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Saga modernista completa 90 anos: Ideais da Semana de 22 ainda ecoam com força na arte atual. TEXTO Leonardo Calvano
O ano era 1922. São Paulo ganhava status de metrópole ao atingir quase 1 milhão de habitantes. A
aristocracia cafeeira e os imigrantes, que compunham grande parte da população na época, assistiam à
expansão territorial e ao crescimento vertical da cidade, representados por edificações simbólicas como
a Estação da Luz e as mansões da Avenida Paulista. O centro da cidade ostentava um ar europeu. Todo
esse ambiente serviu de cenário para o primeiro movimento cultural coletivo da história brasileira: a
Semana de Arte Moderna, que marcaria, em definitivo, o rumo das artes nacionais e a identidade
cosmopolita e boêmia da capital.
“Naquela época, a cidade era a que apresentava as melhores condições para a realização de um evento
como esse. Era próspera, recebia grande número de imigrantes europeus e se modernizava
rapidamente, com a implantação de indústrias e a urbanização”, afirma a historiadora e antropóloga
Letícia Viana. Era também o ambiente perfeito para propostas artísticas transgressoras, diferentemente
do Rio de Janeiro – outro polo artístico, impregnado pelas ideias da Escola Nacional de Belas-Artes –,
que, por muitos anos depois da Semana, ainda defenderia o academicismo. “Claro que existiam no Rio
artistas dispostos a renovar, mas o ambiente não lhes era propício, sendo mais fácil aderir a um
movimento que partisse da capital paulista”, completa.
Organizada por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Manuel Bandeira, Tarsila do
Amaral, Heitor Villa-Lobos e muitos outros, a Semana, realizada no Teatro Municipal de São Paulo entre
os dias 11 e 18 de fevereiro de 1922, marcou o surgimento do modernismo brasileiro, além de ser o
ponto de encontro das várias tendências que vinham se firmando mundialmente desde a Primeira
Guerra Mundial (1914-1918). O evento marcou também as comemorações do primeiro centenário da
independência do Brasil. Reuniu cerca de cem obras e compreendeu três sessões literomusicais
noturnas. Consolidou grupos e ideias, que passaram a ter espaço cativo em livros, revistas e manifestos.
As ideias que disseminou foram legitimadas por completo após alguns anos, quando chegariam a outros
estados brasileiros: em Minas Gerais, foram acolhidas pelos poetas Carlos Drummond de Andrade,
Pedro Nava, Emílio Moura, Abgar Renault e João Alphonsus; no Rio Grande do Sul, por Mário Quintana,
Augusto Meyer, Pedro Vergara e Guilhermino César, também poetas; e, no Nordeste, nas obras de José
Américo de Almeida, Jorge de Lima e outros.
De acordo com a historiadora e crítica de arte Aracy Amaral, “a Semana de Arte Moderna é um marco
por ter sido um evento preparado, e que foi fundamental para os artistas, mesmo se considerarmos que
os trabalhos expostos não são hoje, para nós, revolucionários. Mas significaram um desejo de
rompimento”. Aracy observa que o movimento trouxe duas vertentes bastante diversas: uma que
sinalizava para os valores locais, os ritmos musicais e as tradições populares. Nesse ponto, segundo a
historiadora, Mário de Andrade foi um grande agente. A outra vertente foi a das artes plásticas
baseadas em temas que remetem às raízes brasileiras. “É nesse contexto que a pintura Pau-Brasil, de
Tarsila do Amaral, emerge com sabor e força, assim como as obras de Di Cavalcanti e Cicero Dias, antes
de ir para Paris.”
Desconstrução estética
Sem programa estético definido, a Semana de 22 foi muito mais uma manifestação de rejeição ao
conservadorismo da produção literária, musical e visual do que um acontecimento construtivo de
propostas e criação de linguagens. Dois dos principais ideólogos, Mário e Oswald de Andrade,
defenderam a “recusa à literatura e à arte importadas com os traços de uma civilização cada vez mais
superada, no espaço e no tempo”. Em geral todos clamavam em seus discursos por liberdade de
expressão, pelo fim de regras na arte e por ideários futuristas, que exigiam a deposição de temas
tradicionais em nome da nova sociedade.
Na palestra proferida por Mário de Andrade na tarde do dia 15 de fevereiro, posteriormente publicada
como o ensaio “A Escrava que Não É Isaura”, em 1925, o autor debateu a importância de mesclar a
estética moderna com as raízes da cultura popular brasileira. A dinâmica entre o nacional e o
internacional se torna a questão principal desses artistas nos anos seguintes.
Vale ressaltar também que, apesar de toda a estrutura contestadora e anarquista, a Semana não foi um
fato isolado e sem origens. Discussões sobre a renovação surgiram na década de 1910, em textos de
revistas e em exposições, como a de Anita Malfatti, em 1917. Em 1921, já existia, por parte de Oswald
de Andrade e Menotti del Picchia, a intenção de transformar as comemorações do centenário em um
movimento de emancipação artística. No entanto, é no salão do mecenas Paulo Prado, em fins daquele
ano, que a ideia ganhou força, após ele promover um encontro para manifestações artísticas diversas,
inspirado na Semaine de Fêtes de Deauville, na França. O mesmo Paulo Prado, homem influente,
conseguiu o patrocínio dos barões do café para realizar o evento, além de ser fundamental para a
adesão de Graça Aranha. A presença do romancista e diplomata, que chegara havia pouco da Europa,
legitimou as reivindicações do jovem e ainda desconhecido grupo modernista.
Semente lançada
Criar uma arte baseada nas características do povo brasileiro. Esse conceito foi o principal legado
deixado pelos modernistas de 1922. O primeiro sinal de que as coisas nunca mais seriam as mesmas
veio em 1928 com o “Manifesto Antropófago”, de Oswald de Andrade, que propunha devorar
influências estrangeiras para impor um caráter brasileiro às artes plásticas e à literatura. Alguns anos
antes, o próprio Oswald e a artista plástica Tarsila do Amaral publicaram o “Manifesto da Poesia Pau-
Brasil”, que enfatizava a necessidade de criar uma arte baseada nas características do povo brasileiro,
com absorção crítica da modernidade europeia.
Nas décadas seguintes, movimentos como o cinema novo, com Glauber Rocha e Nelson Pereira dos
Santos, mostraram indícios de que a fonte modernista continuaria a alimentar nossa cultura. É notório
encontrar elementos da estética proposta na Semana em filmes como Terra em Transe e Deus e o Diabo
na Terra do Sol (Glauber) e Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade), inspirado no romance de Mário de
Andrade.
Na música, o ideário modernista reverberaria em movimentos que ocorreriam várias décadas depois,
como a bossa nova, com João Gilberto; o tropicalismo, com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé; a
vanguarda paulistana, com Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé; e o mangue beat, com Chico Science e
Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, cuja proposta estética foi fundir ritmos brasileiros como o samba, a
música de terreiro, o maracatu e o frevo com elementos estrangeiros como o jazz, a música clássica, o
rock e a música eletrônica.
Mais recentemente, o legado modernista pôde ser visto nos movimentos de arte urbana, como na
paulistana Cooperativa de Artistas da Periferia (Cooperifa). A crítica literária Heloísa Buarque de
Hollanda acredita que esse é “um dos fenômenos culturais mais importantes destes anos 2000”. Ela é a
curadora da série de livros Tramas Urbanas, da Editora Aeroplano, da qual Cooperifa, Antropofagia
Periférica, de Sérgio Vaz, lançado em 2008, é o sétimo volume. Criado pelo poeta Sérgio Vaz, o
movimento ganhou repercussão com o Sarau da Cooperifa, que recebe até 500 pessoas para ouvir e
declamar poesia, a cada edição, realizada semanalmente em um bar da zona sul da capital. “Achamos
importante registrar como surgiu esse encontro e de onde vem esse poeta revolucionário – que, em
pleno século XXI, refaz não apenas o caminho antropofágico da poesia modernista e sua Semana de Arte
Moderna, mas recria agora, dono de sua voz, o grande quilombo da poesia paulista”, declarou, na época
do lançamento, a pesquisadora.
Modernismo na rede
Internet oferece várias opções de pesquisa sobre o movimento deflagrado com a Semana de 22
Movimento multidisciplinar, a Semana de 22 teve influência não só na literatura, na música e nas artes
plásticas, mas também no teatro. Se você deseja conhecer mais sobre esse marco histórico da nossa
arte, consulte as enciclopédias virtuais do Itaú Cultural. Na Enciclopédia de Artes Visuais, há verbetes
dos artistas que participaram do evento, com textos críticos e obras representativas, e verbetes
correlatos sobre o movimento modernista e seus desdobramentos. Na de música, biografias de todos os
músicos citados nesta matéria, além de textos analíticos sobre eles. A de literatura traz, em seus
verbetes sobre os escritores brasileiros, a contribuição da estética modernista nas letras desde a década
de 1920 até a atualidade. Por fim, na Enciclopédia de Teatro, a trajetória de encenadores que puseram
em prática a experiência estética moderna, como Zé Celso.
Consulte itaucultural.org.br/enciclopedias
Fonte: http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2720&cd_materia=1839 Acesso em 25.09.2012 Colaboração: Prof. Hilário Domingues Neto