles o quilo do

chamado café convencional e a La Florida 4.80 soles para o quilo deste tipo de café e

5.70 para o orgânico. Além do preço maior pago para este último tipo de café, outra

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vantagem que via nesta cooperativa em relação aos comerciantes intermediários era a de

que ela dava reintegro aos seus associados no final de cada ano. Mas acontece que no

ano anterior isso não aconteceu e ele então se “desanimou” diante dessa organização de

cafeicultores.

As conversas retratadas a seguir se deram com os moradores locais considerados

pelos demais e por si próprios como sendo produtores “mais antigos”. Acontece que

essa precedência no cultivo de café significava que seus protagonistas vivenciaram um

período, as décadas de 70 e 80, no qual os solos “produziam bastante” e os preços do

café “eram altos”. Esses dois fatores seriam atenuados nas décadas seguintes e os que

puderam vivenciá-los “positivamente” (enquanto cafeicultores) foram capazes de

adquirir certos bens (como casas nas cidades, veículos automotores e terrenos no

campo, por exemplo) de uma maneira que não veio a se repetir. Não é sem razão que

praticamente todos os veículos que via nas chacras dos agricultores foram comprados

nos anos 70 ou 80 e por aqueles considerados “mais antigos”.

3.8 Os “mais antigos”

Conversei com um desses produtores “mais antigos” e o qual morava numa

grande casa em Vila Santos que, por conta do seu tamanho, se destaca bastante das

demais residências.177 Ele era natural de Cajamarca (província de Celendín) e chegou à

selva central em 1963. Trabalhou como obrero em La Florida durante cinco anos. Seu

irmão havia se estabelecido em Jose Galvez no ano de 1961 (com o apoio da

Associação de Pequenos Produtores do Baixo Yurinaqui); ele então passou a “ajudá-lo”

177 Essa casa era bastante similar à do Fundo Las Estrellas (ver foto 31). Por outro lado, apesar do tamanho superior desses imóveis em relação aos demais, o caráter inacabado deles refletia o fato de que as condições que permitiram que fossem erguidos (como é o caso da “produtividade” dos solos, por exemplo) acabaram não perdurando.

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(as terras eram compradas dos nativos locais, apesar de legalmente pertencerem à

Peruvian Corporation). Em 1976, ingressou na Cooperativa La Florida. “Antigamente

havia boa colheita e bons preços, agora as chacras estão velhas como nós”, assinalou.

No ano seguinte ao seu ingresso na cooperativa, comprou um veículo para transportar

seu café até o povoado de La Florida (antes da construção da estrada no local, os

moradores gastavam um dia todo para levar seu produto até esse povoado através de

mulas). “Derrubávamos muitos montes, nos parecia uma diversão; mas é a árvore

grande que dá proteção ao solo”, refletiu acrescentando: “acontece que o peruano é

ambicioso”.

Esse senhor permaneceu na região durante o “terrorismo”: “em La Florida foi

mais problemático, mataram oito pessoas; aqui em Jose Galvez mataram duas”.

“Primeiro veio o Sendero Luminoso e depois o MRTA”, afirmou. Ele foi casado duas

vezes; tinha uma casa num povoado próximo e a qual deu para sua primeira ex-mulher

num período anterior à “subversão”. Dos seus doze filhos, nenhum passou do segundo

grau. Um destes estudava na escola de Vila Santos; por isso ele era um dos pais que

havia financiado a construção da nova escola. Seus filhos mais velhos viviam na cidade

de Pichanaki e eram comerciantes. Ele entregava todo seu café para a cooperativa e se

mostrava um sócio bastante dedicado e identificado com essa organização, apesar de

concordar com as críticas mais comuns que esta recebia. Estava inteirado dos

pormenores que envolviam as controvérsias em torno da La Florida e se mostrou uma

fonte crucial para que me interasse dos eventos que vinham sendo debatidos em

conjunto pelos associados.

Um dos vizinhos de Carlos era irmão de seu falecido pai. Pude conversar com

ele e seu filho junto desse meu anfitrião. Esse senhor começou nossa conversa me

contando que, em 1954, estava cursando o primeiro grau na sua terra natal (distrito de

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Huancarey, departamento de Andahuaylas), quando três moradores locais foram até sua

escola e doaram vários sacos de cimento para a reforma desse estabelecimento. Em

seguida, escutou as pessoas do povoado comentando a respeito destes sujeitos: “eles

vieram de Chanchamayo.”. Isso lhe marcou bastante e o mesmo se deu com a seguinte

frase de sua professora: “quem tem dinheiro vai estudar em Lima, quem não tem vai

para Chanchamayo”. Junto de seu irmão mais velho e de outros 45 habitantes do seu

distrito, ele partiu em 1961 para a selva central e “sem praticamente nenhum dinheiro

no bolso”.

Nessa época, só havia trilhas até o povoado de La Florida: “500 pequenos

agricultores lotearam La Florida”, completou. Segundo ele, estes eram de diferentes

departamentos e adquiriram terrenos de no mínimo 30 hectares. Acreditava que foi o

“fator sorte” que influiu na permanência sua e de seu irmão na selva: “uns sangravam as

mãos de tanto usar o facão e tiveram assim que ir embora”. Ambos foram então

informados que haviam conseguido duas “vagas” nas terras da Peruvian Corporation.

Quando começaram a produzir, viram que as terras eram férteis: “se colhia 30 a 40

quintais por hectare, com três hectares se vivia bem e poucos se esforçavam para ter

mais hectares.” De acordo com ele, um quintal chegou a render US$ 300 e isso se deu

“numa época em que um técnico ganhava US$ 800”. “Havia 18 cooperativas na região;

a Cooperativa La Florida nos favoreceu e os produtores que tinham instrução estavam

na junta diretiva”, afirmou. “Mas o terrorismo nos prejudicou muito, estávamos com

níveis altos de produção; poderíamos superar a crise dos preços do café”, ressaltou

acrescentando: “antes nessa zona um pequeno produtor produzia de 100 a 150 quintas e

um mediano por volta de 800 quintais; agora os pequenos produzem entre 10 a 20

quintais e os medianos de 80 a 100 quintais”.178

178 Ele tinha um irmão que vivia num anexo vizinho e com o qual pude também conversar. Tal sujeito chegou em 1965 à selva central e junto de sua esposa e o então único filho do casal. Trabalhou com seu

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Seu filho nos disse que “na época do terrorismo era difícil para os produtores

manterem seus filhos na universidade”. Ainda segundo esse primo de Carlos, “entre

1984 e 1989 era fácil para estudar; entre 1989 e 1993 não”. Ele então completou seu

raciocínio: “os que conseguiram educar seus filhos fizeram isso porque tinham

guardado dinheiro”. Esse jovem e seu pai participavam da organização de produtores

que sua irmã gerenciava; esta última era formada em administração de empresas e vivia

na cidade de Pichanaki, onde se encontrava a sede dessa organização. Por detrás do

desligamento da família em relação à Cooperativa La Florida, havia um ressentimento

derivado do constrangimento ao qual ficaram submetidos diante das suas dificuldades

em honrarem um empréstimo que fizeram com essa entidade. Não era à toa que através

do empreendimento que vieram a constituir, junto de outros agricultores, procurassem

não só se contrapor a essa cooperativa como seguiam os passos de uma central de

organizações de cafeicultores do norte do país (a CEPICAFE) que lhes parecia oferecer

um modelo de desenvolvimento agrícola alternativo ao da La Florida. Isso porque está

última teria “deixado de lado” seus sócios ao se concentrar excessivamente na sua

“parte comercial”.

O ponto é que esta família era uma das poucas do anexo cujos membros

puderam ter acesso ao ensino superior e a um emprego estável e relativamente bem

remunerado. Uma situação similar se passava num anexo vizinho chamado Miguel Grau

irmão mais velho (o pai de Carlos) durante certo tempo até que pode comprar sua chacra. Tinha 12 hectares de terra, com quatro plantados com café e que produziam 25 quintais por hectare. Era sócio da Cooperativa La Florida e certificado como “orgânico”. Todos os seus seis filhos chegaram a trabalhar com ele: “antes eu tinha uma dívida com a cooperativa e mesmo assim contratava personales, fizemos um esforço para sair do problema da dívida, meus filhos colaboraram e agora recebem dinheiro para seus estudos superiores”. Um destes vivia e “não trabalhava, só estudava” numa cidade andina; por conta disso recebia, no mínimo, 600 soles por mês. “Antes eu bebia muito, fazia muitas festas e isso levava 30% dos meus orçamentos anuais; isso me levou ao fracasso”, disse completando: “eu dizia para minha esposa que era eu quem mandava em casa”. Um de seus filhos teria ficado doente e “se curou através do evangelho”. “Agora em casa há disciplina, respeito; não tenho que me preocupar mais com os filhos, eu sei que estão fazendo o bem”, afirmou acrescentando: “355 das pessoas daqui são evangélicas; são 12 em Miguel Grau (seu anexo), de 40 e tantos produtores”. “Estou há quatro anos convertido, há um ano paguei minhas dívidas; melhoramos a manutenção do cafezal”, concluiu.

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(ver mapa II) e no qual também permaneci hospedado na casa de uma destacada família

local.179 Tal proeminência derivava justamente do fato de quase todos os filhos do casal

ter cursado uma faculdade e estar envolvido profissionalmente com algo que lhes

permitia viver uma típica vida de classe média urbana. Dois deles trabalhavam com o

irmão de Carlos na Central Café Peru, sendo que o mais velho era o gerente dessa

organização. Outro era funcionário de uma pequena empresa privada exportadora de

“cafés especiais” e na qual a irmã de Carlos também estava empregada (ambos eram

inclusive namorados). O único dos irmãos que não entrou em contato com o ensino

superior era caminhoneiro. Já a irmã deles, apesar de ter cursado uma faculdade, morava

com seus pais na chacra. Ela trabalhava no Comitê de Desenvolvimento Familiar da

Cooperativa La Florida e, em 2006, concorreu a um dos oito postos de regidor do

distrito de Perene.

179 Eles tinham uma pequena loja próxima à escola do anexo e do campo de futebol em frente a esse estabelecimento de ensino (o qual era igualmente cercado por umas duas ou três residências). Pude conversar com os dois professores dessa escola. Um deles ensinava as crianças de três a cinco anos do local e o outro os alunos do primeiro grau. As crianças mais novas começaram a ser atendidas pela escola justamente em 2006 (ao contrário das mais velhas, não recebiam bolachas vitaminadas como merenda, mas sim uma refeição a base de legumes, verduras e cereais). Seu professor era um jovem que recebia uma ajuda de custo para se manter, na medida em que ainda não havia se formado e estava realizando uma espécie de estágio docente. Ele tinha 15 alunos; dos 12 pais destas crianças cinco tinham sua própria chacra e o restante era obrero. “A diferença entre patrões e peões se dá entre as próprias crianças”, disse ressaltando sua insistência em tratar da mesma maneira todos os seus alunos. A lista de material escolar que pedia para os pais custava 50 soles por aluno. Também me contou que uma enfermeira do povoado de La Florida vinha ver a saúde das crianças, sendo que as doenças mais comuns entre elas eram a malária e a gripe. O outro professor estava trabalhando no anexo há 14 anos. Tinha 35 alunos, de seis séries diferentes e que estudavam juntos numa mesma sala. Entre os 20 pais de seus alunos, 14 possuía uma chacra e os demais eram obreros. Já sua lista de material escolar estava orçada em 100 soles. De acordo com ele, esse ano os filhos dos sócios da Cooperativa La Florida receberam dela caderno, lápis e borracha. De qualquer maneira, sua visão é a de que esta cooperativa “não ajuda com a educação; nós sempre vamos falar com os dirigentes, mas não há resultado”. Na página eletrônica dessa entidade é possível ler o seguinte: “Para La Florida es una preocupación constante, los niños en la Educación Primaria, por ello a través del Departamento de Educación, se promueve la asistencia de los niños a las escuelas dotando con útiles escolares, a aquellos que carecen de recursos económicos especialmente de las comunidades nativas. Así mismo, La Florida implementa las bibliotecas de las escuelas, los huertos escolares y uniformes para las prácticas deportivas. El financiamiento de estos programas se financia con las utilidades logradas gracias al eficiente sistema de Comercialización y el Plus que se obtiene por la venta bajo el sistema de Comercio Justo FLO.” (www.lafloridaperu.com)

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O chefe dessa família se colocava e era colocado como o líder do “comitê zonal”

local.180 Ele veio em 1968 para a selva central e logo de cara foi trabalhar como obrero

na fazenda de Hector Marin em Palomar. Adquiriu um terreno através da Associação de

Pequenos Produtores do Baixo Yurinaki: “os mais decididos ficaram com as chacras,

agora esta mais fácil viver aqui; tem estrada”, me disse. Foi tenente-governador do

anexo durante quinze anos: “eu estava na lista dos que iam ser assassinados pelos

terroristas”. Por conta disso e dos assassinatos no povoado de La Florida, mudou junto

de sua família para a casa que tinham em Lima e depois para outra numa cidade

próxima de La Merced, onde também mantinham uma loja e usavam sua camionete para

transportar passageiros. Retornaram à chacra quando a situação se acalmou (no auge no

conflito civil que assolou a região, ele tentou vender essa propriedade por

aproximadamente US$ 3.500, mas não encontrou comprador; atualmente ela valeria

US$ 100.000).181

“Na chacra trabalhando dá, eu eduquei meus filhos e cumpri assim com meus

objetivos”, colocou acrescentando: “enquanto eu comprava mais terras, muitos

compravam automóveis para irem exibir nos seus povoados natais”. Ele encarava

qualquer tipo de festa, mesmo as de aniversário, como um “gasto inútil”. Ao comentar

de um vizinho seu e fundador do anexo, lembrou que todos os filhos deste não se

interessaram pelos estudos (no seu caso, como colocado acima, apenas um de seus cinco

filhos não ingressou no ensino superior e o qual trabalhava como caminhoneiro).

É verdade que este seu vizinho e outro fundador do anexo eram os únicos que

tinham um caminhão (e que usavam para transportar seus cafés e de outros produtores

180 Ele também foi o secretário do “comitê” responsável pela construção da estrada local. Vale lembrar que o pai de Carlos foi o presidente desse comitê. 181 Tratava-se de uma propriedade bastante distinta das demais ao seu redor. Era a única que tinha um gerador, televisão, DVD e um grande armazém, por exemplo. Mas grande parte de seu valor certamente residia no fato de seu cafezal ter sido praticamente todo renovado.

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cobrando-lhes um determinado frete). Ambos “fundadores” (do anexo e também da

cooperativa) chegaram à selva central em 1958 e trabalharam como obreros em Palomar

até virem se estabelecer no local através da Associação de Pequenos Produtores do

Baixo Yurinaki. Acontece que os dois igualmente tiveram que dividir suas terras com

seus filhos, na medida em que estes não só não “avançaram” em seus estudos como não

conseguiram encontrar um emprego “decente” fora da chacra. Um deles me disse o

seguinte: “não nos educamos bem, havia a possibilidade; agora se sabe que tem que ser

competitivo, antes a ambição era produzir muito café e ter coisas”. Ainda segundo ele,

“poucos investiram na educação, antes se vendia café a mais de 150 soles (a saca) e se o

preço baixava, era por pouco tempo; era muito melhor o filho ficar no cultivo de café”.

De acordo com um de seus irmãos: “eu estudava em Huancayo (a maior cidade dos

Andes centrais peruano), mas com o terrorismo faltou dinheiro”.182

Evidentemente que são inúmeras as variáveis em jogo com relação à ascensão

do filho de um produtor de café a um emprego qualificado que lhe garanta um salário

decente e uma relativa estabilidade. De qualquer maneira, foram os cafeicultores que

tiveram a felicidade de ver ser filhos se tornarem “profissionais” que passaram a se

destacar perante os demais agricultores ao seu redor. O fato de terem sido capazes de

proporcionar o acesso de seus filhos ao ensino superior os distinguia em relação aos

seus pares locais. Eles e seus familiares acabavam servindo como um verdadeiro

modelo de conduta para essas pessoas, como era o caso dos Santos. Tal modelo se

tornava ainda mais valorizado na medida em que a produção de café deixava de ser

economicamente tão importante quanto foi durante os anos 70 e 80, apesar de ainda se

182 Os dois e seus demais irmãos eram bastante comprometidos com a Cooperativa La Florida e com a produção orgânica de café. “Nos anos 80, com um quilo de café comprávamos três galões de gasolina, agora é preciso de três quilos de café para comprar um galão”, me disse um deles. Durante o “terrorismo”, ambos se mudaram com seus familiares para uma cidade num distrito vizinho. Acontece que não tinham como se manter nessa cidade. O retorno à cafeicultura se colocou como praticamente a única alternativa de vida à disposição dos membros da família.

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colocar como mais vantajosa de ser exercida do que muitos outros trabalhos disponíveis

aos cafeicultores enquanto sujeitos desprovidos de maiores qualificações profissionais e

de capital para realizar algum tipo de investimento.

O próximo capítulo procura também se deter sobre os novos significados

presentes nas narrativas de progresso e desenvolvimento vigentes entre as pessoas

ligadas à Cooperativa La Florida. Mas o foco é nos indivíduos que podem ser

identificados como constituindo a nova geração dentro dessa cooperativa. Ao retratar a

trajetória profissional de um destes sujeitos, busco mostrar como ele e outros de sua

geração dão continuidade, para além do território da La Florida, a um papel de destaque

entre os cafeicultores ao os aproximar dos meios para que a situação precária que

vivenciam seja superada ou, pelo menos, atenuada de uma maneira considerada

satisfatória. Em outras palavras, assim como dentro do “raio de ação” da cooperativa se

destacavam os moradores “mais antigos” cujos filhos cursaram o ensino superior e

encontraram um trabalho relativamente estável e bem remunerado, fora desse espaço

alguns destes seus descendentes igualmente eram reconhecidos enquanto verdadeiros

referenciais para os agricultores. O principal exemplo dessa posição de relevo era

justamente o atual gerente da La Florida.

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Capítulo 4 – Para além do “raio de ação” da cooperativa

4.1 Introdução

Este capítulo focaliza um período da vida de um filho de cafeicultores e

funcionário da Cooperativa La Florida que se transformou num comerciante “privado”

de “cafés especiais” na selva central peruana. O interesse em retratar essa etapa de sua

vida reside, de um lado, no fato dele ter buscado identificar o comércio privado de café

com as noções que os produtores associavam ao campo semântico da modernidade. Por

outro, ele é um exemplo, entre outros ao seu redor, de alguém que faz parte de uma

nova geração de indivíduos ligados à cooperativa e que, para além dos limites

territoriais onde vivem os sócios desta organização, vêm sendo reconhecidos como

verdadeiros referenciais entre os agricultores, na medida em que os aproximam dos

meios para que a situação precária que vivenciam seja superada ou, pelo menos,

atenuada de uma maneira considerada satisfatória. Trata-se, em suma, de uma

“vocação” e de uma “missão” para as quais muitos dessa nova geração se viram

comprometidos através da sua convivência com as pessoas ao redor da La Florida.

O nome do sujeito retratado nesse capítulo é Leonel. Seu pai é um dos chamados

“refundadores” da cooperativa e também um dos sócios que conseguiram proporcionar

aos seus filhos o acesso a ensino superior. O trabalho de Leonel nesta organização, que

veio a exercer após ter cursado uma faculdade de engenharia aeronáutica na Argentina,

fez com que passasse a se interessar pelo comércio de café. Mas sua dificuldade em

ascender ao cargo de gerente nesta ou em outras organizações de produtores o levou a

constituir um empreendimento privado de comercialização do grão, algo que

normalmente não é bem visto pelos cafeicultores. Contudo, ele vem procurando

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legitimar esse empreendimento ao associá-lo com o desenvolvimento deles e de suas

organizações.

O ponto é que os logros comerciais da Cooperativa La Florida permitiram que

um conjunto devidamente preparado de filhos de seus sócios intermediasse as relações

dos cafeicultores da selva central com os novos mercados de café. Estes descendentes

dos associados da La Florida ofereciam uma possibilidade concreta para que as

narrativas de progresso e desenvolvimento destes agricultores pudessem continuar

guiando suas ações ao longo do tempo. Através da trajetória do sujeito retratado ao

longo desse capítulo, é possível perceber que a cooperativa lhe ofereceu não apenas os

capitais (simbólicos, econômicos e sociais) para que pudesse assessorar os produtores

ou comercializar seus cafés como também ela mesma serviu de referencial ou modelo

para suas atitudes.

O sucesso comercial da La Florida envolvia o acúmulo nela tanto dos meios para

o “desenvolvimento” ou “progresso” dos cafeicultores quanto das experienciais em

torno de como alcançar estes meios e de como utilizá-los. Em outras palavras, ela era

um canal para se ter prestígio, financiamentos e acesso aos compradores de café e

igualmente fornecia um habitus ou um conjunto de disposições que permitiam aos seus

detentores agir convincentemente enquanto auxiliares dos agricultores na busca de

melhores condições de vida. Tal habitus passou a ser incorporado principalmente pelos

membros da cooperativa que foram capazes de ter contato com o ensino superior e que

faziam parte de uma nova geração de indivíduos ligados a essa organização. Estamos

diante de pessoas que vivenciam uma situação na qual há o que Pierre Bourdieu (2007)

chama de uma coincidência mais ou menos perfeita entre vocação e missão:

A subordinação do conjunto das práticas a uma mesma intenção objetiva, espécie de orquestração sem maestro, só se realiza mediante a concordância que se instaura, como por fora e para além dos agentes, entre o que são e o que fazem, entre a sua “vocação” subjetiva (aquilo

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para que se sentem “feitos”) e a sua “missão” objetiva (aquilo que deles se espera), entre o que a história fez deles e o que ela lhes pede para fazer, concordância essa que pode exprimir-se no sentimento de estar bem “no seu lugar”, de fazer o que se tem que fazer, e de fazer com gosto – no sentido objetivo e subjetivo – ou na convicção resignada de não poder fazer outra coisa, o que também é uma maneira, menos feliz certamente, de se sentir destinado para o que se faz. (idem p. 86-87)

Ao longo deste capítulo é possível perceber que a história da Cooperativa La

Florida aparece “incorporada” e “objetivada” nas práticas do sujeito nele focalizado. Tal

como colocou Karl Marx, de acordo como citado por Bourdieu nesse mesmo texto,

“quando a herança se apropriou do herdeiro, o herdeiro pode apropriar-se da herança”.

No caso de Leonel, a “herança” que a cooperativa lhe deixou se constituía basicamente

de capitais econômicos, simbólicos e sociais que lhe permitia intermediar as relações

dos produtores com os novos mercados de café. Já sua incorporação por essa “herança”

se deu principalmente através de seu trabalho como responsável pela compra dos cafés

da La Florida. Em outras palavras, sua atualização da história da cooperativa (objetivada

em prestígio, acesso a financiamentos e a compradores de café) aconteceu por meio de

um conjunto de disposições ou habitus que adquiriu como funcionário dela. É desta

atualização que este capítulo trata enquanto um exemplo do que vem ocorrendo entre

outros membros da La Florida da mesma geração de Leonel.

4.2 A chegada à selva central e o encontro com Leonel

Como dito na introdução da tese, a decisão de conhecer a selva central havia

sido tomada ainda durante minha estadia no sul do Peru em meados de 2005. Isso

porque, perguntados a respeito de um lugar onde se poderia encontrar difundida a

produção de café para o comércio justo, os membros da cooperativa que visitei no

departamento de Cuzco me indicaram justamente aquela que era vista como a mais

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tradicional zona cafeicultura do país: o departamento de Chanchamayo. Segui então de

ônibus durante três dias pela cordilheira andina até chegar no dia 12 de agosto em La

Merced, capital de Chanchamayo e principal cidade da selva central, como assinalado

no segundo capítulo.

Na manhã do dia seguinte, após uma merecida noite de sono num confortável

quarto de hotel, fui dar uma volta na simpática praça de armas da cidade, tendo ao

fundo as montanhas que anunciam a passagem dos Andes à Amazônia para aqueles que

chegam à selva. Identificado à primeira vista como um dos freqüentes turistas que

visitam a zona em busca de suas cachoeiras e “comunidades indígenas nativas”,

conversei com as pessoas que trabalhavam nas barracas situadas na praça e que vendiam

basicamente café e outros produtos locais, além de artesanato indígena amazônico.

Questionados a respeito da existência de alguma organização de cafeicultores nas

redondezas, me indicaram a Cooperativa La Florida. Segui até essa cooperativa através

de um moto-taxi; um veículo característico da vida urbana peruana contemporânea e

meio de subsistência para inúmeras pessoas em todo o país.183

Foto 34 – A entrada da cooperativa Foto 35 – A cooperativa e seu entorno

183 Um moto-taxista ganhava, em média, 30 soles líquidos por dia em La Merced, onde o trajeto padrão custava 0,70 centavos. Muitos filhos de cafeicultores da selva central trabalham como moto-taxistas nessa cidade, seja com veículo próprio ou alugado.

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A imponente entrada da cooperativa exibia, num vistoso muro, os logotipos dos

diversos certificados que esta organização possuía: comércio justo (FLO), orgânico,

sustentável e amigável com as aves. Tal como se passava com a central de organização

de produtores que visitei no sul do país (a COCLA), a fachada dessa entidade também

se destacava diante dos aparentemente inacabados imóveis ao seu redor. Uma estética

moderna contrastava com o ar de fronteira econômica característico dos espaços

urbanos presentes na selva peruana.184 Abordei o porteiro e este logo de cara pediu que

me identificasse. Ele chamou pelo interfone o presidente da cooperativa, pensando que

este iria se encontrar com um “gringo” comprador de café, até ver com clareza o

documento que lhe entreguei (uma carteira internacional de estudante). O “estudante

brasileiro” subiu e foi falar com o presidente. A conversa foi rápida, não durou nem

meia hora, e o presidente não fez nenhuma questão que continuasse. Além de sua má

vontade em me receber, minhas perguntas realmente não estimularam nosso debate.

Foto 36 – O interior da cooperativa Foto 37 – Vista do armazém (com os armazéns ao fundo) (ao lado dos escritórios)

184 É verdade que La Merced veio a se colocar, do meu ponto de vista, como um oásis de modernidade se comparada com outras cidades da selva central. Isso porque apenas nessa cidade eu encontrava determinados estabelecimentos (sorveteria, discoteca, pizzaria e bares, por exemplo) onde podia me divertir ou relaxar de verdade junto daqueles que vieram a ser os meus amigos mais próximos ligados à Cooperativa La Florida e com os quais compartilhava as disposições típicas de um jovem de classe média.

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Vendo que o diálogo não avançava, requisitei-lhe gentilmente a possibilidade de

visitar as dependências da cooperativa. Com seu aval segui até um dos armazéns ao lado

do escritório onde nos encontrávamos. Enquanto eu tirava algumas fotos do local, um

sujeito advindo de uma sala, no próprio armazém, se aproximou e deu início a uma

conversa comigo. Seu pedido para que o fotografasse em seu ambiente de trabalho e lhe

enviasse as fotografias por correio eletrônico criou imediatamente um vínculo entre nós.

Observando mais tarde seu endereço virtual é que percebi que durante o restante do dia

havia confundido seu nome. Independentemente disso, esse encontro certamente se

colocaria como o ponto de partida da minha amizade com Leonel. Isso não exclui o fato

de que desde esse momento e de ambos os lados também estivessem em jogo nessa

relação outros interesses que não apenas a companhia alheia.

4.3 O foco de Leonel no comércio de café

Depois de iniciada nossa conversa, fomos dar uma volta por toda a unidade da

Cooperativa La Florida em La Merced, enquanto Leonel comentava a respeito dessa

organização de produtores como um todo. Um dado que enfatizou era o de que o

mercado disponível para a cooperativa havia crescido tanto que seus associados não

conseguiam abastecê-lo. Mais especificamente, nesse ano de 2005 os sócios tinham

produzido 30.000 quintais de café e os compradores demandavam 40.000 (vale lembrar

que cada quintal corresponde a uma saca ou 46 quilos). Seguimos até um bar, em frente

à cooperativa, onde nos juntamos a um sócio sentado numa mesa e com o qual

compartilhamos algumas cervejas. Ambos apontaram seus dirigentes como os

responsáveis por este descompasso entre oferta e demanda. Disseram que apenas uns

poucos produtores reclamavam nas assembléias da cooperativa sobre a necessidade de

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uma postura mais agressiva, por parte dessa organização, no incentivo da produção de

café. Contudo, como ressaltado nos dois capítulos anteriores, esse descontentamento foi

um dos tópicos por excelência das minhas conversas com os membros dessa entidade e

uma percepção comumente presente nas suas próprias discussões.

Retomei o diálogo com Leonel algumas horas depois (outro sócio da cooperativa

nos acompanhava nessa ocasião). Em contraste com seu discurso anterior focado na

produção de café, Leonel ressaltou com veemência a necessidade de uma atitude

“estratégica” e “empresarial” por parte de qualquer organização de produtores. Ele

reproduziria esse mesmo argumento diante dos membros de uma organização de

cafeicultores com os quais nos encontraríamos no dia seguinte. Essa organização ou

“central”, como Leonel a chamava, tinha sua sede na cidade de Pichanaki (também

situada na província de Chanchamayo).

O trajeto de La Merced até Pichanaki era geralmente percorrido de carro em

duas horas. Isso porque a compra de um lugar, freqüentemente apertado, num

automóvel particular era a forma mais comum das pessoas transitarem nessa estrada.

Tratava-se, como dito antes, de uma rodovia asfaltada que unia a cidade de Lima ao

interior da selva central e que fazia dela a região cafeicultora mais próxima da capital

nacional e, conseqüentemente, da zona portuária mais importante do país. Pichanaki se

encontrava mais afastada de Lima do que La Merced; o que também significava uma

maior proximidade da planície amazônica e um maior afastamento da cordilheira

andina.

No dia seguinte, logo pela manhã, Leonel apareceu no hotel onde eu estava

hospedado. Tomamos um moto-taxi até a oficina mecânica onde se encontrava seu

caminhão. No trajeto aproveitei para lhe perguntar sobre sua função na cooperativa;

“chefe responsável pelo processo de compra de café”, me respondeu. Segundo ele, três

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mil toneladas de café passariam pelas suas mãos esse ano, sendo que em 2004 foram

cinco mil. Nesse dia iria adquirir sete toneladas do produto para a cooperativa, além de

“estabelecer negócios”. Mas na oficina constatou que seu caminhão não estava pronto e,

para não corrermos o risco de ficar pela estrada, resolveu ir atrás de um carro para

alugar, cujo proprietário havia tomado cerveja conosco no dia anterior. Iríamos pagar 30

soles pelo uso do carro no dia mais a gasolina, porém, o dono do veículo não estava.

“Vamos de ônibus”, disse ele. “Se não for hoje não me levam a sério”, falava pelo

caminho. “Dizem que é mentiroso, que não é sério”, repetia.

Nessa época, Leonel viajava três vezes por semana “a negócios”, segundo suas

próprias palavras. Por sua vez, essa viagem para Pichanaki tinha como propósito o

encontro com os dirigentes da Asociación Central de Productores de Café Pichanaki.

“Eles têm que ser mais empresariais”, me dizia Leonel sobre estes dirigentes. Pelo

caminho ele deixou claro o tanto que adorava a selva central e sentia pelos produtores

de café dessa região. Comentou que dez cooperativas “quebraram” nessa zona, em

decorrência tanto dos baixos preços quanto de uma má administração. “Pouca

experiência em mercado” e “não conheciam o comércio justo” eram as frases que mais

usava para descrever a difícil situação enfrentada por estas organizações de produtores.

Como que explicando o porquê de sua cooperativa ter se afastado desse quadro

desolador, contou que César Rivas, o gerente desta entidade, viajou em 1997 ao

Panamá, onde participou de um curso no chamado Instituto Cooperativo Ibero-

Americano. Nos dois últimos anos, Leonel também pôde assistir alguns cursos nesse

mesmo instituto; a primeira vez financiada pela cooperativa, mas a segunda se deu com

base em seus próprios recursos. Sua colocação parecia afirmar implicitamente que tanto

ele quanto Cesar foram adequadamente preparados para enfrentar os desafios colocados

às organizações de produtores ao longo dos últimos anos.

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No final do dia, me confessaria seu desejo de ser o gerente da Associação

Central de Produtores de Café Pichanaki. Retomaria também seu discurso sobre a

carência de uma visão empresarial por parte dessa associação.185 Em suas falas, Cesar

aparecia como o parâmetro de sucesso que conscientemente ou não utilizava ao refletir

sobre seu futuro profissional. A ênfase num discurso centrado na comercialização e não

na produção de café acabava colocando Leonel numa posição contrária àquela

majoritariamente assumida pelos produtores. Diante disso, não é de se estranhar que ora

concordaria com as reivindicações destes sujeitos e ora discordaria, como vai ficar

evidente mais à frente. De qualquer maneira, o que importa ressaltar é que o prestígio

alcançado por Cesar dentro da cooperativa e no universo social das organizações

peruanas de cafeicultores (não é à toa que em abril do ano seguinte seria eleito

presidente do grêmio nacional destas entidades) era algo que parecia aguçar os desejos

de Leonel em se destacar através do comércio de café. Esse desejo pulsava intensamente

na sua conversa com o presidente da associação, como fica evidente na descrição desse

encontro apresentada a seguir.

4.4 A conversa com o presidente

A associação que visitamos em Pichanaki tinha quatro anos de existência e era

formada por 23 “associações de base”, num total de 484 sócios: 60 certificados como

orgânicos e 40 em “transição um ou dois” (vale lembrar que processo de certificação

orgânica levava geralmente dois ou três anos, dependendo dos certificados em questão).

185 Comentou que “o manejo cooperativo é um equilíbrio entre a parte social da cooperativa e a parte empresarial”. Nesse caso, uma entidade dessa natureza “deve ser solidária e rentável”. Disse que sem o lucro os benefícios sociais não se mantinham. Sobre os cursos que fez no Panamá, ressaltou que eram sobre o comércio justo, sendo que o primeiro foi sobre as “técnicas e estratégias de comercialização de café num mercado mundial” e o segundo a respeito dos “planos de negócios para um mercado de qualidade”.

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Um engenheiro e dois técnicos cuidavam da assessoria aos sócios. Nossa conversa foi

com o presidente da associação. “Temos pouca experiência em mercado e comércio

justo”, nos disse esse senhor logo de início. “Nós temos que fazer uma interconexão

entre uma carteira de torrefadoras e eles”, lhe falou Leonel ao mesmo tempo em que me

olhava em busca de um sinal de aprovação. Imediatamente passou a discorrer sobre sua

visão da necessidade de um broker entre os produtores da região. O presidente parecia

concordar com essas idéias. Uma das pretensões de Leonel, além de assumir a gerência

de uma organização de produtores, era justamente a de ser um broker e com isto queria

começar a trabalhar já no próximo ano. O fato de utilizar desse termo em inglês para

falar do comércio “privado” de café demonstrava claramente sua intenção de conferir

um significado mais positivo para uma atividade que não era bem vista entre os

agricultores.

Foto 38 – O armazém da “Central” de Pichanaki Foto 39 – Leonel (à direita) e o presidente (com os cafés da Central sendo secados ao fundo)

De acordo com o presidente, “em primeiro lugar”, sua associação produzia café

e, “em segundo”, frutas cítricas.186 “Mandioca, feijão, arroz e soja são irrisórios”, disse.

186 O principal produto cultivado na selva central é o café. Contudo, essa região também se notabiliza pela produção de laranja, abacaxi e tangerina para o mercado nacional. Segundo Santos & Barclay (1995), o comércio de frutas cítricas na selva central foi impulsionado pelos comerciantes que deixaram de lado a comercialização de café diante do privilégio governamental às organizações de cafeicultores (a partir do final da década de 1960).

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Este ano esperavam produzir 13.000 quintais de café (700.000 quilos) e que seriam

vendidos “internamente” (dentro do país), basicamente para “empresas privadas”. “Eles

têm pouca experiência comercial”, dizia Leonel e o presidente concordava. “Temos que

melhorar a qualidade”, falava este último, lembrando dos prêmios que os cafés peruanos

angariavam em diversos concursos internacionais de “cafés especiais”.

Leonel, discorrendo sobre a necessidade de uma “visão empresarial” por parte

dos dirigentes da associação, disse: “se ficar só solidário em 10 anos está igual”. Ele

estava se referindo ao fato de que, para além da redistribuição de dinheiro entre seus

associados, as organizações deveriam investir em suas infra-estruturas o que

arrecadavam com a venda de café, tornando-as mais aptas para competirem

comercialmente. Porém “o social” (os sócios) também era estratégico: “é preciso cuidar

da parte social”, ponderou o presidente. “Um erro na parte social perde a confiança”,

falava Leonel e o presidente concordava. A necessidade dos sócios serem “sustentáveis”

foi também lembrada na conversa, ou seja, estes deveriam ser capazes de se manter sem

precisarem recorrer aos empréstimos para arcarem com os chamados custos de pré-

colheita (mão-de-obra, basicamente). Depois de trazer à tona seus dois cursos no

Panamá, Leonel acrescentou: “tem que ter plano de negociação e plano de estratégia”.

“(A associação) Pichanaki tem grande produção, mas pouca experiência de mercado”,

afirmou ele com o presidente concordando, como sempre.187

Num dado momento da conversa, Leonel exclamou: “café é como droga, é

muito comercial”. Em seguida, a discussão passou a girar em torno da importância do

187 Após a visita à associação, fui com Leonel conhecer a cidade de Pichanaki, onde pude entender o sistema de “compra e venda, compra e venda, compra e venda” a respeito do qual comentara comigo anteriormente. Por exemplo, um pequeno “armazém” (comerciante intermediário) compra o café do produtor, outro armazém maior compra esse café (mas também compra diretamente dos produtores) e o revende para as empresas privadas exportadoras (como é o caso da Coinca ou Aikasa). O caráter “alternativo” do comércio justo, do qual me falara Leonel, era justamente alternativo em relação a esse sistema. A associação que vistamos em Pichanaki vendia para a Coinca. Contudo, gostaria de adentrar no comércio justo para poder exportar diretamente seus cafés. Na ocasião de nossa visita, a certificação que tinha disponível era apenas a de cafés orgânicos; Leonel estava lá para comprar esse tipo de café.

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aprimoramento das moradias dos sócios para a obtenção da certificação de comércio

justo. “Os primeiros passos são as certificações orgânicas, depois a de comércio justo”,

assinalou o presidente. “Há outras certificações, como aquela do Smithsonian”,

completou Leonel.188 “A Utz-kapeh é para café sostenible”, prosseguia para logo depois

enfatizar: “quantos mais certificados, mais vantagens (comerciais)”. A associação tinha

um convênio esse ano com a (empresa privada exportadora) Coinca, “para o próximo as

coisas vão mudar”, explicou o presidente.

Logo em seguida, Leonel começou a contar uma história sobre a reestruturação

da Cooperativa Perene e sua participação nesse processo. “Sim, a Perene está se

levantando”, disse o presidente. “Não gostei dessa história de que minha participação

era interesse pessoal”, enfatizou Leonel que completou: “eu sou neutro, nem Aspa Café

(uma associação de produtores) nem Perene, eu sou neutro, quero que cresçam”. “Há

famílias que não se dão”, afirmou Leonel e o presidente concordou: “isso vem de

anos”.189 Com base nesse diálogo, é possível perceber que os dois estavam

familiarizados com um mesmo universo social vigente na selva central. Em outras

palavras, não era à toa a preocupação de Leonel em preservar sua imagem perante os

cafeicultores dessa região. Mesmo porque a “confiança” que as pessoas tinham nele

tratava-se de um capital crucial para a realização das suas ambições profissionais.

Leonel retomou sua insistência na necessidade do aprimoramento da “parte

comercial” da associação de Pichanaki: “essa associação tem produção, falta melhorar a

parte financeira e comercial”, disse ele que, em seguida, ressaltou a importância das

feiras internacionais de café (“nos EUA e Alemanha”) para se estabelecer contato com

as empresas torrefadoras. Comentou também que a Corporação Café Peru (a entidade

188 Café Bird Friendly, outorgado pelo Smithsoniam Migratory Bird Center (EUA). 189 Leonel me disse, num momento posterior, que assessorou a Cooperativa Perene. Esta era composta de um grupo de produtores brigado com outro grupo vizinho e que, por conta disso, formou a Aspa Café. Uma família de cafeicultores ligada à Cooperativa Perene dispensou indiretamente a assessoria de Leonel.

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capitaneada pela Cooperativa La Florida e que congregava diversas organizações de

produtores) tinha stands nessas feiras. “Buscar mercado no Peru não dá”, completou

para logo acrescentar: “tem que posicionar o café no mercado, tal como faz a La

Florida”.190 “O comércio justo significa mais dinheiro, tem que certificar a parte social,

é uma associação de produtores e não um intermediário comercial”, foram as suas

palavras e para as quais o presidente complementou: “o produto sem sua certificação

não anda, não caminha”. “O consumidor exige isso”, apontou Leonel. Os dois

concluíram a negociação: “amanhã o caminhão vem”, disse este último sobre a data do

recebimento do café da associação que seria comprado pela Cooperativa La Florida.

Passaram a falar de amenidades; eles me perguntam do Brasil, da minha estadia no Peru

e do futebol brasileiro, é claro.

Saímos da associação e fomos procurar um (comerciante) “intermediário”

conhecido de Leonel e com o qual pretendia se associar para dar início às suas

operações de broker. Passamos pelo armazém do sujeito e depois fomos até sua loja no

centro da cidade. Ele não estava em nenhum desses dois lugares, mas suas cinco filhas e

esposa nos receberam muito bem em ambos. Caminhando por Pichanaki ficava evidente

como a Bolsa de Nova Iorque (NYBOT) regulava as negociações locais de café. Muitos

comerciantes nessa cidade acompanhavam o pregão, principalmente através da internet.

A cidade tinha um ar de fronteira bem mais acentuado do que La Merced e não oferecia

nenhum atrativo turístico, pelo contrário. Por outro lado, Pichanki apresentava um

movimento comercial evidentemente maior do que a capital de Chanchamayo. Da loja

seguimos até o encontro de um amigo de Leonel e funcionário do departamento de

190 “Posicionar o café” é uma expressão bastante presente no âmbito das organizações de cafeicultores e que basicamente significa estabelecer um posicionamento privilegiado enquanto parceiro comercial dos compradores do grão.

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crédito do AgroBanco (o banco estatal de fomento da agricultura). Isso porque Leonel

também pretendia se associar a esse sujeito no seu projeto de se tornar um broker.

Essa sua busca de parceiros para viabilizar seu empreendimento demonstrava o

fato de que Leonel ainda carecia de canais comerciais e de recursos econômicos para

poder escoar os cafés dos produtores. Mas apesar de não atuar enquanto o que definia

como sendo um broker, ele era capaz de se apresentar como alguém qualificado para

ocupar essa posição. Sua segurança em se mostrar dessa maneira certamente se

assentava e podia ser justificada através dos cursos dos quais participou no Panamá.

Isso ficava evidente no seu diálogo com o presidente da Associação Pichanaki. Mas a

disposição para assumir esta posição de especialista no comércio de café certamente se

apoiava, em grande medida, na sua experiência dentro da Cooperativa La Florida. Era

através da sua relação privilegiada com ela que podia converter o prestígio comercial

alcançado por esta entidade num capital crucial para falar com propriedade sobre a

comercialização de café. Tal ponto de vista privilegiado transparecia, por exemplo, nos

seus conselhos ao presidente da Associação Pichanaki a respeito do comércio justo

enquanto um caminho alternativo para a comercialização de café.

A inserção pioneira da Cooperativa La Florida entre os compradores

credenciados pela Fairtrade Labelling Organizations International (FLO) acabou

legitimando o trabalho de alguns filhos de seus sócios, como era o caso de Leonel, por

exemplo, junto de outras organizações de produtores, no que influía, mas não só e nem

de maneira determinante, o fato de muitos deles, incluindo o próprio gerente Cesar

Rivas e mesmo Leonel, formarem a primeira geração de pessoas associadas à

cooperativa com algum tipo de educação superior. Na seção que se segue podemos

perceber claramente como o lugar ocupado por Leonel na cooperativa lhe permitiu

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incorporar uma disposição para almejar o acesso a posições mais destacadas com

relação ao comércio de café.

4.5 O trabalho de Leonel na cooperativa

No dia seguinte à nossa viagem a Pichanaki, encontrei com Leonel, logo pela

manhã, em sua sala no armazém da Cooperativa La Florida. Ele estava falando pelo

telefone com Jorge, um funcionário da cooperativa que trabalhava no “escritório de

exportação” em Callao (uma cidade colada a Lima e principal porto do país). O assunto

dessa conversa telefônica era a respeito de uma amostra de café de um grupo de

produtores do distrito de Vila Rica, mais ao norte de Chanchamayo, já na província de

Oxapampa, uma das três províncias que conformam a selva central. Esta amostra

deveria ser enviada nesse dia ao principal laboratório da La Florida, também nas

dependências que a entidade mantinha em Callao. Jorge era o responsável pela

exportação e trabalhava para Cesar, o gerente. O ponto da conversa era o de que esse

café proveniente de Vila Rica havia passado por uma secadora em mal estado de

conservação, o que “pode dar um pouco de umidade ao produto”, segundo me disse

Leonel. Eram 218 sacas, totalizando uma tonelada, e a amostra era de um quilo. O teste

em Callao (“Lima”) seria o mais importante: “se aqui (em La Merced) passa, pode não

passar em Lima”, comentou comigo Leonel para depois completar: “em Lima é mais

seguro e é onde verificavam se o produto é capaz de ser exportado”.

De acordo com ele, a Cooperativa La Florida “fazia o papel de broker”. Por

exemplo, ela pagou seis soles por quilo do café certificado como orgânico advindo da

Central de Pichanaki e o vendia a 7,60 soles. Isso significava que 1,60 soles ficavam

para a cooperativa. Dos 30 mil quintais produzidos por seus associados, a La Florida

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conseguia vender 70% através do comércio justo regulado pela FLO. Acontece que a

produção de café certificado como orgânico dos sócios da cooperativa não chegou nem

a 10.000 quintais esse ano (vale lembrar que os cafés com essa certificação valem mais

dentro do comércio justo). Leonel exemplificou da seguinte maneira o funcionamento

dos negócios. Eram 10.000 quintais de cafés certificados como orgânicos produzidos

pelos associados; 7.000 deveriam ir “para a FLO” (ou seja, para as torrefadoras que

compravam através do comércio justo) e 3.000 para as torrefadoras “sem FLO”. Mas

com o tempo havia uma demanda maior de café por parte das torrefadoras que

compravam via comércio justo; 9.500 quintais no total, por exemplo. Os 2.500

adicionais saiam dos 3.000 que iriam para as torrefadoras que compravam café fora do

comércio justo. Eram estas torrefadoras que recebiam o café advindo de produtores

como aqueles da associação de Pichanaki que visitamos. “O ideal seria vender tudo no

alternativo (comércio justo)”, concluiu Leonel.

Sua identificação da La Florida como um broker parecia conferir uma

legitimidade a esse termo. Em outras palavras, ele estava como que associando a noção

de broker a um campo semântico dentro do qual estava presente não só esta cooperativa

como também o comércio justo.

Num dado momento, ainda no seu escritório dentro do armazém, Leonel

telefonou para Jorge com o intuito de fazer uma pergunta que, na verdade, era minha: “a

cooperativa pode comprar da associação de Pichanaki e vender o produto no comércio

justo?”. Jorge falou de normas recentes da FLO. Por exemplo, comprava-se café da

associação e o vendia “como FLO”, mas parte do prêmio do comércio justo deveria ser

repassada à entidade cujos sócios produziram o grão.

Retomei meu diálogo com Leonel num restaurante ao lado da Cooperativa La

Florida. Ele sentia que seu trabalho na cooperativa estava burocratizado, “na Central de

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Pichanaki seria mais excitante”, confessou. César, o gerente, estaria há oito anos no

posto e aprendeu o que sabia “através da experiência”, disse Leonel.191 Segundo ele, “o

dinheiro da La Florida é emprestado, tem que ser zeloso”. Entendia que havia

deficiências na “parte social” da organização e não na “comercial”. Falou então da

produção: “tem que ter mais crédito para aumentar a produção no campo”. Os US$

600.000 de patrimônio da CrediFlorida (entidade financeira ligada à cooperativa) seriam

usados apenas na manutenção das chacras dos sócios. Como exemplo ele citou a

limpeza das ervas daninhas, o adubo dos cultivos e a sua poda. “Não tem dinheiro para

mais plantações”, apontou. “As árvores são velhas, são as mesmas que vem sendo

adubadas, tem que ter plantas novas”, continuou. Por outro lado, confessou que César

estava buscando financiamento para novas plantações, respondendo assim à demanda

dos sócios.

Leonel realmente se mostrava cansado do trabalho burocrático no qual estava

metido. Disse que ia pedir para mudar de área e, se seu pedido não fosse atendido,

pretendia buscar outro trabalho ou voltar a Córdoba (Argentina) para concluir seus

estudos universitários (faltava só a titulação, em engenharia aeronáutica, como

assinalado anteriormente).192 Ele queria ter um papel mais comercial na organização,

mas esse já era ocupado por César, por isso sua vontade de ser um broker. Estava há

quatro anos na cooperativa e na mesma função. Era responsável por quatro

“estivadores” (que carregavam as sacas) e um “secador” (que ficava remexendo os

grãos no piso de concreto). No final me pediu para não contar a ninguém da La Florida

sobre essa nossa conversa durante o almoço.

191 Ao conversar com César, este me disse que seus estudos num instituto superior de Lima, “o melhor lugar para se estudar administração nessa época”, foram bem mais importantes do que o curso no Panamá. 192 Por ter morado durante certo tempo na Argentina, e trazido determinadas expressões lingüísticas desse país, seus amigos o apelidaram de El Che.

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208

Encontraria novamente com Leonel mais à tarde. Ele estava na sua sala, no

interior do armazém, fechando a compra do café dos produtores de Vila Rica. “Se

tiverem mais café, tragam”, disse Leonel a uma senhora e um senhor que vinham em

nome do restante dos produtores. Ele preparou um “recibo de liquidação de compra”

para cada produtor; com esses recibos seus dois representantes deveriam retirar na

própria La Florida o dinheiro para cada um deles. Todos estes agricultores passaram

recentemente a vender a totalidade de seu café para a Cooperativa La Florida (na

ocasião vendiam 205 sacas). “Nós vamos trocar de secadora”, falou o senhor.193

Foto 40 – Leonel (sentado) e os produtores de Vila Rica

A discussão na sala se concentrou então no conceito de “raio de ação” da

Cooperativa La Florida. Acontece que as 205 sacas em questão estavam sendo vendidas

para a Corporação Café Peru. “Há a corporação e há a cooperativa”, nos informou

Leonel que continuou, “a corporação é uma organização de produtores com sede em

Lima. Se vocês estão dentro do raio de ação, então podem ser sócios da cooperativa”.

193 Como depois me informaria Leonel, foi ao sentir o cheiro do café entregue por estes produtores que descobriu o mau estado da secadora. Vale ressaltar também que, durante uma visita à cidade de Vila Rica, os funcionários de uma organização não-governamental que trabalhava com os produtores locais reclamaram comigo da dificuldade de organizar estes sujeitos em torno de uma associação, dado que a Cooperativa La Florida acabava dispondo de uma maior capacidade para pagar mais pelos seus cafés.

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Em suma, os produtores de Vila Rica poderiam se tornar sócios da La Florida. Leonel

pediu para os dois falarem com a gerência, para futuramente poderem entregar o café

que colherem para esta entidade, que pagava mais para os que fossem seus associados,

além de beneficiá-los com o “prêmio” do comércio justo no final do ano.194 O fato era

que estes produtores de Vila Rica eram novos parceiros comerciais da cooperativa, e

isso explicava o desconhecimento dessa possibilidade de negociação. “O raio de ação

tem seu território”, disse Leonel. “Vocês de Vila Rica estão no raio de ação e vendem

para a corporação, deveriam vender para a La Florida”, continuou. Os dois produtores

demonstraram não conseguir compreender o conceito e foram embora retirar o dinheiro

num escritório ao lado do armazém.

Neste depósito sob responsabilidade de Leonel, os cafés orgânicos negociados

eram da Corporação Café Peru; os cafés orgânicos dos sócios da Cooperativa La Florida

ficavam em um galpão na cidade vizinha de Sán Ramón (e do qual Leonel não era o

responsável). Nas dependências da cooperativa em La Merced se encontrava também o

armazém de cafés convencionais, igualmente sob responsabilidade de Leonel. Em frente

aos dois depósitos que comandava era possível observar algumas máquinas secadoras e

grandes espaços de cimento onde o café era secado (ver foto 36). Em seguida, já perto

do portão de entrada e saída da cooperativa, ficava o “laboratório de qualidade”. Ao

entrar nesse local, encontrei seus dois únicos funcionários. Ambos eram filhos de sócios

da cooperativa, “como a maioria dos empregados”, me disseram esses dois jovens que

também creditaram à gestão de Cesar o reconhecimento “nacional e internacional” desta

organização na qual trabalhavam. 194 Curiosamente, me depararia, no começo do ano seguinte, com um cartaz exposto na cooperativa e no qual se lia: “El consejo de administración hace de conocimiento a todos los socios, que no habrá reintegro debido a la baja producción de la presente campaña 2005. Por lo que invocamos, su comprensión.”. Acontece que a baixa produção de café no país, em 2005, fez com que muitas empresas privadas e organizações de cafeicultores tivessem que comprar o produto por preços maiores do que aqueles que iriam vender, dado que tinham que cumprir com seus contratos “extras” de exportação firmados num contexto de bons preços internacionais. Em outras palavras, especularam e se deram mal diante da queda desses preços.

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210

Depois de dar uma volta pelas dependências da La Florida, retornei ao armazém

e encontrei Leonel conversando com Edson, um jovem de 27 anos que veio até a sua

sala. Ele era “secretário” de uma cooperativa ainda em gestação e trouxe para o

presidente da Corporação Café Peru (que também era presidente da La Florida) a

“Constituição” da sua cooperativa. Edson tinha muitas dúvidas e, por incrível que

pareça, esclareci muitas delas com aquilo que havia aprendido com Leonel nos últimos

dias. Já este lhe falou da “necessidade” de se ter um “plano estratégico”: “o primeiro

objetivo é obter a certificação e o segundo mercado e boa venda”, explicou. Edson não

sabia o que era “FLO”, mas já tinha escutado sobre o comércio justo. Leonel comentou,

logo em seguida, sobre a “distinção entre FLO e comércio tradicional”. Segundo ele, os

“reintegros” (prêmios advindos comércio justo) eram pagos aos sócios em janeiro e

fevereiro, “meses ruins para o agricultor”.

É possível perceber que, no seu contato com os produtores que vendiam os

cafés, Leonel os introduzia dentro de um universo de significados que aparentava

manejar com bastante naturalidade. Seu cargo dentro da cooperativa lhe colocava

justamente numa posição privilegiada para perceber a falta de conhecimento dos

cafeicultores da selva central diante das diversas oportunidades existentes para

escoarem seus produtos. No caso dos agricultores de Vila Rica, estes desconheciam a

possibilidade de se associarem à Cooperativa La Florida. Edson, por sua vez,

representando os produtores do Vale de Santa Cruz, se comportava como um verdadeiro

neófito ao pleitear o ingresso de sua cooperativa dentro da Corporação Café Peru. Era

evidente que Leonel encontrava diante de si uma oportunidade para intermediar, através

de um empreendimento privado ou como gerente de uma organização de cafeicultores,

o escoamento do café dos produtores da selva central por meio dos canais desbravados

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pela sua cooperativa. Isso significava aproveitar suas relações privilegiadas com essa

entidade para superar o que via como seu estancamento profissional dentro dela.

Outros filhos de produtores associados à Cooperativa La Florida lograram

ocupar o cargo de gerência em outras organizações de cafeicultores. Conseguiram assim

ser reconhecidos num contexto nacional em torno destas entidades e que se congregava,

em grande medida, nos eventos patrocinados pela Junta Nacional do Café (JNC) ou

mesmo naqueles promovidos pelas centrais de organizações de produtores. Mas o

desejo de Leonel de repetir esse caminho adotado por seus colegas de infância não se

colocava como uma tarefa fácil. Nesse sentido, paralelamente à busca de um cargo de

gerente numa organização de produtores qualquer, passou também a almejar a

condução, por conta própria, da comercialização de café, naquilo que definia como

sendo um papel de broker. Com o passar do tempo, como vai ficar claro nas próximas

seções, a escolha de uma dessas duas opções profissionais acabaria se transformando

num verdadeiro dilema para ele.

Ocupar um cargo de gerência numa organização de produtores era uma das

posições profissionais mais valorizadas entre os associados da Cooperativa La Florida.

Isso porque conjugava a garantia de um salário fixo e relativamente alto com um

trabalho supostamente em prol dos cafeicultores. Tal como fora retratado no segundo

capítulo, a primeira geração de sócios dessa cooperativa era majoritariamente marcada

pelo fato de seus membros não terem tido as condições mínimas que lhes permitissem

continuar seus estudos quando eram jovens. Os bons preços internacionais do café nos

anos 70 e 80 e a boa produtividade dos solos nesse período possibilitaram que alguns

destes comprassem imóveis nas cidades, onde seus filhos puderam viver durante o

período de sua educação complementar àquela oferecida na área rural. É verdade

também que outros produtores optaram por comprar bens que supostamente garantiriam

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um sustento para seus filhos, como novas terras e veículos para o transporte de pessoas

e/ou produtos. Mas todos os associados concordam hoje em dia que o que gostariam

mesmo é de ver seus filhos trabalhando num emprego que lhes garantisse uma

remuneração decente todos os meses, ao contrário da imprevisibilidade de uma vida

sustentada através do cultivo de café num pequeno pedaço de terra resultante da divisão

da propriedade familiar. Obviamente que esse emprego seria ainda mais valorizado se

tiver como propósito a melhoria das condições de existência dos cafeicultores.

Um cargo de gerência numa organização de produtores era assim um valor tanto

no universo social em torno da Cooperativa La Florida como também naquele que

congregava nacionalmente estas entidades. Observar a presença de Cesar num evento

organizado pela Junta Nacional do Café, ou numa reunião da La Florida, me remetia

imediatamente à participação de um dos prestigiados professores da minha faculdade no

encontro nacional de pós-graduandos em ciências sociais ou numa palestra logo após

uma aula qualquer.195 Todos estes quando entravam num ambiente automaticamente

atraiam a atenção das pessoas ao seu redor.

O problema, pelo menos do ponto de vista daqueles que almejam uma posição

de destaque, mas não conseguem atingi-la, é de que os recursos que identificam essa

posição são escassos. Quanto mais disponíveis esses recursos, menor a capacidade de

promoverem qualquer distinção entre as pessoas. O desejo de Leonel em gerenciar a

Cooperativa La Florida não deu lugar apenas à busca de um cargo de gerência numa

outra organização de produtores qualquer, tal como fizeram alguns de seus amigos de

infância. Esse desejo o levou a almejar também aquilo que definiu como sendo um

papel de broker entre os cafeicultores e os compradores de café. Ao contrário de outros

amigos seus de infância e igualmente filhos de sócios da cooperativa, não deixou de

195 Foi Leonel quem, justamente, me abriu as portas para que participasse dos eventos promovidos pela JNC, tal como descrito mais à frente no texto.

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lado o universo cafeicultor. Sua experiência diante desta entidade lhe permitiu acumular

determinadas disposições para o comércio de café que acabaram fazendo como que o

trabalho nesse meio lhe parecesse como uma escolha natural. Mas o que estas

disposições também continham era uma propensão para ser avaliado não só do ponto de

vista do universo social em torno da cooperativa como também de outro mais amplo

onde esta se destacava.

4.6 A Ecologic Chanchamayo

Depois de conhecer o singelo e pacato povoado de La Florida e as

impressionantes instalações da cooperativa nesse local, retornei até Lima, onde também

visitei as dependências dessa entidade (na cidade vizinha de Callao). De Lima

regressaria ao Brasil para só voltar ao Peru cinco meses depois. Antes disso, mais

precisamente no dia 27 de agosto, enviaria o seguinte e-mail para Leonel:

Leonel, mi hermano en Peru, que tal? Estraño mucho usted e toda la gente de La Florida, e claro, tambiem estraño mucho mi novia de Pichanaki. Bueno, estoy ahora en Rio de Janeiro. Las flacas de Brasil estan esperando usted, quando vienes aca? En janeiro estoy en la Selva Central, entonces tienes hasta diciembre!!! Quando es el forum de cafe en Brasil que tu me disse? Piensa en venir? Bueno, te mando las fotos en una proxima mensagem. Se te encontrar com Edson mande un saludo de Brasil para ele e lo diga que en janeiro volto. Hasta janiero quiças usted estará com mucha plata, cierto broker? Vamos montar nostra oficina en Pichanaki!!!! Un fuerto abraço para usted e mucha sorte con sus projetos. Tu es una persona que será ciertamente un protagonista del comercio alternativo de cafe en Peru e fico mui feliz de ser su amigo.

A resposta chegaria no dia 29.

Hola Ricardo Hermano de Brasil !!! Antes te envio mis saludos cordiales de manera muy especial, bueno gracias a dios llegaste bien a casa eso es buena noticia para mì, tambien gracias por escribirme. La verdad por aqui todo bien, ayer justo estuve por pichanaki y lo vi a tu novia creo tambien va ser la mìa asi que tenemos que apostar jajaja. Bueno pues estuve por la central y otra organizacion con certificacion organica algo igual que la central y lo estoy canalizando sus productos organicos que no sabian como venderlo. Tambien la oficina de Brokker y Trayding

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esta bien cada vez mas real por que estamos con Saul el amigo que almorzamos en pichanki de la moto. con èl estamos viendo la oficina por que el sera el operador de credito agrarios con Agrobanco, asesor y consultor de produccion del cafe y sus certificaciones en cafes organicos en general veo que todo esta bien. Tambien estamos contando contigo Ricardo eso no te olvides por que formas parte del staff profesional y ademas tienes que estar viendo algunos financiamientos para incursionar mas en el comercio alternativo tanto el peru y como en el Brasil. por favor no hay que perder el contacto y comunicacion permanente de esto dependera la relacion de la organizacion amigo querido. una vez mas gracias por la amistad y por favor saludos fraternos a tu familia vere la posibilidad de ir ala feria del brasil (BIOFACH) y ver tambien las chicas Bellas de alli. te envio un abrazo fraterno y saludos atentamente Leonel

No dia 20 de dezembro recebi um correio eletrônico de Leonel, em resposta a

outro que havia enviado informando-lhe da minha chegada à selva central em janeiro.

Neste seu e-mail, me disse o seguinte:

Hola mi muy estimado amigo Ricardo!! Te envio antes de todo un abrazo de todo corazon hermano de Brasil. Bueno disculpas que te escriba recien, pero y alo hice outro dia no me has respondido, pero

bueno ahora todo bien me alegra que estes bien. Sabes cuandro vendras por aqui espero que pronto te tengo uma sorpresa quizas esto tambien me

ha llevado a que casi no he entrado al net. pero ahora estaremos mas comunicados sobre todo. Bueno te cuento una sorpresa pero conservala en secreto todavia, sabes he formado mi propia

empresa comercializadora de café orgânico con OCIA NOP de EEUU 2006 y el proximo año 2007 con OCIA NOP-EU-JAS. te cuento estamos en un mega proyecto este mes de enero certificaremos 5mil hectarias a nombre de mi empresa el certificado al 100% sobre todo de las alturas de todo el valle de chanchamayo. Bueno esto resulto debido a que IFOAM TENGA MEJOR SUS POLITICAS DE COMERCIALIZACION Y EN TODO SUS TRANZABILIDADES. y tenemos tambien un mercado como para 32mil sacos de cafe organico para el mercado EEUU. asi que ya te imaginas la magnitud y bueno tambien estaremos en contacto para que vengas al lanzamiento para su apertura por que hay mucha espectativa para um desarrollo mejor.196 Tambien en la política esta que darle esa facilidad al productor y sus primas de acuerdo al mercado pero siempre superior al café convencional. bueno hermano sabes Cuidate

196 A Organic Crop Improvement Association (OCIA) é uma agência certificadora, sem fins-lucrativos, criada em 1985 nos Estados Unidos e que hoje em dia atua em mais de vinte países promovendo certificações com base em diversos selos, entre os quais se destacam: o United States Department of Agricultural/National Organic Program (USDA/NOP), o European Union 2092/91 organic regulations (EU 2092/91) e o Japanese Organic Agricultural Standards (JAS). Como dito anteriormente, para se vender um produto identificado como orgânico nos EUA, por exemplo, é preciso que o mesmo seja certificado com o selo USDA/NOP ou por outro aceito pelo departamento de agricultura. Isso também vale para o EU 2091/91 e o JAS em relação à União Européia e ao Japão, respectivamente. IFOAM é a sigla da International Federation of Organic Agriculture Movement (uma entidade fundada em 1972). “Los estándares de la IFOAM han sido la base sobre la cual se elebaroró el marco normativo legal de la Unión Europea en 1992 (CEE 2092/91), y posteriormente, en el año de 2000, el de los Estados Unidos de América (NOP), y en 2001, el de Japón (JAS)”. (Schwarz, 2005 p. 27)

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Un abrazo Saludos a la família Escribe pronto si puedes venir para el lanzamiento de ECOLOGIC CHANCHAMAYO SRL. MAS ABRAZOS HERMANON ATTE. Leonel. Retornei ao Peru no dia 15 de janeiro de 2006. Dois dias depois, me encontrei

com Leonel em La Merced, mais especificamente, no seu novo escritório, quase em

frente à Cooperativa La Florida (ele estava de férias do seu trabalho nessa cooperativa e

só retornaria dia primeiro de fevereiro). O imóvel estava em boas condições externas e

internas para os padrões locais. Nele residia um casal que também o utilizava como

escritório. Isso fazia com que compartilhassem o espaço com a empresa de Leonel e de

seu sócio Ernesto (um engenheiro e associado da La Florida que trabalhava nela como

“diretor de cafés orgânicos”).197 O nome da empresa (ou trading, como Leonel preferia

chamá-la) era Ecologic Chanchamayo, doravante denominada neste capítulo de EC.

Foto 41 - O escritório da EC (à esquerda) e a La Florida (em amarelo ao fundo à direita)

197 Numa outra ocasião, Leonel comentaria comigo que foi em setembro de 2005 que ele e Ernesto tiveram a idéia de “promover a certificação dos cafés de todo o vale de Chanchamayo em nome de uma trading”, além também de “trabalhar com cafés finos”. Segundo Leonel, durante uma reunião de filhos de sócios da Cooperativa La Florida, ficou acertado que estes jovens poderiam oferecer serviços “para terceiros”, tais como consultorias. Em outras palavras, essa reunião legitimou o empreendedorismo destes jovens perante os outros sócios da cooperativa. Mesmo porque, como me disse o gerente da La Florida, esta entidade não tinha capacidade de empregar a maioria dos filhos dos associados.

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Durante nossa conversa inicial, transmiti a Leonel minha satisfação e surpresa

diante do seu empreendimento, apesar dele ter me informado do mesmo através de um

correio eletrônico. Ele reiterou sua posição de que eu também fazia parte do projeto e,

mais concretamente, me convidou para participar, em nome da EC, de um curso básico

de degustação de café em Lima, ao custo (as despesas seriam por minha conta) de 100

dólares.198 Ainda nessa conversa, após questioná-lo se tudo ia bem com sua família, me

disse que se encontrava brigado com seu pai, por conta de uma discordância em torno

da venda de um terreno no nome deste; um local cuja fauna e flora Leonel dizia querer

preservar. Achei isso bastante significativo, em se tratando da sua preocupação em

demonstrar um comprometimento ambiental. Caminhando com ele dois dias depois pela

cidade, acabei presenciando-o atirando na calçada (bastante suja por sinal) uma garrafa

de plástico, logo depois de ter bebido seu conteúdo. O advertiria e o mesmo ressaltaria

seu “erro” em seguida.

Fomos então até a Cooperativa La Florida onde, para minha surpresa,

encontraria com Edson (o jovem dirigente da Cooperativa do Vale de Santa Cruz que

havia conhecido no ano anterior). Também me surpreenderia com seu convite para que

participasse de uma propaganda de rádio, na qual deveria ressaltar, “enquanto um

estrangeiro”, o sabor do café dos produtores de sua cooperativa. Isso, segundo ele,

198 O curso seria realizado na Escuela de Catación do Instituto de Cafés Sustentáveis do Peru (ICS-PERU). Este instituto é uma organização não-governamental, criada em 2004, por três norte-americanos donos de uma empresa privada de nome Jungle Tech, especializada na comercialização de cafés gourmets. Essa empresa obteve, em 2005, o valor médio de exportação de café mais alto do Peru. “Essa é a nossa melhor propaganda”, me diria um de seus donos assim que o conheci. O ICS-PERU publica mensalmente uma pequena revista chamada Prensa de Café. Em cima da mesa de Leonel, encontrei a edição de outubro de 2005 dessa revista. O “torrefador do mês” entrevistado era George Howell, uma das estrelas da Associação Norte-Americana de Cafés Especiais. Segundo ele, “apenas uma grande qualidade consegue preços elevados, não embalagens bonitas, nem um romance ou grande causa, somente a qualidade”. Depois de comentar a dificuldade do Peru em competir com o Brasil em termos de produtividade do café, Howell atacou o comércio justo: “alguns produtores sortudos cujas cooperativas fizeram amplos contratos de comércio justo, fixando assim seus preços acima dos custos de produção, podem sentir-se agradecidos durante os tempos de crise, pois de outro modo estariam desesperados (...) mas facilmente podem se sentirem ressentidos durante as melhores condições do mercado, quando os mesmo contratos de suas cooperativas os impedem de aumentar seus ganhos em uma temporada.”

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chamaria a atenção dos agricultores de sua região com relação à importância desta

entidade. A falta de confiança dos cafeicultores diante desse empreendimento baseava-

se, em grande medida, no fato de terem sido enganados anteriormente, ao participarem

de uma experiência semelhante coordenada por uma empresa privada exportadora que

acabou não cumprindo com o que lhes havia prometido.

Acordei de manhã, no dia seguinte, e transferi minha bagagem para um misto de

motel e hospedagem que se tornaria meu alojamento principal em La Merced. Depois,

me dirigi até o escritório de Leonel e o encontrei conversando com outras pessoas

ligadas à La Florida. Todos queriam ver o livro sobre a cafeicultura que trouxe do Brasil

e lhe dei de presente. Também me perguntaram bastante sobre o café brasileiro. Após o

almoço, acompanhei a reunião de Leonel com Clélia, a gerente da Cooperativa

Sangareni. Essa cooperativa estava localizada em San Martín de Pangoa, um distrito da

província de Satipo, uma das três províncias que conformam a selva central. Leonel se

colocava como o seu “assessor gerencial”; esta seria sua primeira assessoria em nome

da EC.

Foto 42 – A reunião com Clélia

Ele começou a reunião falando sobre o “plano de desenvolvimento integral” que

produzira para a Cooperativa Sangareni. Este documento deveria ser entregue para o

presidente da Corporação Café Peru (junto da carta na qual a cooperativa pedia sua

filiação à corporação). Tal plano (para o quatriênio de 2006-1010) consistia em cinco

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páginas, as quais Leonel ainda modificava tanto na véspera quanto durante a reunião

com Clélia. O preço da assessoria era de 2.000 soles: “afinal, tenho os cursos no

Panamá e na Argentina”, me explicaria Leonel mais tarde. Este plano continha, de

acordo com que ia sendo exposto para Clélia, “metas para cada departamento da

cooperativa”, tais como o comercial e o agrário, por exemplo. Ele comentou comigo,

logo após a saída de Clélia, que este “plano de desenvolvimento” que havia feito para a

Cooperativa Sangareni era igual ao que estava fazendo para a Cooperativa do Vale

Santa Cruz (de Edson).199 Isso significava que esta última cooperativa seria a segunda

entidade a ser assessorada pela EC. Ambos os documentos tinham como propósito o

ingresso destas cooperativas na Corporação Café Peru.

Na tarde do dia seguinte, fui com Leonel até a Caja Municipal Huancayo, uma

entidade financeira de porte nacional.200 Ele estava interessado em ter um mecanismo de

transferência de dinheiro entre La Merced e Pichanaki, dado o risco de seu transporte

pelo caminho, aproximadamente oito milhões de soles durante a campaña (safra),

segundo me disse. Isso porque pretendia montar um armazém para a EC nesta última

cidade (tendo em vista o recebimento dos cafés dos produtores que estavam sendo

certificados em nome da sua empresa). Conversando com a caixa e depois com o

gerente e o técnico agrícola do banco, Leonel pôde discorrer sobre a necessidade de um

“crédito de pré-colheita” para os produtores. O técnico ressaltou que existiam

199 Segundo me disse numa outra ocasião, “a Café Peru apóia com motos, técnicos, mas não oferece experiência de mercado.” Ainda do seu ponto de vista, “as cooperativas não têm o costume de se capacitarem; a EC aproveita as regiões carentes e proporciona uma certificação rápida, e a EC tem uma gestão mais rápida que a Café Peru.” 200 A outrora principal instituição financiadora da agricultura no país, o chamado Banco Agrário, funcionou até 1992 enquanto uma importante agência pública de fomento agrícola. Contudo, concentrava seus investimentos na região costeira e, conseqüentemente, nos cultivos próprios dessa zona (açúcar, algodão, arroz e milho, por exemplo). Com o fim desse banco, a agricultura peruana passou a contar com uma oferta de crédito bastante escassa. Apenas 3% das carteiras dos bancos peruanos se dirigem para o setor agropecuário, principalmente para a costa. As Caixas Rurais e Municipais de crédito se constituem numa segunda alternativa de financiamento para os agricultores, com relação ao montante de recurso disponível. Outras opções são as organizações não governamentais e empresas privadas. Ver La Oferta Financiera Rural en el Perú (Trivelli et alli, 2004)

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agricultores que se utilizavam do AgroBanco (o banco estatal que, numa escala bem

menor, substituiu o Banco Agrário), mas “aí o crédito demora e é muito afetado pela

política, ainda mais agora nas eleições”. Já o gerente advertiu para um custo de

transferência de 0.5%, dependendo do volume transferido entre a agência da Caja

Municipal Huancayo localizada em Pichanaki e a de La Merced (“pois pode

desestabilizar o banco”, apontou). “Só vamos trabalhar com os (produtores)

certificados”, comentou Leonel sobre aqueles que deveriam receber os empréstimos,

apesar do fato das certificações serem irrelevante para a concessão dos créditos.201

Essas certificações (dos cafeicultores) teriam custado a ele US$ 3.500, “pagos

pela EC com o apoio das associações”, me comunicou logo após sairmos do banco.202

Durante nossa permanência neste estabelecimento, pude notar o desconforto dos

agricultores dentro dele. Tudo lhes parecia estranho. Mesmo algo aparentemente

simples como a retirada de uma senha era um motivo para se sentirem desconfortáveis.

Apesar de toda a paciência dos bancários, os produtores saíam demonstrando

claramente não ter entendido o que os funcionários lhes explicavam, como era o caso,

por exemplo, dos trâmites para a retirada de um empréstimo. A familiaridade de Leonel

com os procedimentos burocráticos era algo que se colocava como um capital

importante para intermediar as relações comerciais dos cafeicultores.

No dia seguinte, por volta do meio dia, Leonel apareceu na minha hospedagem

e, como combinado anteriormente, seguimos para Pichanaki. No caminho, me informou 201 A Caja Huancayo dava crédito de pré-colheita de US$ 1000. O título de propriedade da chacra deveria ser apresentado para garantir o empréstimo. 202 Chegando ao escritório da EC, encontramos com Otavio Cárdenas e sua esposa na calçada em frente ao imóvel. Ele era presidente da Associação Aspa Café. Esta associação estava localizada em Alto San Juan, um povoado situado na margem direita do rio Perene (os sócios da Cooperativa La Florida estavam na margem esquerda), e tinha 46 sócios e 9.000 quintais de café produzidos este ano (7.000 certificados como orgânicos e 2.000 “em transição”, no caso, vendidos sob o selo Utz Kapeh). Otávio possuía em mãos um documento a ser entregue na prefeitura de La Merced, com o intuito de pleitear um terreno do município para a construção do armazém da associação. Ele contou que muitos de seus sócios não tinham os documentos necessários para o crédito bancário. Mais tarde na Cooperativa La Florida, observaria dois técnicos catalogando no computador os associados sem os documentos necessários para um dado financiamento.

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que as plantações de café que não foram fertilizadas com produtos químicos, no ano

anterior, poderiam ser certificadas, já nesse ano, como orgânicas pelo certificado do

ministério da agricultora dos EUA (o selo também conhecido através da sigla

Usda/Nop). As certificações seriam em nome da EC e estavam sendo feitas através da

agência certificadora Ocia, tal como ele havia me informado através de um correio

eletrônico. No distrito de Vila Rica, 70% das chacras se encontrariam quimicamente

fertilizadas: “não dá para trabalhar com eles”, segundo Leonel. Ele também citou o

nome de três localidades onde seria possível encontrar um bom beneficiamento do café,

“algo raro em toda a selva central”, de acordo com suas próprias palavras. Nestas

regiões se encontravam justamente os produtores que deveriam vender seus cafés

através da EC e que, conseqüentemente, estavam sendo certificados em nome da

empresa de Leonel.

Ele me falou de um amigo seu de infância chamado Julio. Este era funcionário

da empresa Jungle Tech (JT) e, assim como Leonel, era filho de um conhecido sócio da

Cooperativa La Florida (os pais de ambos participaram da chamada “refundação” da

cooperativa em meados dos anos 90). “Julio pode fazer a interconexão com as

torrefadoras de cafés especiais nos EUA”, comentou comigo. Ainda segundo ele, este

seu amigo seria capaz de lhe fornecer os compradores para todos os “cafés finos” que

conseguisse. Contudo, o número de “cafés finos” a serem vendidos iria depender

daqueles que tivessem suas amostras aprovadas no “teste de taça” feito pelos

funcionários da JT. Tratava-se de uma avaliação sensorial em torno das qualidades do

café já pronto para o consumo e que se baseava nos critérios da Associação Norte

Americana de Cafés Especiais (SCAA). Esse sistema de classificação tendia a ser

realizado através de um procedimento envolvendo pessoas devidamente credenciadas

pela SCAA. Os cafés finos ou gourmets eram aqueles que recebiam 80 pontos ou mais

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numa escala de 100.

A rede de amizades de Leonel com os filhos de sócios da La Florida, como é o

caso de Julio, se colocava como um capital crucial para a realização das suas ambições.

Como deve ficar evidente ao longo desse capítulo, suas relações pessoais se mostraram

fundamentais dentro de sua trajetória profissional. Mesmo porque, em se tratando da

selva central, e na esteira das colocações de Shoemaker (1981), pode se dizer que o fato

da ocupação maciça dessa região ter sido feita recentemente, e por sujeitos dos mais

variados lugares da cordilheira andina, fez com que a desconfiança se colocasse como

uma mediação bastante presente nas relações entre seus habitantes. No caso de Leonel,

deve-se também levar em conta que grande parte de seus amigos passaram o ocupar

cargos de destaque em entidades que trabalhavam com o comércio de café. Em outras

palavras, ele não apenas tinha uma ampla rede de contatos com as pessoas da região

como parte destes contatos era com agentes importantes dentro do processo de

comercialização desse grão.

Chegamos à cidade de Pichanaki e Leonel foi prontamente se encontrar com

alguns dirigentes de organizações de produtores. Entre estes estava o jovem gerente (e

também presidente, como eu viria saber depois) da Cooperativa do Vale de Santa Cruz,

além de outros produtores ligados à Cooperativa La Florida que trabalham em outras

entidades ou as assessoram. Leonel os informou sua posição de que a EC deveria

centralizar o “controle de taça” dos cafés que iria comercializar. A organização católica

Caritas teria os equipamentos dos quais necessitariam para esse tipo de controle, os

informou Leonel utilizando constantemente a expressão “cadeia produtiva” para

destacar a natureza da integração entre produtores e compradores através da EC. Os

equipamentos necessários para a avaliação sensorial dos cafés eram, na verdade,

miniaturas daqueles encontrados numa empresa torrefadora do grão. Como exemplos

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podem ser citados o descascador e a própria torrefadora, sem falar nas máquinas para

preparar o café torrado e os copos (as “taças” ou “xícaras”) e demais utensílios usados

na degustação.

Conversei com Leonel no almoço, ainda em Pichanaki.203 Ele comentou que a

Cooperativa La Florida “se posiciona mais em comércio justo do que em gourmet”.

Sobre a Corporação Café Peru, afirmou que ela era tanto um broker quanto um

processador de café para a exportação (através de sua planta em Callao). No caso da

EC, esta teria 30.000 quintais de café certificados em seu nome. Segundo ele, os

produtores não tinham dinheiro para certificar sozinhos. As certificações (feitas em

nome da EC) custaram US$ 10.000 e os técnicos (quase dez) da Cooperativa La Florida,

responsáveis por preparar os produtores para a vinda dos inspetores da agência

certificadora, teriam feito um “extra”.204

Leonel também me disse que sabia que a Jungle Tech trabalhava com “cafés

finos”; ele apenas não tinha conhecimento de suas políticas. Encontrou com Julio, por

acaso, através de um serviço de mensagens instantâneas pela internet em dezembro de

2005, quando então foi convidado para ir até Lima. Chegou lá no dia 10 de janeiro e

puderam assim conversar pessoalmente. Julio lhe explicou a respeito da “política de

trabalho” da Jungle Tech: dois membros da EC teriam que se capacitar no controle de

qualidade e esta entidade deveria ter uma “constituição” (algo que a EC possuía). Já

Leonel teria lhe dito que tinha em mãos cafés certificados como orgânicos; Julio o

comunicou que “tanto orgânico quanto não-orgânico são vendidos pela Jungle Tech”.

“A Jungle Tech posiciona o café dela”, comentou comigo Leonel entusiasmado com o

203 Nesse dia, domingo, 22 de janeiro, ocorreriam diversas manifestações de agricultores pelo país contra a votação no congresso de um imposto de 1,5% sobre as transações comerciais agrícolas registradas legalmente. “Os comerciantes intermediários vão sair ganhando com este imposto”, me confidenciou o presidente da Corporação Café Peru, um sujeito bastante próximo de Leonel. Esse imposto acabou não vingando por ser inconstitucional, na medida em que pode ser confiscatório, caso ao ser somado aos custos de produção de um bem, exceder o valor recebido pelos seus produtores. 204 Ernesto (o sócio de Leonel) era o responsável por coordenar os técnicos da Cooperativa La Florida.

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exemplo dessa empresa.

Ele também me contou que a EC não entraria no chamado “raio de ação” da

Cooperativa La Florida, isto é, não trabalharia, “por questões políticas”, com os

produtores situados nessa região. Assinalou que sua empresa possuía 20.000 sacas que

seriam destinadas à Corporação Café Peru que, por sua vez, não compraria café como

sendo de tipo gourmet, “mas os vende enquanto tal”, sublinhou para logo em seguida

completar: “a Corporação Café Peru paga de acordo com a Bolsa de Nova Iorque”. Para

a Jungle Tech, pretendia vender 5.000 sacas, enquanto “cafés finos”, isto é, gourmet, a

um preço de US$ 150 a saca. Outras 5.000 sacas ele disse que queria vender como

gourmet para as empresas que estavam numa folha chamada Lista de compradores y

tostadores de café amigable con las aves Bird Friendly.205 Enviamos juntos quatro

correios eletrônicos (ele já havia mandado um antes) para as empresas listadas nessa

folha. Acontece que ele preferiria vender para essas empresas o café que poderia ser

escoado pela Corporação Café Peru. Além das 30.000 sacas certificadas, falou que tinha

a disposição 20.000 sacas não-certificadas, “metade gourmet”, especulou. No total,

estariam envolvidos 520 produtores de oito “zonas” diferentes. “Todos são cafés de

altura, sinônimo de cafés de qualidade,” de acordo com suas palavras.206

Os “cafés finos” ou “gourmet” realmente instigaram Leonel. Certamente era

algo que não fora priorizado pela Cooperativa La Florida. Isso parecia incutir certa

205 Lista esta que Leonel imprimiu de uma página eletrônica da internet. 206 No dia seguinte, domingo, 22 de janeiro, assisti com Leonel pela televisão, durante nosso almoço num restaurante, à posse do presidente boliviano Evo Morales. Nesse seu discurso, Morales comentou que os investimentos no país deveriam entrar como “sócios do Estado” e logo em seguida criticou o “neoliberalismo”. Também apontou para a necessidade do “fortalecimento das cooperativas mineradoras”. Ele parecia evocar uma narrativa basicamente contraria àquela associada ao governo que o procedeu. Leonel se mostrou um simpatizante de Morales e também apoiador da candidatura de Ollanta Humala para a presidência do Peru (com uma plataforma política bastante similar à do presidente boliviano). Dizia se preocupar enormemente com a exploração dos peruanos mais pobres. Logo após as eleições e a subseqüente derrota de Humala, me confessou que o Peru saiu ganhando com esse resultado. Isso porque passou a considerar que a política tenderia a atrapalhar, mais do que a ajudar, a realização dos investimentos econômicos; nesse sentido, o governo nacionalista e estatizante proposto por Humala seria um atraso para o país.

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originalidade ou distinção aos seus interesses comerciais. Ele via um horizonte ainda

pouco explorado e no qual justamente poderia se destacar. Mas essa sua empolgação

inicial deveria, contudo, encontrar um respaldo na realidade: precisaria não só ter em

mãos os cafés dos produtores como também torcer para que fossem aprovados pelos

funcionários da JT ou de outra empresa que trabalhasse com cafés gourmet. As

assessorias à Cooperativa Sangareni e à Cooperativa do Vale de Santa Cruz eram o que

até então havia garantido uma remuneração através da EC. Caberia a ele construir as

condições para poder comercializar os cafés. Em outras palavras, deveria colocar em

prática o que havia aprendido, principalmente, durante seu contato com a Cooperativa

La Florida.

A novidade dos “cafés finos” fazia sentido, num primeiro momento, na medida

em que foi através do comércio justo regulado pela FLO que o discurso da qualidade

passou a ser legitimamente aceito no âmbito desta cooperativa; a própria qualidade dos

cafés vendidos foi o diferencial que a permitiu se destacar perante os compradores

credenciados pela FLO. Por outro lado, o fato da Corporação Café Peru não comprar

café gourmet, mas vender os cafés que, por ventura, pudessem ser classificados desse

modo, fazia com que se colocasse como um canal que Leonel não gostaria de usar caso

fosse escoar os grãos que aparentemente seriam capazes de produzir “uma taça de alta

qualidade”.

Como assinalado anteriormente, o comércio justo certificado pela FLO é um

mercado que prima pela qualidade dos cafés nele comercializados, mas que de modo

algum se trata de um mercado de cafés “finos” ou “gourmet”, como geralmente são

chamados os grãos que são diferenciados pela “qualidade da taça” que produzem. O

principal critério internacional de classificação de um café com base na sua degustação

é o da Associação Norte-Americana de Cafés Especiais. A Jungle Tech, através dos

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cursos da organização não governamental chamada Instituto Peruano de Cafés

Sustentáveis, procurava difundir esse critério, pelo qual esta empresa justamente se

baseava para comprar seus cafés, na medida em que aqueles para os quais revendia

esses grãos igualmente adotavam esse parâmetro.207 Existiam algumas organizações de

produtores filiadas à JNC que trabalhavam lado a lado com a JT, tendo em vista uma

ênfase na produção de cafés que podiam ser considerados finos. Outro exemplo era

Felix Marin, o gerente anterior da La Florida. Ele passou a dirigir uma cooperativa que

formou com seus irmãos e que, em 2004, conquistou o primeiro lugar no principal

concurso internacional de cafés gourmet. Este sujeito também assessorava uma

cooperativa situada numa região próxima daquela onde viviam os sócios da Cooperativa

La Florida e essa sua assessoria era igualmente pautada pela ênfase na “qualidade da

taça”. Em todos esses casos, o discurso mais usado para convencer os produtores a

adotarem uma série de práticas, tendo em vista uma “xícara de qualidade”, era o de que

o mercado de cafés finos era o que, sem sombra de dúvidas, oferecia uma melhor

remuneração.

Isso significa dizer que Leonel também se encontrava inserido num contexto

mais amplo dentro do qual os cafés gourmets passaram a ficar em evidência entre as

organizações de produtores. Nesse sentido, pode-se dizer que sua experiência junto à

Cooperativa La Florida lhe sensibilizou para uma tendência que deveria crescer ainda

mais entre estas organizações, apesar desta cooperativa não canalizar seus produtos

como cafés finos e a Corporação Café Peru não remunerar como tais os cafés que

vendia sob este rótulo. É verdade que os cursos que Leonel fez no Panamá igualmente

ajudaram a moldar suas disposições comerciais na direção dos mercados que primavam

pela qualidade. Contudo, para além dos cafés finos ou gourmet, tanto o comércio justo

207 Essa difusão desse critério não significa um credenciamento dos produtores à Associação Norte Americana de Cafés Especiais. Trata-se apenas de uma sensibilização destes diante daquilo que seria o padrão de julgamento do café “em xícara”.

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regulado pela FLO quanto os cafés certificados como orgânicos estariam no centro de

suas estratégias comerciais. Não era à toa que ele e Ernesto (seu sócio) tivessem

investido suas economias para certificar os cafés de um grande número de produtores

com o selo outorgado com base nos critérios de agricultura orgânica do departamento de

agricultura dos EUA. Restava apenas a Leonel colocar seus ideais em prática através de

sua empresa, o que o levou, inclusive, a se informar a respeito da possibilidade da EC

ser certificada dentro do comércio justo regulado pela FLO (esse episódio aparece mais

à frente no texto).

O curioso é que até então Leonel não cogitara escoar os cafés através das

empresas privadas exportadoras. A Jungle Tech era um caso especial, na medida em que

nela não só trabalhavam pessoas próximas do universo cafeicultor e “cooperativista”,

como também era uma entidade que se confundia com uma organização não-

governamental que atuava em prol da conscientização dos agricultores diante dos cafés

gourmet.208 Ela não era assim associada ao sistema padrão de comercialização de café

no país e que era comandado pelas empresas privadas exportadoras que trabalhavam

majoritariamente com os chamados cafés convencionais, apesar de também

comercializarem, numa escala bem menor, produtos certificados como orgânicos ou

sostenibles e cafés gourmets.

Leonel poderia, por exemplo, entrar nesse sistema padrão como um comerciante

intermediário, ou seja, comprando café dos produtores e os revendendo para as

exportadoras privadas. Isso implicaria em ter investido seus recursos somente na

aquisição de cafés convencionais, em vez de tê-los usado na certificação dos produtores.

Mas essa alternativa de investimento certamente não seria vista com admiração pelos

gerentes das organizações de produtores e era como um destes que Leonel também

208 Em 2005, a Jungle Tech exportou 1.300 quintais de café. A Perhusa, a entidade que mais exportou esse ano, movimentou um total de 373.600 quintais, seguida pela COINCA com 331.000, Comercio & Cia com 295.000 e COCLA com 185.500. (JNC, 2005)

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gostaria de ser reconhecido. Sem falar que no universo social, por excelência, onde essa

categoria profissional é reconhecida, ou seja, no âmbito da Junta Nacional do Café, era

improvável encontrar a presença de um comerciante intermediário. Em outras palavras,

a valorização das habilidades profissionais de Leonel dificilmente encontraria um

respaldo caso adotasse o comportamento tipicamente associado a um comprador de café

e passasse, dessa maneira, a vender o grão às empresas privadas exportadoras.

É verdade que, como comentado acima, as grandes empresas privadas

exportadoras também comercializam cafés certificados como orgânicos ou sostenibles e

de tipo gourmet. No caso dos primeiros, assim como as demais entidades, elas os

remuneravam de acordo com um valor chamado plus (acréscimo, em inglês) que era

somado ao preço corrente do grão no mercado convencional. Este valor adicional era

variável de acordo com a oferta e a procura dos cafés certificados como orgânicos.

Acontece que antes dessas empresas aparecerem como uma opção para Leonel, ele

precisaria primeiro estar seguro de ter suficientemente explorado os canais de

comercialização mais compatíveis com os ideais que permeiam o chamado setor

cooperativista peruano (a próxima seção trata justamente da história desse

“movimento”). Dito de outro modo, ele deveria fazer primeiramente aquilo que lhe

parecesse como o comportamento mais natural de ser feito nesse universo social. Só

depois de ter tentado esse caminho, e não ter encontrado os resultados esperados, é que

poderia vender diretamente para as empresas privadas exportadoras. De qualquer

maneira, seu comprometimento com os mercados de cafés especiais era bastante

indicativo da intensidade com a qual havia incorporado a ênfase do setor cooperativista

em torno dos mercados de nicho.

Se, por um lado, Leonel encontrava dificuldade em exercer o cargo de gerente de

uma organização de produtores, através de seu empreendimento particular ele poderia,

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pelo menos, atuar de acordo com o que via como o comportamento padrão de um

gerente reconhecido no setor cooperativista. A aceitação de sua empresa dentro desse

setor era algo que dependeria justamente de que empreendesse toda uma reelaborarão

do papel de um comerciante privado. Isso porque ele gostaria de ser reconhecido de

uma determinada maneira que somente poderia ser validada no âmbito do setor

cooperativista. Era isto o que estava em jogo para Leonel e não apenas seu desejo de

ganhar dinheiro. A questão seria não desafiar a legitimidade dos gerentes das

organizações de produtores, mas sim se colocar numa posição complementar à deles,

caso não viesse a ocupar esse cargo. Por conta disso, era evidente que, de qualquer

modo, deveria adotar o comportamento esperando desses sujeitos, ou seja, inserir os

agricultores nos mercados de cafés especiais. A seguir apresento um breve histórico do

setor cooperativista e procuro mostrar as condições que levaram o cargo de gerente a se

destacar no âmbito das organizações peruanas de cafeicultores.

4.7 Da FENCOCAFE à JNC

No dia 3 de outubro de 1968, as forças armadas peruanas deram um golpe de

estado e conduziram ao poder o general Juan Velasco Alvarado. Como que

identificando, logo de cara, a suposta natureza nacionalista desse movimento político,

os militares tomaram as instalações e o controle de uma empresa petrolífera estrangeira,

um ato que culminaria, no ano seguinte, com a criação da companhia estatal

PETROPERU. Além de promover a proliferação de empresas públicas, o novo regime

instaurado no país procurou combinar uma política de “industrialização por substituição

de importações” com o incentivo do cooperativismo por todo o território nacional.

(Contreras & Cueto, 2004 p. 326) Essa estratégia reformista e autoritária significou,

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segundo estes autores, uma concretização das reformas que os partidos, notadamente,

APRA e Ação Popular, haviam prometido, mas não conseguiram realizar nos anos

anteriores.

O golpe militar de 1968 se deu num momento em que emergiam, por todo o

país, diversas cooperativas organizadas pelos produtores de café. Essas organizações

estavam sendo criadas desde 1965; em dezembro de 1964 havia sido promulgada a lei

que as reconhecia enquanto entes jurídicos. Essa lei se assentava, de acordo com

Contreras & Cueto (idem), no ideário cooperativista próprio do Partido Aprista Peruano

(também conhecido pela sigla APRA).209 Inicialmente, o governo golpista, no seu afã de

ir contra qualquer suposta oligarquia, determinou que as cooperativas tivessem

preferência na exportação de café, em detrimento dos chamados agentes privados. Isso

significou, na prática, que as organizações de produtores detivessem a exclusividade das

vendas externas entre os meses de abril e dezembro; somente nos meses restantes os

comerciantes poderiam exportar.

A Central de Cooperativas Agrárias Cafeicultoras “Café Peru” (ou simplesmente

“Central Café Peru”) foi uma “organização de segundo grau” da qual fizeram parte

diversas cooperativas de todo o país e que fora criada em 1969 pelos representantes de

oito dessas entidades. 210 Essa central chegaria a agrupar 64 cooperativas (num total de

26.000 produtores) e comercializar quase a metade do café peruano (o que veio a fazer

dela a maior central do país). Outras centrais de organizações de produtores haviam sido

criadas mesmo antes do golpe de 1968. Todas estas instituições, apesar de poderem

abarcar cooperativas dos mais distintos lugares do país, estavam identificadas com os

209 Aliança Popular Revolucionária Americana. 210 As informações presentes a seguir baseiam-se nas edições da revista Café Peru: Órgano Informativo de la Central de Cooperativas Agrarias Café Perú Ltda. 364.. Tive acesso a todos os seus exemplares e os quais se encontravam reunidos nas dependências da Central de Organizações Produtoras de Café e Cacau do Peru – “Café Peru”. Também chamada de “Central Café Peru”, assim como a Central de Cooperativas Agrarias Café Perú Ltda. 364, trata-se de uma organização surgida, em 2000, justamente através do desmembramento desta antiga instituição.

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cafeicultores de uma determinada região. De qualquer maneira, a importância das

centrais evidentemente ganhou um maior relevo diante do privilégio concedido pelo

regime golpista às organizações de produtores em relação à exportação. Contudo, esse

privilégio seria revisto com o estabelecimento do monopólio estatal nas vendas externas

de café em 1974 e que colocou o comércio exterior desse grão sob responsabilidade de

uma empresa pública.

Essa reviravolta na política do governo, em relação ao comércio de café, fez com

que as centrais de organizações de produtores se concentrassem no provimento de

serviços ligados ao processamento do grão. Mas essa mudança, no papel comercial

desempenhado pelas centrais, não impediu que continuassem a congregar a maior parte

das cooperativas do país e nem que estas últimas permanecessem como as principais

fornecedoras dos produtos vendidos ao exterior.211 Isso porque a empresa estatal,

responsável pela exportação do café, comprava-o preferencialmente das organizações de

produtores e estas, na sua grande maioria, o processavam nas centrais às quais se

encontravam filiadas. A proposta de criação, em 1977, de uma entidade nacionalmente

representativa por parte dos cafeicultores peruanos estaria apoiada numa política

nacional em prol do cooperativismo. Seria com base nesse ideal que poderiam justificar

suas demandas perante o governo e, conseqüentemente, se contraporem às investidas

dos agentes ditos privados.

Entre os dias 17 e 22 de outubro de 1977 realizou-se na cidade de La Merced a

VI Convenção de Cooperativas Agrárias Cafeicultoras. Este evento reuniu diversas

cooperativas e as cinco centrais de cooperativas do país. As principais decisões que

resultaram desse encontro foram: 1º) a criação de uma entidade representativa das

organizações peruanas de cafeicultores; 2º) o estabelecimento de um “banco

211 Durante todo o regime militar, não menos do que 80% dos cafés exportados pelo Peru saiu das organizações de produtores.

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cooperativo cafeicultor” com base no “Fundo do Café” (criado através de um decreto de

1973 e sob responsabilidade da empresa estatal que, no ano seguinte, viria a ser

encarregada da exportação do grão).212 A primeira deliberação seria concretizada com a

fundação da Federação Nacional de Cooperativas Agrárias Cafeicultoras do Peru

(FENCOCAFE) no dia 7 de abril de 1978. Desta federação fariam parte as cinco

centrais de organizações de produtores e mais de duzentas cooperativas. Já a segunda

resolução nunca se efetuaria, apesar dos esforços dos cafeicultores em controlar o

destino dos recursos do Fundo do Café.

Ao longo dos anos, o monopólio estatal na exportação de café, iniciado em

1974, passou a ser ora criticado, ora apoiado pela FECONCAFE.213 Em 1979, por

exemplo, esta entidade o atacou devido à indicação, por parte do governo, de um

sujeito, vinculado ao comércio privado de café, para a gerência da empresa pública

responsável pela exportação do grão. Essa indicação pôde ser contornada e substituída

por outra aprovada e festejada pelos cafeicultores. Os produtores também conseguiriam,

ainda nesse mesmo ano, que os recursos do Fundo do Café fossem canalizados para o

banco estatal de fomento à agricultura (Banco Agrário). Isso significou a abertura de

uma linha mais ampla de credito para os custos que antecedessem e envolvessem a

colheita do café. Esse financiamento perduraria durante os próximos anos.

O início da década de 80 marca o fim do regime militar e o conseqüente retorno

de um governo civil através da volta de Fernando Belaúnde à presidência (depois de ter

sido deposto pelo golpe de 1968). Esse seu novo governo, de tonalidade tão liberal

212 O patrimônio desse fundo advinha de uma taxa aplicada às exportações de café. 213 Como dito no capítulo anterior, o antropólogo norte-americano Robin Shoemaker realizou um trabalho de campo junto aos cafeicultores da selva central peruana entre os anos de 1973 e 1975. Sobre a monopolização da exportação, pelo governo, a partir de 1974, este autor aponta para o fato de que “while approving of the cooperative system in principle, the government delegated all of the powers that colonists seek to the state marketing agency, EPSA. An autonomous cooperative with authority to market its member’s produce is clearly not what the military government wanted. Most farmers felt that the cooperative was doomed to become a purchasing agent for EPSA rather than a market force in its own right. These are the only terms under which the state would agree to recognize the local farmer’s cooperative. (Shoemaker, 1981 p. 233)

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quanto o primeiro, acabou com o monopólio estatal na exportação do café e, dessa

maneira, criou as condições para que os comerciantes que atuavam no país passassem a

vender o produto diretamente ao exterior.214 A reação das organizações de produtores

não poderia ser mais negativa (o governo de Belaunde inclusive as taxou com os 18%

de imposto que recaia sobre as demais entidades comerciais). Mas suas pressões para

que o estado continuasse monopolizando o comércio externo foram incapazes de

reverter as diretrizes governamentais.

Evidentemente que a liberalização da exportação do café peruano iria chamar a

atenção de outros agentes que não apenas aqueles que estavam envolvidos com o

comércio interno desse produto. Isso vale também para as empresas ou capitais

provenientes de países estrangeiros. Segundo me disse o presidente do grêmio da

empresas privadas exportadoras de café: “de 1981 até 1990, o negocio do café era ter

espaço nas cotas.”

Além de terem de disputar com os exportadores privados as cotas de exportação

que cabiam ao Peru dentro dos acordos internacionais de café que se sucederam ao

longo do tempo, as centrais de cooperativas também se viram envolvidas em inúmeras

batalhas para anular os impostos que recaiam sobre os cafeicultores. Tendo em vista

essa nova realidade dentro da qual as organizações de produtores deveriam competir em

pé de igualdade, pelo menos do ponto de vista jurídico, com as empresas privadas, em

maio de 1983 a Central Café Peru e a FENCOCAFE organizam o primeiro “encontro

nacional de gerentes e contadores das cooperativas agrárias cafeicultoras do Peru”. O

214 A retirada do Estado como ente exportador significou também um controle menos rígido da qualidade dos produtos exportados. Isso levou a um descrédito generalizado, por parte dos compradores estrangeiros, em relação aos cafés peruanos. A criação, em 1991, do grêmio das “empresas privadas exportadoras” teve como um dos objetivos reverter essa imagem negativa e suas conseqüências econômicas (como foi o caso do “desconto” que passou a ser aplicado aos grãos que saiam do país e que vigorou até 2005). Mas o que estava realmente em jogo nesse investida das empresas privadas, segundo me confidenciou o presidente desse grêmio, era o aprimoramento da qualidade de seus cafés para que pudessem competir com os exportados pelos países da América Central. Acontece que o café peruano e o advindo desses países são classificados internacionalmente sob uma mesma categoria: “outros suaves”.

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segundo encontro se realizaria em novembro de 1985. Esses eventos se deram numa

conjuntura na qual as próprias organizações de produtores buscavam adotar o que

definiram como sendo uma “gestão empresarial”. Tal conjuntura aparece refletida no

editorial da edição de agosto-setembro de 1986 da revista Café Peru e que tem como

título Mercado Inestable y la Competencia de Precios en la Compra de Café.

Reproduzo a seguir um trecho desse editorial:

En cuanto a las cooperativas también han cometido errores, quizás no todas, pero sí algunas en que los dirigentes que quieren decidir su comercialización a su manera, autorizando ventas sólo en los precios que ellos fijan, sin importarles para nada las situaciones cambiantes del mercado. En esta actividad se requiere ciertos conocimientos y experiencia. Se sabe que algunas cooperativas no han vendido ni el 50% de su café acopiado y siguen pagando intereses por los préstamos de comercialización todavía no amortizados.

A edição de janeiro-junho de 1987 da Café Peru introduz, pela primeira vez na

história dessa revista, a palavra “crise” para definir a situação vivida pelos cafeicultores

peruanos. Isso porque se tratava de um período onde os problemas no âmbito nacional

se conjugaram com uma queda acentuada nos preços internacionais do café. Apesar dos

avanços obtidos por algumas cooperativas, tal como pode ser percebido nas páginas da

Café Peru, em 1987 as empresas privadas exportadoras já respondiam por 77% das

exportações de café do país (os 23% restantes cabiam às organizações de cafeicultores).

Esse ano marcaria inclusive um dos mais amargos reveses experimentados pela

cafeicultura peruana: devido às mudanças no regime cambial feitas pelo governo de

Alan Garcia (1985-1990), as reconversões cambiais de um patrimônio de US$ 32

milhões do Fundo do Café acabariam resultando num montante de US$ 4 milhões. A

renovação do Acordo Internacional do Café (AIC), firmada em outubro de 1987,

estabeleceria um cenário mais favorável para as poucas organizações de produtores que

conseguiram se adaptar ao novo arranjo comercial do país. Mas a conjunção do governo

de Alberto Fujimori, que se inicia em 1990, com o fim do AIC em 1989 e a escalada na

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violência por parte dos guerrilheiros de extrema-esquerda, gerou um período no qual

mesmo as cooperativas mais estruturadas não resistiriam.

Fujimori creó un clima de desinstitucionalización, primero del Estado, luego de los sindicatos, de las federaciones y de las organizaciones de productores. El colapso fue total. Las cooperativas fueron acusadas de senderistas, comunistas, izquierdistas, ladrones, ineficientes... no faltó nada. En ese proceso se cayeron unas cuantas, quizás las que debieron caerse, pero nosotros seguimos adelante. Lo cierto es que el tejido social fue destruido. En 1993 tuvimos que empezar a reconstruir el sector del café. Primero nuestras organizaciones, demostrando que también sabemos ser empresas organizadas y eficientes. En un momento las cooperativas canalizaban el 80% del café que se producía en Perú, cuando estaban protegidas por el gobierno de Velasco, pero con Fujimori caímos a apenas el 2%. Desde allí reconstruimos nuestra organización. Fuimos los primeros en reagruparnos. Esto logramos concretarlo en un foro nacional que se llama Conveagro. La JNC es un gremio, no comercializamos ni un solo grano de café. Cada organización de base autónoma hace sus procesos de comercialización. Nosotros representamos los intereses del sector, representatividad que nos da nuestra presencia real en la base, entre los productores. La JNC es reconocida inclusive por aquellos que no están asociados a nosotros. (Hidalgo, 2005)

Essa colocação do outrora presidente da Junta Nacional do Café (JNC) aponta

para a trágica situação vivenciada pelas organizações de produtores diante do governo

de Alberto Fujimori. A liquidação do Banco Agrário, em 1992, significou o fim de uma

crucial fonte de crédito aos produtores (mesmo para aqueles que não tinham um título

de propriedade para dar como garantia de seus empréstimos). Isso certamente contou a

favor das empresas privadas exportadoras que dispunham de recursos financeiros

capazes de fornecer os tão necessários créditos para os custos que precedem e envolvem

a colheita. O conflito entre o governo e os movimentos guerrilheiros de extrema

esquerda, ao se concentrar principalmente nos rincões do país, tornou as condições de

vida nas zonas cafeicultoras ainda mais difíceis (não é à toa que muitos agricultores

abandonaram suas terras). Sem contar que os dirigentes das cooperativas, e seus

próprios associados, chegaram a ser vistos como adversários desses movimentos e, em

alguns casos, foram assassinatos por estes grupos.

Como dito anteriormente, a criação da JNC, em 1993, foi capitaneada pelas

quatro das cinco centrais de cooperativas que igualmente haviam formado a

FENCOCAFE (uma dessas cinco centrais tinha deixado de existir). Essa nova

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organização representou uma tentativa de congregar os cafeicultores peruanos em torno

daquilo que poderia ser colocado como uma saída para a trágica situação que vinham

enfrentando e que, como pode ser percebido, apresentava outros complicadores para

além da abrupta queda nos preços internacionais do café a partir de 1989. De qualquer

maneira:

A raíz de las caídas de las cooperativas se genera un oligopolio de empresas exportadoras que tenían el control, el dominio del mercado de café en el Perú. Eran pocas empresa – subsidiarias de transnacionales – y fijaban el precio. Estas empresas siempre habían existido, pero su dominio empieza en 1989, cuando el Convenio Internacional del Café, que asignaba cuotas a cada país productor, ya no se renueva. Con el convenio era posible cierto control sobre los precios del mercado mundial, y estos se mantenían más o menos alto. (Rivas, 2009 p. 8)

Tal diagnóstico de Cesar, enquanto atual presidente da JNC, acompanha sua

descrição da outrora relação habitual das organizações de produtores com as empresas

privadas exportadoras.

Eran muy pocas las cooperativas que exportaban directamente; en 93 quizá eran el 5%. Hasta ese momento, la mayor parte de las cooperativas eran básicamente acopiadoras; ponían el café, lo traían a Lima y se lo daban a otros. Recuerdo haber conversado con exportadores en esa época, y ellos me decían: “Nosotros podemos exportar porque tenemos la logística, la capacidad instalada y la información para explorar mercados y vender en las mejores condiciones nuestros productos. Los productores saben producir bien y creo que deben cumplir su labor. Zapatero a tus zapatos.” Pero yo creo que todos queremos ganar en la cadena, y como el que gana no se preocupa del agricultor – que es el que hace más esfuerzo -, entonces nos hemos visto obligados a salir nosotros mismos, los productores, a buscar mercado. (idem)

A essa sua descrição pode ser somado seu comentário a respeito da criação da

JNC enquanto um espaço institucional de congregação das organizações de produtores

que buscavam outras formas de canalizar seus cafés que não através das empresas

privadas exportadoras.

Luego de la desactivación de Fencocafe, las cooperativas vemos la necesidad de volver a tener una organización, pero más orientada al desarrollo. Así se constituye la junta, que aparece justo cuando las cooperativas empiezan a meterse en el negocio. La junta reforzó esta tarea capacitando a las cooperativas, trasladando conocimientos y experiencias buenas de un sitio para ponerlas en práctica en otros lugares. Por ejemplo, ellos decían: “Mira, La Florida tiene un

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contacto con una financiera en Europa; ustedes pueden tocar esas puertas también”. Para eso hay servido la Junta; y me alegra mucho, porque casi todas las cooperativas tienen créditos en las mismas financieras que nosotros tenemos. También sucede que las financieras dicen: “Como La Florida cumple, seguro que las otras cooperativas también.” Es una cadena que se ha ido jalando, y muchos de los clientes también son los mismos. Ellos dicen: “En el Perú hay buen café. Si ahora no tienen en el norte, entonces me voy al sur o oriente.” (idem p. 10)

Os acessos dos gerentes aos compradores estrangeiros não podem ser entendidos

sem levar em conta os próprios produtores e também outras pessoas que venham a

participar da intermediação desses contatos. Mas esse trabalho coletivo não impede que

o prestígio se concentre nas mãos dos gerentes por serem os que, notadamente, retêm a

“confiança” dos importadores. Isso faz inclusive com que releiam a história de suas

próprias organizações através da importância que supostamente tiveram nelas. A ênfase

que colocam no despreparo administrativo destas entidades no passado evidencia

justamente o relevo que veio a ser concedido ao cargo que ocupam.

Como assinalado, a figura do gerente já vinha ganhando destaque, entre as

organizações de cafeicultores, mesmo antes da criação desse grêmio. Isso se deu, por

exemplo, com as versões do “encontro nacional de gerentes e contadores das

cooperativas agrárias cafeicultoras do Peru”, em meados dos anos 80. Contudo, mesmo

nessa época, quando as organizações de produtores já enfrentavam, há algum tempo, a

concorrência dos agentes privados, os protagonistas dos principais encontros

envolvendo as cooperativas continuavam sendo os presidentes dos seus “conselhos de

administração”.215 Não é à toa que a carência de uma gestão “empresarial” começaria a

ser cada vez mais sentida.

É possível afirmar que, antes da criação da JNC, os protagonistas do movimento

cooperativista, no caso, os “dirigentes” das organizações de produtores, estavam mais

215 Isso também vale para aqueles que vieram a ocupar esse cargo na FENCOCAFE. Tais “presidentes do conselho de administração” nada mais são do que representantes dos produtores (eleitos em assembléias). Não se trata assim de uma escolha com base em qualquer critério eminentemente administrativo ou de gestão comercial.

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preparados para intermediar as relações dos produtores com o poder público e menos

para com o mercado. Como dito anteriormente, foram os filhos daqueles que cultivaram

o café ao longo das décadas de 70 e 80 que, a partir dos anos 90, vão formar a primeira

geração de cafeicultores que, em grande medida, teve acesso ao ensino superior.

Conseqüentemente, estes seus descendentes puderam ser devidamente preparados para

gerenciar suas organizações.

A Junta Nacional do Café também veio a se colocar como um canal para os

produtores canalizarem suas demandas ao poder público. Isso ficou particularmente

evidente durante a chamada “crise nos preços do café” que caracterizou a primeira

metade da década de 2000. Mas a inação governamental acabou enfatizando ainda mais

a importâncias das políticas comerciais das organizações de cafeicultores como um

meio privilegiado para atravessarem essa crise.216 Sem o apoio mais substancial do

governo, restava concentrarem suas energias nos novos mercados surgidos ao longo dos

últimos anos, em especial, no sistema de comércio justo regulado pela FLO.

4.8 Contatos

Leonel trocou diversos correios eletrônicos com um sujeito responsável pela

certificação da FLO.217 Numa dessas mensagens, perguntou sobre a possibilidade de se

216 A falta de apoio estatal pode ser visualizada através das distintas edições da revista publicada pela Junta Nacional do Café. Por exemplo, o editorial da sua edição de agosto de 2001 intitulava-se ¡Emergencia cafetalera!. O da edição de dezembro de 2002 era Ya no podemos esperar. Avanzamos, pese a la exclusión gobernamental foi o título do editorial de agosto de 2004. Contudo, apesar das ameaças da JNC, a pressão em cima do governo não chegou a resultar na mobilização dos cafeicultores em torno de manifestações de rua, ao contrario do que acontecia nos tempos da FENCOCAFE. Na revista Café Peru (1977-1988) abundam imagens dos produtores, ou pelo menos de seus representantes na FECONCAFE, protestando diante do palácio do governo, acompanhados de tratores e de diversas faixas onde se liam suas reclamações. Além disso, suas manifestações não se resumiam à capital do país, ou seja, também atingiam todo o território nacional. Isso aconteceu, por exemplo, nos vultosos protestos contra a política de liberalização da exportação de café que se inicia no começo da década de 80. Já na revista da JNC não se vê uma única foto dos cafeicultores protestando na rua. 217 O primeiro desses correios para a “FLO-CERT” Leonel enviou em 19 de novembro de 2005. O interesse dele era se informar a respeito da certificação da Nefloma (Asociación de Productores

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certificar uma “trading justa”. Como resposta este seu interlocutor lhe pediu para

contatar outra pessoa dentro da FLO, além de lhe dizer que “as políticas para

comerciantes são diferentes das dos produtores”. Também o sugeriu consultar as “regras

C dos Standards da FLO”. Leonel ficou muito contente com essa sua “descoberta”.

Contudo, alguns dias depois, ele recebeu a resposta da FLO, na qual estava escrito que

esta entidade “não certifica plantadores de café e também não certifica empresas de

assessoramento”. Com relação ao café, cacau e mel a FLO só certificaria pequenos

produtores organizados em cooperativas ou associações, as quais deveriam fazer suas

solicitações individualmente.218 Existia também a possibilidade de se certificar

estruturas de segundo grau legalmente formadas (como era o caso da Corporação Café

Peru, por exemplo). Leonel ficou bastante decepcionado com a resposta que recebeu e,

em seguida, escreveu-lhes dizendo que a EC era uma organização de segundo grau. A

FLO respondeu esse e-mail junto de um arquivo contendo uma folha para ser

preenchida.219 Ele prontamente preencheu e reenviou esse documento.

Segundo Leonel, “a FLO diminui o risco, com ela se tem boa possibilidade de

venda”. Vale ressaltar que também escrevemos em torno de quatro correios eletrônicos

para possíveis compradores de café, aos quais ofertávamos o produto. Um dos correios

era para a Elan Organic Coffees, cuja página web impressa Leonel recebeu na Jungle

Tech, junto de outra da Northwest Shade Coffee Camp e uma da Associação Norte

Negociaciones Flor de Maria), de Pichanaki. Vale lembrar que a FLO-CERT é o “braço” da FLO responsável pela pelas certificações. 218 “Com relação a flores e algumas frutas podemos certificar plantações sobre padrão de trabalho contratado”, estava escrito no correio eletrônico enviado pela FLO. “Esteja consciente de que a certificação é quase impossível se sua organização não pertence aos três tipos principais: 1- Entidade legal em mão de trabalhadores (Cooperativa, associação, ...), 2- Plantação, 3- Fábrica”, também aparecia nessa mensagem. 219 “Nos puede mandar outro formato de solicitud en el que son una asociacion legal/ organizacion de techno en manos de pequenos productores. Entonces pode mandar el cuestionário y puedes ver si (...) caben en esta categoria.”, estava escrito no e-mail vindo da FLO.

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Americana de Cafés Especiais.220 Na mensagem para a Elan Organics Coffees ele

escreveu:

Mi cordiales saludos y ala vez aprovecho manifestarle sobre los cafés orgânicos NOP-USDA que tenemos em la selva central y nos encataria trabajar com ustedes em la comercializacion a travez de su empresa Élan Organic Coffee, por que los cafés son en general muy buenos hay um total de 70 contenedores para esta campana.

Num outro e-mail, dado que Leonel não dominava o inglês, eu escrevi:

Dear Kaffehuset Friele AS, We are a new organic coffee trading company called Ecologic Chanchamayo with farms located between 1100m up to 1700m above the sea with excelent micro-climates for coffee and ecologic grounds with plenty of organic material. We came to you to offer Naturlan UE-NOP organic certified coffee in total number of 7000 bags or 14 containers. For OCIA NOP - USDA we got 23000 bags of certified coffee or 47 containers Also, we are able to offer you 20000 bags of conventional gourmet coffee. Thanks for your atention at this time and it would be a pleasure to receive you here at the beautiful region of the peruvian central jungle (selva central). The producers are cleary previously thankful for this possible comercial alliance. Sincerely, Ricardo Cruz International trading adviser Leonel Rojas General Manager Ecologic Chanchamayo Av. Peru 301 La Merced Chanchamayo - Perú Tel. 0051 - 64 - 531941

Acabei definindo essa minha identificação de “assessor de comércio

internacional” no momento em que escrevia a mensagem, embora a minha atuação

220 A Elan Organic Coffees é uma torrefadora que compra cafés da Cooperativa La Florida. Conversando com o gerente desta cooperativa, este me disse que a La Florida foi a primeira organização peruana de cafeicultores a trabalhar com comércio justo nos EUA. Seu irmão estudava numa universidade de Lima e nessa instituição tinha um colega com contatos de empresas de cafés especiais nos EUA, principalmente com a Elan Organic Coffees que, por sua vez, introduz o café da Cooperativa La Florida nesse país. Até então, as organizações peruanas de cafeicultores só trabalhavam com compradores localizados na Europa. Na primeira venda para os EUA, embarcaram um contêiner de café. Participaram de feiras nesse país e buscaram melhorar a qualidade dos cafés entregues pelos sócios da cooperativa. “Tínhamos que lutar com os produtores”, me disse Cesar ressaltando também a “união destes para melhorar a qualidade”. Contudo, a cooperativa ingressou com força nos EUA através da Seattle Best Coffee, que inclusive se matriculou no comércio justo por insistência da La Florida. “Depois vieram outras empresas”, acrescentou. “No segundo ano vendemos 15% pela FLO, depois 20%, o volume cresceu”, apontou para em seguida concluir: “é claro que se pudéssemos, venderíamos tudo pela FLO”.

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estivesse mais para tradutor do que para um assessor de qualquer tipo, ainda mais em se

tratando de comércio internacional. A insistência em certificar a EC através do

comércio justo regulado pela FLO demonstrava claramente o quanto Leonel havia

incorporado as disposições dominantes no interior do setor cooperativista. O mesmo

valia para a ênfase em trabalhar com determinados compradores estrangeiros de café e

não com as empresas privadas exportadoras (pelos menos num primeiro momento,

como deve ficar evidente mais à frente). Essas disposições também viriam à tona

durante sua recolocação num concurso para um cargo de sub-gerente da Cooperativa La

Florida. Tal reviravolta colocaria a EC diante de outra perspectiva.

4.9 O concurso

As férias de Leonel terminariam no final de janeiro. No primeiro dia de

fevereiro, estaria de volta ao seu trabalho na Cooperativa La Florida, onde pretendia

ficar até o final de março. Estava tão certo de que iria pedir demissão e concentrar seus

esforços na EC que inclusive se questionou da necessidade de participar de um

concurso, no dia 27 de janeiro, em torno de dois cargos de sub-gerente da cooperativa.

Acabou, enfim, decidindo participar. Por conta disso, fiquei responsável por representá-

lo num evento de uma das cooperativas assessoradas pela EC.

No dia 29, Leonel ficou sabendo que passara do quarto para o segundo lugar

entre os 16 concorrentes para os dois cargos de sub-gerente da Cooperativa La Florida.

Os que anteriormente haviam ficado com as duas primeiras posições foram eliminados

por terem parentes trabalhando na cooperativa (um destes era um dos irmãos de Julio,

cuja prima era a secretária do gerente). Uma dessas duas vagas em disputa era para

trabalhar no centro educacional e de capacitação da cooperativa (CEOAS) e a outra em

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suas dependências em Lima. Leonel me informou que provavelmente iria morar nessa

cidade, ganhando 1.000 soles por mês durante cinco meses e, depois disso, 3.500 soles

mensais. Ele também comentou que deveria passar a direção da Ecologic Chanchamayo

para uma amiga alemã que morava em Sán Ramón (a cidade vizinha a La Merced).

Num dado momento, me perguntou: “mas você conhece de comércio internacional,

não?”, como que me propondo dirigir a Ecologic Chanchamayo. Ainda de acordo com

ele, “a Cooperativa La Florida tem que posicionar seu café no mercado internacional”,

supostamente se referindo a sua futura função na cooperativa enquanto um

“conquistador” de novos compradores.

Essa reviravolta na sua vida também me pegou de surpresa. Antes, já

conformado de não ter passado no concurso, por conta, segundo ele, de não ter obtido

sua titulação acadêmica, Leonel estava consciente de que seu futuro era na EC.

Previamente ao concurso propriamente dito, ele me dizia que o que lhe interessava era

sua empresa e que não almejava os cargos oferecidos. Na noite anterior da prova, ainda

estava indeciso se ia comigo ou não, logo pela manhã do dia seguinte, ao evento da

cooperativa que assessorava. Depois que ficou sabendo de sua reclassificação em

segundo lugar, deixou de lado o discurso que fazia em prol da EC e se deslumbrou com

o feito alcançado na Cooperativa La Florida. Comentou que seu objetivo maior era

“posicionar” o café da selva central, algo como que um compromisso moral com os

produtores.

Conversamos mais calmamente no final da tarde, em cima do terraço de sua

casa, ainda no mesmo dia em que ficou sabendo da sua aprovação. Ele olhava com

admiração e orgulho as instalações da Cooperativa La Florida, as quais estavam

próximas de sua residência. Sua casa era bastante simples e mal cuidada, igual àquelas

dos jovens técnicos solteiros que trabalham nas cooperativas que visitei, sendo que

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Leonel tinha mais do que trinta e cinco anos e uma filha (que mal via, é verdade). Ele

comentou o quanto as instalações da cooperativa eram bonitas e falou também de seu

orgulho em poder ser seu sub-gerente. Realmente não encontrava palavras para

expressar sua felicidade diante dessa conquista profissional.

No dia seguinte, logo pela manhã, ele insistiu comigo para que eu fosse “o

representante da EC”. Gentilmente recusei o convite, pois não queria tal

responsabilidade, apesar de também dizer que o ajudaria com a EC, na medida do

possível. Fomos até a Cooperativa La Florida e, da entrada, vejo uma fila no seu

interior, na qual estavam alguns sócios em busca de “crédito pré-colheita”. Um cartaz

numa parede apresentava os “selecionados para a entrevista” dentro do concurso para

Responsable del departamento de educación. Leonel passou e cumprimentou todos os

sócios na fila. Ele não poderia estar mais radiante.

O cargo de sub-gerente superou todas suas expectativas. Mas a verdade é que

não se tratava de um cargo de gerência propriamente dito. Seus possíveis logros com a

EC poderiam justamente fazer com que repensasse o valor desse cargo para o qual seria

contratado. De qualquer modo, a escolha de um ou outro caminho acabaria se colocando

como um verdadeiro dilema para ele. Isso mostrava claramente a complexidade da

ascensão no âmbito das organizações de produtores. Para além dos cargos de gerência,

outras posições sociais podiam se destacar justamente através das ações das pessoas.

Como aponta Pierre Bourdieu (1990 p. 81): “O bom jogador, que é de algum modo o

jogo feito homem, faz a todo instante o que deve ser feito, o que o jogo demanda e

exige. Isso supõe uma invenção permanente, indispensável para se adaptar às situações

indefinidamente variadas, nunca perfeitamente idênticas.” Em outras palavras, a

realidade social não é algo estático, ela está sempre em movimento. Cabe àqueles que

queiram se destacar nela, se ajustar às transformações que vão sendo feitas.

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A visita, retratada a seguir, que fiz junto de Leonel a um comprador de café,

demonstrava claramente o fato de que ambos ocupavam, em certa medida, uma mesma

posição de mediador diante da presença dos mercados de cafés especiais entre os

agricultores. Obviamente que cada um dos dois interpretava de maneira distinta essa

mediação. Leonel tinha como referência a figura do gerente das organizações de

cafeicultores; já para o sujeito com o qual entramos em contato, essa não era uma

questão pertinente. Isso porque se sentia livre para atuar como um comerciante privado

e não precisava, ao contrário de Leonel, de reler esse papel à luz de uma suposta

moralidade vigente entre os agricultores e que resultava numa desconfiança contra

qualquer forma de intermediação comercial.221 Leonel necessitava dialogar com essa

moralidade, na medida em que se sentia parte de um universo no qual ela estava

presente. Sem falar que essa moralidade se confundia com a própria modernidade das

organizações de cafeicultores: a necessidade de nelas haver um equilíbrio entre a “parte

social” e a “parte comercial”.

4.10 Entre a Cooperativa La Florida e a Ecologic Chanchamayo

Duas semanas depois da sua aprovação no concurso, me encontrei com Leonel,

em Lima, para visitarmos juntos um possível comprador dos cafés da EC. Leonel havia

colocado uma oferta na página eletrônica Mundo del Café; seis respostas apareceram,

221 O fato dos produtores não verem com bons olhos qualquer forma de intermediação comercial implicava justamente na necessidade daqueles que trabalhavam nas organizações de cafeicultores terem que justificar constantemente seu comprometimento com os agricultores. Isso obviamente era mais difícil de ser feito pelos que não possuíam algum tipo de parentesco com estes sujeitos e que não respeitavam determinadas regras de etiqueta próprias do universo cafeicultor. Por exemplo, os sócios da Cooperativa La Florida forçaram a saída do administrador da cooperativa dado que este não os teria tratado decentemente ao longo do tempo. Ao contrário de Cesar, ele não relevava o fato de que os agricultores, quando vinham até as dependências da organização, tinham acabado de realizar uma viagem cansativa e demorada. A maneira seca e burocrática do administrador era interpretada pelos produtores como um sinal de desrespeito. Sua competência administrativa, reconhecida por Cesar, não parecia ser levada em conta pelos agricultores.

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cinco no dia anterior dessa nossa visita. O sujeito que visitaríamos entrou em contato

com Leonel após ler esse anuncio. Reunimo-nos com ele em sua residência (numa parte

aparentemente nobre do estigmatizado bairro de La Victoria) e também sede de sua

empresa. Seu nome era Joe e Projeto Terra era o da sua firma (que tinha dois anos de

existência). Ele vendia os cafés Cardenal e Libertad (cujos grãos eram de

Chanchamayo e Puno, respectivamente); veríamos suas embalagens durante nossa

visita.

A reunião foi bastante informal. Ambos discutiram diversos assuntos: falaram

inicialmente sobre o fato de que “o ponto crítico do café vai desde a colheita até sua

secagem” e que “com o neoliberalismo os pequenos não são produtivos”. Leonel usou

constantemente a expressão “cadeias produtivas”. “Estamos vendo os financiamentos”,

informou a Joe num dado momento. Este último acusou a central de organizações de

produtores Cecovasa de exercer um monopólio na região cafeicultora de Puno: “ela faz

pressão para que a Associação de Produtores de Café Valle d’Oro não se concretize.”

Ele também disse que queria trabalhar com essa associação que, do seu ponto de vista,

necessitaria de dinheiro para certificar seus associados.

“Falta mercado”, confessou Leonel que igualmente ressaltou os quatros anos em

que vinha trabalhando na Cooperativa La Florida; “uma escola”, definiu-a indicando,

logo em seguida, os cursos dos quais participou no Panamá. Ele comentou também que

“em 2004 não havia café convencional para a (Cooperativa) La Florida, as chacras dos

sócios eram 100% orgânicas, tivemos então que comprar café convencional em

Pichanaki.”

Joe falou então da torrefadora de café Mayorga (de Seattle - EUA) cujo dono,

chamado Thomas, deveria vir até Lima se encontrar com ele (Thomas também contatou

Leonel depois de ler seu anúncio na internet). “Meu negócio é agregar valor ao

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produto”, foram as palavras de Joe antes de se referir ao fato de vender café torrado (ele

também “dava uma marca” para a azeitona embutida que comprava numa cidade

andina). Joe usou a infra-estrutura de processamento da Corporação Café Peru para

torrar o seu café, a qual, segundo ele, “é muito cara”. “O café orgânico tostado pela

Corporação Café Peru é feito através de um processo orgânico”, disse para em seguida

comentar com Leonel a respeito do comércio justo e orgânico como “um plus”. “O

senhor Thomas pediu orgânico e FLO”, enfatizou.

Mais tarde, andando pelas ruas de Lima, Leonel comentou comigo: “Joe tem o

que eu não tenho; ele tem mercado”. “Necessitamos primeiro de mercados para a

Control Union”, disse ele que completou em seguida: “se sair o financiamento (da

Control Union) não fico na (Cooperativa) La Florida”. “Estou na (Cooperativa) La

Florida para conseguir mercados”, ressaltou e apontou para o fato de que “o dinheiro do

financiamento é para pagar a compra do café dos produtores”. Eram 90 contêineres de

café que Leonel afirmava ter disponível. “A Control Union empresta quando se tem um

convenio”, assinalou. A Control Union era uma agência certificadora que, segundo ele,

poderia lhe empresar US$ 500.000. A garantia do empréstimo deveria ser os “convênios

de exportação de café”. Ele comentou ter dois amigos exportadores de frutas para o

Chile que conheceriam uma pessoa que trabalhava nessa agência, “isso agiliza as

coisas”, colocou.

Mais à tarde, fui junto dele até a Corporação Café Peru. Ele iria se encontrar

com Cesar, o gerente. Conversamos depois desse seu encontro. Cesar lhe teria felicitado

pela EC e dito que a Cooperativa La Florida poderia o ajudar com um empréstimo de

100.000 soles (US$ 33.000). Esse apoio de Cesar o deixou bastante contente. No dia

seguinte, partimos juntos para o Encuentro Latino-Americano de Productores de Café

Orgánico y Sostenible, realizado pela Junta Nacional do Café e pela Central de

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Cafeicultores do Norte Oriente (CECANOR) na cidade de Chiclayo (norte do Peru). Se,

de seu lado, Leonel iria para o evento enquanto funcionário da Cooperativa La Florida,

eu acabei indo como representante de sua empresa. Na verdade, para evitar expor

qualquer suposto conflito de interesses de sua parte, ele jamais se associou, durante o

encontro, à EC.

Apesar de no crachá que usei ao longo de todo esse evento estar escrito que

pertencia a tal organización de Leonel, sempre tentava deixar bem claro com quem

conversava que, na verdade, estava no Peru para fazer uma investigação sobre o

comércio de café, e que minha associação com este empreendimento que representava

no encontro era um trabalho voluntário, tendo em vista adentrar nesse universo que me

interessava pesquisar. Nesse sentido, e além do contato com o rico conteúdo exposto

nas diversas palestras apresentadas, o que vale destacar de minha presença nesse evento

foi justamente a interação com pessoas ligadas às organizações de cafeicultores, em

especial, como era de se esperar, com aqueles mais próximos de Leonel e que eram,

assim como ele, filhos de reconhecidos sócios da Cooperativa La Florida; sem falar que

reencontrei os gerentes das cooperativas Sangareni e Vale de Santa Cruz.222

Foto 42 – Leonel (de camisa listrada) numa mesa com outros membros da La Florida

durante o evento em Chiclayo

222 Vale ressaltar que a gerente da Sangareni foi homenageada, nesse evento, enquanto um símbolo da presença das mulheres entre as organizações de produtores de café.

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247

Ao final do encontro, conversando com Leonel, ele ressaltou mais uma vez que

os cafés certificados que havia financiado estavam em nome da EC.223 Disse também

que não iria mais assessorar as cooperativas Sangareni e Vale de Santa Cruz, “pois estas

querem caminhar sozinhas”, concluiu. Afirmou sentir ainda o desejo de ser gerente da

Central de Pichanaki, “mas agora tenho minha própria trading, que é mais ágil”,

ponderou. Enfatizou que buscava vender os cafés certificados em nome da EC: “os

produtores são donos dos cafés, mas não das certificações”, acrescentou.

Continuei no norte do país, visitando algumas cooperativas. Pelo computador

pude então conversar com Leonel (que já se encontrava em Lima). Ele comentou

comigo de uma reunião que teve com uma trading sobre a questão do financiamento.

Disse que os funcionários dessa empresa iriam até La Merced em busca de todos os

cafés da EC que estivessem disponíveis. O financiamento seria de US$ 100 mil. Essa

trading teria um escritório em Lima e sede em Nova Iorque. Segundo ele, por acaso, um

amigo intermediou o seu contato com ela. No momento em que falávamos pela internet,

Leonel anunciava a EC numa página eletrônica chamada NuestroCafé.com.

A empolgação inicial com sua conquista do cargo de sub-gerente parecia assim

dar lugar à uma disposição maior em concentrar seus esforços na EC. Seu suposto tino

comercial se mostrava capaz de ser realizado com uma maior amplitude nessa empresa

do que na cooperativa. Restava a Leonel não só desenvolver suas habilidades diante de

seu empreendimento como também fazer isso de uma maneira na qual pudesse ser

reconhecido entre os gerentes das organizações de produtores de café e também entre os

próprios agricultores.

A aprovação de Cesar e sua oferta de financiamento certamente encheram

Leonel de confiança a respeito de seu empreendimento. Mas o fato de não querer ser

223 A agência certificadora contada foi a Ocia e o responsável por esse contato foi Ernesto (o sócio de Leonel na EC): “todos los tramites lo está haciendo él, en eso no metemos, nosotros somos full comercial”, me disse Leonel.

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identificado à EC durante o encontro no norte do país demonstrava que ainda não se

sentia suficientemente confiante para se expor, enquanto um comerciante privado, no

âmbito nacional das organizações de produtores. Restava, todavia, trabalhar mais a

imagem de sua empresa para que, no seu entender, pudesse ser vista com bons olhos

pelos gerentes de tais organizações. Isso porque era o reconhecimento generalizado

desses sujeitos que, de um modo mais substancial, conferiria os logros não-comerciais

dessa entidade que também eram almejados por Leonel.

4.11 A dedicação exclusiva de Leonel à Ecologic Chanchamayo

Retornei para Lima no dia 14 de março. Já no dia seguinte, dei início à minha

participação, enquanto membro da EC, no curso de avaliação sensorial (ou degustação

profissional) de café do Instituto de Café Sostenible (ICS), a organização não-

governamental ligada à Jungle Tech (JT).224 Iria me comunicar novamente com Leonel

no dia 30 de abril, pela internet, quando fui informado que a sua empresa havia vendido

18 toneladas de café, totalizando 100 mil soles (US$ 33.000), dos quais ficaria com oito

mil. Ele também comentou o quanto “o armazém de café (da EC) em Pichanaki estava

ficando bonito”. Logo em seguida, me pediu um favor: ele queria que eu fosse, em

nome de sua trading, até a Corporação Café Peru retirar os guías remisión 0001-001 e

0001-003 de “mais de 100 mil soles” e depositá-los na conta de Nilo Barrios, o então

responsável pelas vendas da EC.225 Segundo Leonel, os produtores (cujos cafés sua

empresa vendeu) estavam esperando receber o dinheiro na terça-feira seguinte (os grãos

foram vendidos a seis soles o quilo).

224 Tal como assinalado antes, pelo menos dois dos membros da EC deveriam concluir esse curso para que esta entidade pudesse comercializar com a Jungle Tech. Essa era uma política padrão adotada pela JT para lidar com os fornecedores de seus cafés. 225 Numa conversa posterior com Leonel, ele me informaria que Nilo Barrios era o “presidente do diretório” da EC. Disse que Nilo “colocou suas ações (dinheiro) para se integrar (à EC)”.

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Na manhã do dia dois de maio, terça-feira, fui então até a Corporação Café Peru.

Contudo, faltou uma “ordem de transferência”, por escrito, da EC para a corporação. O

café havia chegado no sábado. O lote 01 tinha 159 sacos e 11.238 quilos no total. O

outro lote, de número 03, tinha 79 sacos e 5.813 quilos. Depois do almoço, retornei à

Corporação Café Peru. Apesar da “ordem de transferência” da empresa de Leonel já ter

chegado, faltava ainda a “fatura” e o comprovante da certificação orgânica, para que a

corporação pudesse fazer o depósito na conta da EC (no caso, na conta de Nilo Barrios,

tal como aparecia no documento). Aproveitei a ocasião para conversar com Cesar, o

gerente da corporação e da Cooperativa La Florida. À noite conversei com Leonel pelo

computador. Ele me disse que se quisesse teria meu escritório no armazém da EC em

Pichanaki, para nele trabalhar pela empresa. Descartei o convite; meu interesse tinha se

voltado para os produtores propriamente ditos.

Depois de um tempo entre os cafeicultores da Cooperativa La Florida e uma

estadia fora do país, acabaria reencontrando com Leonel no armazém da EC em La

Merced (um imóvel alugado, assim como o de Pichanaki) no final de setembro (2006).

Logo na entrada, deparei-me com um filho de sócio da La Florida que havia me

colocado em contato com seus pais e os vizinhos deles. Seu nome era Pablo e estava

trabalhando com Leonel neste mesmo armazém.226 Pude acompanhar uma conversa

entre Abiel, Pablo e dois cafeicultores de uma associação cujos cafés estavam sendo

comercializados pela EC. Ela se chamava Associação de Produtores Monte Bayoz e,

segundo um destes seus dois “dirigentes”, “a área da (Cooperativa) La Florida cobre

226 Na ocasião, Pablo estava montando uma loja de serviços de internet em La Merced, num imóvel de propriedade de seus pais. Ele era formado em zootecnia e trabalhou alguns meses na Cooperativa La Florida. De acordo com Pablo, sua função quando esteve empregado na La Florida era atuar junto às mulheres dos sócios. Mais especificamente, as ensinava a fazer pão, doce de leite e outros produtos caseiros para consumo próprio (sendo que estas só receberiam um financiamento para estas tarefas caso possuíssem uma horta). Evidentemente que esse seu antigo trabalho não tinha nada a ver com sua formação em zootecnia e que o mesmo estaria se passando com seu emprego na empresa de Leonel. Isso também vale para a situação então vivenciada por este último sujeito, na medida em que era formado em engenharia aeronáutica.

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40% dos membros da associação”.

Transcrevo a seguir o diálogo entre eles e no qual fica evidente a identificação

que Leonel tentava fazer entre seu empreendimento privado e o desenvolvimento dos

agricultores. Ele falava em estabelecer um “convênio” da EC com as organizações de

produtores, montar uma “pequena central” entre elas e sobre a importância tanto da

“parte comercial” quanto da “parte social”. Também estava claro nessa conversa o fato

da Cooperativa La Florida ser colocada como um referencial, mesmo que para servir de

contraponto:

Leonel (discorrendo sobre a venda de café) - Primeiro se tem um contrato aberto. Especula-se com a bolsa para fechar o contrato. Um amigo com 15 anos de experiência na bolsa não sabia me dizer se ela ia subir ou baixar nos próximos dias. (Leonel oferece um exemplo) - Se abre (um contrato) hoje (23/10) para embarque em 15 de novembro, se pode fechá-lo até dois dias antes. Se subir dois ou três pontos, já está bom para fechar (o contrato). O lucro que ganhamos, mandamos como reintegro para os produtores. O plus de (café certificado como) orgânico depende da qualidade. A certificação quem faz é Foncodes e Caritas.227 A EC faz a transabilidade (palavra que Leonel aprendeu no encontro em Chiclayo). Produtor - Todas as associações nasceram no Foncodes. Leonel - O objetivo da EC é o desenvolvimento familiar. A certificação de comércio justo é para 2007. As companhias querem volumes altos, eu sei, eu estive nos EUA (numa feira) há uma semana atrás. (As associações) Monte Bayoz e Alto Perene têm bons cafés. Vocês podem fazer a cadeia com o Agrobanco, já esta tudo pronto com ele. A EC está certificando 300 produtores de cacau. É uma cadeia. (Leonel fala de um convênio, de cinco anos, com as associações ligadas à EC). - (Nesse convênio esta) incluindo comércio justo e (acesso a) mercados. (Sobre o financiamento) - (É com base num) contrato de exportação. Com isso fica fácil conseguir empréstimo. Produtor - Os produtores estão agora melhorando as condições de vida através dos orgânicos, estão com compostera (infra-estrutura para produzir adubo). Para seguir assim se necessita de dinheiro para que as pessoas não vendam para a calle (comerciantes intermediários/empresas privadas). Temos assistência técnica e capacitação, nos falta mercado.228 Leonel - Por questões de política não tocamos na jurisdição da (Cooperativa) La Florida, mas como vocês são uma associação... - Agrobanco (banco estatal) pede título de propriedade. Produtor - Mas há muita gente que não tem título. Com 1000 soles de crédito está bom para o produtor.

227 Como assinalado anteriormente, o Foncodes é o Fondo de Cooperación para el Desarrollo Social (órgão ligado ao governo peruano). Já a Caritas é uma instituição católica internacional. 228 Como dito antes, a calle (rua, em espanhol) significa um espaço genérico de compra e venda de café do qual participam os comerciantes intermediários e as empresas privadas exportadoras.

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- Este ano (os cafeicultores) fizeram poda, entre outras coisas, e a produção melhorou, antes era um ano (de produção) alto, outro baixo, agora vai ser mais standard. - Antes o Banco Agrário (antigo banco estatal) emprestava sem a necessidade de título de propriedade. - Vocês (da EC) têm mercado estabelecido, isto é o mais importante. Leonel - Queríamos unificar as três associações (Alto Perene, Monte Bayoz e Pozuzo). Ter um só RUC ( registro na – Superintendencia Nacional de Administracion Tributaria - SUNAT) para a liquidação (efetivação da venda do café), para baixar (reduzir) os custos. - (Seria produtivo ter) uma pequena central entre (as associações) Alto Perene e Monte Bayoz que estão perto, Pozuzo está longe, em (departamento) Cerro de Pasco. Produtor - Temos que conversar com os de Alto Perene. - Estamos (a Associação Monte Bayoz) imitando a cooperativa (La Florida) para igualar a ela. - As pessoas (cafeicultores) vão (fazem parte das associações/cooperativas) pela rentabilidade. - Temos que igualar ou superar (a Cooperativa La Florida). A (Cooperativa) La Florida não melhorou a qualidade de vida no campo. A (Cooperativa) La Florida começou bem em nível de infra-estrutura, mas a base social não melhorou. Os não-sócios estão melhores que os sócios. - Primeiro queremos fortalecer nossas bases. - Tendo esse convênio com ecologic (chanchamayo) ficamos mais sossegados. Leonel - É preciso tanto a parte social quanto a parte empresarial.

Terminada a reunião, conversei com Pablo, em frente às instalações da EC.

Entre outras coisas, ele comentou que Nilo Barrios havia comprado café da calle

(enquanto comerciante intermediário) e misturou-os com o dos produtores das

associações ligadas à empresa de Leonel. “Café é uma máfia, muitos são assim como

Nilo”, apontou. Em seguida, passei a falar com Leonel. Ele me informou das vendas da

EC até então. Para a Perunor, empresa especializada na exportação de cafés orgânicos, a

qual entrou em contato com Leonel, a EC vendeu dois contêineres. Para a COCLA,

contatada por ele, foram outros dois. A Corporação Café Peru comprou oito. Por fim, a

empresa privada exportadora Coinca, através da sua divisão de cafés orgânicos,

comprou seis. No total, foram vendidos 18 contêineres, a um preço médio de 110 soles

a saca de café. “Vendemos tudo”, me comunicou entusiasticamente.

Ainda nessa ocasião, ele me disse que, em agosto, a certificadora Imo-Control

havia visitado sua empresa, tendo em vista a certificação dela enquanto

“comercializadora e exportadora de cafés orgânicos”. Nilo Barrios não trabalharia mais

com Leonel: “ele é coiote”, assinalou utilizando-se de uma expressão pejorativa para

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definir os comerciantes intermediários. Sobre os funcionários da EC, comentou que

Pablo ganhava 1.000 soles (o mesmo que Leonel recebia na Cooperativa La Florida,

pois “cumpria a mesma função”). Além de sua irmã, Leonel tinha também como

funcionários uma caixa e três “assistentes técnicos” (um deles trabalhava na La Florida).

Pablo e a caixa não iriam trabalhar na EC durante a entressafra e, nesse período, a irmã

de Leonel iria visitar os produtores junto com os técnicos, tendo em vista as inspeções

das agências certificadoras.

Leonel passou a me explicar como a EC pagava os produtores. Disse que tomava

como ponto de partida o “preço local” (ao alcance do produtor) e a este somava mais

0.50 soles “de plus por quilo”. Os cafés de baixa qualidade não seriam recebidos. Ele

citou um exemplo: a calle (comerciantes intermediários e empresas exportadoras)

pagava cinco soles (o quilo de café convencional) com 80% de rendimento (índice de

impurezas no café, quanto maior o número, menor as impurezas na amostra) e, diante

desse preço, a EC acrescentava mais 0.50 soles.229 Por fim, me esclareceu como se dava

o lucro da EC, “de 0.20 a 0.30 soles por quilo”. “Mas isso fica só entre nós”, disse ele e

que deu outro exemplo: a calle pagava cinco soles por quilo; a EC pagava 5.50 ao

produtor e vendia por 5.80 (“se entrega em Lima e recebe 80% no ato e 20% na fatura”,

afirmou). Sobre os plus (preços acima da bolsa) pagos pelos compradores, Leonel falou

que a Corporação Café Peru pagou entre um plus (negativo) de – 2 soles até + 4 soles

acima da Bolsa (de Nova Iorque). A Perunor pagou sete soles acima da Bolsa, a Cocla

229 Já a “liquidação” (pagamento ao produtor) feita pela Cooperativa La Florida se dava da seguinte maneira, me informou também Leonel. Primeiro, os sócios recebiam 5,70 soles por quilo de café, por exemplo. Para uma saca de 60 quilos do grão em pergaminho, isto é, antes de ser processado para a exportação, a cooperativa teria pagado ao produtor 342 soles (5.70 x 60). Terminadas todas as vendas, ela pagava o chamado reintegro aos produtores, 60 soles, por exemplo, totalizando 402 soles (342 + 60). Se dividirmos 402 por 3,23 (valor do dólar em relação ao sol na ocasião) se tem US$ 124,45 pagos ao produtor por uma saca de 60 quilos de café. Dado que a cooperativa vendia seus cafés pelo comércio justo (FLO) e com certificação orgânica, ela recebia US$ 141 por cada saca exportada. De US$ 141 eram então descontados US$ 16.55 como gastos administrativos da cooperativa, o que resulta em US$ 124,45 pagos ao produtor. Leonel achava isso justo.

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pagou o preço da Bolsa e a Coinca + 8 soles acima.

Na outra ocasião em que revi Leonel, ele se encontrava na Corporação Café

Peru, onde tinha ido acertar uma venda de café. Ele me mostrou um folheto intitulado

Ecologic Chanchamayo: Convocatoria Programa Certificación Café Orgánico 2006-

2007. Neste folheto, entregue aos produtores que vendiam seus cafés pela EC, estava

escrito o seguinte:

1. Certificación café orgánico Calidad 2. Asistencia técnica en agricultura orgánica. 3. Créditos mediante Agrobanco en cadenas productivas con agricultura orgánica. 4. Conformación de organización de la zona

Leonel começou nossa conversa falando que os cafés certificados pelo selo

(sostenible) Utz-Kapeh não eram bem pagos. Ele disse também que entregou para a

Corporação Café Peru sete contêineres de 412 quintais cada, totalizando 2.884 quintais.

A corporação cobrou pelo processamento dos cafés para a exportação o valor total de

US$ 9.000 (incluindo US$ 2.000 de impostos). Quatro desses contêineres ele vendeu

para a própria corporação, outros três para Coinca (empresa privada exportadora). No

total, a EC vendeu 15 contêineres. Afirmou não ter tido dinheiro para pagar os

produtores na hora que estes lhe entregaram os cafés. “Eles tiveram confiança em mim,

dado meu trabalho sério na (Cooperativa) La Florida”, explicou. Era para serem

comercializados os cafés de 150 agricultores, mas com a saída de Nilo (Barrios), Leonel

acabou vendendo os grãos de 80 cafeicultores.

Depois de assinalar ter em mãos 100.000 soles, comentou: “a (Cooperativa) La

Florida buscou mercados estratégicos, maior promedio (preços médios de venda de

café)”. Segundo ele, “todas as cooperativas querem entrar em FLO, mas tem que ter

quantidade e qualidade”. Ele falou que Cesar (o gerente da Cooperativa La Florida)

ganhou confiança dos importadores: “o café (vendido) tem de ser de qualidade e sem

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defeitos (físicos)”, conclui para logo em seguida nomear alguns “clientes de Cesar”.230

A La Florida aparecia como um referencial bastante presente em suas percepções e o

mesmo se dava em relação à Corporação Café Peru.

Ele igualmente me contou que não deveria mais trabalhar com a Associação

Monte Bayoz, “por questões políticas”, isto é, pelo fato dessa associação estar dentro do

“raio de ação” da Cooperativa La Florida.231 Em seguida, proferiu três exemplos de

comercialização de café. (1) A calle estava comprando o grão “convencional” (não

certificado) a cinco soles (o quilo). (2) Já a Cooperativa La Florida pagava 6,70 soles

pelo café certificado como orgânico: “a Cooperativa La Florida paga mais porque tem

FLO”, disse ressaltando que a cooperativa oferecia 5,70 soles no ato pelo café que o

produtor a entregava e mais um sol (de reintegro) no final das vendas totais dela. “A

cooperativa vai vendendo café e (com esse dinheiro) criando um fundo para comprar

mais café”, apontou. (3) A EC, por sua vez, comprou o grão por um preço entre 5,50 e

5,70 soles: “paga mais (que a calle) porque tem plus de orgânico”. Para Leonel, a “FLO

subsidia o adelanto (dinheiro pago aos produtores no ato da venda do café)”.232

“Os bens da (Cooperativa) La Florida sempre estiveram hipotecados”, observou

Leonel com relação aos financiamentos proporcionados pelos bancos à cooperativa para

a compra de café. Ele me confidenciou sobre como a EC conseguiu dinheiro para sua

primeira compra de café, algo para o qual que me pediu sigilo. Segundo ele, Saulo, seu

colega que trabalhava no Agrobanco em Pichanaki, lhe entregou “na confiança” (sem

documentos) cinco caminhões com café para serem vendidos. Os cafés eram dos

produtores da Central de Pichanaki, a qual devia para o Agrobanco. Saulo, em vez de

vender para a calle (que estava pagando cinco soles), vendeu para Leonel que lhe pagou

230 Ele citou as seguintes empresas: Panamerican, Settler e Ellan Coffees. 231 Futuramente ele acabaria trabalhando com essa associação. 232 Leonel também ressaltou a participação pioneira, entre as organizações peruanas de produtores, da Cooperativa La Florida e da COCLA em feiras nos EUA, Europa e Japão.

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5,20. Leonel ganhou 38.000 soles com a venda desses cafés para Cocla e a Corporação

Café Peru, sendo que esta foi a primeira venda da EC.233

Por fim, comentou que ganhava 1.100 soles (em torno de US$ 300) mensais

trabalhando na Cooperativa La Florida, mas que no final de todo mês (antes do

recebimento de seu salário) não tinha mais do que 100 soles no bolso. Este ano (2006)

lucrou 100.000 soles com a EC. Na ocasião, me mostrou e acabou me dando um estrato

do Banco de Crédito do Peru onde se via seu saldo disponible de US$ 21.383,66. Disse

ter planos para trabalhar com 500 produtores no ano seguinte e lucrar 500.000 soles,

além de contratar cinco funcionários. Queria se tornar “independente” de Ernesto (seu

sócio), do qual afirmou não confiar muito. Comentou igualmente comigo o fato de ter

presenteado seu pai e irmãos com dinheiro.234

Durante os meses finais da minha estadia no Peru, encontrei apenas algumas

vezes com Leonel. 235 Vale ressaltar que, ao longo desse período, participei de diversos

eventos organizados pela Junta Nacional do Café, entre os quais o II Encontro de

Jovens Cafeicultores. Ele havia participado da primeira edição desse encontro, realizada

em dezembro de 2005, no pueblo de La Florida. Uma foto de seus participantes aparece

estampada na capa da edição de fevereiro de 2006 da revista da JNC. Abaixo da foto lê-

se: Cafetaleros innovadores y emprendedores.

Além de continuar vendendo café pela EC e assessorando as organizações de

produtores, Leonel tinha planos de participar de mais feiras no exterior. A primeira

dessas experiências havia sido na BioFach America, em outubro (2006), na cidade de

Baltimore (EUA). Ele viajou a essa feira internacional de produtos orgânicos junto de 233 Nessa conversa e em outras, Leonel também me explicou determinadas operações veladas feitas tanto pelas cooperativas quanto pelos produtores ligados a elas. Porém, em todos esses casos, não se estava diante de nenhuma prática ilegal. 234 Vale ressaltar que escutei um de seus amigos que trabalham como gerentes de outras cooperativas o “acusar”, nas suas costas, de ter se tornado um mero “intermediário” (comerciante privado). 235 Numa ocasião, comentou comigo que tinha terminado com sua namorada, uma jovem de vinte e poucos anos, e que buscava uma mulher mais madura, “uma empresária”, disse. Esta pretendente poderia ser encontrada, segundo Leonel me confidenciou, numa feira no exterior.

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um gerente de uma cooperativa do sul do país filiada à Central Café Peru. Esse sujeito,

assim como Leonel, era também filho de um dos em torno de 50 “refundadores” da

Cooperativa La Florida. Seu irmão trabalhava na Café Peru e sua irmã na Jungle Tech

(me hospedei na chacra deles durante minha estadia no anexo de José Galvez).

Mesmo depois de ter voltado ao Brasil, continuei em contato com Leonel e

acompanhando o crescimento de sua empresa, apesar da concorrência cada vez mais

acirrada das empresas privadas exportadoras no nicho dos cafés certificados como

orgânicos, segundo ele próprio me informou. Leonel disse que muitos, inclusive sócios

da Cooperativa La Florida, estariam copiando o modelo da EC e, dessa maneira, abrindo

suas empresas de assessoria e comércio de cafés orgânicos certificados. Também

comentou comigo que sua trading passaria a se chamar Ecologic Origin´s

Chanchamayo.

É claro que, como relatado acima, Leonel melhorou consideravelmente suas

condições de vida. Por exemplo, ele comprou um automóvel e alugou uma casa que

disse ser bem mais confortável do que aquela na qual vivera até então; sem falar na

aquisição de outros bens de menor valor, como roupas e acessórios domésticos. Por

outro lado, seus ganhos materiais também eram passíveis de serem avaliados com base

numa economia moral própria no universo cafeicultor e de uma concepção de

modernidade que se confundia com essa moralidade. De modo algum ele gostaria de ser

identificado com a “falta de ética” de Nilo Barrios; “um coiote”, segundo Leonel que,

inclusive, encarava seus lucros de uma maneira velada. Sua insistência em trabalhar

próximo das organizações de produtores (chegou a sugerir a criação de uma “pequena

central” envolvendo as entidades ligadas à EC) demonstrava claramente sua

preocupação em se manter associado ao universo social em torno destas organizações.

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4.12 A nova geração

De volta ao Brasil, não me surpreendi quando um jovem sócio da La Florida,

chamado Javier, apareceu num serviço de mensagens eletrônicas instantâneas (MSN)

com uma identificação ao lado do seu nome dizendo: SRL – Assessores em Produção,

Comércio e Certificação de Produtos Ecológicos e Comércio Justo. Isso porque ele era

mais um, entre outros associados ou filhos destes, que durante minha estadia no Peru

procuravam “progredir na vida” (progresar) através de um trabalho ligado à

intermediação da relação das organizações de cafeicultores com a produção e a

comercialização de café.

Javier tinha por volta de 35 anos quando o conheci. Ele começou me contando

sua história lembrando que se mudou da selva central para Lima quando jovem para

estudar ciências sociais na principal universidade pública do país. Nessa cidade, se

sustentava com o dinheiro que recebia de seus pais e do que conseguia de gorjeta

tocando violão nos ônibus da capital. Certo dia, descansando nas dependências do

grêmio estudantil da sua faculdade, foi preso pela polícia, junto de outras pessoas, sob a

acusação de fazer parte do Sendero Luminoso, dado que foram encontrados escondidos

nesse grêmio bandeiras e material de propaganda desse movimento guerrilheiro. Javier

foi enviado para uma prisão de Lima, onde permaneceu alguns meses e depois para

outra no sul dos Andes peruanos. Doente, foi libertado a pedido de um “grupo de

direitos humanos” que inspecionava o presídio. Permaneceu na serra trabalhando como

motorista e “diarista” nas plantações de batata. Com o aparente fim do “terrorismo” na

selva central, voltou até essa região e participou da “reconstrução” da chacra de seu pai

e da própria Cooperativa La Florida entre os cafeicultores da sua “zona”.

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Na nossa conversa, pela internet, de 12 de outubro de 2009, Javier me disse que

havia, junto de Alberto (o ex-presidente da Corporação Café Peru), conduzido um

trabalho de assessoria para a Cooperativa do Vale de Santa Cruz (outrora assessorada

por Leonel). Ele falou que o antigo gerente dessa cooperativa, apesar de ter feito uma

boa gestão, não angariou a confiança dos sócios. “A cooperativa estava quebrando e nós

entramos para apagar o incêndio”, contou. Segundo ele, a Vale de Santa Cruz “quase

quebrou” dado que muitos de seus sócios não pagaram suas dívidas: “o gerente forneceu

os adelantos aos sócios e estes não ressarciram a cooperativa” (os adiantamentos em

dinheiro foram dados à cooperativa por uma empresa privada exportadora e pela

Corporação Café Peru).

Javier afirmou que Alberto se ofereceu para ser o gerente da Cooperativa do

Vale de Santa Cruz e os sócios aceitaram. Informou-me igualmente que esta cooperativa

“agora estava indo bem” porque tinha o certificado da FLO e com ele vendia quase a

totalidade de seus cafés, através da Corporação Café Peru, para os compradores que

trabalhavam com o comércio justo. Ele passou inclusive a assessorar a cooperativa que

o antigo gerente da Vale de Santa Cruz veio a gerenciar. “Agora trabalho apoiando

diversas cooperativas com relação às certificações orgânicas e da FLO”, comentou

comigo. Javier citou o nome de dez entidades às quais estaria assessorando e falou de

ter a intenção de viajar até os EUA para participar da feira da Associação Norte-

Americana de Cafés Especiais.

Outro sujeito, ligado à La Florida, que também vinha assessorando outras

cooperativas era Julio (o amigo de Leonel que se colocou como a primeira pessoa que

lhe propôs intermediar a venda de cafés gourmets). Seu contrato de trabalho com a

empresa Jungle Tech havia terminado no final de outubro de 2006 e, logo em seguida,

foi contratado pela Cooperativa Sangareni para “reorganizá-la”. Acontece que um

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amigo seu e então funcionário da Central Café Peru tinha estado nessa cooperativa e

constado que havia uma reclamação generalizada dos sócios a respeito do modo como

estava sendo conduzida. Estes teriam reclamado que alguns poucos produtores, em

torno de 32, num universo de 240, “se portavam como os únicos donos da entidade”. O

funcionário da Café Peru chamou a atenção da gerente da Sangareni e a convenceu a

contratar Julio como seu “assistente administrativo”.

Conversaria com este último, pela internet, quando já estava conduzindo seu

trabalho na cooperativa. De acordo com ele, “12 sócios se sentiam os donos” desta

entidade e marginalizavam os demais produtores. Mas a raiz do problema seria um

destes 12 agricultores e irmão da gerente. Este era um ex-comerciante e teria

“imprimido essa marca” na Sangareni. “A Junta Nacional do Café e a Café Peru exigem

que Sangareni seja uma cooperativa”, me disse Julio. Ele afirmou que “foram os

técnicos da Cooperativa La Florida que criaram a Sangareni, eles que juntaram os

sócios”. “O estatuto e o plano estratégico são cópias daqueles usados pela La Florida,

não há fortalezas, não há ferramentas, é apenas um texto e eles não sabem como

utilizar”, argumentou e completou sobre o documento feito por Leonel: “o plano foi

apresentado para apenas 20 sócios e foi aprovado.”

Seu trabalho seria o de “fortalecer as bases sociais e a instituição”. “A parte

administrativa precisa de computadores e é necessário se estruturar os comitês de

educação, crédito e agropecuário”, apontou. Ele tinha como projeto fazer com que todos

os sócios “aportassem” os recursos para formar o “capital social” da cooperativa. “Os

diretivos e os administradores devem visitar os sócios e informá-los das decisões que

são tomadas em nome deles”, assinalou e acrescentou: “estou com a lei do

cooperativismo debaixo do braço”. Julio enfatizou que os dirigentes deveriam ser

novamente ratificados numa assembléia. Disse que iria desenvolver um “plano de

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desenvolvimento social” e outro de “desenvolvimento empresarial”. Sobre este último:

“trata-se de saber o que fazer com os cafés, como vendê-los e a questão dos

empréstimos”.

“Os sócios não querem o irmão da gerente, o poder dele está em conseguir o

financiamento (das empresas privadas exportadoras) para pagar os produtores”, colocou

e adicionou, se referindo às chamadas agências de financiamento solidário: “tenho que

conseguir apoio da SOS Faim ou da Alterfin para tirá-lo da cooperativa”. “O presidente

faz tudo o que irmão da gerente manda”, assinalou afirmando o seguinte em relação a

Javier: “ele foi contratado para fazer o que vou fazer, mas o irmão da gerente o tirou,

pois Javier queria justamente colocar em prática os princípios cooperativistas.”

Julio estava recebendo US$ 300 por mês para trabalhar na Sangareni e ficaria

três meses morando na sua sede (voltando uma semana de cada mês para Lima).236

Disse que sua função era “fazer funcionar o sistema cooperativista” e “estruturar a

empresa”. Perguntado se gostaria de ocupar um cargo de gerência numa organização de

produtores, afirmou que ainda faltava ser mais calmo, “senão um sócio discute comigo e

eu vou embora”. Segundo me informou Javier em outubro de 2009, o irmão da gerente

da Cooperativa Sangareni voltou a trabalhar como comerciante intermediário. Ele

também me contou que esta cooperativa passou a vender praticamente todo o seu café

pelo comércio justo e através da Corporação Café Peru.

Os exemplos de Javier e Julio, assim como o de Leonel e de tantos outros,

permitem visualizar a continuidade das histórias ao redor da Cooperativa La Florida,

para além dos seus limites territoriais. Isso porque desempenhavam, perante outros

agricultores que não apenas os que viviam no “raio de ação” dessa cooperativa, um

papel de destaque ao intermediarem as relações de suas organizações com a produção e

236 Depois desse emprego, ele acabou sendo contratado pela agência norte-americana de cooperação internacional (USAID) para trabalhar junto a algumas organizações de cafeicultores de uma região do norte do país caracterizada pelo cultivo generalizado de coca.

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a comercialização de café. Tal intermediação fazia com que se tornassem figuras

bastante conhecidas entre os cafeicultores da selva central. Do mesmo modo que

acontecia com muitos associados da La Florida num plano mais restrito, como retratado

ao longo do capítulo anterior, eles eram capazes de proporcionar os meios para que a

situação precária dos produtores fosse superada ou, pelo menos, atenuada de uma

maneira considerada satisfatória. Entre estes meios se destacavam o acesso aos novos

mercados de café.

Mas o ponto é que a relação desses jovens com estes meios envolvia um habitus

ou conjunto de disposições que adquiriram no contato com a Cooperativa La Florida.

Isso significa dizer que as sagas que marcaram a geração anterior desta entidade

acabaram resultando num ethos que fora incorporado por alguns de seus membros mais

novos e que passaram a se interessar pelo “progresso” ou “desenvolvimento” de outros

cafeicultores que não apenas os que residiam dentro do seu “raio de ação”. Era a partir

desse ethos que se sentiam impelidos a usar, em prol destes agricultores, os capitais

simbólicos, econômicos e sociais que podiam acessar ou obter, em grande medida,

através da cooperativa. Porém, como ressaltou Pierre Bourdieu (2007 p. 100-101):

O processo de instituição, de estabelecimento, quer dizer, a objetivação e a incorporação como acumulação nas coisas e nos corpos de um conjunto de conquistas históricas, que trazem a marca das suas condições de produção e que tendem a gerar as condições de sua própria reprodução (quanto mais não fosse pelo efeito de demonstração e de imposição das necessidades que um bem exerce unicamente pela sua existência), aniquila continuadamente possíveis laterais. À medida que a história avança, estes possíveis tornam-se cada vez mais improváveis, mais difíceis de realizar, porque a sua passagem à existência suporia a destruição, a neutralização ou a reconversão de uma parte maior ou menor da herança histórica – que é também um capital -, e mesmo mais difíceis de pensar, porque os esquemas de pensamento e de percepção são, em cada momento, produto das opções anteriormente transformadas em coisas. Qualquer ação que tenha em vista opor o possível ao provável, isto é, ao porvir objetivamente inscrito na ordem estabelecida, tem de contar com o peso da história reificada e incorporada que, como num processo de envelhecimento, tende a reduzir o possível ao provável.

Em outras palavras, de um lado, alguns indivíduos da nova geração de membros

da Cooperativa La Florida dão continuidade, numa escala ampliada, aos esforços da

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geração anterior em proporcionar os meios para o “desenvolvimento” ou “progresso”

dos cafeicultores. Por outro, esta perpetuação das sagas de seus pais ocorre num

contexto em que estes meios parecem subordinar a busca de melhores condições de vida

e não o contrário. Não é à toa que a participação dos produtores nos mercados de cafés

especiais acaba se mostrando quase que como um fim em si mesmo, na medida em que

a reprodução desse ideal vem sendo feita de maneira praticamente automática entre os

membros da La Florida que trabalham junto a outras cooperativas.

Leonel inovou não apenas ao associar o comércio privado ao campo semântico

da modernidade, como também ao transformar numa missão e numa vocação o que para

seu pai não se dissociava da sua identidade de cafeicultor: a melhoria das condições de

vida dos agricultores. Isso se passava com outros amigos de Leonel enquanto

verdadeiros “profissionais” em prol do “desenvolvimento” e do “progresso” dos

cafeicultores. Contudo, o exercício desse papel implicava numa limitação das

possibilidades de melhoria a vida destes sujeitos, na medida em que a utilização de

determinados meios para se atingir esse objetivo era o que permitia este exercício. A

ênfase nos novos mercados de café se colocava como o mais importante destes meios

adotados pela nova geração de membros da La Florida.

O comércio justo acabou se tornando uma espécie de senso comum entre estes

agentes basicamente porque a cooperativa da qual faziam parte havia pioneiramente

acessado esse sistema comercial. Tal pioneirismo permitia que intermediassem a relação

de outros produtores com esse sistema em voga no chamado movimento cooperativista.

O comércio justo era parte importante da identidade desse movimento e do prestígio

alcançado pelos que neles se destacavam: os gerentes das principais organizações

peruanas de cafeicultores. Os membros destas entidades difundiam esse mercado não

apenas porque era um meio para a melhoria das condições de vida dos agricultores, mas

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porque se tratava de um ideal que eram capazes de colocar em prática. O que mais

poderia se esperar de um movimento liderado por gerentes?

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Considerações finais

Um ideal permeia a vida dos cafeicultores peruanos e seus descendentes com os

quais convivi: “progredir” (progresar). Como base no que foi exposto nesta tese, é

possível afirmar que a esse ideal faz sentido através das histórias desses sujeitos e as

quais acessei de modo mais consistente durante minha estadia na selva central.

Certamente que, como igualmente fora colocado, os significados dessas narrativas se

transformam ao longo do tempo e, além disso, entram em contato com visões oriundas

do exterior a respeito do que nelas também é considerado como a “melhoria das

condições de vida” dos produtores. Entre estas visões se destaca a dos organizadores do

comércio justo regulado pela FLO.

Os altos preços do café e a boa produtividade dos solos nas décadas de 70 e 80

permitiram o acesso dos filhos de muitos cafeicultores ao que se pode chamar de classe

média peruana. Este acesso se constitui na imagem mais representativa daquilo que os

agricultores identificam como o “progresso”. Os produtores cujos descendentes

entraram em contato com o ensino superior e encontraram um trabalho relativamente

estável e bem remunerado são considerados pelos demais ao seu redor como

verdadeiros exemplos ou modelos. Mas essa imagem exemplar deve ser entendida como

derivada de uma transformação nos significados das narrativas desses sujeitos a respeito

do que seja a “ascensão social”. Por exemplo, durante os anos 70 e 80 o “investimento”

na educação dos filhos não era entre eles um valor dominante como é nos dias de hoje.

Nessa época, um produtor bem sucedido podia ser julgado apenas com base nos

veículos e na quantidade de terra que possuía.

Os sentidos de “progredir” são capazes de ser compreendidos enquanto

atualizações conjunturais de uma narrativa de ascensão social que permeia a vida dos

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cafeicultores. O mesmo vale em relação ao que vêem como sendo seu

“desenvolvimento” coletivo. Há não muito tempo atrás, a própria noção de

“competitividade” não fazia parte do vocabulário dos cafeicultores. Atualmente, ela

aparece como sinônimo de desenvolvimento entre os membros da Junta Nacional do

Café (JNC). Ser “competitiva” se coloca entre eles como uma das principais obrigações

de qualquer cooperativa que queira se destacar nos mercados de café. Nesse contexto,

os gerentes que primeiramente puseram em prática esse ideal em suas organizações é

que servem de referencial.

O fato do Peru ser um dos principais países exportadores de café orgânico e

através do comércio justo nos ajuda a entender a grande importância dos novos

mercados do grão entre seus cafeicultores. Como o primeiro capítulo procurou ressaltar,

a participação deles nesses mercados não deve necessariamente ser vista como uma

subordinação a normas estrangeiras por conta apenas de um melhor retorno econômico.

Isso porque ela também envolve um entendimento destas normas enquanto práticas

através das quais podem melhorar de vida. De qualquer maneira, e como aparece no

último capítulo, o acesso aos novos mercados de café se constitui num trunfo usado por

muitos filhos de agricultores para se posicionarem como intermediários das relações

comerciais de diversas organizações de produtores de café.

De um lado, essa intermediação pode significar a continuidade de um processo

de ascensão social vivido pela família de seus agentes. Por outro, como acontece entre a

nova geração de membros da Cooperativa La Florida, esse papel de mediador envolve a

instrumentalização de uma história coletiva em prol não apenas desse processo de

ascensão social como também do “desenvolvimento” de outras organizações de

cafeicultores e seus respectivos associados. Isso porque o acesso aos mercados de cafés

especiais é colocado como uma via privilegiada para a melhoria das condições de vida

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dos agricultores por um grupo de pessoas que estão preparadas para conduzi-los através

desse caminho. Se antes o “desenvolvimento” das organizações de cafeicultores

envolvia uma participação política mais contundente de seus membros ou dirigentes,

hoje em dia ele é pensado principalmente através da inserção destas organizações nos

novos mercados de café. Mas a presença, ainda recente, de algumas destas entidades

(enquanto exportadoras) no mercado “convencional” já demonstra a emergência de um

novo ideal a ser alcançado entre elas. O comércio justo começa então a se despontar

como um meio para torná-las capazes de competir de igual para igual com as ditas

empresas privadas exportadoras.

Os organizadores e estudiosos do comércio justo tendem a encará-lo como um

mecanismo de “redução da pobreza” e/ou de “apropriação de valor pelos produtores”.

Mas como é possível perceber ao longo desta tese, esse sistema comercial pode adquirir

os mais distintos significados entre os agricultores. Ele é uma doxa ou senso comum do

movimento cooperativista cafeicultor peruano, é um meio capaz de sustentar o prestígio

ou reconhecimento de uma organização de cafeicultores e de seus membros (como é o

caso da Cooperativa La Florida), é uma maneira de reforçar a crença numa narrativa de

ascensão social e um modo dos seus participantes e dos que queiram dele participar

estabelecerem relações.

A visão economicista ou materialista dos organizadores e estudiosos do

comércio justo contêm sua própria teleologia. Em outras palavras, falar da “redução da

pobreza” e “apropriação de valor”, através da participação nesse sistema comercial, é

pressupor um sentido às histórias dos produtores. Conforme dito anteriormente, no caso

dos agricultores aqui retratados, eles não apenas pensam suas ações ao longo do tempo

com base em noções como a de “progresso” e “desenvolvimento”, como os significados

que dão a estas noções podem variar no decorrer de suas vidas. Entre esses

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cafeicultores, a realidade “econômica” ou “material” não é algo do qual derivam

diretamente suas percepções em torno de um futuro melhor, mas onde estas percepções

devem fazer sentido.

As transformações no comércio de café, o esgotamento generalizado dos solos e

a difusão de políticas ditas “neoliberais” são parte fundamental daquilo que estes

produtores têm de lidar hoje em dia. Certamente que vários deles presenciaram épocas

melhores do que essa, mas igualmente experimentaram períodos trágicos. Contudo,

mesmo nos momentos mais difíceis, muitos não deixaram de acreditar num futuro

melhor através da cafeicultura e do cooperativismo. Já durante a minha estadia, as

dificuldades “econômicas” ou “materiais” dos agricultores estavam sendo relativamente

contornadas com o ingresso nos novos mercados de café, com a mediação crucial de

uma geração de jovens que tiveram acesso ao ensino superior e, principalmente, diante

do término do grave conflito civil que assolou o país entre o final da década de 80 e

começo da década de 90.

Identificar as histórias desses indivíduos como sendo verdadeiras sagas e não

dramas ou tragédias, por exemplo, permite captar com bastante acuidade a forma como

são contadas. Isso porque esse termo evidência o caráter épico ou heróico dessas

narrativas repletas de incidentes. Para além das transformações que vão ocorrendo nos

seus significados ao longo dos tempos, persiste uma visão de que as dificuldades que se

apresentam devem e podem ser contornadas. Isso se expressa no “comprometimento”

dos produtores e seus descendentes não só com suas chacras e seus cafezais, mas

também com suas cooperativas e com as de outros agricultores.

A “mitologia” ou “cosmologia” da modernidade entre essas pessoas acaba

positivando as dificuldades com os quais elas se defrontam, e os modos como

determinados agentes as superaram fazem deles verdadeiros modelos a serem seguidos.

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Trata-se de uma historicidade calcada numa visão dos “sujeitos exemplares” enquanto

os principais responsáveis pelas mudanças nos significados das narrativas que dão

sentido às ações dos indivíduos ao longo do tempo. Uma realidade “econômica” ou

“material” difícil no presente é capaz de ser relativizada ou historicizada diante de um

passado igualmente complicado. O valor desses “sujeitos exemplares” se encontra na

sua capacidade em terem superado os obstáculos que igualmente estão ou estiveram

presentes entre os que se encontram ao seu redor.

Não é sem razão que são valorizados os produtores “mais antigos” que lograram

“com muito esforço” proporcionar as condições para que seus filhos progredissem no

sistema educacional. O mesmo se dá em relação aos gerentes das cooperativas que

“ressurgiram” na década de 90. Nesses dois casos, estamos diante de verdadeiros

exemplos capazes de dar sentido para os que tentam “progredir” e se “desenvolver”

através da cafeicultura e do cooperativismo. Trata-se de variantes do que Marshall

Sahlins (1987) chamou de “modelo de história heróico”.

Segue-se daí que a historiografia não pode ser – como na boa tradição da ciência social – a simples avaliação quantitativa das opiniões ou das condições das pessoas, baseada em uma amostra estatisticamente aleatória, como se, assim, estivéssemos tomando diretamente o pulso das tendências sociais generativas. Usando uma caracterização de Elman Service, a história heróica procede mais como “Índios de Fenimore Cooper”: enquanto anda em fila indiana ao longo da trilha, cada homem tem o cuidado de pisar nas pegadas de quem está à sua frente, de modo a deixar a impressão de que ali havia apenas um único índio gigantesco. (idem p. 64)

Tais historicidades heróicas que permeiam a vida dos cafeicultores destacados

nesta tese certamente envolvem um número bem mais reduzido de gerações do que as

que perpassam os povos polinésios evocados por Sahlins nesse seu texto. No primeiro

caso, os antepassados ainda estão, em sua maioria, vivos. Os sujeitos “míticos” se

encontram lado a lado dos que os tomam como exemplo ou modelo. As “mito-práxis”

(idem), isto é, as ações baseadas nos mitos, podem ter como referenciais agentes “mais

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antigos”, não tão antigos assim, se comparados com os que informam as práticas dos

polinésios.

O ponto é que, com relação aos produtores de café aqui retratados, estes são, em

grande medida, migrantes andinos que vieram para a selva central a partir de meados do

século passado e, como também assinalou Sarah Lund Skar (1994) a respeito de outros

cafeicultores dessa mesma região e igualmente originário dos Andes, tendem a não

associar suas histórias às dos lugares da cordilheira de onde vieram.237 Isso significa

dizer, na esteira das considerações de Paul Thompson (1993 p. 18) citadas a seguir, que

eles parecem reproduzir um movimento de ruptura em certa medida similar a outros

grupos que vivenciam o fenômeno da migração:

Suspeito que, simplesmente porque a migração implica tipicamente uma ruptura, há nas famílias de migrantes uma forte tendência para a mitologização – e também, no outro extremo, para os silêncios. As histórias de vida da primeira geração freqüentemente tendem a fazer um épico da própria jornada migratória.

Evidentemente que nem todo migrante estabelece, na prática e no imaginário,

uma separação radical entre seu lugar de origem e o de destino. A maioria dos que saem

237 Skar afirma que os migrantes (illaqkuna) da comunidade andina de Matapuquio que se instalaram definitivamente na selva central, ou em Lima, experimentaram uma mudança radical na “percepção de si” com a emergência de uma perspectiva pessoal de temporalidade. “Their expectations for personal progress and development imply a self-evaluation of a personal history. (…) Within the changing context of work, from one in which continuity is stressed through cyclical celebrations and vivification to one in which more universal standards of development become normative, there is a kind of positioning of self in terms of an external normative scale. This has implications for traditional norms in which evaluation of self is largely contingent on wider social relations in the village and the harmonious interaction with the animate landscape.” (Skar, 1994 p. 227) Um exemplo dado pela autora, a respeito de um migrante andino que vive na selva central, ilustra bem esse seu ponto de vista: “He derisively insisted that Matapuquio was a backward place of illiterates and refused to talk about the village at all. Neither did he show any interest in our obvious knowledge of both Matapuquio kin and territory, themes usually eliciting immediate positive response in most other illaqkuna on first acquaintanceship. Rather he insisted that he had forgotten his village, that he had not been back for 30 years, and that he lived a sober, hard-working life. (…) What Don Luis did enjoy talking about, however, was work on the farm; how it had been when he first bought the land in 1968, how he and his wife had worked together to build the place up, learning how to grow and harvest coffee, the hardships of the fluctuating prices on the world coffee market, his preoccupation with decreasing yields and the possible necessity of abandoning the farm to relocate on new territories in the interior. This was a man with an attitude toward work as an avenue for personal achievement.” (idem p. 216)

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dos Andes para trabalhar nas regiões cafeicultoras regressa aos seus povoados depois de

terminada a colheita de café e essa migração sazonal ou circular vem acontecendo há

décadas. Mas como bem colocou Marshall Sahlins (2005), depois de ressaltar que “em

algumas partes da Indonésia, da África e de outros lugares, a migração circular acontece

há varias gerações” (idem p. 56), “o que tem maior interesse (para além da longevidade

da forma) é a criação permanente de novas formas na Cultura das culturas do mundo

moderno.” (idem). Não se trata aqui de minimizar as dificuldades enfrentadas pelos

cafeicultores e seus descendentes, mas mostrar que suas superações são “boas para

pensar” as identidades e diferenças. Vejamos, por exemplo, uma reportagem em torno

da vida do presidente do grêmio nacional das organizações de produtores de café.

A César Rivas Peña le ha tocado mucho que caminar. La primera vez que pisó Chanchamayo (Junín) tenía solo 7 años y no conocía más que las comodidades de la ciudad. Venía de Andahuaylas, capital comercial de Apurímac. Su madre, cansada del negocio infructuoso que realizaba en base a la venta de productos agrícolas poco rentables, decidió trasladarse a La Merced, distrito de Chanchamayo para trabajar en la industria del café. Era 1975 y la venta de café era el boom del momento. Las olas migratorias se habían iniciado hace más de veinte años. Los desequilibrios regionales asociados a la existencia de una sobrepoblación relativa en estas mismas zonas daban fe de estos desplazamientos. (…) La familia Rivas Peña adquirió la finca Sao Paulo y se convirtió en socia de la cooperativa La Florida. La vida no era fácil para Rivas. Todos los días caminaba 4 kilómetros para ir a la escuela y regresaba a ayudar en las labores de despulpado y secado de café. “Debíamos aprovechar la venta. Por lo general a mí me encargaban despulpar el café. Me quedaba hasta las 9 ó 10 de la noche en estas labores. Luego hacía mis tareas del colegio. Al comienzo fue difícil, no me acostumbraba pero luego llegué a amar la vida del campo”, recuerda. Sin embargo, a los 12 años tuvo que separarse de la finca. Su madre había considerado mandarlo a una escuela secundaria en Huánuco debido a la mejor calidad en la educación. Su estancia fuera del terruño se alargó más de los cinco años previstos, a causa del terrorismo. “Las huestes de Sendero Luminoso tocaban puerta por puerta para recluir a los jóvenes en la lucha armada”, dice. (...) Ante estas amenazas, cientos de jóvenes decidieron probar nuevos rumbos en la capital y otras ciudades. Rivas hizo lo mismo. Sin embargo, nunca se olvidó del cultivo del café. Luego de culminar sus estudios de Administración en un instituto superior fue elegido por su cooperativa para integrar el nuevo equipo de Comercialización en la sede de Lima. “La apertura de esta oficina fue mi salvación y la de la cooperativa. Escapé a un posible reclutamiento forzoso por parte de Sendero Luminoso y con los años logramos reconstruir la cooperativa”, comenta. (Vicelli, 2007)

Através dessa matéria jornalística (publicada numa revista da organização não-

governamental SOS Faim) é possível perceber a auto-imagem de Cesar enquanto

alguém que logrou seu sucesso através da superação de uma série de dificuldades que

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permearam sua trajetória. Trata-se de uma forma de entender a história e um modo de

subjetivação que se apóiam na precariedade das condições de vida de uma região

cafeicultora, isto é, onde as comodidades comumente associadas ao “mundo moderno”

não se encontram disseminadas. É a partir da superação de um “remedo de

modernidade” que determinados agentes se destacam e servem de exemplo para que os

demais possam “progredir”.

Os estudiosos e organizadores do comércio justo não destacam o lado “positivo”

dos percalços que marcam a vida dos produtores, ou seja, não relevam o fato de que a

superação destes obstáculos produz identidades. Tanto é que alguns dos participantes da

nova geração de membros da Cooperativa La Florida vêm se dedicando

profissionalmente a trabalhar em prol dessa superação. Esta é uma etapa mais recente

das sagas iniciadas pelos que fundaram e re-fundaram essa cooperativa.

Isso significa que devemos deixar de olhar apenas para o que seriam as carências

dos produtores de café e outros indivíduos que aparentemente se encontram numa

posição de “vítimas do capitalismo”. Enquanto lutam “por uma vida melhor”, eles

igualmente produzem e reproduzem formas de existência dentro das quais muitos se

sentem satisfeitos e realizados. É nesse contexto que Don Hector e Felix Marin, Cesar

Rivas, os Santos e Leonel, por exemplo, servem de modelo, num maior ou menos grau,

para outras pessoas ao seu redor. Estes sujeitos conseguiram se adaptar a determinadas

conjunturas antes do que os demais e, por conta disso, lhes serviram de referencial. Eles

demonstram claramente que aquilo que é muitas vezes visto como sendo um drama ou

uma tragédia também pode ser pensado como uma epopéia.

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