saga do mago - livro 02 - mestre - raymond e. feist

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SagadoMago-Livro02-MestreMago[2]

RaymondE.FeistEditoraSaídadeEmergência(2013)

A saga épica de Midkemia continua… Passaram-se três anos desde oterrível cerco a Crydee. Os três rapazes que eram os melhores amigosdo mundo encontram-se agora a quilômetros de distância. Pug, umescravo dos Tsurani, está prestes a se tornar um dos maiores magosque já existiram. Tomas, um grande guerreiro entre os elfos, arrisca-se aperder sua humanidade para a armadura encantada que veste. Arutha,príncipe de Crydee, luta desesperadamente contra invasores e traidorespara salvar seu reino. Mago Mestre é recheado de aventura, emoção eameaças tão antigas quanto o próprio tempo. Com o segundo volume deA Saga do Mago, Raymond E. Feist volta a provar que é um dos maioresnomes da literatura fantástica na atualidade.

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Tomasavançouatéoprimeiroprisioneirotsurani.Osoldadoamarradoolhouparacimacomumamisturademedoedesafio.Derepente,aespadadouradaseergueunoaltoedesceu,decepandoacabeçadohomem.Otabardobrancoficousalpicadodesangue,queescorreu,deixando-oimaculado.Dosescravosamontoados,ouviu-seumgemidobaixodemedo,eosolhosdosoutrossoldadossearregalaramdepavor.Emummovimentolento,Tomassevirouparaopróximosoldado...

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LIVRO2—MESTRE

MILAMBEREVALHERU

Nãopassávamos,formosaRainha,Dedoisrapazesquejulgavamnadamaishaver

Paraalémdeumamanhãigualahoje,Equeparasemprerapazesseriam.

—SHAKESPEARE,OContodeInverno.

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O

1

Escravo

escravoagonizantegritava,caído.O dia estava quente demais. Os outros escravos continuavam sededicando às suas tarefas, ignorando o som da melhor maneira

possível.Avidanoacampamentovaliapoucoenãoerabomremoerodestinoque tantos aguardavam.Omoribundo tinha sidomordido por uma relli, umacriatura do pântano semelhante a uma cobra. O seu veneno era lento edoloroso;semmagia,nãohaviacura.

De repente, fez-se silêncio.Pug levantouosolhos e viuumguarda tsuranilimpando a espada. Sentiuumamãonoombro.A vozdeLaurie sussurrou aoseuouvido:

— Parece que o nosso ilustre capataz cou perturbado com a agonia deToffston.

Pugamarroucomfirmezaumpedaçodecordaaoredordacintura.—Pelomenos,foirápido.—Virou-separaocantoraltoelourodeTyr-Sog,

umadas cidades doReino, e disse:—Fique atento. Esta é velha e pode estarpodre.—Semmaisumapalavra,Pugsubiupelotroncodangaggi,umaárvoredos pântanos parecida com o abeto da qual os tsurani extraíam madeira eresina. Com a falta de metais, os tsurani se aperfeiçoaram em descobrirsubstitutos.Amadeiradaquelaárvorepodiasertrabalhadacomopapel,secandoatéganharumadurezaincrível,eserviaparafazercentenasdeobjetos.Aresinaera usada para laminar madeiras e curtir peles de animais. Com pelesdevidamente curtidas, criavam armaduras tão resistentes quanto as cotas demalha deMidkemia, e as armas emmadeira laminada quase igualavam o seuaço.

Quatro anos no acampamento do pântano tinham fortalecido o corpo de

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Pug.Osmúsculosdelineadosseretesaramquandosubiunaárvore.Tinhaapelebronzeada pelo sol impiedoso do mundo natal dos tsurani e uma barba deescravocobria-lheorosto.

Pug alcançou os primeiros grandes galhos e olhou o amigo lá embaixo.Laurie estava atolado até os joelhos na água turva, afastando, distraído, osinsetosqueosatormentavamenquantotrabalhavam.PuggostavadeLaurie.Otrovadornãodeviaestarali,assimcomonãodeviateridoatrásdeumapatrulhana esperançade ver soldados tsurani.Contara queprocuravamaterial para asbaladasqueiriamtorná-lofamosoemtodooReino.Viramaisdoqueesperava.ApatrulhaenfrentaraumagrandeofensivaporpartedostsuranieLaurie foracapturado. Chegara ao acampamento há mais de quatro meses e em poucotemposetornaraamigodePug.

Pug continuou a subir, atento à presença dos perigosos habitantes dasárvoresdeKelewan.Alcançandoolugarmaisadequadoparaumcortenacopa,Pug parou ao perceber movimento. Relaxou ao perceber que era apenas umagulheiro, uma criatura cuja proteção era ser igual a ummonte de agulhas dengaggi. Fugiu da presença do humano e deu um salto curto até um galho daárvore próxima. Pug voltou a examinar os arredores e começou a amarrar ascordas. O seu trabalho era cortar as copas das enormes árvores, tornando aquedadaplantamenosperigosaparaosqueseencontravamnochão.

Fezvárioscortesnacascaatéque sentiua lâminadomachadodemadeiracortar a polpamaismacia por baixo.Um leve odor acre saudou o seu farejarcuidadoso.Praguejando,gritouparaLaurie:

—Estaestápodre.Aviseocapataz.Aguardou, olhando por cima da copa das árvores. À sua volta voavam

insetosestranhosecriaturasparecidascompássaros.Nosquatroanosemqueera escravo naquele mundo, não conseguira acostumar-se com o aspectodaquelasformasdevida.NãoeramtãodiferentesdasexistentesemMidkemia,mas eram as semelhanças, mais do que as diferenças, que o faziam recordarconstantemente que ali não era a sua terra. As abelhas deveriam ter listrasamarelasepretasemvezda tonalidadevermelhavivaqueascobria.Aságuiasnão deveriam ter faixas amarelas nas asas, nem os falcões, roxas. Aquelascriaturas não eram abelhas, águias nem falcões, ainda que as semelhançasfossemimpressionantes.PugachavamaisfácilaceitarascriaturasestranhasdeKelewandoqueaquelas.Pugacabarasehabituandoaosneedradeseispernas,

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bestas de carga domesticadas semelhantes a um bovino com duas pernasadicionais e atarracadas, e aos cho-ja, criaturas parecidas com insetos queserviamos tsurani e falavam sua língua. Porém, sempre que vislumbrava umacriaturapelocantodoolhoesevirava,esperandoquefossedeMidkemia,eviaquenãoera,odesesperoatacava.

AvozdeLauriedespertou-odesuadivagação:—Ocapatazestávindo.Pugpraguejou.Casoocapataztivessedesesujarnaágua, cariadepéssimo

humor — o que poderia signi car espancamentos ou uma redução da jáhabitual parca refeição.Ele já devia estar aborrecido como atrasonos cortes.Umafamíliadeescavadores—criaturassemelhantesacastorescomseispernas— tinha se acomodado nas raízes das grandes árvores. Iriam roer as raízesmacias e as árvores adoeceriam e morreriam. A madeira polposa e maciaazedaria, depois caria aguada e, decorrido algum tempo, a árvore cederia apartirdointerior.Foracolocadovenenoemváriostúneisdosescavadores,masasárvoresjátinhamsofridoosdanos.

Uma voz rouca, praguejando com vontade enquanto o seu proprietáriochapinhava pelo pântano, anunciou a chegada do capataz, Nogamu. Eletambém era um escravo, mas chegara ao patamar mais alto dentre eles e,embora não pudesse aspirar à liberdade, possuía muitos privilégios e podiamandarnossoldadosehomenslivrescolocadosàssuasordens.Eraseguidoporum jovemsoldadodeexpressão ligeiramentedivertida.Usavaabarbaraspada,como era costume entre os homens livres tsurani, e, ao olhar para Pug lá noalto,oescravopôdedarumaboaespiada.Tinhaasmaçãsdorostosalienteseosolhosquasepretos,comunsamuitostsurani.SeusolhosescurosrepararamemPug e ele pareceu fazer um curto aceno com a cabeça. A armadura azul queenvergavaeradeumtipoqueoescravodesconhecia,aindaque,dadaaestranhaorganizaçãomilitardostsurani,nãofossedeseestranhar.Cadafamília,região,área,burgo,cidadeeprovínciapareciaterseupróprioexército.Omodocomose relacionavam uns com os outros no seio do Império estava além doentendimentodePug.

O capataz parou na base da árvore, segurando as vestes curtas acima dalinhadaágua.GrunhiucomooursoquepareciaegritouparaPug:

—Quehistóriaéessadeoutraárvorepodre?Pug falava o idioma tsurani melhor do que qualquer midkemiano no

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acampamento, pois era quem estava lá hámais tempo, tirando alguns velhosescravostsurani.Gritouparabaixo:

— Tem cheiro de podre. Devíamos desbastar outra e deixar esta em paz,feitor.

Ocapatazacenoucomamão.—Vocês são todospreguiçosos. Esta árvorenão temnadade errado.Está

boa.Nãoqueremétrabalhar.Agora,corte-a!Pug suspirou. Não havia como discutir com o Urso, como Nogamu era

conhecidoportodososescravosdeMidkemia.Eraóbvioqueestavaaborrecidocom alguma coisa e seriam os escravos a pagar por isso. Pug começou a dargolpes na parte superior, que logo caiu.O cheiro de podre era intenso e Pugretirou as cordas depressa. Ainda com o último pedaço amarrado na cintura,ouviuosomdamadeirarachando.

—Vaicair!—gritouparaosescravosqueseencontravamnaáguaabaixo.Semhesitar,todosfugiram.Quandoseouviaapalavra“cair”,ninguémignoravaoaviso.

O tronco da árvore estava rachando ao meio, pois a parte de cima foracortada. Embora não fosse um comportamento habitual, se uma árvoreestivesse em estado avançadodedegradação e a polpa tivesse perdido a força,qualquerfalhanacascapoderiafazê-lasucumbiraoprópriopeso.Osgalhosdasárvoresafastariamasmetades.SePugaindaestivessepresoaotronco,ascordasocortariamaomeioantesdearrebentarem.

Pugcalculouadireçãodaqueda.Quandoametadeemqueestavacomeçouasedeslocar,atirou-sedela.Caiudecostasnaáguarasa,naesperançadequeomeiometrodeprofundidadesuavizasseaquedatantoquantopossível.Obaquenaáguafoiimediatamenteseguidopeloimpactomaisviolentocontraochão.Ofundo era feito principalmente de lama, logo ele não sofreu grandes danos.Comochoque,oarquetinhanospulmõesexplodiuporsuaboca,deixando-otonto por um instante.Manteve presença de espírito su ciente para sentar eexpirarfundo.

De repente, sentiu um peso golpear-lhe o estômago, deixando-o sem ar eempurrandoasuacabeçadenovoparabaixodaágua.Debateu-se,tentandosemexer,esentiuumgalhoenormeemcimadoestômago.Malconseguiamantero rosto à tona para respirar. Sentia os pulmões ardendo e respiravadescontroladamente. A água entrou pela traqueia e começou a sufocá-lo.

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Tossindo e cuspindo, tentou manter a calma, mas o pânico começava aapoderar-se dele. Desesperado, tentou empurrar o peso de cima dele, mas ogalhonãosemexeu.

Subitamente,sentiuacabeçaforadaáguaeouviuLauriedizer:—Cuspa,Pug!Expulseessaporcariaouvaipegarafebredospulmões.Pugtossiuecuspiu.ComLauriesegurandoasuacabeça,recuperouofôlego

aospoucos.Lauriegritou:—Agarremogalho.Euopuxodeládebaixo.Vários escravos chapinhavam ao redor, com os corpos suados. Pegaram o

galhosubmersocomesforçoeolevantaramumpouco,masnãoobastanteparaqueLauriearrastassePugdali.

—Tragammachados.Temosdecortarogalho.Osoutrosescravoscomeçaramalevarmachados,masNogamugritou:— Não. Deixem aí. Não temos tempo para isso. Há mais árvores para

cortar.Lauriequasegritou:—Nãopodemosdeixá-loaqui!Vaiseafogar!OcapatazavançouebateuemLauriecomochicote.Fezumcorteprofundo

nafacedocantor,quenãolargouacabeçadoamigo.—Volte ao trabalho, escravo. Hoje à noite você será espancado por falar

comigodessamaneira.Háoutrosqueconseguemsubiraté láemcima.Agora,deixe-o!—VoltouabateremLaurie,queseencolheumasmanteveacabeçadePugacimadaágua.

Nogamuergueuochicoteparao terceirogolpe,mas foi impedidoporumavozqueveiodetrás:

—Tiremoescravodebaixodogalho.Laurieviuquequemtinhafaladoforaojovemsoldadoqueacompanhavao

feitor. O capataz virou-se, desacostumado a ter suas ordens questionadas.Quandoviuquemfalara,reprimiuaspalavrasqueestavamnapontada língua.Assentindocomacabeça,disse:

—Sejafeitaasuavontade.Fez sinal aos escravos com os machados para que libertassem Pug, que,

pouco depois, encontrava-se a salvo. Laurie levou-o até o lugar onde estava ojovemsoldado.Pugtossiuoquerestavadeáguanospulmõesedisse,ofegante:

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O

—Agradeçoaomeuamopelaminhavida.O homem nada disse, mas, quando o capataz se aproximou, dirigiu-lhe

algumasobservações:—O escravo tinha razão e você não. A árvore estava podre. Não é certo

castigá-lo por sua falta de discernimento e seu mau humor. Devia mandarespancá-lo,masnãovouperdertempocomisso.Otrabalhoavançadevagareomeupaiestádescontente.

Nogamuabaixouacabeça.— Sinto-me humilhado com o que meu senhor pensa de mim. Tenho

permissãoparatiraraminhaprópriavida?—Não.Seriahonrademais.Volteaotrabalho.Orostodocapatazenrubesceuderaivaevergonhasilenciosas.Erguendoo

chicote,apontouparaLaurieePug.—Vocêsdois,voltemaotrabalho.Laurie levantou-seePugtentou.Tinhaos joelhospouco rmes,poisquase

seafogara,masconseguiuficardepéapósváriastentativas.—Estesdoisestãodispensadospelorestododia—disseojovemlorde.—

Este aqui— apontou para Pug— não tem grande utilidade. O outro tem detrataroscortesquevocêlhefezouirãoinfeccionar.—Virou-separaoguarda.—Leve-osdevoltaaoacampamentoparaquecuidemdeles.

Pug sentiu-se grato, não tanto por ele, mas por Laurie. Com algumdescanso,Pugpoderia ter retomadoo trabalho;noentanto,uma feridaabertaemumpântano signi cava,namaioriadas vezes,uma sentençademorte.Asinfecçõeseramrápidasnaquelelugarquenteesujo,ehaviapoucostratamentosdisponíveis.

Seguiram o guarda. Enquanto se afastavam, Pug percebeu que o feitor osfitavacomódioindisfarçadonoolhar.

assoalho rangeu e Pug acordou na mesma hora. A cautela nascida edesenvolvida pela escravidão advertiu-o de que aquele som não se

encaixavanointeriordacabana,nomeiodanoite.Na penumbra, ouviu passos que se aproximavam, parando aos pés de seu

catre. Ao seu lado, ouviu uma súbita inspiração e soube que o menestreltambémestava acordado.Provavelmente,metadedos escravos tinhaacordadocom o intruso. O desconhecido pareceu hesitar e Pug esperou, tenso com a

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incerteza.Ouviu-seumgrunhidoe, semesperar,Pugroloupara foradocatre.Escutoualgopesadobatendonochão,eoruídosurdodeumaadagaatingindoolugar onde o seu peito estivera momentos antes. De repente, o alojamentoexplodiuemumfrenesi.Osescravosgritavamecorriamparaaporta.

Pugsentiumãosagarrando-onaescuridãoe logoumadoragudaexplodiu-lhe no peito. Tentou alcançar o agressor às cegas, brigando pela posse dalâmina.Outrogolpefez-lheumcortenapalmadamãodireita.Subitamente,oatacanteparoude semexerePugpercebeuquehaviauma terceirapessoaemcimadopretensoassassino.

Soldados entraram correndo na cabana, com lanternas nasmãos. Pug viuLaurie caído por cima do corpo imóvel de Nogamu. O Urso ainda respirava,mas, considerandoa formacomoaadaga saíade sua caixa torácica,não seriapormuitotempo.

O jovem soldado que salvara as vidas de Pug e Laurie entrou e os outrosabriram caminho para que passasse. Parou perto dos três combatentes esimplesmenteperguntou:

—Estámorto?Ocapatazabriuosolhose,emumsussurrofraco,conseguiudizer:— Estou vivo, senhor. Mas morro pela espada. — Um sorriso leve e

desafiadorapareceunorostosuado.A expressão do jovem soldadonão revelou qualquer emoção, embora seus

olhosparecessememchamas.—Nãocreio—dissecalmamente.Virou-separadoissoldados:—Levem-

no já para fora e enforquem-no. Não haverá honra alguma para ser cantadapeloseuclã.Deixemocorpoparaosinsetos.Servirácomoavisoparaquenãomedesobedeçam.Vão.

Orostodomoribundoempalideceueseuslábiostremeram:—Não,meu amo. Eu imploro, deixe-memorrer pela espada. São sómais

uns minutos. — Uma espuma avermelhada surgiu nos cantos da boca dohomem.

Dois rudes soldados agarraramNogamu e, sem se importarem com o seusofrimento, arrastaram-no para fora. Ele gritou por todo o percurso. A forçaque permanecia na sua voz era surpreendente, como se o medo da forcadespertasseumareservaprofunda.

Ficaram parados como em um quadro até o som terminar em um grito

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sufocado. Nesse momento, o jovem o cial virou-se para Pug e Laurie. Pugestavasentadocomsangueescorrendodocortecompridoesuper cialnopeito.Segurava a mão ferida com a outra. Este corte era fundo e os dedos não semexiam.

—Tragaoseuamigoferido—ordenouojovemsoldadoaLaurie.LaurieajudouPugaselevantareseguiramoo cialparaforadabarracados

escravos. Conduziu-os pelo complexo até o seu alojamento, ordenando queentrassem. Lá dentro, ordenou a um guarda que chamasse o médico doacampamento.Deixou-osdepé,emsilêncio,atéachegadadomédico.Eraumtsurani idoso, vestido comoumde seusdeuses—qualdeles, osmidkemianosnãoconseguiamprecisar.ExaminouosferimentosdePugeconsiderouogolpenopeitosuperficial.Jáamãoeraoutroassunto.

—Ogolpefoifundoeosmúsculosetendõesforamcortados.Vaisarar,masterá perda demovimentos e pouca força para agarrar. Provavelmente, serviráapenasparatrabalhosleves.

Osoldadoacenoucomacabeça,umaexpressãopeculiarno rosto,misturadedescontentamentoeimpaciência.

—Muitobem.Cuidedosferimentosedeixe-nos.Omédicocomeçoulimpandoasferidas.Deuvintepontosnamão,cobriu-a

combandagens,advertiuPugdequeasmantivesselimpasesaiu.Pugignorouador,tranquilizandoacabeçacomumantigoexercíciomental.

Quandoomédicosaiu,osoldadoestudouosdoisescravosàsuafrente.—PelaLei,deveriaenforcá-losporteremassassinadoofeitor.Nãoresponderam.Permaneceramcaladosatéque lhes fosseordenadoque

falassem.— Contudo, como enforquei o feitor, posso mantê-los vivos se me for

conveniente.Posso somentemandarpuni-los por o terem ferido.—Fezumapausa.—Considerem-secastigados.

Acenandocomamão,disse:—Saiam,masregressemaoamanhecer.Tenhodedecidiroquefazercom

vocês.Eles saíram, sentindo-se com sorte, pois em outras circunstâncias teriam

sido enforcados ao lado do antigo capataz. Enquanto cruzavam o complexo,Lauriedisse:

—Nãoentendioqueacaboudeacontecer.

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O

—Estoumachucadodemaisparapensar—Pugrespondeu.—E cogratoporvermosoutrodianascer.

Laurienadarespondeuatéchegaremàbarraca.—Achoqueojovemamotemumacartanamanga.—Tanto faz. Já desisti de entender os nossos senhores. Por isso consegui

sobreviver tanto tempo, Laurie. Limito-me a fazer aquilo queme ordenam eaguento.—Pugindicouaárvoreondeseviaocorpodoantigocapatazaoluarpálido;somentealuapequenasurgiranaquelanoite.—Émuitofácilacabarmosdaquelaforma.

Laurieconcordou.—Talvezvocêestejacerto.Aindapensoemfugir.Pugriu,umsombreveeamargo.— Para onde, trovador? Para onde você fugiria? Para o portal onde o

esperamdezmiltsurani?Laurie não respondeu. Voltaram aos catres e tentaram dormir no calor

úmido.

jovem o cial estava sentado em um monte de almofadas, de pernascruzadas, como era hábito dos tsurani. Mandou embora o guarda que

tinha acompanhado Pug e Laurie e gesticulou para que os dois escravos sesentassem.Obedeceramdemodohesitante,poisnormalmenteumescravonãotinhapermissãoparasesentarnapresençadoamo.

— Sou Hokanu, dos Shinzawai. O meu pai é dono desta propriedade —disse, sem rodeios.—E ele estámuitodescontente coma colheitadeste ano.Mandou-me para cá para ver o que poderia ser feito. Agora, não tenho umcapataz para organizar o trabalho, pois o tolo colocou a culpa da própriaimbecilidadeemvocê.Oquedevofazer?

Osdoisescravosnãoresponderam.Eeleperguntou:—Háquantotempoestãoaqui?Pug e Laurie responderam, um de cada vez. O senhor considerou as

respostasedisse:—Você—apontouparaLaurie—nãotemnadaforadocomum,alémde

falar o nosso idiomamelhor do que amaior parte dos bárbaros, se pesarmostodososfatores.Jávocê—apontouparaPug— couvivopormaistempodoque qualquer um dos seus compatriotas arrogantes e também fala o nosso

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idiomacomperfeição.Talvezatépassasseporumcamponêsdeumaprovínciaremota.

Ambos caramimóveis,insegurossobreasintençõesdeHokanu.Pug couchocadoaoperceberque talvez fosseumanooudoismaisvelhodoqueoseujovem senhor. Ele eramuito novo para tanto poder.Os costumes dos tsuranierammuitoestranhos.EmCrydee,aindaseriaaprendizou,casopertencesseànobreza,estariaaindaaprendendoaartedegovernar.

—Comoaprendeuafalarnossoidiomatãobem?—perguntouaPug.—Amo,euestavaentreosprimeirosaseremcapturadosetrazidosparacá.

Éramosapenasseteentretantosescravostsurani.Aprendemosasobreviver.Osoutros morreram de febre ardente ou com feridas infeccionadas, ou forammortospelosguardas.Nãohavianinguémquefalasseaminhalínguacomquemconversar.Demoroumaisdeumanoatéoutrocompatriotameuchegaraesteacampamento.

OoficialacenoucomacabeçaeperguntouaLaurie:—Evocê?—Amo,soucantor,ummenestrelnaminhaterra.Temosporhábitoviajar

muitoeprecisamosaprendermuitosidiomas.Tambémtenhobomouvidoparaamúsica.O seu idioma é o que designamospor língua tonal nomeumundo;palavras com o mesmo som, mas que, quando são pronunciadas comentonações diferente, mudam de signi cado. Existem vários idiomas dessegêneronosuldonossoReino.Aprendodepressa.

Umbrilhotênuesurgiunosolhosdosoldado.—Ébomsaberdisso.—Perdeu-seempensamentos.Poucodepois,abanou

acabeçaparasimesmo.—Sãomuitasasconsideraçõesqueforjamodestinodeumhomem, escravos.—Sorriu, fazendo lembrarmais umgaroto do que umhomem.—Esteacampamentoestácaótico.Eudevomandarumrelatórioparaomeupai,oLordedosShinzawai.Eachoquejáseiquaissãoosproblemas.—ApontouparaPug.—Gostariadeouviroquepensasobreoassunto.Estáaquihámaistempodoquequalqueroutrapessoa.

Pug se recompôs. Passara muito tempo desde que alguém solicitara suaopiniãosobreoquequerquefosse.

— Meu amo, o primeiro capataz, aquele que estava aqui quando fuicapturado, eraumhomemsagaz,que compreendiaqueoshomens, aindaqueescravos,nãopodemserobrigadosatrabalharbemseestiveremdebilitadospela

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fome. A comida era melhor e, se nos feríssemos, tínhamos tempo paramelhorar.Nogamueraumhomemmal-humoradoquetomavacadarevéscomoumaafrontapessoal.Quandoosescavadoresarruinavamumgrupodeárvores,a culpa era dos escravos. Se um escravo morresse, era um complô paradesacreditarotrabalhodele.Cadadi culdadeerarecompensadacommaisumcortenacomidaoumaishorasdetrabalho.Ossucessoseramvistoscomoobraexclusivadele.

—Écomoeudescon ava.Nogamujáfoiumhomemmuitoimportante.Erao hadonra, o administrador das propriedades de seu pai. A sua família foiconsiderada culpada de conspirar contra o Império e aqueles que não foramenforcados foram vendidos como escravos por seu próprio clã.Nunca foi umbom escravo. Achamos que a responsabilidade pelo acampamento seria umaformaútildeusarosseusconhecimentos.Estáprovadoquenãofoiocaso.Háalgumhomementreosescravosquepossacomandá-losdeformacompetente?

Laurieinclinouacabeça,dizendoemseguida:—Amo,oPug...—Achoquenão.Tenhoplanosparavocêsdois.Pugficousurpreso,pensandonosignificadodaquelaspalavras.—TalvezChogana,amo—disse.—Erafazendeiro,atéperderascolheitas

eservendidocomoescravoporcausadosimpostos.Eleéumhomemsensato.Osoldadobateupalmasumaúnicavezelogoentrouumguarda.—MandetrazeroescravochamadoChogana.Oguardabateucontinênciaesaiu.— É vantajoso, já que se trata de um tsurani — disse o soldado. — Os

bárbaroscomovocêsnãosabemqualéoseulugarenãomeagradapensarnoquepoderiaacontecer seumdevocês cassecomocargo.Mandariaosmeussoldadoscortaremasárvores,enquantoosescravosficavamdeguarda.

Depois de um momento de silêncio, Laurie começou a rir. Era um somesplêndido e profundo. Hokanu sorriu. Pug observava atentamente. O jovemque tinha as suas vidas nas mãos parecia estar se esforçando para ganhar acon ança dos dois. Laurie demonstrava ter simpatizado com ele, mas Pugmanteve seus sentimentos em suspenso. Estava afastado há mais tempo daantigasociedademidkemiana,emqueaguerratornavanobreseplebeusirmãosdearmas, capazesdepartilhar refeições edesgraças semsepreocuparemcomhierarquias. Algo que aprendera logo sobre os tsurani fora que eles jamais

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U

esqueciamo seu lugar.Oquequerqueestivesseacontecendoali forapensadopelo jovemnobre,nãoera frutodoacaso.HokanupareceutersentidooolhardePugeencarou-o.Osseusolharescruzaram-seporumsegundoantesdePugbaixaroseu,comoseriadeseesperardeumescravo.Poruminstante,elessecomunicaram. Era como se o soldado tivesse dito: “Não acredita em minhaamizade.Tudobem,desdequedesempenheoseupapel.”

Comumacenodemão,Hokanudisse:—Voltem à barraca.Descansem bem, pois partiremos após a refeição do

meio-dia.Levantaram-se e zeram uma mesura, recuando até sair. Pug caminhava

calado,masLauriedisse:—Paraondeseráquevamos?—Nãoobtendoresposta,prosseguiu:—Seja

comofor,certamenteseráumlugarmelhordoqueeste.Pugseperguntouserealmenteseriamelhor.

mamãosacudiuoombrodePug,queacordou.Tinhacochiladonocalordamanhã,aproveitandoodescansoadicionalantesdepartircomLauriee

o jovem nobre depois da refeição domeio-dia. Chogana, o antigo fazendeiroque Pug recomendara, gesticulou para que não zesse barulho, indicandoLaurie,quedormiaprofundamente.

Pug seguiu o velho escravo para fora da cabana e os dois sentaram-se nasombradacasa.Falandodevagar,comoeraseuhábito,Choganadisse:

— O meu senhor Hokanu disse que você foi decisivo na minha escolhacomofeitordoacampamento.—OseurostomorenoeenrugadoresplandeciadignidadeaofazerumamesuracomacabeçaparaPug.—Estouemdívidacomvocê.

Pug devolveu o cumprimento, formal e pouco comum naqueleacampamento.

— Não existe nenhuma dívida. Você irá se comportar da forma que umcapatazdevefazer.Irácuidarbemdosnossosirmãos.

OvelhorostodeChoganaabriu-seemumgrandesorriso,revelandodentesmanchados de marrom devido aos anos mascando nozes de tateen. A nozlevemente narcótica — fácil de encontrar no pântano — não reduzia ae ciência,mas fazia o trabalhopesarmenos. Pug evitara ohábito, por razõesqueelenãorevelava,talcomograndepartedosmidkemianos.Decertaforma,

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eracomoaderrotadaforçadevontade.Choganaolhavaparao acampamento, os olhos semicerradospor causada

luzforte.Estavavazio,àexceçãodaguardapessoaldojovemsenhoredaequipedocozinheiro.Adistância,osruídosdogrupodetrabalhadoresecoavampelasárvores.

— Quando era rapaz, na fazenda de meu pai em Szetac — começouChogana — descobriram que eu tinha talento. Fui avaliado e consideradoincapaz. — Pug não entendeu o signi cado da última frase, mas nãointerrompeu.—Porisso,tornei-meagricultor,talcomoomeupai.Noentanto,omeutalentoestavalá.Porvezes,vejocoisas,Pug,coisasdentrodoshomens.Quando cresci, a notícia sobre meu talento se espalhou e as pessoas,especialmenteospobres,vinhammepedirconselhos.Naquelaépoca,erajoveme arrogante, e cobrava muito para dizer o que via. Mais tarde, tornei-mehumilde e aceitavaoquemeofereciam,mas continuava adizeroquevia.Dequalquer forma, as pessoas partiam zangadas. Sabe por quê? — perguntoudandoumarisadinha.Pugsacudiucabeça.—Porqueaspessoasnãoiamouviraverdade,iamouviraquiloquequeriamouvir.

PugpartilhouagargalhadadeChogana.— Por isso, ngi que o talento desaparecera e, passado algum tempo, as

pessoasdeixaramdeiràminhafazenda.Contudo,otalentonuncasumiu,Pug,e,àsvezes,aindaconsigovercoisas.Vialgoemvocêequerialhecontarantesque vá embora para sempre. Morrerei neste acampamento, mas um destinodiferenteoespera.Vocêouviráoquetenhoparalhedizer?—Pugassentiueooutroprosseguiu:—Existeumpoderpresodentrodevocê.Oqueéedoquesetrata,nãosei.

Cientedasestranhasatitudesdostsuraniemrelaçãoaosmagos,Pugsentiuumpânicorepentinocomapossibilidadedealguémterdetectadoasuaantigavocação.Paraamaioria,elenãopassavademaisumescravonoacampamento;poucossabiamqueforaescudeiro.

Choganacontinuou,falandodeolhosfechados:— Sonhei com você, Pug. Eu o vi no alto de uma torre, enfrentando um

terrívelinimigo.—Abriuosolhos.—Nãoseiqualosigni cadodosonho,masvocê precisa saber disso. Antes de subir naquela torre e enfrentar o seuadversário, você precisa encontrar o seuwal: o centro secreto do seu ser, olugar perfeito da paz interior. Assim que você o encontrar, estará a salvo de

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P

todomal.A sua carne poderá sofrer, atémesmomorrer,mas, no interior doseuwal, você resistirá em paz. Procure bem, Pug, pois poucos são os queencontramowal.

Pugagradeceueonovofeitorselevantou.—Vocêpartiráembreve.Vamos,temosdeacordarLaurie.Quandoentravamnacabana,Pugperguntou:—Sómaisumacoisa:vocêfaloudeuminimigonoaltodeumatorre.Você

oviubem?Choganariuefezquesimcomacabeça.— Oh, sim, eu o vi. — Continuou a rir enquanto subia os degraus até a

barraca. — É o adversário que a maioria dos homens mais teme. — OlhossemicerradosencararamPug.—Oinimigoeravocê.

ug e Laurie estavam sentados nos degraus do templo, com seis guardastsuranidescansandoemvoltadeles.Aolongodaviagem,osguardastinham

sidoquase corteses.A jornada fora cansativa, se nãodifícil. Sem cavalosnemnadaqueossubstituísse, todosostsuraniquenãoseguiamemumacarroçadeneedra deslocavam-se andando por seus próprios pés ou pelos de outros. Osnobres eram transportados para cima e para baixo nas largas avenidas emliteirascarregadasporescravosofegantesesuados.

PugeLaurie tinhamrecebidoos trajescurtosecinzentosdosescravos.Astangas, adequadas para os pântanos, foram consideradas indecentes para umaviagem entre cidadãos tsurani. Pug concluiu que os tsurani davam grandeimportância ao recato — quase tanto quando as pessoas do Reino. Tinhamseguidoaestradaao longodacostadagrandemassadeáguadenominadaBaíada Batalha. Pug pensara que, se fosse mesmo uma baía, seria maior do quequalqueruma emMidkemia, poismesmodos altos penhascos que se erguiamacima do mar não conseguia ver o outro lado. Após vários dias de viagem,encontraramterrascultivadase logoavistaramacostaopostaaproximando-serapidamente.MaisunsdiasnaestradaealcançaramacidadedeJamar.

Pug e Laurie observavam o movimento, enquanto Hokanu realizava umaoferenda no templo. Os tsurani pareciam loucos por cores. Ali, até otrabalhadormaishumildeprovavelmenteestariavestidocomumatúnicacurtade cores vivas.Os abastados vestiam trajesmais vistosos, cobertos de padrõescomplexos.Somenteosescravosnãousavamroupascoloridas.

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Por toda a cidade, amontoavam-se pessoas: agricultores, mercadores,trabalhadores e viajantes. Filas de needra arrastavam-se pelas ruas, puxandocarroças cheias de produtos agrícolas emercadorias.A quantidade de pessoasimpressionava Pug e Laurie, pois os tsurani lembravam formigas correndo,mesmonocalorforadocomum,comoseocomérciodoImpérionãopudesseesperar pelo bem-estar dos seus cidadãos.Muitos dos que passavam paravampara observar os midkemianos, que consideravam bárbaros gigantes. Aquelepovo atingia nomáximoummetro e sessenta e até Pug era considerado alto,tendo chegado a um metro e setenta. Por sua vez, os midkemianos tinhamcomeçadoasereferiraostsuranicomopigmeus.

Pug e Laurie olhavam ao redor. Esperavam no centro da cidade, ondeestavamlocalizadososgrandestemplos.Dezpirâmidesdetamanhosdiferentes,mas igualmente enfeitadas, cavam nomeio de uma série de parques. Todasestavam ricamente decoradas com murais pintados e azulejos. De ondeestavam, os jovens viam três dos parques. Dispostos em terraços, erampercorridos por pequenos cursos d’água, inclusive com pequenas cachoeiras.Árvoresanãs,bemcomograndesárvoresquedavamsombra,salpicavamochãodosparques,cobertosderelva.Músicosambulantestocavam autaseestranhosinstrumentos de cordas, produzindomúsica esquisita e polifônica, entretendoaspessoasquerepousavamnosjardinsouquepassavam.

Laurieescutavaextasiado.— Escute os semitons! E osmenores, diminutos!— Suspirou e baixou os

olhos, com um armelancólico.— É estranho,mas émúsica.—Olhou paraPug,semohumorhabitual.—Seaomenoseupudessevoltaratocar.—Olhouderelanceparaosmúsicosdistantes.—Podiaatécomeçaragostardamúsicatsurani.—Pugdeixou-ocomosseusdesejos.

Olhou ao redor da movimentada praça, tentando organizar todas asimpressões que recebera desde a entrada na cidade. Por todos os lados, aspessoascorriamtratandodeseusafazeres.Pertodotemplo,tinhampassadoemum mercado, não muito diferente dos existentes no Reino, mas em maiorescala. Os sons dos vendedores ambulantes e dos compradores, os odores, ocalor,tudoaquilolembravaasuaterra,deummodoinesperado.

QuandoaescoltadeHokanuseaproximava,osplebeusabriamcaminho,osguardas na dianteira da procissão gritando “Shinzawai! Shinzawai!”,informandoa todosque se aproximavaummembrodanobreza. Somente em

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uma ocasião a escolta deu passagem na cidade para um grupo de homens devermelho,vestindomantosdepenasescarlates.AquelequePugpensouserumsumo sacerdote usava umamáscara de madeira desenhada para parecer comuma caveira vermelha, enquanto os demais tinham os rostos pintados devermelho. Tocavam apitos vermelhos e as pessoas se dispersavam paradeixarem o caminho livre. Um dos soldados fez o sinal de proteção e, maistarde, Pug soube que aqueles homens eram sacerdotes de Turakamu, odevoradordecorações,irmãodadeusaSibi,amorte.

Pugvirou-separaumguardaqueestavapertodele e fezumgestopedindopermissãoparafalar.OguardaacenouacabeçaePugperguntou:

—Meu senhor, quedeusmora aqui?—E indicouo temploondeHokanurezava.

— Bárbaro ignorante — respondeu o soldado de modo amigável —, osdeuses não residem dentro destas paredes, mas nos Céus Superiores eInferiores.Estetemploexisteparaqueoshomensfaçamassuasdevoções.Ali,o lho do meu senhor faz oferendas a Chochocan, o bom deus do CéuSuperior,eaoseuservo,Tomachaca,odeusdapaz,pedindoboafortunaparaosShinzawai.

QuandoHokanuregressou,retomaramacaminhada.Atravessaramacidadee Pug continuou a estudar as pessoas pelas quais passavam. A multidão eraenormeePugperguntou-secomoconseguiriamsuportar.Comolavradoresquevisitam a cidade pela primeira vez, Pug e Laurie abriam a boca de espantoperante as maravilhas de Jamar. Até o trovador supostamente viajadoexclamava diante desta ou daquela visão. Não demorou para os guardascomeçarem a rir com omaravilhamento dos bárbaros com as situaçõesmaisbanais.

Todos os edifícios pelos quais passavam eram feitos de madeira e de ummaterial translúcido, parecido com tecido, mas rígido. Alguns, como ostemplos, eram feitosdepedra, emboraoquemais sobressaísse fosseo fatodeque todos os prédios pelos quais passavam, de templos a modestas casas detrabalhadores, estarempintados de branco, excetuando as vigas con nantes eoscaixilhosdasportas,polidosemmarrom-escuro.Todasassuperfíciesabertasestavam decoradas com pinturas coloridas. Eram abundantes as cenas comanimais, paisagens, divindades e cenasde batalhas.Havia, por todo lado, umaprofusãodecoresqueconfundiaavisão.

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Ao norte dos templos, do outro lado de um dos parques e de frente paraumaavenidaampla,haviaumedifícioisoladoporvastosgramadoslimitadosporsebes.Doisguardas,comarmaduraseelmosparecidoscomosdosguardasqueosacompanhavam,estavamdesentinelafrenteàporta.BateramcontinênciaaHokanuquandoesteseaproximou.

Sem dizerem uma única palavra, os outros guardas contornaram a casa,deixandoosescravoscomojovemo cial.Estegesticuloueumdosguardasdaentradafezdeslizaraenormeportacobertacomtecido.Entraramemumpátioabertoquelevavaaosfundos,comportasdecadalado.Hokanuconduziu-osatéumaporta,queumescravodacasaabriu.

Pug e Laurie descobriramque a casa tinha a forma de umquadrado, comum grande jardim ao centro, acessível por todos os lados. Junto a um lagoborbulhante estava sentado um homemmais velho, vestido com uma túnicaazul-escura, simples, porém de aspecto caro. Consultava um pergaminho elevantoua cabeçaquandoos três entraram, candodepépara cumprimentarHokanu.

O jovem tirouo elmoe couemposiçãode sentido.Pug eLaurie caramatrás,calados.OhomemfezumacenocomacabeçaeHokanuaproximou-se.Abraçaram-seeohomemmaisvelhodisse:

—Meufilho,ébomvoltaravê-lo.Comoestavaoacampamento?Hokanurelatouoqueviranoacampamentodeformasucintaedireta,não

esquecendo nada de importante. Depois, relatou as ações tomadas pararemediarasituação.

—Assimsendo,onovocapataziráassegurar-sedequeosescravostenhamcomida su ciente e de que descansem o tempo necessário. Em breve, aproduçãodeverásubir.

Opaiassentiu.—Achoque você agiude forma sensata, lho.Teremosde enviar alguém

dentro de algunsmeses para veri car se houve progresso,mas a situaçãonãopodia car pior do que estava. O Senhor da Guerra exige mais produção eestamosprestesacairemdesgraça.

Pareceu,então,notarosescravospelaprimeiravez.—Eeles?—foitudooquedisse,apontandoparaLaurieePug.—Elessãodiferentes.Lembrei-medanossaconversananoiteantesdemeu

irmãopartirparaonorte.Talvezvenhamaserevelarvaliosos.

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—Você falou disso commais alguém?—Rugas rmes acentuaram-se aoredordosolhos cinzentos.Emboramuitomaisbaixo, faziaPug se lembrardeLordeBorric.

—Não,meupai. Somente aqueles que zeramparte do conselhonaquelanoite...

Osenhordacasainterrompeu-ocomumacenodemão.— Guarde os comentários para mais tarde. “Não con e segredos a uma

cidade.” Informe Septiem. Vamos fechar a casa; partimos de manhã para asnossasterras.

Hokanufezumaligeiramesura,virando-sedepoisparasair.—Hokanu.—Avozdopaiodeteve.—Bomtrabalho.—Comoorgulho

refletidonorosto,ojovemdeixouojardim.Osenhordacasavoltouasentar-seemumbancodepedraesculpidajuntoà

pequenafonteecontemplouosdoisescravos.—Comosechamam?—Pug,meuamo.—Laurie,meuamo.Elepareceudeduziralgodaquelassimplesafirmações.—Poraquelaporta—disse,gesticulandoparaaesquerda—vocêschegam

àcozinha.Omeuhadonrachama-seSeptiem.Tratarádosdois.Agora,vão.Fizeram umamesura e saíram do jardim. Enquanto avançavam pela casa,

Pugquasederrubouumagarotaaovirarumaesquina.Estavavestidacomoumaescravaecarregavaumagrandetrouxaderoupa,quevooupelocorredor.

—Oh!—gritouela.—Acabeidelavararoupa.Vouterdelavá-ladenovo.—Semhesitar,Pugabaixou-separaajudá-laapegararoupa.Paraumatsurani,era alta, quase do tamanho de Pug, e bem proporcionada. Tinha o cabelocastanho preso atrás e os olhos também castanhos estavam enquadrados porlongos cílios escuros. Pug parou o que estava fazendo e contemplou-a comevidente admiração.Ela hesitoudiante doolhar curiosodo rapaz e, depois depegarorestantedaroupa,partiuapressada.Lauriecontemplouaelegante guradagarotaseafastando,aspernasbronzeadasgenerosamenteàmostraabaixodacurtatúnicadeescrava.

LauriedeuumapalmadanoombrodePug.—Ah!Bemqueeudissequeascoisasiammelhorar.Saíramdacasaechegaramàcozinha,ondeocheirodecomidaquenteabriu

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N

seuapetite.—Achoquevocêimpressionouaquelamoça,Pug.Pug não tinha grande experiência com mulheres e sentiu as orelhas

arderem.Noacampamentodeescravos,muitasdasconversaseramsobreelas,e isso,mais do que qualquer outra coisa, fazia com que se sentisse ainda umgaroto. Virou-se para ver se Laurie estava brincando e reparou que o cantorlouroolhavaparatrás.Seguiuoseuolhareaindaconseguiuverderelanceumtímidorostosorridenteseafastandodeumajaneladacasa.

odiaseguinte,acasadafamíliaShinzawaiestavaemalvoroço.Escravoseserviçais corriam de um lado para outro, preparando a viagem para o

norte.PugeLaurieforamdeixadosporcontaprópria,poisnãohavianinguémdo pessoal da casa disponível para lhes atribuir alguma tarefa. Sentaram-se àsombra de uma enorme árvore que lembrava um salgueiro. Apreciando anovidadedeterumtempolivre,observavamaconfusão.

— Eles são doidos, Pug. Já vi preparativosmaismodestos para caravanas.Atéparecequequeremlevartudo.

—Éprovávelquequeiram.Essagentejádeixoudemesurpreender.—Puglevantou-se,encostando-seaotronco.—Jávicoisasquedesafiavamalógica.

—Éverdade.Noentanto,quandojáseviutantasterrasdiferentescomoeuvi,aprendemosquequantomaisdiferentesascoisassão,maiselasseparecem.

—Comoassim?Laurie levantou-se e apoiou-se no lado oposto da árvore. Em voz baixa,

disse:—Nãotenhocerteza,masestãopreparandoalgoenósestamosenvolvidos,

issoeugaranto.Seficarmosatentos,talvezpossamosaproveitarisso.Lembre-sesempredeque,seumhomemquiseralgodevocê,ésemprepossívelnegociar,independentementedadiferençasocial.

—Claro.Dêoqueelequereeledeixarávocêvivo.—Vocêéjovemdemaisparasertãocínico—retrucouLaurie,asatisfação

brilhando em seus olhos. — Vamos combinar uma coisa: você deixa essaatitudecansadaparavelhosviajantescomoeuevoumecerti cardequevocênãodesperdicenenhumaoportunidade.

Pugresfolegou.—Qualoportunidade?

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—Bom,porexemplo—disseLaurie,apontandoparatrásdePug—,aquelagarota que você quase derrubou ontem parece estar com di culdades paralevantar aquelas caixas. — Pug olhou de relance para trás e viu a jovemsofrendo para empilhar várias caixas enormes que iriam depois ser colocadasnascarroças.—Achoqueelairiagostardeumaajuda,nãoacha?

AconfusãodePugestavaestampadaemseurosto.—Oque…?Lauriedeu-lheumempurrão.—Válá,seupalerma.Umaajudinhaagoraemaistarde…quemsabe?Pugcambaleou.—Maistarde?—Deuses!—riu-seLaurie,dandoumpontapédebrincadeiranotraseirode

Pug.O bom humor do trovador era contagiante e Pug sorria quando se

aproximoudamoça.Elatentavacolocarumaenormecaixademadeiraemcimadeoutra.Pugpegou-adesuasmãos.

—Deixe.Eufaçoisso.Elarecuou,hesitante.—Nãoépesado.Sóémuitoaltoparamim.—Olhavaparatodososlados,

menosparaPug.Pugergueuacaixafacilmenteecolocou-aemcimadasoutras,evitandousar

amãofragilizada.—Pronto—afirmou,tentandoparecerdescontraído.Agarotaafastouumamechadecabelorebeldequelhecaíanosolhos.—Vocêéumbárbaro,nãoé?—faloudemodohesitante.Pugretraiu-se.— São vocês que me chamam assim. Eu gosto de pensar que sou tão

civilizadocomoqualqueroutro.Elacorou.—Nãoqueriaofendê-lo.Tambémchamammeupovodebárbaro.Todosos

que não são tsurani são chamados dessa forma. Eu queria dizer que você édaqueleoutromundo.

Pugconfirmou.—Comovocêsechama?—Katala—respondeuela,perguntandoemseguida:—Evocê?

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—Pug.Elasorriu.—Éumnomeestranho.Pug.—Pareciaapreciarosomdapalavra.Nesseinstante,Septiem,ohadonra,umhomemidosomasbemaprumado,

comoportedeumgeneralaposentado,surgiudoladodacasa.—Vocêsdois!—dissebruscamente.—Hátrabalhoafazer!Não quemaí

parados!Katala correu de volta para a casa e Pug cou indeciso na frente do

administrador,vestidodeamarelo.—Você!Comosechama?—Pug,senhor.— Estou vendo que não deram trabalho para você nem para seu amigo

louro.Vouresolverissoagora.Chame-oaqui.Pug suspirou. Acabara-se o tempo livre. Acenou para que Laurie se

aproximasseeforampostosacarregarascarroças.

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O

2

Fazenda

tempoesfriaranasúltimastrêssemanas.No entanto, ainda tinha algo do calor do verão. Naquela terra, oinverno — se assim podia ser chamado— durava apenas umas seis

semanas, com breves chuvas frias vindas do norte. As árvores mantinhamgrandepartedasfolhasverde-azuladasenãohaviacomosentirapassagemdooutono. Durante os quatro anos passados em Tsuranuanni, Pug não viraqualquersinaldamudançadasestações:asavesnãomigravam,nãohaviageadapelamanhã,achuvanãosetornavagranizo,nãonevavaeas orescampestresnãofloresciam.Aquelaterrapareciavivernoeternoâmbarsuavedoverão.

No começo da viagem, tinham seguido a estrada de Jamar em direção aonorte, rumo à cidade de Sulan-qu. O rio Gagajin estava cheio de barcos ebarcaças, enquanto a via principal seguia igualmente atulhada com caravanas,carroçasdeagricultoresenobresqueseguiamemliteiras.

Noprimeirodia,oLordeShinzawaipartiradebarcorumoàCidadeSagradaparaassistiraoConselhoSupremo.Orestodafamíliaedopessoalseguiranumpasso mais tranquilo. Hokanu parara à entrada da cidade de Sulan-qu paravisitar a Senhora de Acoma, dando a Pug e Laurie a oportunidade deconversarem com outro escravo de Midkemia, capturado recentemente. Asnotícias da guerra eram desoladoras. Nada mudara desde que tinham tidonotíciasdesuaterranatal;oconflitoaindanãoseresolvera.

NaCidade Sagrada, o Lorde Shinzawai juntou-se ao lho e à comitiva naviagematéaspropriedadesdosShinzawai,nosarredoresdacidadedeSilmani.Atéali,acaminhadaparaonorteprosseguirasemincidentes.

A caravana aproximava-se dos limites setentrionais das terras da família.Pelocaminho,PugeLaurietiverampoucotrabalhoalémdetarefasocasionais:

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despejar os caldeirões do cozinheiro, limpar os excrementos dos needra,carregar e descarregarmantimentos. Naquelemomento, seguiam na parte detrásdeumacarroça,comospésbalançando.Lauriemordiaumpedaçodefrutajomachmadura, semelhante a uma grande romã verde, com a polpa de umamelancia.Cuspindoassementes,perguntou:

—Comoestásuamão?Pugexaminouamãodireita,observandoacicatrizenrugadaquepercorriaa

palma.—Aindaestárígida.Achoquenãovaificarmelhordoqueisso.Laurietambémolhou.—Parecequevocênuncamaisvaiusarumaespada.—Sorriu.Pugriu.— Duvido que você volte a usar uma também. Não acho que venham a

nomeá-loLanceirodaCavalariaImperial.Lauriecuspiumaissementes,quericochetearamnofocinhodoneedraque

puxava a carroça atrás deles.O animal de seis patas resfolegou e o condutor,irritado,apontou-lhesavaraqueserviaparaconduziracriatura.

—Tirandoodetalhedequeo Imperadornão tem lanceiros, pois tambémnão possui cavalos, não consigo pensar em alternativa melhor. — Pug riu,debochando.

—Poisfiquesabendo,companheiro—disseLaurieemtomaristocrático—,quenós,os trovadores, somos frequentementeabordadosnasestradasporumtipodeclientemenosrespeitável,salteadoreseassassinosquebuscamosnossossalários, parcos, mas ganhos com muito esforço. Se não desenvolvemos acapacidadedenosdefendermos,não camosmuitotemponessaatividade,seéquevocêmeentende.

Pug sorriu. Sabia que, em uma cidade, os trovadores eram quasesacrossantos, pois se fossem feridos ou assaltados, a notícia se espalharia enenhum outro voltaria. Na estrada, tudomudava de gura. Não duvidava dacapacidade de Laurie de se defender,mas não ia permitir que o amigo usasseaquele tom afetado sem lhe dar uma resposta à altura. Porém, quando estavaprestesaretrucar, foi interrompidoporgritosvindosdadianteiradacaravana.GuardascorrerameLaurievirou-separaocompanheiromaisbaixo:

—Oqueserátodaessaconfusão?Sem esperar resposta, saltou e correu para a frente. Pug o seguiu. Ao

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alcançarem a vanguarda da caravana, parando atrás da liteira do LordeShinzawai, viram silhuetas que avançavam pela estrada em direção a eles.LauriepuxouamangadePug.

—Cavaleiros!Pug mal conseguia acreditar no que os seus olhos viam, pois realmente

pareciam cavaleiros aproximando-se pela estrada que vinha do solar dosShinzawai.Àmedidaqueseaproximavam,percebeuqueeraumúnicocavaleiroetrêscho-jadeumesplêndidoazul-escuro.

O cavaleiro, um jovem tsurani de cabelo castanho, mais alto do que amaioria,desmontoucomummovimentodesajeitadoeLauriecomentou:

—Nuncaserãoumaverdadeiraameaçamilitarsenãoconseguiremmontarmelhor do que aquilo. Olhe, não tem sela nem rédeas, só um cabrestorudimentar feito de correias de couro. O pobre cavalo parece que não éescovadoháummês.

A cortina da liteira foi afastada quando o cavaleiro chegoumais perto.Osescravos pousaram a liteira e o Lorde Shinzawai desceu. Hokanu já seaproximara do pai, tendo avançado desde o seu lugar entre os guardas, naretaguardadacaravana,eabraçavaocavaleiro,trocandosaudações.Emseguida,ocavaleiroabraçouoLordeShinzawai.PugeLaurieouviram-nodizer:

—Pai!Comoébomvê-lo!—Kasumi!—exclamouo senhordosShinzawai.—Comoébomrevero

meuprimogênito.Quandovoltou?—Hámenosdeumasemana.TeriaidoaJamar,masouvidizerquevinham

paracá,porissoesperei.—Ficofeliz.Quemsãoseuscompanheiros?—Indicouascriaturas.—Este—disseo lho,indicandooqueestavamaisàfrente—éoLíderde

AtaquesX’calak, que acabou de regressar de uma batalha contra os pequenossobasmontanhasdeMidkemia.

A criatura avançou, ergueu a mão direita — de forma muito humana —batendocontinênciae,emtomestridenteesibilante,disse:

—Salve,Kamatsu,SenhordosShinzawai.Honrasejafeitaàsuacasa.LordeShinzawaifezumaligeiramesura.—Saudações,X’calak.Honrasejafeitaàsuacolmeia.Oscho-jasãosempre

bem-vindos.Acriaturarecuoueaguardou.Olordevoltou-separacontemplaroequino.

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—Quecriaturaéessa,meufilho?—Éumcavalo,pai.Umanimalmontadopelosbárbarosnasbatalhas.Jálhe

falei sobreeles.Éumacriaturarealmentemaravilhosa.Montadonela,consigocorrermaisdepressadoqueocorredorcho-jamaisveloz.

—Comovocêconsegueficaraíemcima?OfilhomaisvelhodeShinzawairiu.— Infelizmente, com extrema di culdade. Os bárbaros têm truques que

aindaprecisoaprender.Hokanusorriu.—Talvezpossamosprovidenciaralgumasaulas.Kasumideu-lheumapalmadaamigávelnascostas.—Pediaváriosbárbaros,masinfelizmente,estavamtodosmortos.—Tenhodoisquenãoestão.Kasumi olhou para além do irmão e viu Laurie, cuja cabeça se destacava

acimadosoutrosescravosquehaviamsejuntadoemvolta.— Estou vendo. Bom, temos de pedir a ele. Pai, com a sua permissão,

voltareiparacasaparagarantirquetudoestejaprontopararecebê-lo.Kamatsu abraçou o lho, concordando.O primogênito agarrou a crina do

animale,comumsaltoatlético,voltouamontar.Acenandocomamão,partiu.PugeLauriedepressaretornaramaosseuslugaresnacarroça.—Vocêjátinhavistoaquelascoisas?—perguntouLaurie.Pugconfirmou.—Sim,os tsuranios chamamdecho-ja.Vivememcolônias, emenormes

montes de terra, como formigas. Os escravos tsurani com quem falei noacampamentodisseramqueestãoporaquidesdesempre.SãoleaisaoImpério;apesar disso, se nãome engano, creio ter ouvido que cada colônia tem a suarainha.

Laurieolhouparaafrentedacarroça,agarrando-secomumamão.—Nãogostariadeenfrentarumapé.Olhesócomocorrem.Pugnão respondeu.O comentáriodo lhomais velhodeShinzawai sobre

ospequenossobasmontanhaslhehaviatrazidoantigasmemórias.“SeTomasestivervivo”,pensou,“jáéumhomem.Seestivervivo.”

solardosShinzawai eragigantesco.Era, semdúvida, amaior construção—semmencionaros templosepalácios—quePug jávira.Foraerguido

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noaltodeumacolina, comvistapara apaisagemcampestre aquilômetrosdedistância.Acasaeraquadrada,talcomoadeJamar,masváriasvezesmaior.Ada cidade podia facilmente caber no jardim central daquele solar. Atrás,encontravam-seosanexos,acozinhaeosalojamentosdosescravos.

Pugesticouopescoçoparaobservaro jardim,poisoestavamatravessandodepressa e o tempo era pouco para absorver tudo. Septiem, o hadonra,repreendeu-o:

—Nãodemore.PugapressouopassoealcançouLaurie.Mesmoemumabreveobservação,

o jardim era impressionante. Várias árvores tinham sido plantadas para darsombra ao ladode três lagos localizados entre árvores emminiatura eplantasoridas.Bancosdepedraestavamdisponíveisparaumrepousocontemplativoepor toda a parte serpenteavam caminhos cobertos por seixos. Ao redor desteminúsculoparque,erguia-seoprédiode trêsandares.Osdoispisos superiorestinham varandas e várias escadas que os ligavam. Viam-se os serviçaisatarefados nos últimos andares,mas o jardimparecia estar vazio, pelomenosnaqueletrechoquetinhampercorrido.

ChegaramaumaportadeslizanteeSeptiemvirou-separaeles.—Vocês,bárbaros,devemsereducadosnafrentedossenhoresdestacasa,

casocontrário, juropelosdeusesquemandareiesfolarapeledesuascostas—advertiu em tom severo.— E vejam se conseguem fazer tudo o que lhes forordenado,oudesejarãoqueoSenhorHokanuos tivessedeixadoapodrecendonospântanos.

Ele fez a porta correr para o lado e anunciouos escravos. Foi dadaordempara que entrassem e Septiem empurrou-os para dentro de casa. Perceberamqueestavamemumasalailuminadaecolorida,aluzentrandoporumaenormeporta translúcida coberta com uma pintura. As paredes eram decoradas comentalhes,tapeçariasequadros,todosesplendidamenteexecutados,detalhadosedelicados.O tapete estava coberto, ao estilodos tsurani, por várias almofadas.Kamatsu, Lorde dos Shinzawai, estava sentado emuma enorme almofada; dooutro lado, encontravam-se seus dois lhos. Todos vestiam túnicas curtas detecido dispendioso em estilomais informal. Pug e Lauriemantiveramo olharbaixoatéquealguémlhesdirigisseapalavra.

Hokanufoioprimeiroafalar:—Ogigantelourochama-seLoh’reeodetamanhomaisnormalchama-se

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Poog.Lauriecomeçouaabriraboca,masumarápidacotoveladadePugsilenciou-

oantesquepudessedizeralgo.Ofilhomaisvelhoreparounogestoedisse:—Vocêqueriafalaralgumacoisa?Laurieergueuosolhosparalogoosbaixar.Asinstruçõestinhamsidoclaras:

nãodeveriafalaratéserordenado.Laurienãotinhacertezasepodiaconsideraraperguntacomoumaordem.

—Fale—ordenouosenhordacasa.LaurieolhouparaKasumi.—SouLaurie,amo.Lor-ee.EomeuamigoéPug,nãoPoog.Hokanupareceu surpresopela correção,masoprimogênito acenou coma

cabeça e repetiu os nomes várias vezes até pronunciá-los da forma certa. Emseguida,perguntou:

—Jámontaramacavalo?Osdoisconfirmaram.— Ainda bem — disse Kasumi. — Assim podem nos mostrar a melhor

maneiradefazê-lo.OolhardePugvagavatantoquantosuacabeçabaixapermitia,masalgolhe

chamouaatenção.AoladodoLordedosShinzawaiestavaumtabuleirodejogocomfigurasquepareciamfamiliares.Kamatsureparouedisse:

—Conheceeste jogo?—Estendeuobraçoepuxouo tabuleiroparaa suafrente,deixando-odiantedele.Pugrespondeu:

—Amo,euconheçoessejogo.Emminhaterra,chama-sexadrez.Hokanuolhouparaoirmão,queseinclinouparaafrente.—Muitosjádisseram,meupai,quehouvecontatocomosbárbarosantes.Opaifezumgestocomamão,minimizandoaimportânciadocomentário.—Éumateoria.—Dirigiu-seaPug:—Sente-seaquiemostre-mecomoas

peçassemovem.Pug sentou-se, tentando se lembrar do que Kulgan lhe ensinara. Fora um

aluno indiferente ao jogo,mas sabia algumas aberturas básicas. Deslocou umpeãoparaafrenteedisse:

— Esta peça só pode mover-se para a frente uma única casa, exceto naprimeira jogada, amo. Nesse caso, pode avançar duas casas. — O senhordaquelasterrasacenoucomacabeça,indicandoaPugquecontinuasse.—Esta

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peçaéumcavaloedesloca-seassim.Após Pug ter demonstrado os movimentos de cada peça, o Lorde dos

Shinzawaidisse:—Chamamosestejogodeshāh.Aspeçastêmnomesdiferentes,masdáno

mesmo.Vamosjogar.Kamatsu deu as peças brancas a Pug. O rapaz começou o jogo com um

movimento convencional do peão do rei eKamatsu contra-atacou. Pug jogoumal e foi vencido depressa.Os restantes assistiram ao jogo semdizeremumaúnicapalavra.Quandoacabou,osenhordisse:

—Oseupovooconsideraumbomjogador?—Não,amo.Jogomuitomal.Otsuranimaisvelhosorriueosseusolhosenrugaram-senoscantos.— Eu diria que o seu povo não é tão bárbaro como costumamos pensar.

Iremosjogardenovoembreve.Fez um aceno com a cabeça ao lho mais velho e Kasumi levantou-se.

Fazendoumamesuraaopai,ordenouaPugeLaurie:—Venham.Osescravos zeramumareverênciaaosenhordacasaeseguiramKasumi.

Foram levados pela casa até chegarem a um quarto menor com catres ealmofadas.

—Éaquiquevãodormir.Omeuquartoficaaolado.Querotê-losporperto.Corajoso,Laurieperguntouoquelhepassavanacabeça:—Oqueomeuamodesejadenós?Kasumifitou-oporuminstante.—Vocês,bárbaros,nuncadarãobonsescravos.Sempreseesquecemdeseu

lugar.Lauriecomeçouabalbuciarumpedidodedesculpas,masfoiinterrompido:— Pouco importa. Estão aqui parame ensinar, Laurie. Irãome ensinar a

montaracavaloeafalaroseuidioma.Osdois.Ireiaprenderoqueesses—fezuma pausa para logo emitir um sommonótono e nasalado comoua-ua-ua—ruídosqueremdizerquandofalamumcomooutro.

A conversa foi interrompida pelo som de um único toque de sino quereverberoupelacasa.

—UmdosGrandesestáchegando—explicouKasumi.—Fiquememseuquarto. Tenho de lhe dar as boas-vindas comomeu pai.—Foi embora com

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pressa,deixandoosdoismidkemianossentadosnosnovosaposentos,pensandonanovareviravoltaqueavidadera.

osdoisdiasseguintes,PugeLaurieviramrapidamenteovisitanteporduasvezes. Ele parecia muito com o Lorde Shinzawai, embora fosse mais

magro e usasse o manto preto de um Grande dos tsurani. Pug fez algumasperguntasaosserviçaisdacasaeconseguiualgumas informações.PugeLaurienunca tinham visto nada que se comparasse à reverência com que os tsuranitratavamosGrandes.Eracomosefossemumpoderàpartee,comopoucoquePugconheciada sociedade tsurani,nãoentendiaondeeles seencaixavam.Deinício,acharaquesofriamdeumcertoestigmasocial,poisouviradizerqueosGrandesestavam“àmargemda lei”.Atéqueconseguiuentender,comaajudade um escravo tsurani exasperado com sua ignorância em assuntos tão vitais,que os Grandes tinham poucos limites, ou quase nenhum, em troca de umserviçoindefinívelqueprestavamaoImpério.

Duranteaquelesdias,Pugfezumadescobertaque,decertaforma,aliviouasensaçãoestranhadeseucativeiro.Encontrou,atrásdascocheirasdosneedra,umcanilrepletodecãesquenãoparavamdelatiredeabanarosrabos.Eramosúnicos animais parecidos com os de Midkemia que vira em Kelewan, e elesentiu uma alegria inexplicável ao vê-los. Voltou correndo ao quarto parabuscarLauriee levá-loaocanil.Entãosentaram-seemumdosrecintos,entreumgrupodecaninosbrincalhões.

Laurie dava gargalhadas com as brincadeiras ruidosas dos animais. Nãoeramcomoos cãesde caçadoDuque, tinhampernasmais compridas e erammaismagros.Suasorelhaserampontudase levantavam-sesemprequeouviamalgumbarulho.

— Já tinha visto outros cães como estes emGulbi, uma cidade naGrandeEstrada Setentrional de Comércio de Kesh. Lá os chamam de galgos e sãousadosparaexpulsarosfelinoseosantílopesdoscampospróximosaoValedoSol.

O mestre do canil, um escravo franzino de pálpebras caídas chamadoRachmad,aproximou-seeolhou-osdesconfiado.

—Oquevocêsestãofazendoaqui?Laurie observou o homem rígido e puxou, brincando, o focinho de um

cachorrobarulhento.

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—Não víamos cães desde que deixamos nossa terra, Rachmad. O nossoamoestáocupadocomoGrande,porissopensamosemvisitaroseubelocanil.

Aoouvir“belocanil”,osemblantefechadoseiluminouumpouco.— Tentomanter os cães com boa saúde. Eu osmantenho fechados, pois

eles atormentamos cho-ja,quenãogostamnadadeles.—Porummomento,Pug pensou que talvez tivessem sido trazidos de Midkemia, como o cavalo.Quandoperguntoudeondevinham,Rachmadoolhoucomoseelefosselouco.—Parecequevocêpegoumuitosolnacabeça.Sempreexistiramcães.—Comaquelaúltimaa rmaçãosobreoassunto,considerouaconversaencerradaefoiembora.

aistarde,naquelanoite,PugacordoueviuLaurieentrandonoquarto.—Ondevocêestava?

—Psiu!Queracordaracasatoda?Volteadormir.—Ondevocêfoi?—perguntouPugnumsussurro.ConseguiuveroenormesorrisodeLaurieameia-luz.—Fuivisitarumacertaajudantedocozinheiropara…conversarmos.—Oh,Almorella?—Sim—foiarespostaalegre.—Éumabelamoça.—Ajovemescravaque

servianacozinhatinha cadodeolhoemLauriedesdequeacaravanachegara,háquatrodias.

Apósummomentodesilêncio,Lauriedisse:—Você tambémdevia fazer algumasamizades.Dáumaperspectivamuito

diferenteàscoisas.—Apostoquesim—dissePug,suadesaprovação,misturando-secommais

doqueumpoucodeinveja.Almorellaeraumamulheranimadaebem-disposta,daidadedePugecomolhosescurosealegres.

—JáaKatala...Achoqueelaestádeolhoemvocê,Pug.Comasfacesardendo,Pugatirouumaalmofadanoamigo.—Oh,cale-seedurma.Laurieabafouumagargalhada.Deitou-seemseucatreedeixouPugempaz,

absortoemseuspensamentos.

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Ovento trazia uma leve promessa de chuva e Pug apreciou o frescor quesentia na pele. Laurie estavamontadono cavalo deKasumi, enquanto o

jovemo cialoobservava.Ocantorensinaraartesãostsuraniafazerumaselaeumarédeaparaamontariaeestavamostrandocomoeramusadas.

—Este cavalo foi treinado para batalhas— gritou Laurie.—Ele pode serguiadopelas rédeas—demonstroupuxando-asparaumdos ladosdopescoçodoanimaledepoisparaooutro—,oupodesermanobradousandoaspernas.—Ergueuasmãosemostrouaoprimogênitodacasacomodeviafazer.

Passara três semanas ensinando o jovem nobre, que demonstrara umtalentonaturalparamontar.LauriesaltoudocavaloeKasumitomouolugar.Otsurani começou cavalgando sem jeito, desacostumado com a sela. QuandopassounafrentedePug,elegritou:

—Meuamo,prenda-obemcomaspernas!—Ocavalosentiuapressãoepassouaotrote.Aoinvésde cara itocomoaumentodevelocidade,Kasumiparecia extasiado.—Mantenha os calcanhares para baixo!— gritou Pug. Foientão que, sem que tivesse sido instruído por nenhum dos escravos, Kasumibateuos calcanhares com forçanos ancosdo animal e estedesatou a correrpeloscampos.

Laurieobservou-odesapareceredisse:—Oueleéumcavaleironato,ouvaisematar.Pugconcordou:—Achoquelevajeito.Coragemnãolhefalta.Lauriearrancouumahastedeervadochãoeamordeu.Abaixou-seeafagou

a orelha de uma cadela que estava deitada a seus pés, não só para distraí-la eevitarquefossecorrendoatrásdocavalocomotambémparadivertiroanimal.Acadelarolouemordiscou-lheamão,brincando.

Laurievirou-separaPug:—Qualseráojogodonossojovemamigo?Pugdeudeombros.—Comoassim?— Lembra-se de quando chegamos aqui? Ouvi dizer que Kasumi estava

prestesapartircomosseuscompanheiroscho-ja.Bem,ostrêssoldadoscho-japartiramhojedemanhã,porissoaBethelestáforadajaula,eouvirumoresdequeasordensdoprimogênitodosShinzawaitinhammudadoderepente.Juntetudoissocomaulasdeequitaçãoedelínguaeoquetemos?

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Pugespreguiçou-se.—Nãosei.—Nemeu.—Laurieestavaindignado.—Massãoassuntosdeimportância

crucial.—Olhoupara aplanície edisse:—Tudooque euqueria eraviajar econtar histórias, cantar minhas músicas, e um dia encontrar uma viúva quefossedonadeumaestalagem.

Pugriu.—Tenhocertezadequevocêachariaavidadetaberneiroentediantedepois

destagrandeaventura.—Equebelaaventura.Euestavacomumgrupodeumamilíciaprovinciana

e dei de cara com o exército inteiro dos tsurani. Desde então, fui espancadovárias vezes, passei mais de quatro meses no meio daquela porcaria depântanos,corrimeiomundoapé...

—Viemosdecarroça,sebemmelembro.— Bom, percorri meio mundo e agora dou aulas de equitação a Kasumi

Shinzawai,primogênitodeumlordedeTsuranuanni.Nãomeparecesertemaparagrandesbaladas.

Pugsorriucomtristeza.—Podiamtersidoquatroanosnospântanos.Vocêpodeseconsiderarcom

sorte.Pelomenos,sabequeestaráaquiamanhã.AomenosenquantoSeptiemnãooapanharrondandoacozinhanomeiodanoite.

LaurieobservouPugcomatenção.— Eu sei que você está brincando. Quero dizer, sobre Septiem. Já pensei

váriasvezesemlheperguntar,Pug.Porquevocênuncafaladasuavidaantesdesercapturado?

Pugdesviouoolhardemodovago.—Deveserumhábitoqueadquirinoacampamentodopântano.Nãovalea

pena lembrar daquilo que éramos antes. Vi homens corajososmorrerem pornãoconseguiremseesquecerdequenasceramlivres.

Lauriepuxouaorelhadocão.—Masaquiasituaçãoédiferente.—Será?Lembre-sedoquemedisseemJamarsobrealguémquereralgode

você.Euachoquequantomaisconfortávelvocêestiveraqui,mais fácil cadeeles conseguirem o que querem de você.O senhor Shinzawai não é nenhumtolo.—Parecendotermudadodeassunto,perguntou:—Émelhortreinarum

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cãoouumcavalocomchicoteoucomcarinho?Laurielevantouacabeça.—Oquê?Ora,comcarinho,mastambéméprecisodisciplina.Pugacenouafirmativamentecomacabeça.— Acho que estão nos tratando com a mesma consideração que

demonstramcomBethel e osoutros cães.Masnãodeixamosde ser escravos.Nuncaseesqueçadisso.

Laurieficoumuitotempoolhandoparaocamposemdizernada.Osdois foramdespertadosde seuspensamentospelos gritos do lhomais

velhodacasa,quevoltavamontadonocavalo.Parouoanimalquandochegoujuntoaelesedesmontoucomumsalto.

—Elevoa—disseemseuIdiomadoReiestropiado.Kasumieraumalunobrilhanteeestavaaprendendodepressa.Complementavaasaulasdelínguacomuma enxurrada constante de perguntas sobre a terra e a gente deMidkemia.Pelo visto, não existia um único aspecto da vida no Reino que não lheinteressasse. Pedira exemplos cotidianos, como a forma de pechinchar comvendedores e as formas de tratamento adequadas para falar com pessoas dehierarquiasdiferentes.

Kasumi levou o cavalo de volta ao barracão que tinham construído para oanimal e Pug o examinou em busca de sinais de patas machucadas. Portentativa e erro, zeram ferraduras em madeira tratada de resina, mas estaspareciamestaraguentando.Nocaminho,Kasumidisse:

—Tenhopensadoemalgo.NãoentendocomooReidevocêsgoverna,comtudooquemecontaramsobreessaAssembleiadeLordes.Podemmeexplicar?

LaurieolhouparaPugcomassobrancelhaserguidas.Emboranãosoubessemais do que Laurie acerca das políticas do Reino, parecia mais habilitado aexplicar.

—Aassembleia elegeoRei, embora sejamaisumaspecto formal—dissePug.

—Formal?—Uma tradição.É sempre eleitooherdeiro ao trono, excetoquandonão

háumsucessoróbvio.Éconsideradaamelhorformadeconterasguerrascivis,pois as decisões da assembleia são de nitivas. — Explicou, então, como oPríncipedeKrondor tinhaabdicadoa favordo sobrinhoe comoa assembleiaacataraessedesejo.—ComosefaznoImpério?

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Kasumirefletiuedisse:—Talveznãosejaassimtãodiferente.CadaImperadoréumescolhidodos

deuses,mas,peloquemedisseram,nãoseparececomoseuRei.ElegovernanaCidade Sagrada, contudo sua liderança é espiritual. Protege-nos da ira dosdeuses.

—Sendoassim,quemgoverna?—Laurieperguntou.ChegaramaoabrigoeKasumitirouaselaearédeadocavalo,começandoa

escová-lo.—Aqui é diferente da sua terra.— Pareceu estar com di culdade com a

línguaemudouparatsurani:—OLordeGovernantedeumafamíliarepresentaa autoridade absoluta na sua propriedade.Cada família pertence a um clã e osenhormais in uentedoclãéoLíderdeGuerra.Noclã,cadasenhordeumafamília detém alguns poderes, dependendo da in uência que possui. OsShinzawai pertencem ao Clã Kanazawai. Somos a segunda família maispoderosanesse clã, depoisdosKeda.Quando jovem,meupai foi comandantedosexércitosdoclã,umLíderdeGuerra,oquevocêschamariamdegeneral.Aposiçãodasfamíliasmudadegeraçãoparageração,porissoéimprovávelqueeuconsiga uma posição tão alta. Os dirigentes de cada clã têm assento noConselhoSupremo.AconselhamoSenhordaGuerra,quegovernaemnomedoImperador,emboraoImperadortenhamaispoderdoqueele.

—AlgumavezoImperadorcontrariouoSenhordaGuerra?—Lauriequissaber.

—Nunca.—ComoescolhemoSenhordaGuerra?—indagouPug.— É difícil explicar. Quando o velho Senhor da Guerramorre, os clãs se

reúnem. É gigantesca a reunião de nobres, pois, além do conselho, todos oschefes de família também comparecem. Juntam-se e tramam, às vezesacontecemlutassangrentas,masaofiméeleitoumnovoSenhordaGuerra.

Pugafastouocabelodosolhos.—MasentãooqueimpedeoclãdoantigoSenhordaGuerradereivindicar

essaposição,seéomaispoderoso?Kasumificouincomodado.—Nãoéfácildeexplicar.Talvezsóostsuraniconsigamentender.Existem

leis,mas, acimade tudo, existemcostumes.Não importaquãopoderosoo clãvenhaasetornar,ouumafamíliadentrodele,somenteolordedeumadecinco

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famílias poderá ser escolhido para Senhor da Guerra. São os Keda, osTonmargu,osMinwanabi,osOaxatucaneosXacateca.Assim,sócincolordespoderãoserlevadosemconsideração.OatualSenhordaGuerraéOaxatucaneporissoachamadoclãKanazawaiéfraca.Oclãdele,osOmechan,équeestáagora em ascensão. Somente os Minwanabi estão à sua altura, mas, nomomento,estãounidosnoesforçodeguerra.Éassimquefunciona.

Lauriesacudiuacabeça.—Essesassuntosdefamíliaseclãsfazemanossapolíticaparecersimples.Kasumiriu.—Nãosetratadepolítica.Apolíticaéterrenodasfacções.—Facções?—inquiriuLaurie,obviamenteperdidonaconversa.— Existemmuitas facções: a Facção da RodaAzul, a da Flor Áurea, a do

Olho de Jade, a Facção pelo Progresso, a Facção Bélica e outras. As famíliaspodempertencerafacçõesdiferentes,emquecadaumatentadefenderassuaspróprias necessidades. Por vezes, famílias domesmo clã pertencem a facçõesdiferentes. Outras vezes, fazem alianças para conseguirem o que precisamnaquelemomento.Háaindaocasiõesemquepodematéapoiarduasfacçõesaomesmotempo,ounenhuma.

—Pareceumgovernobastanteinstável—observouLaurie.Kasumiriu.— Dura há mais de dois mil anos. Temos um ditado: “No Conselho

Supremo,nãoháirmãos.”Lembre-sedissoetalvezvocêconsigaentender.Pugponderoucomcuidadoaperguntaseguinte:—Meu amo, em tudo isso que nos explicou não falou nos Grandes. Por

quê?Kasumiparoude escovaro cavalo e olhouparaPugporum instante, para

logoretomaroscuidados.— Eles não têm nada a ver com política. Estão à margem da lei e não

pertencemanenhumclã.—Eleparou.—Porqueapergunta?—Elespareceminspirargranderespeitoe,comoumdelesvisitouestacasa

hápoucotempo,acheiqueosenhorpudessemeexplicar.—Sãorespeitados,poisdetêmodestinodoImpérioemsuasmãos,sempre.

Éumaimensaresponsabilidade.Renunciamatodososlaçosepoucostêmvidapessoal fora da comunidade de magos onde vivem. Aqueles que têm famíliavivem separados e os seus lhos são levados para as antigas famílias quando

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atingemamaioridade.Éumavidadifícil.Fazemmuitossacrifícios.Pug prestou atenção em Kasumi. De certo modo, ele parecia perturbado

comasprópriaspalavras.— O Grande que visitou o meu pai fez parte desta família quando era

criança.Erameutio.Édifícilparanóslidarmoscomasituação,poiseletemdecumprir as formalidades e não pode reivindicar parentesco. Creio que seriamelhorseelenãonosvisitasse.—Asúltimaspalavrasforamproferidasemvozbaixa.

—Porquê,meuamo?—perguntouLaurie,sussurrando.—Porque émuitodifícil paraHokanu.Antesde se tornarmeu irmão, ele

erafilhodoGrande.Terminaram de escovar o cavalo e saíram do barracão. Bethel correu na

frente,poissabiaqueeraquasehoradarefeição.Quandopassarampelocanil,Rachmadachamoueacadelajuntou-seaosoutroscães.

Não conversaram ao longo do caminho e Kasumi entrou no quarto semmais comentários para os midkemianos. Pug sentou-se no catre, aguardandoser chamado para jantar, e pensou em tudo o que aprendera. Apesar doscostumesestranhos,os tsuraninãoerammuitodiferentesdequaisqueroutroshomens. De certo modo, essa constatação pareceu-lhe tão reconfortantequantoperturbadora.

uassemanasdepois,Pugdeparou-secomoutroproblemaque lhedariaoque pensar. Katala não escondia seu descontentamento com a falta de

atenção por parte de Pug. No começo, aos poucos e sutilmente, ela tentouchamarsuaatenção,depoisossinais carammaisóbvios.Asituaçãochegouaumpontodecisivoquandoseencontraramatrásdobarracãodocozinheironoiníciodaquelatarde.

LaurieeKasumitentavamconstruirumpequenoalaúde,comaajudadeumartesão Shinzawai. Kasumi cara interessado na música do trovador e, nosúltimos dias, tinha observado atentamente enquanto Laurie discutia com oartesãoaescolhada brademadeiraadequada,aformadecortaramadeiraeomododemontaro instrumento.Mostrou-se admirado comquestões como setripasdeneedraeramadequadascomocordasemiloutrosdetalhes.Pugacharatudo aquilo entediante e, poucos dias depois, começou a encontrar váriasdesculpas para se afastar. O cheiro de madeira tratada fazia lembrar com

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clarezademaisocortedeárvoresnopântanoparaquepudessegostardeestarentreosbaldesderesinanosalojamentosdoartesão.

Naquelatarde,estavadeitadonasombradobarracãodocozinheiroquandoKatala dobrou a esquina. Ao vê-la, sentiu um aperto no estômago. Achava-abastanteatraente,mas,semprequetentavafalarcomela,nãoconseguiapensarem nada para dizer. Limitava-se a balbuciar comentários imbecis, cava comvergonha e saía correndo. Ultimamente, preferira não falar nada. Por isso,enquanto ela se aproximava, Pug apenas sorria cautelosamente. De repente,Katalavirou-seemsuadireção,parecendoàbeiradaslágrimas.

—Oquehádeerradocomigo?Soutãofeiaquevocênãosuportaolharparamim?

Pugsentou-se,atônitoeboquiaberto.Elaparouporuminstanteedepoislhedeuumpontapénaperna.

—Bárbaroestúpido—dissefungandoparadepoisfugir.Algumtempodepois,sentadonoquarto,Pugsentia-seconfusoeapreensivo

por causa do encontro daquela tarde. Laurie esculpia cravelhas para o alaúde.Porfim,pousouamadeiraeafacaeperguntou:

—Oqueestáincomodandovocê,Pug?Estácomumacaradequemacaboude saber que foi promovido a feitor e, por isso, vai ser mandado de volta aopântano.

Pugdeitou-senocatreeficouolhandoparaoteto.—ÉaKatala.—Oh—exclamouLaurie.—Comoassim,“Oh”?—Nada,sóqueAlmorellamecontouqueela temandando insuportávele,

nosúltimosdias,vocêestátãoanimadoquantoumnovilhoabatido.Oqueestáhavendo?

—Nãosei.Équeela…équeela…medeuumchute,hoje.Laurielançouacabeçaparatrás,dandogargalhadas.—Porqueraioselafezisso?—Seilá.Deuochuteepronto.—Oquevocêfez?—Nãofiznada.—Ah!—Lauriegargalhoumaisainda.—Éesseoproblema,Pug.Sóexiste

umacoisaqueumamulherodeiamaisdoqueaatençãodadaporumhomem

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dequemnãogosta:afaltadeatençãodeumhomemdequemgosta.Pugficoucomumardesanimado.—Acheimesmoquefossealgoassim.OrostodeLauriedemonstrousurpresa.—Oqueé?Nãogostadela?Inclinando-separaafrenteeapoiandooscotovelosnosjoelhos,Pugdisse:—Nãoéisso.Eugostodela.Émuitobonitaesimpática.Sóque...—Oquê?Pug olhou bruscamente para o amigo para veri car se estava zombando

dele. Laurie sorria, mas de forma cordial e tranquilizadora, por isso Pugprosseguiu:

—Éque…háumaoutrapessoa.Laurieficoudebocaaberta,fechando-aderepente.—Quem?TirandoAlmorella, Katala é amulhermais bonita que vi neste

mundoesquecidopelosdeuses—suspirou.—Parafalaraverdade,éaindamaisbonita do queAlmorella,mas pouco.Além disso, nunca vi você falando comnenhumaoutramulher,eeuteriareparadosevocêsumissecomalguém.

Pugsacudiuacabeçaebaixouosolhos.—Não,Laurie.Euquisdizerláemnossaterra.A boca de Laurie voltou a se abrir e o trovador caiu para o lado e

resmungou:—“Láemnossaterra!”Quevoufazercomessacriança?Perdeuojuízo?—

Apoiou-seemumcotoveloeacrescentou:—ÉoPugmesmofalando?Orapazquemeaconselhouadeixaropassadoparatrás?Aquelequeinsistequeremoeravidaquetínhamossópoderánoslevaraumamorterápida?

Pugignorouaalfinetada.—Édiferente.— Diferente como? Por Ruthia, que em seus momentos mais carinhosos

protegeostolos,osbêbadoseosmenestréis,comopodedizerqueédiferente?Vocêjápensouquetemumachanceemdezvezesdezmildevoltaravê-la,sejaláquemfor?

— Eu sei, mas foram as lembranças de Carline que não me deixaramenlouquecer… — Suspirou ruidosamente. — Todos nós precisamos de umsonho,Laurie.

Lauriecontemplouemsilêncioojovemamigoporummomento.

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—Sim, Pug, todos precisamos de um sonho. Ainda assim— acrescentoucomânimo—,umsonhoéumacoisa;umamulherviva,quenteerespirandoéoutra.—VendoquePug cara irritadocomaobservação,mudoudeassunto:—QueméCarline,Pug?

—AfilhadeLordeBorric.Lauriearregalouosolhos.—APrincesaCarline?—Pugcon rmouepercebeuodivertimentonavoz

deLaurie.—AmoçanobremaisdesejadadoReinoOcidental,depoisda lhadoPríncipedeKrondor?Jamaispoderiaimaginaresseseulado!Fale-medela.

De início, Pug começou devagar, contando a paixão de adolescente quesentira por ela e de como o relacionamento começara. Laurie permaneceucalado, deixando que Pug libertasse as emoções reprimidas ao longo daquelesanos.Porfim,Pugdisse:

—TalvezoquemeincomodetantoemKatalaéqueelaécomoCarlineemmuitos aspectos. As duas têm muita força de vontade e deixam claro o quequerem.

Laurieacenoucomacabeça,semdizernada.Pug couemsilêncioatéque,poucodepois,prosseguiu:

—Quandoestava emCrydee, cheguei apensarqueestavaapaixonadoporCarline.Masnãoseimais.Issoéestranho?

Laurieabanouacabeça.—Não,Pug.Existemmuitas formasdeamaralguém.Àsvezes,desejamos

tanto o amor que não somos exigentes com quem amamos. Outras vezes,transformamosoamoremumacoisatãopuraetãonobrequenenhumpobreserhumanopoderácorresponderatalvisão.Porém,namaiorpartedasvezes,oamor é um reconhecimento, uma oportunidade de dizer: “Tem algo em vocêqueeuaprecio.”Nãoquerdizercasamento,nemsequeramorfísico.Háoamoraospais,oamoràsuacidadeouàsuapátria,oamoràvidaeoamoràspessoas.Étudodiferente,étudoamor.Masmediga,oquevocêsenteporKatalaparececomoquevocêsentiaporCarline?

Pugencolheuosombrosesorriu:—Não, nãome parece igual. ComCarline, sentia que tinha demantê-la

longe,sabe,afastada.Comosequisessemanterocontroledoqueacontecia.Lauriesondou:—EcomKatala?

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Pugvoltouaencolherosombros.— Não sei. É diferente. Não sinto que precise mantê-la sob controle. É

comoseeutivessealgoadizeraela,massemsabercomo.Foiassimquandomeatrapalheitodonaprimeiravezemqueelasorriuparamim.EuconseguiafalarcomCarline,quandoela cava emsilêncio emedeixava falar.Katala ca emsilêncio,maseunãoseioquedizer.—Fezumabrevepausa,emitindodepoisum ruído entre um suspiro e um gemido. — Sofro só de pensar na Katala,Laurie.

Laurierecostou-se,deixandoescaparumrisoabafadoeamistoso.—Sim,aindabemque jápasseiporessesofrimento.Eprecisoadmitirque

você gosta de mulheres interessantes. Pelo que vejo, Katala é perfeita. E aPrincesaCarline...

Umpoucobrusco,Pugointerrompeu:—Façoquestãodeapresentá-laavocêquandovoltarmos.Laurieignorouotom.—Nãovoumeesquecerdisso.Olhe,oquequerodizeréquevocêtemfaro

para mulheres que valem a pena. — Com alguma tristeza, acrescentou: —Quem me dera poder dizer o mesmo. Ao longo da vida, quase sempre meenvolvicomcriadasdetabernas, lhasdeagricultoreseprostitutasderua.Nãoseioquelhedizer.

—Laurie—dissePug.Lauriesentou-seeolhouparaoamigo.—Nãosei…nãoseioquefazer.

O trovadorobservouPugporum instante, atéque compreendeue jogouacabeça para trás, gargalhando. Percebeu que Pug estava prestes a explodir deraivaelevantouasmãos,desculpando-se.

— Perdão, Pug. Não queria envergonhar você, mas não era o que euesperavaouvir.

Umpoucomaiscalmo,Pugdisse:—Eueramuitonovoquandofuicapturado,nãotinhanemdezesseisanos.

Não era tão grande quanto os outros garotos, por isso as meninas não medavam atenção, salvoCarline, e, depois que virei escudeiro, elas caram commedodemim.Depois...Droga,Laurie.Fiqueiquatroanosnospântanos.Quechanceseutivedeconhecerumamulher?

Laurieficouquietoporalgumtempoeatensãoabandonouoquarto.—Pug,nunca teria imaginado,mas,écomovocêdisse,queoportunidades

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teve?—Laurie,oquedevofazer?—O que você quer fazer?— Laurie olhou para Pug com uma expressão

preocupada.—Eugostariade...encontrá-la.Acho.Nãosei.Lauriecoçouoqueixo.—Escute,Pug,nuncapenseiqueteriaestaconversacomalguém,anãoser

comumfilho,seumdiativeralgum.Nãoqueriafazerpoucocasodevocê.Vocêsómepegoudesprevenido.—Desviouoolhar,organizandoasideias,antesdecontinuar:—Omeu paime colocou para fora de casa quando eumal tinhaacabadode fazerdozeanos; eraomaisvelhoe ele tinhamais setebocasparaalimentar.Nunca tivemuito jeitopara a agriculturamesmo.Fui apé atéTyr-Sogemcompanhiadeumrapazdavizinhançaeaípassamosumanovivendodaquilo que a rua nos dava. Ele entrou para um grupo demercenários comoajudante do cozinheiro e mais tarde tornou-se soldado. Eu me juntei a umatrupe itinerante de músicos. Tornei-me aprendiz do menestrel, com quemaprendi canções, sagas e baladas e viajei.Cresci depressa e já era umhomemaos treze anos.Na trupe, havia umamulher, viúva de um cantor, que viajavacom os irmãos e primos. Tinha pouco mais de vinte anos, mas para mimparecia muito velha. Foi ela que me apresentou os jogos entre homens emulheres.—Parouporuminstante,revivendomemóriashámuitoesquecidas.Sorriu.

—Foihámaisdequinzeanos,Pug.Masaindamelembrodeseurosto.Nósdois estávamos um pouco perdidos. Não foi nada planejado. Acabouacontecendoemuma tardenaestrada.Ela foi... gentil.—OlhouparaPug.—Sabiaqueeuestavaassustado,apesardeminhasbravatas.—Sorriuefechouosolhos.—Aindaconsigoverosolentreasárvoresportrásdeseurostoeoseuperfume misturado com o odor das ores silvestres. — Abrindo os olhos,prosseguiu:—Passamosjuntososdoisanosseguintes,enquantoeuaprendiaacantar.Atéquedeixeiatrupe.

—O que aconteceu?—perguntou Pug, pois aquela história era novidade.Laurienuncaantesfalaradesuajuventude.

—Ela secasoudenovo.Eraumbomhomem,umestalajadeironaestradade Cruz de Malac para o Vale de Durrony. A mulher dele falecera no anoanterior com febre, deixando-o com dois lhos pequenos. Ela tentou me

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explicar a situação, mas eu não quis ouvir. Que sabia eu? Ainda nem tinhadezesseisanoseomundoeraumlugarsimples.

Pugacenoucomacabeça.—Entendooquevocêquerdizer.Laurieinterpelou-o:— Olha, o que estou tentando dizer é que entendo o problema. Posso

explicarcomofunciona…Puginterrompeu-o:—Issoeusei.Nãofuicriadopormonges.—Masnãosabecomofunciona.Pugassentiueosdoisriram.—Achoquevocêdeviaencontrá-laedizeroquesente—afirmouLaurie.—Sófalarcomela?— Claro. O amor é como muitas outras coisas, é sempre melhor usar a

cabeça.Guardeosesforçosirrefletidosparasituaçõesirracionais.Agora,vá.—Agora?—Pugpareciaapavorado.—Quantomaiscedo,melhor,certo?Pug concordou e, semmais uma palavra, saiu do quarto. Caminhou pelos

corredoresescurosesilenciosos,saiu,dirigiu-seaosalojamentosdosescravoseavançouatéaportadela.Ergueuamãoparabater,masadeteve.Ficouparadopor algum tempo, tentando decidir o que fazer, e então abriram a porta.Almorella surgiu na soleira, agarrando o roupão junto ao corpo, o cabelo emdesalinho.

—Oh—murmurou—,acheique fosseLaurie.Espereaí.—Desapareceudentro do quarto e logo voltou com uma trouxa nos braços. Deu umapalmadinhanobraçodePugepartiunadireçãodoquartodePugeLaurie.

Pug cou à porta um instante e então entrou no quarto com cautela. ViuKataladeitadaemseucatre,debaixodeumcobertor.Aproximou-seeagachou-se junto a ela. Tocou no ombro dela e chamou-a baixinho. Ela acordou esentou-sederepente,tapando-secomocobertoredizendo:

—Oquevocêestáfazendoaqui?—Eu...queriafalarcomvocê.—Assimquecomeçou,aspalavrasjorraram.

—Lamentose zalgumacoisaqueadeixouzangada.Ousenão znada.Querdizer, Laurie diz que não fazer nada quando alguém espera que se faça é tãoruimcomodaratençãodemais.Nãoseibem,entende?—Elatapouabocapara

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esconderuma risada, poisnotava a a içãodePug, apesardapenumbra.—Oqueeuquerodizer...oquequeroépedirdesculpas.Desculpeoque z.Ounãofiz...

Elaosilencioupousandoapontadeumdedoemsuaboca;estendeuobraçoe envolveu o pescoço do rapaz, puxando sua cabeça para baixo. Beijou-odemoradamenteedepoisdisse:

—Tolinho.Váfecharaporta.

stavam deitados juntos, o braço de Katala em cima do peito de Pug,enquantoele tavao teto.Elaemitiaruídossonolentoseele lheafagavao

cabeloespessoeoombromacio.—Oquefoi?—perguntouKatala,comvozdesono.—Estavasópensandoquenãosoutãofelizdesdequemetorneimembroda

cortedoDuque.—Quebom.—Elapareceudespertarumpouco.—Oqueéumduque?Pugpensouporuminstante.—Écomoumdoslordesdaqui,masdiferente.OmeuDuqueeraprimodo

ReieoterceirohomemmaispoderosodoReino.Ajovemaconchegou-semaisaele.—Vocêdeviaserimportanteparafazerpartedessacorte.—Naverdade,não;presteiumserviçoaeleefuirecompensadoporisso.—

Pug achou melhor não falar o nome de Carline naquela situação. De certaforma,as fantasiasadolescentescomaPrincesapareciaminfantiscomparadasaoquesepassaranaquelanoite.

Katalasevirou, candodebarrigaparabaixo.Ergueuacabeçaeapoiou-anamão,formandoumtriângulocomobraço.

—Quemmederaascoisasfossemdiferentes.—Comoassim,meuamor?—Omeupaierafazendeiroemuril.Somosumdosúltimospovoslivres

deKelewan.Sefôssemosparalá,vocêpoderiaassumirumaposiçãonoCoaldra,o Conselho de Guerreiros. Precisam sempre de homens talentosos. Entãopoderíamosficarjuntos.

—Estamosjuntos,nãoestamos?Katalabeijou-odelicadamente.—Sim,queridoPug,estamos.Porémnósdoislembramosmuitobemoque

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éserlivre,nãoéverdade?Pugsentou-se.—Tentonãopensarnisso.Elaoenvolveucomosbraços,abraçando-ocomoumacriança.—Devetersidoterrível, lánospântanos.Ouvimoshistórias,masninguém

sabeaocerto—dissebaixinho.—Émelhornãosaber.Ela o beijou e não tardaram a regressar àquele lugar atemporal e seguro,

partilhadopelos dois, esquecendo todos os pensamentos terríveis e estranhos.Durante o resto da noite, deram prazer um ao outro, descobrindo umsentimentoprofundoqueeranovidadeparaambos.Pugnãosabiadizer seelativera outros homens antes e não perguntou. Não era importante. O queinteressavaeraestarali,comela,naquelemomento.Estavamergulhadoemummar de novos deleites e emoções. Não entendia completamente tudo o quesentia,masnãotinhadúvidasdequeoquesentiaporKatalaeramaisreal,maisenvolventedoqueosconfusosanseiosdeveneraçãoquesentiraporCarline.

assaram-se semanas e Pug sentia que a sua vida entrava em uma rotinatranquilizadora. Algumas noites, cava com o Lorde Shinzawai jogando

xadrez— ou shāh, como chamavam ali— e as conversas quemantinham oajudaramaentenderanaturezadostsurani.Jánãopensavanaquelepovocomoalienígena,pois seucotidianoeramuito semelhanteaoqueconheceraquandoera criança.Havia diferenças surpreendentes, tal como a delidade rigorosa aumcódigodehonra,masassemelhançasexcediamemmuitoasdiferenças.

Todaa suavidapassouagiraremtornodeKatala.Estavam juntos sempreque tinham chance: partilhavam refeições, trocavam palavras rapidamente e,todasasnoitesqueconseguiam,passavam juntos.Pug tinhacertezadequeosoutros escravos da casa sabiam daqueles românticos encontros secretos,embora a proximidade das pessoas na vida tsurani tivesse gerado uma certacegueiraquantoaoshábitospessoaisalheios,logo,ninguémseimportavamuitocomasmovimentaçõesdedoisescravos.

Várias semanas depois da primeira noite com Katala, Pug se encontravasozinho comKasumi, enquanto Laurie estava envolvido emoutra competiçãodegritoscomoartesãoqueterminavaoalaúde.OhomemconsideravaLaurieum tanto insensato por se opor a que o instrumento tivesse acabamentos em

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amareloclarocomorebordoroxo.Nãoviaméritoalgumemdeixarostonsdamadeiranaturalàvista.PugeKasumideixaramocantorexplicandoaoartesãoos requisitos da madeira para obter uma ressonância adequada, parecendodeterminadoaconvencê-lotantopelovolumedavozcomopelalógica.

Caminharam para a área dos estábulos. Mais cavalos haviam sidocapturados, adquiridos por representantes do Lorde dos Shinzawai e enviadospara lá em troca de uma pequena fortuna e de algumas manobras políticas.Semprequeestava sozinhocomosescravos,Kasumi falavao IdiomadoRei einsistiaqueotratassempelonome.Foitãorápidoemaprenderoidiomaquantoforaemaprenderamontar.

— Nosso amigo Laurie — disse o lho mais velho da casa — jamais setornaráumbomescravosegundoopontodevistados tsurani.Nãoapreciaasnossasartes.

Pug escutou a discussão que ainda conseguia ouvir vinda da o cina doartesão.

—Acho que estámais preocupado com a apreciação adequada da própriaarte.

Chegaram ao estábulo e caram observando um garanhão cinzento, querecuou e relinchou quando se aproximaram.O cavalo fora trazido havia umasemana,bempresoaumacarroça,etentaraváriasvezesatacarquemquerqueseaproximasse.

—Porqueesteétãoproblemático,Pug?Pug observou o magní co animal correr em círculos dentro do cercado,

agrupandoosoutrosanimaiseobrigando-osaseafastaremdoshomens.Assimque as éguas e o outro garanhão, mais submisso, caram a uma distânciasegura,ocinzentovirou-seeobservouosdoishomenscautelosamente.

—Nãosei.Podeserapenasumcavalocomtemperamentoruimportersidomaltratadoou então elepassouporum treinamento especialpara combate.Amaioria de nossas montarias de batalha é treinada para não se assustar emcombateeparasemanteremsilêncioquandoasseguramos.Alémdereagiràsordens do cavaleiro emmomentos de grande pressão. Algumas, sobretudo asquesãomontadaspelossenhores,sãoespecialmentetreinadasparaobedeceremsomente ao seu amo e são tanto armas como ummeio de transporte, sendoadestradasparaatacar.Podeseresseocaso.

Kasumireparouqueocavaloraspavaapatanochãoeagitavaacabeça.

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— Um dia, irei montá-lo — disse. — Seja como for, dará uma fortedescendência. Temos agora cinco éguas e meu pai conseguiu outras cinco.Chegarão daqui a poucas semanas e estamos revirando todos os estados doImpério embuscademais.—Kasumi cou comumardistante e começou adevanear:—Quandofuiaoseumundopelaprimeiravez,Pug,odiavacavalossóde vê-los. Cavalgaram sobre nós e nossos soldados morreram. Mas depoispercebi as criaturas magní cas que são. Outros prisioneiros que zemos,quando ainda estava em seumundo, disseramquehá famílias nobres que sãoconhecidas somente pela excelente criação de cavalos. Um dia, os melhorescavalosdoImpérioserãooscavalosdosShinzawai.

— Parece que começou bem, embora, pelo pouco que sei, sejam precisosmuitosoutroscavalosparaterumacriação.

—Teremostodosqueprecisarmos.— Kasumi, como os seus líderes podem dispensar os animais capturados

como esforçona guerra?Você comcerteza sabedanecessidadedeorganizardepressaunidadesdecavalaria,casoqueiramavançarnaconquista.

OrostodeKasumiganhouumaexpressãopesarosa.— Os nossos líderes são, majoritariamente, arraigados às tradições, Pug.

Recusam-se a entender a sensatez de treinar uma cavalaria. Tolos. Os seuscavaleiros atropelamos nossos guerreiros e, ainda assim, eles ngemquenãopodemosaprendernada,chamandooseupovodebárbaro.Umavez,sitieiumcasteloemsuapátria,eaquelesqueodefenderammeensinarambastantesobrea arte da guerra.Muitosme chamariam traidor, casome ouvissemdizer isso,mas só aguentamos algum tempo devido à superioridade numérica.Namaiorparte das vezes, os seus generais são mais habilidosos. Tentar manter seussoldados vivos, ao invés de enviá-los para amorte certa, re ete certa astúcia.Não, a verdade é que somos dirigidos por homens que... — Calou-se,percebendoquefalavadeassuntosperigosos.—Averdade—dissepor m—équesomosumpovotãoobstinadoquantovocês.

ExaminouorostodePugporalgumtempoatéquesorriu.—TentamoscapturarcavalosduranteoprimeiroanoparaqueosGrandes

do Senhor da Guerra pudessem estudar os animais e tentassem perceber seseriamaliadosinteligentes,comoosnossoscho-ja,oumerosanimais.Foiumacenaverdadeiramentecômica.OSenhordaGuerrainsistiuemseroprimeiroamontar um cavalo. Descon o que optou por um animalmuito parecido com

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estenossocinzento,pois,assimqueseaproximoudoanimal,ocavaloatacou,quaseomatando.Agora,suahonranãopermitequemaisninguémtente,jáqueele falhou. Além disso, acho que tem medo de tentar com outro animal. OnossoSenhordaGuerra,Almecho,éumhomembastanteorgulhosoetemumgênioterrível,mesmoparaumtsurani.

— Sendo assim, como o seu pai consegue continuar adquirindo cavaloscapturados?—questionouPug.—ComovocêpodemontarsemdesrespeitarasordensdoSenhordaGuerra?

OsorrisodeKasumialargou-se.— O meu pai tem uma certa in uência no conselho. A nossa política é

estranhamente intricada, e existem formas de contornar qualquer comando,mesmo que seja do Senhor da Guerra ou do Conselho Supremo, e qualqueroutraordem,excetuandoasquevenhamdaLuzdoCéu.Mas,acimadetudo,éporque os cavalos estão aqui e o Senhor daGuerra não está.— Sorriu.—OSenhor da Guerra é soberano somente no campo de batalha. Nestapropriedade,ninguémpodequestionaravontadedemeupai.

Desdequechegaraà fazendadosShinzawai,Pugestavapreocupadocomoque Kasumi e o pai pareciam estar tramando. Não duvidava que andassemenvolvidos em alguma intriga política tsurani, mas o que seria, ele não faziaideia. Um senhor poderoso como Kamatsu não se esforçaria tanto só parasatisfazer um caprichode um lho,mesmoque fosse o lho preferido, comoera o caso. Porém Pug sabia que não devia se envolver mais do que ascircunstânciasoobrigavam.Mudoudeassunto:

—Kasumi,estavapensandoemumacoisa.—Sim?—Oquedizaleisobreocasamentoentreescravos?Kasuminãopareceusurpresocomapergunta.— Os escravos podem se casar com a permissão do amo. Contudo, essa

permissão raramente é concedida. Depois de casados, não se pode separarmaridoemulher,nemvenderos lhosenquantoospaisviverem.Éessaa lei.Seumcasalvivermuitotempo,apropriedadepoderá carsobrecarregadacomtrês ou quatro gerações de escravos, muito mais do que pode suportar emtermos econômicos. No entanto, às vezes a permissão é concedida. Por quê?VocêquerKatalacomoesposa?

Pugficouadmirado.

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—Vocêsabe?—Nadasepassanapropriedadedemeupaiqueelenãosaibaequedepois

nãovenhamecontar—disseKasumimodestamente.—Éumahonraenorme.Pugacenouacabeçacomumarpensativo.—Aindanão sei.Gostomuitodela,mas temalgome impedindo.É como

se...—Encolheuosombros,nãosabendooquedizer.Kasumiolhou-oatentamenteporalgumtempo,atéquedisse:—Vocêestávivoporquemeupaiquisassim,elevasuavidadeacordocom

seus caprichos. — Kasumi parou por um instante e Pug se deu conta, comtristeza,dequeoabismoentreelescontinuavaimenso,sendoumdeleso lhodeumpoderososenhoreooutro,apropriedadedemenorvalordessepai:umescravo.AfalsaaparênciadeamizadeseromperaePuglembroudenovooqueaprenderanopântano:ali,avidanãotinhaimportância,eerasomenteoprazerdestehomem,oudeseupai,queseinterpunhaentrePugeadestruição.

ComoselesseospensamentosdePug,Kasumidisse:— Lembre-se, Pug, a lei é dura. Um escravo nunca poderá ser libertado.

Aindaassim,existeopântanoeexisteestelugar.E,paranósdeTsuranuanni,agentedoReinoémuitoimpaciente.

Pug sabia queKasumi estava tentandodizer alguma coisa, que talvez fossede grande importância. Apesar da franqueza em algumas ocasiões, Kasumiconseguia voltar rapidamente ao modo tsurani que Pug só podia chamar demisterioso.Havia uma tensão escondida nas palavras deKasumi e Pug achoumelhornãopressionar.Voltandoamudardeassunto,perguntou:

—Comoestáaguerra,Kasumi?Kasumisuspirou.— Mal para os dois lados. — Observou o garanhão cinzento. —

Continuamosacombateremfrentesestáveis,inalteradasnosúltimostrêsanos.As nossas duas últimas ofensivas foram contidas,mas o seu exército tambémnãoconseguiunenhumaconquista.Atualmente,passam-se semanas semumaúnicabatalha.Entãoseuscompatriotasatacamumdosnossosacampamentosenósdevolvemosocumprimento.Poucoseconsegue,alémdederramamentodesangue.Étudobastanteabsurdoepoucahonraprovémdaí.

Pug couadmirado.TudooqueviradostsuranireforçavaaobservaçãoqueMeecham zeraanosantes:ostsuranieramumaraçabélica.Duranteaviagematéali,virasoldadosportodaparte.Ambosos lhosdacasaeramsoldados,tal

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comoforaopaidelesquandojovem.HokanueraPrimeiroLíderdeAtaquedaguarniçãodopai,umavezqueeraosegundo lhodoLordedosShinzawai,eaforma como lidara com o feitor no acampamento do pântano revelava umae ciênciaimplacávelquePugsabianãoseresumiraumcapricho.Eratsurani,eocódigotsuranieraensinadodesdemuitocedoerigorosamenteseguido.

Kasumisentiuqueestavasendoestudadoedisse:—Temoestaramolecendoporcausadeseu jeitoexótico,Pug.—Fezuma

pausa.—Vamos, conte-memais sobreo seupovo eoque...—Kasumi couparalisado. Agarrou o braço de Pug e inclinou a cabeça, escutando. Após umsegundo, exclamou:—Não! Não pode ser!—De repente, girou e gritou:—Ataque!Osthūn!

Pug prestou atenção e ouviu ao longe um estrondo fraco, como se umamanadade cavalosgalopassepelaplanície. Subiuna cerca eolhoupara longe.Umpradovastoestendia-seatrásdosestábuloseterminavanaorladeumaáreaescassamente arborizada. Enquanto o alarme soava atrás dele, conseguiuvislumbrarformassaindodeentreasárvores.

Fascinado,Pugcontemplavaascriaturaschamadasdethūncorrendoparaosolar. Ficavam cada vezmaiores conforme corriam furiosamente para o localonde Pug aguardava. Eram seres enormes, parecidos com centauros, que delongelembravamcavaleirossobrecavalos.Noentanto,aparteinferiordocorponão parecia a de um equino, lembrava mais um enorme veado ou um alce,embora mais musculoso. Já a parte superior do corpo era completamentehumana, ainda que o rosto parecesse imensamente com o de ummacaco defocinho comprido. Todo o corpo, com exceção do rosto, era coberto por umpelodetamanhomédio,commanchascinzentasebrancas.Todasascriaturasempunhavam um porrete ou um machado com a lâmina feita de pedrafirmementeamarradaaopunhodemadeira.

Hokanu e a guarda da fazenda chegaram correndo da caserna e tomaramposiçãopertodosestábulos.Osarqueirosaprontaramosarcoseosespadachinsformaramfileiras,preparadosparareceberainvestida.

De repente, Pug viu Laurie a seu lado, com o alaúde quase terminado namão.

—Oquehouve?—Ataquedosthūn!LaurieestavatãofascinadocomoqueviaquantoPug.Derepente,pousouo

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alaúdeesaltouparadentrodocercado.—Oquevocêestáfazendo?—gritouPug.Otrovadordesviou-sedeumcoicedefensivodogaranhãocinzentoesaltou

paraagarupadeoutroanimal,aéguadominantedapequenamanada.—Estoulevandoosanimaisparaumlugarseguro.Pug assentiu e abriu o portão. Laurie saiu com a égua, mas o cinzento

impedia os outros de a seguirem, fazendo-os recuar. Pug hesitou por umminuto,atéquedisse:

—Algon, esperoque, quandome ensinou, soubesse o que estava fazendo.—Avançoucalmamenteatéogaranhão,tentandotransmitirumasensaçãodecomando.Quandoogaranhãobaixouasorelhaseresfolegou,Pugordenou:

—Fique!Ao ouvir a ordem, as orelhas do cavalo levantaram e ele pareceu estar se

decidindo. Pug sabia que o tempo era crucial e não interrompeu o ritmo daaproximação.Ocavalooexaminouquandochegoudoseu ladoePugvoltouaordenar:

—Fique!Antesqueoanimalfugisse,Pugagarrouumamadeixadacrinaesaltoupara

agarupadoanimal.O cavalo de combate, por ter sido treinado assim ou por mera sorte,

considerouPugparecidoobastantecomseuantigodonoparaobedecer.Talvezfosse o clamor da batalha ao redor, mas, independentemente do motivo, ocinzentodeuumsaltoparaa frenteemrespostaàsordensdadaspelaspernasdePugesaiucorrendopeloportão.Pugagarrou-sebemcomaspernas,lutandopela vida. Quando o cavalo passou pelo portão e virou para a esquerda, Puggritou:

—Laurie,pegueosoutros!—PugolhouderelanceporcimadoombroeviuosoutrosanimaisatrásdalíderdamanadaquandoLauriepassouoportãocomaégua.

PugviuKasumicorrendocomaselanamãoegritou:—Ôa!—Aomesmo tempo, tentava semanter omais rmepossível sem

sela.OgaranhãoparouePugcomandou:—Fique!—Ogaranhãocinzentoescavouochão,antecipandoocombate.

Aoseaproximar,Kasumigritou:—Afastemoscavalosda luta.Trata-sedeumAtaqueSangrentoeos thūn

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não irãoemboraatécadaumtermatadopelomenosumavez.—Gritouparaque Laurie parasse e, enquanto a pequenamanada davamostras de agitação,selouumdosanimaisrapidamenteeafastou-odosdemais.

Pug esporeou o cavalo cinzento com as pernas, conduzindo a égua queLaurie montava e os outros para a lateral do solar. Mantiveram os animaisagrupadosforadavistadosagressoresthūn.Viramumsoldadocontornandoacasa,carregadocomarmas.Eleaproximou-sedePugeLaurieegritou:

—Omeu senhorKasumiordenouque vocêsdefendamos cavalos comasprópriasvidas.—Entregouumaespadaeumescudoacadaescravo,virou-seecorreudevoltaaocombate.

Pug contemplou o estranho armamento,muitomais leve do que qualqueroutro com o qual tivesse treinado. Um grito estridente interrompeu suacontemplaçãoquandoKasumicontornouacasacavalgando,lutandocontraumguerreiro thūn. O primogênito dos Shinzawai montava bem e, mesmo semmuita prática no combate a cavalo, era um excelente espadachim. A suainexperiênciaeracompensadapelodesconcertodothūndiantedocavalo,pois,emboraaparentemente fosseomesmoque lutarcontraalguémdesuaprópriaraça,ocavalotambémestavaatacando,mordendoopeitoeorostodacriatura.

Farejandoosthūn,oanimalcinzentodePugempinou,quaseoderrubando,masorapazconseguiuseagarrarbemàcrinaeapertaraspernascomforça.OsoutroscavalosrelincharamePugdebateu-separa impedirqueodeleatacasse.Lauriegritou:

— Eles não gostam do cheiro daquelas coisas. Veja como o cavalo deKasumiestásecomportando.

OutracriaturaapareceueLaurie,comumgrito,cavalgouparainterceptá-la.Encontraram-se comumchoquede armas eLaurie amparou como escudoogolpedobastãothūn.Comaespada,trespassounopeitoacriatura,quegritouemumidiomaestranhoegutural,cambaleandoporummomentoparadepoistombar.

Pug ouviu gritos vindos de dentro da casa e virou-se para ver uma dasestreitasportasdeslizantesexplodirquandoumcorpofoiatiradoviolentamentepara fora.Umescravo espantado se levantou cambaleante e acabou caindo, osangue jorrando de uma ferida na cabeça. Outras silhuetas saíram apressadaspelaporta.

Pug viu Katala e Almorella, fugindo da casa seguidas por outros serviçais,

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com um guerreiro thūn em seu encalço. A criatura aproximou-se veloz deKatala,oporreteerguidonoar.

Pug chamou-a e o cinzento sentiu a inquietação do cavaleiro. Sem serordenado,oenormecavalodeguerra lançou-separaa frente, interceptandoothūnqueseaproximavadaescrava.Ocavaloestavaenfurecido,devidoaossonsdo combate ou ao odor dos thūn. Chocou-se com força contra o invasor,mordendoeatacandocomasfortespatasdianteiras;aspatasdothūncederam.Com o choque, Pug foi arremessado e caiu com violência. Ficoumomentaneamente atordoado, até que conseguiu car em pé. Cambaleou atéao ponto onde Katala estava encolhida e puxou-a para longe do garanhãoenraivecido.

Ocavalocinzentoseempinouporcimadothūnimóveleescoiceou.Atacouvárias vezes o thūn, até não restar a mínima dúvida de que não sobrara umúnicosoprodevidanacriaturacaída.

Pugordenouaocavaloqueparassee cassequietoatéque,resfolegandodemodoinsolente,oanimalinterrompeuoataque,mantendoasorelhasparatrás,eestremeceu.Pugchegoupertoeafagou-lheopescoçoatéqueseacalmasse.

Entãofez-sesilêncio.PugolhouemvoltaeviuLauriereunindoosanimaisquehaviamsedispersado.PugdeixouasuamontariaeregressouparapertodeKatala,queestavasentadanagrama,tremendo,comAlmorellaaseulado.

Ajoelhando-seàsuafrente,Pugperguntou:—Vocêestábem?Elainspiroufundoesorriucomumaramedrontado.—Sim,masporuminstanteacheiqueiaserpisoteada.Pugolhouparaaescravaquesetornaratãoimportanteparaeleedisse:—Tambémpenseiqueissoiaacontecer.Logoestavamsorrindoumparaooutro.Almorellaselevantou,dizendoque

iavercomoestavamosoutros.— Tive tantomedo que você estivesse ferida— continuou Pug.—Achei

quefosseenlouquecerquandoavifugindodaquelacriatura.Katala colocou amão no rosto de Pug e percebeu que estavamolhado de

lágrimas.—Tivetantomedoporvocê—disseele.—Eeuporvocê.Acheiqueiamorrer,dojeitoquevocêatacouothūn.—

Começou a choramingar. Devagar, aninhou-se nos braços dele.—Não sei o

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que faria se você morresse. — Pug abraçou-a com todas as suas forças. Poralgunsminutos, caramsentados,atéKatalaserecompor.Afastando-sedePugdevagar, ela disse: — A fazenda está um caos. Septiem deve ter milhares detarefasparanós.—ComeçouaselevantarePugagarrouamãodela.

—Nãosabia...antes,querodizer—disseele,levantando-sediantedela.—Euamovocê,Katala.

Elasorriu,tocandonorostodele.—Eeuamovocê,Pug.Aquelemomento de revelação foi interrompido pelo surgimento do Lorde

Shinzawai e de seu lhomais novo. Olhando ao redor, passou em revista osdanos em sua casa, enquanto Kasumi surgia a cavalo, salpicado de sangue.Batendocontinênciaaopai,disse:

— Fugiram. Já enviei homens aos fortes de vigia ao norte. Devem terdominadoumadasguarniçõesparateremconseguidopassar.

O Lorde Shinzawai acenou, mostrando que entendera, e virou-se paraentrar em casa, chamando o Primeiro Conselheiro e outros funcionáriossuperioresparacomunicaremosdanos.

—Conversamosmais tarde—sussurrouKatalaaPugeatendeuaosgritosroucosdeSeptiem,ohadonra.Pugjuntou-seaLaurie,queavançaraacavaloatéficaraoladodeKasumi.

Omenestrelolhouparaascriaturasmortasnochãoeindagou:—Quecriaturassãoessas?— São thūn— Kasumi respondeu.— Criaturas nômades das tundras ao

norte. Temos fortes ao longo das bases das montanhas que separam nossasterras das deles, em todas as passagens. Antes, eles vagueavam por estascordilheiras, até que os afugentamospara o norte.Às vezes, tentam regressarparaasterrasmaisquentesdosul.—Apontouparaumtalismãpresoaopelodeuma das criaturas. — Foi um Ataque Sangrento. São todos jovens machos,ainda não testados em seus bandos, sem parceiras. Falharam nos ritos decombate que ocorrem no verão e foram banidos do grupo por machos maisfortes.Sãoobrigadosavirparaosul,paramatarpelomenosumtsuraniantesdeterempermissãopararegressaraobando.Cadaumtemderegressarcomacabeça de um tsurani, ou não poderá voltar. É o costume deles. Aqueles quefugirem serão perseguidos, pois não poderão atravessar de volta para acordilheiraondehabitam.

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Laurieabanouacabeça.—Istoacontecemuitasvezes?— Todos os anos — disse Hokanu com um sorriso forçado. —

Normalmente, os fortes de vigia os detêm,mas este ano devia ser um grupomuito grande. Muitos já devem ter regressado para o norte, com as cabeçasdecepadasdosnossoshomensnosfortes.

— Também devem ter destruído duas patrulhas— acrescentou Kasumi eabanouacabeça.—Perdemosentresessentaecemhomens.

Hokanu pareceu re etir a infelicidade do irmão mais velho com aqueladesgraça.

—Euprópriocomandareiumapatrulhaparaverificarosestragos.Kasumideupermissãoeelepartiu.Entãovirou-separaLaurie:—Oscavalos?—LaurieindicouolugarondeogaranhãoquePugmontara

vigiavaosoutros.—Kasumi,queropedirpermissãoaseupaiparacasarcomKatala—disse

Pugsubitamente.Kasumisemicerrouosolhos.—Escutebem,Pug.Tenteilheensinar,masparecequevocênãoentendeu

oque euquisdizer.O seupovonão énada sutil.Entãoagoravouexplicardeformadireta:vocêpodepedir,masopedidoserárecusado.

Pugcomeçouaprotestar,masKasumiointerrompeu:—Como disse antes, vocês são impacientes. Existemmotivos. Não posso

falarmaisqueisso,mastemosnossosmotivos,Pug.AraivabrilhounosolhosdePugeKasumidisse,noIdiomadoRei:—Digaumaúnicapalavradeiraquesejaouvidaporqualquersoldadodesta

casa,especialmentepelomeuirmão,eseráumescravomorto.—Sejafeitaasuavontade,meuamo—dissePugdemodoáspero.Notandoaamarguranaexpressãodorapaz,Kasumirepetiucomdelicadeza:—Existemrazõespara isso,Pug.—Porummomento, tentousermaisdo

que o amo tsurani, mostrou-se um amigo que tentava aliviar a dor, osofrimento. Fitou Pug nos olhos e um véu desceu sobre os seus: os doisvoltaramaserescravoeamo.

PugbaixouosolhoscomoeraesperadodeumescravoeKasumidisse:—Cuidedoscavalos.—Afastou-seapassoslargos,deixandoPugsozinho.

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Pug nunca mencionou o pedido a Katala. Ela sentiu que Pug estavaprofundamente incomodado com algo que parecia acrescentar uma nota

amarga aos momentos felizes que passavam juntos. O escravo percebeu aintensidade do amor que sentia por ela e começou a explorar a naturezacomplexa da jovem. Além de determinada, era bastante perspicaz. Só erapreciso explicar algo uma vez para que ela entendesse. Aprendeu a amar oespírito sarcástico de Katala, uma qualidade própria de seu povo, os thuril,aguçadacomoofiodeumanavalhapelocativeiro.Eraumaobservadoradetudooquea rodeava, comentando implacavelmenteasmaniasde todosqueviviamnaquela casa, emdetrimentodeles eparadeleitedePug. Insistiu emaprenderumpoucodesualínguaeelecomeçouaensiná-la.Porsuavez,elademonstrouserumaexcelentealuna.

Doismeses se passaram tranquilamente até que, uma noite, Pug e Laurieforamchamadosàsaladejantardosenhordacasa.Laurieconcluíraotrabalhonoalaúdee,apesarde insatisfeitocomumacentenadedetalhes,considerou-oaceitável.Naquelanoite,iriatocarparaoLordedosShinzawai.

Entraramnasalaeviramqueolorderecebiaumavisita,umhomemvestidodenegro,oGrandequetinhamvistoderelancemesesantes.Pug coujuntoàporta,enquantoLaurieocupouumlugarnacabeceiradamesadejantarbaixa.Ajeitandoaalmofadanaqualestavasentado,começouatocar.

Quandoasprimeirasnotaspairavamnoar,começouacantar:umamelodiaantigaquePugconheciabem.Celebravaasalegriasdascolheitaseas riquezasda terra, uma das canções preferidas nas aldeias agrícolas por todo o Reino.AlémdePug,somenteKasumientendiaaspalavras,emboraopaiconseguissecompreenderalgumasqueaprenderajogandoxadrezcomPug.

PugnuncaouviraLaurie cantar e cou sinceramente impressionado.Comtoda a fanfarronice do trovador, ele era melhor do que qualquer outro queouvira. Sua voz era límpida, umverdadeiro instrumento, expressiva na letra ena melodia. Quando terminou, os presentes bateram delicadamente com asfacasnamesa,emumgestoquePugjulgouequivalenteaaplausos.

Lauriecomeçououtramelodia,umaáriaalegretocadanosfestivaisportodooReino.Pugse lembroudaúltimavezqueaouvira,noFestivaldeBanapisdoanoanterioràsuasaídadeCrydeerumoaRillanon.Quaseconseguiuver,umavezmais, aspaisagens familiaresde sua terra.Pelaprimeiravez emanos,Pugsentiuumatristezaprofundaeumasaudadequequaseoesmagaram.

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Engoliuemseco,suavizandooapertonagarganta.Saudadesdecasaeumafrustração desesperada guerreavam em seu interior, levando-o a sentir oautocontrole arduamente adquirido se dissipar. Depressa usou um dosexercícios tranquilizadores que Kulgan lhe ensinara, sendo invadido por umasensaçãodebem-estarqueofezrelaxar.EnquantoLaurietocava,Pugusoutodaa sua concentração para afastar aquelas inquietantes memórias de sua terra.Suascapacidadescriaramumaauradeserenidadenaqualpodiaseabrigar,umrefúgiodaraivainútil,únicolegadodaquelasreminiscências.

Durante a apresentação, Pug sentiu várias vezes o olhar do Grande sobreele.Ohomempareciaestudá-locomumaperguntanosolhos.QuandoLaurieterminou,omagoinclinou-seefaloucomoanfitrião.

OLordedosShinzawai fezsinalparaquePugseaproximassedamesa.Aosesentar,oGrandelhefalou:

—Precisolheperguntarumacoisa.—Asuavozeralímpidaeforte,eotomofaziaselembrardeKulganquandopreparavaPugnasaulas.—Quemévocê?

Apergunta simples e direta pegoude surpresa todos àmesa.O senhor dacasapareceuinsegurocomaperguntadomagoecomeçouaresponder:

—Éumescravo...MasfoiinterrompidopelamãolevantadadoGrande.—MeunomeéPug,senhor.Osolhosescurosdohomemvoltaramaexaminá-lo.—Quemévocê?Pug counervoso.Jamaisgostaradeserocentrodasatenções,e,destavez,

estavamcentradasnelecomonuncaantes.—SouPug,ex-membrodacortedoDuquedeCrydee.— Quem é você, para irradiar poder? — Ao ouvir estas palavras, os três

homensdacasadosShinzawaiestremecerameLaurieolhouconfusoparaPug.—Souumescravo,senhor.—Dê-mesuamão.PugestendeuamãoeoGrandeaagarrou.Oslábiosdohomemsemoveram

e os seus olhos se nublaram. Pug sentiu uma onda de calor passando damãoparaocorpo.Asalapareciabrilharemumasuaveneblinabranca.Aténãovernadaalémdosolhosdomago.Sentiuamente carofuscadaeotempoparou.Percebeu, então,umapressãodentroda cabeça, comose algo tentasse entrar.Debateu-seeapressãoseafastou.

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Sua visão clareou e os dois olhos escuros pareceram se distanciar de seurostoatéqueeleconseguiuvoltaraverasala.Omagolargouamãodele.

—Quemévocê?—Umbrevebruxulearemseusolhos foioúnico indíciodasuagrandepreocupação.

—SouPug,aprendizdomagoKulgan.Aoouvirisso,oLordedosShinzawaiempalideceu,revelandoaconfusãono

rosto.—Mascomo...?OGrandedevestesnegraslevantou-seeanunciou:—Esteescravodeixoudepertenceraestacasa.Estáagorasobodomínioda

Assembleia.Asala couemsilêncio.Pugnãoentendiaoqueestavaacontecendoe cou

commedo.Omago retirouumdispositivodomanto.Pug se lembravade ter vistoum

objetodaqueles,duranteoataqueaoacampamentotsurani,esentiuaindamaismedo.Omagoativou-oeoaparelhozumbiucomoooutro.ColocouumamãonoombrodePugeasalasumiuemumanévoacinzenta.

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O

3

ATroca

PríncipedosElfosestavasentadocalmamente.Calin esperava por suamãe. Tinhamuito em que pensar e precisavafalarcomelanaquelanoite.Nosúltimostempos,tiverapoucaschances

para isso, pois, conforme a guerra se alastrava, tivera cada vezmenos tempopara car nas frondosas copas de Elvandar. Como Comandante Militar doselfos, estiveraquasequediariamentenocampodebatalha,desdeaúltimavezemqueosseresdooutromundohaviamtentadocruzarorio.

Desde o cerco ao castelo de Crydee, três anos antes, os seres do outromundo tinham vindo todas as primaveras, descendo emmassa pelo rio comoformigas, doze para cada elfo, e, todos os anos, tinham sido derrotados pelamagiadoselfos.Centenasentravamnasclareirasdorepousoecaíamnosonoeterno, os corpos sendo consumidos pela terra, nutrindo as árvores mágicas.Outros atendiam aos chamados das dríades, seguindo os cantos mágicos dasfadasdaáguaatéque,noaugedasuapaixãopeloselementais,morriamdesedeenquanto beijavam as amantes inumanas, nutrindo-as com as próprias vidas.Outros ainda sucumbiamvítimasdas criaturasda oresta: lobos,ursos e leõesgigantesquerespondiamaochamadodastrompasdeguerraélficas.Osprópriosgalhos e raízesdas árvores resistiamaos invasores, que acabavamdesistindo ebatendoemretirada.

Contudo,naqueleano,pelaprimeiravez,osMantosNegrosvieram.Grandepartedamagiadoselfos fora contida.Oselfos triunfaram,masCalinpensavaemcomoseriaquandoosseresdooutromundovoltassem.

OsanõesdasTorresCinzentas tambémhaviamajudadooselfos.Umavezqueosmoredhel jánãoestavamnoCoraçãoVerde,osanões tinhamchegadovelozmentedepoisde terempassadoo invernonasmontanhas,acrescentando

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seushomensàsdefesasdeElvandar.PeloterceiroanodesdeocercoaCrydee,osanõeshaviamsereveladocruciaisparaimpedirqueosseresdooutromundoatravessassemorio.E,maisumavez,opovodasmontanhasforaacompanhadopelohomemchamadoTomas.

Calin olhou para cima, pondo-se de pé quando a mãe se aproximou. ARainhaAglarannasentou-senotronoedisse:

—Meufilho,ébomvê-lonovamente.—Mãe, tambémmeagradavê-la.—Sentou-seaosseuspéseesperouque

aspalavrasdequeprecisavaviessem.Amãeesperou,paciente,pressentindooestadodeespíritosombriodo lho.Por m,Calin falou:—EstoupreocupadocomTomas.

— Eu também estou — disse a Rainha, com o semblante fechado epensativo.

—Éporissoquevocêseausentaquandoelevemàcorte?—Éporisso…eporoutrasrazões.— Como pode a magia dos Antigos ainda estar tão forte depois de tanto

tempo?Ouviu-seumavozvindadetrásdotrono:—Entãoéisso?Viraram-se,surpresos,eDolgansaiudapenumbra,acendendoocachimbo.

Aglarannapareceuirritada.— Os anões das Torres Cinzentas são conhecidos por escutar conversas

alheias,Dolgan?Ochefedosanõesignorouaacidezdapergunta.—Normalmente issonãoacontece,minhasenhora.Noentanto,euestava

passeando por aqui, aqueles quartinhos nas árvores cam cheios de fumaçamuitorápido,eouviporacaso.Nãoeraminhaintençãointerromper.

—Você consegue ser bem silencioso quandoquer, amigoDolgan—disseCalin.

Dolganencolheuosombrosedeuumabaforada.—O povo él co não é o único que consegue caminhar com leveza.Mas

falávamosdorapaz.Seoquedizéverdade,semdúvidaoassuntoégrave.Seeusoubesse,jamaisteriapermitidoqueaceitasseopresente.

ARainhasorriuparaoanão.—Aculpanãoésua,Dolgan.Nãohaviacomovocêsaber.Eutemiaporisso

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desdequeTomaschegouaquicomomantodosAntigos.Nocomeço,acheiqueamagiadosvalherunãoiriafazerefeitoporelesermortal,masagoravejoque,a cada ano que passa, ele se tornamenos humano. Tudo isso aconteceu poruma sucessão infeliz de acontecimentos. Não fosse a magia do dragão, osnossos Tecedores de Feitiços teriam descoberto o tesouro há muito tempo.Passamosséculosprocurandoedestruindotaisrelíquias,impedindoquefossemusadaspelosmoredhel.Agora,étardedemais,poisTomasjamaispermitiráqueaarmadurasejadestruída.

Dolgandeuumabaforadanocachimbo.—Todoinverno,eleandamelancólicopeloslongoscorredores,esperandoa

chegada da primavera e das batalhas. Poucomais lhe resta. Fica lá sentado ebebendo,ou cadepéemfrenteàporta,olhandoaneve lá fora,vendooquemais ninguém vê.Durante esse tempo,mantém a armadura trancada em seuquartoe,quandoestáemcampanha,nãoaretiranunca,nemparadormir.Elemudoueessamudançanão foinatural.Não,ele jamaisentregariaaarmaduradebomgrado.

—Podíamostentarobrigá-lo—disseaRainha—,masissotalveznãofossesensato.Háalgonelequeestáseformando,algoquepoderásalvaromeupovo,eeuarriscariatudoporeles.

—Nãoentendo,senhora—disseDolgan.—Tambémnão sei se entendo,Dolgan,mas souRainha de um povo em

guerra.Um inimigo terrível devasta anossa terra e a cada ano se torna aindamaisousado.Amagiadooutromundoépoderosa,talvezsejaamaispoderosadesdeodesaparecimentodosAntigos.Amagiadopresentedodragãopodevirasalvaromeupovo.

Dolganabanouacabeça.—Achoestranhoquetantopoderpossapermaneceremumaarmadurade

metal.Aglarannasorriuparaoanão.— Acha mesmo? E o Martelo de olin que você carrega? Não está

carregado de poderes antigos? Poderes que o marcam mais uma vez comoherdeirodotronodosanõesdoOeste?

DolganolhouatentamenteparaaRainha.—Vocêconhecemuitosdenossoscostumes,minhasenhora.Eunãodevia

esquecer que esse rosto jovem esconde séculos de sabedoria. — Em seguida,

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minimizou o comentário da Rainha: — Não temos reis no Oeste há muitotempo, desde queolin desapareceu em Mac Mordain Cadal. Vivemos tãobem comoos que obedecemao velhoReiHalfdan emDorgin.Contudo, se omeupovodesejarestaurarotrono,faremosumaassembleia,masnãoantesdofinaldestaguerra.Mas,enfim,equantoaorapaz?

Aglarannapareceupreocupada.—Tomas está se tornandoaquiloque está se tornando.Podemos ajudá-lo

nessa transformação.Os nossosTecedores de Feitiços já trabalhampara isso.Caso o poder absoluto dos valheru se erga sem restrição no rapaz, ele terácapacidade para afastar a nossa magia protetora, tal como você afastaria umgalhoqueoatrapalhasseemseucaminho.PorémelenãonasceuumAntigo.Asua natureza é estranha para os valheru, como a natureza deles era para osoutros. Com o auxílio dos nossos Tecedores, a sua capacidade humana paraamar, sentir compaixão, compreenderpoderáatenuaropoderdesenfreadodovalheru.Seassimfor,poderá…poderáserevelarumadádivaparatodosnós.—DolganteveacertezadequeaRainhaiadizeralgodiferente,maspermaneceuem silêncio enquanto ela prosseguia. — Se o poder dos valheru se unisse àcapacidadehumanadeodiarcegamente,deselvageriaedecrueldade,seriaumpoderasertemido.Sóotemponosdiráoquesairádessajunção.

— Os Senhores dos Dragões... — exclamou Dolgan. — Temos algumasmenções aos valheru em nossos mitos, mas somente fragmentos dispersos.Gostariadeentendermelhor,semepermite.

ARainhaolhouparalonge.— A nossa tradição, a mais antiga que existe no mundo, menciona os

valheru,Dolgan.Estouproibidade falar sobremuitasdessas coisas,nomesdepoder, temíveis de invocar, terríveis demais para ressuscitar, mas isto possodizer:muito antes dehomensou anões chegarema estemundo, reinavamosvalheru. Faziam parte deste mundo, concebidos do próprio tecido de suacriação,compoderesquasedivinosinsondáveisemseupropósito.Suanaturezaera caótica e imprevisível. Eram mais poderosos do que quaisquer outros.Voavam no dorso de dragões, não havendo lugar no universo fora de seualcance.Viajavamparaoutrosmundos, trazendodevoltaoque lhesagradava,tesouros e conhecimentos pilhados de outros seres. Não estavam sujeitos aqualquerlei,anãoseràsuaprópriavontadeeaseuscaprichos.Tantolutavamunscomosoutroscomoviviampaci camente,sendoamorteaúnicaresolução

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dos con itos. Este mundo era o seu domínio. E nós, suas criaturas. Nessaépoca, nós e os moredhel éramos uma única raça, e os valheru nos criavamcomo se fôssemos gado. Alguns, de ambas as raças, eram levados, como…animais de estimação, criados pela beleza… e outras qualidades.Outros eramcriados para trabalhar nas orestas e nos campos. Aqueles que viviam nasregiões selvagens nos tornaram precursores dos elfos, enquanto os quepermaneceram junto dos valheru foram os ancestrais dosmoredhel. Até quechegou a era da mudança. Os nossos senhores pararam com suas lutasmortíferas e se reuniram.Osmotivos se perderam no tempo, embora algunsdosmoredhelaindapossamsaber,poiserammaispróximosdosnossosamos.Éprovável que, naquele tempo, soubéssemos as razões, mas era época dasGuerras do Caos, emuito se perdeu. Sabemos apenas isto: todos aqueles queserviamosvalheruforamlibertadoseosAntigosnuncamaisforamvistosnempelos elfos nem pelos moredhel. Quando as Guerras do Caos irromperam,foram abertas enormes fendas no tempo e no espaço, e foi através delas quegoblins,homenseanõeschegaramaestemundo.Poucosdemeupovooudosmoredhelsobreviveram,masaquelesqueconseguiramreconstruíramasnossascasas.Osmoredhel ansiavampelopoder de seus antigos senhores, emvezdebuscarem o seu próprio destino, como zeram os elfos, e usaram sua astúciaparalocalizarsímbolosdosvalheru,quelevavamaoCaminhodasTrevas.Éporisso que somos tão diferentes, nós que antes fomos irmãos. A magia antigaaindaépoderosa.Emforçaevalentia,Tomaséincomparável.Recebeuamagiasem querer e talvez resida aí a diferença. A magia antiga transformou osmoredhel,quesetornaramaIrmandadedaSendadasTrevas,poisbuscavamopodercomdesejossombrios.Tomaséumrapazdecoraçãobomenobre,semqualquermanchademaldadenaalma.Épossívelquevenhaadominaro ladosombriodamagia.

Dolgancoçouacabeça.— Ainda assim, é muito arriscado, levando isso tudo em consideração.

Estava mesmo preocupado com o rapaz, e pensei pouco no panorama geral.Você sabe melhor do que eu como isso funciona, mas espero que nãolamentemosdeixá-lomanteraarmadura.

ARainhadesceudotrono.—Tambémesperoquenãovenhamosanosarrepender,Dolgan.Aqui,em

Elvandar, a magia antiga é suavizada e Tomas ca mais descontraído, o que

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talvez seja um sinal de que estejamos tomando a decisão certa: atenuando amudançaaoinvésdenosopormosaela.

Dolganfezumamesuracortês.— Eu me entrego à sua sabedoria, minha senhora. Rezo para que esteja

certa.ARainhalhesdesejouboa-noiteeretirou-se.— Também rezo para que a minhamãe, a Rainha, fale pela razão e não

levadaporseusentimento—disseCalin.—Nãoentendooquevocêquerdizer,PríncipedosElfos.Calinolhoudecimaparaapequenafigura.— Não se faça de tolo comigo, Dolgan. A sua inteligência é bastante

conhecidaerespeitada.Vocêestávendotãobemquantoeu.HáalgonascendoentreaminhamãeeTomas.

Dolgansuspirou,abrisafrescalevandoafumaçadocachimboparalonge.—Sim,Calin,tambémvi.Umolhar,poucomaisqueisso,masbastou.—MinhamãeolhaparaTomascomoolhavaparaomeupai,oRei, ainda

quecontinueanegá-loparasimesma.—EháalgodentrodeTomas—disseoanão,olhandooPríncipedosElfos

atentamente—,emboranãosejatãoternoquantoossentimentosdasenhora.Aindaassim,eleconseguesecontrolar.

—Vigieonossoamigo,Dolgan.SeeletentarcortejaraRainha,problemassurgirão.

—Vocêantipatizatantoassimcomele,Calin?OPríncipeolhoupensativoparaDolgan.— Não, Dolgan, eu não antipatizo com Tomas. Tenho medo dele. Isso

basta.—Calin coucaladoporalgumtempo,atéretomaroassunto:—Nós,oshabitantes de Elvandar, jamais voltaremos a car de joelhos perante outrosenhor.CasoaesperançaqueminhamãetemquantoàmudançadeTomasseproveerrada,teremosumajustedecontas.

Dolganabanouacabeçadevagar.—Esseseráumdiatriste,Calin.— Semdúvida,Dolgan.—Calin saiu do círculo do conselho, passou pelo

tronodamãeedeixouoanãosozinho.DolgancontemplouasluzesfeéricasdeElvandar, rezando para que as esperanças da Rainha dos Elfos não fosseminfundadas.

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Osventosuivavamnasplanícies.Ashen-ShugarmontavanosombroslargosdeShuruga.Ospensamentosdograndedragãodouradoalcançaramoseu

senhor.Vamoscaçar?Afomeestavapresentenamentedodragão.—Não.Aguardemos.OSoberanodoHorizontedaÁguiaaguardouenquantoo uxodemoredhel

avançavarumoàcidadeemcrescimento.Centenaspuxavamgrandesblocosdepedra retirados de pedreiras a meio mundo de distância, arrastando-os até àcidadenaplanície.Muitostinhammorridoemuitosmaismorreriam,masissoerainsignificante.Ounão?Ashen-Shugarficouincomodadocomaquelenovoeestranhopensamento.

Umrugidoveiodoaltoquandooutroenormedragãodesceuemespiral,ummagní cobradodedesa o.Shurugaergueuacabeçaeanunciouasuaresposta.Perguntouaoseusenhor:Lutamos?

—Não.Ashen-Shugar sentiu a decepção de sua montaria, optando por ignorá-la.

Contemplouooutrodragãopousandograciosamentenochãoacurtadistância,dobrandoas enormesasasnas costas.Asescamasnegras re etiama luz fracadosolcomoébanopolido.Orecém-chegadoosaudouerguendoamão.

Ashen-Shugar devolveu o cumprimento e o dragão do outro homemaproximou-se com cautela. Shuruga silvou eAshen-Shugar deu ummurro nabesta,distraído.Shurugacalou-se.

—SeráqueoSoberanodoHorizontedaÁguiaveio nalmente se juntaranós?—perguntouorecém-chegado,Draken-Korin,oSenhordosTigres.Asuaarmaduralistradadepretoelaranjabrilhouquandoeledesmontoudodragão.

Por cortesia, Ashen-Shugar também desmontou. A sua mão permaneceupróxima do punho branco da espada de ouro, pois, embora os temposestivessem mudando, a con ança ainda era incomum entre os valheru.Outrora,eraquasecertoqueacabariamlutando,masnaquelemomentoatrocadeinformaçõeseramaisnecessária.

—Não.Euapenasobservo—respondeuAshen-Shugar.Draken-Korin touoSoberanodoHorizontedaÁguia,masos seusolhos

azul-clarosnãorevelavamqualqueremoção.—Vocêfoioúnicoquenãoconcordou,Ashen-Shugar.—Nósnosunirmosparasaquearpelouniversoéumacoisa,Draken-Korin.

Este...esteplanoéloucura.

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–T

—Queloucuraéessa?Nãoseidoqueestáfalando.Somos.Fazemos.Oqueexistealémdisso?

—Nãosãoessesosnossoscostumes.—Tambémnãocostumamosdeixarqueoutrosnos impeçamdeconseguir

aquiloquequeremos.Estesnovosseresnosdesafiam.Ashen-Shugarlevantouosolhosparaocéu.—Sim,defato.Masnãosãocomoosoutros.Elestambémforamcriadosa

partirdasubstânciadestemundo,talcomonós.—Oqueimporta?Quantosdesuaraçavocêmatou?Quantosanguejánão

passouporseuslábios?Quemquerqueatravesseseucaminhotemdesemortooumatá-lo.Étudo.

—Equantoaosqueficaramparatrás,osmoredheleoselfos?—Oqueinteressam?Nãosãonada.—Sãonossos.— Você se tornou estranho embaixo de suas montanhas, Ashen-Shugar.

Elesnosservem.Nãoquerdizerquepossuampoderesgenuínos.Existemparaonossoprazer,nadamais.Comoquevocêsepreocupa?

—Nãoseidizer.Háalgo...

omas.Porummomento,Tomasexistiuemdoislugares.Sacudiuacabeçaeas

sevisõessedissiparam.Virou-seeviuGalaindeitadonomatoaoseulado.Umaforça de elfos e anões aguardava atrás, a certa distância. O jovem primo doPríncipeCalinapontouparaoacampamentodos tsuraninaoutramargemdorio. Tomas seguiu o gesto do companheiro e, ao ver os soldados do outromundosentadosjuntosàsfogueiras,sorriu.

—Elesnãosaemdepertodosacampamentos—sussurrou.Galainconfirmoucomumacenodecabeça.—Nósosferimososuficienteparaprocuraremoconfortodasfogueiras.O m da primavera se aproximava, e a neblina da tarde envolvia a área,

cobrindo o acampamento tsurani. Até as fogueiras pareciam perder o brilho.Tomasvoltouaestudaroinimigo.

—Conteitrinta,commaistrintaemcadaacampamentoalesteeaoeste.Galain nada disse, aguardando a ordem seguinte de Tomas, pois, embora

CalinfosseoComandanteMilitardeElvandar,Tomasassumiraocomandodas

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forçasdoselfoseanões.Nãoerapossíveldeterminarquandoessepoderpassaraparaele,porém,conformeiacrescendoemestatura,tambémcresceramassuasqualidadesdelíder.Emcombate,simplesmentegritavaparaque zessemalgoetodosobedeciam.Aprincípio,foiporseremordenslógicaseóbvias.Contudo,opadrãoseestabeleceue, assim,passaramaobedecê-loporqueeraelequemoscomandava.

TomasacenouparaqueGalainoseguisse,eosdoisafastaram-sedamargematé chegarem a um local onde não seriam avistados do acampamento dostsurani,demodoaconseguiremseaproximardaquelesqueaguardavamsobasárvores.Dolganolhoupara o jovemqueumdia fora o garotoque salvaradasminasdeMacMordainCadal.

Tomas tinha mais de dois metros de altura, tão alto quanto um elfo.Caminhavacomumapoderosaautocon ança;eraumguerreironato.Nosseisanosemqueestiveracomosanões,setornaraumhomem...emaisdoqueisso.

Dolgan observou-o, enquanto Tomas passava em revista os guerreirosreunidosdiantedeles,cientedequeorapazpodiaagoracaminharpelasminasescurasdasTorresCinzentassemmedoesemcorrerriscos.

—Osoutrosbatedoresjáregressaram?Oanãocon rmou,gesticulandoparaqueavançassem.Aproximaram-setrês

elfosetrêsanões.—ViramsinaldosMantosNegros?Quando os batedores indicaram que não os tinham visto, o homem de

brancoedouradofranziuatesta.—Seriabomcapturarumdeleselevá-loparaElvandar.Oúltimoataquefoi

omaisintenso.Eudariamuitoparaconhecerolimitedopoderdeles.Dolgan pegou o cachimbo, avaliando a distância a que se encontravamdo

rioparanãoseravistado.Enquantooacendia,disse:—OstsuranidefendemosMantosNegroscomoumdragãodefendeoseu

tesouro.TomasriueDolganvislumbrouomeninoqueconhecera.—Sim,eéumanãovalenteaquelequepilhaocovildeumdragão.—Se seguiremopadrãodos últimos três anos, é quase certo quenão vão

querernadaconosconestaestação—Galaincomentou.—ÉpossívelquenãovejamosoutroMantoNegroatéapróximaprimavera.

Tomas cou pensativo, e os seus olhos claros pareciam brilhar com luz

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própria.—Opadrãodeles...opadrãodelesépegar,possuiredepoisirbuscarmais.

Nósos temosdeixado fazeroquequerem,desdequenãoatravessemo rio.Éhora de mudar esse padrão. Se os perturbarmos bastante, talvez tenhamoschancedecapturarumdessesMantosNegros.

Dolgan sacudiu a cabeça diante do risco implícito naquilo que Tomaspropunha.Emseguida,comumsorriso,orapazacrescentou:

—Alémdisso, senãoconseguirmosdiminuir seudomínioao longodo rioporalgumtempo,eueosanõesseremosforçadosapassaroinvernoaqui,umavezqueosseresdooutromundojáavançaramparaasprofundezasdoCoraçãoVerde.

Galain olhou para o amigo. Tomas cavamais él co a cada ano, eGalainapreciavaohumorenigmáticoque frequentementemarcava suaspalavras.Elesabiaqueorapazgostariade carpertodaRainha.E,apesardaspreocupaçõesemtornodamagiadeTomas,acabarasimpatizandocomele.

—Como?—Enviearqueirosparaosacampamentosàdireitaeàesquerdaemaisalém.

Quando eu zer o chamado de um ganso-bravo, ordene que disparempara ooutro ladodorio,masalémdessasposições,comoseoataqueprincipalviessedo leste e do oeste. — Sorriu, mas em sua expressão não havia vestígio dehumor. — Com isso, isolaremos o acampamento por tempo su ciente parafazermosonossotrabalho.

Galain concordou e enviou uma dezena de arqueiros para cadaacampamento. Os demais se prepararam para o ataque e, passado temposu ciente, Tomas levou as mãos à boca. Colocando-as em concha, emitiu osomdeumgansoselvagem.Logoouviugritosvindosdooutroladodorioalesteeaoeste.Os soldadosdoacampamento tsurani levantaram-seeolharamparaambos os lados, sendo que vários se aproximaram da água, perscrutando aoresta sombria. Tomas ergueu a mão, deixando-a cair como se estivessegolpeando.

Derepente,choveram echasél casnoacampamentodooutroladodorioe os soldados tsurani correram para pegar seus escudos. Antes queconseguissemserecuperarcompletamente,Tomas liderouumaforçadeanõesatravessando o banco de areia que tornava o leito raso. Por cima deles, outroataque de echas passou, e os elfos colocaram os arcos nos ombros e

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desembainharam as espadas, investindo logo depois dos anões, à exceção deuma dúzia que cou para trás, demodo a providenciar cobertura em caso denecessidade.

Tomasfoioprimeiroaalcançaramargemematouumguardatsuraniqueoatacou na beira do rio. Em segundos, estava entre eles, semeando o caos.Sangue tsurani explodia de sua espada dourada e os gritos dos feridos emoribundostomaramcontadanoiteúmida.

Dolganmatouumguardaeninguémoenfrentou.Virou-separaGalain,queestavajuntoaoutrotsuranimorto,masolhavaparaumpontomaisdistante.Oanão seguiu o seu olhar até onde Tomas estava junto de um inimigo caído,sangue escorrendo pelo rosto devido a um ferimento na cabeça e o braçoerguido pedindo clemência. Tomas estava sobre ele, o rosto parecendo umaestranhamáscaraderaiva.Emitindoumgritoterríveleestranho,comumavozcruel e rouca, baixou a lâmina dourada e acabou com a vida do tsurani.Rapidamente,virou-seembuscademais inimigos.Quandonenhumapareceu,seurosto couinexpressivoporuminstante,maslogoseusolhosvoltaramasefocar.

Galainouviuochamadodeumanão:—Estãovindo.—Ouviram-segritosvindosdosoutrosacampamentos,que

tinham percebido o estratagema, aproximando-se depressa do verdadeirocampodebatalha.

Semumapalavra,ogrupodeTomasatravessouoriocorrendo.Alcançaramaoutramargemsobasflechasdosarqueirostsurani,oselfosrespondendodelá.O grupo de atacantes voltou a entrar rapidamente no arvoredo, até carem aumadistânciasegura.

Quandopararam,oselfoseosanõessentaram-separarecuperarofôlegoedescansar da excitação do combate que ainda corria no sangue.Galain olhouparaTomasedisse:

—Deutudocerto.Nãoperdemosninguém,sótemosalgunsferidoslevesematamostrintaseresdooutromundo.

Tomas não sorriu e cou pensativo por ummomento, como se escutassealgumacoisa.Virou-seeolhouparaGalain,comosetivesse,por m,entendidoaspalavrasdoelfo.

—Sim,deucerto,mastemosdevoltaraatacar,amanhãenodiaseguinteenooutro,atéqueelesreajam.

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Atravessaramorionoiteapósnoite.Atacavamumacampamentoe,nanoiteseguinte, atacavam outro a quilômetros de distância. Ficavam uma noite sematacar, entãoatacavamomesmoacampamento trêsnoites seguidas.Àsvezes,uma única echa derrubava um guarda na margem oposta e nada maisacontecia,fazendocomqueoscompanheirosesperassemumataquequenuncachegava.Emumaocasião,assaltaramaslinhasinimigasdemadrugada,quandoos defensores já haviam concluído que não iriam sofrer qualquer ataque.Devastaramumacampamento,aquilômetrosdali,nointeriorda orestaaosul,e tomaram uma caravana demantimentos, chegando a chacinar as bestas deseispatasquepuxavamascarroças.Cincobatalhasdiferentesforamtravadasaovoltaremdesseataque,eacabaramperdendodoisanõesetrêselfos.

Agora, Tomas e o seu grupo, que tinha mais de trezentos elfos e anões,estavamsentados,aguardandonotíciasdosoutrosacampamentos.Comiamumensopadodeveado,temperadocommusgo,raízesetubérculos.

Ummensageiroaproximou-sedeTomaseGalain.—NotíciasdoexércitodoRei.Por trás dele, uma silhueta cinzenta aproximou-se da fogueira. Tomas e

Galainlevantaram-se.—Salve,LeondeNatal!—saudouoelfo.—Salve,Galain—retribuiuoaltopatrulheirodepeleescura.Umelfolevoupãoeensopadofumeganteparaosdoisrecém-chegados,que,

enquantoseacomodavam,ouviramTomasperguntar:—QuenotíciastrazemdoDuque?Entregrandesbocadasdecomida,opatrulheirorespondeu:—LordeBorricenviacumprimentos.Asituaçãoestápéssima.Comomusgo

emumaárvore,os tsuraniavançamlentamentepara leste.Conquistamalgunsmetros e esperam. Não parecem ter pressa. O Duque acha que pretendemchegaràcostaatéoanoquevem,isolandoasCidadesLivresdonorte.Depois,talvezataquemnadireçãodeZūnouLaMut.Quempodedizer?

—TemnotíciasdeCrydee?—perguntouTomas.—Pomboschegarampoucoantesdaminhapartida.OPríncipeAruthaestá

conseguindoconteros tsurani.Estãocomtãopoucasortequantoaquetemosaqui.Mas estão indoparao sul atravessandooCoraçãoVerde.—Estudouosanões e Tomas. — Estou admirado que vocês tenham conseguido chegar aElvandar.

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A

Dolgandeuumabaforadanocachimbo.— Foi uma longa caminhada. Tivemos de nos deslocar rápido e às

escondidas. É improvável que consigamos voltar às montanhas agora que osinvasoresestãoalertas.Quandochegamaumlugar,nãogostamdecederoqueconquistaram.

Tomascomeçouaandardeumladoparaoutroemfrenteàfogueira.—Comovocêconseguiuevitarassentinelas?— Os seus assaltos estão causando bastante confusão entre os tsurani.

Homens que combatiam os Exércitos do Oeste foram retirados da frente decombateparaviremparaorio.Apenasseguiumdessesgrupos.Nempensaramemolharparatrás.Tive,simplesmente,depassarpelas leirasdelesquandoserecolhiame,novamente,paraconseguirpassarorio.

—Quantostrazemelesparanoscombater?—perguntouCalin.Leonencolheuosombros.— Vi seis companhias, pode haver mais. — Tinham calculado que uma

companhiatsuranieraconstituídaporvintepelotõesdetrintahomens.Tomasbateuasmãoscomluvas.—Elessótrariamtrêsmilhomensseestivessempretendendoatravessarde

novo.Devemestarplanejandonosfazerrecuarparaa orestaparanosimpedirde atacar as posições que mantêm. — Avançou até o patrulheiro. — AlgumMantoNegroveiocomeles?

—Detemposemtempos,viumcomacompanhiaquesegui.Tomasvoltouabaterpalmas.—Destavez,elesvêmcomforça.Avisemosoutrosacampamentos.Daquia

doisdias,todaahostedeElvandarsereuniránacortedaRainha,àexceçãodosbatedoresemensageirosqueficarãovigiandoosseresdooutromundo.

Emsilêncio,osmensageirosselevantaramdeseulugaraoredordafogueiraeseapressaramalevarorecadoaosoutrosgruposdeelfosdistribuídosaolongodasmargensdorioCrydee.

shen-Shugar estava sentado em seu trono, sem prestar atenção nasdançarinas. As fêmeas moredhel tinham sido escolhidas pela beleza e

graciosidade, no entanto Ashen-Shugar estava insensível ao seu fascínio. Suamente vagueava, procurando a batalha iminente. Em seu interior, umaestranheza,umasensaçãodevaziosemnome,ganhouforma.

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U

Chama-setristeza,disseavozinterior.Ashen-Shugarpensou:Quemévocêparamevisitarnaminhasolidão?Sou aquilo que você está se tornando. Isto é apenas um sonho, uma

memória.Ashen-Shugardesembainhoua espada e levantou-sedo trono, gritandode

raiva.Namesmahora,osmúsicospararamdetocar.Asdançarinas,osserviçaiseosmúsicoscaíramaochão,prostrando-senafrentedoseuamo.

—Euestouaqui!Istonãoésonho!Você não passa de uma recordação do passado , disse a voz.Estamos nos

tornandoumsó.Ashen-Shugarergueuaespadaedepoisabaixoucomforça.Acabeçadeum

dos serviçais encolhidos rolouno chão.Ashen-Shugar ajoelhou-se e pousou amãonafontedesangue.Levandoosdedosaoslábios,saboreouogostosalgadoegritou:

—Eestenãoéosabordavida?Éumailusão.Tudojápassou.—Sintouma estranheza, uma inquietaçãoqueme faz... queme faz... não

tenhopalavras.Émedo.Ashen-Shugarvoltouagolpeareumajovemdançarinamorreu.— Estas criaturas, elas sabem o que é o medo. O que o medo tem a ver

comigo?Vocêtemmedo.Todasascriaturastememamudança,atéosdeuses.—Quemévocê?—perguntouovalheruemsilêncio.Eu souvocê.Souaquilo emquevocê irá se tornar.Souoquevocê foi. Sou

Tomas.

mgrito vindodebaixodespertouTomasde seudevaneio.Levantou-se esaiudopequenoquarto,atravessandoumapontedegalhosdeárvoreatéo

nível da corte da Rainha. Em um corrimão, conseguiu entrever as gurasindistintas de centenas de anões acampados embaixo das alturas de Elvandar.Ficouumtempoolhandoasfogueirasabaixo.Cadahoraquepassava,centenasdeguerreiroselfoseanõesavançavamparasejuntaraoexércitoqueeleestavamobilizando.Nodiaseguinte, iriasesentaremassembleiacomCalin,Tathar,Dolganeoutros,apresentando-lhesoplanoque tinhaparaenfrentaroataque

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iminente.Seis anos de combates tinham proporcionado a Tomas um estranho

contrapontoaossonhosqueaindaperturbavamoseusono.Quandoafúriadabatalha o possuía, ele existia nos sonhos de outro. Quando estava longe daorestadoselfos,eraaindamaisdifícil resistiraochamadoparaentrarnessessonhos. Não temia essas aparições, como no início. Tornara-se algomais doquehumanopor causados sonhosdeumserhámuitomorto.Tinhapoderesdentrodesi,poderesquepodiausarequejáfaziampartedele,talcomotinhamfeitopartedaquelequesevestiradebrancoedourado.SabiaquejamaisvoltariaaserTomasdeCrydee,masnoqueestariasetornando...?

Ouviuumsomquaseinaudíveldepassosatrásdesi.—Boanoite,minhasenhora—disseele,semsevirar.A Rainha dos Elfos parou ao lado de Tomas, uma expressão pensativa no

rosto.—Osseussentidosagorasãoélficos—disse,emseupróprioidioma.—Assimparece,LuaCintilante—respondeunomesmoidioma,usandoa

traduçãoantigadonomedaRainha.Tomasvirou-separaencará-laeviuespantoemseusolhos.Elaestendeua

mãoetocoudelicadamenteorostodeTomas.—Éesteo rapazque estava tãonervoso,na salade assembleiadoDuque,

com a perspectiva de falar com a Rainha dos Elfos e agora fala o idiomaverdadeirocomosefossesualínguamaterna?

Comdelicadeza,Tomasafastouamãodela.—Souoquesou,aquiloquevocêvê.—Avozdeleerafirme,autoritária.Elaestudouorostodele,contendoumestremecimentoaoreconheceralgo

terrívelnaexpressãodorapaz.—Masoqueestouvendo,Tomas?Ignorandoapergunta,Tomasindagou:—Porquevocêmeevita,senhora?—Háalgocrescendoentrenósquenãopodeacontecer—disseela,gentil.

—Nasceunomomentoemquevocêveioaténóspelaprimeiravez,Tomas.Parecendoquasedivertido,Tomasdisse:— Antes disso, senhora, desde o primeiro momento em que a vi. —

Manteve-se rme,olhando-adecima.—Eporquenãopodeacontecer?Existealguémmelhorparasesentaraseulado?

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Elaseafastou,perdendoocontroleporumbrevemomento.Nesseinstante,ele viu o que poucos jamais presenciaram: a Rainha dos Elfos confusa einsegura,duvidandodasuaprópriasabedoriaancestral.

— Mesmo que esquecêssemos tudo, você ainda é humano. Apesar dospoderes que foram conferidos a você, a sua vida será a de um homem. EureinareiatéqueomeuespíritoviajeparaasIlhasAbençoadasparareencontraro meu senhor, que já realizou essa travessia. Depois, será Calin, o herdeirolegítimo,quegovernarácomoRei.Assimsãooscostumesdemeupovo.

Tomasestendeuamão,virando-aparaqueoencarasse.—Nemsemprefoiassim.Seusolhosrevelaramumafagulhademedo.—Não,nemsemprefomosumpovolivre.Ela sentiu a impaciência dele, mas também o viu lutar contra esse

sentimento,forçandoavozapermanecercalma:—Entãovocênãosentenada?Eladeuumpasso,afastando-se.—Eumentiria sedissessequenão.Contudo,éumaatraçãoestranha,algo

que me enche de incerteza e de pavor substancial. Se você se tornar maisvalherudoquehomemenãopudercontrolaresselado,nãopoderemosrecebê-lomaisaqui.NãopoderíamospermitiroregressodosAntigos.

Tomas deu uma gargalhada, com uma estranha mistura de humor eamargura.

—Quandoeramaisnovo,contempleisuabelezaefui invadidopordesejosdegaroto.Agora,tornei-meadultoeacontemplocomodesejodeumhomem.Será que o poder queme dá coragem para procurá-la, o poder queme dá osmeiosparafazê-lo,seráessepoderquenosafastará?

Aglarannalevouamãoaorosto.—Não seidizer.Nuncaaconteceuà família real ser algodiferentedaquilo

quesomos.Outrospodemseunirahumanos.Eunãodesejoatristezadevê-loidosoegrisalhoeeuaindacomovocêmevêagora.

OsolhosdeTomasbrilharameavozganhouumaintensidadecruel:— Isso não irá acontecer, senhora. Viverei mil anos nesta clareira. Disso

não tenho dúvida. Porém não a incomodarei mais... até que outros assuntosestejamresolvidos.Issoestádestinadoaacontecer,Aglaranna.Vocêchegaráaessaconclusão.

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T

Ela couparada,comamãonabocaeosolhosmarejadospelaemoção.Eleafastou-se, deixando-a sozinha em sua corte para re etir sobre o que ouvira.Pela primeira vez desde que o Rei falecera, Aglaranna sentiu duas emoçõescontraditórias:receioedesejo.

omas virou-se ao ouvir um grito vindo da orla da clareira. Viu um elfosaindo das árvores seguido por um homem vestido de maneira simples.

Interrompeu a conversa que estava tendo com Calin e Dolgan, e os trêsapressaram-se atrás do desconhecido que estava sendo levado até a Rainha.Aglarannaestavasentadanotrono,comosanciãosorganizadosembancosdecadalado.Tatharestavadepé,juntoàRainha.

Odesconhecidoaproximou-sedo tronoe fezumamesuradiscreta.Tatharolhou de relance para a sentinela que acompanhava o homem, mas o elfopareciadesorientado.

— Saudações, senhora— disse o homem todo vestido de tons castanhos,emumélficoperfeito.

AglarannarespondeunoIdiomadoRei:—Vocêtemcoragemparaviraténós,desconhecido.Ohomemsorriu,apoiando-senocajado.—Ainda assim, recorri a um guia, pois jamais entraria em Elvandar sem

avisá-los.—Achoqueseuguiatevepoucaescolha—disseTathar,aoqueohomem

retorquiu:—Existemsemprealternativas,aindaquenemsempresejamevidentes.Tomasavançou.—Oqueotrazaqui?Virando-seaoouviravoz,ohomemsorriu:— Ah! Aquele que usa o presente do dragão. É um prazer conhecê-lo,

TomasdeCrydee.Tomas recuou. Os olhos do homem irradiavam poder e os seus modos

afáveisescondiamumaforçaqueTomasconseguiasentir.—Quemévocê?— Tenho muitos nomes, mas aqui me chamam de Macros, o Negro —

respondeuohomem.Como cajado, indicou todosospresentes.—Vim,poisvocês escolheram um plano arriscado. — Por m, apontou o cajado para

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Tomas. Deixou cair a ponta e voltou a apoiar-se nele. — Porém o plano decapturarumMantoNegronada traráalémdedestruiçãoaElvandar,casonãotenhamomeuauxílio.—Sorriudeleve.—Notempocerto,vocêsvãoterumMantoNegro,masnãoagora.—Asuavoztinhaumapontadeironia.

Aglarannalevantou-se.Tinhaosombrosparatráseolhavadiretamentenosolhosdohomem.

—Seuconhecimentoéimenso.Macrosinclinouligeiramenteacabeça.—Sim, seimuito.Por vezes,maisdoque seria confortável.—Passoupor

elaepousouumamãonoombrodeTomas.ConduzindoorapazparaumlugarjuntoàRainha,Macrosoobrigouasentarcomumaligeirapressãonoombro.Sentou-seaseuladoeencostouocajadonacurvaentreopescoçoeoombro.

—OstsuranivirãoaonascerdodiaeavançarãodiretamenteparaElvandar—disse,olhandoparaaRainha.

Tatharcolocou-seàfrentedeMacrosedisse:—Comovocêsabe?Macrosvoltouasorrir.—Nãoselembrademimnoconselhoaoladodeseupai?Tatharrecuoudeolhosarregalados.—Você...—Eusouele,emborajánãouseomesmonomequetinhanaquelaépoca.Tatharficouperturbado.—Foihátantotempo.Nuncapenseiquefossepossível.FoiavezdeMacrosfalar:—Muitacoisaépossível.Olhou xamenteparaaRainhaedepoisparaTomas.Aglarannasentou-se

devagar,disfarçandoodesconforto.—Vocêéofeiticeiro?Macrosconfirmou.—Assimsouchamado,emboraahistóriasejamaiscomplexadoqueposso

contaragora.Vocêsirãomeescutar?Tatharacenoucomacabeça,dirigindo-seàRainha:—Hámuitotempo,eleveioemnossoauxílio.Nãoentendocomopodeser

o mesmo homem. Naquela época, era um verdadeiro amigo de seu pai e domeu.Podemosconfiarnele.

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—Sendoassim,queconselhonostraz?—perguntouaRainha.— Os magos tsurani marcaram os seus sentinelas, conhecem as suas

posições.Aoamanhecer,avançarão,atravessandoorioemduaslevas,comooschifresdeumtouro.Quandoforemaoencontrodeles,umgrupodascriaturaschamadas cho-ja avançará pelo centro, onde a força de vocês é mais fraca.Ainda não as usaram contra vocês, embora os anões possam dizer como sãoexcelentesnaartedaguerra.

Dolgandeuumpassoàfrente.—Sim,senhora.Sãocriaturastemíveisquecombatemnaescuridãotãobem

quantoomeupovo.Penseiquesóestivessemnasminas.Macrosprosseguiu:—Eraassim,atéosataques.Trouxeramumahostedeles,que sepreparou

dooutro ladodorio,afastadadeseusbatedores.Virãoemgrandenúmero.Ostsurani estão cansados dos ataques e querem acabar com a luta entre asmargensdorio.SeusmagostêmtrabalhadoduroparadescobrirossegredosdeElvandareagorasabemque,seocoraçãosagradodas orestasdoselfoscair,oselfosdeixarãodeterforça.

—Sendoassim,iremoscontê-losedefenderocentro—disseTomas.Macros cou calado por algum tempo, como se estivesse se lembrando de

algo.— No começo, irá funcionar, mas os magos vêm com eles, já que estão

ansiososporumtérmino.AmagiadelespermitiráqueosguerreirosatravessemaflorestasemserimpedidospelosTecedoresdeFeitiços,echegarãoaqui.

— Então os enfrentaremos aqui e aguentaremos até o m — a rmouAglaranna.

Macrosacenoucomacabeça.—Umaafirmaçãocorajosa,senhora,masirãoprecisardaminhaajuda.Dolganobservouofeiticeiro.—Oqueumhomemsópodefazer?Macrosficouempé.—Muito.Quandochegaraalvorada,vocêsverão.Nãotema,anão,abatalha

será dura e muitos realizarão a viagem para as Ilhas Abençoadas, mas, comdeterminação,triunfaremos.

—Falacomosejátivessevistoessesacontecimentos—disseTomas.Macrossorriueseusolhosdisseramaomesmotempomilcoisasenada.

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E

—Jávi,TomasdeCrydee,ouseráquenão?—Virou-separaosrestantese,deslocandoocajadoemummovimentoabrangente, continuou:—Preparem-se.Euficareicomvocês.—Eàrainhaacrescentou:—Gostariadedescansar,setiverlugarparamim.

ARainhavirou-separaoelfoquetrouxeraMacrosaoconselho:—Leve-oparaumquartoedêaeletudooquepedir.Ofeiticeirofezumamesuraeseguiuoguia.Osdemais caramemsilêncio,

atéTomasdizer:—Vamosnospreparar.

nquanto a noite dava lugar ao amanhecer, a Rainha permaneceu sozinhajunto ao trono. Em tantos anos de regência, nunca conhecera dias como

aqueles. Seus pensamentos corriam em centenas de imagens, de épocas tãodistantesquantoasuajuventude,etãorecentescomoduasnoitesantes.

—Procurarespostasnopassado,senhora?Virou-separaverofeiticeiroatrásdesi,apoiando-senocajado.Aproximou-

seeficouaoseulado.—Conseguelerminhamente,feiticeiro?Comumsorrisoeumacenodemão,Macrosrespondeu:— Não, minha senhora. Mas sei muito e muito vejo. Seu coração está

pesadoeasuamente,sobrecarregada.—Eentendeosmotivos?Macrosriubaixinho.—Semdúvida.Mesmoassim,gostariadefalarsobreessasquestões.—Porquê,feiticeiro?Qualéoseupapelnissotudo?MacroscontemplouasluzesdeElvandar.—Umpapelqualquer,comoodequalqueroutrohomem.—Masvocêconhecebemoseu.—De fato.Algunspossuema capacidadede entenderoqueparaoutros é

vago.Esseéomeudestino.—Porquevocêveioaténós?— Porque precisam demim. Semmim, Elvandar poderá sucumbir, e isso

nãopodeacontecer.Assimditaodestinoeeunãotenhooutraopçãoanãoserdesempenharomeupapel.

—Vocêficaráseganharmosabatalha?

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— Não. Tenho outras incumbências. Mas eu voltarei aqui, quando anecessidadeaparecer.

—Quandoseráisso?—Issonãopossodizer.—Seráembreve?—Embreve,emboranãomuitoembreve.—Vocêfalaporenigmas.Macrossorriueoseusorrisoeramisteriosoetriste.—Avidaéumenigma.Estánasmãosdosdeuses.Seráavontadedelesque

prevaleceráeserãomuitososmortaisqueterãoassuasvidasalteradas.— Tomas?—Aglaranna olhou para as profundezas dos olhos escuros do

feiticeiro.— Ele, mais visivelmente, mas todos aqueles que sobreviverem a estes

tempos.—Oqueeleé?—Oquevocêgostariaqueelefosse?A Rainha dos Elfos foi incapaz de responder.Macros pousou amão com

delicadezanoombrodaRainha,quesentiuum uxodetranquilidadeeouviu-seresponder:

—Nuncadesejariacausarsofrimentoaomeupovo,masvê-lomeenchededesejo.Anseioporumhomem...umhomemcomoseu...poder.Tomasémaisparecido com meu falecido senhor do que jamais saberá. E eu o temo, poisassim que me comprometer, assim que o colocar em uma posição acima daminha,perdereiopoderdegovernar.Achaqueosanciãosirãopermitir?Omeupovojamaissedeixariasubmeternovamenteaojugodosvalheru.

Ofeiticeiroficoucaladoporalgumtempo,atéquedisse:— Apesar de toda a minha arte, há muita coisa que desconheço, mas

entenda: existe aqui umamagia sobrenatural superior a tudo o que possamosimaginar.Nãoconsigoexplicar,sópossodizerqueelaatravessaotempo,maisdoqueparece,pois, enquantoovalheruvive emTomasnopresente, tambémTomas vive no valheru do passado. Tomas usa o traje de Ashen-Shugar, oúltimo Senhor dos Dragões. Quando aconteceram as Guerras do Caos, foi oúnico a permanecer neste mundo, pois tinha sentimentos diferentes dosmembrosdasuaraça.

—Tomas?

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Macrossorriu.—Nãopensemuitosobreisso,minhasenhora.Estetipodeparadoxopode

atordoar a cabeça.O queAshen-Shugar sentia era obrigação de proteger estemundo.

AglarannaestudouorostodeMacrosàluztremeluzentedeElvandar.— Conhece mais da antiga tradição do que qualquer outro homem,

feiticeiro.—Muitome foi…oferecido, senhora.—Olhouparaas orestasdoselfos

aolongeefalou,maisparasiprópriodoqueparaaRainha:— Em breve, chegará ummomento de provação para Tomas. Não sei ao

certooqueiráacontecer,masseiqueomomentoestápróximo.Sejacomofor,orapazdeCrydee,comoamorquesenteporvocêeseupovo,noseusimplessentimentohumano,conseguiuatéagoraresistiraomembromaispoderosodamaispoderosaraçamortalquealgumavezhabitouestemundo.Estápreparadopara suportar o sofrimento atroz desse con ito de duas naturezas pelas artesdelicadasdeseusTecedoresdeFeitiços.

AglarannaolhoufixamenteparaMacros.—Vocêsabedisso?Eleriu,comverdadeirodeleite.— Senhora, eu tenho alguma vaidade. Fico ofendido por você pensar que

conseguiriafazertãoexímiosfeitiçossemqueeuospercebesse.Poucaéamagianestemundoqueescapaàminhaatenção.OquevocêfezfoisábioepoderáseropontodecisivoafavordeTomas.

—Éissoquedigoamimmesma—disseAglarannaemvozbaixa—,quandovejo em Tomas um senhor que iguala o Rei da minha juventude, o maridolevadotãocedo.Seráverdade?

—Seele sobreviveràprovação,assimserá.Ocon itopoderásero mdeTomasedeAshen-Shugar,mas, casoTomaspersista,poderá se tornar aquiloque, emsegredo,você tantodeseja.Agora,deixe-medizeralgoque sóeueosdeusessabemos.Possoprevermuitodoqueaindanãoaconteceu,mashámuitoqueaindadesconheço.Oqueeuseiéoseguinte:aoseulado,Tomaspoderáviragovernarsatisfatóriaesabiamentee,àmedidaqueasuajuventudefordandolugar à sabedoria, ele se tornará o senhorpelo qual você anseia, casoopoderquepossuisejamoderadopeloseucoraçãohumano.Seforexpulso,umdestinoterrívelpoderáaguardaroReinoeospovoslivresdoOcidente.

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O

Comoolhar,aRainhaformulouapergunta,eofeiticeiroprosseguiu:—Nãotenhocapacidadedeveressefuturosombrio,senhora;possoapenas

especular. Caso ele atinja o auge de seus poderes com o lado escuroprevalecendo,eleseráumaforçaterrível,quedeveráserdestruída.Aquelesquetestemunhama loucuradabatalhaqueopossuiveemapenasumasombradasverdadeiras trevascon nadasdentrodele.Mesmoqueatinjaumequilíbrioeahumanidade de Tomas sobreviva, se você o expulsar, é possível que acapacidadehumanadesentir raiva,doreódioganheespaço.Eu lhepergunto:se Tomas fosse expulso e, um dia, o estandarte do dragão fosse erguido aonorte,oqueaconteceria?

A Rainha cou assustada, demonstrando-o claramente e perdendo porcompletoamáscaradecontrole.

—Osmoredhelsereuniriam.—Sim,minhasenhora.Nãoemgruposdebandidosarruaceiros,mascomo

uma hoste. Vinte mil Irmãos das Trevas e, juntamente com eles, cem milgoblins e companhias de homens cuja natureza sombria procuraria lucro nadestruiçãoebarbaridadequeseseguissem.Umexércitopoderososobamãodeferro de um guerreiro nato, um general que até o seu povo segue semquestionar.

—Vocêmeaconselhaamantê-loaqui?—Possoapenasindicarasalternativas.Cabeavocêdecidir.A Rainha dos Elfos lançou a cabeça para trás, com os cachos vermelho-

douradosesvoaçandoeosolhosmarejados,contemplandoElvandar.Aprimeiraluzdodiasurgia.Umaluzrosadaatravessavaasárvores, lançandosombrasdeum azul escuro. Os chilreios matinais dos pássaros se ouviam nas clareiras.Virou-separaMacros,querendolheagradeceroconselho,epercebeuqueelejáhaviapartido.

s tsurani avançaramcomoMacrosprevira.Os cho-ja atacaramdooutrolado do rio, após duas levas de humanos terem conquistado os ancos.

Tomas enviara atiradores, leiras de arqueiros acompanhados por algunsguardas para protegê-los, que recuavam e lançavam echas contra o exércitoqueavançava,dandoaimpressãoderesistência.

Tomasseencontravaà frentedoexércitoreunidodeElvandaredosanõesdas Torres Cinzentas, somentemil e quinhentos em formação contra os seis

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mil invasores acompanhados pormagos. Em silêncio, aguardavam. Àmedidaque o inimigo se aproximava, os gritos dos guerreiros tsurani e daqueles quetombavam pelas echas dos elfos ressoavam pela oresta. Tomas levantou oolhar até onde a Rainha estava, em uma varanda com vista para o local dabatalhaiminente,comofeiticeiroaseulado.

De repente, viram elfos correndo até onde estavam e, entre as árvores,viramosprimeirosvislumbresdasarmadurascoloridasdostsurani.Quandoosatiradoressejuntaramàforçaprincipal,Tomasergueuaespada.

— Espere— gritou uma voz do alto, e o feiticeiro apontou para além daclareira, onde já corriam os primeiros elementos das forças tsurani.Confrontados como exército de elfos que os aguardava, a vanguarda parou eesperou por seus companheiros. Os o ciais deram ordens para que seformassem leiras, pois aquele era um tipo de batalha que entendiam: doisexércitosemconfrontoemumaplanície,sendoqueavantagemestavadoladodeles.

Os cho-ja também caram em leiras ordenadas, atentos às ordens doso ciais. Tomas estava fascinado, pois pouco sabia sobre as criaturas,considerando-asanimaise,aomesmotempo,aliadosinteligentesdostsurani.

Macrosvoltouagritar:— Espere! — E girou o cajado por cima da cabeça, desenhando amplos

círculosnoar.Umenormesilêncioseabateusobreaclareira.Derepente,umacorujapassouporcimadacabeçadeTomas,emdireçãoàs

leirastsurani.Voouemcírculos,porummomento,acimadosalienígenas,atéque mergulhou, atacando um soldado no rosto. O homem gritou de dor aosentirasgarrasfincadasnosolhos.

Um falcão passou veloz, duplicando o ataque da coruja. Em seguida, umaenorme gralha-preta precipitou-se do céu. Um bando de pardais surgiu dasárvoresatrásdos tsurani,dandobicadasnosrostosebraçosdesprotegidos.Detodos os lados da oresta, surgiram aves que atacavam os invasores. Poucodepois, o ar encheu-se com o som de asas batendo à medida que todas asespéciesdeavesda orestaatacavamostsurani.Erammilhares,desdeomenorbeija- oratéaáguiamaisimponente,todasatacavamahostedooutromundo.Ouviam-segritosdoshomens, enquantooutros saíamda formaçãoe corriam,natentativadeescapardosbicosegarrascruéisquetentavamlhesarrancarosolhos, puxar capas e rasgar a carne.Os cho-ja recuavam, pois, embora a pele

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encouraçadafosseimuneàsbicadaseaosarranhões,osgrandesolhosparecidoscompedraspreciosaseramalvosfáceisparaosatacantesemplumados.

Ouviu-seumgritovindodomeiodoselfosquandoostsuranisedispersaramdesordenadamente. Tomas deu a ordem e os arqueiros elfos acrescentaramechascompenasàconfusão,atingindosoldadostsuraniquetombavamantesde conseguirem enfrentar o inimigo.Os próprios arqueiros não tinham comoreagir,umavezqueestavamsendoatormentadosporumacentenadepequenosinimigos.

Os elfos assistiam enquanto os tsurani tentavam manter a posição, aomesmotempoqueasavesprosseguiamsuasangrentatarefanomeiodeles.Ostsuranilutavamomelhorqueconseguiam,abatendomuitospássarosemplenovoo;contudo,paracadaumquematavam,trêstomavamoseulugar.

Subitamente, um som sibilante e cortante se sobrepôs ao tumulto. Houveum segundo de silêncio quando tudo o que semovia na clareira no lado dostsurani cou suspenso. Os pássaros explodiram em direção ao céu,acompanhadosporumcrepitardeenergia,comose tivessemsidoempurradosporuma força invisível.Quandoasaves sedispersaram,Tomasviuosmantosnegros dos magos tsurani que se deslocavam através das forças militares,restaurandoaordem.Apesardas centenasde tsuranique jaziampor terra,osforasteiros, comose feitosparaaguerra,depressa se reordenaramem leiras,ignorandoosferidos.

O gigantesco bando de pássaros voltou a se reunir acima dos invasores emergulhou. Imediatamente, um incandescente escudo vermelho de energia seformouemvoltadostsurani.Quandoasavescolidiramcomele, caramdurase tombaram, com as asas ardendo, enchendo o ar de um pungente fedor dequeimado. As echas dos elfos que atingiam a barreira eram detidas,incendiando-seecaindoinofensivasnochão.

Tomasdeuordemparaqueparassemdeatirarevirou-separaMacros.Umavezmais,ofeiticeirogritou:

—Espere!Macros agitou o cajado e os pássaros se dispersaram, escutando a ordem

silenciosa. O cajado foi apontado em direção aos tsurani, enquanto Macrosmirava na barreira escarlate. Um relâmpago dourado de energia foi lançado,atravessando a clareira velozmente, rompendoo escudo vermelho e atingindonopeitoummagovestidodenegro.Omagocaiuaochãoeumberrodehorror

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e indignação em meio aos tsurani reunidos se fez ouvir. Os outros magosvoltaram sua atenção para a plataforma acima do exército él co e lançaramesferasazuisdefogo,mirandoMacros.Furioso,Tomasgritou:

—Aglaranna!Quando as pequenas estrelas azuis atingiram a plataforma, bloquearam

completamente a Rainha em uma imensa explosão de luz. Até que Tomasconseguiuvernovamente.

O feiticeiro estava de pé na plataforma, ileso, assim como a Senhora dosElfos.Tatharafastou-aeMacrosvoltouaapontarocajado.Maisummagodemanto negro tombou.Os quatro que restavam contemplaram a sobrevivênciade Macros e contra-atacaram com expressões contraditórias de reverência eraiva, facilmente visíveis do outro ladoda clareira. Intensi caramo ataque aofeiticeiro, onda após onda de luzes azuis e de fogo lançadas contra a barreiraprotetora deMacros. No chão, todos foram forçados a desviar o olhar, commedode caremcegos comas terríveis energiasqueestavamsendo liberadas.Apóso términodaqueleviolentoataquemágico,Tomasolhouparacimaeviuqueofeiticeirocontinuavaincólume.

Um mago deu um grito de pura agonia e retirou um objeto do manto.Ativou-o e logo desapareceu da clareira, sendo seguido segundos depois pelostrês companheiros.Macros olhouparaTomas, indicou a hoste tsurani comocajadoegritou:

—Agora!Tomas ergueu a espada e deu sinal para atacar. Uma saraivada de echas

passouporcimadesuacabeçaenquantoconduziaa investidaatéooutro ladoda clareira.Os tsurani estavam desmoralizados, seu ataque fora contido pelasaves e seus magos morreram ou foram afugentados. Mesmo assim, nãorecuaram e receberam a investida. Centenas haviam morrido pelos bicos egarras dos pássaros, outros mais com as echas, mas ainda tinham umavantagemdetrêsparaumsobreoselfoseanões.

A batalha começou e Tomas foi possuído pela neblina escarlate quebloqueavatodosospensamentos,salvomatar.Golpeandoàdireitaeàesquerda,abriu caminho através dos tsurani, anulando todas as tentativas de abatê-lo.Tsurani e cho-ja sucumbiam à sua lâmina, enquanto ele distribuía a morteindistintamenteaquemaparecesseemseucaminho.

A batalha avançou e recuou pela clareira, enquanto tombavam homens e

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cho-ja,elfoseanões.Osolsubiunocéueocombatenãodiminuiu.Ossonsdemorteenchiamoarelánoaltojásereuniamgaviõeseabutres.

Lentamente, os tsurani pressionavam os elfos e os anões a recuarem.Devagar,deslocavam-serumoaocoraçãodeElvandar.Fez-seumapausabreve,como se as duas partes tivessem chegado a um equilíbrio, e os adversários seafastaram, deixando um espaço aberto entre eles. Tomas ouviu a voz dofeiticeiroecoandocomnitidezacimadosruídosdabatalha.

— Para trás — gritou, e as forças de Elvandar recuaram, até o últimohomem.

Os tsurani sedetiveramporuminstante,atéque,pressentindoahesitaçãodos elfos e dos anões em prosseguir, investiram. De repente, ouviu-se umestrondo e a terra tremeu. Todos se imobilizaram e os tsurani caramaterrorizados.

Tomasviuqueasárvoresbalançavamcomcadavezmaisviolênciaàmedidaqueotremoraumentava.Subitamente,ouviu-seumruídocrescente,comoseoantepassadode todosos trovõesribombasseporcimadeles.Acompanhandoosomestrondoso,umenormepedaçodeterrairrompeu,comoseestivessesendolevantadopelamão invisível de umgigante.Os tsurani que ali estavam foramlançados para cima, caindo violentamente, e os que estavam próximos foramatiradosaochão.

Outro pedaço de terra se levantou e depois um terceiro.De ummomentopara o outro, só se viampedaços de terra gigantescos que subiampara depoiscaíremsobreostsurani.Oarfoiinvadidoporgritosdeterroreosinvasoresseviraramefugiram.Nãohouveordemderetirada,poisfugiamdeumlugarondea própria terra os atacava. Tomas assistiu à clareira se esvaziar, até restaremapenasosmortoseosmoribundos.

Em minutos, tudo cou quieto, enquanto a terra baixava. Os que a tudoassistiram estavam chocados demais para falar. Ouviam o ruído dos soldadostsurani em retirada pela oresta. Os gritos revelavam que outros horrorestinhamidoaoencontrodelesduranteafuga.

Tomas sentiu-se fraco e cansado e, ao olhar para baixo, viu que tinha osbraços cobertos de sangue. O tabardo, o escudo e a espada dourada estavamlimpos, como era hábito, mas, pela primeira vez, ele sentiu vida humanaborrifada em si. Em Elvandar, a loucura da batalha não permanecia e ele sesentiaagoniadoatéasprofundezasdesuaalma.

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O

Virou-seedissecalmamente:—Acabou.Oselfoseosanõesderamvivasfracos,semgrandeconvicção,poisninguém

sesentiavitorioso.Tinhamtestemunhadoaderrotadeumagrandiosahosteporforçasprimitivas,podereselementaresquedesafiavamqualquerdescrição.

TomaspassoudevagarporCalineDolganesubiuaescada.OPríncipedosElfos ordenou que alguns soldados seguissem os invasores que fugiam,tratassemdosaliadosferidoseconcedessemaostsuranimoribundosumrápidogolpedemisericórdia.

O rapaz se dirigiu ao pequeno quarto em que cava e afastou a cortina.Sentou-sepesadamenteemseucatre,atirandoaespadaeoescudoparaolado.Sentiuacabeçalatejandoefechouosolhos.Asmemóriasfluíram.

s céus eram rasgados por redemoinhos enfurecidos de energia quecolidiamdehorizonteahorizonte.Ashen-Shugarestavasentadonodorso

do poderoso Shuruga, contemplando o tecido do tempo e do espaço sendorompido.

Umclarimressoou.Anotadeavisoouvidapormeiodesuamagia.Chegarao momento pelo qual esperara. Instigando Shuruga a subir, Ashen-Shugarperscrutouoscéus,procurandooqueiriasurgirnoinsanocenário.Derepente,Shuruga cou rígido, demonstrando que avistara a presa. Aos poucos,reconheceu a silhueta de Draken-Korin sentado em seu dragão negro. Haviauma estranheza em seus olhos e, pela primeira vez em sua longa memória,Ashen-Shugarcomeçouacompreendero signi cadodopavor.Nãoconseguiade nir o que era, não conseguia descrever, mas viu o que era nos olhostorturadosdeDraken-Korin.

O Senhor dos Dragões ordenou a Shuruga que avançasse. O poderosodragão dourado rugiu em desa o, ao qual foi respondido pelo igualmentepoderoso dragão negro de Draken-Korin. Os dois colidiram no céu e seuscavaleirosfizeramusodassuasartesumcontraooutro.

AespadadouradadeAshen-Shugarformouumarcoacimadesuacabeçaegolpeou, rachando em dois o escudo negro com a cabeça do tigre sorridente.Pareciafácildemais,comopreviraquefosse.OSenhordosTigresjáderamuitodasuaessênciaparaaquiloqueestavaseformando.Peranteopoderdoúltimovalheru,eleerapoucomaisdoqueummeromortal.Uma,duas,trêsvezesmais

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Ashen-Shugar atacou e o seu derradeiro irmão caiu do dorso de seu dragãonegro.Despencouatébaternochão.Porsuavontade,Ashen-ShugarsaltoudodorsodeShurugaepairouatéchegaraocorpodesamparadodeDraken-Korin,deixandoShurugaterminaradisputacomodragãonegroquasemorto.

Ainda havia uma centelha de vida no corpo quebrado, vida que duraraséculos imemoriais. Um olhar de súplica surgiu nos olhos de Draken-KorinquandoAshen-Shugarseaproximou.

—Porquê?—murmurou.Levantandoaespadadouradaparaocéu,Ashen-Shugarrespondeu:—Estaobscenidadenuncadeveriatersidopermitida.Vocêscausaramo m

detudooqueconhecíamos.Draken-Korin ergueu o olhar para onde o outro apontava. Contemplou a

demonstração confusa e enraivecida de energias, arco-íris distorcidos eberrantes de luz recortados na abóbada celeste. Testemunhou o novo horrorem formação a partir da força de vida distorcida de seus irmãos e irmãs, algoterríveleirracionalconstituídoporódioeraiva.

— Eles eram tão fortes — disse o moribundo. — Nós nunca teríamosimaginado.—OseurostosecontorceudehorroreódioquandoAshen-Shugarergueualâminadourada.

—Maseutinhaessedireito!—gritou.Então baixou a espada, decepando com precisão a cabeça do corpo de

Draken-Korin. No mesmo instante, tanto a cabeça quanto o corpo foramenvolvidosporumaluzcintilanteeoarsibilouaoredordeAshen-Shugar.Emseguida,ovalherucaídodesapareceu semdeixar rastro,quandoa suaessênciaregressouàquelemonstroirracionalqueseenfureciacontraosnovosdeuses.

—Nãohádireito—a rmouAshen-Shugarcomamargura.—Sóexisteumpoder.

Foiassimqueaconteceu?—Sim,foiassimquemateioúltimodemeusirmãos.Eosoutros?—Elessãopartedaquilo—indicouoterrívelcéu.Juntos, nunca separados, contemplaram a insanidade no alto, enquanto

aconteciamasGuerrasdoCaos.Depoisdealgumtempo,Ashen-Shugardisse:—Venha,chegamosaofim.Vamosterminarcomisso.Começaram a caminhar até Shuruga, que aguardava.De repente, ouviu-se

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–V

umavoz...

ocêestámuitocalado.Tomasabriuosolhos.Aglarannaestavadejoelhosdiantedele,comuma

baciadeáguamisturadacomervasmedicinaiseumpanonamão.Despiu-lheotabardo e ajudou-o a retirar a cota demalha dourada. Exausto, cou sentadoenquantoelacomeçoualavar-lheosanguedorostoedosbraços,semproferirumapalavraenquantoacontemplava.

Depois de limpo, Aglaranna levou um pano seco ao rosto de Tomas,dizendo:

—Vocêparececansado,meusenhor.—Vejo tantas coisas,Aglaranna, coisas quenão se destinamaos olhosde

nenhumhomem.Naminhaalma,carregoopesodeséculoseestouexausto.—Nãohácomoaliviarisso?Ele olhou para ela e seus olhares se encontraram. O olhar autoritário foi

aliviadoporumpoucodedoçura,mas,mesmoassim,Aglarannaseviuobrigadaadesviarosolhos.

—Estáfazendopoucodemim,senhora?Elasacudiuacabeça.—Não,Tomas.Eu...vimconfortá-lo,casoprecise.Tomaspegounamãodelaepuxou-aparajuntodesi,odesejoardendoem

seu olhar. Quando se viu envolta pelo abraço do homem, sentindo a paixãocrescentenocorpodele,ouviu-odizer:

—Euprecisomuito,senhora.Fitando os olhos claros de Tomas, Aglaranna deixou cair as últimas

barreirasqueosseparavam.—Assimcomoeu,meusenhor.

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E

4

Treinamento

leselevantounaescuridão.Vestiu uma simples túnica branca, indicativa de sua posição, e saiu doquarto. Esperou do lado de fora do cômodo pequeno e simples, que

continhaocatre,umaúnicavelaeumaprateleiraparaospergaminhos:tudooque era considerado necessário para a sua educação. Viu outros em pé pelocorredor, todos vários anos mais novos do que ele, calados à porta dosrespectivos quartos.O primeiromestre vestido de negro surgiu no corredor eparouemfrentedeumdosoutros.Semumapalavra,acenouacabeçaeorapazo seguiu, para logodesapareceremnapenumbra.A aurora lançavauma suaveluzacinzentadaatravésdasjanelasaltaseestreitasdocorredor.Assimcomoosoutros, apagou a tocha na parede oposta à sua porta, aos primeiros sinais donascer do dia. Surgiu outro homemde negro e outro jovempartiu atrás dele.Logo depois, seguiu-se o terceiro. Depois, o quarto. Decorrido algum tempo,viu-sesozinho.Ocorredorestavaemsilêncio.

Da escuridão, surgiu uma silhueta, a roupa ajudando-o ocultá-lo até osúltimosmetros. Parouna frente do jovemde branco e acenou com a cabeça,indicandoocorredor.Orapazoseguiuporumasériedecorredoresiluminadosportochas,atéocentrodoenormeedifícioqueeraacasadojovemdesdequepodia se recordar.Em seguida, avançaramporuma sériede túneis baixosquefediam pelo tempo e pela umidade, como se estivessem abaixo do lago querodeavaoedifícioportodososlados.

Ohomemdepretoparoudiantedeumaportademadeira,afastouatrancaeabriu-a. O jovem entrou atrás dele, detendo-se em frente a um conjunto detinas demadeira. Cada uma tinhametade do comprimento de um homem emetade dessa medida de largura. Uma delas estava no chão, enquanto as

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restantes estavam dispostas por cima, suspensas por suportes de madeira emdegraus,umaacimadaoutra,atéamaisalta,quetinhaaalturadeumhomem.Todasastinastinhamumburaconaextremidadequedavaparaatinadebaixo.Nadochão,ouvia-seochapinhardaágua,reagindoàsvibraçõesdeseuspassosnochãodepedra.

Ohomemindicouumbalde,virou-seesaiu,deixandoojovemsozinho.Orapazpegouobaldeecomeçousua tarefa.Todasasordensdirigidasaos

quesevestiamdebrancoeramdadassempalavrase,comodepressaaprenderaquando tomara consciência pela primeira vez, os que vestiam o branco nãotinhampermissãoparafalar.Sabiaqueconseguiafalar,poisentendiaoconceitoe tentara formaralgumaspalavras emvozbaixaquandoestavadeitadono seutapete, no escuro. Tal como com tantas outras coisas, entendia o fato, semsabercomo.Elesabiaqueexistiaantesdeseuprimeirodespertarnacela,masnão cou nada alarmado pela falta de memória. De certa forma, pareciaapropriado.

Começouotrabalho.Comotantasoutrastarefasquelhedavamparafazer,estapareciaimpossível.Pegouobaldeeencheuatinadotopoapartirdaáguaque estava abaixo. Tal como acontecera nos dias anteriores, a água vazou dotopo,passandosucessivamenteporcadatina,atéqueoconteúdodobaldeveiopararnovamentena tinadebaixo.Dedicou-secomdeterminaçãoao trabalho,esvaziandoamenteenquantoocorpoempreendiaatarefamecânica.

Damesmaformaqueaconteceratantasoutrasvezesquandoodeixavamempaz,asuamentevagueavadeimagememimagem,traçosbrilhantesdeformasecoresqueseesquivavamquandotentavafechardedosmentaisaoredordeles.Primeiro, surgiu o vislumbre breve de uma praia, com as ondas batendo nasrochasnegrasedesgastadas.Luta.Umasubstânciabrancae fria,deaparênciaestranha,espalhadapelochão—umapalavra:neve,queescapou tãodepressacomo chegou. Um acampamento lamacento. Uma cozinha enorme comrapazes correndopara realizar tarefasdiversas.Umquarto emuma torre alta.Tudo passava com uma rapidez ofuscante, deixando somente uma imagemresidualaopassar.

Diariamente, uma voz soava em sua cabeça e sua voz mental dava umaresposta, enquanto trabalhava em sua tarefa interminável. A voz fazia umaperguntasimples,àqualavozdesuamenterespondia.Casoarespostaestivesseincorreta, a pergunta era repetida. Se fossemdadas várias respostas erradas, a

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N

voz cessava as perguntas. Por vezes, voltavamais tarde nomesmodia; outrasvezes,nãovoltava.

Otrabalhadorvestidodebrancosentiaapressãoconhecidacontraotecidodosseuspensamentos.

—Oqueéalei?—perguntouavoz.—Aleiéaestruturaquerodeiaasnossasvidaseque lhesdásigni cado —

respondeu.—Qualaprincipalencarnaçãodalei?—OImpérioéaprincipalencarnaçãodalei.—Oquevocêé?—surgiuaperguntaseguinte.—SouservodoImpério.O contatomental vacilou por ummomento, retornando como se o outro

estivessepensandocuidadosamentenapróximapergunta.—Dequeformalheépermitidoservi-lo?Aperguntajáforafeitaváriasvezesemoutrasocasiõesearespostasempre

fora recebida com um silêncio interno e vazio, indicando que responderaincorretamente. Desta vez, re etiu cuidadosamente, eliminando todas asrespostas que dera antes, bem como aquelas que eram combinações deextrapolaçõesdasrespostasincorretasjádadas.Porfim,respondeu:

—Daformaqueeuacharadequada.De fora, veio um uxo de sensações, uma sensação de aprovação. Sem

demora,seguiu-seoutrapergunta:—Ondeficaolugarquelhefoiatribuído?Pensou na pergunta, ciente de que a resposta óbvia seria, certamente, a

incorreta;contudo,eraumarespostaqueprecisavatestar.—Omeulugaréaqui—respondeu.Ocontatomentalfoiquebrado,talcomosuspeitara.Sabiaqueestavasendo

treinado,aindaqueomotivodesse treino lhe fosseoculto.Podiaagorare etirna última pergunta à luz das respostas anteriores e, quem sabe, encontrar arespostacorreta.

aquelanoite,sonhou.Umdesconhecidodevestesmarronsecintodecordatrançadanacintura

caminhavapelaestrada.Ohomemsevirouedisse:—Depressa.Nãotemosmuitotempoevocênãopodeficarparatrás.

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M

Tentou andar mais depressa, mas os pés pareciam chumbo e os braçosestavam presos de cada lado do corpo. O homem interrompeu seu andarapressadoparadizer:

—Entãoestábem.Umacoisadecadavez.Tentou falar, mas percebeu que a sua boca se recusava a se mexer. O

homemdemarromafagouabarbademodopensativo,dizendoporfim:—Pensenisto:vocêéoarquitetodesuaprópriaprisão.Olhouparabaixoeviuqueosseuspésdescalçosestavamemumaestradade

terrabatida.Levantouosolhoseohomemdemarrom já se afastavaapassoslargos.Tentousegui-loe,umavezmais,nãoconseguiusemexer.

Acordousuandofrio.

aisumavezfoifeitaaperguntasobrequaleraoseulugarenovamentearespostaquedeu,Ondeprecisaremdemim,nãofoisatisfatória.Esforçou-

seemoutra tarefa inútil, espetandopregosemumacamadaespessade lã,queosdeixavacairnochão,deondeosapanhavaevoltavaatentarpregá-los.

Enquantorepensavaaúltimaperguntaque lhe fora feita, foi interrompido.Aportaatrásdeleseabriueoguiafezsinalparaqueoseguisse.Deslocaram-sepor longos corredores, subindo até o andar onde comeriam a pobre refeiçãomatinal.

Ao entrarem no salão, o guia ocupou um lugar junto à porta, enquantooutrosemmantosnegrosacompanhavamdomesmomodo,atéaquelelocal,osquetrajavambranco.Naqueledia,cabiaaoguiadojovem carempévigiandoosrapazesdebranco,queeramobrigadosacomeremsilêncio.Estafunçãoeracumpridaacadadiaporumhomemdemantonegrodiferente.

Ojovemcomeueponderousobreaúltimaperguntadaquelamanhã.Pesoucada resposta possível, procurando possíveis falhas, descartando-as quando asdescobria.Bruscamente,umarespostasurgiuinesperadaemsuacabeça.Comoumsalto intuitivo, seu subconsciente lhedera a soluçãopara aquestão. Sou oarquiteto da minha própria prisão. Em muitas ocasiões no passado, issoaconteceraquandoproblemasespecialmentecomplicadoshaviaminterrompidoo seu progresso, o que justi cava o seu rápido progresso nas lições. Pesou aspossíveis falhas da resposta e, quando teve certeza de que estava correta,levantou-se.Outrosolhosomiravamfurtivamente,poistalcomportamentoeraumaviolaçãodasregras.

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Colocou-se diante de seu guia, que contemplou a aproximação do jovemcom uma expressão controlada; as sobrancelhas levemente erguidas, o únicosinaldecuriosidade.

Semrodeios,ojovemdebrancodisse:—Estejánãoémaisomeulugar.O homemde preto nãomostrou qualquer emoção,mas pousou amão no

ombrodojovemefezumligeiroacenocomacabeça.Levouamãoaointeriordomantoeretirouumpequenosino,quetocouumavez.Poucodepois,surgiuoutro indivíduo de manto negro. Sem proferir uma única palavra, o recém-chegadotomouolugarjuntoàporta,enquantooguiafaziasinalaojovemparaqueoseguisse.

Caminharamem silêncio, como tantas vezeshaviam feito, até chegaremaumasala.Ohomemdenegrosevirouparaojovemeinstruiu-o:

—Abraaporta.O jovemestendeuamãoparaaporta,mas, comumsúbitoentendimento,

voltouatrás.Franzindoatestaenquantoseconcentrava,moveuaportacomopoder de sua mente. Devagar, ela se abriu para dentro. O homem de negrosorriu.

—Muitobem—disse,comumavozcalmaeagradável.Entraram em um quarto que tinha muitos mantos brancos, cinzentos e

pretospenduradosemcabides.—Troqueparaummantocinzento—indicouohomemdemantonegro.Ojovemassimofezrapidamentee coudefrenteparaooutrohomem,que

oestudou.— Você não está mais preso ao silêncio. Qualquer dúvida que tiver será

respondida,namedidadopossível,emboraaindarestemquestõesquevocêteráde aguardar até usar o manto negro. Então você entenderá completamente.Venha.

Ojovemvestidodecinzaseguiuoguiaparaoutrocômodo,ondehaviaumamesarodeadaporalmofadas,naqualsepodiaverumjarrodechochaquente,umabebida forteeagridoce.Ohomemserviuduasxícaraseofereceuumaaojovem,indicandoquesesentasse.Depoisdisso,ojovemperguntou:

—Quemsoueu?Ooutroencolheuosombros.—Você terá de decidir isso, pois só você poderá descobrir seu verdadeiro

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nome.Éumnomequenuncapoderáserditoaosoutros,paraquenãotenhampodersobrevocê.Mas,deagoraemdiante,vocêatenderáporMilamber.

Orecém-nomeadopensouporuminstanteparadizeremseguida:—Servirá.Comovocêsechama?—Chamo-meShimone.—Quemévocê?—Oseuguia,oseuprofessor.Vocêteráoutrosagora,masfuiresponsável

pelaprimeirapartedeseutreino,apartemaisdemorada.—Háquantotempoestouaqui?—Háquasequatroanos.Milamber cou admirado com a resposta, pois a sua memória era curta,

alcançandosomentealgunsmeses,namelhordashipóteses.—Quandodevolverãoasminhasmemórias?Shimonesorriu,satisfeitoporMilambernãoterperguntadosevoltariam,e

deixouissoclaro:—A suamente relembrará a sua vida passada conforme você avançar no

equilíbriodeseutreino,devagar,noinício,e,depois,commaisrapidez.Háumarazão para que isso aconteça. Você tem de suportar a sedução de laçosanteriores: da família e da pátria, dos amigos e de casa. No seu caso, isso éfundamental.

—Porquê?—Quandoseupassadoretornar,vocêentenderá—foitudooqueShimone

disse, com um sorriso no rosto. As feições de falcão e os olhos escurosexpressavamqueoassuntoseencerrara.

Milamber lembrou-se de várias outras perguntas, descartando-asrapidamente como sendo de menor importância para o momento. Por m,perguntou:

—Oqueteriaacontecidoseeutivesseusadoamãoparaabriraporta?—Vocêteriamorrido—afirmouShimonecategoricamente,sememoção.Milambernão cousurpresonemchocadocomaresposta,simplesmentea

aceitou.—Comquepropósito?Shimone cou um pouco admirado com a pergunta e demonstrou sua

surpresa:—Não podemos controlar uns aos outros, apenas garantir que cada novo

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N

mago consiga cumprir a responsabilidade decorrente de suas ações. Vocêconsiderouqueoseulugarjánãoerajuntodosqueusambranco,osnoviços.Seaquelenãoerao seu lugar,você teriadedemonstrar suacapacidadepara lidarcomasresponsabilidadesdessamudança.Sãomuitososinteligentes,porémosinsensatosmorremnessafase.

Milamberponderouereconheceuajustiçadoteste.—Quantotempoduraráomeutreino?Shimonefezumgestoevasivo.—O tempo que for preciso. Porém você tem progredido depressa, então

achoquenãovaidemorarmuitono seucaso.Você temalgunsdons inatos e,você entenderáoquevoudizerquandoa suamemóriavoltar, certa vantagememrelaçãoaosoutrosestudantesmaisjovensquecomeçaramcomvocê.

Milamberexaminouoconteúdodesuaxícara.No líquidoaguadoeescuro,pareceuvislumbrarumaúnicapalavra,comosetivessevistopelocantodoolho,que desapareceu quando tentou focá-la. Não conseguira retê-la,mas fora umnomecurto,umnomesimples.

aquelanoite,voltouasonhar.O homem de marrom caminhava pela estrada e, desta vez, Milamber

conseguiuacompanhá-lo.—Está vendo, são poucos os limites objetivos. Aquilo que eles ensinam é

útil,masnunca aceite a a rmaçãodeque, sóporqueuma solução resolveumproblema,essaéaúnicasolução.

Ohomemdemarromparou.—Olheparaisso—disse,indicandouma ornabeiradaestrada.Milamber

inclinou-separaveroqueohomemindicava.Umapequenaaranhateciaumateia entre duas folhas. — Aquela criatura trabalha alheia à nossa passagem.Qualquer um de nós poderia acabar com sua existência por capricho. Entãopense nisto: se aquela criatura pudesse, de algum modo, perceber a nossaexistência, a ameaça que constituímos a sua vida, será que a aranha nosidolatraria?

—Nãosei—respondeuMilamber.—Nãoseicomopensaumaaranha.Ohomemdemarromapoiou-senocajado.— Levando em conta a disparidade dos pensamentos humanos, a aranha

poderiareagircommedo,desafio,indiferença,fatalismoouincredulidade.Tudo

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épossível.—Estendeuocajadoeprendeuumpedaçodateianaextremidadedemadeira. Erguendo o minúsculo aracnídeo, levou-o para o lado oposto daestrada.

—Vocêachaqueacriaturasabequeéumaflordiferente?—Nãoseidizer.Ohomemdemarromsorriu.— Essa talvez seja a mais sábia de todas as respostas. — Retomando a

caminhada, continuou: — Em breve você irá ver muitas coisas, algumas dasquais farão muito pouco sentido. Quando isso acontecer, lembre-se de umacoisa.

—Doquê?—perguntouMilamber.— Nem tudo é o que parece. Lembre-se da aranha, que, neste exato

momento, poderá estar dirigindo preces de agradecimento a mim pelaabundância repentina. — Apontando com o cajado para a planta lá atrás,prosseguiu:—Hámuitomais insetosnaqueladoquenaoutra.—Coçando abarba,acrescentou:—Pergunto:seráquea ortambémestarádirigindoprecesdeagradecimento?

assou semanasna companhiadeShimoneedealgunsoutros.Começouasabermais de sua vida, ainda que fossem apenas fragmentos daquilo que

faltava.Foraescravoetinhamdescobertoquepossuíaopoder.Recordava-sedeumamulheresentiaumdébilapeloaopensaremsuavagaimagem.

Erarápidoparaaprender.Cadaliçãoeracumpridaemumúnicodiaou,nomáximo,emdois.Eledissecavadepressaosproblemasquelheerampropostose, quando chegava a hora de discuti-los comos professores, as perguntas quefaziaerampertinentes,pensadaseadequadas.

Umdia,aoselevantaresairdesuanovamasaindasimplescela,deudecaracomShimone,queoaguardava.

—Apartirdestemomento,vocênãopoderáfalaratéconcluira tarefaquelhevaiseratribuída—disseomagodemantonegro.

Milamber assentiu com a cabeça indicando que entendera e seguiu o guiapelo corredor.Omagomais velho o conduziu através de uma série de túneiscompridosatéumlugarnoprédioondenuncaestivera.Subiramumaescadariaenorme, passando pormuitos andares acima do local onde tinham iniciado asubida.Subiramcadavezmais,atéShimoneabrirumaporta.Milamberpassou

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primeiro e se achou em um telhado plano e a céu aberto, no topo de umagrande torre. No centro do telhado, erguia-se uma única espiral de pedra.Lançava-se emdireção ao céu, ummarcona rocha trabalhada.Ao seu redor,enroscava-seumaescadariaestreita,esculpidanalateral.OsolhosdeMilambera seguiramatéonde aponta seperdianasnuvens.Ficou fascinadopela visão,poispareciaviolarvárioscânonesdafísicaqueestudara.Aindaassim,erguia-seàsuafrente.Oguiaindicouquedeviasubirosdegraus.Começou.Aoconcluiraprimeira volta, reparou que Shimone desaparecera pela porta de madeira.Aliviadopor suaausência,Milamberdesviouoolhardo telhado,deleitando-secomavistaàsuavolta.

Estavanotopodatorremaisaltadeumaimensacidadedetorres.Paraondequerqueolhasse,centenasdededosdepedraapontavamparacima,estruturasfortes com janelas voltadas para fora. Algumas estavam a céu aberto, comoaquela onde se encontrava; outras tinham telhados de pedra ou de luzesreluzentes.Contudo,entre todaselas,aquelaeraaúnicacomuma naespiralem cima.Abaixo das centenas de torres, curvavam-se pelo céu pontes que asligavam,emaisabaixoseviaoúnicoeinconcebíveledifícioquesuportavatudoo que o seu olhar abrangia. Era uma construçãomonstruosa. Estendia-se porbaixodopontoondeseencontrava,espalhando-seporquilômetrosemtodasasdireções. Ele sabia que o lugar era enormepelas viagens que realizava em seuinterior,masesseconhecimentonãoamenizouoespantoperanteavista.

Aindamais abaixo, no limite mais extremo de sua visão, conseguia ver overde suave da relva, uma beirada estreita que rodeava o volume escuro doedifício.Portodososlados,viuágua,olagoqueviraderelanceumaúnicavez.Adistância,conseguiudistinguirasugestãoembaçadademontanhas;contudo,a menos que se esforçasse para vê-las, era como se o mundo inteiro seencontrasseabaixo.

Subindo com di culdade, contornou a espiral enquanto avançava. Cadavoltatraziaumnovodetalhedapaisagem.Umúnicopássarovoavaemcírculosacimadetodooresto,alheioaosassuntosdoshomens,deasasescarlateabertaspara apanharem o vento enquanto observava com avidez o lago lá embaixo.Reparando em um movimento denunciador na água, dobrou as asas emergulhou, tocandoasuperfícieporumbrevíssimoinstanteantesdevoltaràsalturasumavezmais,comumprêmiopendendodasgarras.Emitindoumgritodevitória,deumaisumavoltaedirigiu-separaoeste.

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Uma volta. Uma troca de ventos. Cada vento trazia indícios de terrasdistanteseestranhas.Dosul,umarajadacomumtraçodeselvasquentesondeescravostrabalhavamparatransformarpântanosfataisealagadosemterrasdecultivo.Doleste,umabrisatraziaocantovitoriosodeumadúziadeguerreirosda Confederação uril, depois de derrotarem um número equivalente desoldadosdo Império emumcon itode fronteira.Emcontraponto, chegavaoeco fraco de um soldado tsurani quemorria, gritando pela família.Do norte,chegava o cheiro de gelo e o som dos cascos demilhares de thūn avançandopela tundragelada, rumoao sul embuscade terrasmaisquentes.Dooeste, oriso da jovem esposa de um poderoso nobre incitando um soldado da guardapessoal da casa, dividido entre omedo e a excitação, a trair omarido que seencontrava fora negociando com ummercador de Tusan, ao sul. Do leste, oaroma das especiarias enquanto os mercadores negociavam na praça domercadonadistanteYankora.Novamenteaosul,eocheirodemaresiadoMarde Sangue Norte, e os campos de gelo varridos pelo vento que nuncaconheceram os passos de pés humanos, mas nos quais caminhavam antigosseres, sábios emáreasdesconhecidaspeloshomens, procurandoum sinalnoscéus—um sinal quenão chegava.Cadabrisa carregavaumanota e um tom,uma cor e uma tonalidade, um sabor e uma fragrância. A trama do mundopassavaaliemumsoproeeleinspiroufundo,saboreando-a.

Uma volta. Dos degraus abaixo vinha uma pulsação enquanto o mundopalpitava comvida própria. Para cima, pela ilha, pelo edifício, pela torre, pelaespiralepeloseuprópriocorpo,chegouobatimentourgente,aindaqueeterno,do coraçãodoplaneta.Olhouparabaixo e viu cavernasprofundas, sendoquenas mais super ciais trabalhavam escravos que recolhiam os poucos metaisraros encontrados, bem como carvão para aquecimento e pedra paraconstrução. Abaixo destas encontravam-se outras cavernas, sendo algumasdelasnaturaiseoutras,asruínasdeumacidadeperdida,cobertapelopóquesetornava terra com o passar dos anos. Outrora habitaram ali criaturasinimagináveis.Suavisãoolevouaindamaisfundo,aumaregiãodecaloreluz,ondecompetiamforçasprimitivas.Rochaliquefeita,in amadaeincandescente,empurrava a sua prima sólida, procurando uma passagem para cima,negligentementeconduzidapelanatureza.Aindamaisfundo,atéummundodeforçapura,ondelinhasdeenergiapercorriamocoraçãodomundo.

Outravoltaechegouaumapequenaplataformanotopodaespiral.Nãoera

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maior do que a sua altura, um poleiro extremamente precário.Aproximou-sedo centro, controlando a vertigemque tentava jogá-lo aos gritos pela beirada.Empregou cadaparte de suahabilidade e seu treinopara ali permanecer, poisentendia,semquelhetivessesidodito,quefalharseriamorrer.

Afastou o medo da mente e olhou ao redor para a vista que o rodeava,aterrorizadopela vastidãodo vazio.Nunca antes se sentira tão absolutamenteisolado, tão absolutamente sozinho. Ali, encontrava-se sem nada que oseparassedodestinoquelhecabia.

Abaixo dele, estendia-se o mundo, e acima dele, um céu vazio. O ventotraziaumvestígiodeumidadeeojovemviunuvensescurasquesedeslocavamemgrandevelocidade,vindasdosul.Atorre,ouapontanotopodela,balançouligeiramente e o jovem mudou o peso do corpo para compensar,automaticamente.

Relâmpagosdardejavamenquantonuvensdetempestadeavançavamemsuadireção e trovões ribombavam ao redor de sua cabeça. O som era alto obastanteparaexpulsá-lodapequenaplataformaeeleseviuforçadoavasculharainda mais nas profundezas de sua fonte interior de poder, até aquele lugarsilencioso conhecido somente comowal, eaíencontroua forçapararesistiràinvestidadatempestade.

O vento fustigava seu corpo, arremessando-o para a beira da plataforma.Cambaleou e recuperou o equilíbrio, o abismo sombrio abaixo chamando porele,convidandoàqueda.Comumasúbitaforçadevontade,afastouavertigemmaisumavezefixouamentenatarefaqueoesperava.

Emsuamente,umavozgritou:—Chegouomomentodoteste.Nestatorrevocêprecisapermanecere,casoa

suaforçadevontadefalhe,delairácair.Deu-seumapausamomentâneaeavozvoltouagritar:—Contemple!Testemunheecompreendacomotudoera.Astrevasseprecipitaramparaoscéuseelefoidevorado.

urantealgumtempo,ele utua,inde níveleperdido.Umpequenopontodeconsciênciavacilante,umnadadordesconhecidoporummarnegroe

vazio.Derepente,umaúnicanota invadeovazio.Ressoa,umsomsilencioso,umintrusodossentidos,desprovidodesensações.

— Sem sentidos, como pode haver percepção? — suamente pergunta. Sua

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mente!—Euexisto!—grita,eummilhãodefilosofiasberramdeespanto.—Seeuexisto,entãooquenãofazpartedemim?—sepergunta.

—Vocêéaquiloqueéenãoaquiloquenãoé—respondeumeco.—Umarespostainsatisfatória—dizele,comarsonhador.—Aindabem—respondeoeco.—Quenotaéaquela?—pergunta.—Éotoquedosonodeumidosonomomentoqueantecedeamorte.—Quenotaéaquela?—Éacordoinverno.—Quenotaéaquela?—Éosomdaesperança.—Quenotaéaquela?—Éosabordoamor.—Quenotaéaquela?—Éumalarmeparadespertá-lo.

lutua. À sua volta, nadam bilhões e bilhões de estrelas. Grandesaglomerações passam por ele, resplandecentes de energia. Giram em uma

profusãodecores,vermelhaseazuisgigantes, laranjaeamarelasmenoreseasín mas vermelhas e brancas.As negras, incolores e enraivecidas, absorvem atempestadedeluzqueasrodeia,enquantooutrasvibram,lançandoenergiasemumespectrodesconhecido,ealgumasdistorcemotecidodotempoedoespaço,embaçando suavisão enquanto tentamcompreender suapassagem.Deumaaoutra,estende-seumalinhadeforça,unindo-asaumateiadepoder.Aolongodos osdessa teia, a energia uipara trás epara a frente, latejandocomumavidaquenão é vida.As estrelas sabemquando ele passa.Estão cientes de suapresença, embora não se manifestem. É insigni cante demais para sepreocuparemcomele.Aoseuredor,estende-setodooUniverso.

Emváriospontosda teia, trabalhamou repousamcriaturasdepoder, cadauma diferente das outras, ainda que, de certa forma, todas se assemelhem.Algumas,eleconsegueperceberquesãodeuses,poisosreconhece,eoutrassãoinferiores ou superiores. Cada uma delas desempenha um papel. Algumas ocontemplam, pois a sua passagem não passa despercebida; outras ainda estãofora do alcance, imponentes demais para o abrangerem e, por serem dessaforma, são inferiores. Outras o observam atentamente, comparando poder e

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capacidades em relação ao que possuem. Também ele as examina. Ninguémfala.

Avança velozmente entre as estrelas e os seres de poder, até divisar umaestrela, uma entremilhares,mas é aquela que o atrai. Da estrela, saem vintelinhasdeenergiaejuntodecadaumaencontra-seumaentidadedepoder.Semsaberporquê, entendeque sãoos antigosdeusesdeKelewan.Cadaumdelesatuanalinhadepodermaispróxima, in uenciandoaestruturadeespaçoedetempodasproximidades.Algunscompetementresi,outrostrabalhamalheiosàbatalhaeoutrosaindaparecemnãofazernada.

Aproxima-se.Umúnicoplaneta gira em redorda estrela, umglobo azul everdeenvoltoemnuvensbrancas.Kelewan.

Mergulhapelaslinhasdeenergiaatéchegaràsuperfície.Ali,contemplaummundo em que o homemnão pisou. Enormes bestas hexápodes percorrem aterraedelasseescondeumajovemraçadeseresperspicazes.

Oscho-ja,algunsbandosdecriaturasemdebandada,poucomaioresdoqueosenormesinsetosdeondeevoluíram,corrematravésdasárvoresdasenormesorestas,temendoospredadoresmaioresqueosperseguem,enquanto,porsuavez, perseguem presas menores. Começaram a raciocinar e as rainhasconcebem cada criatura com um propósito especí co, de modo que fortessoldados armados protejam os trabalhadores. Mais comida é trazida para acolôniaearaçacomeçaaprosperar.

Nasplanícies, corremos jovensmachos thūn, lutandoentre si compausepedras,punhosepresas.Lutamsabendoapenasqueum ímpeto inde nívelosmove, exigindoque este ou aquelemembrodamanada expulse os restantes eprocrie a próxima geração. Passarão séculos até se tornarem seres racionais,capazes de se unirem contra as criaturas bípedes que ainda não surgiram nomundo.

Juntoaomar,queaindanãorecebeuonomeemhonradosmilharesquealimorreram,ossunnamontoam-senapraia,acabadosdesairdaágua,mostrandodesconforto em terra, embora já não consigam existir nas profundezas.Temendo a todos, conspiram em suas grutas, procurando segurança edesenvolvendo uma atitude diante de forasteiros que determinará o genocídiodessaraçamuitasgeraçõesmaistarde.

Acima dasmontanhas, planam os thrillillil, cuja cultura primitiva está emformação, poucomais do que uma associação aleatória de casais destinados à

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procriação.Asextensas,aindaquedelicadasasaslançamsombrasqueocultamosnummongnum,querastejamaolongodabeiradasrochas,camu adoscomopelomalhado, semelhanteàspedrasondeseescondem,procurandoovosdethrillillil,dando inícioaumaguerraqueduraráummilênioeque resultaránaaniquilaçãodasduasraças.

Este é um mundo cruel onde a vida abunda, ainda que seja uma vida decon itos, desprovida de compaixão pelos fracos. Das raças que observa,somente duas persistirão, os thūn e os cho-ja. Percebe a chegada das trevascomoumatempestaderepentina,quedepressaoenvolve.

luzsurge,comoabonançadepoisdatempestade.Ele está no topo de um penhasco com vista para uma enorme planície

coberta de grama, separada do mar por uma pequena praia. O ar começa atremeluzireomaralémdaplanície cadistorcido.Tal comoaagitaçãodoarprovocadapelocalordodia,acenaondula.Corescintilantessurgemnoar.Emseguida,comoporaçãodeduasmãosgigantes,oprópriotecidodoespaçoedotempoé rasgado,e surgeuma fendaquenãoparadeaumentar.Elevêatravésdela.Dooutro ladodessa rachaduranoar, é reveladaumavisãodecaos,umademonstração enlouquecida de poder, como se todas as linhas nesse universotivessem sido despedaçadas. Raios energéticos, que seriam capazes de destruirsóis,explodememdemonstraçõesdecoralémdacapacidadededescriçãoporolhos mortais, deixando-os ofuscados com luzes menos intensas. Dasprofundezas desse portal gigante, expande-se uma vasta ponte de luz douradaquedesce, até tocaragramadaplanície. Sobreaponte,deslocam-semilharesde silhuetas, fugindo da loucura além do portal em direção à serenidade daplanície.

Precipitam-separabaixo,alguns levandotodososseuspertencesàscostas,outros trazendo animais que puxam carroças e trenós carregados de objetosvaliosos.Todosavançamcompressa,fugindodeumhorrorabominável.

Ele contempla as silhuetas e, ainda que muitas coisas sejam estranhas,tambémreconhecemuitosaspectos.Muitosusamtúnicascurtasesimpleseelepercebe que está contemplando a origem dos tsurani. Seus rostos são maissimples, mostrando a quase inexistência da mistura com outros povos queacontecerá nos anos seguintes. A maioria tem a pele clara e os cabeloscastanhosoulouros.Aseuspés,corremcãesladrando,cãesdecaçalustrosose

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ágeis.Aoladodeles,caminhamguerreirosorgulhosos,deolhospuxadosepeleem

tons de bronze. Esses são combatentes, mas não soldados organizados, poisvestem trajes de cortes e cores variados. Todos descemda ponte, alguns comferimentos, outros escondendo o terror atrás de expressões implacáveis. Nosombros, carregam espadas compridas de aço re nado e de fabricaçãocaprichada.Oaltodassuascabeçaséraspadoeocabeloaoredor,amarradoemumnó.Sustentamaaparênciaorgulhosadehomensquenãosabemseofatodeterem sobrevivido àbatalha será favorável.Misturados entre eles, vêmoutros,todosdiferentes.

Uma raça de pessoas baixas carrega redes que os caracterizam comopescadores.De quemar vêm, só eles poderão saber. Têm cabelo escuro, pelepálida e olhos cinza-esverdeados.Homens,mulheres e crianças, todos vestemcalçassimplesdepele,nusdacinturaparacima.

Depoisdeles,segueumgrupodepessoasaltas,majestosasedepeleescura.Assuasvestessãoricamentetrabalhadas,comcoressuavesedelicadas.Muitastêm pedras preciosas como adorno na testa e pulseiras de ouro nos braços.Todaschoramporumapátriaquenãovoltarãoaver.

Seguem-se homens montados em criaturas inacreditáveis, parecidas comserpentes voadoras com cabeças de pássaro cobertas de penas. Os rostos doscavaleirosestãocobertoscommáscarasdeanimaiseaves,pintadascomcoresberrantes e enfeitadas com plumas. Somente tinta lhes cobre o corpo, pois oseumundodeorigemeraumlugarquente.Ostentamanudezcomoummanto,poisemsuasformasexistebeleza,comosecadaumtivessesidocriadoporumescultor;portamarmasdevidronegro.Asmulhereseascriançasseguem,semmáscara,atrásdoshomens,revelandoexpressõesquesetornaramseveraspelomundocrueldeondefogem.OsCavaleirosdeSerpentesviramascriaturasparalesteelevantamvoo.Asenormesserpentesaladasmorrerãonasgeladasterrasaltasdoleste,maspermanecerãoeternamentenaslendasdosorgulhososthuril.

Chegamoutrosmilhares,descendoarampadouradaepisandoemKelewan.Quando alcançam a planície, alguns partem, viajando para outras partes doplaneta, enquanto muitos cam e assistem a muitos outros milhares quechegampelaponte.Otempopassa,odiadálugarànoite,eodiavoltaasurgir,enquantoamultidãochega,vindadaloucatempestadedecaos.

Comeles,chegamvinteseresdepoder,tambémfugindodadestruiçãototal

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deumuniverso.Amultidãonaplanícienãoospodever,maseleconsegue.Sabeque se tornarãoosvintedeusesdeKelewan,asDezEntidadesSuperioreseasDezEntidadesInferiores.Sobempeloar,comointuitodearrancaremaslinhasdepoderdasentidadesvelhasefracasqueestãoaoredordestemundo.Eestasnãooferecemresistênciaquandoosnovosdeuses tomamos seus lugares,poisasentidadesmaisantigassabemqueumanovaordemcomeçanomundo.

Apósdiasdeobservação,ojovemreparaqueo uxodehumanidadecomeçaadiminuir.Centenasdehomens emulheres puxamenormesnavios feitos deuma espécie de metal que brilha ao sol, montados sobre rodas de umasubstância preta. Chegam à planície e veem o oceano além da praia estreita.Dão um grito e levam os barcos até à praia, lançando-os à água. Cinquentabarcosiçamvelasepartemoceanoafora,rumoaosul,atéaterraquesetornaráTsubar,anaçãoperdida.

Oúltimogrupoécompostopormilharesdehomensvestidoscomroupasdevários formatos e cores. Ele sabe que são os sacerdotes e magos de muitasnações.Ficamjuntos,contendoaterrívelfúriadooutrolado.Enquantoojovemobserva, muitos tombam, suas vidas extintas como velas gastas. A um sinalcombinado previamente, muitos deles, embora sejam menos do que umcentésimodosqueseencontramemcimadapontedourada,viram-seedescemcorrendo. Trazem livros, pergaminhos e outras formas de conhecimento.Quando alcançam a base da ponte, viram-se e assistem ao drama que sedesenrolanoalto.

Os que permanecem sobre a ponte, sem olhar para os que fugiram e simpara aquilo que estão contendo, dão um grito, lançando um feitiço poderoso,formadoporumamágicagrandiosa.Àquelesqueestãoembaixoecoamosgritosequemconsegueouvi-lostremedepavorcomosom.Apontecomeçaaesvair-seapartirdochão.Umaondadeterroreódiojorraatravésdoportaleosqueestãono alto começama sucumbir antes de serematingidos.Àmedida que aponteeaaberturacomeçamadesaparecer,umaúnicarajadadefúriaescapaeatordoamuitosdosqueseencontramnaplanícieabaixo,abatendo-oscomosetivessemsidosocados.

Durante algum tempo, aqueles que escaparam ao terror inominável pordetrás da fenda cam mudos. Depois, aos poucos, começam a se dispersar.Grupos se separam e seguem seus caminhos. O jovem sabe que, no futuro,aqueles refugiadosmiseráveis conquistarão aquelemundo, pois são a semente

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dasnaçõesquepovoamKelewan.Sabe que assistiu ao início das nações e de sua fuga ao Inimigo, o terror

abominável que destruiu as pátrias das raças da humanidade, dispersando-asparaoutrosuniversos.

Omantodotempoocobreumavezmais,criandoescuridão.

eguidaporluz.Na planície onde nada havia, ergue-se uma grande cidade. As suas torres

brancassobematéocéu.Opovoétrabalhadoreacidadepróspera.Caravanasde mercadorias chegam por via terrestre e grandes navios atracam no portovindos do outro lado domar. Passam-se anos, trazendo guerra e fome, paz eabundância.

Um dia, um navio atraca no porto, tão devastado e dani cado quanto atripulação. Foi travada uma grande batalha e esse navio foi um dos poucossobreviventes.Osquevivemdooutro ladodomarestãovindoe aCidadedasPlanícies sucumbirá seo auxílionão chegar. São enviadosmensageirosparaonorte,rumoàscidadesaolongodogranderio,pois,casoacidadebrancacaia,nada impedirá os invasores de atacarem o norte. Os mensageiros retornam,trazendo notícias.Os exércitos das outras cidades virão.O jovem os observa,reunindo-se e indo ao encontro dos invasores à beira-mar. Os inimigos sãorechaçados, mas com grande custo, pois a batalha dura doze dias. Cem milhomensmorremeasareiaspermanecemvermelhasdurantemeses.Milnaviosqueimam e o céu é invadido por uma fumaça negra que cai sobre a terradurante vários dias, cobrindo quilômetros com uma cinza na como pó. Acidadealvaviraacidadecinzenta.Desdeessedia,omarpassaaserconhecidocomoMardeSangueeàamplabaíadãoonomedeBatalha.Porémdabatalhaforma-seumaaliançaesãolançadasassementesdograndeImpério,oImpériodosTsuranuanniqueatravessamundos.

Comoosilêncioquecai,astrevaschegam.

omoumtoquedeclarim,aluzregressa.Ele se encontra no topo de um templo, no coração da cidade central do

Império.Láembaixo,vêmilharesdepessoas.Ombroaombro,enchemasruas,entoandocânticos,enquantomilharesdebraçoserguidosfazempassardemãoemmãograndesplataformasdemadeira.Sobreasplataformasestãoosnobres

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doImpério,LordesdasCincoGrandesFamílias.Naúltimaplataforma,amaiorde todas, vê-se um trono de ouro, fabricado a partir domais raro dosmetaisdestemundopobreemminério.Nessetronoestásentadoummenino.QuandoaplataformaalcançaaGrandePraçadosVinteDeusesSuperioreseInferiores,écolocadanochãoeotronoélevadonosombrospeloscidadãosatéotopodotemplomaisalto.

O trono é descido, voltado para sudeste, de onde as nações surgiram noinício dos tempos. Das profundezas do templo, avançam rapidamente dozesacerdotisasvestidasdepreto, ladeadasporsacerdotesvestidosdevermelho.ASacerdotisadeSibi,aDeusadaMorte,indicaalgunscidadãosnamultidãoeossacerdotesdevermelhoseguidoresdoDeusdaMatançaosagarram.Apoderam-sedehomens,mulherese,àsvezes,crianças.Sãotodosarrastadosatéotopodotemplo, onde os sacerdotes do Deus Vermelho lhes arrancam os corações,enquanto os sacerdotes e as sacerdotisas das outras dezoito ordens assistemcalados.Depois do sacrifício de centenas, quando os degraus do templo estãobanhadosdesangue,asumosacerdotisadaDeusadaMorteconsideraosdeusessatisfeitos. Colocam um anel de prata namão domenino e um aro douradosobresuatesta,proclamando-oLuzdoCéu,Minjochka,onzevezesImperador.Omeninobrincacomumbrinquedodemadeiraquelhefoioferecidonoiníciodaquele dia, pois ca entediado facilmente, enquanto a multidão se empurraparamergulharasmãosnosanguedeseuscompatriotas,considerandoquetalatolhestraráboasorte.

Nooriente,océuescurececomaaproximaçãodanoite.

uando o sol nasce, o jovem se vê ao lado de ummago que trabalhou anoite toda. O homem ca preocupado com o que seus cálculos lhe

mostrameentoaumfeitiçoqueolevaparaoutrolugar.Oobservadorosegue.No pequeno salão, vários outros magos reagem com expressões de pavor aoouviremasnotíciasqueoprimeiromagolhesleva.ÉenviadoummensageiroaoSenhordaGuerra,soberanodoImpérioemnomedoImperador.OSenhordaGuerraconvocaosmagos.Oobservadorossegue.Omagoexplicaasnotícias.Os sinais das estrelas, bem como os escritos antigos, anunciam a chegada deuma grande calamidade. Uma estrela, uma viajante dos céus avistada ondenenhumaoutra foi,estáparada,masbrilhacadavezmais.Trarádestruiçãoàsnações.OSenhordaGuerraestácético,porém,nosúltimos tempos,cadavez

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mais os nobres passaram a prestar atenção às palavras dosmagos. Sempre seouviram as lendas sobre os magos que salvaram as nações do Inimigo, noentanto, poucos acreditavam. Ainda assim, existe agora este novo grupo demagos,queformaramalgoaquechamamdeAssembleia,cujopropósitosóelessabem.Assimsendo,diantedessamudança,oSenhordaGuerraaceitalevarasnotícias ao Imperador. Depois de algum tempo, é enviada uma ordem doImperador à Assembleia. A sua exigência: que lhe tragam provas. Os magosabanamascabeçaseregressamaseushumildesaposentos.

Passam-se décadas e os magos fazem uma campanha de propaganda,procurandoin uenciarosnobresdoImpérioqueosqueiramouvir.Chegaodiaemqueéproclamadaanotíciadequeo Imperador faleceueagoraé seu lhoquemreina.OsmagosreúnemtodososquepodemviajaratéaCidadeSagradaparaacoroaçãodonovoImperador.

Milhares de pessoas enchem as ruas, enquanto os nobres da terra sãolevados por escravos em liteiras até os grandes templos. O novo Imperadorseguenoantigotronodourado,sustentadoporumacentenadeescravosrudes.Écoroadoeumescravoésacri cadonasprofundezasdossalõesdotemplodoDeus daMorte, Turakamu, como apelo aos deuses para que permitam que aalmadovelhoImperadorrepousenocéu.

Amultidãodávivas,poisSudkahanchoza,trintaequatrovezesImperador,éamadoeestaseráaúltimavezqueoveem.IráseretirarimediatamenteparaoPalácio Sagrado, onde sua alma permanecerá eternamente alerta em prol deseus súditos, enquanto o Senhor da Guerra e o Conselho Supremo carãoencarregados do governo do Império. O novo Imperador levará uma vida decontemplação, lendo, pintando, estudando os grandes livros dos templos,procurandopurificaraalmaparaaquelavidaárdua.

EsteImperadorédiferentedopaie,depoisdeouvirasimportantesnotíciasdaAssembleia,mandaconstruirumenormecasteloemumailha,nocentrodolagogiganteentreasmontanhasdeAmbolina.

Otempo...

assa.Centenas demagos vestidos de negro se encontram no topo das torres

queseerguemdacidadenailha,aindaquenãosejaamagní caentidadeúnicaque será no futuro. Passaram-se duzentos anos e brilham agora dois sóis no

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céu: um deles, quente e amarelo-esverdeado, e o outro, menor, branco eraivoso.O observador vê os homens realizando suamagia, omaior feitiço dahistóriadasnações.Nema lendáriapontevindade forano iníciodos temposforaumafaçanhatãogrande,poisanteshaviamapenassedeslocadoentredoismundos e, agora, iriam deslocar uma estrela. Lá embaixo, o jovem conseguesentir a presença de centenas de outrosmagos que acrescentam seus poderesaosdos que se encontramno topo.O feitiço foi forjado ao longodosúltimosanos, cada passo dado com o maior cuidado, enquanto o Forasteiro seaproximava. Embora de um poder incomparável, o encantamento também éextremamentedelicado.Umpasso em falso e o trabalho cará arruinado.EleolhaparacimaevêoForasteiro,derotatraçadaparaaórbitadomundo.Nãoatingirá Kelewan, mas não restam dúvidas de que o calor que emite,acrescentado ao da estrela já quente deKelewan, deixará o planeta sem vida.Kelewan carápormaisdeumanoalternandoentreo seu sol eoForasteiro,semnoite,etodososmagosconcordamquesomentealgunspoderãosobrevivernas cavernas mais profundas para emergirem em um mundo queimado.Precisamagir,antesquesejatardedemaisparatentarnovamente,casoofeitiçofalhe.

Começam a atuar, todos juntos, entoando a última parte do enormetrabalhoarcano.Omundoparecepararporum instante, reverberandocomaderradeira palavra do feitiço. Devagar, essa reverberação aumenta, ganhandoressonância, desenvolvendo novas harmonias, novos sons harmônicos,ganhando um caráter próprio. Logo se torna alta o bastante para ensurdecertodososqueestãonastorres,quetapamosouvidos.Osqueestãonosolo camboquiabertos,olhandoparaocéu,ondeseformaumaexplosãodecores.Raiosdesiguais de energia brilham e a luz das duas estrelas é diminuídatemporariamente pelas demonstrações ofuscantes que deixarão cegos para orestodavidaalgunsdaquelesqueoscontemplam.O jovemnãoéafetadopelosom nem pela luz, como se algum organismo tivesse tratado de protegê-lodaquelesefeitos.Surgeumaenormefendanocéu,muitosemelhanteàquelaporondeveioapontedouradatantotempoantes.Elecontemplasememoção;umfascíniodistanciadoéseusentimentomaisforte.Oportalcrescenocéu,entreo Forasteiro e Kelewan, e começa a afastar-se do planeta, rumo à estrelainvasora.

Contudo,algomaisacontece.Do interiordoportal,commaisviolênciado

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...q

que na época da ponte, avança uma onda de energia em erupção semprecedentes.Àcenacaóticasejuntaum uxoavassaladordeódio.OInimigo,opoder malé co que impeliu as nações para Kelewan, ainda reside no outrouniverso, e não se esqueceu dos que escaparam há tanto tempo. Ele nãoconsegueultrapassarabarreiradafenda,poisprecisademuitotempoparaisso,masavança,arrastandooportale, assim,odesviapara longedoForasteiro.Afenda aumenta e os que se encontram no chão percebem que ela engoliráKelewan,levandooplanetanovamenteparaodomíniodoInimigo.

Oobservador assiste impassível, ao contráriodaquelesqueo rodeiam,poisele sabequenãoéo mdomundo.A fenda seprecipitaparaoplaneta eummagoavança.

Eleparecefamiliarparaaquelequeobserva.Ohomem,aocontráriodosqueorodeiam,veste-sedemarrom,comumcintodecordaentrelaçadaàcintura,etemnasmãosumcajadodemadeira.Eleergueocajadoacimadacabeçaelançaum feitiço. O portal muda, passando de cores indescritíveis para um negrocarregado,ecolidecomoplaneta.

Oscéusexplodemporinstantesatéquetudoemvolta caescuro.Quandoaescuridãosedissipa,osol,aestreladeKelewan,estásepondonohorizonte.

Os magos que não morreram nem caram loucos olham para cima,horrorizados. Acima deles, o céu não é mais que um vazio, desprovido deestrelas.

Ohomemdemarromseviraparaojovem,dizendo:—Lembre-se:nemtudoéoqueparece.Escuridão...

ueanunciamaisumavezapassagemdotempo.Eleseencontranosalãoda Assembleia.Magos aparecem com regularidade, usando o padrão no

chão como ponto central de sua travessia. Eles pensam no padrão como umendereço,desejandochegarlá.ChegaumamensagemdoImperador.ElepedeàAssembleiaqueresolvaoproblema,prometendotodaaajudaqueprecisarem.

Oobservadoravançaváriasgeraçõesparavoltaraencontrarosmagosmaisumaveznoaltodastorres.Agora,emvezdoinvasor,contemplamumcéusemestrelas. Outro feitiço, desenvolvido ao longo de muitos anos, está sendoproferido. No nal, a terra ressoa com violenta energia. De repente, o céubrilhaestreladoeKelewanvoltouaseulugarhabitual.

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...e

—Nemtudoéoqueparece—dizumavoz.O Imperador envia uma ordem para que toda a Assembleia vá

imediatamente à Cidade Sagrada. Sozinhos e aos pares, recorrem àsmatrizesparaviajaratéKentosani.Oobservadorossegue.Umavezlá,sãolevadosparaacâmarainternadopaláciodoImperador,algoinauditonahistóriadoImpério.

Dos sete mil magos que se reuniram um século antes para afastar oForasteiro,somenteduzentossobreviveram.Mesmoagoraonúmeroerapoucomaior, por isso, sequer um de cada vinte dos magos que enfrentaram oForasteiro responde ao chamado do Imperador. Avançam para car peranteTukamaco, quarenta vezes Imperador, descendente de Sudkahanchoza, e LuzdoCéu.O Imperadorpergunta se aAssembleia aceita a incumbênciade zelareternamente pelo Império, protegendo-o até ao m dos tempos. Os magosconferenciameaceitam.OImperadorentãodeixaotronoeajoelha-seperanteosmagosreunidos,emumgestoinédito.Recosta-see,aindadejoelhos,abreosbraços para proclamar que, dali em diante, os magos serão chamados deGrandes, não cando sujeitos a nenhuma obrigação além da tarefa queacabaramdeaceitar.Estãoàmargemdaleieninguémpoderálhesdarordens,incluindo o Senhor da Guerra, que está ao seu lado, com o semblantecarregado.Terãotudooquedesejarem,bastandopedir,poissuaspalavrasserãolei.

Umdosmagossorriparaoutropertodelecomarcúmplice.Escuridão...

otempopassa.Oobservador se encontraperanteo tronodoSenhordaGuerra junto a

uma delegação de magos. Trazem provas do que a rmaram: um portalcontrolado, livre da in uência do Inimigo, foi aberto e outro mundo foiencontrado. Este não comporta vida—mas outro foi descoberto, ummundoabundante e desenvolvido. Mostram-lhe uma imensa abundância de metais,espalhadosportodoolado,abandonados.OobservadorsorriaoveraavidezdoSenhordaGuerradiantedeumaarmaduraquebrada,umaespadaenferrujadaeumpunhadodepregosdobrados.Comoprovaadicionaldequesetratadeummundodiferente,oferecem-lheumaestranhaebela or.OSenhordaGuerraacheirae casatisfeitocomsuaesplêndidafragrância.Oobservadoracenacomacabeça,poistambémconheceasuntuosidadedeumarosamidkemiana.

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M

H

Aasanegradapassagemdotempovoltaacobri-lo.

ais uma vez, estava na plataforma. Olhou em volta e viu que a fúriaabsoluta da tempestade estava se dissipando. Apenas a vontade de seu

inconsciente conseguira mantê-lo naquele terraço, enquanto seu conscienteestavaocupadocomodesenrolardahistóriadeKelewan.Entendeu,por m,anaturezado teste,pois seencontravaexaustodevidoàenergiagastaduranteaprovação.Enquanto lhe fora incutidooúltimoensinamento sobreo seu lugarnasociedade,foratestadocomapurafúriadanatureza.

Deuumaúltimaolhada,sentindoalgumasatisfaçãonavisãosinistradolagoagitado pela tempestade e das janelas fechadas das torres. Esforçou-se emcaptar essa imagem, como se fosse uma garantia de que iria se lembrar parasempre do momento de seu despertar absoluto como Grande, pois já nãoexistiam obstáculos à sua memória nem às suas emoções. Exultou pelo seupoder.JánãoeraPug,orapazdatorredocastelo,eraummagodepoderestãograndes que não cabiam na imaginação de seu antigomestre, Kulgan.Nuncamaisqualquerumadaquelaspalavras,MidkemiaouKelewan,voltariaasoardamesmaforma.

Recorrendo à sua força de vontade, desceu para o telhado, pairandosuavementenoventoenfurecido.Aporta seabriuantecipandoa suachegada.Entrou e aporta se fechouatrásde si. Shimoneo aguardava, comum sorrisonos lábios.Enquantoavançavampelos longoscorredoresdoedifício-cidadedaAssembleia, os céus lá fora explodiram com estrondos de trovões, como seanunciassemasuachegada.

ochopepa sentou-se em seu catre, aguardando a chegada de seuconvidado. O mago calvo e pesado estava interessado em veri car o

temperamento do membro mais recente da Assembleia, que chegara à suapropriedadenodiaanterior,usandoomantonegro.Ouviuotoquedeumsino,anunciando a chegada do convidado. Hochopepa levantou-se, cruzando osaposentossuntuosamentemobiliados.Afastouaportadecorrer.

—Bem-vindo,Milamber.Estou feliz emverqueachouadequadoaceitaromeuconvite.

—Éumahonra—foitudooqueMilamberdisseaoentrar,contemplandooambiente.DetodososquartosqueviranoedifíciodaAssembleia,aqueleera,de

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longe, omais opulento.As tapeçarias nas paredes eram feitas comum tecidoluxuoso,valorizadopeloelegantedesenhotrabalhado,eváriosobjetosdemetal,valiosos,enfeitavamasmuitasprateleiras.

Do mesmo modo, Milamber examinou seu an trião. O mago corpulentoconduziu-oatéumaalmofadaemfrenteaumamesabaixa,servindoxícarasdechocha.Suasmãosinchadassemoviamcomumacalmacontrolada,precisasee cientes. Seus olhos escuros, quase negros, brilhavam por baixo dassobrancelhasgrossasqueacentuavamorostoilusoriamentesuave.Eraomaiormago que Milamber já vira, pois a maioria dos que usavam o manto negrotendia a sermagra e de aspecto ascético.Milamberpressentiu que tal aspectoera proposital, como se alguémmuito ocupado comos prazeres da carnenãopudessesededicaraassuntosmaisreflexivos.

Depoisdoprimeirogoledechocha,Hochopepadisse:—Vocême traz um grande problema,Milamber.—Vendo que o jovem

não comentava, Hochopepa prosseguiu: — Você não tem nada a dizer? —Milamberinclinouacabeça,con rmando.—Talvezseupassadojusti queumpoucomaisdecauteladoqueestamoshabituados.

—Um escravo que se tornamago é caso para se re etir com cuidado—respondeuMilamber.

Hochopepaacenoucomamão.—Emboranãosejafrequenteverumescravousandoomantonegro,nãoé

algoinédito.Àsvezes,opodersóéreconhecidocomachegadadaidadeadulta.Porémasleissãoexplícitase,independentementedequandoopoderserevelaoudaposiçãodohomemqueomanifesta,apartirdesseinstanteeleestásujeitosomente à Assembleia. Uma vez, um senhor mandou enforcar um de seussoldados. Ele pairou no ar, suspenso no espaço, a um o do enforcamento,sustentando-se apenas pelo poder de sua vontade. O poder só se revelou nomomentoemqueelemaisprecisou.ElefoientregueàAssembleiaesobreviveuao treino, mas veio a se revelar ummago de poder mediano e, no geral, depouca visão. No entanto, isso não interessa a esta conversa. No seu casoespecí co,oquepodesetornarumproblemaparamiméofatodevocêserumbárbaro.Perdão,detersidobárbaro.

Milamber voltou a sorrir. Deixara a Torre da Provação com todas asmemóriasde suavidaanterior, emboramuitode seu treinamentocontinuassevago.Compreendiaosprocessosquetinhamsidousadosparafazê-locontrolar

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sua magia. Fora escolhido para ser um entre cem mil, um Grande. Dosduzentos milhões de habitantes do Império, era um dos dois mil magos demanto negro. A cautela nascida da escravidão, como Hochopepa salientara,uniu-se à sua inteligência para que casse calado. Hochopepa tentavademonstrar algo eMilamber aguardaria até saber do que se tratava, pormaisqueomagocorpulentocontinuassecomrodeios.

PercebendoqueMilambercontinuariasemfalar,Hochopepacontinuou:—Asuasituaçãoéincomumporváriasrazões.Amaisóbviaéquevocêéo

primeiroquenãopertenceaestemundoausaronegro.Outra temavercomvocêtersidoaprendizdeumMagoInferior.

Milamberfranziuatesta.—Kulgan?Vocêtemconhecimentosobreomeutreinamento?Hochopepa deu uma gargalhada sincera, levando Milamber a baixar

ligeiramenteaguardaeolhá-locomumpoucomenosdedesconfiança.— É claro. Não há um único aspecto de seu passado que não tenha sido

examinadominuciosamente, pois você nos deumuitas informações sobre seumundo. — Hochopepa prestou atenção em seu convidado. — O Senhor daGuerrapodedecidiriniciarainvasãodeummundodesconhecido,ignorandoasobjeçõesdealgunsde seusconselheirosmagos,devoacrescentar,masnós,naAssembleia, preferimos estudar os nossos adversários. Ficamos bastantealiviados quando soubemos que, entre vocês, amagia está restrita à esfera deaçãodossacerdoteseseguidoresdoCaminhoInferior.

—DenovovocêfalasobreumaMagiaInferior.Oqueissoquerdizer?FoiavezdeHochopepaparecerumpoucosurpreso.—Acheiquevocêsoubesse.—Milamberabanouacabeça.—OCaminho

daMagiaInferiorétrilhadoporalgunsqueconseguemcontrolardeterminadasforças pelo poder da vontade, embora pertençam a uma ordem diferente denós,osdomantonegro.

—Entãovocêsabedemeufracassoanterior.Hochopepavoltouarir.—Sei.SevocênãofossetãodestinadoaoCaminhoSuperior,talveztivesse

conseguido seguir o outro caminho. No seu caso, suas habilidades estãodesenvolvidasdemaisparaserummagodoCaminhoInferior.Maisdoqueumaarte, o Caminho Inferior é um talento. O Caminho Superior é destinado aestudiosos.

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Milamber acenou com a cabeça. Sempre que Hochopepa explicava umconceito, era como se Milamber já soubesse disso desde sempre. Comentousobreisso.

—Nãoédifícildeentender.Duranteotreinamento,vocêaprendeumuitosfatos e conceitos. Os conceitos básicos de magia foram ensinados bem nocomeço, a responsabilidade para com o Império veio mais tarde. Parte doprocesso de fazer com que todas as suas habilidades amadureçam exige quetodosessesfatosestejampresentesquandoprecisardeles.Contudo,averdadeéquemuitodaquiloquevocêaprendeutambémfoicamu ado,comointuitodese revelar somente quando a necessidade exigisse e quando você conseguissecompreender plenamente o que existe em sua cabeça. Durante certo tempo,haverámomentosemqueospensamentoschegarãoinesperadamente.Quandovocê zerumapergunta, a resposta surgiráemsuamente.E, àsvezes, surgiráuma resposta quando a ler ou a ouvir. Isso evita que você que tonto com oimpactodeanosdeconhecimentoschegandoasuamenteemumsegundo.Nãoé muito diferente dos feitiços usados para provocar as visões na Torre daProvação.Como é óbvio, não temosmeios para “ver” o que ocorreu antes daponte ou em qualquer outra época da história, embora possamos colocarsugestões,criarilusões...

Nem tudo é o queparece. Milambermal conseguiu disfarçar a surpresa aoouvirarepentinavozdentrodesuacabeça.

—... e fornecer uma idealização ao redor da qual se podem acrescentar asimagensque tenhammais signi cadoparao sujeito.Quantoamim, julgoquetoda a demonstração no alto da Torre cheira à Ópera do Grande Dō. Vocêpoderá frequentar as bibliotecas caso procure história ao invés de teatro. —VendoqueaatençãodeMilamberestavalonge,Hochopepadisse:—Sejacomofor,estávamosfalandodeoutrascoisas.

—Gostariadeouviroseuproblema—disseMilamber.Hochopepaajeitouatúnica,alisandoosvincos.—Dê-mesuaatençãopormaisunsminutos,ouvindoumabrevedivagação.

Está tudo relacionado com o meu convite. — Milamber deu consentimentoparaqueHochopepaprosseguisse.

—PoucosesabedenossospovosantesdaFuga.Sabemosqueasnaçõessãooriginárias de vários mundos diferentes. Também se especula que outrosfugiramdoInimigoparamundosdiferentes,sendoqueseuantigomundonatal

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talvezsejaumdeles.Existemalgunsindíciosquecon rmamessahipótese,mas,nestemomento,nãopassamdeconjecturas.—MilamberrecordouaspartidasdeshāhquejogaracomoLordeShinzawaiepensounessapossibilidade.

—Chegamoscomorefugiados.Demilhões,sobreviveramsomentemilharesparaaqui lançaremassuassementes.Achamosestemundovelhoegasto.Emtempos antigos, grandes civilizações prosperaram e tudo o que restou delasforam pedras gastas e lisas onde antes se erguiam cidades. Quem eram,ninguém sabe. Este mundo possui poucos metais e aquele que trouxemosconosconaEvasãogastou-secomapassagemdosanos.Osnossosanimais,talcomoosseuscavalosegado,extinguiram-se,comexceçãodoscães.Tínhamosde nos adaptar ao nosso novo mundo e uns aos outros. Travamos muitasguerrasdesde a épocadaFuga eo aparecimentodoForasteiro.Éramospoucomaisdoquecidades-estadosatéaBatalhadosMilNavios.Foientãoqueamaishumilde das raças, os tsurani, surgiu para conquistar todas as outras, unindogrande parte deste mundo em um único Império. Nós, na Assembleia,apoiamos o Império, não por ser algo nobre, bom, belo ou justo,mas porquenestemundoeleéaúnicaforçacompoderdemanteraordem.Noentanto,éporcausadoImpérioqueamaioriadahumanidadeviveetrabalhasemguerrasemsuaspátrias,nãopassa fome,nãosofrepragaseoutrosdesastresdeoutrostempos.Comestaordemànossavolta,nós,daAssembleia,podemostrabalharsem impedimentos. Foi nossa tentativa de afastar o Forasteiro que tornouevidente o fato de que precisamos trabalhar sem que ninguém nos atrapalhe,incluindo o Imperador, com todos os recursos que precisemos. QuandosoubemosdaexistênciadoForasteiro,a faltadecooperaçãodoImperadornosprivoudeumtempopreciosoduranteoqualpoderíamosterreagido.Setivessenos apoiado imediatamente, poderíamos ter lidado como Inimigo quando eledesviouoportal.Por isso, aceitamosa responsabilidadededefendere serviroImpério,emtrocadaliberdadetotal.

—Tudo o que você disse parece óbvio—disseMilamber.—Ainda estouesperandoparasaberqualoseuproblemacomigo.

Hochopepasuspirou.— A seu tempo, meu amigo. Tenho de concluir um último pensamento.

Você precisa entender como a Assembleia trabalhou na esperança de fazê-losobrevivermaisdoquealgumassemanas.

Milamberficouclaramenteadmiradocomaquelecomentário:

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—Sobreviver?—Sim,Milamber,sobreviver,poismuitosgostariamdetê-lovistonofundo

dolagoduranteoseutreino.—Porquê?—TrabalhamospararecuperaraArteMaior.QuandofugimosdoInimigo,

no despontar da história, sobreviveu somente um mago de cada mil queenfrentaram o Inimigo.Amaioria era deMagos Inferiores e seus aprendizes.Uniram-seempequenosgruposparaprotegeremoconhecimentoque tinhamtrazidodeseusmundosdeorigem.Deinício,procuraramosseuscompatriotas,até que, depois, desenvolveram-se associações mais abrangentes, enquantocrescia também o desejo de recuperar as artes perdidas. Depois de séculos,fundaramaAssembleiaevierammagosdetodasaspartesdomundo,eatéhojetodososquetrilhamoCaminhoSuperiorsãomembrosdaAssembleia.AmaiorpartedosquepraticamaArte Inferior tambémserveaqui,aindaque lhes sejaconcedidoumníveldiferentederespeitoe liberdade.Costumamsermelhoresnaconstruçãodedispositivosenacompreensãodasforçasdanaturezadoquenós,osdomantonegro.Sãoelesquefabricamosglobosqueusamosparanostranspor de um lugar para outro, por exemplo. Embora não se encontrem àmargem da lei, a Assembleia protege osMagos Inferiores da interferência deterceiros.TodososmagossãodacompetênciadaAssembleia.

— Quer dizer que ganhamos a liberdade de agir como considerarmosadequado,desdequeessasaçõessejamomelhorparaosinteressesdoImpério—disseMilamber.

Hochopepaassentiu.—Nãoimportaoquefazemos,sendoquedoismagospodematédiscordar

emumaouemoutraação,desdequeambostrabalhemnaquiloqueacreditemseromelhorparaosinteressesdoImpério.

—Éumaleiestranha,domeupontodevista“bárbaro”.— Não é uma lei, é uma tradição. Neste mundo, meu amigo bárbaro, a

tradiçãoeoscostumespodemconstituirumaamarramaisfortedoquealei.Asleisvãosendomudadas,masatradiçãocontinua.

—Achoqueentendio seuproblema,meuamigocivilizado.Vocênão temcertezadequeireiagirsegundooqueformelhorparaosinteressesdoImpério,jáquesoudeoutromundo.

Hochopepaconfirmou.

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—SetivéssemosacertezadequevocêagiriacontraoImpério,jáoteríamosmatado.Nomomento,nãotemoscerteza,embora tendamosaacreditarqueéimprovávelquevocêsejacapazdisso.

Pelaprimeiravez,Milamberestava totalmente inseguro sobreoqueestavaouvindo.

— Eu supus que havia formas de garantir que todos os que são treinadospermaneçamfiéisaoImpério,sendoesseoseuprincipaldever.

—Geralmente é assim.No seu caso, tivemos problemas ainda novos paranós. Até onde pudemos concluir, você está imerso na causa subjacente àirmandadedemagos,aordemdoImpério.Normalmente,temoscerteza.Bastaler amente do aprendiz. Com você, não foi possível. Tivemos de con ar emdrogasdaverdade,longosinterrogatórioseexercíciosdetreinoconcebidosparadeixaremperceberaexistênciadequalquerduplicidade.

—Porquê?—Nãosabemosarazão.Conhecemososfeitiçosqueocultamamente.Não

eraesseocaso.Eracomoseasuamentetivesseumadeterminadacaracterísticaquenuncaenfrentamosantes.Talvezumtalentonaturalquedesconhecíamos,comumem seumundo; ou talvez algumensinamentodomestredoCaminhoInferiorqueoprotegiacontraasartesdaleituradopensamento.Sejacomofor,há um alvoroço dentro destas paredes, isso posso garantir. Foram várias asocasiõesduranteoseutreinoemqueselevantouaquestãodesuacontinuidade,e,emtodasasocasiões,anossaincapacidadedelerosseuspensamentoseraarazãoparaoseu m.Semprequeissoacontecia,aumentavaonúmerodosquedesejavam que você continuasse. Em geral, você apresenta uma possívelprofusão de conhecimentos novos e, como tal,merece todos os benefícios dadúvida, garantindo, assim, não perdermos um acréscimo tão valioso ao nossodepósitodetalentos,éclaro.

—Éclaro—repetiuMilamber,seco.— Ontem, a questão de sua continuidade ganhou contornos mais sérios.

Chegada a hora de sua aceitação nal na Assembleia, a questão foi levada avotação,terminandoemempate.Houveumaabstenção,aminha.Enquantoeupermanecer imparcial, a questão de sua sobrevivência estará pendente. VocêestálivreparaagircomomembroplenodaAssembleiaatéqueeuvotequantoàsua aceitação ou rejeição nela. A nossa tradição não permite que se altere ovoto, depois de formulado, exceto no caso de abstenções. Como não é

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permitidoquequemtenhaestadoausenteduranteavotaçãopossaacrescentarseuvotoposteriormente,sóeupossodesempatar.Porisso,cabeamimdecidiroresultadodavotação,demoreotempoquedemorar.

Milamberolhouatentaedemoradamenteparaomagomaisvelho.—Compreendo.Hochopepaabanouacabeçadevagar.—Seráque compreende?Para colocar aquestãode formamais simples, a

perguntaaserfeitaé:oquevoufazercomvocê?Semquerer,estoucomasuavidaemminhasmãos.Tenhodedecidirsevocêdeveounãosermorto.Porissoqueriavê-lo,paraversetinhajulgadoerrado.

Subitamente,Milamberlançouacabeçaparatrás,rindocomgostodurantemuito tempo. Não demorou para que lágrimas escorressem por seu rosto.Quandoseacalmou,Hochopepadisse:

—Nãoconsigoentenderqualéagraça.Milamberergueuamãoemumgestoconciliatório.— Não quis ofendê-lo, meu amigo civilizado. Mas com certeza você

conseguevera ironiadasituação.Eueraescravoeaminhavidaestavasujeitaaos caprichos de terceiros. E, mesmo com todo o meu treinamento e meuprogressosocial,perceboagoraqueissonãomudou.—Fezumapausaesorriuafavelmente.—Aindaassim,pre roquesejavocêateraminhavidanasmãosaomeuantigocapataz.Édissoqueachotantagraça.

Hochopepaficouadmiradocomaresposta,atéquetambémpõs-searir.— Muitos dos nossos irmãos dão pouca importância aos ensinamentos

antigos; no entanto, se você conhece os nossos lósofos mais antigos,compreenderáoquequerodizer.Vocêpareceserumhomemqueencontrouos e uwal. Eu acho que nos entendemos, meu amigo bárbaro. Acho quecomeçamoscomopédireito.

Milamber analisouHochopepa. Sem saber por qual processo inconscientechegaraàconclusão,julgouterencontradoumaliadoe,talvez,umamigo.

— Também acho. Além disso, também acho que você é um homem queencontrouoseuwal.

Comfalsamodéstia,Hochopepaafirmou:—Não passo de um homem simples, preso demais aos prazeres da carne

para ter alcançado tal estado de perfeita centralização. — Com um suspiro,inclinou-separaafrenteefaloucomseriedade:—Presteatençãoaoquedigo,

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Milamber.Portodasasrazõesqueeudisseantes,vocêé,igualmente,umaarmaasertemidaeumapossívelfontedeconhecimentos.Ostsuranisãoescravosdapolítica, como con rmaráqualquer estudante do JogodoConselho; enquantonós,naAssembleia,temosareputaçãodesermossuperioresaessesesquemas,mastambémtemosasnossasfacçõesecon itosinternos,quenemsempresãoresolvidosdeformapací caesemderramamentodesangue.Muitosdenossosirmãossãopoucomaisdoquecamponesessupersticiosos,descon andodetudooquevemdeforaequedesconhecem.Daquiemdiante,vocêtemdesedevotaraumasótarefa.Mantenha-seescondido,emsossegonointeriordoseu wal,ese torneumtsurani.De todasas formasvisíveis,você temdesermais tsuranidoquequalqueroutromembrodaAssembleia.Vocêentende?

—Entendo—respondeuMilamber,simplesmente.Hochopepavoltouaservirmaisumaxícaradechochaquenteaosdois.—TenhamuitocuidadocomospreferidosdoSenhordaGuerra,Elgahare

Ergoran,ecomumjovemtolochamadoTapek.Osenhordelesseirritacomoprogresso da guerra no seu antigo mundo e suspeita da Assembleia. Comomorreram dois dos nossos na última grande campanha, temosmenos irmãosdispostos a continuar ajudandonesse empreendimento.Ospoucosmagosquerestam nessa facção estão sobrecarregados e corre o rumor de que serãoincapazesdeavançarnaconquistadeseumundosemummilagre.Seriaprecisoum Conselho Supremo, o que só aconteceria se os salteadores thūn setornassem agricultores e poetas, ou se um grande número demantos negrosconcordasseemseguirassuasordens.Estaúltimasituaçãoaconteceráumanodepoisdaprimeira,porissopodeverqueseencontraemumasituaçãopolíticaumtantoquantodelicada.OsSenhoresdaGuerraquefalhamemconduzirumaguerra caem em desgraça rapidamente. — Com um sorriso, acrescentou: —Naturalmente, nós, membros da Assembleia, estamos acima dessas questõespolíticas. — Voltou a um tom sério: — Você precisa aceitar o seguinte: elepoderá vê-lo comouma ameaça empotencial, quer in uenciandooutros paraquenãooajudem,querrepresentandoumaoposiçãobaseadaemumasimpatiaenraizadapelasuaantigapátria.Vocêestáprotegidodesuasaçõesdiretas,maspoderá se confrontar com os seus apoiadores. Alguns ainda o seguemcegamente.

— O caminho do poder é um caminho de voltas e reviravoltas — citouMilamber.

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N

Hochopepa acenou com a cabeça,mostrandouma expressão satisfeita.Osseusolhospareciambrilhar.

—Issoétsurani.Vocêaprendedepressa.

as semanas seguintes, Milamber adaptou-se totalmente a sua novaposição, aprendendoas responsabilidadesde seucargo.Maisdeumavez

ouviu comentários, alguns com descon ança, de que poucos tinhamdemonstrado tanta capacidade logo após vestirem o manto negro. Apesar detodas asmudanças em sua vida,Milamberdescobriuquemuitos aspectosnãosofreramalterações.Comaprática,descobriuque,dentrode si, aindapossuíareservasinexploradasdepoder,asquaisconseguiaevocarapenasquandoestavasob grande pressão. Dedicou-se a estudar uma forma de controlar aqueleaumento desenfreado de poder, mas os resultados foram poucos. Tambémdescobriu que conseguia deixar de lado o condicionamento mental que lhetinha sido imposto durante o treino. Optou por esconder isso de todos,incluindoHochopepa.Comareorganizaçãodeseusestadosmentaisconseguiurecuperaralgomais,umdesejoquaseavassaladordevoltaraestarcomKatala.Afastou esse desejo: o de ir sem demora ao encontro dela, exigindo a sualibertaçãoaoLordeShinzawai,capacidadequeestavaaoseualcance,agoraqueera um Grande. Hesitou por temer a reação dos outros magos e que ossentimentosdelativessemmudado.Assim,dedicou-seaosestudos.

OtempoquepassounaAssembleiarevelouasuaverdadeira identidade, talcomo lhe fora dito. Essa identidade provou ser a chave para a sua maestriaincomum no Caminho Superior. Era um ser pertencente a dois mundos,mundosunidospelograndeportal.Enquantoessesmundosestivessemligados,extrairia poderde ambos, o dobrodopoderdisponível para os outrosmantosnegros. Esse conhecimento revelou o seu nome verdadeiro, o nome que nãopodiaserpronunciadoparaevitarqueoutrosodominassem.Noantigoidiomadostsurani,abandonadodesdeaépocadaEvasão,signi cava:“Aquelequeestáentremundos”.

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M

5

Travessia

artinobservava.Gesticulando em silêncio aos companheiros, passaram pela orla dobosque,escondidosdavistadaquelesqueseencontravamnaplanície.

Ouviamclaramenteosgritos,noacampamentotsurani,deordenssendodadas.Martin agachou-se omáximo que pôde para que nem omais leve indício demovimento revelasse sua presença. Atrás dele, Garret aproximou-sesorrateiramente, junto com o antigo escravo tsurani, Charles. Nos seis anosdesde o cerco a Crydee, Charles correspondera às expectativas de Martin,provandosualealdadeeseuvaloremdiversasocasiões.Tambémsetornaraumpatrulheiroaceitável,emborajamaisviesseateranaturalidadedeGarretoudeMartin.

—MestredeCaça,euviváriosestandartesnovos—sussurrouCharles.—Onde?Charles indicou um ponto junto à extremidade mais afastada do

acampamento tsurani. Com a ajuda dos anões que caram nas aldeias altas,Martin e seus dois companheiros tinham realizado a escalada perigosa pelasTorresCinzentas,passandofacilmentepelaspoucassentinelastsuraniaolongoda orla ocidental do vale, o lado que precisava de menos vigilância. Naquelemomento, estavam a poucas centenas de metros do principal acampamentotsurani.

Garretemitiuumassobioquaseinaudível.—Ohomemtemolhosdeáguia.Eumalconsigoveressesestandartes.—Euseioqueprocurar—disseCharles.—Oquesignificamosnovosestandartes?—perguntouMartindoArco.—Nãosãoboasnotícias,MestredeCaça.Aquelesestandartespertencema

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famílias que eram leais à Facção da Roda Azul. Pelo menos, quando fuicapturado. Eles estavam ausentes desde o cerco a Crydee. Só pode signi caroutramudançaimportantenoConselhoSupremo.—EstudouorostodoChefedeCaça.—Signi caqueaAliançaBélica foirestabelecida.Eque,napróximaprimavera,podemosesperarumaofensivaemmaiorescala.

Martin fez sinal para que voltassempara o interior da oresta.As árvoresestavam inteiramente cobertas pelas cores do outono: profusões de vermelho,dourado e marrom. Caminhando sorrateiramente pelas folhas caídas,encontraram abrigo em um conjunto de arbustos que rodeava um velhocarvalho e ajoelharam-se emmeio a eles.Martin pegou um pedaço de carneseca emastigou-o.A escalada dasTorresCinzentas,mesmo com a ajuda dosanões,foradifícil:todosestavamesfomeados,exaustosesujos.

—Ondeestãoasnovascompanhiasdesoldados?—perguntouMartin.—Elesnãoasatravessarãonesteinverno.DevemseprepararforadaCidade

das Planícies, em Kelewan, confortáveis e sob um clima mais ameno.Avançarão pelo portal antes do degelo da primavera. Quando as ores dojardim da Princesa Carline estiverem desabrochando, eles terão começado amarchar.

Umgrito agudo soouvindodonorte.A expressãodeCharlesmudouparaumpânicocontrolado.

—Cho-ja!—Olhouaoredor,apontandodepoisparacima.Martin assentiu e juntou as mãos como um estribo. Primeiro, levantou

Charles, depois Garret, que subiram no carvalho. Depois pulou e os doiscompanheirosoagarrarampelasmãosepuxaram.

Subindoparaosgalhosmaisaltos, caramimóveisecomasarmasapostosquando avistaram a patrulha de cho-ja passando abaixo da árvore. Seis dascriaturasparecidascomformigassedeslocavamcompassoscadenciados;entãoo líder, que se distinguia pelo elmo emplumado como o dos tsurani, fez sinalparaqueparassem.Virou-separaumlado,depoisparaoutro,dandoordensemseuidiomaestridente.Osoutroscincosedispersarame,porquasedezminutos,ostrêshomensosouviramesquadrinhandoaárea.

Quando regressaram, rapidamente voltaram a suas posições e partiram.Martincertificou-sedequenãoseriammaisouvidosesussurrou:

—Oquefoiaquilo?— Eles sentiram o nosso cheiro. O meu mudou com toda a comida

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midkemiana que já ingeri. Sabiam que não éramos tsurani. — Descendo daárvore,Charlesprosseguiu:—Oscho-jatêmdi culdadesemolharparacima,porisso,poucasvezesofazem.

—Eseestivessemacompanhadosporalgunsdosseusantigoscompatriotas?—perguntouGarret.

Charlesencolheuosombros.— Os cho-ja estariam falando tsurani. O idioma deles é praticamente

impossíveldeseaprender,porissoninguémtenta.— Eles conseguirão nos seguir? — perguntou Martin. Ao que Charles

respondeu:— Acho que não, mas... — Ele interrompeu a frase ao ouvir latidos no

acampamentotsurani.—Cães!—Elesconseguiramseguironossorastro.Venham.—Saiuemumacorrida

controlada,de volta auma trilha antiganasmontanhas, quase escondidapelomatoequeaindanão foradescobertapelos tsurani e,por isso, erausadapelogrupodeMartinparaentrarnovale.

Por algum tempo, os homens avançaram pela oresta, atentos aos latidosquevinhamdetrás.Atéqueosomdoscãesmudoueos latidosderamlugarauivos.

—Sentiramnossocheiro—anunciouGarret.Martin limitou-se a acenar com a cabeça e aumentou a velocidade.

Correrammaisumminuto,osomdoscãesseaproximandocadavezmais,atéqueMartin parou e agarrou o braço deGarret para impedi-lo de continuar acorrer.Fazendoumsinal,mudoudedireção,afastando-sedatrilhaeguiando-osatéumpequenoriacho.

—Lembrei-medeterouvidoáguacorrentequandopassamosaquiantes—disseele,entrandonaágua.

OsoutrosdoisoseguirameMartindisse:— Só ganhamos alguns minutos. Eles irão procurar contra e a favor da

corrente.—Vamosparaquelado?—perguntouGarret,eMartinrespondeu:—Afavordacorrente.Elesirãocontraprimeiro,poisasaídaéparalá.—Mestre de Caça, tenho uma ideia — disse Charles, e depressa tirou a

mochila das costas e de lá retirou uma bolsa enorme. Começou, então, aespalhar um pó preto, para cima e para baixo, na margem do riacho onde

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B

tinhamentrado.Garretsentiuosolhosarderem,bufandopelonarizparanãoespirrar.—Pimenta!—OMestre Cozinheiro vai car zangado,masme lembrei de que talvez

precisássemosdisso.Oscho-jaeoscãesnãoconseguirão farejarnadadurantehorasdepoisdeaspiraremistoaqui—explicouCharles.

Martinacenoucomacabeça.—Vamosentãocontraacorrente!Ostrêshomenschapinharamnaágua,passandodepoisparaumritmomais

calmo e constante. Já não avistavam o lugar onde tinham entrado quando osuivos dos cães foram interrompidos por espirros. Vozes furiosas gritaramordens e foram ouvidas respostas frustradas. Charles permitiu-se um levesorrisoenquantoavançavampelaágua.

Quandoencontraramumgalhoquepassavaacimado riachoe erabaixoobastante, Martin elevou os companheiros para fora da água, subindo emseguida. Deslocaram-se pela árvore até encontrarem outro galho de umcarvalhopróximoparaondeconseguiriamsaltar.

Voltaramparao chãoamaisdedezmetrosdamargemdo riacho.Martinolhouaoredorparasecerti cardequenãotinhamsidovistosefezsinalparaqueosoutrososeguissemenquantoosconduziadevoltaàsTorresCinzentas.

risas marinhas sopravam nas muralhas. Arutha contemplava a cidade deCrydee e omarmais além, seu cabelo castanho desgrenhado pelo vento.

Luz e sombra se revezavam na paisagem à medida que nuvens altas e fofasdeslizavampelocéu.Aruthamirouohorizontedistante,contemplandoavistado Mar Interminável coberto pela espuma das ondas, enquanto o ruído detrabalhadoresrecuperandooutroedifíciodopovoadoeratrazidopelovento.

MaisumoutonovisitavaCrydee,ooitavodesdeo iníciodaguerra.Aruthaachava bom outra primavera e outro verão terem passado sem uma grandeofensiva dos tsurani; ainda assim, não parecia ter motivos para se sentiraliviado.Jánãoeraumjovemrecém-chegadoaocomando,massimumsoldadoexperiente.Aosvinteeseteanos,viramaiscon itosetomaramaisdecisõesdoque amaioria dos homens do Reino ao longo de toda uma vida. E conseguiaperceberqueostsuraniestavamvencendoaguerraaospoucos.

Deixou sua mente vaguear um pouco, até que sacudiu a cabeça para sair

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daquelamelancolia.Emboranãofossemaisomeninotaciturnodeoutrora,porvezes ainda permitia que a introspecção o dominasse. Descobrira que eramelhorsemanterocupado,evitandoassimdistraçõesinúteis.

—Seráumoutonocurto.Arutha olhou para a esquerda e viu Roland próximo a ele. O Escudeiro

encontrara o Príncipe perdido em seus pensamentos e chegara perto sem sernotado.Arutha couirritado.Encolheuosombrosparaafastaressesentimentoedisse:

—Eseráseguidoporuminvernocurto,Roland.Enaprimavera...—TemnotíciasdeMartindoArco?Arutha fechou o punho enluvado e bateu suavemente nas pedras da

muralha;ogestolentoecontrolado,umsinalclarodesuafrustração.— Lamentei uma centena de vezes a necessidade de sua ida. Dos três,

somenteGarretdemonstraalgumacautela.AqueleCharleséumtsuranilouco,consumidopelahonra,eMartindoArcoé...

—MartindoArco—concluiuRoland.— Jamais conheci outro homem que revelasse tão pouco de si, Roland.

Mesmoqueeuvivatantoquantoumelfo,nãoachoqueumdiaentendaoqueotornouassim.

Rolandencostou-seàspedrasfriasdamuralhaeperguntou:—Vocêachaqueestãoasalvo?Aruthavoltouaseconcentrarnomar.— Se existe algum homem em Crydee capaz de subir ao topo das

montanhas, descer ao vale dominadopelos tsurani e regressar, essehomeméMartin.Aindaassim,estoupreocupado.

Roland cou surpreso pela con ssão. Tal como Martin, Arutha não erahomemderevelaroquepensava.SentindoaenormepreocupaçãodoPríncipe,Rolandmudoudeassunto:

—Tragoumamensagemdemeupai,Arutha.—Fui informadodequehaviaumamensagempessoal entreosdespachos

vindosdeTulan.—Entãovocêsabequemeupaiestámechamandodevolta.—Sei.Lamentoapernaquebrada.—Meupainuncafoigrandecavaleiro.Éasegundavezquecaidocavaloe

quebraalgumacoisa.Daúltimavez,euerapequeno,foiumbraço.

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—Fazmuitotempoquevocênãovoltaparasuacasa.Rolandencolheuosombros.— Com a guerra, não senti necessidade de regressar. Grande parte dos

combatestemacontecidoporaqui.Alémdisso—acrescentoucomumsorrisolargo—,tenhooutrosmotivosparaficar.

Compartilhandoosorriso,Aruthaperguntou:—JáfaloucomCarline?OsorrisodeRolanddesapareceu.—Aindanão.Acheimelhoresperaratéconseguirumbarcoqueváparao

sul.—ComasaídadaIrmandadedoCoraçãoVerde,aviagemporterraparaosul tornou-se praticamente impossível, já que os tsurani tinham interrompidoasestradasquelevavamaCarseeaTulan.

Umgritovindodatorrefezcomquesevirassem.—Batedoresseaproximando!Aruthaapertouosolhosporcausadobrilhoofuscantedomareconseguiu

distinguir três guras que avançavam rapidamente pela estrada. Quandofinalmenteconseguiuvê-lascommaisnitidez,Aruthaafirmou:

—MartindoArco.—Emsuavozhaviaumanotadealívio.Deixando amuralha, o Príncipe desceu as escadas até o pátio, demodo a

aguardara chegadadoMestredeCaçaede seushomens.Rolandestava já aoseu ladoquandoos trêsultrapassaramosportõesdo castelo.Garret eCharlesficaramcalados,enquantoMartindisse:

—Saudações,Alteza.—Saudações,Martin.Novidades?—indagouoPríncipe.Martininiciouorelatodoquehaviamdescobertonoacampamentotsurani

e,poucodepois,Aruthaointerrompeu:—Émelhor poupar seu fôlego para o conselho,Martin.Roland, chameo

PadreTully,FannoneAmosTraskeleve-osparaasaladoconselho.RolandsaiucorrendoeAruthaacrescentou:—CharleseGarrettambémdevemestarpresentes,Martin.Garret olhou de relance para o antigo escravo tsurani, que encolheu os

ombros. Ambos sabiam que a refeição quente há muito desejada teria deesperarmaisumpoucodiantedaexigênciadoPríncipe.

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Martin sentou-se ao lado de Amos Trask, enquanto Charles e Garretcaram em pé. O antigo capitão acenou a cabeça cumprimentando

Martin,nomomentoemqueAruthapuxavasuaprópriacadeira,comoeraseuhábito, ignorando grande parte das formalidades exigidas em reuniões deconselheiros.Amos tornara-semembro o cioso da equipe deArutha desde ocerco;eraumhomemdiligente,commuitascapacidadesinesperadas.

Fannon sentou-se à direita deArutha.Desde que se ferira, se conformaraem aceitar Arutha como comandante em Crydee e enviara uma mensagempessoalaLordeBorricinformando-osobreisso.ODuqueenviaraumarespostarati candoatransferênciadecomando,eFannonvoltaraàsuafunçãoanteriorcomooficial.OMestredeArmaspareciasatisfeitocomasituação.

— Martin acabou de regressar de uma missão de grande importância.Martin,conte-nosoqueviu—iniciouArutha.

—Escalamos asTorresCinzentas e entramosno vale onde se encontra oprincipalacampamentotsurani—relatouMartin.

FannoneTullyolharamsurpresosparaoMestredeCaça,enquantoAmosTraskdavagargalhadas.

—Evocêcontaassimessapequenasagacomumaúnicafrase!—expressouomarinheiro.Martinignorouocomentário,dizendo:

—AchoqueémelhordeixarCharlesrelataroquevimos.Avozdoantigoescravotsuranitinhaumlevetomdepreocupação:—Deacordocomossinaisquevimos,oSenhordaGuerrairálançaroutro

grandeataquenapróximaprimavera.Todosnasalaficarammudos,excetoFannon:—Comovocêpodetercerteza?Hánovosexércitosnoacampamento?Charlesabanouacabeça.—Não,osnovossoldadossóchegarãoumpoucoantesdoprimeirodegelo

daprimavera.Osmeus antigos companheirosnão gostammuitode seu climafrio. Durante os meses de inverno, permanecerão em meu antigo mundo.Atravessarãooportalpoucoantesdaofensiva.

Mesmodecorridoscincoanos,Fannonainda tinhaalgumasdúvidasacercadalealdadedeCharles,aindaque,paraMartindoArco,nãorestassenenhuma.

—Assimsendo—disseoMestredeArmas—,comovocê temcertezadequeiráacontecerumataque?NãohouvenenhumapósoúltimoaElvandar,hátrêsanos.

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—ViestandartesnovosnoacampamentodoSenhordaGuerra,MestredeArmas,estandartesdascasaspertencentesàFacçãodaRodaAzul.Háseisanosque estavam ausentes. Só pode signi car outra grandemudança noConselhoSupremo.AAliançaBélicavoltouaseformar.

De todos os presentes naquela sala, somente Tully pareceu entender osigni cado daquelas palavras. Estudara os tsurani, aprendendo tudo o queconseguiacomosescravoscapturados.

—Émelhorvocêexplicarparaeles,Charles—pediu.Charles demorou um instante para organizar seus pensamentos, até que

explicou:—Vocêsprecisamentenderalgosobreminhaterranatal.Acimadetudo,se

encontraoConselhoSupremo,salvonoquedizrespeitoàhonraeàobediênciaao Império. Pertencer aoConselho Supremo valemuito,mesmo que o preçoseja a própria vida. Mais de uma família já foi destruída devido a conluios eintrigas dentro do conselho. No Império, chamamos isso de “Jogo doConselho”.MinhafamíliatinhaumaboaposiçãonoClãHuzan,nãoeragrandeobastanteparachamaraatençãodosrivaisdonossoclã,nempequenademaisapontodeserrelegadaafunçõesdemenorimportância.TínhamosobenefíciodetergrandeacessoaosassuntoslevadosaoConselhoSupremo,semtermosdenospreocuparmuitocomasdecisõesaquechegavam.OnossoclãeraativonaFacção pelo Progresso, pois em nossas famílias se encontravam váriosestudiosos, professores, curandeiros, sacerdotes e artistas. Em certa altura, oClãHuzandeixouaFacçãopeloProgresso,por razõesquenão caramclaraspara todos, exceto para os líderes das famíliasmais importantes, e sobre issopossoapenasespecular.Omeuclã juntou-seaosclãsdaFacçãodaRodaAzul,uma das mais antigas facções no Conselho Supremo. Embora não seja tãopoderosa quanto a Facção Bélica do Senhor da Guerra ou quanto ostradicionalistas da Facção Imperialista, ainda assim possui grande honra ein uência.Háseisanos,quandochegueiaqui,aFacçãodaRodaAzul tinhasejuntadoàFacçãoBélicaparaformaraAliançapelaGuerra.Aquelesque,comonós,seencontravamnasfamíliasdemenorimportâncianãoforaminformadossobreomotivodessamudançaradicaldealinhamento,masnãohaviadúvidadequesetratavadeumaquestãodoJogodoConselho.Minhadesgraçapessoaleminha escravidão foram, certamente,manobras necessárias para garantir queosmembrosdemeuclãpermanecessemacimadequalquersuspeitaatéchegar

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omomento certoparaoquequerque estivesse sendoplanejado.Agora, couevidentequaleraoplano.Desdeocercoaestecastelo,nãoviqualquersinaldesoldadosquepertencessemàs famíliasdaRodaAzul. Julguei que era o mdaAliançaBélica...

—Vocêestáa rmandoqueaorientaçãodestaguerranãopassadeumviésdeumjogopolíticodesseConselhoSupremo?—interrompeuFannon.

—MestredeArmas,seiqueissoédifícildecompreenderparaumhomemtão inabalavelmente leal como você— respondeu Charles.— No entanto, éissomesmo que estou a rmando.Há razões, razões tsurani, para uma guerraassim. O seu mundo é rico em metais, metais que valorizamos bastante emKelewan. Além do mais, a nossa história é sangrenta, e todos os que nãopertencemaTsuranuannidevemsertemidosesubjugados.Senósconseguimosencontrar o seu mundo, vocês não poderiam, um dia, também encontrar onosso? E mais: é uma forma de o Senhor da Guerra ganhar uma enormein uência junto aoConselhoSupremo.Durante séculos, estivemos emguerracomaConfederaçãouril equando,por m, fomos forçadosanos sentaràmesa do tratado, a Facção Bélica perdeu bastante poder. Esta guerra é umaforma de recuperar esse poder perdido. O Imperador raramente dá ordens,permitindoqueoSenhordaGuerragoverne soberanamente,porémoSenhordaGuerranãodeixadeseroLordedeumafamília,oChefedeGuerradeumclã, e, como tal, procura constantemente obter vantagens para o seu povonoJogodoConselho.

Tullypareciafascinado.— Quer dizer que quando a Facção da Roda Azul se juntou à facção do

Senhor da Guerra para, de repente, se retirar, tudo não passou de umestratagemanessejogopolítico,umamanobraparaficaremvantagem?

Charlessorriu.— Faz parte da natureza tsurani, meu bom Padre. O Senhor da Guerra

planejouaprimeiracampanhacommuitocuidado,então,depoisde trêsanos,vê-secomoexércitoreduzidoàmetade.Estáesgotado,incapazdelevarnotíciasdevitórias esmagadorasaoConselhoSupremoeao Imperador.Estáperdendoposiçãoeprestígionojogo.

— Inacreditável! Centenas de homens mortos por uma coisa dessas! —exclamouFannon.

—Assiméo JogodoConselho,MestredeArmas.Almecho, o Senhorda

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Guerra,éumhomemambicioso.Issoéumimperativonecessárioparaocargoqueocupa.Eletemdecon aremoutroshomensambiciosos,sendoquemuitosnão hesitariam em tomar-lhe o lugar, caso vacilasse. Para mantê-los comoaliados em vez de adversários, por vezes ele tem de fazer vista grossa. Noprimeiro ano da guerra, seu subcomandante, um homem chamado Tasio dosMinwanabi,ordenouumataqueaumadasguarniçõeslaMutianas.Alémdesero segundo em comando na invasão a estemundo, Tasio é também primo doLorde Jingu dosMinwanabi. A ordem de ataque foi dada ao Lorde Sezu dosAcoma, inimigo jurado de Jingu.Os soldados dosAcoma forampraticamenteaniquilados até o último homem, incluindo Lorde Sezu e seu lho. Tasiochegoupoucodepois, já tardedemaisparasalvá-los,masa tempode tomarasrédeasdabatalhaedarumavitóriaaoSenhordaGuerra.

OsolhosdeFannonestavamesbugalhadosdeincredulidade.—Nuncaouvifalardeumafalsidadetãosinistra.—Masébrilhante,deacordocomoscritériosdessagente—disseArutha.CharlesconcordoucomumacenodecabeçacomocomentáriodoPríncipe.— O Senhor da Guerra perdoaria Tasio por ter deixado que um de seus

melhorescomandantesfossechacinado,perdendotodooexércitodosAcoma,emtrocadeumavitóriaeumapoioreforçadodosMinwanabi.QualquerLordeRegente sem interesses diretos no jogo aplaudiria a jogada comoumgolpe demestre, mesmo aqueles que admiravam Lorde Sezu. Almecho e Lorde Jinguganharammuitosaliadosnoconselho.Então,comoosadversáriospolíticosdoSenhor da Guerra precisavam encontrar uma forma de bloquear o seu podercrescente, criaram a situação que descrevi, levando à exaustão do Senhor daGuerra e deixando-o incapaz de prosseguir a guerra.Muitas das famílias querondavamaFacçãoBélicaseriamentãoatraídasparaaRodaAzulerespectivosaliadosporteremdesferidoumgolpetãoformidável.

—Contudo, o que nos interessa é que a RodaAzul voltou a se aliar e aoSenhor daGuerra e os seus soldados irão se juntar à guerra quando chegar aprimavera—concluiuArutha.

Charlesolhouparaospresentesnosalãodoconselho.— Não consigo imaginar o que levou a mais uma reorganização no

conselho.Estoumuitoafastadodojogo.Noentanto,comoVossaAltezadisse,oqueinteressaparanós,emCrydee,équepelomenosdezmilnovossoldadospoderãoatacarumadasfrentesnaprimavera.

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Amosfranziuatesta.—Issoéextenuante,semdúvida.Aruthadesdobroumeiadúziadepergaminhos.—Aolongodosúltimosmeses,amaiorpartedevocêsleuestasmensagens.

— Olhou para Tully e Fannon. — Viram o padrão começar a aparecer. —Pegouumpergaminho.—Esteédomeupai:“Incursõesconstantesdostsuranideixamosnossoshomensinquietos.Anossaincapacidadedeatacaroinimigoconferiu um aspecto sombrio a tudo o que fazemos. Temo que nãoconseguiremosvero naldesteassunto...”EsteédoBarãoBellamy:“...aumentode atividade tsurani perto da guarnição de Jonril. Considero aconselhávelaumentar nosso empenho ali durante o inverno, quando os tsuraninormalmenteestãoinativos,paranãoperdermosessaposiçãonaprimavera.”OEscudeiro Roland supervisionará um reforço conjunto de Carse e Tulan emJonrilnesteinverno.

Muitos dos presentes olharam de relance para Roland, que se encontravaempéaoladodeArutha.OPríncipeprosseguiu:

—DeLordeDulanic,MarechaldaCortedeKrondor:“EmboraSuaAltezacompartilhea suapreocupação,existempoucossinaispara justi caroalarme.Amenos que sejam apresentadas provas para fundamentar os seus receios depossíveis ofensivas por parte dos tsurani, aconselhei o Príncipe deKrondor arecusar o seu pedido para que elementos da guarnição krondoriana fossemenviadoscomdestinoàCostaExtrema...”—Aruthaolhouaoredordasala.—Agoraopadrãoéóbvio.

Afastandoospergaminhos,Aruthaapontouparaomapasobreamesa.—Recorremosatodosossoldadosdisponíveis.Nãonosatrevemosaretirar

homens do sul por temermos que os tsurani avancem para Jonril. Com aguarnição reforçada, teremos uma situação estável ali durante algum tempo.Casooinimigoataqueaguarnição,estapoderáserreforçadaapartirdeCarseedeTulan.Casooinimigosedesloquerumoaqualquerumdoscastelos,deixamJonril em sua retaguarda.Contudo, tudo isso falhará se enfraquecermos essasguarnições.Meupaiestáempenhadonumafrenteextensaenãopodedispensarhomens. — Ele olhou para Charles. — Onde você espera que aconteça oataque?

O antigo escravo tsurani examinou o mapa, acabando por encolher osombros.

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—É difícil dizer, Alteza. Caso a situação dependa unicamente deméritosmilitares, o SenhordaGuerradeverá atacar a frentemais fraca, oquepoderásigni caroselfosouaqui.Noentanto,poucodoquesefaznoImpérioéisentodeconsideraçõespolíticas.—Estudouadisposiçãodastropasnomapa,dizendoem seguida:— Se eu fosse o Senhor da Guerra e precisasse de uma simplesvitóriaparareforçaraminhaposiçãonoConselhoSupremo,euatacariaCrydeemais uma vez. Porém, se eu fosse o Senhor daGuerra e aminha posição noConselho Supremo fosse precária, e, por isso, precisasse de um grande feitopara recuperar o prestígio perdido, poderia arriscar uma ofensiva vigorosacontraaprincipalforçadoReino,osexércitossobocomandodoDuqueBorric.Esmagar a força principal do Reino lhe daria in uência no conselho duranteváriosanos.

Fannonrecostou-senacadeiraesuspirou.—Quer dizer que, nesta primavera, enfrentamos a possibilidade de outro

ataque a Crydee, sem podermos recorrer a reforços por temermos umaincursãoemoutrolugar.—Indicouomapacomummovimentoabrangente.—Estamos diante domesmo problema doDuque. Todas as nossas forças estãodistribuídas ao longo da frente tsurani. Os únicos homens disponíveis sãoaqueles de licençaque se encontramnas cidades, umapartemínimado todo.Não podemos manter o exército no campo inde nidamente; até os LordesBorriceBrucalpassamoinvernoemLaMutcomoconde,deixandopequenascompanhiasvigiandoos tsurani.—Acenoucomamãoeprosseguiu:—Estoudivagando.Oque interessa é avisar o seupai o quanto antes,Arutha, sobre apossibilidade de ataque. Caso os tsurani ataquem suas leiras, ele já teráregressado de LaMut, colocando-se em posição e a postos. Mesmo que ostsuranitragamdezmilsoldadosfresquinhos,oDuquepoderáchamaràs leirasmaissoldadosdasguarniçõesremotasdeYabon,oquefazpelomenosdoismil.

—Doismilcontradezmilpareceumagrandedesvantagem—disseAmos,eFannonpareceuinclinadoaconcordar:

—Fazemosoquepodemos.Nãohágarantiasdequeseráobastante.—Pelomenos, os reforços serãoda cavalaria,Mestre deArmas.Osmeus

antigoscamaradascontinuamanãogostardecavalos—disseCharles.Fannonacenoucomacabeçaemconcordância.—Mesmoassim,nãodeixadeserumquadrodesanimador.—Aindarestaumaquestão—disseArutha,segurandoumpergaminho.—

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AmensagemdeLordeDulanicespeci cavaanecessidadedeinformaçõesparaapoiarem o nosso pedido de ajuda. Creio que agora já temos informaçõessuficientesparasatisfazê-lo.

—Bastavaumapequenapartedaguarniçãokrondorianaaquie já teríamosforçapararesistiraumaofensiva.Aindaassim,aestaçãojáestáadiantada,eamensagemteriadeserenviadaimediatamente—comentouFannon.

—Essa é a verdade dos deuses— con rmouAmos.— Saindo esta tarde,mal se conseguiriapassarosEstreitosdasTrevas antesdeo inverno isolá-los.Daquiaduassemanasjáseráimpossível.

— Já pensei no assunto. Acho que a urgência justi ca a minha ida aKrondor—disseArutha.

Fannonendireitou-senacadeira.—Mas,Arutha,vocêéocomandantedoexércitodoDuque.Vocênãopode

abandonaressaresponsabilidade.OPríncipesorriu.— Posso e farei. Sei que você não tem o menor desejo de reassumir o

comandodaquiumavezmais,maséoqueiráacontecer.SefornossaintençãoobteroapoiodeErland,euprópriotereideconvencê-lo.QuandomeupailevoupelaprimeiravezasnotíciasdostsuraniaErlandeaoRei,aprendiosbenefíciosde falar pessoalmente. Erland é um homem cauteloso. Precisarei de toda apersuasãoqueconseguir.

Amosresfolegou.— Com o perdão de Vossa Alteza, como planeja alcançar Krondor? As

partes mais fortes de três exércitos tsurani estão espalhadas daqui até asCidadesLivres,casodecida irporterra.Noporto, temosapenasalgunsnavioscosteiros, e você precisaria de umnavio de águas profundas para uma viagempelomar.

— Ainda resta uma embarcação de águas profundas, Amos. OVento daAurorapermaneceatracadonoporto.

Amosficoudequeixocaído.—OVentodaAurora ?—exclamou,incrédulo.—Alémdodetalhedeser

pouco melhor do que um navio costeiro, foi retirado de serviço durante oinverno. Ouvi o capitão lamentando a carlinga quebrada quando o trapalhãoentrounoportoaossolavancosháummês.Precisasertrazidoaterra,aquilhaprecisaserexaminadaeacarlingatemdesersubstituída.Semessesreparos,a

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quilhanãoaguentaráoembatedas tempestadesde inverno.Maisvaleen aracabeçaemumbarrildeáguadechuva,comoperdãodeVossaAlteza.Morreriadamesmaforma,maspoupariamuitosproblemasparaasoutraspessoas.

Fannon pareceu car irritado com os comentários do marujo, ainda queTully,Martin,RolandeAruthaparecessemsimplesmenteachargraça.

— Quando enviei Martin — disse Arutha —, pensei na possibilidade deprecisardeumnavioparachegaraKrondor.Ordeneiasuareparaçãoháduassemanas. A bordo, encontra-se um grupo de carpinteiros navais. — Fixou oolhar em Amos com um ar interrogativo. — Claro que me disseram que otrabalho não será com a perfeição que seria se o tivessem içado,mas terá deservir.

—Paraandarcostaacimaeabaixo,levadopelasbrisasdaprimavera,talvezsirva.Noentanto,estamosfalandodetempestadesdeinvernoedeatravessarosEstreitosdasTrevas.

—Bem,terádeservir.Partodaquiapoucosdias.AlguémtemdeconvencerErland de que precisamos de ajuda e esse alguém tem de ser eu — a rmouArutha.

Amosrecusou-seadeixaroassuntodelado:—EOscarDanteenconcordouemcapitanearonavioatravésdosEstreitos?—Ainda não o informei acerca do nosso destino— disse o Príncipe em

resposta.Amosabanouacabeça.—Foicomopensei.Essehomemtemocoraçãodeumtubarão,ouseja,não

temcoração,eacoragemdeumaágua-viva,ouseja,nenhuma.Assimquevocêder essa ordem, ele irá cortar sua garganta, jogar o corpo no mar, passar oinverno com os piratas das Ilhas do Ocaso, para depois ir direto às CidadesLivresquandochegaraprimavera.Entãoelevaipediraescribasnatalesesqueredijam uma carta cheia de pesar e oreados ao seu pai, descrevendo a suavalentia antes de cair em altomar enquanto combatiam piratas. Em seguida,passaráumanoesbanjandooouroquevocêlhedeuparaatravessia.

— Mas comprei o navio. Agora sou eu o capitão do navio — informouArutha.

—Donoounão,Príncipeounão,abordodonaviosóexisteumsenhor:ocapitão—explicouAmos.—Eleéreiesumosacerdote,enenhumhomemlhediz o que fazer, a menos que se encontre um novato do porto a bordo, e,

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mesmo assim, commuito respeito. Não, Vossa Alteza não sobreviverá a essaviagemcomOscarDanteennotombadilho.

ComeçaramasurgirtênueslinhasdedivertimentonoscantosdosolhosdeArutha.

—Temoutrasugestão,Capitão?Amossuspirou,voltandoaserecostarnacadeira.— Já que mordi a isca, posso também ser estripado e limpo. Envie uma

mensagem a Danteen para que esvazie o camarote do capitão e dispense atripulação. Arranjarei uma tripulação para substituir aquela cambada dedegoladores, ainda que, nesta época, restem somente bêbados e garotos noporto. Pelo amor dos deuses, não revele a ninguém o nosso rumo. Basta umdaqueles canalhas embriagados saber que pretende arriscar a passagem pelosEstreitos das Trevas nesta época e teremos de colocar toda a guarnição paraprocurartábuassuficientesparatodososdesertores.

—Muitobem—disseArutha.—Deixarei ospreparativos em suasmãos.Zarparemosquandovocêconsideraronaviopronto.—Dirigiu-seaMartindoArco:—Queroquevocêvenhaconoscotambém,MestredeCaça.

MartindoArcopareceuligeiramentesurpreso.—Eu,Alteza?— Quero levar uma testemunha ocular para Lorde Dulanic e para o

Príncipe.Martinfranziuatesta,mas,passadouminstante,disse:—NuncaestiveemKrondor,Alteza.—Emostrouoseusorrisoenigmático.

—Talveznuncamaistenhaoutraoportunidade.

vozdeAmosTraskseelevouacimadosuivosdovento.Rajadasvindasdomarlevavamassuaspalavrasatéosmastros,ondeseencontravaumrapaz

comarconfuso.—Não,marinheirode águadocedesmiolado,não aperte tanto as escotas.

Elasvãozumbircomoascordasdeumalaúde.Nãosãoelasquelevamobarco,paraissoserveomastro.Ascordasajudamquandooventomudadequadrante.— Ficou vendo o garoto ajustar as escotas. — Sim, é isso; não, assim cammuitofolgadas.—Praguejouemvozalta.—Isso,éassim,conseguiu!

TinhaumaexpressãodesgostosaquandoAruthasubiuoportaló.—Garotospescadoresquequeremsermarinheiros.Ebêbados.Ealgunsdos

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velhacosdeDanteenquetivederecontratar.Quebelatripulação,Alteza.—Elesvãoservir?—Ébomquesirvam,outerãodeseacertarcomigo.—Observoucomum

olharcríticoenquantoosmarinheirosrastejavamnasvelasaoalto,veri candotodososnóseencaixes,todasascordaseescotas.—Precisamosdetrintabonshomens. Conto com oito.O resto?Quero atracar emCarse, assim como emTulan,quando formosparao sul.Talvezaí consigamossubstituiros rapazesehomensmenosconfiáveispormarinheirosexperientes.

—EissonãoiráatrasarnossapassagempelosEstreitos?— Se estivéssemos lá hoje, conseguiríamos atravessar.Quando chegarmos

lá, uma tripulação de con ança serámais importante do que chegarmos umasemanamaiscedo.Oinvernonospegaráemcheio.—EleexaminouArutha.—SabeporquechamamaquelapassagemdeEstreitosdasTrevas?

Aruthaencolheuosombros.—Nãoéapenasumasuperstiçãodemarinheiros—respondeuocapitão.—

É uma descrição do que se encontra por lá.— Ficou com um olhar vago aodizer:—Agora,possofalarsobreasdiferentescorrentesdoMarIntermináveledoMarAmargoquese juntamali,ousobreas loucasmarésqueestãosempremudando no inverno, quando as luas se encontram todas na pior posiçãopossível nos céus, ou de como os ventos sopram do norte, levando neve tãodensa que da verga não se consegue ver o convés. E então...Não há palavrasparadescreverosEstreitosno inverno.Navega-seum,dois, trêsdiasàscegas.Se o vento predominante não nos arrastar de volta aoMar Interminável, noslevadeencontroaosrochedosaosul.Ouentãonãosopraamaislevebrisaeonevoeiroobscurecetudoenquanto,ascorrentesnosfazemandaremcírculos.

—Éumquadrodesanimadoroquevocêdescreve,Capitão—disseArutha,comumsorrisotriste.

—Éapenasaverdade.Vocêéumjovemmuitoperspicazedemuitosanguefrio, Alteza. Já o vi resistir quando muitos homens mais experientes teriamsimplesmentecedidoe fugido.Nãoestoutentandoassustá-lo.Eusóqueroqueentenda o que está propondo que façamos. Se há alguém capaz de atravessaraqueles Estreitos no inverno navegando esta banheira, esse alguém é AmosTrask, e não estou apenasme gabando. Já atravessei as estações tão bem emoutras ocasiões que vejo pouca diferença entre outono e inverno, inverno eprimavera.Mas também digo o seguinte: antes de sair de Crydee, despeça-se

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com carinho de sua irmã, escreva a seu pai e a seu irmão e deixe preparadostodosostestamentoseheranças.

Semalteraçãoaparenteemseurosto,Aruthadisse:—Ascartasetestamentosestãoescritos;eueCarlinejantaremossozinhos

hoje.Amosacenoucomacabeça.—Partiremoscomamarédamanhã.Estaembarcaçãoéumnaviocosteiro

de tábuas gastas, de fundo de vime e apodrecido pela água, Alteza, mas vaiservir,nemqueeutenhadecarregá-lanosombros.

Aruthafoiemborae,quandodesapareceudevista,Amosvoltousuaatençãoparaoalto.

—Astalon—invocouoDeusdaJustiça—,souumpecador,éverdade,mas,se temmesmo demedir a justiça, precisava ser assim?—Empaz com o seudestino,Amosregressouàtarefadeverificarseestavatudoemordem.

arlinecaminhavanojardim,ondeas oresmurchandore etiamatristezaque sentia. Roland a contemplava a curta distância, tentando encontrar

palavrasdeconsolo.—Umdia,sereiBarãodeTulan—dissepor m.—Hámaisdenoveanos

quenãovouacasa.TenhodedesceracostacomArutha.—Eusei—retorquiuela,suavemente.Roland viu a resignação estampada no rosto de Carline. Aproximando-se

paraabraçá-la,disse:—EvocêtambémseráBaronesadeláumdia.Elaoabraçoucomforça,depoisseafastou,forçando-seafalardocemente:— Ainda assim, eu esperava que, depois de tantos anos, seu pai tivesse

aprendidoaficarsemvocê.Rolandsorriu.— Ele deve ter ido passar o inverno em Jonril com o Barão Bellamy,

dirigindoaampliaçãodaguarnição.Tereideiremseulugar.Meusirmãosaindasãomuitonovos.Comoostsuraniestãoentrincheiradosduranteoinverno,éanossaúnicachancedeexpandiroforte.

— Pelo menos não tenho de me preocupar com você andando por aípartindoocoraçãodassenhorasdacortedeseupai—disseCarline,comumaserenidadeforçada.

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Eleriu.—Hápoucas chancesde issoacontecer. Já estão reunindomantimentos e

homens e as barcas estão prontas para subir o rio Wyndermeer. Assim queAmosmedeixar emTulan, careiumoudoisdias emcasa,nãomaisdoqueisso, epartirei. Seráum longo invernoem Jonril, semninguémparame fazercompanhiaanãoserossoldadosealgunsagricultoresquevivemnaquelefortedesolado.

Carlinecobriuabocaenquantodavarisadinhas.—Esperoque,quandochegaraprimavera,oseupainãodescubraquevocê

perdeuoseubaronatonojogo.Rolandlhesorriu.—Sentireisaudades.Carlinesegurouasmãosdele.—Eutambém.Eles caram assim como um quadro vivo por algum tempo, até que, de

repente, a fachada de valentia da Princesa quebrou e ela caiu nos braços deRoland.

—Nãodeixequenadaaconteça.Eunãosuportariaperdervocê.— Eu sei— disse Roland, com carinho.— No entanto, você precisa ser

fortediantedosoutros.Fannonprecisarádesuaajudanaconduçãodacorte,evocê será a responsável por toda a casa ducal.Você é a Senhora deCrydee emuitosdependerãodesuaorientação.

Olharamparaosestandartesnasparedes,abanandocomoventode mdetarde.OarestavafrioeRolandenvolveuacapaaoredordosdois.Tremendo,eladisse:

—Volteparamim,Roland.Ternamente,eleafirmou:—Voltarei,Carline.—Tentouafastarumasensaçãofria,gélida,quesurgiu

dentrodesi,emvão.

stavam de pé nas docas, na penumbra damanhã antes do nascer do sol.AruthaeRolandaguardavamjuntoaoportaló.—Tomecontadetudo,MestredeArmas—disseoPríncipe.Fannontinhaamãosobreaespada,aindaorgulhosoeereto,apesardaidade

avançada.

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—Assimofarei,Alteza.Comumlevesorriso,Aruthaacrescentou:— Quando Gardan e Algon regressarem da patrulha, não se esqueça de

instruí-losparaquetomemcontadevocê.OsolhosdeFannonlançavamfaíscasaoretrucar:—Filhoteinsolente!Consigosuperarqualquerhomemdocastelo,menoso

seu pai. Desça do portaló e desembainhe a sua espada e eumostro omotivopeloqualaindausoadivisadeMestredeArmas.

Aruthalevantouasmãos,fingindosuplicar.— Fannon, que bom é voltar a ver essa fúria. Crydee está muito bem

protegidapeloseuMestredeArmas.Fannonavançou,pousandoamãonoombrodohomemmaisnovo.—Tenha cuidado,Arutha.Você sempre foi omeumelhor aluno.Odiaria

perdê-lo.Aruthasorriuafetuosamenteparaoseuvelhoprofessor.—Obrigado,Fannon.—E, comumar sarcástico, acrescentou:—Odiaria

meperdertambém.Euvoltarei.EtrareicomigoossoldadosdeErland.Arutha e Roland subiram o portaló rapidamente, enquanto os que

permaneceramnas docas acenavam emdespedida.Martin doArco aguardavajuntoàamurada,vendooportalóserretiradoeoshomensnocaissoltaremasamarras.AmosTraskgritouordens, e asvelas foramdescidasdasvergas.Aospoucos, o navio se afastou do molhe, entrando no porto. Arutha olhava emsilêncio,ladeadoporRolandeMartin,enquantoasdocasiamficandoparatrás.

—AindabemqueaPrincesadecidiunãovir—comentouRoland.—Achoquenãoaguentariamaisumadespedida.

—Eu entendo— a rmouArutha.—Ela gostamuito de você, Escudeiro,embora eu não consiga entender o motivo. — Roland olhou para ver se oPríncipeestavabrincandoeviuqueAruthamostravaummeiosorriso.—Nãofalei disso antes — prosseguiu o Príncipe —, porém, como pode ser quepassemosmuito tempo semnos vermos depois de você nos deixar emTulan,quesabendoque,quandosurgiraoportunidadeparavocêfalarcommeupai,poderácontarcomasminhaspalavrasdeapoio.

—Obrigado,Arutha.Acidadepassou,envoltaemescuridão,substituídapelocaminhoatéofarol.

A falsa aurora penetrava ligeiramente pela penumbra, lançando para todos os

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ladostonscinzentosenegros.Passadoalgumtempo,noquadranteaestibordo,apareceuaamplaformasobressaídadosRochedosGuardiões.

Amos ordenou que virassem o leme para sudoeste, dandomais pano paranavegaremcomoventodepopa.OnavioganhouvelocidadeeAruthaouviuasgaivotasacimadeles.Derepente,percebeuquejánãoestavammaisemCrydee.Sentiuumarrepioeaconchegou-secomacapa.

rutha estava no tombadilho superior, de espada namão, comMartin aoseu lado, colocando uma echa na corda do arco. Amos Trask e o seu

primeiro imediato, Vasco, também tinham armas prontas. Seis marinheirosenraivecidosestavamreunidosnoconvésabaixo,enquantoorestodatripulaçãoassistiaaoconfronto.

Doconvés,ummarinheirogritou:— Você mentiu, Capitão. Você não virou para o norte, rumo a Crydee,

comodisseemTulan.AmenosquevocêqueiranavegaratéElarial,nãohámaisnadaaosul,tirandoosEstreitos.VocêquerpassarosEstreitosdasTrevas?

—Maldito seja, homem—vociferouAmos.—Vocêquestiona asminhasordens?

— Sim, Capitão. A tradição diz que não há acordo válido entre capitão etripulação para a travessia dos Estreitos no inverno, a menos que tivéssemosconcordado.Vocêmentiu,porissonãosomosobrigadosaseguir.

AruthaouviuAmosdizerentredentes:— Ummaldito advogado do mar. — Dirigiu-se ao marinheiro: —Muito

bem — e passou o seu cutelo para Vasco. Desceu a escada até o convésprincipaleaproximou-sedomarujocomumsorrisoamávelnorosto.

—Escutem,rapazes—começouaochegarpertodosseismarujosrebeldes,que seguravam malaguetas ou passadores para cabos. — Vou ser franco. OPríncipe tem de chegar a Krondor ou será o inferno quando a primaverachegar.Ostsuraniestãoreunindoumagrandeforçamilitar,quepoderáatacarCrydee. — Pousou a mão no ombro do marinheiro que falara, dizendo: —Assim,tudoseresumeaoseguinte:temosdenavegaratéKrondor.—Comummovimento rápido,Amos coucomobraço emvoltadopescoçodohomem.Correu até à amurada e lançou o homem indefeso borda afora. — Se nãoqueremnosacompanhar—gritou—,podemvoltaraTulananado!

Outro marinheiro começou a avançar para Amos, quando uma echa

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atingiuoconvésaseuspés.EleolhouparacimaeviuMartinmirando.—Eunãofariaisso,sefossevocê—advertiuoMestredeCaça.O homem largou o passador de cabos e recuou. Amos se virou para os

marinheiros:—Quandoeuchegaraotombadilho,esperoquejáestejamnocordame,ou

naágua,nãofazdiferença.Qualquerhomemquenãofaçaoseutrabalhoseráenforcadocomoocãoamotinadoqueé.

Ouviram-se os débeis gritos de socorro do homem que se encontrava naáguaenquantoAmosregressavaaotombadilho.

—Atireumacordaàqueleimbecile,seelenãoseacalmar,jogue-ooutravezaomar.—disseaVascoeaosdemaisgritou:—Velasatodoopano!RumoaosEstreitosdasTrevas.

ruthapiscouparaafastaraáguasalgadadosolhosesegurou-secomtodaaforçadeseuseràcorda.Outraondabateunocostadodonavio,voltandoa

cegá-lo.Foiagarradopormãosfortese,naescuridão,ouviuavozdeMartin:—Vocêestábem?OPríncipe,cuspindoágua,gritou:—Estou.—Econtinuouemdireçãoaotombadilho,comMartinlogoatrás.O Vento da Aurora arfava e oscilava debaixo de seus pés, fazendo-o

escorregarduas vezes antes de alcançar a escada.Todoonavio fora equipadocom cordas de segurança, pois no mar revolto era impossível manter oequilíbriosemumpontodeapoio.

Aruthaiçou-sepelaescadaatéotombadilhoeandoutropeçandoatéchegara Amos Trask. O capitão aguardava ao lado do timoneiro, emprestando seupesoàenormecanadolemesemprequeerapreciso.Pareciaqueestavapregadoàmadeiradoconvés,ospésmuitoafastados,mudandoopesodocorpoacadabalanço do navio, olhos postos na escuridão à sua frente. Ele observava,escutava;todosossentidosajustadosaoritmodaembarcação.Aruthasabiaqueohomemnãodormiahádoisdiaseumanoite,etambémgrandepartedaquelanoite.

—Aindafaltamuito?—gritouArutha.—Umdia,dois,quemsabe?—Umestalovindodecimasooucomoogelo

daprimaveraquebrandonorioCrydee.—Tudoabombordo!—gritouAmos,apoiando-se com força na cana do leme. Quando o navio se inclinou, gritou

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para Arutha: — Mais um dia com estes ventos amaldiçoados pelos deusescastigandoonavioe teremos sorte se conseguirmosvirar e fugirdevoltaparaTulan.

Tinham saído de Tulan há nove dias, sendo que os últimos três forampassados na tempestade. A embarcação havia sido implacavelmente açoitadapor ondas e rajadas de vento e, por três vezes, Amos teve de ir ao porãoinspecionar o conserto da carlinga. O capitão calculava que estivessemavançando para oeste dos Estreitos, mas só poderia garantir quando atempestadeamainasse.Outraondabateunonavio,fazendo-oestremecer.

—Aberturanatempestade—ouviu-seumgritodecima.—Onde?—bradouAmos.—Aestibordo!—Virar!—ordenouAmos,eotimoneiroinclinou-senacanadoleme.Arutha forçou a vista por causa dos respingos de água salgada que faziam

arder seus olhos e avistou um brilho fraco que parecia balançar até que seimobilizoudo ladodireitodaproa.Começouaaumentarenquantoavançavamparaaáreaondepareciahaverumaabertura.Comoseestivessemsaindodeumquarto escuro, passaramda escuridão para a claridade.O céu parecia se abriracimadeles,deixando-osdiantedeumazulcinzento.Asondasaindaestavammuito altas,masAruthapressentiuque,por m,o tempomudara.Olhouporcimadoombroeviuamassanegradatempestadeseafastando.

As ondas pareciam mais calmas a cada momento e, depois do clamorviolento da tempestade, o mar pareceu subitamente silencioso. O céu estavacadavezmaisclaro.

— Já é demanhã—disseAmos.—Devo ter perdido a noção do tempo,acheiqueaindafossedenoite.

Arutha observou a tempestade que se afastava, vendo-a perfeitamentedelineada:umamassaagitadade escuridãoemcontraste comocinzentomaisclarodocéuquesobreeles.Ocinzalogosetornouumazulcarregado,passandoemseguidaparaumazulacinzentadoàmedidaqueosolmatinalatravessavaasnuvens.Durantequaseumahora,Arutha contemplouo espetáculo, enquantoAmosdavaordensaseushomens,mandandoosque zeramoturnodanoiteparabaixoemandandosubirosquetrabalhariamduranteamanhã.

Atempestadedirigiu-separaoleste,deixandoparatrásummaragitado.OtempopareciaterparadoenquantoAruthacontemplava,impressionado,acena

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no horizonte. Uma parcela da tormenta parecia ter parado, entre faixasdistantesde terra.Enormes esguichosde água rodopiavamentre os limites dapassagem estreita a distância. Parecia que umamassa de nuvens carregadas eemebuliçãoficaraconfinadaàquelaáreaporumaforçasobrenatural.

—OsEstreitosdasTrevas—esclareceuAmosTraskjuntoaoseuombro.—Quandoiremosatravessá-los?—perguntouAruthacalmamente.— Agora — respondeu o Capitão. Em seguida, virou-se, gritando: —

Marujos, aos mastros! O turno da tarde deve estar a postos para começar atrabalhar!Timoneiro,rumaremosparaleste!

Enquanto alguns homens subiam o cordame, outros apareciam de baixo,com ar exausto, revelando o pouco proveito tirado das parcas horas de sonodesdeo turno anterior.Arutha afastouo capuzde sua capa, sentindoo ventocortantebateremseucabelomolhado.Amosoagarroupelobraçoedisse:

—Podemos esperar semanas sem voltar a ter um vento favorável. Aquelatempestade foiumabênçãodisfarçada,poisnosproporcionaráumbom iníciodetravessia.

Arutha olhava fascinado enquanto avançavam para os Estreitos. Umfenômeno conjunto do tempo e das correntes criara as condições quemantinham os Estreitos em uma escuridão coberta pela água ao longo doinverno. Com bom tempo, era difícil passar os Estreitos, pois, emboraparecessem amplos na maior parte dos pontos, rochedos perigosos seescondiam abaixo da superfície em diversos trechos mais críticos. Em diastempestuosos, eram considerados impossíveis de superar pela maioria doscapitães. Torrentes de água ou saraivadas de neve sopradas dos picos maismeridionaisdasTorresCinzentas tentavamcair, sendoapanhadaspor rajadasde vento e lançadas de novo para cima, para, uma vez mais, tentarem cair.Trombas de água lançadas para cima surgiam de repente, rodopiandofuriosamente durante minutos, para, em seguida, se dispersarem emdeslumbrantes cascatas. Relâmpagos irregulares estouravam, seguidos portrovões ensurdecedores, enquanto toda a fúria da colisão de climas eralibertada.

—Amaréestáalta—berrouAmos.—Issoébom.Teremosmais espaçoparapassarpelosrochedosenãodemoraremosaatravessarouasermosfeitosempedaços.Seoventosemantivercomoestá,estaremosdooutro ladoantesdofinaldodia.

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—Oquepoderáacontecerseoventomudar?—Émelhornãopensarmosnisso!Avançaram a grande velocidade, atirando-se à orla do temporal em

torvelinho dentro dos Estreitos. O navio estremeceu, como se relutasse emvoltar a enfrentar o mau tempo. Arutha se agarrou com força à amuradaquandoonaviocomeçoua saltar e aoscilar.Amosescolhia criteriosamenteocaminho, evitando as repentinas rajadas instáveis, mantendo o navio na rotaoestedaborrascaultrapassada.

A luz sumiu por completo. O navio era iluminado somente pelas luzesoscilantes das lanternas de tempestade, que lançavam lampejos vacilantes deluzesamarelasnaescuridão.Oestrondodistantedasondasnas rochasecoavadetodososlados,confundindoossentidos.

— Vamos car no centro da passagem — gritou Amos para Arutha. Seresvalarmos em um dos lados ou se virarmos, arrebentaremos o casco nosrochedos.—AruthaacenoucomacabeçaindicandoqueentenderaeoCapitãobradouinstruçõesàtripulação.

Arutha avançou comdi culdade até a amurada da frente do tombadilho egritou porMartin.OMestre deCaça respondeu do convés embaixo, dizendoqueestavabem,aindaqueencharcado.Aruthasegurou-secomforçaquandoonaviomergulhouemumadepressão,subindologodepoisaoencontraracristade uma onda. Durante o que pareceram minutos, o navio subiu com muitoesforço,cadavezmais,atéque,derepente,aáguapassoupelaproaevoltaramasubmergir. A amurada se tornou o único contato com ummundo sólido nomeiodeumcaosfrioemolhado.AsmãosdeAruthadoíamcomoesforçodeseagarrar.

Passaram-se horas em uma fúria cacofônica, enquanto Amos guiava suatripulação para reagir a todos os desa os do vento e da maré. Por vezes, aescuridãoerapontuadapeloclarãoofuscantedeumrelâmpago,de nindotodososdetalhesedeixandoresplandecentesimagensresiduaisnaobscuridade.

Comumsolavancorepentino,onaviopareceudeslizarparaolado,eAruthasentiuochão fugirquandoaembarcaçãocomeçoua se inclinar.Agarrou-seàamurada com todas as suas forças, incapaz de ouvir qualquer coisa devido aoranger gigantesco. A embarcação se endireitou sozinha. Arutha arrastou-se eviu, à luz vacilante das lanternas de tempestade, a cana do leme girandodescontroladamentedeum ladopara outro, e o timoneiro caídono convés, o

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rosto escurecido pelo sangue que escorria de sua boca aberta. Amos,desesperado, tentava permanecer em pé a todo custo, procurando alcançar oleme descontrolado. Arriscando-se a quebrar algumas costelas ao agarrá-lo,lutoudesesperadamenteparaaguentarevoltaracontrolaronavio.

Aruthacambaleouaté lá, atirandoo seupesoparacimado leme.Ouviu-seumleverangerprolongadovindodeestibordoeobarcovibrou.

—Vire, sua cadela bastarda!—berrouAmospor cimado leme, reunindotodasasforçasquelherestavam.OsmúsculosdeAruthaprotestaramdedornatentativa de forçar o aparentemente imóvel leme. Devagar, ele começou a semexer, primeiro um centímetro, depois dois.O rangido começou a aumentaratéAruthasentirumzumbidonosouvidos.

Subitamente, o leme voltou a se soltar, girando livremente. Arutha sedesequilibrouefoi lançadopeloconvés.Caiunamadeiradura,deslizandopelasuperfície molhada até bater na amurada, arquejando quando o ar saiu dospulmõesemumaexplosão.Foicobertoporumaondae,emseguida,cuspiuatébotarparaforaumagolfadadeáguasalgada.Vacilante,levantou-seecambaleoudevoltaaoleme.

Na luz fraca, o rosto de Amos estava branco devido ao esforço, emboraestivesse de olhos arregalados e mostrasse uma expressão enlouquecidaenquantoria.

—Porummomento,acheiquevocêtinhacaídodonavio.Arutha se encostou no leme e, juntos, forçaram-no uma vez mais. As

gargalhadasloucasdeAmosressoavameAruthaquestionou:—Oqueétãoengraçadoassim?—Olhe!Ofegante, Arutha olhou para onde Amos indicava. Na escuridão, avistou

gigantescassilhuetasseerguendoaoladodonavio,formasaindamaisnegrasdoqueaescuridão.

—Estamos passando pelosGrandes Rochedos do Sul!— gritouAmos.—Força,PríncipedeCrydee!Força,sequerverterrafirmedenovo!

Aruthaiçou-separacimadoleme,forçandoonavioteimosoaseafastardoterrível abraçodepedraapoucosmetrosdedistância.Voltoua sentironavioestremecendoaomesmo tempoqueouviaocascoranger.Amosdeugritosdeincentivo.

—Ficareimuitosurpresoseestabarcaaindativercascoquandochegarmos

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aooutrolado.Aruthasentiunasentranhasumadolorosapontadadepânico, logoseguida

porumaeuforiainusitada.Viu-setomadoporumasensaçãoindescritível,quasealegre,enquantotentavamanteronavionarotacerta.Ouviuumsomestranhonomeiodacacofonia,edescobriuqueestavarindocomAmos, rindoda fúriaqueexplodiaaoseuredor.Nadamaishaviaatemer.Resistiriaounão.Naquelemomento,não importava.Tudooque lhe restava fazer era se entregar aumaúnica tarefa: manter o navio em um rumo que permitisse evitar as rochasirregulares.Todooseuserriadepavor,regozijando-seporserreduzidoàquelenívelinferiordeexistência,àqueleestadoprimitivodoser.Nadaexistiaalémdanecessidadederealizarestaúnicaação,daqualtudodependia.

Arutha entrou em um novo estado de consciência. Segundos, minutos,horas perderam todo o sentido. Juntamente comAmos, lutou paramanter onaviosobcontrole,emboraosseussentidosregistrassememdetalhetudoàsuavolta. Através do couro molhado das luvas, sentia a textura da madeira. Otecido das meias estava amontoado entre os dedos dos pés dentro das botasensopadas.Oventotraziacheirodemaresiaealcatrão,gorrosdelãmolhadoselona ensopada pela chuva. Ouvia com nitidez cada rangido da madeira, cadaroçardecordaecadagritodoshomenslánoalto.Emseurosto,sentiaovento,o toquegélidodenevederretendo, a águadomar, e riu.Nunca se sentira tãopróximo da morte e nunca se sentira tão vivo. De músculos contraídos,enfrentavaforçasprimitivaseformidáveis.Eassimprosseguiram,mergulhandocadavezmaisnafúriadosEstreitosdasTrevas.

AruthaouviuAmosbradandoordens,orquestrandoosmovimentosdecadahomem a cada segundo. Dirigia sua embarcação como um mestre músicotocava o seu alaúde, sentindo cada vibração e som, empenhando-se emconseguiraharmoniademovimentosquemantinhaoVentodaAuroranarotaseguraatravésdas águasperigosas.A tripulação respondiade imediatoa todasas exigências, arriscando a morte no cordame traiçoeiro, pois sabiam que asegurançadatravessiadependiasomentedaperíciadaquelehomem.

Até que acabou. Em um segundo, estavam se debatendo com uma forçaloucaparanãobaternosrochedoseatravessarafúriadosEstreitos,nosegundoseguinte navegavam com uma brisa rme de popa, deixando para trás aescuridão.

Mais à frente, o céu estava nublado; no entanto, a tempestade que os

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detivera ao longo de vários dias não passava de um negrume no horizonte aleste. Arutha olhou para suas mãos, como se não lhe pertencessem,convencendo-as a largar o leme. Ao desfalecer, marinheiros correram parasegurá-lo, levando-o para o convés. Por algum tempo, o Príncipe sentiu tudogirandoàsuavolta,atéqueviuAmossentando-seumpoucoafastado,quandoVasco pegou o leme. O rosto de Amos aindamantinha um ar jovial quandodisse:

—Conseguimos,rapaz.EstamosnoMarAmargo.Aruthaolhouemvolta.—Masporqueaindaestátãoescuro?Amosriu.—Osolestáquasesepondo.Estivemosporhorasnaqueleleme.Arutha também começou a rir. Jamais conhecera tamanha alegria. Deu

gargalhadas até sentir lágrimas de cansaço escorrerem pelo rosto e dores nopeito.Amosaproximou-se,quaserastejando.

—Vocêsabeoqueérirdamorte,Arutha.Nuncamaisvocêseráomesmo.Arutharecobrouofôlego.—Poruminstante,julgueiquevocêtinhaenlouquecido.Amospegouumodredevinhoqueummarujo lheofereceuedeuumgole

demorado.Passou-oparaArutha,dizendo:— Sim, assim como você. É algo que poucos experimentam ao longo da

vida. Trata-se de uma visão de algo tão nítido, tão genuíno, que só pode serloucura.Vocêvêovalordavidaeconheceosignificadodamorte.

Arutha levantouoolharparaomarujo juntodeleseviuqueeraohomemqueAmostinhaatiradoaomarporlideraromotim.Vascofezcarafeia,masohomemnãosemexeu.Amosolhouparaeleeohomemdisse:

— Capitão, eu só queria dizer... que estava enganado. Mesmo depois detreze anos como marinheiro, eu teria apostado a minha alma contra Lins-Kragmaquenãoexistia capitãoquepudesse levarumaembarcaçãocomoestapelosEstreitos.—Baixandoosolhos,prosseguiu:—Debomgrado,entregoasminhas costas ao chicotepeloque z,Capitão.Masdepois irei acompanhá-loaté aos Sete Infernos Inferiores, assim como qualquer outro homem aquipresente.

Aruthaolhouaoredoreviuoutrosmarinheirossejuntaremnotombadilhoeosqueseencontravamnocordameolharemparabaixo.Ouviram-segritosde

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“VivaoCapitão”e“Elefalaaverdade”.Amoslevantou-secomdi culdade,apoiando-senaamurada,comaspernas

umpoucofracas.Passouemrevistaoshomensreunidosegritou:— Turno da noite para cima! Turno da tarde e turno da manhã podem

descer.—Virou-se paraVasco.—Veri que os danos no casco lá embaixo edepoisverifiqueacozinha.VamosrumoaKrondor!

ruthaacordouemsuacabine.MartindoArcoestavasentadoaseulado.—Tome.—OMestredeCaçaseguravaumacaneca fumegantedecaldo

decarne.Aruthaapoiou-senocotoveloeseucorpomachucadoecansadoprotestou.

Deuumgolenocaldoescaldante.—Háquantotempoestoudormindo?—Você adormeceu ontem à noite no convés, assim que o sol se pôs.Ou

desmaiou, para dizer a verdade. Já se passaram três horas desde que o solnasceu.

—Comoestáotempo?—Amenoou,pelomenos,semtempestade.Amosjávoltouaoconvés.Ele

achaqueonavioconseguiráaguentarorestodaviagem.Osdanosembaixonãosãograves; carátudobemsenãotivermosdeenfrentaroutrotemporal.Aindaassim, Amos diz que existem alguns bons ancoradouros ao longo da costakeshiana,casosejanecessário.

Arutha ergueu-se do beliche, vestiu a capa e subiu ao convés. Martin oseguiu.Amos estava ao leme, estudando a forma como a vela se comportava.BaixouosolhosenquantoAruthaeMartinsubiamaescadaparaotombadilho.Porummomento,examinouadupla,comoseestivesseremoendoumououtropensamento.SorriuquandoAruthalheperguntou:

—Comoestamos?— Temos navegado com ventos favoráveis; tem sido assim desde que

passamos os Estreitos. Caso se mantenham a noroeste, devemos chegardepressa a Krondor. No entanto, os ventos raramente se mantêm, por issodevemosdemorarmaisumpouco—disseAmos.

—Navioàvista!—gritouumasentinela.—Onde?—bradouAmos.—Doispontosàré!

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Amosestudouohorizonteelogosurgiramtrêsminúsculospontosbrancos.—Quetipodeembarcação?—gritouaovigia.—Galés,Capitão!Amosrefletiuemvozalta:—Queguianos.Estamosmuitoaosulparaaspatrulhasdeles,seforemnaves

de guerra, e nãome parece que sejamnaviosmercantes.—Deu ordens paradaremmais pano nas vergas. — Se o vento se mantiver, já estaremos longeantesquenosalcancem.Sãobarcosdecascoachatado,lentosparavelejaseosremadoresnãoconseguirãomanteravelocidadecomestadistância.

Fascinado,Aruthaobservouosbarcoscresceremnohorizonte.Agalémaispróximavirouparainterceptá-lose,passadoalgumtempo,conseguiudistinguirseucontornopesado,develasmajestosas acimadeumaproa elevadaedeumconvés à popa. Arutha podia ver o movimento dos remos, três conjuntos decada lado, enquanto o capitão tentava uma rápida arrancada para ganharvelocidade. Contudo, Amos estava certo e não tardou para que a galé cassepara trás. Àmedida que a distância aumentava aos poucos entre oVento daAuroraeasgalés,Aruthaconfirmou:

— Estavam usando o estandarte real de Queg. O que galés de guerraqueguianasestãofazendotãoaosul?

— Só os deuses sabem — respondeu Amos. — Pode ser que andem àprocura de piratas ou podem estar vigiando os navios keshianos que desviampara o norte. É difícil dizer.Queg age como se todo oMarAmargo fosse seulago particular. Eu não me importaria de car sem saber o que eles estãotramando.

OrestododiapassousemincidenteseAruthaaproveitouosentimentodealívio apósosperigosdosdias anteriores.Anoite trouxeumavisãonítidadasestrelas. O Príncipe passou várias horas no convés estudando a miríadebrilhante no rmamento. Martin chegou e o encontrou olhando para cima.Aruthaoouviuchegandoedisse:

— Kulgan e Tully dizem que as estrelas são sóis como o nosso, queaparentamserpequenasporcausadasenormesdistâncias.

—Éumaideiaincrível,masachoqueestãocertos—respondeuMartin.—Vocêjápensouqueemumadelaspodeestaromundodostsurani?Martinencostou-seàamurada.—Muitasvezes,Alteza.Nascolinastambémépossívelverbemasestrelas,

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quando as fogueiras se apagam. Sem as luzes da cidade ou do castelo paraatrapalhar,reluzemnocéu.Eutambémjápenseiqueemumadelas,talvez,vivenossoinimigo.Charlescontouqueosoldelesémaisbrilhantedoqueonossoeque,porisso,omundodelesémaisquente.

—Pareceimpossível.Travarumaguerraatravésdetamanhovaziodesa aalógica.

Ficaram em silêncio, contemplando juntos a glória da noite, ignorando oventogeladoqueoslevavaaKrondor.Aoouvirempassos,seviraramaomesmotempoeAmosTrask surgiu.Hesitouporum instante,observandoos rostos àsuafrente,eacabousejuntandoaelesnaamurada.

—Contemplandoasestrelas?NinguémrespondeueTraskobservouorastrodonavioedepoisocéu.— Não há lugar como o mar, meus senhores. Aqueles que vivem a vida

inteira em terra nunca conseguirão entender de verdade.Omar é elementar,por vezes cruel, outras vezes dócil,mas nunca previsível.Contudo, emnoitescomo esta, agradeço aos deuses por terem permitido que eu me tornassemarinheiro.

—Etambémumpoucofilósofo—comentouArutha.Amossoltouumarisada.—Peguemqualquermarinheirodeáguasprofundasquetenhaenfrentadoa

morte no mar tantas vezes quanto eu e raspem um pouco. Por baixo,encontrará um lósofo, Vossa Alteza. Nada de oreados, garanto, mas umsentidoprofundoeduradourodeseulugarnomundo.Aoraçãomaisantigademarinheirosqueseconheceédirigidaa Ishap:“Ishap,vossomarégrandeeomeubarcoépequeno;tendepiedadedemim.”Issoresumetudo.

— Quando eu era menino, entre as grandes árvores, conheci essassensações.Ficaraoladodotroncodeumaárvoretãoantiga,oumais,doqueamais antiga das lembranças dos homens também dá essa ideia de lugar nomundo — comentou Martin calmamente, quase para si mesmo. Aruthaespreguiçou-se.

—Jáé tarde.Umaboanoiteparavocês.—Quandocomeçoua seafastar,pareceu impedido por um pensamento. — Não sou dado às suas loso as,mas…estoufelizdeterdivididoestajornadacomosdois.

DepoisdeAruthaserecolher,Martincontemplouasestrelasdurantemuitotempo, e acabou notando que Amos o examinava. Virou-se para o marujo,

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dizendo:—Vocêparecepensativo,Amos.—Pois é,MestreMartindoArco.Passaram-se quase sete anosdesde que

chegueiaCrydee—disseele,apoiando-senaamurada.—Algomedeuoquepensardesdeaprimeiravezemqueoencontrei.

—Doquesetrata,Amos?— Você é um homem misterioso, Martin. Há muitas coisas em minha

própriavidaquenãogostariaderelataragora,mascomvocêédiferente.Martin parecia indiferente quanto ao rumo da conversa, ainda que tivesse

estreitadoligeiramenteosolhos.—EmCrydee,sabe-sepraticamentetudosobremim.—Verdade,maséesse“praticamente”quemepreocupa.—Descanse a cabeça,Amos. Eu sou apenas oMestre deCaça doDuque,

nadamais.—Achoquevocêé,sim,algomais,Martin—disseAmoscomserenidade.

—Emminhas viagens pela cidade, quando orientava a reconstrução, conhecimuitagentee, emseteanos, forammuitasas fofocasqueouvi sobrevocê.Háalgum tempo, juntei todas as peças e cheguei a uma conclusão. Ela explica omodocomoovejomudardeatitude, sóumpouco,maséperceptível,quandovocêestápertodeAruthaeespecialmentedaPrincesaCarline.

Martinriu.—Você criou um velho conto de bardos, Amos. Acha que sou um pobre

caçador, desesperado pelo amor de uma jovem Princesa? Acha que estouapaixonadoporCarline?

—Não—respondeuAmos—,masnãotenhodúvidasdequevocêaama.Comoumirmãoamaasuairmã.

Martin já tinha a faca semidesembainhada quando a mão de Amos lheprendeuopulso.Omarujocorpulentooprendeucomforça,impedindoMartindemexerobraço.

—Controle sua raiva,Martin.Não gostaria de ter de jogá-lo nomar paravocêesfriarosânimos.

Martin parou de se debater e largou a faca, deixando-a deslizar de volta àbainha. Amos aguardou um momento até largar o pulso do caçador. Poucodepois,Martindisse:

—Elanãosabe,nemosirmãosdela.Atéagora,acheiquesóoDuqueemais

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umaouduaspessoassoubessem.Comovocêdescobriu?—Não foi difícil— explicou oCapitão.—Normalmente, as pessoas não

veemoqueestánafrentedeseusolhos.—Amosseviroueolhouparaasvelasnoalto,verificandodemododistraídocadadetalhedoequipamentodonavioaomesmotempoquefalava.—EuvioretratodoDuquenograndesalão.Sevocêdeixasseabarbacrescercomoadele,asemelhançaseriagritanteetodomundoperceberia.Todos comentam comoArutha, como passar dos anos, está cadavezmenosparecidocomamãeecadavezmaiscompai,eeu,desdeaprimeiravezqueosvi, coincomodadoporninguémrepararqueeletambémseparececomvocê.Achoquenãoreparamporquenãoquerem.Explicamuitacoisa:porque você ganhou a proteção especial do Duque ao ser colocado com o velhoMestre de Caça e por que você foi escolhido para substituí-lo quando foipreciso.Eu jádescon avaháalgumtempo,masestanoite tiveacon rmação.Quandosubidoconvés inferioreestavamosdoisdecostasnapenumbra,porummomentonãoconseguidistingui-los.

Martinfalousememoção,limitando-seaconstatarumfato:—Vocêpagarácomavidasecontarissoaalguém.Amosencostou-seàamurada.—Nãoéprudentemeameaçar,MartindoArco.—Éumaquestãodehonra.Amoscruzouosbraçosàfrentedopeito.— Lorde Borric não é o primeiro nobre a gerar um bastardo, nem será o

último.Muitos até recebem cargos o ciais e ascendem socialmente.Qual é operigoparaahonradoDuquedeCrydee?

Martinagarrouaamurada,semelhanteaumaestátuanaescuridão.Assuaspalavraspareciamvirdelonge:

—Nãosetratadahonradele,Capitão.Trata-sedaminha.—Virou-separaAmose,na luzdanoite, seusolhospareciamvivoscomumbrilho interioraore etirem a lanterna pendurada atrás domarinheiro.—ODuque conhece aminha origem e, por seus próprios motivos, decidiu me levar para Crydeequandoeueraaindamuitopequeno.EstoucertodequeoPadreTullysabe,poisoDuque con amuito nele, e Kulgan deve saber também.Contudo, nenhumdelesdesconfiadequeseiaverdade.Achamqueignoroaminhaherança.

Amosafagouabarba.— Um problema delicado, Martin. Segredos dentro de segredos e coisas

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assim.Bom,vocêtemaminhapalavra,pelaamizadeenãopelaameaça,dequenão falarei disso a ninguém, a não ser com a sua permissão. Ainda assim, seavalieibemArutha,seriamelhorqueelesoubessedoqueficarnaignorância.

— A decisão é minha, Amos, e de mais ninguém. Talvez um dia eu lheconte.Talveznão.

Amosafastou-sedaamuradacomumempurrão.—Aindatenhomuitoquefazerantesdemerecolher,Martin,maslhedigo

maisumacoisa.Vocêescolheuumcaminhosolitário.Nãoinvejoasuajornada.Boanoite.

— Boa noite. — Quando Amos regressou ao tombadilho, Martin coucontemplando as estrelas familiares no céu. Todas as companheiras de suasviagenssolitáriaspelascolinasdeCrydeeoolhavamládoalto.Asconstelaçõescintilavamnanoite,aFeraCaçadoraeoCãodeCaça,oDragão,oKrakeneasCinco Joias. Desviou a atenção para o mar, tando o negrume, perdido empensamentosqueachavaqueestivessementerradosparasempre.

erraàvista!—gritouovigia.—Paraquelado?—questionouAmos.

—Diretoàfrente,Capitão.Arutha,MartineAmossaíramdotombadilhoeavançaramrapidamenteaté

aproa.Enquantoaguardavamqueseavistasseterra,Amosdisse:— Não sentem o navio tremendo sempre que quebramos uma onda? É

aquelacarlinga,seeuseicomoéfeitoumnavio,eeusei.EmKrondor,teremosdeatracaremumestaleiro,paraconsertarocasco.

Arutha tavaaestreita faixade terraadistânciaque iaganhandonitidezàluz vespertina. Ainda que o sol não brilhasse, pois o céu estava ligeiramentenublado,odiaestavabastanteagradável.

— Devemos ter tempo para isso. Quero voltar a Crydee assim queconvencerErlanddo riscoque corremos,porém,mesmoque ele concordedeimediato,aindalevaráalgumtempoparareunirsoldadosenavios.

— Particularmente, eu não me importo de voltar a passar pelos Estreitosquandootempoestivermaisameno—disseMartin,seco.

—Homem de coração fraco. Você já passou da pior maneira. Ir à CostaExtremaemplenoinvernoésóumpoucosuicida—disseAmos.

Arutha esperou em silêncio enquanto a terra avistada começava a ganhar

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contornosmaisdefinidos.Emmenosdeumahora,conseguiamvernitidamenteos barcos ancorados no porto e as torres deKrondor que se elevavampara océu.

—Bem—disseAmos—,sevocêdesejaumarecepçãodeEstado,émelhorhastearoseuestandartenomastro.

Aruthaodeteve,dizendo:—Espere,Amos.Vêaquelenaviojuntoàentradadoporto?Enquantoseaproximavam,Amosestudouonavioindicado.—Éumraiodeummonstro.Olheparaotamanhodaquilo.OPríncipeestá

construindoumamaldita vista aindamaiordoque aúltimavezque estive emKrondor.Temtrêsmastroseestáaparelhadoparatrintaoumaisvelas,dagibaà vela da ré. Pelos traços do casco, é um autêntico galgo, sem dúvida. Nãogostaria nada de enfrentá-lo com menos do que três galés queguianas. Osremadores seriam imprescindíveis, pois, levando em conta aquelas bestasgigantescasmontadasnaproaenapopa,empoucotempofariampicadinhodocordame.Agora sabemos o que aquelas galés queguianas estavam fazendo tãolonge de casa. Se o Reino anda levando esses navios de guerra para o MarAmargo,Queg...

—Reparenoestandarte,Amos—interrompeuArutha.Quandoentraramnoporto,passaramjuntoàembarcação.Naproa,estava

pintadoonome:GrifoReal.Amosafirmou:— É um navio de guerra do Reino, sem sombra de dúvida,mas nunca vi

nenhumcomoutroestandarteanãoserodeKrondor.—Notopodomastromaisalto,agitava-senabrisaumestandarteornadocomobrasãodeumaáguiadourada.—Achei que conhecia todos os estandartes que navegavamnoMarAmargo,masaqueleénovidadeparamim.

— É o mesmo estandarte que se vê por cima das docas, Arutha— disseMartin,apontandoemdireçãoàcidadedistante.

—Aquele estandarte jamais foi visto antes noMarAmargo—declarou oPríncipeemvozbaixa,eganhouumaexpressãosinistraaodizer:—Atéqueeudigaocontrário,somosmercadoresnatalesesenãomaisdoqueisso.

—Aquempertenceaqueleestandarte?—questionouAmos.— Trata-se do estandarte da segunda casa mais antiga do Reino —

respondeu Arutha, agarrando-se à amurada. — Anuncia a presença emKrondordemeuprimodistante,Guy,DuquedeBas-Tyra.

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Krondor

estalagemestavacheia.AmosconduziuAruthaeMartinpelosalãocomumatéumamesavaziaperto da lareira. Fragmentos de conversa chegavam aos ouvidos de

Arutha enquanto ocupavam os seus lugares. Após um exame mais atento, oambientenosalãoeramaiscontidodoqueparecerainicialmente.

A cabeça de Arutha estava confusa. Os planos que zera para garantir aajuda de Erland tinham sido esmagados poucosminutos depois de chegar aoporto.Por todoo lado,haviasinaisdequeGuyduBas-Tyranãoeraummeroconvidado em Krondor, mas detinha o poder absoluto. Homens da guardaseguiam o ciais vestidos com as cores preta e dourada de Bas-Tyra e oestandartedeGuyesvoaçavaemtodasastorresdacidade.

Quando uma garota desleixada que servia as mesas se aproximou, Amospediu trêscanecasdecervejaeaguardaramemsilêncio.Assimqueacriadaseafastou,oCapitãodisse:

—Apartirdeagora,temosdetercautela.AexpressãodeAruthanãosealterou.—Quandopoderemosvoltaraomar?— Daqui a algumas semanas, três, pelo menos. O casco precisa ser

consertado e a carlinga, reparada da forma certa. A demora dependerá doscarpinteirosnavais.O invernoéumaépocacomplicada:osmercadoresquesónavegam com tempo bom içam agora os navios para estarem prontos naprimavera.Ireiprocurarajudalogopelamanhã.

—Issolevarámuitotempo.Seforpreciso,compreoutro.Amosergueuumasobrancelha.—Vocêtemdinheiro?

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—Nomeu baú, a bordo.—Comum sorriso sinistro, acrescentou:—Ostsuraninãosãoosúnicosfazendojogospolíticosnestaguerra.Paramuitosdosnobres emKrondor enoOeste, a guerra éumacontecimentodistante, quaseinimaginável.Jáaconteceháquasenoveanosetudoqueveemsãomensagens.Eosnossos leaismercadoresdoReinonãodoam suprimentos e embarcaçõespor amor ao Rei Rodric. Meu ouro serve para termos garantia de quesuportaremospartedocustodelevarsoldadoskrondorianosparaCrydee,tantocomasdespesasquantocomossubornos.

—Muitobem—disseAmos—,mas,aindaassim,demoraráumaouduassemanas. Não é comum entrar em uma agência mercante e dar ouro peloprimeiro navio que nos mostrarem, não se você quiser passar despercebido.Além disso, grande parte dos navios vendidos não vale grande coisa. Levarátempo.

—ParanãofalardosEstreitos—acrescentouMartin.— É verdade— concordou Amos—, embora pudéssemos dar uma volta

agradávelsubindoacostaatéSartheesperaromomentocertoparaatravessá-los.

—Não— disse Arutha.— Sarth faz parte do Principado. Se Guy estivercontrolandoKrondor,haveráagentese soldados lá.Sóestaremosseguros forado Mar Amargo. Atrairemos menos atenção em Krondor do que em Sarth:aqui,forasteirossãohabituais.

AmosolhoudemoradamenteparaArutha,atédizer:—Olhe,nãodigoqueo conheço tãobemquanto aoutroshomensque já

encontrei,masnãoachoque esteja tãopreocupadocomsuapelequanto comoutracoisa.

Aruthaolhouaoredordosalão.—Émelhorfalarmosdissoemumlugarmenospúblico.Comumsomentreumsuspiroeumgemido,Amosergueu-sedacadeira.—ASossegodoMarinheironãoéondeeupreferiria car,masserviráaos

nossospropósitos.—Avançouatéo compridobalcão e faloudemoradamentecomoestalajadeiro.OpesadoproprietáriodaestalagemapontouparaoaltodasescadaseAmosacenoucomacabeça.Fez sinal aoscompanheirosparaqueoseguissem,conduzindo-osatravésdamultidãodosalãocomum,pelasescadasepor um longo corredor até a última porta. Abrindo-a, gesticulou para queentrassem.

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Encontraram um quarto com pouco conforto. Quatro catres de palhaestavamestendidosnochão.Umagrandecaixaemumcantoserviadearmáriocomum.Umalamparinarudimentar,umsimplespavio utuandoemumatigeladeóleo,estavapousadaemcimadeumamesarústica;quandoMartindoArcoaacendeu,expeliuumforteodor.

AmosfechouaportaaomesmotempoqueAruthadizia:—Entendioquevocêquisdizersobreaescolhadaestalagem.—Jádormiemlugarespiores—respondeuAmos,acomodando-seemum

dos catres. — Se quisermos manter nossa liberdade, é melhor escolhermosidentidades aceitáveis. Por enquanto, iremos chamá-lo de Arthur. É parecidocomoseunomeapontodeservircomoumaexplicaçãoaceitávelcasoalguémochame pelo nome verdadeiro e você vire em resposta. Além disso, serámaisfácildelembrar.

AruthaeMartinsentaram-seeAmosprosseguiu:—Arthur, acostume-se com esse nome, não sabe quase nada sobre andar

emgrandescidadese issoéodobrodoqueMartin sabe.Serámelhorvocê sepassar pelo lho de um nobre de menor importância, de um lugar remoto.Martin,vocêéumcaçadordascolinasdeNatal.

—Euconsigofalarbemoidiomadelá.Aruthaquasesorriu.—Deemaeleumacapacinzentaeeledaráumbelopatrulheiro.Comoeu

nãofaloalínguadeNatalnemoidiomakeshiano,sereio lhodeumnobredemenor importância vindo do Leste em busca de alguma diversão. Poucos emKrondorconhecemsequermetadedosbarõesdoLeste.

—Desde que não seja um barão que viva perto de Bas-Tyra. Com tantostabardosnegrosespalhadosporaqui,seriaótimoesbarraremumsupostoprimoentreosoficiaisdeGuy.

OsemblantedeAruthaficoucarregado.— Você tinha razão a respeito das minhas preocupações, Amos. Não

deixareiKrondoratédescobrirexatamenteoqueGuyfazporaquieoqueissosignificaparaaguerra.

— Mesmo que encontre um navio amanhã — disse Amos —, o que éimprovável, você ainda terá bastante tempo para andar por aí espreitando. Épossívelquevenhaadescobrirmaisdoquedesejasaber.Acidadeéumpéssimolugarparasegredos.Os informantesestarãonomercado,equalquerhabitante

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da cidade saberá lhe contar com bastante precisão o que está acontecendo.Lembre-sedemanterabocafechadaeosouvidosatentos.Osinformantesvãolhevenderoquevocêdeseja saber, emseguida,darãomeia-volta tãodepressaquevocê cariatontodeverevãovenderparaosguardasinformaçõessobreasperguntasquevocêlhesfez.—Amosespreguiçou-se,dizendo:—Aindaécedo,mascreioquedeveríamoscomerumarefeiçãoquenteparanosdeitarmoslogo.Temosmuitasvoltasparadar.—Ditoisso,levantou-seeabriuaporta,eostrêshomensregressaramaosalãocomum.

rutha mastigava uma torta de carne quase fria. Abaixando a cabeça,forçou-se a continuar engolindo aquela coisa gordurosa. Recusou-se a

pensarnoquehaviadentrodacrostaempapada,emboraomercadora rmassesercarnedevacaedeporco.

Lançando umolhar de soslaio à praçamovimentada,Arutha examinou osportões que davam para o palácio do Príncipe Erland. Quando terminou decomer,aproximou-sedepressadeumabarracadecerveja,pedindoumacanecagrande para tirar o gosto ruim da boca. Durante a última hora, andara,aparentemente semobjetivo,debarracaembarraca, comprando issoeaquilo,fazendo-se passar pelo lho de um nobre de menor importância. Muitodescobriunessetempo.

Avistou Martin e Amos chegando, quase uma hora antes do horáriomarcado. Ambos estavam de cara fechada e olhavam nervosos para todos oslados.Semumapalavra,Amosfezsinalparaqueosseguissequandopassarampor ele. Abriram caminho pela multidão do nal da manhã e se afastaramdepressa da região da praça central. Chegando a uma área de aspectomenoshospitaleiro, mas não menos movimentada, prosseguiram até o Capitãogesticularparaqueentrassememumdosedifícios.

Assim que atravessaram a porta, Arutha foi recebido por uma atmosferaquenteefumegante,eumserviçalveiorecebê-los.

—Banhospúblicos?—indagouArutha.Semrir,Amosexplicou:—Precisatirarumpoucodopódaestrada,Arthur.—Aoserviçal,disse:—

Umbanhodevaporparanóstrês.O homem os levou até um vestiário, entregando a cada um uma toalha

áspera e um saco de lona para colocarem seus pertences. Despiram-se,

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colocaramastoalhasaoredordacinturaelevaramaroupaeasarmasnossacosatéasaladebanho.

Agrandesalaeracompletamentecobertadeazulejos,aindaqueasparedeseo chão estivessemmanchados e compartes verdes.Oar era abafado e fétido.Ummeninoseminuestavaagachadonocentrodasala,juntoaoleitodepedrasque forneciaovapor.Colocava lenhaalternadamentenoenormebraseiro sobaspedras,despejandoáguaporcima,oquegeravanuvensgigantesdevapor.

Aosesentarememumdosbancos,nocantomaisdistantedasala,Aruthaperguntou:

—Porqueumacasadebanhos?— A nossa estalagem tem paredesmuito nas — sussurrou Amos. — E

muitos negócios são realizados em lugares como este; logo, três homenssussurrandoemumcantonãoserãomotivodeatençõesindevidas.—Gritouaomenino:—Você aí, garoto, vá pegar vinho fresco, depressa.—Amos atirouumamoedadeprataaomenino,queaapanhouemplenovoo.Comoele couparado,Amosatirououtraeomeninosaiucorrendo.Suspirando,Amosdisse:—Opreçodovinhofrescoduplicoudesdeaúltimavezqueestiveaqui.Ficareiausenteporalgumtempo,masnãomuito.

—Doquesetrata?—perguntouArutha,semseesforçarparaesconderseudesagrado. A toalha coçava, a sala fedia e o Príncipe duvidava que sairia dalimaislimpodoquesetivesseficadonapraça.

—Martineeutemosnotíciasinquietantes.— Eu também. Já sei que Guy é Vice-Rei em Krondor. O que mais

descobriram?—Ouvi uma conversa que me fez acreditar que Guy prendeu Erland e a

famílianopalácio—disseMartin.Aruthaestreitouosolhoseasuavozganhouumtomgraveezangado:—NemmesmoGuyseatreveriaaferiroPríncipedeKrondor.—Eleseatreveriase tivesseapermissãodoRei—retorquiuMartin.—Sei

poucodosproblemasentreoReieoPríncipe,maséóbvioqueGuyagoraestáno poder em Krondor e age com a permissão do Rei, talvez até com a suabênção. Lembro-me de você ter me contado a respeito da advertência deCaldricdaúltimavezqueesteveemRillanon.TalvezadoençadoReitenhaseagravado.

—Loucura,parasermosclaros—retrucouArutha.

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—Para complicar aindamais a situação emKrondor—prosseguiuAmos—,parecequeestamosemguerracontraoGrandeKesh.

—Oquê?—exclamouArutha.—Éumrumor,nadamais.—Amos falouemvozbaixa,masdepressa.—

Antes de encontrarMartin, eume en ei em uma casa de prazer, nãomuitolongedascasernasdaguarnição.Ouviunssoldadosdelicençaquediziamestardepartidaparaumacampanhaquandoodiaraiasse.Quandooatualobjetodepaixão do soldado lhe perguntou quando voltaria a vê-lo, ele disse: “O tempoque levarmos para marchar até o vale e voltar de lá, se a sorte nosacompanhar”,enessahora invocouonomedeRuthia,paraqueaSenhoradaBoaSortenãoencarassecommausolhosamençãofeitaaoseudomínio.

—Ovale?—indagouArutha.—Issosópodesigni carumacampanhanoValedosSonhos.KeshdeveteratacadoaguarniçãodeShamatacomumaforçaexpedicionáriadeinfantaria.Guynãoétolo.Sabequeaúnicarespostapossíveléumataquerápidoe rmedeKrondor,paramostrarà ImperatrizdoGrandeKesh que ainda somos capazes de defender a nossa fronteira. Quando osinfantes forem expulsos para o sul do vale, teremos outra rodada deconversações inúteis de tratados sobre quem tem direito sobre o quê. Issosigni caque,mesmoqueGuyestivessedispostoaajudarCrydee,oqueduvidomuito, não poderia fazê-lo. Não há tempo para tratar de Kesh, regressar echegaraCrydeenaprimaveraoumesmono iníciodoverão.—Praguejou.—Sãopéssimasnotícias,Amos.

—Aindatemmais.Hojebemcedomedeiaotrabalhodeirvisitaronavio,parame certi car de queVasco tem tudo sob controle e que os homens nãoestavam muito irritados por não poderem desembarcar. O nosso navio estásendovigiado.

—Temcerteza?—Tenho.Há dois garotos por lá, ngindo que consertam uma rede,mas

nãofazemtrabalhonenhum.Observaramcomatençãoquandoeuremeiatéláevoltei.

—Quemvocêachaquesão?— Nem imagino. Podem ser homens de Guy ou homens ainda leais a

Erland.PodemseragentesdoGrandeKesh,contrabandistas,atéZombadores.—Zombadores?—perguntouMartin.— A Guilda dos Ladrões — respondeu Arutha. — Não há nada que

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aconteçaemKrondorsemoconhecimentodolíderdeles,oJusto.—Essapersonagemmisteriosa lideraosZombadores comumpunhomais

rme do que o de um capitão sobre a sua tripulação — disse Amos. — Hálugares na cidade onde nem sequer o Príncipe consegue chegar, mas não hálugaremKrondorquenãoestejaaoalcancedoJusto.Seeleestáinteressadoemnós,sejaporquemotivofor,temosmuitoatemer.

A conversa foi interrompida pelo retorno domenino. Trazia um jarro deestanhodevinhofrescoetrêstaças.

—Vá até o vendedor de incenso aqui perto, garoto—ordenouAmos.—Estelugarfede.Comprealgoadocicadoparajogarnofogo.

Omeninofitou-ocomumarumpoucodesconfiado,acabandoporencolherosombrosquandoAmoslheatirououtramoeda.SaiudasalacorrendoeAmosdisse:

— Ele não vai demorar e não tenho mais razões para mandá-lo sair. Dequalquer forma, logo este lugar vai estar repleto demercadores para tomar obanhodevaporda tarde.Quandoogarotovoltar,bebamumpoucodovinho,tentem relaxar e saiam logo. Agora, no meio de toda essa confusãodesanimadora,restaumraiodeesperança.

—Entãovamosouvirdoquesetrata—disseArutha.—Embreve,Guyvaideixaracidade.Aruthaapertouosolhos.—Dequalquerforma,deixaráosseushomensnocomando.Mesmoassim,

issomeconsolaumpouco.PoucaspessoasemKrondormereconhecerão,poisjá se passaram quase nove anos desde que estive aqui, e grande parte dessagente provavelmentedesapareceu comoPríncipe.Alémdisso, tenhopensadoemumplano.ComGuy ausentedeKrondor, tereimais chancesde ser bem-sucedido.

—Qualplano?—perguntouAmos.—Vou contar depois que tivermais tempo para pensar a respeito. Onde

poderemosnosreuniremsegurança?Amosrefletiu.— Bordéis, casas de drogas e casas de jogos são tão ruins quanto a

estalagem.Dasduas,uma:ouosZombadorescontrolamesseslocaisereparamem todas aspessoasque entrame saem,ouháoutraspessoas lá àprocuradeinformaçõesparavender.Sealguémouvirafraseerrada,osZombadoresouos

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guardas da cidade cairão em cima de você em questão de minutos. — Ficoucalado por alguns instantes. Depois, sorriu. — Lembrei-me do lugar ideal!Quandoasentineladacidadetocarosinodashoras,duashorasapósopôrdosol,encontre-secomigonaextremidadelestedaPraçadosTemplos.

O garoto voltou, atirando um pequeno pacote de incenso no fogo, o queinterrompeu a conversa. Arutha recostou-se e bebeu o vinho fresco, queesquentava rapidamente com o calor da sala de vapor. Fechou os olhos,masnãoconseguiurelaxarenquantopensavanasituação.Poucodepois,começouasentir que o seu plano talvez desse certo se conseguisse chegar a Dulanic.Impaciente,foioprimeiroaselevantar,lavar-se,vestir-seepartir.

rutha aguardou por Martin e Amos, que atravessavam a Praça dosTemplosvindosdediferenteszonasdacidade.Detodososladoserguiam-

seos templosdosdeusesmaioresemenores.Emvários,eragrandeaagitaçãode peregrinos e adoradores que entravam e saíam, enquanto outros estavampraticamentedesertos.

—Comopassouestatarde?—disseAmos,aproximando-sedoPríncipe.—Ocupeiomeutempoemumataverna,pensandocomosmeusbotões—

respondeu Arutha com serenidade. — Ainda assim, ouvi uma conversa arespeitodeErland,mas,quandotenteimeaproximar,aspessoasseafastaram.Deresto,penseinoplanodequefalei.

—Escolheuum lugardemauagouro,Amos—disseMartinapósolharaoredor.—Nesteladoestãoreunidososdeusesedeusasdastrevasedocaos.

Amosencolheuosombros.—Oque signi camenos viajantes por perto quando a noite cai.Alémde

umavisãoperfeitacasoalguémseaproxime.—AArutha,disse:—Então,queplanoéesse?

— Esta manhã, reparei em dois detalhes: a guarda pessoal de Erlandcontinua patrulhando os terrenos do palácio, logo o controle deGuydeve terlimites — explicou Arutha em voz baixa e depressa. — Em segundo lugar,váriosmembrosdacortedeErlandentraramesaíramsemgrandesrestrições,de modo que uma grande parte dos assuntos diários relativos ao governo doReinoOcidentaldevepermanecerinalterada.

Amosafagouoqueixo,pensativo.—Fazsentido.Guytrouxecomeleoexército,masnãoosadministradores.

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EssescontinuamaadministrarBas-Tyra.— O que signi ca que Lorde Dulanic e outros que não sejam muito

solidários a Guy talvez ainda possam nos ajudar. Se Dulanic ajudar, talvez aminhamissãosejabem-sucedida.

—Comoassim?—perguntouAmos.— Como Marechal da Corte de Erland, Dulanic controla as guarnições

subordinadas a Krondor. Bastaria a sua assinatura para chamar às leiras asguarnições do Vale de Durrony e da Cruz de Malac. Se lhes ordenasse quemarchassem até Sarth, poderiam se juntar a essa guarnição e embarcar paraCrydee. Seria umamarcha dura,mas ainda conseguiríamos fazê-los chegar aCrydeeatéaprimavera.

—E tambémpoupariaa içõesa seupai. Ia lhecontar:ouvidizerqueGuyenviousoldadosdaguarniçãokrondorianaparaauxiliaroseupai.

—Issopareceestranho.NãoconsigoimaginarGuyquerendoauxiliaromeupai—comentouArutha.

Amossacudiuacabeça.—Nãoétãoestranhoassim.OseupaiacharáqueGuyfoienviadopeloRei

somenteparaajudarErland,poisdescon oqueosrumoresdequeErlandestápreso no próprio palácio ainda não se espalharam. Além disso, é um belopretextoparaqueacidade quesemo ciaisehomensleaisaoPríncipe.Aindaassim,trata-sedeumagrandedádivaaoseupai.Peloqueapurei,jápartiramouestão de partida rumo ao norte quase quatro mil homens. Talvez seja osuficienteparaenfrentarostsuranicasoataquemoDuque.

—EnocasodeatacaremCrydee?—perguntouMartin.— Para isso, precisamos buscar ajuda. Precisamos entrar no palácio e

procurarDulanic.—Como?—perguntouAmos.—Aminhaesperançaeravocêteralgumasugestão.Amosabaixouosolhos,dizendoemseguida:—Conhecealguémnopalácioemquempossaconfiar?— Antes, eu poderia mencionar uma dúzia, mas esta situação me faz

duvidardetodomundo.NãoconsigosequerimaginarquempossaestardoladodoVice-ReiequempossaestardoladodoPríncipe.

— Sendo assim, temos de bisbilhotarmais um pouco. E temos de prestaratençãoemnotíciasarespeitodenaviosquepossamservirparatransportaras

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tropas.Assimqueconseguirmosalugaralguns,tentaremostirá-losrapidamentede Krondor, um ou dois de cada vez, com intervalos de alguns dias.Precisaremos de pelo menos vinte para levar os homens de três guarnições.PartindodoprincípiodequevocêconsigaobteroapoiodeDulanic,oquenostraz de volta à questão sobre o acesso ao palácio.—Amos praguejou em vozbaixa.—Temcertezadequenãoquerdesistirdissoesetornarcorsário?—Aexpressão de Arutha mostrou claramente que não estava achando graça. —Amossuspirou.—Acheimesmoquenão.

— Você parece conhecer bem o lado marginal da cidade, Amos— disseArutha.—Useasuaexperiênciaparadescobrirumaformadenosin ltrarnopalácio,nemquesejapeloesgoto.EstareiatentocasovejaalgumdoshomensdeErlandpassarpelapraçacentral.Martin,mantenhaosouvidosalertas.

—Entrarnopalácio éumplano arriscado enãome importodedizerquenão gosto das probabilidades — disse Amos, com um longo suspiro deresignação.Como polegar, indicou um templo próximo.— Sou até capaz dedarumpulonotemplodeRuthiaparapediràSenhoradaBoaSortequesorriaparanós.

Aruthatirouumamoedadeourodabolsaeatirou-aparaAmos.—FaçaumaoraçãoàSenhorapormim.Vejovocêsmaistardenataverna.Aruthaavançouapassos largosparaaescuridãoeAmos inclinouacabeça

paraotemplodaDeusadaSorte.—Nãoquerfazerumaoferenda,Martin?

silêncio da noite foi interrompido por trombetas que chamavam oshomens às armas.Arutha foi o primeiro a chegar à janela, afastando as

persianas de madeira e olhando para a rua. Com grande parte da cidadeadormecida,erampoucasasluzesqueocultavamobrilhoaleste.AmoschegouaoladodeArutha,comMartinlogoatrás,eestedisse:

— Fogueiras, centenas delas. — O Mestre de Caça olhou para o céu,observandoaposiçãodasestrelasno rmamentolímpido,paradepoisa rmar:—Faltamduashorasparaoamanhecer.

— Guy está preparando o exército para marchar — disse Aruthacalmamente.

Amos debruçou-se na janela. Esticando o pescoço, conseguiu entrever oporto.Adistância,viuhomensembarcandonosnavios.

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—Parecequetambémestãopreparandoosnavios.Aruthaapoiouasduasmãosnamesajuntoàjanela.—Guyvaienviarainfantariapormar,descendoacostaeentrandonoMar

dosSonhos,atéShamata,enquantoacavalariaavançaparaosul.A infantariachegará à cidade bemdescansada para ajudar a reforçar a defesa e os cavalosvão por terra para que não estejam indispostos devido à viagem por mar.Chegarãocomumadiferençadepoucosdias.

Comoqueparacomprovarsuaspalavras,dolestechegouosomdehomensmarchando. Passados poucos minutos, avistaram a primeira companhia deinfantaria de Bas-Tyra. Arutha e os companheiros os observaram passar peloportão abertodopátioda estalagem.As lanternas conferiamaos soldadosumaspecto estranho e sobrenatural ao marcharem em colunas rua abaixo.Caminhavam em cadência, com os estandartes da águia dourada esvoaçandoporcimadesuascabeças.

—Sãotropasbemdisciplinadas—disseMartin.— Guy pode ser muitas coisas, a maioria delas desagradável, mas não se

pode negar uma coisa: é omelhor general do Reino— disse Arutha.—Atémeupaiéforçadoaadmitir,aindaquenãotenhanadadebomadizersobreele.SeeufosseRei,enviariaosexércitosdolestesoboseucomandoparaenfrentarostsurani.PortrêsvezesGuymarchoucontraKeshenastrêsvezesosarrasou.Se os keshianos não sabem que ele veio para o oeste, a mera visão de seuestandartenocampodebatalhadevebastarparalevá-losàmesadotratadodepaz, pois o temem e o respeitam. — A voz de Arutha ganhou um tompensativo.—Masháoutra coisa.QuandoGuy se tornouDuquedeBas-Tyra,sofreu algum tipo de desonra pessoal, meu pai nunca me contou o que foiexatamente,e,apartirdaí,começouasevestirdepreto,comoumaespéciedeemblema, oque lhe valeuonomedeGuy, oNegro.Esse tipode coisa requerumtipo incomumdecoragem.DigamoquedisseremsobreGuyduBas-Tyra,masninguémlhechamarádecovarde.

Enquanto os soldados continuavam a passar embaixo, Arutha e oscompanheiroscontemplavamemsilêncio.Atéque,comosollevantando-seaoleste,ossoldadosdesapareceramnasruasquelevavamaoporto.

a manhã seguinte à marcha do exército de Guy, foi anunciado oisolamentoda cidade,o fechamentodosportões a todosos viajantes eo

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bloqueio do porto. Arutha pensou ser uma prática habitual, para evitar queagenteskeshianossaíssemdacidadeemumachaluparápidaouemumcavalovelozpara levaranotíciadamarchadas tropasdeGuy.EmumadasvisitasaoVentodaAurora,Amosexaminouobloqueiodoportoedescobriuquenãoeramuito rigoroso, pois Guy ordenara que grande parte da frota se afastasse dacosta, preparada para uma emboscada no mar, atentos à chegada de algumaotilha keshiana, caso Kesh descobrisse que a cidade estava desguarnecida.Krondor passou a ser patrulhada pela guarda da cidade trajando as cores deGuy,poisosúltimossoldadoskrondorianostinhampartidoparaonorte.CorriaorumordequeGuytambémenviariaaguarniçãodeShamataparaafrentedecombate assim que se iniciasse a batalha com Kesh, deixando todas asguarniçõesdoPrincipadoocupadasporsoldadosleaisaBas-Tyra.

Aruthapassavaamaiorpartedeseutempoemtavernas,locaisdenegóciosenos mercados ao ar livre que tinham a maior probabilidade de seremfrequentados pelos habitantes do palácio. Amos perambulava pela região dasdocas ou pelos setores mais duvidosos da cidade, especialmente pelo BairroPobre,nosquaiscomeçaraainquirircomdiscriçãoquantoàdisponibilidadedenavios.Martinfaziausodesuaaparênciadesimpleshabitantedasflorestasparaentraremqualquerlocalqueparecessepromissor.

Assimsepassouquaseumasemana,semqueconseguissemdescobrirnovasinformações.Atéque,no naldosextodiaapósapartidadeGuy,AruthaouviuMartinchamá-lonomeiodamovimentadapraça.

— Arthur! — bradou o caçador ao correr para Arutha. — Melhor virdepressa.—PartiuemdireçãoaocaiseàestalagemSossegodoMarinheiro.

Já na estalagem, encontraramAmos no quarto, descansando em seu catreantesdahabitualsaídaànoitepeloBairroPobre.Assimqueaportasefechou,Martindisse:

—AchoqueelesjádevemsaberdapresençadeAruthaemKrondor.Amoslevantou-sedeumpulo,enquantoAruthabalbuciava:—Oquê?Como...?—Entreiemumatavernapróximaàcaserna,antesdarefeiçãodomeio-dia.

Com o exército fora da cidade, havia poucomovimento. Um homem entrouquandoeumepreparavaparasair.Eraumescribadoquartel-generaldacidade,que parecia prestes a explodir com um boato e precisava de alguém a quemcontar.Comaajudadeumpoucodevinho, zasuavontade,passando-mepor

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um camponês simplório e demonstrando respeito por uma pessoa tãoimportante. Foram três as novidades que esse homem me contou. LordeDulanic desapareceu de Krondor, na noite da partida de Guy. Dizem que seretirou para propriedades desconhecidas ao norte, agora que Guy é Vice-Rei,embora o escriba não ache provável. A segunda notícia foi amorte de LordeBarry.

OrostodeAruthaficouemchoque.—OLorde-AlmirantedoPríncipemorreu?—EssehomemmedissequeBarrymorreu emcircunstânciasmisteriosas,

aindaquenãohajaqualquercomunicadoo cialprevisto.Ocomandoda frotakrondorianafoidadoaumlordedoLeste,umtaldeJessup.

—Jessupéhomemdecon ançadeGuy—disseArutha.—ComandouasesquadrasdeBas-TyranafrotadoRei.

—Por último, o homem fez questão demostrar que sabia de um segredosobre a procurade alguéma quemchamou simplesmentede “parente real doVice-Rei”.

Amospraguejou.— Não sei como, mas alguém o reconheceu. Com Erland e a família

praticamente cativos no palácio, são poucas as chances de outro primo realandar vagandoporKrondornosúltimosdias, amenosque você tenha algunsporaíquenãonoscontou.

Arutha ignorou o humor sem graça do marinheiro. Enquanto Martin doArcocontavasuahistória,todososseusplanosparaajudarCrydeetinhamsidoreduzidosacinzas.AcidadeseencontravasobcontroledaquelesqueeramleaisaGuyouindiferentesaquemgovernavaemnomedoRei.Nãohavianinguémnacidadeaquempudesserecorrereofracassoemlevarajudaparaasuaterraeraamargo.

—EntãonãovejooutrasoluçãoanãoserregressarmosaCrydeeoquantoantes—afirmouemvozbaixa.

— Isso pode não ser tão fácil — contrapôs Amos. — Há outras coisasestranhas acontecendo. Estive em lugares onde é normal entrar em contatocomaquelesnecessáriosparaumaououtratarefamenoshonesta,masportodoladoondeperguntei,discretamente,nãotenhadúvida,sórecebiomaisabsolutosilêncio.Seeunãoconhecessetãobemestemundo,seriacapazdejurarqueoJustoencerrouasatividadesequetodososZombadoresestãoagoraaserviçodo

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exército de Guy. Nunca vi tantos empregados de balcão mudos, prostitutasignorantes, mendigos mal informados e apostadores de boca fechada. Não éprecisoserumgênioparaverqueamensagemseespalhou.Ninguémdevefalarcom forasteiros,não importaoquãopromissora seja a transaçãoapresentada.Porisso,nãovaleapenaprocurarmosajudaparasairdacidadee,seosagentesde Guy sabem que você está em Krondor, não levantarão o bloqueio nemabrirãoosportõesatéoencontrarem,pormaisaltoqueosmercadoresberrem.

—Estamospresosemumaarmadilha—concordouMartin.—Noentanto,casooshomensdeGuyapenasdescon emdequeestouem

Krondor,poderãosecansardeprocurar.— É verdade — concordou Amos —, e, passado algum tempo, os

Zombadorestambémpoderãoacabarfalando.Casoconcordememnosajudar,porumvalorsubstancial,semdúvida,teremosumauxíliopoderosoparasairdacidade.

Aruthacerrouopunhoedeuummurronocatreondeestavasentado.—MalditoBas-Tyra.Euteriagostoemmatá-lonesteexatomomento.Além

de pôr o Oeste em perigo, ele arrisca uma divisão aindamaior entre os doisreinosaocolocarasuabandeiranoPrincipado.SeaconteceralgumadesgraçaaErlandeàsuafamília,équasecertoqueaconteceráumaguerracivil.

Amossacudiuacabeçadevagar.—Estaéumamissãoarruinada,evocênãotemculpa,Arutha—suspirou.

—Sejacomofor,nãopodemosentrarempânico.OnossoamigoMartinpodeter compreendidomal oúltimo comentáriodo escriba, ouohomempode terdito aquilo simplesmente por dizer. Temos de ter cuidado,mas não podemossaircorrendo.Sevocêdesaparecesseporcompleto,alguémpoderiareparar.Porenquanto,omelhorévocê carpertodaestalagem,masnãodeixede fazeroquetemfeito.Continuareiasminhastentativasdeencontraralguémquepossanostirardacidade;quesejamoscontrabandistas,senãoforemosZombadores.

—Nãotenhofome,mastemoscomidonosalãocomumtodasasnoites—disseAruthaselevantando.—Achoqueémelhordescermosparaojantar.

Amosfezsinalparaquevoltasseparaocatre.—Fiquemaisumpouco.Voucorrendoatéasdocasvercomoestáonavio.

SeoescribadeMartinnãoestavaapenasinventandohistórias,certamenteirãofazer buscas nos navios do porto. Émelhor avisar Vasco e a tripulação, paraestarem preparados para saltar amurada afora, caso necessário, e para ele

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encontrar um local seguro para guardar o seu baú.O navio só deve ser içadopara os reparos daqui a uma semana, por isso temos de agir com cuidado. Jáatravessei bloqueios em outras ocasiões. Não gostaria de arriscar fazê-lo comum casco vazando como o doVento daAurora ,mas se não encontrar outronavio...—Na porta, virou-se para Arutha eMartin.— Estamos nomeio deumatempestadeassustadora,rapazes,masjápassamosporpiores.

rutha e Martin estavam sentados em silêncio quando Amos entrou nosalão.Omarinheiropuxouumacadeira epediuumacerveja eumprato.

Depoisdeserservido,disse:— Está tudo arranjado. O seu baú estará em segurança enquanto o navio

estiverancorado.—Ondeoescondeu?—Estáenvoltoemumoleadoebemamarradoàâncora.Aruthapareceuimpressionado.—Debaixod’água?—Vocêpodecomprarroupasnovas.Ouroejoiasnãoenferrujam.—Comoestãooshomens?—perguntouMartin.— Resmungando por carem mais uma semana no porto e ainda

continuaremabordo,massãobonsrapazes.Aportada estalagemse abriu e entraramseishomens.Cinco se sentaram

juntoàporta,enquantoosextoficouempéexaminandoosalão.— Estão vendo aquele camarada com cara de ratazana que acabou de se

sentar? — sibilou Amos. — É um dos rapazes que têm vigiado as docas naúltimasemana.Parecequefuiseguido.

Ohomemquepermaneceudepé localizouAmoseaproximou-sedamesa.Era um homem de aspecto simples, de rosto franco. Tinha o cabelo louroavermelhadosoltoaoredordacabeçaeusavaaroupahabitualdosmarinheiros.Seguravaumgorrodelãesorriaparaostrêshomens.

Amosfezumacenocomacabeçaeohomemdisse:—SevocêéoCapitãodoVentodaAurora,gostariadefalarcomvocê.Amos franziu a testa,mas nada disse. Indicou a cadeira livre e o homem

sentou-se.—Chamo-meRadburn.Procurotrabalho,Capitão.Amosolhouemvolta,vendooshomensdeRadburn ngindonãoestarem

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prestandoatençãoaoqueacontecianaquelamesa.—Porquenomeunavio?— Já tentei outros. Todos têm a tripulação completa. Pensei em lhe

perguntar.—Quemfoioseucapitãoanterioreporquenãoestámaisaserviçodele?Radburnriu,produzindoumsomamigável.—Bom,aúltimavezquenaveguei foi comumacompanhiadebarqueiros,

que levavammercadoriasdosnaviosparaoporto.Fiquei fazendo issoduranteum ano.—Calou-se quando a criada se aproximou.Amosmandou vir outrarodada de cerveja e, quando Radburn viu que tinha uma caneca à frente,agradeceu:—Obrigado,Capitão.—Deu um gole demorado e limpou a bocanascostasdamão.—Antesde carencalhado,navegueicomoCapitãoJohnAvery,abordodoBantamma.

—Conheço o PequenoGalo, e JohnAvery, embora não o veja desde queestiveemDurbinpelaúltimavez,hácincoouseisanos.

—Bem,bebiumpoucodemais eo capitãodissequenãoquerianinguémque bebesse no navio dele. Não bebo mais do que qualquer outro homem,Capitão,mas conhecea reputaçãodoMestreAvery,umseguidorabstêmiodeSung,oBranco.

AmosolhouparaMartineArutha,masnadadisse.—Sãoseusoficiais,Capitão?—perguntouRadburn.—Não,sãosócios.—QuandopercebeuqueAmosnãoiriaacrescentarmais

nada,Radburnnãoinsistiunotópicodasidentidades.—Chegamosàcidadehápoucomaisdeumasemanaetenhoandadoocupadocomassuntospessoais—disseAmosporfim.—Hánovidades?

Radburnencolheuosombros.—Aguerracontinua.Bomparaosmercadores,ruimparaoresto.Agora,há

a questão com Kesh. Antes, os problemas eram na Costa Extrema, agora...KrondorpodedeixardeserumlugartãobomseoVice-ReinãoenxotaroscãesdeKesh para a terra deles.Alémdisso, há os boatos habituais...—Olhou aoredor, como se estivesse à procura de alguém que pudesse ouvi-los — ... eoutrosmaisestranhos.

Amoslevouacanecaaoslábiossemdizernada.—DesdeachegadadoVice-Rei—continuouRadburnemvozbaixa—,as

coisasestãodiferentesemKrondor.Umhomemhonestojánãopodeandarna

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rua em segurança, comos tra cantes de escravos deDurbinde um ladoparaoutroeosbandosderecrutamentoforçado,quesãoquasetãoruinsquantoosoutros.Éporissoqueprecisodeumnavio,Capitão.

—Bandos de recrutamento forçado!— explodiuAmos.—Há trinta anosquenãoseviaumbandoderecrutamentoforçadonacidade.

— Pois é, mas a situação mudou de novo. Se você car um poucoembriagadoenãoencontrarumlugarseguroparapassaranoite,osbandosderecrutamento chegam e o jogam nas masmorras. Isso não está certo, nãosenhor.NinguémtemodireitodedespacharumhomemparaafrotadoLordeJessup por sete anos, só porque o achou entre navios. Sete anos perseguindopiratasecombatendoasgalésdeguerraqueguianas!

Amosestreitouosolhos.—ComoGuypassouagovernarKrondor?Ouvimoshistórias,masparecem

confusas.Radburnacenoucomacabeça.—Temrazão,Capitão.Éconfuso.Háummês,LordeGuychegouacavalo

com o seu exército atrás, bandeiras tremulando, tambores rufando e todo oresto.OPríncipe, dizempor aí, recebeu-odebraços abertos e o tratoumuitobem,mesmocomBas-TyratrazendoodecretodoReiqueonomeavaVice-Rei.OPríncipeatéajudou,dizem,atélhechegaraosouvidosoassuntodosbandosde recrutamento forçado.—Baixandoaindamaisavoz, acrescentou:—Ouvidizerque,quandosequeixou,Guyotrancouemseusaposentos.Devemserunsquartosmuitobons,massãoiguaisaumacelasenãopudersairdelá.Foioqueouvi.

Arutha cou tão indignadocomahistóriaqueestavaquase fazendoalgumcomentário, mas Amos agarrou-lhe o braço, advertindo-o para que cassecalado,edisse:

—Bem,Radburn, tenhosempre trabalhoparaumbomhomemque tenhaestadoaoserviçodeJohnAvery.Façamosassim:aindatenhodeiraobarcoestanoitee tenhoalgunspertencesnomeuquartoquequero levarpara lá.Venhacomigoemeajudealevá-los.

Amos levantou-se e, sem dar tempo ao homem para fazer objeções,agarrou-opelobraçoe levou-oatéasescadas.AruthaolhouderelanceparaogrupoqueentraracomRadburn.Porummomento,pareciamnãoestarvendooque estava acontecendo do outro lado do salão apinhado, enquanto Amos

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levavaRadburnescadaacima,comAruthaeMartinlogoatrás.Amos empurrouRadburnpelo corredor e, assimque atravessaram a porta

do quarto, girou e deu ummurro inesperado na barriga de Radburn, que sedobrou. Uma joelhada brutal no rosto e Radburn cou estendido no chão,inconsciente.

—Oqueéisso?—perguntouArutha.— Este homem é um mentiroso. John Avery é um homemmarcado em

Kesh. Há vinte anos, traiu os capitães de Durbin para uma frota de ataquequeguiana.PorémRadburnnempiscouquandoeudisseque tinhavistoAveryemDurbinháseisanos.Alémdisso,foirápidodemaisemdesrespeitaroVice-Rei.Ahistóriadelefedecomopeixedeumasemana.Sesairmoscomeleportaafora,nãoandaremosnemdoisquarteirõesejáteremosumadúziadehomensoumaissobrenós.

—Quevamosfazer?—disseArutha.—Temosdesairdaqui.Osamigosdelenãodevemdemorarasubiraquelas

escadas.—Apontouparaajanela.Martin coujuntoàportaenquantoArutharasgava a cortina de lona suja e abria as folhas demadeira da janela comumempurrão.

—Agoraentendemporqueescolhiestequarto—disseAmos.Otelhadodoestábuloseencontravaamenosdeummetroabaixodopeitorildajanela.

Aruthasaiu,seguidoporMartineAmos.Desceramcomcuidadootelhadoinclinadoatéchegaremàbeirada.Aruthasaltouparaochão,aterrissandocomleveza,logoseguidoporMartin.Amoscaiumaispesadamente,sofrendoapenasumligeiroarranhãoemsuadignidade.

Ouviramumatosseeumpalavrãoe,aoolharemparacima,viramumrostoensanguentadoàjanela.Radburngritou:

—Estãonopátio!—Ostrêsfugitivoscorreramparaoportão.—Deviaterlhecortadoopescoço—praguejouAmos.Correrampara o portão e, ao saírempara a rua,Amos deu umpuxão em

Arutha. Um grupo de homens vinha correndo rua abaixo. O Príncipe e oscompanheirosfugiramnosentidooposto,escondendo-seemumbecoescuro.

Correndoentreasparedesbrancasdeduasconstruções,cortaramporumarua movimentada, derrubando vários carrinhos de mão, entrando em outrobeco, seguidos pelas pragas dos donos dos carrinhos. Continuaram a correr,atentos aos sons da perseguição a curta distância, seguindo por um labirinto

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tortuosodebecoseruassecundáriasatravésdaKrondoràsescuras.Dobrando uma esquina, viram-se em uma rua comprida e estreita, pouco

mais do que uma travessa, com construções altas dos dois lados. Amos foi oprimeiroadobraraesquina,gesticulandoparaqueAruthaeMartinparassem.

—Martin, vá até a esquina e dê uma olhada— instruiu em voz baixa.—Arutha, vá até o outro lado. — Indicou um ponto onde se avistava uma luztênue.—Ficareialidevigia.Senossepararmos,corramparaonavio.Seráumesforçodesesperadoquebrarobloqueio,mas,seconseguirem,façamVascoiraDurbin.O seu ouro comprará a proteção de que precisarão para que o naviosejaconsertadoeparaquepossamregressaraCrydee.Agora,vão.

AruthaeMartincorrerampelaruaemdireçõesopostaseAmos couparatrás,desentinela.Derepente,ouviram-segritosvindosdaruaestreitaeAruthaolhouparatrás.Noladooposto,conseguiudistinguirasilhuetavagadeMartinlutandocontravárioshomens.OPríncipeiajávoltando,masAmosgritou:

—Continue.Euvouajudá-lo.Vá!Arutha hesitou, porém acabou retomando a corrida em direção à luz

distante.Quandoalcançouaesquina,jáestavasemfôlegoequaseescorregouaoparar em uma avenida movimentada e bem iluminada. Junto a carrinhosdecoradoscomlanternas,osmascatesvendiamosseusprodutosacidadãosquepasseavamdepoisdo jantar.O tempoestavaameno—pareciapoucoprovávelquenevassenaqueleinverno—ehaviamuitagentenarua.Pelascondiçõesdosprédiosepeloestilodaspessoasquevia,Aruthapercebeuqueseencontravaemumapartemaisprósperadacidade.

Avançou,forçando-seacaminharsempressa.Virou-se, ngindoapreciaraspeçasdevestuáriodeumvendedorquandovárioshomenssurgiramdatravessadeondeacabaradefugir.Puxouummantodeumvermelhoberrantedomeiodeummontederoupas,jogando-onosombrosepondoocapuz.

—Vocêaí,oqueachaqueestáfazendo?—perguntouumvelhotederostosecoemumsussurroesganiçado.

Simulandoumavoznasalada,Arutharespondeu:— Bom homem, espera que eu adquira uma peça de roupa sem

experimentá-la?Subitamente confrontado por um cliente, o homem mostrou uma

amabilidadefalsa:—Oh,não, senhor,claroquenão.—OlhandoparaAruthacomomanto

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mal talhado, disse:— Cai-lhe perfeitamente, senhor, e a cor combinamuitobem,semepermitedizer.

Aruthaolhouderelanceparaoshomensqueoperseguiam.Radburnestavaparadonaesquina,comsangueseconorostoeonarizinchado,masaindaaptoaliderarabusca.Aruthaajeitouomanto,umacoisaenormeepesadaquequasebatianochão.

— Acha mesmo? — perguntou Arutha, encenando uma futilidadeespalhafatosa.—Nãogostariadeaparecernacorteparecendoumvagabundo.

— Oh, na corte, senhor? É a roupa certa, ouça o que digo. Dá certaelegânciaàsuaaparência.

—Quantocusta?—AruthaviuoshomensdeRadburnavançarematravésda agitação da rua, alguns espreitando para dentro de todas as tavernas evitrines, enquanto outros corriam para outros destinos. Surgirammais algunsvindosdatravessaeRadburnfaloudepressa.Colocoualgunsparavigiarosqueseencontravamna rua,virou-se e levouos restantespelomesmocaminhodeondetinhamvindo.

—ÉomelhortecidoquesefazemRan,senhor—a rmouovendedor.—FoitrazidocommuitocustodacostadoMardoReino.Nãopossovendê-lopormenosdevintesoberanosdeouro.

Aruthaempalideceue,porinstantes, coutãochocadopelopreçoultrajantequequaseperdeuacabeça.

— Vinte! — Abaixou a voz, quando um membro do bando de Radburnpassoueolhouparaelederelance.—Meubomhomem—disse,regressandoàsuapersonagem—,precisoadquirirumacapaenãocriarumapensãoparaosseus netos.—O homem de Radburn virou-se e desapareceu namultidão.—A nal,nãopassadeumsimplesmanto.Creioquedoissoberanossãomaisdoquesuficientes.

Ohomempareciaabalado.—Osenhorquermelevaràmiséria.Nãopossoimaginarmeseparardessa

peçaporumasomamenordoquedezoitosoberanos.NegociarampormaisdezminutoseAruthaacaboulevandoacapaporoito

soberanos e dois reais de prata. Foi o dobro do preço justo, mas osperseguidores tinham ignorado o homem que pechinchava com o vendedorambulante,evaliaapenapagaratécemvezesmaisparanãochamaratenção.

Arutha cou atento a sinais de que estava sendo observado enquanto

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avançavapela rua. Infelizmente, conheciapoucodeKrondor enão fazia ideiadeondeestavadepoisdafuga.Permaneceunapartemaismovimentadadarua,aproximando-sedegruposcommaispessoas,procurandopassardespercebido.

Aruthaviuemumaesquinaumhomemquepareciaestarapreciandoanoitedescontraidamente, embora fosse evidente que estava atento a quem passava.Olhou ao redor e viu uma taverna do outro lado da rua, indicada por umatabuleta pintada com uma pomba branca. Atravessou a rua a passos rápidos,mantendo o rosto virado para o lado oposto do homem na esquina, eaproximou-sedaentradadataverna.Aochegaràporta,umamãoagarrouasuacapaeAruthagirou,comaespadaquasesacadadabainha.Àsuafrenteestavaumgarotocomcercadetrezeanos,vestindoumasimplestúnicaremendadaecalçasdehomemcortadasnos joelhos.Tinha cabelos e olhos escuros e o seurostosujomostravaumsorriso.

—Aínão,senhor—disse,comumtomalegrenavoz.Aruthavoltouaembainharaespadaeassumiuapersonagemanterior.— Fora daqui, garoto. Não tenho tempo para pedintes nem alcoviteiros,

mesmoosdebaixaestatura.Osorrisodorapazaumentou.—Seinsiste,mashádoisdelesaídentro.Aruthaabandonouapronúncianasalada.—Quem?—Oshomensquevieramatrásdosenhorpelatravessa.Aruthaolhouemvolta.Ogarotopareciaestarsozinho.—Doqueestáfalando?—perguntou,olhandonosolhosdele.—Vibemcomoagiu.Osenhor foi rápido.Maselesestãocobrindoaárea

todaeosenhornãoconseguirápassarporelessozinho.Aruthainclinou-se.—Quemévocê,garoto?Com um meneio de cabeça que lhe agitou os cabelos desgrenhados,

respondeu:—Meunome é Jimmy.Trabalhonas redondezas. Posso tirá-lodaqui. Por

umpreço,claro.—Oqueofazpensarquequerosairdaqui?—Não se façade tolo como fez comovendedor, senhor.Precisa fugirde

alguém que provavelmente está disposto a me pagar se lhe mostrar onde o

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senhorestá.JátiveproblemascomRadburneosseushomens,entãosimpatizomaiscomosenhordoquecomele.Desdequeconsigaoferecermaispela sualiberdadedoqueelepelasuacaptura.

—ConheceRadburn?Jimmysorriu.—Nãodaformacomogostaria,massim,jáfizemosnegócios.Arutha couadmiradopelomodofriodogaroto,algoquenãoesperariados

meninosqueconheceraemsuaterra.Aliestavaalguémexperienteemnegociarosatalhostraiçoeirosdacidade.

—Quanto?—Radburnmepagará vinte e cincoourospara encontrá-lo, cinquenta, se

elequisermuitoasuapele.Aruthapegouabolsademoedaseaentregouaogaroto.—Aí temmais de cem soberanos, garoto.Tire-medaqui e leve-me até as

docasedobrareiovalor.Ogarotoarregalouosolhosporummomento,semdeixardesorrir.—Osenhordeveterofendidoalguémmuitoimportante.Venhacomigo.ElesaiudalicomtantavelocidadequeAruthaquaseoperdeunamultidão.

O garoto se deslocava com a con ança da experiência através da turba,enquantoAruthatinhadeseesforçarparaevitaresbarrarnaspessoas.

Jimmyoconduziuaumaviela,aváriosquarteirõesdedistância.MaltinhamentradonavielaquandoJimmydisse:

—Émelhor jogaressacapa fora.Overmelhonãoéaminhacorpreferidaquando quero passar despercebido. — Depois de Arutha ter atirado a capadentrodeumbarrilvazio,omeninocontinuou:—Nãovãodemoraraprocurá-lonasdocas.Sealguémnosencontrar,vocêestáporsuaconta.Noentanto,pormaisaquelescemouros,tentareilevá-loatélá.

Avançaram até o nal da viela, aparentemente pouco usada, pelo enormeacúmulo de lixo e objetos abandonados: caixotes, mobília quebrada e artigosinde níveis encostados nas paredes. Jimmy afastou um caixote, revelandoumburaco.

— Isto deve bastar para nos afastar da rede de Radburn, pelo menos euespero—disseogaroto.

Arutha descobriu que tinha de rastejar para conseguir seguir o garotoatravés da passagemdiminuta. Pelo cheiro fétido do túnel, era óbvio que algo

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rastejara até ali e morrera havia pouco tempo. Como se tivesse lido o seupensamento,Jimmyexplicou:

—De vez emquando, jogamos aqui um gatomorto.Assimninguém vemmeteronariz.

—Jogamos?—perguntouArutha.Jimmy ignorou apergunta e continuou andando.Poucodepois, saíramem

outravielaatulhadadelixo.Àentradadaviela,JimmyfezsinalparaqueAruthaparasse e aguardasse. Avançou a passos rápidos pela rua escura, para logoregressarcorrendo.

— Os homens de Radburn. Deviam saber que o senhor iria se dirigir aoporto.

—Conseguiremospassarporeles?—Nempensar.Hámaisdeles aquidoquepiolhos emummendigo.—O

garotopartiunadireçãoopostapelaruanaqualtinhamentradovindosdaviela.Aruthao seguiue Jimmyvoltoua entrar emoutrobeco.Arutha esperavanãoter feito um mau negócio ao con ar naquele menino de rua. Após algunsminutosandando,Jimmyparou.—Conheçoumlugarondepoderáseesconderaté conseguir encontrarmais alguém para ajudar a levá-lo ao seu navio.Masterádepagarmaisdoquecem.

—Leve-meaomeunavioantesdodianascereeulhedareioquequiser.Jimmysorriu.—Seipedirmuito.—ContemplouAruthapormaisalgumtempoatéque,

fazendoumamesuracurtacomacabeça,saiuemdisparada.Aruthaoseguiueosdois avançarampela cidadeporcaminhos tortuosos.O somdaspessoasnarua diminuiu, e Arutha calculou que estavam entrando em um lugar menosfrequentado ànoite.Os edifícios ao redor indicavamque estavamchegando aoutraregiãopobredacidade,emboralongedasdocas,peloqueAruthasabia.

Depoisdeváriasviradasabruptasembecosescuroseestreitos,Arutha coucompletamenteperdido.Derepente,Jimmyvirou-seedisse:

— Chegamos.—Abriu uma porta em uma parede toda branca e entrou.Seguindoogaroto,Aruthasubiuumenormelancedeescadas.

Jimmyolevouporumcorredorcompridonotopodasescadasatéchegarauma porta. O garoto a abriu, fazendo sinal a Arutha para que entrasse. OPríncipedeuumúnicopasso,parandoaovertrêspontasdeespadasapontadasparaasuabarriga.

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U

7

Fuga

mhomemgesticulouparaqueAruthaentrasse.Ele estava sentado atrás de uma pequena mesa virada para a porta.Inclinando-seatéaluzdeumapequenalamparinasobreamesa,disse:

—Entre,porfavor.A luz revelou um rosto coberto de cicatrizes de varíola e um grande nariz

adunco.NãotirouosolhosdeAruthaquandoos trêshomenscomasespadasrecuaram para dar passagem ao Príncipe, que hesitou ao ver as formasamarradaseinconscientesdeAmoseMartinencostadasnaparede.OCapitãosemexeuegemeu,masMartinpermaneceuimóvel.

Aruthamediuadistânciaatéostrêshomenscomasespadas,mãopertodopunho de seu orete. Qualquer ideia de saltar e desembainhar a espadadesapareceu quando sentiu a ponta de uma adaga encostada em suas costas.Umamãoveiodetrásepegousuaespada.

Jimmy avançou à frente do Príncipe, examinando o orete enquantoescondia com cuidado a adaga nas dobras da túnica larga. Sorriu de orelha aorelha.

—Jávialgunsdestes.Étãolevequeeumesmoconseguiriausá-lo.—Considerandoascircunstâncias,talveznãofosseinapropriadolhedeixar

comoherança—retorquiuAruthasecamente.—Façabomusodele.—Guarde suas gracinhas para você— disse o homem de rostomarcado,

enquanto Arutha era empurrado para dentro da sala por um dos homens deespada.UmdosoutrosguardouaarmaeamarrouasmãosdeAruthaatrásdesuascostas.Emseguida,elefoiatiradocomforçaemumacadeira,emfrenteaohomem que falara, que prosseguiu: — Meu nome é Aaron Cook e você jáconheceu Jimmy, a Mão — indicou o rapaz. — Por enquanto, os outros

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preferempermanecernoanonimato.Aruthaolhouparaogaroto.—Jimmy,aMão?OrapazfezumaimitaçãodecentedeumamesuracortêseCookdisse:— O melhor batedor de carteiras de Krondor e a caminho de se tornar

também o melhor ladrão, se você acreditar na avaliação que ele faz de simesmo.Masvamosaoqueinteressa.Quemévocê?

ArutharelatouahistóriadesersóciodeAmos,dissequesechamavaArthureCooko estudoupacientemente. Suspirando, acenoucoma cabeça eumdoshomens calados avançou e deu um soco na boca de Arutha. A cabeça doPríncipeseinclinouparatrásdevidoàforçadogolpeeseusolhoslacrimejaram.

— Caro Arthur — disse Aaron Cook, sacudindo a cabeça —, podemosconduzir esta entrevista de duas formas. Aconselho a não escolher a maisdifícil.Serámuitodesagradávele caremossemsaberoquequeremos.Porisso,peçoqueconsidereassuasrespostascomcuidado.—Levantou-seecontornouamesa.—Quemévocê?

Arutha começou a repetir a história e o homemque o esmurrara voltou aavançar, e a resposta terminou com outro soco sonoro. O homem chamadoCook se inclinou,demodoa car caraa cara comArutha.OPríncipepiscouparaafastaraslágrimasdosolhoseCookdisse:

— Amigo, diga o que queremos saber. Agora, para não perdermos maistempo—apontouparaAmos—,queaqueleéocapitãodeseunavio,podemosadmitir,masvocêsersóciodele…nãoacredito.Aqueleoutrosefezpassarporumcaçadordasmontanhasemvárias tavernasdacidade, enãoachoque sejadisfarce;eletemjeitodeseralguémqueconheceasmontanhasmelhordoqueasruasdacidade,algodifícildefalsi car.—EleexaminouArutha.—Masvocêé,nomínimo,umsoldado, e as suasbotas caras e abela espadaodistinguemcomonobre.Noentanto,creioquenãosejaapenasisso.—OlhandonosolhosdeArutha,prosseguiu:—Diga,porqueJockoRadburnestátãoempenhadoemencontrá-lo?

AruthaolhouAaronCooknosolhos,semvacilar.—Nãosei.OhomemquebateraemAruthacomeçouaavançarnovamente,masCook

levantouamão.— Isso pode ser verdade. Você tem andado por aí como um tolo,

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aparecendoaquieali,rondandoosportõesdopalácio,sefazendodeinocente.Ousãoespiõesmuitoruins,ouentãosãopobres idiotas,masnãorestadúvidade que você despertou o interesse dos homens doVice-Rei e, dessa forma, onossointeresse.

—Quemsãovocês?Cookignorouapergunta.—JockoRadburnéoprincipalo cialdapolíciasecretadoVice-Rei.Apesar

daquela cara honesta, Radburn é um canalha inabalável de nervos de aço,daqueles comos quais raras vezes os deuses agraciaram estemundo.De bomgrado ele arrancaria o coração da própria avó se descon asse que a velhotaandoudivulgandosegredosdeEstado.Ofatodeteraparecidoempessoaindicaque,nomínimo, eleo considerapotencialmente importante.Umoudoisdiasdepois de você chegar aqui, camos sabendo que três homens andavambisbilhotandopelacidadee,quandoanossagenteouviudizerqueoshomensdeRadburnosestavamvigiando,decidimosfazeromesmo.Quandocomeçaramaoferecer pequenos subornos em troca de informações sobre os três, camosparticularmente interessados. Estávamos satisfeitos em apenas observá-los,esperando que revelassem o que queriam. No entanto, quando Jocko e seushomens apareceram no Sossego do Marinheiro, fomos forçados a agir.Apanhamos aqueles dois debaixo do nariz de Jocko, mas ele e seus homenscorreramporumatravessae caramentrenósevocê,etivemosdetirá-losdelá. Foi um golpe de sorte Jimmy ter encontrado você, pois ele não sabia queestávamosprontospararecebê-lo.—Acenouacabeçaparaogaroto,àguisadeaprovação.—Fezbememtrazê-loaqui.

Jimmyriu.— Estava nos telhados, vendo a cena toda. Soube que você iria querê-lo

assimquepegouosoutrosdois.Umdoshomenspraguejou.—MelhorvocênãoestarprocurandoumapromoçãosemordemdoMestre

daNoite,garoto.Cooklevantouamãoeohomemsecalou.—NãofazmalvocêsaberquealgunsdenóssãoZombadores,outrosnão,

mas estamos todos unidos em um empreendimento de grande importância.Preste atençãono que digo,Arthur.A sua única esperança de sair vivo daquidepende da nossa convicção de que você não coloca em perigo esse

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empreendimentoquemencionei.PodeserqueointeressedeRadburnemvocêseja pura coincidência com o interesse que ele tem em outros assuntos. Oupode haver aqui uma trama, com alguns padrões que ainda não foramdescobertos. Seja como for, descobriremos a verdade e, quando estivermossatisfeitoscomoquenoscontar, iremoslibertá-los,talvezatéosajudemos,ouiremosmatá-los.Agora,comecepeloinício.OqueotrouxeaKrondor?

Arutha re etiu. Mentindo, tinha pouco a ganhar a não ser sofrimento;porém não estava disposto a contar toda a verdade.Não tinha provas de queesseshomensnãoeramcolaboradoresdeGuy.Podiaserumestratagema,comRadburn no quarto ao lado, atento a tudo o que dizia. Decidiu que parte daverdadedeveriacontar.

—Souumagente a serviçodeCrydee.Vim falar comoPríncipeErlandecomLordeDulanic,pessoalmente,parapedir ajudacontraumataque tsurani.QuandosoubemosqueGuyduBas-Tyraestavacontrolandoacidade,decidimosavaliarasituaçãoantesdedecidirmosquerumoseguir.

Cookouviuatentamente,dizendoemseguida:—PorqueumemissáriodeCrydeeentrariaescondidonacidade?Porque

não entraria com os estandartes esvoaçando de modo a ser recebidooficialmente?

—PorqueGuy, oNegro,nãodemoraria a jogá-lodentrodeuma cela, seumalditoestúpido.

Cookvirouacabeça.Amosestavasentadoencostadonaparede,sacudindoacabeça,aindaatordoado.

—Achoquevocêquebrouaminhacabeça,Cook.AaronCookolhouatentamenteparaAmos.—Vocêmeconhece?—Éclaroqueconheço,suaratazanadomardecabeçaoca.Eoconheçotão

bemquenãodiremosnemmaisumapalavraatévocêbuscarTrevorHull.Aaron levantou-se da mesa, uma expressão hesitante no rosto. Fez sinal

paraumdoshomensjuntoàporta,quetambémpareciater cadoincomodadocomas palavras deAmos.OhomemacenouparaCook coma cabeça e saiu.Passadospoucosminutos,regressouseguidoporoutrohomem,alto,decabelosgrisalhos,mas com um aspecto vigoroso. Uma cicatriz rasgada ia da testa aoolho direito, que era de um branco turvo, e descia pela face. OlhoudemoradamenteparaAmos,atéquedeuumagargalhadasonoraeapontoupara

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osprisioneiros.—Desamarrem-nos.Amos foi erguido por dois homens, que o desamarraram. Enquanto as

cordasiamsesoltando,disse:—Acheiquetinhamenforcadovocêhámuitosanos,Trevor.Ohomemlhedeuumapalmadanascostas.—Eeuacheiquetinhamfeitoomesmocomvocê,Amos.Cook olhava curioso para o recém-chegado, enquanto desamarravam

Arutha e Martin era reanimado com um copo d’água no rosto. O homemchamadoTrevorHullolhouparaCookeorepreendeu:

—Paraonde foi o seu juízo, homem?Eledeixou crescer a barba e cortouseus famosos cachos compridos, perdeu algum cabelo no alto da cabeça etambémganhouunsquilos,mascontinuaaserAmosTrask.

CookestudouAmospormaisummomento,atéarregalarosolhos.—CapitãoTrenchard?AmosassentiueAruthaoolhou,espantado.AténaremotaCrydeetinham

ouvido falar de Trenchard, o Pirata, a Adaga dosMares. A sua carreira foracurta,masfamosa.EraditoquemesmogalésdeguerraqueguianasmudavamderumoefugiamquandoavistavamafrotadeTrenchard,enãohaviaumaúnicacidadeaolongodacostadoMarAmargoquenãotemesseosseussaqueadores.

AaronCookestendeuamão.—Desculpe-me,Capitão.Passaram-semuitos anosdesde aúltimavez em

que nos encontramos. Não sabíamos se faziam parte de um estratagema deRadburnparanoslocalizar.

—Quemsãovocês?—perguntouArutha.—Tudoaseutempo—respondeuHull.—Venham.Umdoshomens ajudouo ainda atordoadoMartin a se levantar, enquanto

Cook e Hull os levavam para uma sala mais confortável, com cadeiras paratodos.Sentados,Amosdisse:

— Este velhaco é Trevor Hull, Capitão Olho Branco, mestre doCorvoVermelho.

Hullsacudiuacabeçacomtristeza.—Nãomais,Amos.Meu navio foi incendiado ao largo de Elarial, há três

anos, por cúteres imperiais de Kesh. O meu imediato, Cook, e mais algunshomens, conseguiram chegar à costa comigo,mas grande parte da tripulação

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afundou com oCorvo Vermelho . Voltamos a Durbin, mas a situação estámudando, com as guerras e tudo mais. Viemos para Krondor há um ano edesdeentãoestamostrabalhandoaqui.

—Trabalhando?Você,Trevor?—Contrabandeando,naverdade—disseohomemsorrindo,comacicatriz

se enrugando.— Foi isso que nos uniu aos Zombadores. Pouco acontece emKrondor nessa área sem a permissão do Justo. Quando o Vice-Rei chegou aKrondor, começamos a nos confrontar com Jocko Radburn e sua políciasecreta.Ele temsidodesdeo inícioumapedraemnossocaminho. Issode terguardas se esgueirando por aí, vestidos como gente comum, não é nadahonrado.

—Sabiaquedeviaterlhecortadoagargantaquandotiveaoportunidade—resmungouAmos.—Dapróximaveznãosereitãocivilizado,raios.

—Está cando lento,Amos?Bem, há uma semana recebemosum recadodo Justo, dizendo que tinha um carregamento valioso para tirar da cidade.Tivemosdeesperarpelomomentocertoatétermosobarcoadequadoapostos.Radburn está ansioso para descobrir esse carregamento antes que saia deKrondor. Por isso, como veem, é uma situação bastante delicada, pois nãopodemos colocar nada a bordo até o bloqueio ser levantado ou atéencontrarmosumcapitãodobloqueioaquempossamossubornar.Quandonoschegou aos ouvidos que vocês andavam fazendo perguntas, achamos que setratavadeumgrandeardildeJockoparaencontraressamercadoria.Agoraqueoambiente coumaisleve,gostariadeouviraexplicaçãoparaarespostadadaàpergunta de Cook. Por que um emissário de Crydee temeria ser descobertopeloshomensdoVice-Rei?

— Estava escutando, é?—Amos virou-se para Arutha, que consentiu.—Não se trata de um simples emissário, Trevor. O nosso jovem amigo é oPríncipeArutha,filhodoDuqueBorric.

Os olhos de Aaron Cook se arregalaram e o homem que socou Aruthaempalideceu.TrevorHullbalançouacabeça,mostrandoentender.

—OVice-Reipagariamaravilhosamentebemparapôrasmãosno lhodeseu velho inimigo, especialmente quando chegar a hora de apresentar a suapretensãoaoCongressodosLordes.

—Quepretensão?—perguntouArutha.Hullinclinou-separaafrente,colocandooscotovelosnosjoelhos.

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—Vocênãosaberia,claro.Tambémsóouvimosháalgunsdiasessanotícia,enãoédeconhecimentogeral.Aindaassim,nãoestouautorizadoafalarcomfranquezasempermissão.

Levantou-see saiu.AruthaeAmos trocaramolharescuriososeoPríncipeolhouparaMartin.

—Vocêestábem?Martinlevouamãoàcabeça,tocando-acomcuidado.—Voumerecuperar,masdevemtermebatidocomumaárvore.Umdoshomensexibiuumsorrisoamigável,comoumpedidodedesculpas.—Ohomemédifícildederrubar,semdúvida—disseele,batendodeleve

emumporretepresoaocinto.Hullvoltou,seguidopormaisalguém.Oshomenspresentesselevantarame

Arutha,Amos eMartin seguiramo exemplo.Atrás deHull vinha uma jovemque não tinha mais de dezesseis anos. Arutha cou imediatamenteimpressionado pela promessa de beleza nas feições da garota: grandes olhosverde-claros,nariz retoedelicadoe lábios ligeiramentecarnudos.Vestígiosdesardas salpicavam a sua pele, que de resto era clara. Era alta e esguia ecaminhavacomaltivez.AtravessouasalaatéArutha, counapontadospésedeu-lhe um beijo delicado no rosto. Ele cou surpreso com o gesto,observando-arecuarcomumsorrisonoslábios.Vestiaumvestidosimplesazul-escuroeocabeloruivo-acastanhadocaíasoltoemseusombros.

—Maséclaro,que tolaeu sou—disseela,passadoumsegundo.—Vocênãomeconhece.EuovinaúltimavezemqueesteveemKrondor,masnuncanosencontramos.SousuaprimaAnita,filhadeErland.

O Príncipe cou estupefato. Além do efeito inquietante da garota em suacompostura, com o sorriso cativante e o olhar límpido, cou duplamentesurpresoporencontrá-lanacompanhiadaquelessalteadores.Sentou-sedevagare elaprocurouuma cadeira.Estava tãohabituado à informalidadeda cortedopaique couumpoucoadmiradoquandoeladeupermissãoaosoutrosparasesentarem.

—Como...?—começouArutha.—AmercadoriavaliosadoJusto?—interrompeuAmos.HullconfirmoueaPrincesafalou.Obelorostofoitomadodeemoção:— Quando o Duque de Bas-Tyra chegou com ordens do Rei, meu pai o

recebeucalorosamenteenãoofereceuresistência.Deinício,meupaifeztudoo

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queestavaaoseualcanceparaajudá-loaassumirocomandodoexército,mas,quandoouviuoqueGuyandavafazendocomsuapolíciasecretaeseusbandosderecrutamentoforçado,protestou.QuandoLordeBarryfaleceueGuycolocouLordeJessupnocomandoda frota,sobprotestosdemeupai,eLordeDulanicdesapareceudeformatãomisteriosa,meupaienviouumacartaaoRei,exigindooregressodeGuy.Guyinterceptouamensagemeordenouque cássemossobvigilância emuma ala do palácio. Foi então que, umanoite,Guy apareceu nomeuquarto.

Anitaestremeceu.—Vocênãoprecisafalarsobreisso—disseAruthaquasebufando.Araiva

repentinadeixouagarotasobressaltada.—Não—disse ela—,não foi nadadisso. Foi bastante respeitador, quase

formal.Informou-me,simplesmente,queiríamoscasar,equeoReiRodricirianomeá-loherdeirodotronodeKrondor.Elepareciaatéirritadopeloincômododeterdepassarportudoaquilo.

Aruthadeuummurronaparedeatrásdele.—Entãoé isso!Guyquera coroadeErlandeadeRodricemseguida.Ele

pretendeserRei.AnitaolhoutimidamenteparaArutha.— É o que parece. Meu pai não está bem de saúde e não pôde resistir,

emborativesseserecusadoaassinaraproclamaçãodonoivado.Guymandou-oparaasmasmorrasatéeleaassinar.—Seusolhosseencheramdelágrimasaodizer:—Meupainãopodeviveremumlugartãofrioeúmido.Temoquepossamorrer antes de concordar comos desejos deGuy.—Continuou a falar, seurosto dissimulando controle, embora as lágrimas escorressem enquanto falavadamãe e do encarceramento do pai.—Então umadasminhas aiasme disseque uma das criadas conhecia certas pessoas na cidade que talvez estivessemdispostasaajudar.

—Comsuapermissão,Alteza—disseTrevorHull.—Umadasgarotasnopalácio é irmã de um Zombador. Com tudo o que está acontecendo, o Justodecidiuque talvez fossevantajoso interferir.Tratoudearranjaruma formadetirar a Princesa do palácio na noite da partida de Guy e desde então ela estáaqui.

—EntãoorumorqueouvimosantesdefugirmosdoSossegodoMarinheirosobreacaçadaaum“parentereal”eraporcausadeAnita,enãodeArutha—

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disseAmos.HullindicouoPríncipe.—ÉpossívelqueRadburnesuagenteaindanãofaçamideiadequemvocês

são.Omaisprováveléquetenhamcaídoemcimadevocêsnaesperançadequeestivessem envolvidos na fuga da Princesa. É quase certo que oVice-Rei nãosaibaqueaPrincesadesapareceudopalácio,poiselaescapouapósasuapartida.CalculoqueRadburnestejadesesperadopararecuperá-laantesqueseusenhorregressedaguerracomKesh.

AruthaobservouaPrincesa,sentindoumavontademuitofortedeajudá-la,umanseioalémdarecompensadeenganarGuy.Pôsdeladoapeculiarpontadadeemoção.

—Porqueo Justo iriaquererentraremdisputacomGuy?—perguntouaTrevorHull.—Porquenãoaentregaporumarecompensa?

TrevorHullolhouparaJimmy,aMão,cujareaçãofoiumsorrisolargo.— O meu senhor, um homem muito perceptivo, logo notou que seus

interessesseriambene ciadosajudandoaPrincesa.DesdequeErlandsetornouPríncipe de Krondor, os assuntos da cidade sempre transcorreram semsobressaltos, um ambiente propício ao êxito dos empreendimentos do meusenhor.Aestabilidadeébené capara todos,compreende?ApresençadeGuyfaz com que a sua polícia secreta ande por aí, perturbando as transaçõeshabituais denossa guilda.Alémdomais, somos súditos leais de SuaAlteza, oPríncipedeKrondor. Se elenãoquerquea lha se case comoVice-Rei,nóstambémnãoqueremos.—Dandoumagargalhada,acrescentou:—Sejacomofor, a Princesa concordou em pagar vinte e cinco mil soberanos de ouro aonossosenhorseaguildaalevarparaforadeKrondor,sendodevolvidaquandoopairegressaraopoder,ouodestinocolocá-lanotrono.

AruthapegouamãodeAnitaedisse:— Bem, prima, não há mais nada a fazer. Temos de levá-la para Crydee

assimquepossível.AnitasorriueAruthaseviusorrindodevolta.—Comojádisse,estávamosàesperadaoportunidadecertaparafazê-lasair

dacidadeemsegredo—disseTrevorHull evirou-separaAmos.—Vocêéohomemcertoparaessatarefa.NãoháninguémmelhoremfurarbloqueiosdoquevocêemtodooMarAmargo,àexceçãodemimmesmo,claro,mastenhooutrosassuntosatratarporaqui.

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—Sópodemossairdaquiaalgumassemanas—disseTrask.—Mesmoqueobloqueio fosse levantado,omeunavioprecisadesesperadamentede reparos.Se partíssemos agora, teríamos de car dando voltas até que o tempomelhorasse nosEstreitos.Coma frota de Jessuppreparada para emboscar nomar, seria arriscado. Eu diria que seria melhor carmos escondidos aqui poralgumtempo,depoissairmosdepressarumoaoOeste,atravessandoosEstreitosesubindosemdemoraaCostaExtrema.

Hulllhedeuumapalmadanoombro.—Muito bem, assim teremos tempo.Ouvi falar de seu navio.Os rapazes

dizemqueépoucomelhordoqueumabarca.Vamosencontraroutro.Nahoracerta, enviarei uma mensagem a seus homens. É provável que Radburn nãoincomode a sua tripulação, na esperança de que você apareça por lá. Iremospassá-los para o outronaviodurante anoite, umde cada vez, substituindo-ospelos meus rapazes, assim os homens de Radburn não notarão nada deestranhoabordo.—Virou-separaArutha:—Estaráasalvoaqui,Alteza.Esteedifício é um de muitos que pertencem aos Zombadores, e ninguém seaproximasemquesejamosavisadoscombastanteantecedência.Nomomentocerto, iremos tirar todos vocês da cidade. Agora vamos levá-los a um quartoparaquepossamdescansar.

Arutha,MartineAmosforamlevadosparaumquartonofundodomesmocorredordasalaondetinhamestadocomAnita,enquantoaPrincesaregressouaosseusaposentos.Oquartoondeentraramerasimples,masestavalimpo.Ostrês estavam cansados. Martin deixou-se cair em um catre e adormeceudepressa. Amos se abaixou devagar e Arutha cou observando-o por algumtempo.

— Quando você chegou a Crydee, eu logo pensei que fosse um— disse,esboçandoumsorriso.

—Com toda a honestidade, tentei deixar tudo isso no passado, Alteza—disseAmos,debatendo-separadescalçarumabota.Riu.—Talveztenhasidoaforma de os deuses se vingarem de mim, mas sabe, durante quinze anos,homem e rapaz, fui corsário e capitão; quando tentei a minha sorte em umofício honesto, o meu navio foi capturado e incendiado, a minha tripulaçãochacinada e eu dei comigo encalhado tão longe do centro doReino quanto épossívelsemsairdeseuslimites.

Aruthasedeitouemseucatre.

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—Temsidoumbomconselheiro,AmosTrask,etambémumcompanheirocorajoso.Asuaajudaaolongodosanoslherendeuumagrandedosedeperdãopor crimes passados; porém — sacudiu a cabeça —, Trenchard, o Pirata!Deuses,homem,émuitoaperdoar.

Amosbocejoueespreguiçou-se.—QuandoregressarmosaCrydee,podemeenforcar,Arutha,masporora,

por favor, tenhaabondadede caremsilêncioeapagaravela.Estou candovelhoparaessastolices.Precisodormir.

Arutha estendeu amão, apagandoopavioda vela comapontadosdedos.Ficoudeitadonoescuro, com imagens epensamentos amontoadosna cabeça.Pensounopai e no que ele faria se estivesse em seu lugar, depois pensou emcomoestariamoirmãoeairmã.AopensaremCarline,lembrou-sedeRolande seuspensamentos sedirigiramaoprogressodas forti caçõesde Jonril.Comesforço, afastouosmilpensamentos edeixouamentevagar.Porém, antesdeser dominado pelo sono, lembrou-se deAnita, na ponta dos pés para lhe darum beijo no rosto e, novamente, sentiu uma agitação que tinha algo dedesconfortável.Aoadormecer,umlevesorrisoseformouemseuslábios.

nitabateupalmaselogiosamentequandoAruthaafastouapontadaespadade Jimmy. Omenino-ladrão corou pela falta de jeito demonstrada, mas

Aruthadisse:—Agorafoimelhor.O Príncipe e Jimmy andavam praticando esgrima básica; Jimmy usava um

oreteadquiridocompartedodinheiroqueAruthalhedera.TinhampassadootempoassimporummêseAnitatinhaohábitodeassistiraostreinos.SemprequeaPrincesaestavaporperto,ogeralmenteextrovertidoJimmy,aMão, cavareprimido,corandoostensivamentesemprequeelalhedirigiaapalavra.Aruthaestavacertodequeomenino-ladrãosofriadopiortipodepaixãopelaPrincesa,somente três anos mais velha do que ele. Arutha reconhecia a angústia dogaroto, pois também sedistraía comapresençada jovem.Apesarde estarnocomeçodaidadeadulta,comportava-secomagraciosidadedeumaeducaçãodacorte, tinhavivacidadede espírito e instrução, exibindoapromessade grandebelezanosanosvindouros.AruthaachavamaisfácilpensaremoutrosassuntosdoquenaPrincesa.

Oporãoondetrabalhavamomanejodeespadaeraúmidoepoucoventilado,

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elogoficouabafado.—Bastaporhoje,Jimmy—disseArutha.—Vocêcontinuaimpacientepara

darogolpe nale issopodeacabarsendofatal.Ébastantevelozeéexcelenteque possa aprender ainda jovem, mas lhe falta força no braço para darestocadas como fazem os homens mais velhos; com o orete, isso tambémpoderáacabarsendofatal.Lembre-se:ofioéparagolpear...

— ...e a ponta para matar — terminou Jimmy, com um sorrisoconstrangido. — Eu entendo que é preciso ser cauteloso contra um homemcomumaespada larga.Elepoderiapartir a lâmina seeu tentassebloquearemvezdemeesquivardogolpe,mascomoagir seumdessesguerreirosdooutromundomeatacassecomaquelaespadaenormequevocêdescreveu?

Aruthariu.—Descobririaquemcorremaisdepressa.—OrisodeAnitase juntouaos

deAruthaeJimmy.OPríncipecontinuou:—Falandosério,vocêprecisa cardoladofracodooponente.Comasespadasgrandes,oseuadversárioconsegueefetuarumgolpeeaívocêconsegueumaabertura...

AportaseabriueAmosentrou,acompanhadoporMartineTrevorHull.—Malditasorte,comoperdãodaPrincesa—disseoprimeiro.—Arutha,

aconteceuopior.— Não quem aí parados esperando que eu adivinhe — disse Arutha,

limpandoosuordatestacomumatoalha.—Oquefoi?—Asnotíciaschegaramestamanhã—disseHull.—Guyestáretornandoa

Krondor.—Porquê?—perguntouAnita.—ParecequeonossoLordedeBas-Tyra entrou emShamata ehasteouo

seu estandartenasmuralhas— respondeuAmos.—Ocomandante keshianoteveaelegânciademontarmaisumaofensiva,pelobemdoscostumes,edepoisquaseteveumataquedetantoquecorreudevoltaparacasa.Deixouumameiadúziadenobresdemenor importâncianegociandoas condiçõesdoarmistíciocom os tenentes de Guy, até ser redigido um tratado formal entre o Rei e aImperatriz keshiana. Só pode haver uma razão para Guy voltar com tantapressa.

—Elesabequeeufugi—disseAnitacomserenidade.—Sim,Alteza—disseTrevorHull.—Guy, oNegro, é esperto.Deve ter

umespiãoentreoshomensdeRadburn.Parecequenãocon acegamentenem

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emsuapolíciasecreta.Felizmente,aindatemosgentenopaláciolealaoseupaioununcasaberíamosdessareviravolta.

Aruthasentou-seaoladodaPrincesa.—Bem,então temosdepartirembreve.Navegamosdevoltaparacasaou

rumoaYlithparaalcançarmosomeupai.—Levando em conta as opções, nãohámuito quenos faça escolher uma

opção ao invés de outra. Ambas apresentam riscos e vantagens — a rmouAmos.

Martinolhouparaagarota,dizendoemseguida:— Embora não me pareça que o acampamento de guerra do Duque seja

adequadoparaumajovem.Amossentou-seaoladodeArutha.—AsuapresençaemCrydeenãoévital,pelomenosporenquanto.Fannon

eGardan sãohomenscapazes e, caso sejanecessário, acreditoquea sua irmãnão se sairá mal no comando. Devem ser capazes de manter a situação sobcontroletãobemquantovocê.

—Contudo—disseMartin—,vocêprecisaseperguntaroseguinte:oqueoseupaifaráquandosouberqueGuynãosógovernaKrondorcomoassessordeErlandcomomantémacidadesoboseujugo,quenãopretendeenviarajudaàCostaExtremaequequersubiraotrono?

Aruthabalançouacabeçacomvigor.—Temrazão,Martin.Vocêconhecebemomeupai.Issosigni caráguerra

civil. — A tristeza transpareceu em seu rosto. — Ele retirará metade dosExércitos do Oeste para marchar costa abaixo até Krondor e só irá pararquando tiver a cabeça de Guy em um poste nos portões da cidade. Aí carátraçado o rumo. Terá de virar para leste emarchar contra Rodric. Ele nuncadesejou a coroa para si, mas, uma vez em marcha, não poderá parar até aderrotaouavitóriaabsoluta.PorémacabariaperdendooOesteparaostsurani.Brucalnãoconseguiriacontê-lospormuitotempocomoexércitoreduzidopelametade.

—Essaguerracivilpareceumacoisahorrível—comentouJimmy.Arutha inclinou-se para a frente. Limpando a testa, olhou por entre os

cabelosmolhados.—Nãosetravaumaguerracivilháduzentosecinquentaanos,desdequeo

primeiroBorricassassinouomeio-irmão,Jon,oPretendente.Comparadocom

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o que ocorreria aqui, com todo o Leste mobilizado contra o Oeste, aquelaguerranãopassariadeumaescaramuça.

AmosolhouparaArutha,apreocupaçãoestampadanorosto.—Histórianãoéomeuforte,masachoqueserámelhordeixaroseupaina

ignorância a respeito dessa reviravolta até a ofensiva dos tsurani terminar naprimavera.

Aruthaexaloudemoradamente.—Nãohámaisnadaa fazer.SabemosqueCrydeenãopoderácontarcom

ajuda alguma.Quando regressar, poderei decidirmelhor. Talvez no conselho,com Fannon e os outros, consigamos arranjar uma forma de defesa paraquandoostsuranichegarem.—Oseutomeraquaseresignado.—MeupaiirásaberdosplanosdeGuynodevido tempo.Édifícilmanternotíciasdesse tipoemsegredo.Omelhorquepodemosesperaréquesóvenhaasaberdissoapósaofensivatsurani.Talvezentãoasituação já tenhamudado.—Peloseutomdevoz,eraóbvioquenãoacreditavaqueissofossepossível.

— Pode ser que os tsurani optem por marchar contra Elvandar ou queprossigamcomabatalhaatéoseupai—disseMartin.—Quempodedizer?

Arutha se recostou e percebeu que a mão de Anita estava pousada comdelicadezaemseubraço.

—Queescolhatemos?—disseele,emvozbaixa.—EncararapossibilidadedeperderCrydeeeaCostaExtremaparaostsuranioumergulharoReinoemumaguerracivil.OsdeusesdevemmesmoodiaroReino.

Amoslevantou-se.— Trevorme disse que tem um navio. Podemos zarpar dentro de alguns

dias.Comsorte,osEstreitosestarãodesanuviandoquandochegarmoslá.Perdidonamelancoliade suaderrotapessoal,Aruthamaloouviu.Vieraa

Krondor tão con ante. Conquistaria o apoio de Erland para a sua causa eCrydee seria salvo dos tsurani. Mas, naquele momento, enfrentava umasituaçãomaisdesesperadoradoquesetivessepermanecidoemsuaterra.Todosodeixaramsozinho,excetoAnita,quepermaneceuminutossilenciosossentadaaoseulado.

iguras sombrias se deslocavam em silêncio rumo ao cais. Trevor HullconduziaumadúziadehomenscomAruthaeosseuscompanheirospelas

ruas silenciosas. Andavam colados às paredes dos prédios e, de poucos em

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poucosmetros,Arutha olhava de relance para trás para veri car como estavaAnita. Ela devolvia o interesse do Príncipe com sorrisos corajosos, que quasepassavamdespercebidosnaescuridãoqueantecediaoamanhecer.

Arutha sabia que mais de uma centena de homens estava se deslocandopelas ruas adjacentes, varrendo a áreade sentinelasda cidade ede agentesdeRadburn. Os Zombadores tinham aparecido em peso para que Arutha e osoutrospudessemdeixaracidadeemsegurança.Nanoiteanterior,Hulltrouxeranotíciasdeque, aumcusto substancial,o Justoconseguiraqueumdosnaviosdobloqueiofosse“desviado”dasuaposição.Desdequesouberadarealsituação,incluindooplanodeGuyparase tornarPríncipedeKrondor,o JustoaplicaraosseussignificativosrecursosparaajudarnafugadeAruthaeAnita.APrincesacogitouseumdiaalguémdeforadaGuildadosLadrõesconheceriaaverdadeiraidentidadedo lídermisterioso.Considerandoalgunscomentários fortuitosqueAruthaouvirapor acaso, a impressão eradeque somente algunsZombadoressabiamquemeleera.

Com Guy a caminho da cidade, os homens de Jocko Radburn tinhamaumentado a busca em um nível quase frenético. Tinha sido instituído umtoque de recolher e, no meio da noite, entravam ao acaso em casas paravasculharem.Todosos informantesconhecidosdacidade,assimcomomuitosmendigos e alcoviteiros, tinham sido arrastados para as masmorras equestionados, mas, o que quer que os homens de Radburn zessem, nãoconseguiram descobrir o paradeiro da Princesa. Apesar de temerem muitoRadburn,oscidadãostemiamaindamaisoJusto.

nitaouviuHullfalandoemvozbaixacomAmos:—Éumnaviopara furarbloqueiosque sechamaCorredorMarinho , eo

nomelhefazjustiça.Nãohánaviomaisrápidonoporto,umavezquetodasosnavios de guerra estão fora, na armada de Jessup. Vocês devem ganharvelocidadeparaooeste.Osventosestãovindoprincipalmentedonorte,entãonavegarãograndepartedopercursocomelespelapopa.

—Trevor, já naveguei algumas vezes peloMarAmargo. Sei como sopra oventonestaépocadoanotãobemquantoqualqueroutrohomem—retorquiuAmos.

—Poisbem,comoquiser—Hull resfolegou.—OsseushomenseoourodoPríncipe jáestãosegurosabordoeosvigiasdeRadburnparecemnãotera

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menor ideia do que fazemos. Continuam vigiando oVento da Aurora comogatos à espreita de ratos, mas não querem saber doCorredor Marinho .Conseguimos arranjar documentos falsos que colocamos em um agentemercante, anunciando que o navio está à venda; por isso, mesmo que nãohouvessebloqueio,nuncaimaginariamqueeleiriasairdoporto.

Chegaram às docas e correram até um escaler. Ouviram sons abafados eArutha percebeu que os Zombadores e os contrabandistas de Trevor estavamcuidandodosvigiasdeRadburn.

Foi então que ouviram gritos vindos de trás.O som de ferro se chocandorompeuaserenidadedamadrugadaeAruthaouviuHullgritar:

—Paraobarco!Osomdebotasnamadeiradasdocasdesencadeouumtumultoquandoos

Zombadoressaíramemmassadasruaspróximas,interceptandoquemquerqueprocurasseobstruirafuga.

Chegaram ao nal da doca e desceram a escada que levava ao escaler.AruthaaguardounoaltoatéAnitaembarcaredepoissevirou.Aopôropénoprimeiro degrau, ouviu o som de cascos cada vez mais perto e viu cavalosabrindo caminho pela multidão de Zombadores, que, vítimas da investida,tombavam.Cavaleiros vestidos com o preto e dourado de Bas-Tyra brandiamespadas,demodoaselivraremdequemtentavaatrasá-los.

Martin gritou do escaler e Arutha desceu a escada em um instante. Aochegaraoescaler,umavozbradoudecima:

—Adeus!AnitaolhouparacimaeviuJimmy,aMão,penduradonabeiradadoca,um

sorriso nervoso no rosto. Como o garoto conseguira juntar-se a eles quandotodos achavam que tinha cado na segurança do esconderijo, Arutha nãoconseguia imaginar. Vendo o garoto desarmado, o Príncipe sobressaltou-se.Desafivelouofloreteelançou-oparaoalto.

—Tome,façabomusodele!—Tãorápidoquantoumaserpenteatacandoapresa,Jimmyapanhouabainhaedesapareceu.

Os marinheiros começaram a remar com vigor e o escaler se afastoudepressa das docas. Surgiram lanternas no cais à medida que o som da lutaaumentava.Mesmonaqueleperíodoqueantecediaaaurora,seouvirammuitosgritos de “O que está acontecendo?” e “Quem vem lá?” dos homens queguardavamosnavioseacarganoporto.Anitaespreitouporcimadoombrodo

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primo, tentando ver o que estava acontecendo. Cada vez mais lanternasapareciam e um incêndio começou nas docas. Grandes fardos de umamercadoriaqualquer,protegidosporumalona,explodiramemchamas.

Os que estavam no escaler viam nitidamente a luta. Muitos dos ladrõesescapavam pelas ruas da cidade ou saltavam para as águas geladas do porto.Arutha não conseguia ver em lugar nenhum a silhueta da cabeça grisalha deTrevor Hull, ou a forma menor de Jimmy. Até que viu claramente JockoRadburn, vestido com uma simples túnica, tal como o vira antes. Radburnaproximou-se da beira da doca, contemplando o escaler que se afastava.Apontouparaobarcofugitivocomaespada,gritandopalavrasqueseperderamnaconfusão.

Arutha se virou e viu a prima sentada no lado oposto, com o capuz caídopara tráseo rostodistintamentevisívelnaclaridadedo incêndio.Oseuolharestava preso à cena que se passava na costa, parecendo ignorar que estavaexposta. O Príncipe puxou depressa o capuz dela, cobrindo-lhe o rosto edespertando-adodeslumbramento,massabiaqueomaljáestavafeito.VoltouaolharparatráseviuRadburndarordensparaqueosseushomensseguissemosZombadoresfugitivosqueseafastavampelasdocas.Ficousozinho,atéquesevirou, desaparecendo na penumbra quando o escaler alcançou oCorredorMarinho.

Assimqueembarcaram,atripulaçãodeAmossoltouasamarrasesubiunosmastrosparaabrirasvelas.OCorredorMarinhocomeçouaseafastardoporto.

A prometida abertura no bloqueio do porto surgiu eAmos rumou até ela.Passaram antes que fosse feita qualquer tentativa para detê-los e, de repente,estavamforadoporto,emmaraberto.

Arutha sentiu uma exaltação incomum ao perceber que estavam livres deKrondor.AtéqueouviuAmospraguejar.

—Olhem!Àluzfracadafalsaaurora,Aruthaentreviuumaformaescuranolocalpara

onde Amos apontava. OGrifo Real, o navio de guerra de três mastros quetinham avistado ao entrarem no porto, estava ancorado além do molhe,escondidodavistadequemquerqueestivessenacidade.

—AcheiquetivesseidocomafrotadeJessup—disseoCapitão.—Malditoseja aqueleRadburn,queme saiuumbelodeumpatife astuto.Viránonossoencalço assimque embarcar.—Gritoupara quedessemmais pano às velas e

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emseguidacontemplouonavioquedeixavamparatrás.—EufariaumaoraçãoaRuthia se fosse o senhor,Alteza. Se conseguirmos ganhar tempo antes queaquele navio zarpe, talvez ainda consigamos escapar. No entanto, vamosprecisardetodaasortequeaSenhoradaBoaFortunapossadispensar.

manhã estava límpida e fresca. Amos e Vasco assistiam à faina datripulação com ar de aprovação. Os homens menos experientes tinham

sidosubstituídosporhomensescolhidosadedoporTrevorHull.Trabalhavamdepressaebem,eoCorredorMarinhodeslocava-sevelozparaoeste.

Anitaforalevadaparaumacabine,enquantoAruthaeMartinpermaneciamnoconvéscomAmos.Ovigiaanunciavaquenadavianohorizonte.

—Estamosporumtriz,Alteza—explicouoCapitão.—Seelescolocaramaquelenavioimensoacaminhoquandotiveramchance,sótemosumaouduashorasdevantagem.Ocapitãodelespoderáoptarpelo rumoerrado,mas,umavez que estamos tentando não sofrer uma emboscada pela armada de Jessup,certamenteirãoseguirjuntoàcostakeshiana,correndooriscodesedepararemcomumnaviobélicodeKeshparanãonosperderem.Não careisossegadoatépassarmos dois dias sem os avistar. No entanto, mesmo que zarpassem deimediato,sóconseguiriamreduzirumapequenadistânciaporhora.Porisso,atétermoscertezadequenosavistaram,émelhortodosdescansarmosumpouco.Desçamqueeumandareichamá-loscasoocorraalgumaalteração.

Arutha concordou e partiu.Martin o seguiu. O Príncipe desejou um bomdescansoaMartine couvendooMestredeCaçaentrarnacabinequedividiacomVasco.Aruthaentrouemsuacabine,detendo-sequandoviuAnitasentadaemseubeliche.Fechouaportadevagaredisse:

—Acheiqueestavadormindoemsuacabine.Elasacudiuacabeçadevagare,derepente,atravessouocurtoespaçoqueos

separava,encostandoacabeçanopeitodele.—Tenteiservalente,Arutha,mastivetantomedo—disseela,sacudidapor

soluços.Arutha cou parado, constrangido por um instante, até envolvê-la

delicadamente em um abraço. A atitude autocon ante se desmoronara eAruthapercebeunaquelemomentooquãojovemeraaPrincesa.Aeducaçãoeos modos da corte tinham servido para manter a compostura na companhiarudedosZombadoresduranteaquelemês,masamáscaranãosuportavamaisa

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pressão.—Vaificartudobem—disseArutha,afagando-lheocabelo.Ele emitiu outros sons tranquilizadores, sem ter consciência do que dizia,

sentindo-se perturbado pela proximidade da garota. Ela era jovem a ponto deele considerá-la ainda uma menina, mas já tinha idade para fazê-lo duvidardessa percepção. Nunca conseguira gracejar com as moças da corte comoRolandfazia,preferindoumaconversadireta,oquepareciadeixarassenhorasindiferentes. Além disso, também nunca dominara as atenções delas comoacontecia com Lyam, louro e bonito, de modos alegres e descontraídos. Emgeral, asmulheresodeixavamconstrangido e estamulher—oumenina,nãoconseguiadecidir—maisdoqueohabitual.

Quandoaslágrimasacalmaram,levou-aàúnicacadeiradaapertadacabineesentou-senobeliche.APrincesafungouumavez,conseguindoporfimfalar:

—Desculpe,issofoitãoinapropriado.Inesperadamente,Aruthacomeçouarir.—Masquegarotavocêé!—disse,comafeiçãogenuína.—Sefosseeuque

estivesse no seu lugar, escapulindo do palácio, escondendo-me entredegoladores e ladrões, esquivando-me dos patifes de Radburn e tudo o mais,teriatidoumcolapsohámuitotempo.

Ela tirouum lencinhodamanga e limpouonariz comdelicadeza.Depois,sorriu.

—Agradeço suas palavras,mas acho que você teria se saídomelhor. Nasúltimas semanas, Martin me falou muito sobre você e, de acordo com essesrelatos,vocêéumhomemdegrandebravura.

Aruthasentiu-seenvergonhadopelaatençãodequeeraalvo.— O Mestre de Caça tende a exagerar — disse, sabendo que não

correspondia à verdade, e mudou de assunto. — Amos diz que, caso nãoavistemosaquelenavionospróximosdoisdias,conseguiremosescapar.

Elabaixouoolhar.—Quebom.AruthaseinclinouparaafrenteeenxugouumalágrimadafacedaPrincesa;

mas,quasedeimediato,sentindo-seconstrangido,afastouamão.—VocêestaráasalvoconoscoemCrydee, longedosestratagemasdeGuy.

Aminhairmãirárecebê-lacalorosamenteemnossacasa.Elaesboçouumsorriso.

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A

—Aindaassim,estoupreocupadacommeupaiecomminhamãe.Aruthatentoutranquilizá-laomelhorquepôde.—Comvocê longedeKrondor,Guynão teránadaaganharprejudicando

osseuspais.Poderáforçarseupaiaassinaroconsentimentoparaquecasecomele,masErlandnãoperderánadaemfazê-loagora.Comvocêforadoalcancede Guy, o noivado será em vão. Antes que tudo isto termine, ainda iremosacertarascontascomonossoqueridoprimoGuy.

Anitasuspirou,sorrindoumpoucomais.—Obrigada,Arutha.Vocêfezcomquemesentissemelhor.Elelevantou-seedisse:—Tentedormir.Porora, careinasuacabine.—APrincesasorriuaose

dirigir ao beliche dele. Arutha fechou a porta ao sair. Já não precisava maisdescansar,entãovoltouaoconvés.OCapitãoestavaaoladodotimoneiro,comosolhosfixosàpopa.Aruthacolocou-seaoseulado.

—Ali,nohorizonte,oquevê?—perguntouAmos.Aruthaapertouosolhos,conseguindoavistarumpequenopontobrancono

azuldocéu.—Radburn?Amoscuspiuporcimadogio.—Eudiriaquesim.Adianteiraquetínhamosestádiminuindoaospoucos,

porém uma perseguição à popa é uma perseguição demorada, como diz oditado.Seconseguirmosnosmanterbastanteàfrentedurantetodoodia,talvezconsigamosescapulirànoite,sehouvernuvensescondendoonossorumo.

Aruthanadadisse,mirandooindistintopontoadistância.

o longo do dia tinham observado o navio que os perseguia crescerlentamente.Deinício,opontoaumentaracomumalentidãoexasperante;

depois, a uma velocidade assustadora. Arutha conseguia ver as velas comnitidez, não mais que uma mancha branca, e também um ponto preto nocalcês,quedeviaser,semdúvida,oestandartedeGuy.

Amosobservouo sol poente, diante doCorredorMarinho em fuga, depoisolhouparaonavioqueosseguia.

—Consegueveroqueé?—gritouparaovigialánoalto.—Umnaviodeguerradetrêsmastros,Capitão—gritouovigiaparabaixo.AmosolhouparaArutha.

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— É oGrifo Real. Irá nos alcançar ao pôr do sol. Se tivéssemosmais dezminutos, ou se o clima permitisse nos ocultar, ou se fosse só um poucomaislento...

—Oquevocêpodefazer?— Pouco. Com o vento pela popa, ele é mais rápido, tão rápido que não

conseguiremosnos livrardelecomnenhumtipodemanobraelaborada.Seeutentassenavegar àbolinaquando se aproximasse,podianosafastarumpoucodeles, pois ambos perderíamos velocidade, mas também sairíamos maisdepressada rotadurante algum tempo.Emseguida, assimqueeles ajustassemas velas, passariam à nossa frente.Mas com isso seguiríamos para o sul, e aolongodestaextensãodacostaháalgunsrecifesebancosdeareiaperigososnãomuito longe daqui. Seria arriscado. Não, entrará um pouco de barlavento.Quando estiver ao nosso lado, os mastros mais altos vão nos tirar o vento eficaremoslentososuficienteparaquenosabordemsempedirlicença.

Arutha couobservandoonavioseaproximarpormaismeiahora.Martinsubiu ao convés e cou vendo enquanto a distância entre os dois naviosdiminuía alguns pés a cada minuto que passava. Amos manteve oCorredorMarinhoafavordovento,levando-oaolimitedasuavelocidade;porémaoutraembarcaçãocontinuavaaganharterreno.

— Maldição! — exclamou Amos, quase bufando de frustração. — Seestivéssemosnavegandoparaleste,conseguiríamosperdê-losnaescuridão,masparaoesteverãoonossocontornonocéudoiníciodanoite,mesmodepoisdopôrdosol.Aindaconseguirãonosverenósnãoosveremos.

Osolbaixoueaperseguiçãocontinuou.Quandoosoliaseaproximandodohorizonte, uma furiosa bola vermelha acima domar verde-escuro, o navio deguerraosperseguiaamenosdemilmetros.

—Podiamtentarenredarocordameoudestruirnossoconvéscomaquelasbestasenormes—disseAmos—,mas,comagarotaabordo,Radburnécapazdenãoquererarriscar,commedodeferi-la.

Novecentos, oitocentos metros, oGrifo Real avançava utuandoimpiedosamente emdireção aoCorredorMarinho .Aruthaconseguiadiscernircontornos, pequenas silhuetas no cordame, negras contra o fundo vermelho-sanguedopôrdosol.

Quandoonavioemperseguiçãoestavaacercadequinhentosmetros,ovigiagritou:

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—Nevoeiro!Amosolhouparacima.—Paraquelado?—Asudoeste.Aumamilhaoumais.O Capitão precipitou-se para a proa, seguido pelo Príncipe. A distância,

viamosolsepôr,enquantoàesquerdaestendia-seumaenevoadafaixabrancaaolongodomarnegro.

—Pelosdeuses!—bradouAmos.—Aindatemosumachance.Em seguida, gritoupara que o timoneiro virasse de ló a sudoeste, e correu

paraapopa,comAruthalogoatrás.Quandochegaramlá,viramqueamudançaderumotinhadiminuídopelametadeadistânciaqueseparavaosnavios.

—Martin,conseguemirarnotimoneiro?—perguntouAmos.—Estáumpoucoescuro,masnãoédifícildeacertar—respondeuMartin,

apertandoosolhos.— Veja se consegue distraí-lo o su ciente para se esquecer de manter o

rumoatual.Martinpegou seuonipresente arco, esticando-o.Tirouuma echadeuma

jarda e mirou no navio que os perseguia. Aguardou, alternando o peso paracompensar o balançodonavio, e disparou-a.Comoumpássaro enfurecido, aflechaformouumarcoacimadaágua,passandopelapopadonavioinimigo.

Martinobservouopercursoda echaemurmurouum“Ah”parasimesmo.Em um único movimento uido, pegou outra echa, colocou-a na corda doarco,puxouedisparou.Elaseguiucaminhoidênticoàprimeira,mas,emvezdepassar pela retaguarda do outro navio, atingiu o gio, passando a poucoscentímetrosdacabeçadohomemaoleme.

D oCorredor Marinho , conseguiram ver o timoneiro doGrifo Real seatirandoparaacobertaelargandooleme.Onaviodeuumaguinadaecomeçouaseafastardorumo.

— Tem vento demais para fazer pontaria — explicou Martin, enviandooutra echa que caiu a poucos centímetros da primeira, mantendo o lemedesgovernado.

Aos poucos, a distância entre os navios começou a aumentar e Amosdirigiu-seàtripulação:

—Passemapalavra.Quando euderordemde silêncio, ohomemquederumsussurrosequervaivirariscadepeixe.

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Onaviobélico ziguezagueouatrásporumminuto, atéquevoltouao rumocerto.

—Parecequenãoseaproximarão tantodenós,Amos—disseMartin.—Nãoconsigofazeraflechaatravessarasvelas.

— Não, mas, se puder fazer o favor de manter aqueles rapazes na proaafastados da balista, carei agradecido. Acho que você conseguiu irritarRadburn.

MartineAruthaviramogrupodabalistapreparandoasarmas.OMestredeCaça lançou uma saraivada de echas tendo como alvo a proa do navio quevinha em perseguição, uma echa seguindo outra antes mesmo de chegar àmetade do trajeto. A primeira atingiu um homem na perna, fazendo-o cair,enquantoosoutrosseatiravamaochãoparaseprotegerem.

—Nevoeiroànossafrente,Capitão!—ouviu-seogritovindodecima.Amosdirigiu-seaotimoneiro:—Tudoabombordo.OCorredorMarinho desviou-separaosul.OGrifoReal seguiu-odeperto,

menos de quatrocentos metros atrás. Ao mudarem de rumo, o ventoenfraqueceu.Comaaproximaçãododensonevoeiro,AmosdisseaArutha:

— Ali os ventos diminuem até não passarem de um peido bilioso; vourecolherasvelas,paraqueosomdalonabatendonãonosdenuncie.

Entrarambruscamenteemumaparededenevoeirocinzentoecerrado,queescureciadepressaàmedidaqueosolbaixavanohorizonte.Assimqueonaviodesapareceudevista,Amosbradou:

—Recolhervelas!Atripulaçãoseguiuasordens,oquefezobarcodiminuiravelocidadequase

imediatamente.— Tudo a estibordo e passem a ordem de silêncio— disse o Capitão em

seguida.De repente, o navio cou silencioso como um cemitério. Amos virou-se

paraArutha,dizendoemumsussurro:—Há correntes aquique corremparaoeste.Vamosdeixarquenos levem

daquieesperemosqueocapitãodeRadburnsejaummarujodoMardoReino.— Cana do leme ameia-nau— sussurrou ao homem do leme. A Vasco,

disse:—Dêordemparaamarraremasvergas.Equemestiver láemcimanãopodesemexer.

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Derepente,Aruthanotouaquietude.Apósotumultodaperseguição,comogélido vento norte soprando, os panos e cordas soando nas vergas, a lonaesvoaçando constantemente, aquele nevoeiro cerrado e abafado trouxera umsilêncio nada natural. Um gemido ocasional de uma verga se mexendo ou oestalidodeumacordaeramosúnicos sonsnanévoaescura.Omedoarrastouosminutosnaaparentementeinterminávelvigília.

Foi então que, como um alarme soando, ouviram vozes e os sons de umnavio. De todos os lados chegavam ecos de vergas rangendo e lona batendoenquanto avançava na brisa. Arutha não conseguiu discernir nada durantevários minutos, até ver um brilho débil através da névoa na retaguarda,passando de nordeste para sudoeste; eram lanternas doGrifo Real que osperseguia.TodososhomensdoCorredorMarinho,noconvésenocordame,semantiveram em seus postos, com receio de semexerem devido ao ruído queseria levadoporcimadaáguacomoumclarim.Adistância,ouviramumgritodaoutraembarcação:

— Silêncio, raios! Não conseguimos ouvi-los com o barulho que estamosfazendo! — De repente, fez-se silêncio, exceto pela agitação da lona e dascordasdoGrifoReal.

O tempo ia passando, imensurável, enquanto aguardavam na escuridão.Subitamente,ouviramumrangidohorrível,ressoandocomooestrondodeumtrovão,umguinchoestridentedemadeiraarrebentandoerachando.Nomesmoinstanteouviram-segritosdehomenseclamoresdepânico.

Amosvirou-separaosoutros,ameia-luz.— Bateram em um banco de areia. Pelo som, arrebentaram o casco por

baixo. São homens mortos. — Deu ordem para que o leme fosse dirigido anoroeste,afastandoonaviodosrecifes,eosmarinheiroshastearamdepressaasvelas.

—Queformahorríveldemorrer—disseArutha.Martin encolheu os ombros, parcialmente iluminado pelas lanternas que

eramtrazidasparaoconvés.—Existealgumamaneiraagradável?Jávipiores.Aruthadeixouo tombadilho, ainda conseguindoouvir adistânciaos gritos

lastimosos dos homens que se afogavam, emmacabro contraste com o gritomaismundanodeVascoparaqueabrissemacozinha.Fechouaportaquedavaparaascamaratas,deixandoaquelessonstristesdoladodefora.Abriuaporta

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da sua cabine e viu Anita dormindo à luz fraca de uma vela coberta por umquebra-luz.Oseucabelocastanho-avermelhadopareciaquasenegro,espalhadoaoredordacabeça.Elecomeçavaafecharaportaquandoaouviuchamar:

—Arutha?Entrou,vendo-aolharparaeleameia-luz.Sentou-senabeiradobeliche.—Vocêestábem?—perguntouArutha.Elaseespreguiçou,acenandoafirmativamentecomacabeça.— Dormi profundamente. — Arregalou os olhos. — Está tudo bem? —

Sentou-se,aproximandoseurostoaodoPríncipe.Aruthaestendeuosbraçoseaenvolveuemumforteabraço.—Estátudobem.Estamosasalvo.Elasuspirou,pousandoacabeçaemseuombro.—Obrigadaportudo,Arutha.Aruthanãorespondeu,repentinamentetomadoporumaforteemoção,um

sentimentoprotetor,umanecessidadedemanterAnitaemsegurança,decuidardela.Assimpermaneceramdurantemuito tempo,atéqueconseguiurecuperarocontroledesuasemoçõesinquietantes.

—Vocêdeveestarcomfome,acho—disse,afastando-seumpouco.Elariu,umsomgenuinamentejovial.—Sim,estou;naverdade,estoufaminta.—Voupedirque lhe tragamalgo,masseráumacomidamodesta, lamento

dizer,mesmocomparadaaoquelheeradadopelosZombadores—disseele.—Qualquercoisaserve.Ele subiu ao convés e deu ordens a ummarujo para que fosse à cozinha

buscarcomidaparaaPrincesae,quandovoltou,encontrou-asepenteando.—Devoestarhorrível—disseela.Arutha percebeu que lutava contra o impulso de sorrir. Não conseguia

explicar,massesentiafeliz.—Nemumpouco—disse.—Naverdade,vocêestámuitobonita.APrincesaparoudesepenteareele semaravilhoucoma formacomoela

parecia tão jovem em umminuto para no seguinte parecer umamulher. Elasorriu.

—Lembro-medetermeescondidoparavê-loduranteojantarnacortedemeupai,daúltimavezquevocêesteveemKrondor.

—Paramever?Porquefariaisso?

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APrincesapareceuignorarapergunta.—Naquelaépoca,tambémoacheibonito,aindaqueumpoucocarrancudo.

Umgarotome levantouparaque eupudesseolhá-lo.Veio coma comitivadeseupai.Esqueci-mecomosechamava,maseledissequeeraaprendizdemago.

OsorrisodeAruthadesapareceu.—EraPug.—Oqueaconteceucomele?—Nósoperdemosnoprimeiroanodaguerra.— Lamento — disse ela, largando a escova. — Ele foi gentil com uma

criançachata.— Era um bom garoto, dado a atos de bravura, e tambémmuito especial

paraaminha irmã.Ela sofreupor seudesaparecimentodurantemuito tempo.—Reprimindo certamelancolia, prosseguiu:—Agora, por que a Princesa deKrondoririaquererespreitarumprimodistanteerústico?

AnitafitouAruthademoradamente,atéquerespondeu:—Queria vê-lo porque os nossos pais achavam provável que viéssemos a

noscasar.Arutha cou atônito. Precisou de todo o controle possível para manter a

compostura.Puxouaúnicacadeiraesentou-se.—Oseupainuncalhefalousobreisso?—perguntouAnita.Porfaltadeumarespostaengenhosa,Aruthase limitouasacudiracabeça.

Anitaassentiu.— Eu sei, a guerra e tudo o mais. Realmente, a situação cou bastante

descontroladapoucodepoisdepartiremparaRillanon.Aruthaengoliuemseco,percebendoque caracomabocarepentinamente

seca.—Agora, o que você dizia sobre os planos de nossos pais para o... nosso

casamento?AruthaolhouparaAnita,cujosolhosverdestremeluziamcomosreflexosda

luzdavelaecomalgomais.— Receio que se trate de assuntos de Estado. Meu pai queria reforçar a

minha pretensão ao trono e Lyam seria uma aliançamuito perigosa, sendo oprimogênito.Vocêseria ideal,poisoReicertamentenão iriaseopor...ounãose oporia naquela época, acho. Agora, com Guy decidido a car comigo,suponhoqueoReidevaestardeacordocomele.

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Desúbito,Aruthaficouirritado,emboranãosoubesseaocertoomotivo.— E suponho que nós não seriamos consultados sobre este assunto! —

Haviasubidootomdevoz.—Porfavor,nãoéculpaminha.—Perdão.Nãoqueriaofendê-la.Équenuncapenseimuitoemcasamento,

e muito menos por razões de Estado. — O sorriso irônico regressou. —Normalmente,éassuntoparaos lhosmaisvelhos.Viaderegra,nós,osoutroslhos, temos de nos virar omelhor que conseguirmos, uma condessa viúva evelhaoua lhadeummercadorrico.—Tentoufazerpoucocasodoassunto.—Abela lhadeummercadorrico,setivermossorte,oquenãoacontececomfrequência.—Elenãoconseguiufalaremumtommaisleveerecostou-se.Porm,disse:—Anita,vocêpermaneceráemCrydeepelotempoqueforpreciso.Talvez possa ser perigoso, durante algum tempo, por causa dos tsurani, masresolveremosissodealgumaforma;talvezaenviemosparaCarse.Quandoestaguerra terminar, você voltará para casa em segurança, eu prometo. E nunca,nuncaalguémiráforçá-laafazeroquequerquesejacontraasuavontade.

Aconversafoi interrompidaquandoalguémbateuàporta.Ummarinheiroentrou comuma tigela fumegante de ensopadode peixe, pãoduro e carnedeporco salgadaemuma travessa.Enquantoomarinheiro colocavaa comidanamesa e servia um copo de vinho, Arutha observava Anita. Quando omarujosaiu,ajovemcomeçouacomer.

OPríncipe falou de trivialidades com a prima, sentindo-se,mais uma vez,cativado por seusmodos sinceros e atraentes.Quando, por m, desejou boa-noite e fechou a porta, percebeu de repente que a ideia de um casamento deEstado lhe causava somente um ligeiro desconforto. Subiu ao convés; onevoeiro levantara e navegavam novamente com uma ligeira brisa de popa.Olhou para as estrelas no céu e, pela primeira vez emmuitos anos, assobiouumaáriaalegre.

Juntoaoleme,MartineAmosdividiamumodreefalavamemvozbaixa.—OPríncipepareceexcepcionalmentebem-dispostoestanoite—disseo

Capitão.Martindeuumabaforadanocachimbo,quefoilevadadepressapelovento.—Aposto que ele sequer percebe o que o faz se sentir tão alegre.Anita é

jovem,masnãoéassimtão jovemparaqueelepossacontinuara ignorarsuasatençõesdurantemuitomaistempo.Seelajásedecidiu,eeuestoucertodeque

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Q

já, ela o terá amarrado dentro de um ano. E ele cará feliz por ter sidoapanhado.

Amosriu.—MasvaidemorarumpoucoatéAruthaadmitir.Estoudispostoaapostar

queojovemRolandserálevadoaoaltarantesdeAnita.Martinsacudiuacabeça.— Issonão é apostanenhuma.Roland foi apanhadohá anos.Anita ainda

temtrabalhopelafrente.—Querdizerquenuncaesteveapaixonado,Martin?—Não,Amos—respondeu.—Oscaçadores,assimcomoosmarujos,não

são bons maridos. Ficam pouco tempo em casa e passam dias, até semanas,sozinhos.Costumamossermuitosolitáriosemelancólicos.Evocê?

—Não que se percebesse.—Amos suspirou.—Quantomais velho co,maispensonoqueperdi.

—Mudariaalgumacoisa?— Provavelmente não,Martin, provavelmente não— disse Amos, dando

umarisada.

uando o navio atracou no cais, Fannon eGardan desmontaram.AruthaacompanhouAnita pelo portaló e apresentou-a aoMestre de Armas de

Crydee.—Não temos carruagens emCrydee,Alteza—disse-lhe Fannon—,mas

pedirei que enviem de imediato uma charrete. É uma longa caminhada até ocastelo.

Anitasorriu.— Eu sei montar, Mestre Fannon. Qualquer cavalo que não seja muito

ariscoserviráperfeitamente.Fannondeuordensparaquedoisdosseushomensfossematéascavalariças

etrouxessemumdoscorcéisdeCarline,assimcomoumaselaadequada.—Quaissãoasnovidades?—perguntouArutha.FannonafastouumpoucooPríncipe,paradizer:—Degelo tardionasmontanhas,Alteza,demodoquenãohouvequalquer

grandemovimentaçãodos tsurani até agora.Algumasdasguarniçõesmenoressofreram ataques, mas nada indica que vá ocorrer uma ofensiva aqui naprimavera.Provavelmenteirãoavançarsobreaposiçãodeseupai.

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—Esperoquetenharazão,poismeupairecebeugrandepartedaguarniçãokrondoriana. — Em linhas gerais, descreveu o que ocorrera em Krondor,enquantoFannonouviaatentamente.

— Tomou a decisão certa quando optou por não navegar até oacampamentode seupai.Achoqueavalioubema situação.Nãohaverianadamais desastroso do que um grande ataque tsurani contra a posição doDuqueBorric, com elemobilizando forças paramarchar contra Guy. Por enquanto,isso caráapenasentrenós.Logooseupaisaberáoqueaconteceu,masquantomais tempodemoraremdescobrira traiçãodeGuy,maischances teremosdemanterostsuraniafastadosmaisumano.

Aruthapareceupreocupado.— Esta situação não poderá se manter por muito mais tempo, Fannon.

Precisamos acabar com esta guerra logo.—Virou-se por ummomento e viuque aspessoasda cidade começavamaolharboquiabertaspara aPrincesa.—Pelomenosaindanosrestaalgumtempoparapensaremformasdeconterostsurani,seconseguirmosnosconcentrarnoassunto.

OMestredeArmaspensouporummomento,começouafalarelogoparou.Asuaexpressãoestavatriste,quasedoída.

—Oquefoi?—perguntouArutha.— Eu tenho notícias importantes e graves, Alteza. O Escudeiro Roland

morreu.Arutha cou abalado com a notícia. Por um brevemomento, pensou que

Fannon estivesse lhepregandoumapeçademaugosto, pois a suamentenãoaceitavaoqueacabaradeouvir.

—Oquê...Como?—disseporfim.— A notícia chegou há três dias, enviada pelo Barão Tolburt, que está

extremamenteconsternado.OEscudeirofoimortoemumataquetsurani.Aruthaolhouparaocastelonacolina.—Carline?—Como seria de esperar. Ela está sofrendomuito,mas aomesmo tempo

estáaguentandobem.Aruthareprimiuumasensaçãosufocante.Comorostocobertode tristeza,

voltou para junto de Anita, Amos e Martin. A notícia de que a Princesa deKrondor estava no cais se espalhara. Os soldados que tinham acompanhadoFannon eGardan formavamumcírculo silencioso ao redordela,mantendoo

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povo a uma distância respeitosa, enquanto Arutha compartilhava as tristesnotíciascomAmoseMartin.

Pouco depois, os cavalos chegaram e todos montaram, cavalgando emdireção ao castelo. O Príncipe esporeou o cavalo e já desmontava quando osoutros entraram no pátio. Era aguardado por grande parte dos serviçais docasteloe,semgrandescerimônias,gritouparaSamuel,oMordomo:

— A Princesa de Krondor é nossa hóspede. Providencie aposentos.Acompanhe-aaograndesalãoedigaquemejuntareiaelaembreve.

Entrou apressadamente na torre, passando pelos guardas, que caram emposiçãodesentidoquandopassouporeles.ChegouaosaposentosdeCarlineebateunaporta.

—Quemé?—ouviuavozdelicadavindadedentrodoquarto.—Arutha.A porta se abriu de repente e Carline lançou-se nos braços do irmão,

abraçando-ocomforça.—Oh,estoutão felizporvocê tervoltado!Nemsabequanto.—Recuoue

olhouparaArutha.—Desculpe.Euqueriadescerpara recebê-lonocais,masnãotivecoragem.

—Fannonacaboudemecontar.Sintomuito.Carlineoolhoucomserenidade,orostomarcadopelaresignação.Pegou-o

pelamãoelevou-oparadentrodeseusaposentos.—Sempresoubequepodiaacontecer—disseela, sentadaemumdivã.—

Foiridículo,sabe?OBarãoTolburtescreveuumacartaextensa,pobrehomem.Estevepoucotempocomo lhoeestavaarrasado.—Aslágrimascomeçaramasurgireelaengoliuemseco,desviandooolhardeArutha.—Rolandmorreu...

—Nãoprecisamecontar.Elasacudiuacabeça.— Não faz mal. Dói... — Novamente, as lágrimas caíram, mas ela falou

enquantochorava:—Oh,dóitanto,masvousuperarador.FoiRolandquemeensinoua fazê-lo,Arutha.Sabiaqueos riscosexistiameque, seelemorresse,eu teria de continuar a viver aminha vida. Ensinou-me bem. Acho que pelofatodeter,por m,entendidooquantooamavaeporterditoissoaele,ganheiforçaspara lidar coma suaperda.Rolandmorreu tentando salvar as vacasdeunscamponeses.—Entrelágrimas,sorriu.—NãoétípicodeRoland?Passouoinverno todo construindo o forte, até que, na primeira vez que ocorre um

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con ito, é comum grupo de tsurani esfomeados tentando roubar umas vacasmagricelas.Rolandsaiuacavalocomosseushomensparaafugentá-los,masfoiatingidoporuma echa.Foioúnicoatingido,morrendoantesdeconseguiremlevá-lo de volta ao forte. — Suspirou demoradamente. — Às vezes era tãobrincalhãoquequaseacheiquefezdepropósito.

ComeçouasoluçareAruthaaobservouemsilêncio.Elarecuperoudepressaocontrole,prosseguindo:

— Nada de bom poderá vir disso, sabe? — Levantou-se, indo olhar pelajanelaedizendocomserenidade:—Malditasejaestaguerraestúpida.

Aruthaaproximou-se,abraçando-acomforça.—Malditassejamtodasasguerras—disse.Ficaramcaladosalgunsminutos,atéqueCarlineperguntou:—Conte-me,quenotíciastrazdeKrondor?Arutha fez um breve relato das experiências pelas quais passara em

Krondor,mantendopartedaatençãocentradanairmã.Elapareciateraceitadoa perda de Roland com mais facilidade do que quando chorara pelodesaparecimentodePug.OPríncipepartilhavaadordairmã,emboratambémestivesse certo de que ela iria superá-la. Ficou feliz por perceber que Carlineamadurecerabastanteaolongodosúltimosanos.QuandoterminouorelatodoresgatedeAnita,Carlineointerrompeu:

—Anita,aPrincesadeKrondor,estáaqui?AruthaconfirmoueCarlinecomentou:— Eu devo estar horrorosa e você traz a Princesa de Krondor para cá.

Arutha, você é um monstro. — Correu até um espelho de metal polido eocupou-sedorosto,passandoumpanoúmidopelasfaces.

Arutha sorriu. Sob o manto do luto, a irmã não deixava de exibir umlampejodasuadisposiçãonatural.

Penteando-se,Carlinesevirouparaoirmão:—Elaébonita,Arutha?Olevesorrisoirônicofoisubstituídoporumsorrisolargo.—Sim,eudiriaqueébonita.Carlineexaminouorostodoirmão.— Estou vendo que terei deme tornar íntima dela.— Largou a escova e

ajeitouovestido.Estendendoamãoparaqueeleasegurasse,disse:—Vamos,nãopodemosdeixarasuajovemsenhoraàespera.

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De mãos dadas, saíram do quarto e desceram as escadas até o corredorprincipal,paradaremaAnitaasboas-vindasaCrydee.

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A

8

OGrande

cidadepodiaservistadacasaabandonada.Olocalondeforaconstruídajávira,emoutrostempos,asluzesdeumagrande mansão de família. Estava no topo da mais alta das muitas

colinas onduladas que rodeavam a cidade de Ontoset e tinha aquela que eraconsiderada amelhor vista da cidade e domarmais além.A família quenelahabitara cara arruinada, resultado de estar no lado derrotado em uma dasmuitassutiseletaiscontendaspolíticasdoImpério.Acasaestavaemavançadoestadodedeterioraçãoeapropriedadeforaabandonada,pois,emborafosseumesplêndidopontoparaconstruçãocomooutrosnaárea,aassociaçãoàmásorteerarealdemaisparaossupersticiosostsurani.

Um dia, chegaram notícias à cidade de que uns pastores de kula tinhamavistadoumaúnica silhuetademantonegro subindoacolina rumoàcasaemruínas.Todosagiramdepressaparaevitá-lo, comoeraadequadoà suaposiçãosocial. Ficaram na área, tratando de seus animais — a fonte de seus parcosrendimentos era a lã de kula —, quando, perto do meio-dia, ouviram umestrondo,comoseocéuacimativessesidorasgadopeloavôdetodosostrovões.Apavorado,orebanhosedispersouealgunskulasubiramacolina.Ospastores,aindaque igualmente aterrorizados,permaneceram éis aoofício e, afastandoostemores,correramatrásdosanimais.

Umdospastores,umhomemchamadoXanothis,chegouaotopodaoutrorafamosa colina, sendo recebido pela visão do mago de manto negro que viraantes, de pé, no cume.No local onde atémomentos antes estivera a enormecasa em ruínas, via-se uma grande extensão de terra fumegante e nua, váriosmetrosabaixodoníveldarelvaqueacircundava.Temendoter interferidoemumassuntodeumGrande,Xanothiscomeçouarecuar,naesperançadepassar

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despercebido, pois o Grande estava de costas para o pastor e tinha o capuzsobre a cabeça. Ao dar o primeiro passo para trás, omago virou-se para ele,fixando-ocomumpardeprofundoseperturbadoresolhoscastanhos.

Opastor caiude joelhos, comoexigia a tradição, osolhospostosno chão.Não se abaixou por completo, pois era um homem livre e, embora nãopertencesseànobreza,erachefedefamília.

—Levante-se—ordenouomago.Ligeiramenteconfuso,Xanothisseergueu,semlevantarosolhosdochão.—Olheparamim.Ohomem levantoua cabeçaedeparou-se como rostonocapuz tando-o

atentamente.Uma barba tão escura quanto os olhos enquadrava um rosto depeleclara,detalhequecontribuiuparaodesconfortodeXanothis,poissomenteos escravos usavam barba. O mago sorriu diante de sua evidente confusão eandouaoseuredor,examinando-o.

O mago reparou que era um homem alto para um tsurani, dois a cincocentímetrosacimadosseusummetroesetenta.Depeleescura,comochochalímpidaoucafé.Tinhaolhospretos,assimcomoocabelo,com osgrisalhos.Atúnicaverdeecurtadopastorexibiaaconstituiçãofortedeumantigosoldado,fatoqueomagodeduziuapartirdaposturadohomemepelasváriascicatrizes.Aparentavatermaisdecinquentaanos,masaindaeracapazdesuportaravidaárduadepastor.Emboramaisbaixo,estehomemofaziaselembrardeGardandeCrydee.

—Seunome?—perguntouomago,dandoavoltae candodefrenteparaopastor. Xanothis respondeu em um tom de voz que denunciou oconstrangimento que sentia. Foi então que o mago o surpreendeu com apergunta:—Vocêdiriaqueesteéumbomlugarparaumacasa,pastor?

Confuso,Xanothisbalbuciou:—Se...seessa...forasuavontade,Grande.—Nãopergunteoqueeupenso!—retorquiuomago.—Pediasuaopinião!Xanothis mal conseguia ocultar a raiva diante da própria vergonha. Os

Grandeseramsacrossantoseenganarumdeleseracometerumadesonra.—Perdoe-me,Grande.Dizemqueestelugarfoiamaldiçoadopelosdeuses.—Quemdizisso?A brusquidão na voz domago levou a cabeça do homemmais velho a se

erguerrepentinamente,comosetivessembatidonele.Osolhosnãoescondiam

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araivaquesentia,masavozpermaneceucalmaaodizer:—Oshabitantesdacidade,Grande,eoutrosespalhadospelocampo.—O

pastorolhounosolhosdomago,semdesviaroolhar,eestesganharamlinhasde satisfação, e os cantos de seus lábios subiram um pouco, ainda que a vozcontinuasseressoando:

—Querdizerquevocênãopensaassim,pastor?—Fui soldadodurantequinzeanos,Grande.Percebique, emvárioscasos,

osdeusesfavorecemaquelesquecuidamdeseuprópriobem-estar.Omago sorriu aoouvir aquelaspalavras, emboranão fosseumaexpressão

totalmenteafável.— Um homem com autocon ança. Ainda bem. Fico feliz de ver que

pensamosdemodoparecido,poispretendoconstruiraminhacasaaqui,jáquegostodeveromar.

O mago percebeu certo constrangimento na atitude do homem diantedaquelecomentário.

—Tenhoasuaaprovação,XanothisdeOntoset?—perguntou.Xanothismudouopesodocorpodeumapernaparaaoutra,atéquedisse:— O Grande está zombando de mim. Tenho certeza de que a minha

aprovaçãooudesaprovaçãonãotemimportância.— De fato, porém você continua evitando responder. Tenho a sua

aprovação?—Tereidedeslocarosmeusrebanhos,Grande—disseXanothis,deixando

osombroscaíremligeiramente.—Sóisso.Nãoquerofaltaraorespeito.—Conte-mesobreacasaqueexistiaaquiatéodiadehoje,Xanothis.—EraaresidênciadoLordedeAlmach,Grande.Eleapoiouoprimoerrado

contra Almecho quando foi contestado o posto de Senhor da Guerra. —Encolheuosombros.—JáfuiLíderdePatrulhadestacasa.Eueraumhomemorgulhoso, o que limitava aminha carreira como soldado.Omeu senhormedeupermissãoparadeixaroseuserviçoemecasar,porissopasseiacuidardosrebanhosdopaideminhaesposa.Senãotivessedeixadodesersoldado,agoraseria escravo, estaria morto ou seria um guerreiro cinzento. — Olhou derelanceparaomaraolonge.—Quemaisdesejasaber,Grande?

—Podedeixarosseusrebanhosnestacolina,Xanothis—disseomago.—Os animais mantêm a grama aparada, e não gosto de terrenos descuidados.Apenasmantenha-osafastadosdacasaprincipal,ondeestarei trabalhando,ou

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U

ireicozinharumparaojantar,devezemquando.Semmais uma palavra, omago tirou um dispositivo domanto e o ativou.

Por ummomento, ouviu-se um estranho zumbido, até que a gura demantonegrodesapareceucomumbreveestalo.Xanothis couemsilêncioporalgunsminutos,retomandodepoisaprocurapelosanimaisperdidos.

Naquela noite, em volta de uma fogueira, contou à família e aos outrospastores o encontro que tinha tido com o Grande. Ninguém duvidou de suapalavra,pois,apesardeseusdefeitos,Xanothisnãoerahomemdeaumentaraverdade, mas caram espantados. Além disso, não conseguiam se habituar aoutra situação: ao longo dosmeses seguintes, enquanto uma novamansão iasendoconstruída,umououtrodospastores avistavaocasionalmenteXanothisconversando com um Grande, no alto da colina, enquanto os kula pastavammaisabaixo.

ma casa nova e estranha se erguia no alto da colina. Era fonte tanto dealguma especulação quanto de um pouco de inveja. A especulação era

sobre o proprietário, o estranho Grande. A inveja se devia ao estilo e àconstrução,querepresentavamcertarevoluçãonaarquiteturatsurani.Nãoerao tradicional edifíciode trêspisos, abertono centro.Em seu lugar, tinha sidoconstruídoumedifíciodeumúnicopiso, apresentandováriosoutrosmenoresligadosporpassagenscobertas.Era irregular,possuindovários jardinsecanaisde água serpenteando entre as estruturas. Tal como o estilo, a construçãotambémprovocougrande comoção,pois a casa era, sobretudo, feitadepedra,com telhas de terracota no telhado. Alguns achavam que era uma proteçãocontraocalordoverão.

Doisoutrosfatoressesomavamaofascíniomanifestadopelacasaeporseuproprietário.Emprimeiro lugar, a formacomooprojeto foracontratado.Umdia,omagoaparecera emOntoset,na casadeTumacel, o agiotamais ricodacidade. Apropriara-se demais de trintamil imperiais em fundos, deixando oagiota arrasadocomaperdade liquidez.Era esseométododeMilamberparalidar com a paixão dos tsurani pela burocracia. Qualquer mercador ounegociante a quem fosse exigido que prestasse serviços a um Grande eraforçadoadirigirumapetiçãoaoTesouroImperialdemodoaserreembolsado.Esses procedimentos resultavam em uma entrega demorada dos materiaisencomendados, em um serviço menos solícito e de má vontade. Milamber

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–A

limitou-seapagaradiantado,deixandoqueoagiota recuperasseodinheirodoTesouro—estandomaishabilitadoajusti carassuasperdasdoqueamaioriadosmercadores, devido à sua contabilidade organizada.O outro fator tinha aver com o estilo da decoração. Em vez de paredes pintadas com fortes coresberrantes, a construção cou quase toda sem pintura, salvo uma paisagemesporádicaemcoressuavesenaturais.Foramcontratadosváriosjovensartistasde grande talento e, no nal, a procura dos serviços desses artistas foiextraordinária.Noespaçodeummês,estavaemcursoumnovomovimentonaartetsurani.

Cinquenta escravos trabalhavam atualmente nos campos adjacentes, eramlivres para se deslocar e vestiam os trajes de seumundo natal, Midkemia. OGrandetrouxeratodosdomercadodeescravos,sempagar.

Uma boa parte dos visitantes de Ontoset tirava uma tarde para subir ascolinasnosarredoresparaveracasa.Aumadistânciarespeitável,obviamente.Xanothis, o pastor, era interrogado com frequência sobre o estranhoGrandequevivianaquelacasa,emboraoantigosoldadonadarevelasse, limitando-seasorrirbastante.

crençadequeograndeportalquelevaaMidkemiapodesercontroladoéapenasparcialmenteverdade.—Milamberfezumapausa,permitindo

aoescribaconcluiroquelheditava.—Podemosa rmarqueosportaispodemser criados sem a liberação de energias destruidoras associadas à criaçãofortuita,sejadevidoafeitiçosdemagiarealizadosdemodode ciente,sejapelaproximidadedemuitosdispositivosmágicosinstáveis.

ApesquisadeMilambersobreosaspectosespeciaisdasenergiasdosportaisseria acrescentadaaosarquivosdaAssembleiaquandoestivesse concluída.Talcomo outros projetos que tinha lido nos arquivos, a pesquisa dos portaisrevelara o queMilamber considerava ser uma falha grave emgrandeparte dotrabalho de seus irmãos magos. Em geral, os projetos não eram concluídos,revelando que a pesquisa não fora exaustiva. Logo que o procedimento decriaçãodeportaisemsegurançafoidesenvolvido,tinhamdeixadodeinvestigaranaturezadestes.Prosseguindo,ditou:

— O que falta no conceito de controle é a capacidade de selecionar otérmino do contato, a capacidade de “visar” o portal. Foi demonstrado pelosurgimento do navio que levava Fanatha à praia de Crydee, no mundo de

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Midkemia, que é provável que exista uma determinada a nidade entre umafenda recém-formada e outra já existente. Contudo, como foi demonstradoapósarealizaçãodeoutrostestes,essaa nidadeélimitada,sendoqueoslimitesainda não foram entendidos em sua totalidade. Embora exista uma maiorprobabilidadedesurgirumasegunda fendanasproximidadesdaprimeira, issonãosignificaquehajaumacertezaabsoluta.

Quandooescribaconcluiu,Milamberacrescentou:— Além disso, permanece a questão de determinadas inconsistências

reveladas pelos portais.O tamanho parece corresponder à energia empregadana formação dos mesmos; no entanto, outras características não aparentamseguir umpadrão.Algumas fendas são de sentido único—Milamber perderadiversos dispositivos valiosos para descobrir esse fato—, ao passo que outraspermitemmovimentos nos dois sentidos. Existem tambémos “pares ligados”:doisportaisde sentidoúnico surgemsimultaneamente,permitindoopercursodeumsentidoentre aorigemeopontode chegada.Emboraaparentemestarafastadosporváriosquilômetros,estãorelacionados...

A narração de Milamber foi interrompida pelo som de um sino queanunciavaachegadadealguémpertencenteàAssembleia.Dispensouoescribae dirigiu-se à sala dos padrões. Enquanto andava, pensou sobre a verdadeirarazãodetermergulhadonapesquisanosúltimosdoismeses.Andavaevitandoadecisãoqueteriadetomarembreve:sedeveriaounãoregressaràpropriedadedosShinzawaiparabuscarKatala.

Milamber sabia que havia a possibilidade de ela ter se tornadomulher deoutro,vistoqueaseparaçãosederaháquasecincoanoseelanãotinharazõespara achar que ele voltaria. Contudo, nem o tempo nem o treino tinhamconseguidodiminuiroquesentiaporela.Aochegaràsaladetransportecomopadrãodeazulejos,tomouumadecisão:nodiaseguinteiriavê-la.

Quando entrou na sala, viu Hochopepa saindo do padrão no chão deazulejos.

—Ah— exclamou omago gorducho—, aí está você.Como se passaramduassemanasdesdeaúltimavezqueovi,decidifazerumavisita.

—Ficofelizemvê-lo.Tenhoestadoprofundamenteenvolvidonosestudoseumabrevepausamefarábem.

Saíramdasalaparaumdosváriosjardinspróximos.—Jáháalgumtempoquequerialheperguntar:qualosigni cadodopadrão

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queescolheu?—disseHochopepa.—Nãooreconheço.—Trata-se de uma recriação estilizada de umpadrão que vi certa vez em

umafonte—respondeuMilamber.—Trêsgolfinhos.—Golfinhos?Milamber descreveu os mamíferos marinhos de Midkemia enquanto se

sentavamemalmofadasentreduasárvoresfrutíferasanãs.—Porqueosgolfinhosdessafonte?—Nãosei.Umimpulso, talvez.Alémdisso,quando fui submetidoàprova

finalnatorre,vialgoquesópercebiumoudoismesesdepois.—Oquetemumacoisaavercomaoutra?—Na representação do desa o nal ao Forasteiro, você se lembra de um

únicomago demantomarrom que dobrou o portal, impedindo que KelewanentrassenouniversodoInimigo?

Hochopepaficoucomumarpensativo.—Nãopossodizerqueme lembro,Milamber. Sebemqueo feitiçousado

para criar essa imagem afeta cada pessoa de forma diferente. Se compararvisões com outros, descobrirá grandes variações. Contudo, na época doForasteiro, vestíamos todos mantos negros. Quem poderia ser esse estranhomagodemantomarrom?

—Umhomemqueconheci,anosatrás—respondeuMilamber.—Impossível.Esseacontecimentoocorreuháséculos.—Mesmoassim,euoconheci—disseMilambersorrindo.—Adoteiostrês

gol nhos como meu padrão como uma espécie de comemoração de nossoencontro.

—Masqueestranho.Temhavidoalgumaespeculaçãoacercadeviagensnotempo,oquejusti cariaessasituação,amenosquesuamentebárbaraotenhaenganadonoaltodatorre.—Asúltimaspalavrasforamditascomumsorriso.

Milamberbateupalmaseumserviçalentroucomumtabuleirodecomidaebebida.O serviçal,Netoha, forahá temposhadonrada famíliaquemorara aliantes. Milamber o encontrara quando procurava alguém para plantar asvariedadesdevegetaçãoquequeriaemseusjardins.Ohomemtevecoragemdeinterpelá-lo, algo que o destacou dos tsurani comuns. Incapaz de encontrartrabalhonaáreaqueconheciadesdeodesaparecimentodapropriedadedeseupatrão, Netoha mal conseguiu sobreviver ao longo dos anos. Milamber ocontrataratantoporcompaixãoquantoporumanecessidadereal.Elemostrou

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depressa a sua utilidade de uma centena demaneiras que o jovemmagonemsequerimaginaraearelaçãoeramutuamentesatisfatória.

Hochopepaaceitouosdoceseabebida.—Euvimlhecontaralgumasnovidades.Daquiadoismeses,vaiocorrero

FestivalImperial,comtorneios.Vocêirá?Milamber sentiu a sua curiosidade despertar. Com um aceno, mandou

Netohasair.— O que torna esse festival tão especial? Não me lembro de vê-lo tão

animado.— Esse festival vai ser oferecido pelo Senhor da Guerra em honra do

sobrinho,oImperador.Eletemplanosparaumnovoataqueemlargaescalanasemanaqueantecedeostorneios,eespera-sequeanuncieoêxitodacampanhanessaocasião.—Abaixouavoz:—Nãoésegredonenhum,pelomenosentreaquelescomacessoàsfofocasdacorte,queeleseencontrasobgrandepressãoparajustificaraconduçãoquetemfeitodaguerraperanteoConselhoSupremo.Corre o rumor de que se viu forçado a fazer grandes concessões à Facção daRodaAzuldemodoa recuperaresseapoionaguerra.Contudo,oque tornaráostorneiosexcepcionaiséo fatodequeaLuzdoCéuvaideixaroseuPaláciodaContemplação,quebrandoaantigatradição.Seriaumaocasiãoconvenienteparavocêfazeralgumtipodeentradanasociedadedacorte.

—Lamento,Hocho—disseMilamber—,tenhopoucavontadedeassistirafestivais. No início deste mês, fui a um em Ontoset, como parte de meusestudos.Asdanças sãocansativas, a comida tendeparaohorrível eovinhoétãosemgraçaquantoosdiscursos.Ostorneiossãoaindamenosinteressantes.Seéessaasociedadedacortedequefala,passareibemsemisso.

— Milamber, a sua educação ainda possui muitas falhas. A obtenção domantonegronão implicaumamaestria imediatadenossaarte.AproteçãodoImpério implicamuitomaisdoque car sentado imaginandonovas formasdemovimentaraenergiaoudoquecriarcaoseconômicojuntoaosagiotaslocais.—Pegououtrodoceevoltouàrepreensão:—Sãováriasasrazõespelasquaisvocêdevemeacompanharàsfestividades,Milamber.Emprimeirolugar,vocêéumaespéciedecelebridadeentreosnobresdoreino,poisanotíciaarespeitodesuamaravilhosacasa seespalhoudeumcantoaoutrodo Império, emgrandeparte com a ajuda daqueles jovens bandidos que você pagou regiamente paraexecutaremasdelicadaspinturasquetantoaprecia.Agora,éconsideradosinal

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decertadistinçãopossuiromesmotipodetrabalho.Este lugar—comamão,desenhou um arco à frente de ambos, com um deslumbramento ngido norosto—,quemquerque tenha tido ahabilidadede conceberuma construçãodestas, certamente é digno de atenção. — O tom debochado sumiu aoacrescentar:—Apropósito,todoestedisparatenãodiminuiuemnadaquandovocê se isolou misteriosamente aqui dentro. Quando muito, aumentou aindamais a sua reputação. Falemos agora de razões mais importantes do que associais.Comosemdúvidavocêsabe,cresceapreocupaçãodequeasnotíciasdaguerra estejam, de alguma forma, sendo minimizadas. Em todos esses anos,poucos foram os benefícios e fala-se que o Imperador poderá tomar posiçãocontra as políticas do Senhor da Guerra. Se assim for... — Não terminou oraciocínio.

Milamberficoucaladodurantealgumtempo.— Hocho, acho que chegou o momento de lhe contar algo, e, caso

considerequesejaosu cienteparatiraraminhavida,regresseàAssembleiaeapresenteasacusações.

Hochopepaprestoutotalatenção,abandonandotodososditosespirituososecomentáriosmordazes.

—Você, queme treinou, realizou o seu trabalho com perfeição, pois mesinto dominado pela necessidade de fazer o melhor pelo Império. Guardosomente um ín mo sentimento pela terra onde nasci, e você nunca saberá oqueissosigni ca.Contudo,nodecorrerdoprocessoparametornaroquesou,você jamais conseguiria criar umamorpela pátria dentrodemeu ser igual aoque outrora senti por Crydee. O que você criou foi um homem com umprofundo sentimento de dever, sem qualquer tipo de amor pelo objeto dessesentimento. — Hochopepa permaneceu calado enquanto absorvia o impactodaspalavrasdeMilamber, até quebalançou a cabeça e o outroprosseguiu:—Posso ser amaior ameaça ao Império desde que o Forasteiro invadiu os seuscéus,pois,semeenvolvernapolítica,fareijustiçasemmisericórdia.Conheciasfacçõesdentrodospartidos,atransiçãodasfamíliasdeumpartidoparaoutroeasconsequênciasdessesatos.Achaquepor carnotopodeminhacolinanasterrasorientaisnãoestouapardasmudançaseagitaçõesdosanimaispolíticosna capital? Claro que estou. Se a Facção da Roda Azul sucumbir e seusmembrossevoltaremparaaFacçãoBélicaouparaosImperialistas,nãohaverámercador emOntoset que não especule sobre essas notícias no dia seguinte.

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Estou a par do que acontece tanto quanto qualquer outro que não estejadiretamente envolvido. Nosmeses desde que vimmorar aqui, cheguei a umaconclusão:oImpérioestásematandoaospoucos.

Omagomaisvelhonãofaloulogo,perguntandoporfim:—Chegouapensaroqueemnossosistemanoslevaaisso?Milamberlevantou-seecomeçouaandardeumladoparaoutro.— Claro. Estou estudando a questão e optei por aguardar antes de agir.

Precisodemaistempoparaentenderahistóriaquevocêmeensinoutãobem.Noentanto,restam-mealgumasdúvidasquantoaoqueestáerrado,e issoserámeu ponto de partida. — Inclinou a cabeça, solicitando permissão paraprosseguir.Hochopepa assentiu.—Parece que existem aqui vários problemasdegrandedimensão,problemassobreosquaispossoapenasconjecturarquantoao impacto que possam produzir no Império. Em primeiro lugar— ergueu oindicador —, quem se encontra no poder está mais preocupado com a suaprópria grandeza do que com o bem-estar do Império. Como são esses queaparecem ao olhar casual como sendo o próprio Império, é algo que passadespercebido.

—Comoassim?—perguntouomagomaisvelho.—QuandovocêpensanoImpério,oquelhevemàcabeça?Umahistóriade

exércitos em guerra pelas terras afora? Ou a ascensão da Assembleia? Pensa,talvez, em uma crônica de soberanos? Seja o que for, é provável que a únicaverdade óbvia seja ignorada. O Império é constituído por todos aqueles quevivemdentrodesuas fronteiras,desdeosnobresaoserviçalmaishumilde,atéos escravos que trabalham a terra. Ele temde ser visto comoum todo, e nãoassociadoaumapequena,aindaquevisível,parte,talcomooSenhordaGuerraouoConselhoSupremo.Vocêentende?

Hochopepapareceuincomodado.—Nãosei,masacho...Continue.—Seforverdade,considereoresto.Emsegundolugar,nuncapoderáhaver

umaépocaemqueanecessidadedeestabilidadeestejaacimadanecessidadedecrescimento.

—Massemprecrescemos!—protestouHochopepa.—Nãoéverdade—contrapôsMilamber.—Sempreseexpandirame isso

parece crescimento se não investigarmos atentamente. Porém, enquanto osseus exércitos foram trazendo novas terras para dentro das fronteiras, o que

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aconteceu à arte, à música, à literatura, à investigação? Até a orgulhosaAssembleiafazpoucomaisdoquere naroquejáéconhecido.Vocêinsinuouainda agora que eu andava perdendo tempo descobrindo novas formas de“movimentaraenergia”.Ora,quetemissodemau?Nada.Noentanto,háalgode errado em uma sociedade que suspeita das novidades. Olhe à sua volta,Hocho.Osseusartistas caramchocadosporeuterlhesdescritooqueviraemquadros naminha juventude, e alguns jovens artistas caram entusiasmados.Osseusmúsicospassamotempoaprendendoascançõesantigascomperfeição,semmudar uma nota, e ninguém compõe novasmelodias, somente variaçõesinteligentesdemelodiascomséculosdeexistência.Ninguémcrianovosépicos,limitam-se a recontar os antigos. Hocho, vocês são um povo estagnado. Estaguerra é mais um exemplo. É injusti cada, travada pela força do hábito, demodoamanterdeterminadosgruposnopoder,paracolherriquezasparaquemjáastêmeparajogaroJogodoConselho.Eaquecusto!Desperdiçammilharesde vidas todos os anos, as vidas daqueles que são o próprio Império, os seuscidadãos.OImpérioéumcanibal,devorandooseuprópriopovo.

O mago mais velho estava nitidamente perturbado pelo que ouvia, emcontradiçãoabsolutacomoqueacreditavaver:umaculturavibrante, cheiadeenergia,viva.

— Em terceiro lugar— continuouMilamber—, se é meu dever servir oImpério, e se a ordem social do Império é responsável pela sua própriaestagnação,émeudeveralteraressaordemsocial,aindaquetenhadedestruí-la.

Hochopepaestavahorrorizado.AlógicadeMilambernãotinhafalhas,masasoluçãosugeridaestavarepletadeperigoatudooqueHochopepaconheciaevenerava.

— Compreendo o que diz, Milamber, mas fala de algo difícil demais decontemplardeumasóvez.

AvozdeMilamberganhoutonstranquilizadores:—Nãopretendoinsinuarqueadestruiçãodaordemsocialatualsejaaúnica

solução,Hocho.Recorriaesseargumentoparachocareparachamaratenção.Édissoque tratagrandepartedaminhapesquisa,não sóodomíniovisíveldaenergia, mas também investigações acerca da natureza do povo tsurani e doImpério. Acredite no que lhe digo, estou disposto a passar o tempo que forprecisodedicadoaessaquestão.Planejopassarmaistemponosarquivos.

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Hochopepafranziuatesta,examinandoatentamenteorostodoamigomaisnovo.

—Fiqueavisado:épossívelqueencontrecoisasmuitoperturbadorasnessesarquivos.Comojádisse,suaeducaçãoaindanãoterminou.

Milamberbaixouotomdevoz:—Jámedepareicomalgumasquestõesinquietantes,Hocho.Muitodoque

asnaçõesconsideramverdadeiroébaseadoemfalsidades.Hochopepaficoupreocupado.—HáassuntosproibidosaquemnãofaçapartedaAssembleia,Milamber,e,

mesmonessecaso,nãoéprudentefalardelesatéaumdosirmãos.—Desviouo olhar, pensativo, acabando por dizer: — Ainda assim, quando acabar derondar aqueles velhos e bolorentos subterrâneos, caso precise discutir suasdescobertas, irei ouvi-lo de bom grado. — Voltou a olhar para o amigo. —Gosto de você e acredito que é uma lufada de ar fresco entre nós,Milamber,masmuitos outros preferiam vê-lomorto. Não fale com ninguém, a não sercomShimoneecomigo,arespeitodessapesquisasocialqueandafazendo.

—Certo, porém, quando chegar a uma decisão quanto ao que temde serfeito,tereideagir.

Hochopepalevantou-se,comumarapreensivonorosto.—Nãoéqueeudiscordedevocê,meuamigo,massimplesmenteprecisode

tempoparaassimilartudooquemedisse.—Pormaisperturbadorqueseja,avocêsópossodizeraverdade,Hocho.Hochopepasorriu.—Uma circunstância pela qual co grato,Milamber. Precisarei de algum

tempo para re etir sobre a questão. — Uma parte do bom humor habitualvoltou à voz do homem mais velho: — Talvez possa me acompanhar àAssembleia?Vocêtemestadoausentegrandepartedotempo,comaconstruçãodestacasaetodooresto;seriabomaparecerumavezououtra.

Milambersorriuparaoamigo.— Claro.— Gesticulou para que Hochopepa fosse à frente até o padrão.

Enquantocaminhavam,Hochopepadisse:—Sepretendeestudaranossacultura,Milamber,sugiroquecompareçaao

FestivalImperial.Aatividadepolíticaqueterálugarnosassentosdaarenanesseúnico dia será bem maior do que aquela que se dá ao longo de um mês noConselhoSupremo.

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Q

Milambervirou-separaHochopepa.—Talveztenharazão.Voupensarnoassunto.

uandosurgiramnopadrãodaAssembleia,Shimoneestavaporperto.Fezumaligeiramesuracomocumprimentoedisse:

—Bem-vindos.Estavaprestesairàsuaprocura.Hochopepadisse,comumarlevementedivertido:—SomosassimtãoimprescindíveisaosassuntosdaAssembleiaquetiveram

deenviá-loànossaprocura?Shimoneinclinouligeiramenteacabeça.—Talvez,masnãohoje.Penseiqueachariaminteressanteoassuntoatual.—Oqueestáacontecendo?—perguntouMilamber.— O Senhor da Guerra enviou mensagens à Assembleia e Hodiku tem

dúvidassobreelas.Temosdenosapressar,poisestãoquasecomeçando.CaminharamapressadosatéosalãocentraldaAssembleia,ondeentraram.

Oan teatroestavadispostoemumagrandeáreaaberta; sentaram-seemumaleira mais baixa. Várias centenas de Grandes de mantos negros já estavamsentados. No centro, viram Fumita, o antigo irmão do Lorde Shinzawai,sozinho; iria presidir os assuntos do dia. A presidência era atribuídaaleatoriamente a um dos presentes. Desde que fora levado para lá,MilamberviraFumitasomenteduasvezesnaAssembleia.

—Faz quase três semanas desde a última vez emque o vi naAssembleia,Milamber—disseShimone.

—Peçoperdão,mastenhoandadoocupadocuidandodeminhacasa.— Foi o que ouvi dizer. Você é uma espécie de fonte de fofocas na corte

imperial.OuvidizerqueopróprioSenhordaGuerraestáansiosoparaconhecê-lo.

—Umdia,quemsabe.Hochopepadirigiu-seaShimone:— Quem conseguirá entender este homem? Dedicou-se a construir uma

casatão insólita.—Virou-separaMilamber.—Sófaltadizerquevaiarranjarumaesposa.

Milamberriu.—Ora,Hocho,comoadivinhou?Hochopepaarregalouosolhos.

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—Nãopodeser!—Porquenão?—Milamber,nãoéumaatitudesensata,acredite.Atéhojemearrependode

termecasado.—Hocho,nãosabiaqueeracasado.—Pre ronãofalarmuitonoassunto.Aminhamulheréesplêndida,ainda

que tenhauma línguamuito a ada e um espírito bastantemordaz.Naminhaprópriacasa,soupoucomaisdoqueumcriadoqueobedeceàssuasordens.Porisso, visito-a somente em determinados dias; seria prejudicial para a minhasaúdevê-lamaisvezes.

—Quemé a suaprometida,Milamber?—perguntouShimone.—A lhadeumnobre?

—Não.ElaeraescravacomigonapropriedadedosShinzawai.—Umaescrava…humm—refletiuHochopepa.—Issopodedarcerto.MilamberriueShimonedeuumarisadaabafada.Váriosmagososolharam,

curiosos,poisaAssembleiageralmentenãoeraumlocalalegre.FumitalevantouamãoeaAssembleiaficouemsilêncio.—Hoje,HodikutrazumassuntoperanteaAssembleia.UmGrandefranzino,decabeçaraspadaenarizadunco,levantou-sedeseu

lugaràfrentedeMilambereHochopepa,dirigindo-seaocentrodoanfiteatro.Passou em revista os magos que se encontravam no salão, falando em

seguida:—Apresento-me hoje para falar a respeito do Império.— Era a abertura

formaldequalquerassuntolevadoàAssembleia.—FaloparaobemdoImpério— acrescentou, concluindo o ritual.—Estou preocupado com a exigência deauxílioqueoSenhordaGuerraemitiuhoje,demodoapoderexpandiraguerracontraomundomidkemiano.

Umcorodevaiasegritosde“Políticas”e“Sente-se!”surgiunosalão.LogoShimone e Hochopepa se levantaram, juntando-se a outros que gritavam:“Deixemquefale!”

Fumita ergueu uma mão, pedindo silêncio, e, pouco depois, o salão seacalmou.

— Existem precedentes — prosseguiu Hodiku. — Há quinze anos, aAssembleia enviou uma ordem ao Senhor da Guerra para que terminasse aguerracontraaConfederaçãoThuril.

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Ummagolevantoudeumsalto.—Seaconquistathuriltivesseprosseguido,poucosrestariamnonortepara

rechaçaramigraçãodosthūnnesseano.EstavaemjogoasalvaçãodaProvínciade Szetac e da Cidade Sagrada. Agora, as nossas fronteiras ao norte estãoseguras.Asituaçãoédiferente.

RomperamargumentosportodoosalãoeFumitalevoualgunsminutospararestabeleceraordem.

Hochopepalevantou-seefalou:—GostariadeouvirasrazõesdeHodikuparaconsideraressepedidocomo

vital para a segurança do Império. Qualquermago que esteja disposto é livreparatrabalharnointeressedaconquista.

—Éessaaquestão—respondeuHodiku.—Nãohámotivosqueimpeçamqualquermago,quesintaqueestaguerraemoutroespaço-temposejacorretaeadequada ao Império, de trabalhar em prol dessa conquista. Sem os MantosNegrosquejáservemaoSenhordaGuerra,afendanuncateriasidopreparadapara tal empreendimento. O que condeno é a forma como ele agora fazexigênciasàAssembleia.Secincoouseismagosoptaremporservirnocampo,sequiserematéviajarparaooutromundoearriscarasvidasemumabatalha,issosódizrespeitoaeles.Contudo,seummagoresponderaessaexigênciasemconsiderar as consequências, passará a ideia de que a Assembleia agora estásujeitaàvontadedoSenhordaGuerra.

Vários magos aplaudiram aquele sentimento, enquanto outros pareciamponderar seus méritos. Foram poucos os que vaiaram e debocharam.Hochopepavoltouaselevantar.

—Gostariade apresentarumaproposta.EmnomedaAssembleia, ireimeencarregarde enviarumamensagemao SenhordaGuerra lamentandoo fatodequeaAssembleia,comoumtodo,nãopoderáexigiraosmagosquecumpramo que foi pedido; porém o Senhor da Guerra poderá procurar os serviços dequalquermagodispostoacolaboraremproldeseusinteresses.

UmmurmúriogeraldeaprovaçãopercorreuosalãoeFumitaperguntou:—Hochopepaapresentaapropostadeenviarumadeclaraçãodeprincípios

aoSenhordaGuerra,emnomedaAssembleia.Alguémseopõe?—Semqueselevantassemobjeções,prosseguiu:—AAssembleiaagradeceaHochopepapeloseudiscernimento.—Apósummomentodeespera,acrescentou:—Háoutroassuntoqueexigeanossaatenção:descobriu-sequeonoviçoShironãopossui

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O

asqualidadesmoraisnecessárias àGrandeArte.As sondasmentais revelaramqueacolhe sentimentosanti-imperiais, assimiladosdurante a juventudecomaavómaterna,umamulherthuril.AAssembleiaconcorda?

Levantaram-semãos, cadauma sustentandoumaauréolade luz, enquantoosmagos votavam.Verde para poupar a vida, vermelho para a condenação àmorteeazulparaasabstenções.Milamberseabsteve;deresto,osvotosforamunânimespelacondenaçãoàmorte.UmMantoNegrolevantou-seeMilambersabia que, em poucosminutos, o noviço perderia os sentidos, para depois serteletransportadoatéofundodolago,ondeoseucorposemvidapermaneceria,geladodemaisparapermitirquesubisseàsuperfície.

Apósoencerramentodasessão,Shimonedisse:— Você devia vir mais vezes, Milamber. Mal o vemos atualmente. Além

disso,passatempodemaissozinho.Milambersorriu.—Éverdade,maspretendoremediarasituaçãoamanhã.

sino sooupelacasaeos serviçais correrampara seprepararparaavisitadoGrande.Kamatsu,Lordedos Shinzawai, sabiaqueummago tocarao

sino nos salões da Assembleia, fazendo o som chegar ali, anunciando a suavisitaiminente.

NoquartodeKasumi,Laurieeoprimogênitodacasaestavamconcentradosemumjogodepashawa,jogadocompeçasdepapelãopintado.EracomumnastavernaseestalagensdeMidkemia,constituindomaisumdetalhenoanseiodojovemtsuranidedominartodososaspectosdavidamidkemiana.

Kasumilevantou-se.—Deveseraquelequejáfoimeutio;émelhorir.Lauriesorriu.—Ouseráquedesejainterromperassuasderrotas?Otsuranisacudiuacabeça.—Temotercriadoumproblemanaminhaprópriacasa.Vocênuncafoium

bomescravo,Laurie, e é capazde ter cadoaindamais intratável.Aindabemquegostodevocê.

Rirameo lhomaisvelhodacasasaiu.Poucosminutosdepois,umescravochegou correndo para informar Laurie de que o senhor da casa exigia a suapresençadeimediato.Laurielevantou-secomumsalto,devidoànítidaagitação

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doescravo,enãoaumaobediênciainata.Correuatéosaposentosdosenhorebateu no batente da porta. A porta deslizou para o lado, com Kasumisegurando-a. Laurie entrou e viu o senhor dos Shinzawai com a sua visita, elogoaperplexidadetomoucontadele.

A visita trajava omanto negro dosGrandes tsurani,mas o rosto era o dePug.Começouafalar,parouevoltouatentar:

—Pug?O senhor da casa cou indignado com o comportamento atrevido do

escravo,masarepreensãoquaseproferidafoiinterrompidapeloGrande:—Podemecederesteespaçoporalgunsminutos,senhor?Desejofalarasós

comesteescravo.Kamatsu,LordedosShinzawai,fezumamesurarígida.— Seja feita a sua vontade, Grande.— Saiu do quarto com o lho atrás;

ainda estava abalado pelo aparecimento do antigo escravo e atordoado pelosprópriossentimentos.EraumGrande,nãohaviacomoserumafraude:aformacomochegaraeraprovadisso;porémKamatsunãoconseguiaevitarasensaçãodequeaquelachegadaanunciavaumrevésparaoplanoqueeleeofilhotinhamacalentadocomtodoocuidadoaolongodosúltimosnoveanos.

—Fecheaporta,Laurie—disseMilamber.Laurieafechou,examinandoatentamenteoantigoamigo.Pareciabem,mas

muitomudado.O porte era quasemajestoso, como se omanto de poder quepassaraausarrefletisseumaforçainterioroutrorainexistente.

—Eu...—começouLaurie, calando-seemseguida, semsaberoquedizer.Porfim,tentou:—Vocêestábem?

Milamberassentiu.—Estoubem,velhoamigo.Laurie sorriu, atravessou o quarto e abraçou o amigo, afastando-se em

seguida.—Deixe-meolharbemparavocê.Milambersorriu.—OmeunomeagoraéMilamber,Laurie.OrapazqueconheceucomoPug

está tãomorto comoas oresdoanoquepassou.Venha, vamosnos sentar econversar.

Sentaram-se à mesa e serviram-se de duas xícaras de chocha. Lauriebebericouamisturaamarga,dizendo:

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— Nunca mais ouvimos falar de você. Depois do primeiro ano, eu oconsidereicomoperdido.Desculpe.

Milamberfezumacenocomacabeça.— É assim que a Assembleia funciona. Como mago, é esperado que eu

renuncie a todos os meus laços antigos, excetuando aqueles que possam sermantidos de uma forma socialmente aceitável. Como não possuía clã nemfamília, nada tinha a renunciar.Você sempre foi um escravo ruimquenuncasoubeagirdeacordo.Quemelhoramigoparaummagorenegadoebárbaro?

Laurieconcordoucomacabeça.—Ficofelizporterretornado.Vocêvaificar?Milambernegou,sacudindoacabeça.—Aqui não é omeu lugar.Além disso, tenho trabalho a fazer. Eu tenho

uma propriedade agora, perto da cidade de Ontoset. Vim buscá-lo. E Katala,se...—Avozseperdeu,comosetemesseperguntarporela.

Pressentindoaangústiadomago,Laurieafirmou:— Ela ainda está aqui e não se casou. Nunca o esqueceu. — Ele sorriu

abertamente.—Deuses deMidkemia! Esqueci-me completamente. Você nãotinhacomosaber.

—Doquê?—Vocêtemumfilho.Milamberficouestupefato.—Umfilho?Laurieriu.—Nasceuoitomesesdepoisdeoteremlevado.ÉumbelogarotoeKatala,

umaexcelentemãe.Milambersentiu-seabaladocomanotícia.—Porfavor,podeirbuscá-la?—pediuaLaurie.Laurielevantou-sedeumsalto.—Éparajá.Saiu correndo. Milamber cou sentado, reprimindo a onda de emoções.

Recompôs-se,recorrendoàssuashabilidadesdemagoparaacalmaramente.Aporta se abriu eKatala surgiu, a incerteza visível no rosto. Laurie vinha

atrás,comummeninodecercadequatroanosnocolo.Milamber levantou-se e abriu os braços. Katala correu para ele e o mago

quase chorou de alegria. Ficaram abraçados em silêncio por um instante, até

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queelamurmurou:— Achei que o tinha perdido. Tinha esperança... mas achei que o tinha

perdido.Ficaram assim durante vários minutos, perdidos no simples prazer da

presençaumdooutro,atéqueelaseafastou.—Vocêprecisaconheceroseufilho,Pug.Laurie trouxeomenino.Ele touMilambercomgrandesolhoscastanhos.

Era um menino bem constituído, muito parecido com a mãe, ainda quehouvessealgona formacomo inclinavaacabeçaque fazia lembraro rapazdocastelodeCrydee.Katalaopegoueentregou-oaMilamber.

—William,esteéoseupai.Omeninopareceureceberessainformaçãocomalgumceticismo.Arriscou

um sorriso tímido, ao mesmo tempo que se inclinava para trás, mantendo adistância.

—Querodescer—dissede repente.Milamber riu e largouomenino.Eleolhouparaopaielogoperdeuointeressenoestranhovestidodepreto.—Oh!—exclamou,correndoparabrincarcomaspeçasdeshāhdoLordeShinzawai.

Milamberficouobservandoofilhoporalgumtempo,atéquedisse:—William?Katalaestavaaoseulado,abraçando-opelacintura,comosetemessequeele

voltasseadesaparecer.—Elaqueriaumnomemidkemianoparaofilho,Milamber—disseLaurie.Katalateveumsobressalto.—Milamber?—Éomeunovonome,meuamor.Precisasehabituaramechamarassim.

—Elafranziuatesta,parecendonãogostarmuitodaideia.—Milamber— repetiu, testandoo som.Acaboupor encolher os ombros.

—Éumbomnome.—ComoéqueeleacabousechamandoWilliam?Laurie aproximou-sedomenino, que tentava empilhar as peças, e as tirou

deledevagar.Omeninooolhoucomumarameaçador.—Querobrincar—disse,indignado.— Dei-lhe vários nomes e ela escolheu esse — disse Laurie, pegando o

menino.—Gosteidosomdele—disseKatala—,William.

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Ouvindooseunome,omeninoolhouparaamãe.—Estoucomfome.—EupreferiaJamesouOwen,maselainsistiu—explicouLaurie,enquanto

omeninosecontorcia,tentandoescapardeseucolo.Katalaopegou.—Tenhodealimentá-lo.Voulevá-loàcozinha.—BeijouMilamberesaiu.Omagoficoucalado,atéquedisse:—Émaisdoqueesperava.Receavaqueelativesseencontradoalguém.— Não, Pu... Milamber. Ela não quis nada com os homens que a

cortejavam,ehouvealguns.Éumaboamulher.Nuncaduvidedela.—Nuncaofarei,Laurie.Sentaram-se; uma tosse discreta à porta fez com que olhassem. Era

Kamatsu.—Permitequeeuentre,Grande?MilambereLauriecomeçaramaselevantar,masosenhordacasafezsinal

paraqueficassemsentados.— Por favor, não se levantem.—Kasumi entrou atrás do pai e fechou a

porta.Pelaprimeiravez,Milamberreparouqueo lhodacasavestiapeçasderoupatípicasdeMidkemia.Levantouumasobrancelha,masnadadisse.

OchefedafamíliaShinzawaipareciabastanteinquietoetentouseacalmar.—Grande,possofalarcomfranqueza?—perguntoupoucodepois.—Asua

chegada hoje foi algo inesperado e dará origem a algumas prováveisdificuldades.

—Por favor—disseMilamber—,não éminha intenção causar qualquertipodeperturbaçãoemseular,meusenhor.Queroapenasaminhamulhereomeufilho.Etambémprecisodesteescravo—indicouLaurie.

—Que a sua vontade seja feita, Grande. Amulher e omenino devem, éóbvio,acompanhá-lo.Noentanto,rogoquepermitaapermanênciadoescravo.

Milamberolhouderostoemrosto.OsdoisShinzawaimantiveramacalma,mas, pela forma como se entreolhavam e olhavam de relance para Laurie, aa ição estava sendomal disfarçada. Nos últimos cinco anos, algomudara. Arelaçãoentreoshomensalipresentesnãoeraoqueumarelaçãoentreamoseescravodeveriaser.

—Laurie?—Milamberolhouparaoamigo.—Oqueestáacontecendo?LaurieolhouparaosoutrosdoishomensedepoisparaMilamber.

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—Tenhodelhepedirquemeprometaumacoisa.OchoquedeKamatsufoiassinaladoporumainspiraçãoaudível.—Laurie!Queousadia!NãosenegociacomumGrande.Aspalavrasdeles

sãolei.Milamberlevantouumamão.—Não.Deixe-ofalar.Emtomsuplicante,Lauriedirigiu-seaoamigo:— Entendo pouco desses assuntos, Milamber. Você sabe que não tenho

noçãodeprotocolo.Possoestarviolandoatradição,maslhepeçoemnomedanossa antiga amizade: será que é capaz de prometer que não divulgará o queouvirnesteaposento?

Omagore etiusobreapergunta.PoderiaordenaraoLordeShinzawaiquecontasse tudo, e ele assimo faria, demodo tão automático comoum soldadoseguindo ordens; no entanto, considerava de grande importância a amizadecomotrovador.

—Temaminhapalavradequenãoireirepetiroquemecontar.LauriesuspirouesorriueosShinzawaipareceramficarmenostensos.— Fiz um acordo com o meu senhor aqui presente — disse Laurie. —

Depois de terminarmos algumas determinadas tarefas, a minha liberdademeseráconcedida.

Milambersacudiuacabeça.—Issonãoépossível.Aleinãopermitequeumescravosejalibertado.Nem

mesmooSenhordaGuerrapodealforriarumescravo.Lauriesorriu.—Evocê?Milamberassumiuumaraustero.—Estouàmargemdalei.Ninguémpodemedarordens.Estáalegandoser

ummago?—Não,Milamber,nadadisso.Éverdadeque,aqui,nãopossodeixardeser

escravo.Masnãoficareiaqui.RegressareiaMidkemia.Milamberpareceuintrigado.— Como isso é possível? Existe somente um portal para Midkemia,

controladopelosmagosdoSenhordaGuerra.Nãoexistemoutros,ouseriamdemeuconhecimento.

—Temosumplano.Écomplicadoerequerumaexplicaçãodemorada,mas,

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M

em suma, é o seguinte: acompanharei Kasumi, disfarçado de sacerdote deTurakamu, oVermelho. Ele irá comandar soldados que substituirão as tropasna frentedebatalha.Éprovávelqueninguémreparenaminha altura,pois aspessoas evitam os sacerdotes do Vermelho. As tropas são todas leais aosShinzawai. Uma vez emMidkemia, passaremos despercebidos pelas posiçõesmilitaresatéconseguirmoschegaràsforçasdoReino.

Milamberbalançouacabeça.— Agora entendo as aulas de língua e as roupas. Diga-me, Laurie, está

dispostoa ser espiãodos tsurani em trocade sua liberdade?—A suavoznãocontinhadesaprovação,tratava-seapenasdeumasimplespergunta.

Lauriecorou.—Nãovoucomoespião.Voucomoguia.TenhocomomissãolevarKasumi

aRillanon,paraumaaudiênciacomoRei.—Porquê?—Milamberpareciasurpreso.Kasumiinterrompeu:—VoumeencontrarcomoReiparalheapresentarumapropostadepaz.

ilamberapresentouumargumento:— Como pode esperar pôr m à guerra com a Facção Bélica ainda

controlandooConselhoSupremo?—Temosalgoanossofavor—respondeuKamatsu.—Estaguerrajádura

nove anos e não se vê o m. Grande, não ouso instruí-lo, mas posso daralgumasexplicações?

Milamberfezumacenocomacabeça,autorizando-oaprosseguir.Kamatsubebeuumgoledesuabebidaeretomou:

—Desdeo mdaguerracomaConfederaçãouril,aFacçãoBélica temsido pressionada a manter o domínio sobre o Conselho Supremo. Cadaconfrontofronteiriçocomosthurilsetransformavaemumapeloparareatarocon ito. Entre as lutas na fronteira e as constantes tentativas dos thūn paraatravessarem os fortes no norte e recuperarem a antiga cordilheira ao sul, aFacção Bélica mal conseguiu manter a maioria. Uma coligação liderada pelaFacção da Roda Azul quase conseguiu destituí-los dez anos atrás, quando aAssembleiadescobriuoportalparaseuantigomundo.Oapeloàguerraecoouno conselho logo que se conheceu a existência de metais preciosos em seumundo de origem. Naquele instante, foi por água abaixo tudo que tínhamos

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alcançado ao longo dos anos. Por conta disso, começamos desde cedo acontrariar essa loucura. Os metais que estão sendo extraídos em seu antigomundo não passam, segundo Laurie nos contou, de restos em minasabandonadas, que aqueles a quem chamam de anões não consideram valer otrabalhodeextraí-los.Emtudo isso,nadaháparaosTsuranuannianãoseradesculpaparavoltaralevantaroEstandartedeGuerraederramarsangue.Vocêconhece a nossa história. Sabe quão difícil é para nós resolvermos as nossasdivergências de maneira pací ca. Fui soldado e experimentei as glórias daguerra. Também conheço a destruição que ela traz. Laurieme convenceu dequeasminhassuspeitasarespeitodoshabitantesdoReinoestãocertas.Nãoéumpovobelicoso,apesardeseusnobreseexércitos.Vocêsestariamdispostosanegociar.

—Tudo isso é verdade— interrompeuMilamber.—Contudo, não estouconvencido de que tenha qualquer relevância para a situação atual. Aminhaantiganaçãonãocombatiaumagrandeguerraháquasecinquentaanos,tirandoescaramuças com os goblins do norte e ao longo da fronteira keshiana. Noentanto,ouve-seagoraorufardos tamboresdeguerranoOeste.OsExércitosdo Reino foram sangrados. A nação foi invadida sem razão. Não acho queestariamdispostos a parar e perdoar, pura e simplesmente.Decerto exigiriamalguma retribuição ou, pelo menos, uma compensação. Estaria o ConselhoSupremo disposto a ceder a honra dos Tsuranuanni e ressarcir os malescausadospelossoldados?

OSenhordosShinzawaipareceuincomodado.—Quantoaoconselhonãoestoucerto.JáoImperador...—OImperador?—perguntouMilamber,surpreso.—Oqueeletemaver

comisso?— Ichindar, que o céu o abençoe, acha que a guerra está extorquindo do

Império os seus recursos. Quando zemos a guerra contra os thuril,aprendemosquealgumasfronteirassãovastase longínquasdemaisparaseremcontroladas pelo Império, amenos que gastemosmuitomais doque valemasvitórias. A Luz do Céu entende que não encontraremos outra fronteira tãovasta e longínqua como a que encontramos em Midkemia. Ele está seenvolvendonoJogodoConselho.TalvezsejaomaiorjogojájogadonahistóriadosTsuranuanni.ALuzdoCéuestádispostaaexigirpazaoSenhordaGuerra,ordenar a sua destituição, se for o caso. Contudo, não correrá um risco tão

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grandedequebradatradiçãoamenosquetenhaagarantiadadisposiçãodoReiRodric de chegar a um acordo. Ele tem de se apresentar perante o ConselhoSupremocomapazcomofatoconsumado;casocontrário,oriscoseráenorme.Na história do Império, cometeu-se um único regicídio,Grande.OConselhoSupremo aclamou o assassino e nomeou-o Imperador. Era o lho do homemquefoimorto.Opaitentarainstituiracobrançadeimpostosnostemplos.EssafoiaúltimavezqueumImperadorentrouno JogodoConselho.Podemosserum povo duro, Grande, mesmo para nós mesmos, e nunca um Imperadortentou fazer o que Ichindar está tentando realizar, aquilo que outros, muitosoutros, considerarão como o sacrifício da honra do Império, um atoimpensável.Mas, seeleconseguirentregarapazaoconselho, caráclaroqueosdeusesoabençoaramnessatarefa,eninguémseatreveráadesafiá-lo.

—Vocêsearriscamuito,LordedosShinzawai.— Amo a minha nação e o Império, Grande. Por ela, morreria feliz no

campodebatalha,ecorriesseriscoquando jovem,duranteascampanhasdosthuril.Domesmomodo,arriscariaaminhavida,asdosmeus lhos,ahonradaminhacasa,daminhafamíliaedomeuclãparalevarobomsensoaoImpério.Assim como o Imperador. Somos um povo paciente. Esse plano está sendopreparado há anos. Faz muito tempo que a Facção da Roda Azul se aliousecretamente àFacçãopelaPaz.Retiramo-nosno terceiro anodaguerraparaenvergonharoSenhordaGuerraeorganizarotreinodeKasumiparaaviagemque o esperava. Passamos mais de um ano viajando ao encontro de diversossenhoresdaFacçãodaRodaAzuledaFacçãopelaPaz,garantindocooperação,nos certi cando de que todos os membros desempenhariam os seus papéisnesteJogodoConselho,antesdetrazerparacáosenhoreLaurieparaquesetornassem seus professores. Somos tsurani, e a Luz do Céu jamais permitiriaque fosse feita uma proposta até dispor de um mensageiro preparado.Transformamos Kasumi nesse mensageiro, procurando lhe dar as melhoreschancesdealcançarasalvooseuantigoRei.Temdeserassim,pois,sealguémdeforadanossafacçãodescobrireessatentativafalhar,muitascabeçasrolarão,incluindoaminha;esseéopreçoquepagareiporperderojogo.SelevarLauriecomosenhor,KasumiterápoucasprobabilidadesdeseaproximardeseuantigoReieoesforçodepazterádeseradiadoatéencontrarmosoutroguiacon ável,umatrasoquedurarámaisumoudoisanos.Atualmente,asituaçãoégrave.AFacção daRodaAzul integra novamente aAliança pelaGuerra, após anos de

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negociação com a Facção Bélica, emilhares de homens estão sendo enviadosparacombater,paraconseguirmosfazerKasumipassarasfronteirasdoReinoeentraremsuaantigapátria.Embreve,chegaráomomentooportuno.Osenhorprecisapensarnoquesignificariamaisoutroanodeguerra.Comaconquistadesua antiga pátria, o Senhor da Guerra caria invulnerável a qualquer uma denossasjogadas.

Milamberponderou,virando-sedepoisparaKasumi:—Quando?— Em breve, questão de semanas— respondeu Kasumi.—O Senhor da

Guerra temespiõespor todo ladoe temsuspeitassobrenossoplano.Não temmuita con ança na mudança repentina da Roda Azul no conselho, mas nãopode recusar a ajuda. Precisa muito de uma grande vitória. Ele planeja umagrande ofensiva na primavera contra os exércitos de LordeBorric e de LordeBrucal, aprincipal forçadoReino.Esseplano será colocadoempráticapoucoantesdoFestivalImperial,demodoqueelepossaanunciaravitóriaduranteosTorneiosImperiais,parasuaglóriapessoal.—Kamatsuacrescentou:—Muitosemelhante a um desa o de nal de partida no shāh, Grande. Uma vitóriaesmagadoradaráaoSenhordaGuerratudooqueprecisaparatomarocontroledo Conselho Supremo, mas arriscamos isso nessa jogada nal. A frente debatalhaestaráenvoltaemconfusãodevidoàpreparaçãoparaaofensiva.KasumieLaurieterãoaíamelhoroportunidadeparapassardespercebidospelastropas.Caso oReiRodric concorde, a LuzdoCéupoderá surgir perante oConselhoSupremo comumanúnciodepaz e tudo aquilo emque se baseia opoder e ain uência do Senhor da Guerra irá desmoronar. Recorrendo aos termos doshāh, expomosanossaúltimapeçaàpossibilidadedecaptura,demodoqueonossoImperadorpossadaroxeque-matenoSenhordaGuerra.

Milamberficoucomarpensativodurantealgumtempo.—Creioqueembarcouemumplanoousado,LordeShinzawai.Honrareia

minhapromessadenadadizer.Lauriepodepermaneceremsuacasa.—Olhoupara Laurie. — Que os deuses de nossos antepassados o protejam e tragamsucesso para vocês. Rezo para que esta guerra possa terminar em breve. —Levantou-se. — Se não se importam, farei as minhas despedidas. Peço quetragamaminhamulhereomeufilho.

Kasumilevantou-seefezumamesura.—Gostaria de acrescentar uma coisa,Grande.—Milamber fez sinal para

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queprosseguisse.—Anosatrás,quandoosenhorpediuKatalacomoesposaeeu disse que o pedido seria recusado, também disse que havia uma razão. Onosso plano também contemplava que o senhor regressasse ao seu mundo.Esperoqueagoracompreenda.Somosumpovoduro,Grande,masnãosomoscruéis.

—Ficouevidenteassimqueoplanofoirevelado.—OlhouparaLaurie.—Peloquesouagora,estaéaminhapátria;contudo,dentrodemimaindaexisteumaparteinalterada,eporissoinvejooseuregressoparacasa.Serálembradocomcarinho,velhoamigo.

Dito isso, Milamber saiu. Do lado de fora, encontrou Katala à espera nojardim,vendoo lhobrincar.Foiaoseuencontroeseabraçaram,apreciandoaagradávelreunião.Depoisdemuitotempo,eledisse:

—Venha,minhaamada,vamoslevaronossofilhoparacasa.

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M

9

Fusão

artindoArcochoravaemsilêncio.Sozinho em uma clareira perto da orla das orestas dos elfos, oMestre deCaça deCrydee se encontrava junto de três elfos caídos.

Os corpos inanimados jaziam esparramados no chão, os braços e as pernasformando ângulos impossíveis e os belos rostos cobertos de sangue. Martinsabiaoquesigni cavaamorteparaoselfos,pois,pornorma,uma famíliavianascer uma ou duas crianças em um século. Conhecia bem um dos rostos,Algavins,quetinhamenosdetrintaanos,aindaumacriançadeacordocomotempodevidadopovoelfo,eeracompanheirodeGalaindesdetenraidade.

O som de passos levouMartin a secar as lágrimas e retomar a expressãousualmenteimpassível.

—Hámais um bando na trilha adiante,Mestre de Caça— ouviu Garretdizer.—Ostsuranipassaramnestapartedaflorestacomoumventonefasto.

Martinassentiu,começandoacaminharsemqualquercomentário.Garretoseguiu. Apesar de jovem, Garret era o melhor batedor de Martin e ambosavançavamrapidamentepelatrilharumoaElvandar.

Depoisdehorasdeviagem,atravessaramorioaoestedeumacampamentotsuranie,quandoestavamasalvona orestadoselfos,ouviramalguémchamá-losentreasárvores.

—Ébomvê-lo,MartindoArco.MartineGarretpararameaguardaram,vendotrêselfossurgiremporentre

asárvores,comoseaparecessemdonada.Galaine seusdoiscompanheirosseaproximaram.Martin inclinou ligeiramente a cabeça em direção ao rio atrásdeles e Galain con rmou. Era tudo o que precisavam para contar que ambossabiam da morte de Algavins e dos outros. Garret reparou na troca, embora

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estivesselongedeentenderassutilezasdosmodosdoselfos.—Tomas?Calin?—perguntouMartin.—Noconselho,comaRainha.Traznotícias?—MensagensdoPríncipeArutha.Estãoacaminhodoconselho?Galainmostrouomeiosorrisodoselfosqueindicavaumhumorirônico.— Coube a nós guardar o caminho. Temos de permanecer aqui durante

algum tempo. Iremos assim que os anões atravessarem o rio. Devem estarchegando.

Ocomentárionãopassoudespercebido aMartin, que sedespediu e seguiucomGarretemdireçãoaElvandar.Aochegarempertodaclareiraquerodeavaacidadenasárvoresdoselfos,pensounaexclusãodeGalainedosoutrosjovenselfosdoconselho.EramtodoscompanheirosinseparáveisdeTomasdesdequeeledecidiratornarElvandarsuamoradapermanente.Martinnãovoltaraàquelelugar desde o cerco a Crydee, mas durante esses anos falara com algunspatrulheiros nataleses que levavammensagens doDuque para Elvandar e daliparaCrydee.TinhamsidováriasasocasiõesemquepassarahorasconversandocomLeon,oAlto,eGrimsworthdeNatal.Emboradepoucaspalavrasquandoestavam afastados de sua gente, não eram tão reservados perto deMartin doArco,poispressentiamumespíritoirmãonoMestredeCaçadeCrydee.Eraoúnico homem, além dos patrulheiros deNatal, que podia entrar emElvandarsemnecessidadede convite. Leon eGrimsworth tinhammencionado grandesmudanças na corte da Rainha dos Elfos e Martin sentiu uma estranhainquietação.

QuandojáestavamchegandoaElvandar,apassoslentos,Garretperguntou:— Mestre de Caça, não vão enviar ninguém para recolher aqueles que

pereceram?Martinparoueapoiou-senoarco.—Ocostumedelesnãoéesse,Garret.Deixarãoquea orestaosreclame,

poisacreditamqueseusverdadeirosespíritosjáestãonasIlhasAbençoadas.—Pensouumpoucoecontinuou:—Entreosmeusbatedores, talvezvocêsejaomelhor que já conheci. — O jovem enrubesceu com o elogio e Martinacrescentou:— Não é um elogio, é simplesmente a constatação de um fato.Digoissoporquevocêéomeumaisprovávelsubstitutocasoalgomeaconteça.—AhabitualexpressãoenvergonhadadeGarretdeulugaraumadeatençãoaoque Martin dizia. — Caso aconteça alguma coisa que me tire desta vida, a

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minhaesperançaéquealguémcontinueaimpedirqueElvandareomundodoshomensseafastem.

Garretacenoucomacabeça.—Achoqueentendo.— Precisa entender, pois seria uma grande tristeza se as duas raças se

afastassem— falou emvoz baixa.—Precisa ir aprendendo tudoo que pudersobreassuascrenças,maséprecisoquesaibaalgumascoisasjá,especialmentenestes tempos de guerra. Já ouviu dizer que determinados sacerdotesconseguemressuscitarosmortos,senãotiveremfalecidohámaisdeumahora?

—Jáouviessahistória,masnuncaconhecininguémquea rmassetervistoisso ser feito ou que sequer dissesse conhecer alguém que tivesse visto —respondeuGarret.

—Éverdade.OPadreTullydizqueépossível,eeleédaquelesquefalacomfranquezasobrequestõesdefé.—Martinolhouparaochão.—Conta-sequeum sacerdote importante, desconheço de qual ordem, percebeu que estava seafastandodosdeuses e se enredandonomundodoshumanos.Abandonouosricosmantos e ornamentos dourados e vestiu as peças simples de ummongeitinerante.Vagoupor lugares selvagens, embuscadehumildade.O tempoeoacaso o trouxeram a Elvandar, onde se deparou com um elfo que acabara demorrerporacidente,poucosminutosantesdachegadadosacerdote.Ele,então,começouafazeroelforegressaràvida,poiserasacerdotedegrandespoderes,procurando dividir o seu talento com aqueles que dele precisavam. Mas foidetido pela esposa do elfo e, quando lhe perguntou por que o zera, elarespondeu: “Não é esse o nosso costume. Ele se encontra agora emum lugarmuito melhor e, caso o invoque, regressará contrariado e para nossa grandetristeza. Por isso, não pronunciamos o seu nome, para que ele não ouça asaudadenasnossasvozeseregresseparanosconsolar,àscustasdeseupróprioconforto.” Pelo que sei, nunca elfo algum foi trazido de volta à vida. Já medisseram que os elfos não podem ser ressuscitados pelas artes dos homens.Outros me disseram que não possuem almas genuínas, e por isso nãoregressam.Creioqueambasasa rmaçõessãofalsaseelespossuemumsentidomuitomaisrefinadodeseulugarnomundo.

Garretficoucaladoalgumtempo,enquantoassimilavaaquelasinformações.—Éumalendaestranha,MestredeCaça.Porqueselembroudela?— A morte daqueles elfos e a sua pergunta. Queria mostrar como são

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diferentesdenós e comovocêprecisa trabalharparaaprender seus costumes.Passaráalgumtempoentreeles.

—Ahistóriasobreoelfomortoéverdadeira?—É.Oelforecém-falecidoeraoantigoReidosElfos,omaridodaRainha

Aglaranna.Nessaépoca,hátrintaanos,eunãopassavadeummenino,masmerecordo.Acompanhavaogrupodecaçaquandooacidenteaconteceueconheciosacerdote.

GarretnãocomentoueMartinpegouaarma,retomandoocaminho.Nãodemorouparachegaremaos limitesdeElvandar.Martinparou,vendo

Garret arrebatado pela visão das árvores gigantescas. O sol do nal de tardelançavasombraspela oresta,masosgalhosnoaltojácintilavamcomasluzesencantadas.

O Mestre da Caça puxou o amigo pelo cotovelo, conduzindo devagar oboquiaberto batedor até a corte da Rainha. Chegou ao círculo do conselho eentrou,saudandoaRainha.

Aglarannasorriuaovê-lo.—Bem-vindo,MartindoArco.Hámuitoquenãovinhaaténós.Martin apresentou Garret, que fez uma mesura desajeitada diante da

Rainha. Nesse momento, outra gura entrou na corte, saindo da sombra deondeseencontrava.

Martin crescera entre as crianças él cas e era tão capaz de esconder suasemoções emcasodenecessidade comoqualquer outro,mas ao avistarTomascoutãoabaladoque,porpouco,nãosoltouumaexclamação.Reprimindoumcomentário, forçou-se a não encará-lo e percebeu o assombro deGarret pelarespiração suspensa do companheiro. Tinhamouvido falar dasmudanças queTomas sofrera,masnadaprepararanenhumdosdoispara a visãodohomemaltíssimo que contemplavam.Olhos alienígenas os observavam. Pouco restavado garoto feliz e sorridente que antigamente seguia Martin pela oresta,suplicandoporhistóriasdeelfos,ouquejogavabolanosbarriscomGarret.Semcordialidade,Tomasavançoueperguntou:

—QuenotíciastrazemdeCrydee?Martinseapoiounoarco.—OPríncipeAruthaenviasaudações—disseàRainha—easuaamizade,

bem como o desejo de que se encontre com boa saúde. — Virando-se paraTomas, que claramente usurpara uma posição de comando no conselho da

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Rainha, disse:—Arutha envia as seguintes notícias:Guy, oNegro,Duque deBas-Tyra,estágovernandoKrondor,demodoquenãoseesperaqualquerajudade lá para aCostaExtrema.Alémdisso, oPríncipe tem razões para acreditarqueosseresdooutromundoplanejamumagrandeofensivaparalogo,masnãosabe dizer se contra Crydee, Elvandar ou contra o exército do Duque. Noentanto,osacampamentosaosulnãoestãosendoreforçadosatravésdasminasdos anões, ainda que se encontrem bastante entrincheirados. Os meusbatedoresdepararamcomalguns sinaisdemovimentoaonorte,masnadaemgrandeescala.Aruthasupõequeaofensivamaisprovávelserácontraoseupaieo exército de Brucal. — Acrescentou: — Também trago a notícia de que oescudeiro de Arutha foi morto. — Cumpriu o costume dos elfos, evitandonomearofalecido.

Os olhos de Tomas denunciaram um brilho fraco de emoção ao ouvir anotíciadamortedeRoland,mastudooquedissefoi:

—Naguerra,homensmorrem.CalinpercebeuqueatrocadepalavrastinhaalgodepessoalentreMartindo

ArcoeTomas.MaisninguémnacorteconhecerabemRoland,aindaqueCalinserecordassedelenojantardaquelanoiteemCrydee,tantosanosantes.Martincoupreocupadocoma reaçãodeTomasànotíciadamortede seuamigodeinfância.Regressandoaoassuntodaguerra,oPríncipedosElfosdisse:

—Fazsentido.SeoexércitodoReinonoOestefordestroçado,osseresdooutro mundo poderão dar plena atenção às outras frentes, conquistando asCidadesLivreseCrydeerapidamente.Emumano,doisnomáximo,tudooqueantesfoiaBosaniakeshiana cariasobosseusestandartes.Delá,marchariamcom facilidade até Yabon. Com o tempo, poderiam chegar aos portões deKrondor.

Tomasvirou-separaCalincomosequisessefalar,osolhosapertados.EntreaRainhaeTomashouveumacomunicaçãorápida,eeleretomouseulugarnocírculodoconselho.Calinprosseguiu:

— Se os seres do outro mundo não estão se preparando a oeste dasmontanhas, os anões devem se juntar a nós em breve. Tivemos algumasincursões deles ao longo do rio, mas não há sinais de que se aproxime umgrandeataque.CreioqueAruthatenharazãoemsuasuspeitae,casoosduqueschamem,devemostentarajudá-los.

Tomasvirou-separaoPríncipedosElfos.

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— E deixar Elvandar desprotegida! — Seu rosto mostrava indignação.Martin cou surpreso pela ferocidade de sua raiva quase incontida. — Semdesguarneceras orestasél cas,nãoépossívelreunirsoldadossu cientesparafazerdiferençanessabatalha.

OrostodeCalinpermaneceuimpassível,masseusolhosre etiamaraivadeTomas.Assuaspalavrasforamproferidascomserenidade:

— Sou Comandante Militar de Elvandar. Jamais deixaria nossas orestasdesprotegidas. Contudo, caso os seres do outro mundo montem uma grandeofensiva contra os duques, não deixarão soldados su cientes ao longo do riopara ameaçar as nossas orestas. Nunca mais nos atacaram desde que osderrotamos com o auxílio do feiticeiro e os Mantos Negros pereceram. Noentanto, se atacaremos LordesBorric e Brucal e se a batalha for equilibrada,nossos homens poderão pesar na balança, especialmente porque conseguimosatacaroflancomaisfracodoinimigo.

Tomasmanteveoautocontrole,rígidoporuminstante;emseguida,emtomfrio,disse:

—OsanõesseguemDolganeDolganobedeceaomeucomando.Nãovirãoamenosque euos chamepara abatalha.—Semmaisumapalavra,deixouocírculodoconselho.

MartinobservouTomasindoembora.Ficoucomapelearrepiadaaosentir,pelaprimeiravez,opodercontidonaquelaestranhamescladehomemcomoquequerquehabitassedentrodorapazdeCrydee.SomentevislumbraraoqueexistianointeriordeTomaseforaobastante.Tomaseraalguémasertemido.

Foi então que Martin viu o lampejar de uma expressão no rosto deAglaranna.Elaselevantou,dizendo:

—ÉmelhoreuirfalarcomTomas.Eleandaexaustoultimamente.Quandoelasaiu,ocaçadorfoiassaltadoporumacerteza.Alémdetudo,ele

presenciara um con ito entre o lho daRainha dosElfos e seu amante, bemcomoumprofundoconflitoemseuinterior.Aglarannamostraraaexpressãodealguémapanhadoporumdestinodesesperado.

ApósapartidadaRainha,Calindisse:—Chegouemhoraoportuna,Martin.Precisamosdesuasensatez.Martin concordou com a cabeça.MandouGarret ir comer e, quando este

partiu, examinou o Príncipe dos Elfos com atenção e, em seguida, os outrospresentesnoconselho.Tatharseencontravaemseulugarhabitual,àdireitado

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trono daRainha.Outros rostos conhecidos, todos antigos e éis conselheirosdaRainha.MuitosdeleseramidososTecedoresdeFeitiços.

Martin sentou-se, aguardandocompaciênciaqueCalin falasse.OPríncipedos Elfos permaneceu calado por algum tempo.O humano o estudou, pois oconheciaepressentiasuainquietação.Quandoerajovem,MartinachavaqueoPríncipe era a encarnação perfeita de todas as virtudes él cas. Embora aadoração infantil tivesse passado, ainda considerava Calin com um respeitoinalterado.

—Martin, de todos aqui presentes, você foi o únicoque conheceuTomasantesdessaalteração—disseCalin.—Quepodedizerquantoàmudançaquepresenciou?

Martinlevoualgumtempopensandonaresposta.—Aolongodosanos,apenasvislumbreiessasmudanças,hojeasvi.Elassão

grandes,éóbvio.Porémnãoconsigoimaginaroqueestãoanunciando.Eleeraumbomgaroto;umgarotonãomuitolevado,emboraacuriosidadeocolocasseem apuros. Tinha um lado terno e não continha os seus afetos. Detemperamento sóbrio, era capaz de perder o controle quando via um amigoameaçado ou atacado. De modo geral, não era muito diferente dos outrosgarotos,umsonhador.

—Eagora?Martinestavapreocupadoenãosedeuaotrabalhodeocultar:—Eleéalgoalémdaminhacompreensão.— Martin, compreendemos perfeitamente as suas palavras, que são

verdadeiras,poiseletambémultrapassouanossacompreensão—disseTathar.—Entreoshomens,vocêconheceanossahistóriacomonenhumoutro—

disse Calin gentilmente.— Conhece o nosso ódio pelo tempo que passamosescravizados pelos valheru. Sabe que rejeitamos a Senda das Trevas que elespercorreram.Tememosoregressodessepoder,damesmaformaquetememosesta invasão dos seres do outro mundo e de seus Mantos Negros. Você viuTomas.Deveentenderoquesomosforçadosaconsiderar.

Martinconcordou.—Vocêponderasobreavidadele.—Muitos dos elfosmais jovens o seguem cegamente— disse Tathar.—

Falta-lhesamaturidadeeasensatezpararesistiremà in uênciasutildamagiavalheruquedeleemana.Emboraosanõesnãoosigamcegamente,aindaassim

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oseguem,poisnãotêmanossaherançademedoedepositamgrandeféemsualiderança. Há oito anos que demonstra ser o meio de sua sobrevivência,salvando muitos deles da morte, repetidas vezes. Contudo, ainda que Tomastenha sidoumadádivana luta contraos invasores, provavelmente teremosdeignorartodasasoutrasconsiderações,excetoesta:iráestemeio-homem,meio-valheru tentar se tornar nosso mestre? — Tathar franziu a testa. — Se forassim,terádeserdestruído.

Martin sentiu um frio na espinha.De todos os garotos que conhecera emCrydee, sentia um afeto especial por três: Garret, Tomas e Pug. Choraradiscretamente quando Pug fora capturado pelos tsurani, tendo se perguntadocom frequência se o teriam levado para amorte ou para o cativeiro.Naquelemomento, chorava por Tomas, pois, acontecesse o que acontecesse, Tomasjamaisvoltariaaseroqueera.

—Nãohánadaafazer?—perguntouaCalin.O Príncipe indicou a Tathar que deveria responder. O idoso Tecedor de

Feitiços olhou ao redor do círculo, obtendo a concordância silenciosa de seuscompanheiros.

—Faremosopossívelparaquetudoissoterminebem—disseaMartin.—Contudo,seovalherusurgiremtodaasuaimponência,nãopoderemosresistir,por isso temosmedo.Não temosódiodeTomas.Todavia,mesmo compena,temosdeabaterumloboraivoso.

Martin olhou com tristeza para as luzes de Elvandar, enquanto escurecia.Desdeque se lembrava, considerava aquela vista reconfortante.Nomomento,sentiaunicamenteumaamargurafria.

—Quandovocêschegarãoaumadecisão?—Você compreende os nossos costumes—disseTathar.—Decidiremos

quandotivermosdedecidir.Martinlevantou-sedevagar.— Sendo assim, este é o conselho que lhes dou: até que a alteração se

apresentenitidamenteinclinadaparaaSendadasTrevas,nãoerrematribuindopeso demais a medos antigos. Sempre me ensinaram que aqueles que agoragovernam Elvandar são de uma natureza mais calorosa e de mente maisindependente do que os primeiros que foram libertados pelos valheru.Contenham a sua mão até o último momento. Talvez ainda surja algo debené co em tudo isso, ou, se não for assim, aomenos algoquenão se revele

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A

totalmentemaléfico.Tatharbalançouacabeça.—Oseuconselhoésensato.Nósorecebemosdebomgrado.Martinpareciamuitopreocupado.—Fareioqueestiveraomeualcance.Eujátiveacapacidadedein uenciar

Tomas, talvez ainda consiga fazê-lo. Irei pensar no assunto, para depoisprocurá-lo e conversar com ele. — No círculo ao redor da corte da Rainha,ninguém falou quando Martin partiu. Sabiam que o seu coração estava tãoinquietoquantoosdeles.

palpitaçãopiorara,emboranãofosseexatamentedor,masumdesconfortocada vez mais constante e enervante. Tomas estava sentado na clareira

fresca, junto à lagoa serena, debatendo-se consigo mesmo. A partir domomentoemquecomeçouaviveremElvandar,deu-secontadequeossonhostinhamse tornadopoucomaisdoque imagens indistintasevagas, recordandosomente partes de frases e nomes que tentava entender. Já não eram tãoperturbadores nem tão assustadores e essa presença em sua vida diáriadiminuíra, embora a pressão na cabeça, uma dormência que era quase dor,tivesse aumentado. Quando estava no campo de batalha, deixava-se dominarpor uma fúria escarlate e não sentia a dor, mas quando a ânsia da batalhaabrandava,especialmentequandodemoravaaregressaraElvandar,apalpitaçãoregressava.

Ouviupassosdelicadosatrásdesie,semsevirar,disse:—Queroficarsozinho.—Éador,Tomas?—perguntouAglaranna.Uma leve agitação de um sentimento estranho surgiu brevemente em seu

interior,levando-oainclinaracabeça,comoseescutassealgo.—É.Euvoltareilogoaosnossosaposentos—respondeusecamente.—Vá

agoraeseprepare,poisireimejuntaravocêmaistarde.Aglaranna recuou, as feições orgulhosas revelandodor como tomque lhe

eradirigido.Virou-serapidamenteepartiu.Enquanto andava pela oresta, as emoções se agitavam em seu interior.

DesdequecederaaodesejodeTomas,bemcomoaoseu,perderaacapacidadede dominá-lo ou de resistir às suas ordens. Ele era agora seu senhor e ela sesentia envergonhada. Era uma união sem alegria, não era o retorno da

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felicidade perdida pelo qual ansiara. Contudo, havia uma compulsão queenfraqueciaasuavontade,umanecessidadedeestarcomele,delhepertencer,quequebraraassuasdefesas.Tomaseradinâmico,poderosoe,àsvezes,cruel.Corrigiu-se:elenãoeracruel,simplesmenteestavatãodistantedosoutrosseresque não era possível estabelecer comparações. Não era indiferente àsnecessidades de Aglaranna; simplesmente ignorava que ela as tivesse. Ao seaproximar de Elvandar, as suaves luzes encantadas re etiram as lágrimastrêmulasquelhetocavamasfaces.

TomasmalpercebeuapartidadeAglaranna.Sobadorentorpecidade suacabeça, ouvia uma voz fraca chamando por ele. Esforçou-se para ouvi-la,reconhecendootimbre,acor,reconhecendoquemochamava...

—Tomas?Sim.Ashen-Shugar contemplou a desolação das planícies, terras secas e

arrebentadas, desprovidas de umidade, exceto pelos poços alcalinos queborbulhavam,lançandoodoresnauseabundosnoar.

— Faz tempo que não nos falamos — disse em voz alta para o seucompanheiroinvisível.

Tathareosoutrosprocuramnosseparar.Vocêmuitasvezeséesquecido.Os ventos fétidos sopraram do norte, frios e enjoativos. O cheiro de

decadênciaestavaespalhadoportodapartee,noresíduodagigantescaloucuraquetomaracontadouniversoaoredor,sentiam-sesomentetênuesagitaçõesdevidasereafirmando.

—Nãoimporta.Estamosjuntosmaisumavez.Quelugaréeste?—ADesolação dasGuerras doCaos.Omonumento deDraken-Korin, a

tundra sem vida onde antes havia grandes planícies. Poucos seres vivos aindamoram aqui.Amaior parte das criaturas foge para o sul, embusca de climasmaishospitaleiros.

Quemévocê?Ashen-Shugarriu.—Souaquiloemquevocêestásetornando.Somosumsó.Assimvocêdisse

tantasvezes.Tinhameesquecido.Ashen-Shugar chamou e Shuruga precipitou-se até ele, sobrevoando uma

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–T

paisagem pardacenta, enquanto nuvens negras trovejavam lá em cima. Opoderoso dragão pousou e omestre subiu em seu dorso. Olhando de relanceparaopontosinalizadoporcinzas,aúnicalembrançadaexistênciadeDraken-Korin,ovalherudisse:

—Venha,vamosveroqueodestinoforjou.Shurugasubiuaoscéusejuntossobrevoaramadesolação.Ashen-Shugarse

mantinhacaladonolargodorsododragão,sentindooventobaternoseurosto.Voarameotempopassouporeles,enquantopartilhavamamortedeumaeraeonascimentodeoutra.Planarambemaltonocéu,livresdohorrordasGuerrasdoCaos.

Édignodetristeza.—Nãoacho.Háumaliçãoasertirada,emboranãoconsigaaindaentendê-

la. Porém pressinto que você a entende. — Ashen-Shugar fechou os olhosquandoacabeçavoltoualatejar.

Sim,eumelembro.

omas?Orapazabriuosolhosderepente.DeucomGalainacurtadistância,no

limitedaclareira.—Devovoltarmaistarde?Tomaslevantou-secomdi culdadedeondetinhaestadosentadosonhando.

Asuavozsoouroucaecansada:—Não,doquesetrata?—O grupo de anões de Dolgan chegou à oresta exterior e aguarda por

vocêjuntoaoriachosinuoso.Osanõesatacaramumacampamentodeseresdooutromundoquandoatravessaramorio.—Orostodojovemelfomostravaumsorrisojovial.—Capturaramprisioneiros,finalmente.

UmolharmisturandosatisfaçãoefúriaatravessouorostodeTomas.Galainexperimentou estranhas emoções ao contemplar a reação do guerreiro debranco e dourado a essas notícias. Como se estivesse ouvindo um chamadodistante,Tomasfaloudemododistraído:

—Váparaoacampamentodosanões.Ireimejuntaravocêsdaquiapouco.GalainseretiroueTomasescutou.Umavozdistanteficoumaisalta.

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O

–Tereierrado?Osalãoecooucomaspalavras,pois estavapor mvazio, eos serviçais

tinhamescapulido.Noseu trono,Ashen-Shugarpensavacoma nco.Falouàssombras:

—Tereierrado?Agora,jáconheceadúvida,respondeuavozonipresente.—Estaestranhaquietudedentrodemim,doquesetrata?Éamortequeseaproxima.Ashen-Shugarfechouosolhos.— Achei que fosse isso mesmo. Foram poucos os da minha raça que

sobreviveramàbatalha.Eueraalgoraro.Souoúltimo;porémgostariadevoarumavezmaiscomShuruga.

Shurugapartiu.Estámorto,hámuitotempo.—Masvoeicomeleestamanhã.Eraumsonho.Talcomoagora.—Querdizerquetambémenlouqueci?Vocênãopassadeumamemória.Istoésomenteumsonho.—Assim sendo, farei oque estáplanejado.Aceitoo inevitável.Outro virá

tomaromeulugar.Issojáaconteceu,poiseusouaquelequeveioeaceitouasuaespadaevestiu

assuasvestes;agora,asuacausamepertence.Soueuqueenfrentoaquelesquepretendemsaquearestemundo.

—Nessecaso,estoudispostoamorrer.Abrindoosolhos,contemploupelaúltimavezoseusalão,cobertodepoeira

antiga. Fechando-os por m, o Soberano do Horizonte das Águias lançou oúltimo feitiço. Seus poderes em declínio, ainda sem par naquele mundo,excetuandoosnovosdeuses, uíramdeseucorpoexaustoparaasuaarmadura.Pequenasespiraisde fumaçasubiramdo localondeoseucorporepousara,atérestarem unicamente a armadura dourada, o tabardo branco, o escudo e aespadabrancaedourada.

SouAshen-Shugar.SouTomas.

solhosdeTomas se abrirameporum instante ele cou confusopor severnaclareira.Umaestranhaemoçãocresceuemseuinteriorquandose

deu conta de que umanova força percorria o seu ser.Namente, ressoou um

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–É

toque de clarim: sou Ashen-Shugar, o valheru. Destruirei todos aqueles quetentaremsaquearomeumundo.

Com tremenda determinação, deixou a clareira, em busca do lugar paraondeosanõestinhamlevadoosseusinimigos.

bom voltar a vê-lo, amigo Martin do Arco — cumprimentou Dolgan,fumando seu cachimbo. Não se viam desde um encontro casual vários

anos antes, quando os anões atravessavam as orestas a leste de Crydee, acaminhodeElvandar.

Martin,Calinealgunselfostinhamidoverosprisioneirosdosanões,aindaamarrados.Aguardavamemgrupo,emumcantodaclareira,olhando furiosososseuscaptores.Galainentrounaclareira,dizendo:

—Tomasjáestávindo.— Dolgan, como foi que, depois de tantos anos, conseguiu capturar

prisioneirose,aindaporcima,umacampamentointeiro?—perguntouMartin.Atrás dos oitos guerreiros amarrados se via um grupo amedrontado de

escravostsurani,desamarrados,masamontoados,incertossobreoseudestino.Dolganfezumacenodepoucocasocomamão.

— Normalmente, atravessamos o rio para um ataque repentino e osprisioneiros costumam nos atrasar durante a retirada, uma vez que estãoinconscientes ounãoqueremcooperar.Desta vez, não tivemosmuita escolhano assunto, pois precisávamos atravessar o rio Crydee. Em outros anos,teríamos aguardado e aproveitado a escuridão para passar despercebidos,maseste anoeles estãoamontoados comourtigas emummatagal ao longodo rio.Encontramos este grupo em um ponto relativamente isolado, onde só haviaestes oito vigiandoos escravos.Estavamconsertandouma forti cação, que euachoque foiassaltadahápouco tempoemumataquedoselfos.Passamosporeles semque percebessem e depois alguns rapazes subiramnas árvores, aindaque isso não os agradasse. Caímos em cima dos três guardas mais afastados,silenciando-os antes de conseguirem dar o alarme. Os outros cinco estavamcochilando, idiotas. Nós nos esgueiramos para o acampamento e, depois dealgunsgolpesbemdadoscomosnossosmartelos,amarramososmalditos.Estesoutros — indicou os escravos — estavam tão amedrontados que nemconseguiam emitir um único som. Quando nos certi camos de que nãotínhamos alertado os acampamentos próximos, pensamos em trazê-los

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conosco. Pareceu-me uma pena deixá-los para trás. Achei que talvezpudéssemosaprenderalgumacoisaquenosfosseútil.—Dolgantentoumanteruma expressão impassível, mas o orgulho pelo trabalho de sua companhiatranspareciacomoumfarolemumanoiteescura.

Martinsorriu,mostrandoaprovação,edisseaCalin:—Esperoquepossamosdescobriroquevemporaí,seessatemidaofensiva

está mesmo sendo montada e onde. Aprendi algumas expressões da línguadeles,masnãoosu cienteparacompreenderoquepodemterparanosdizer.SomenteoPadreTullyeCharles,omeubatedortsurani,podemfalarcomelesfluentemente.Talvezdevêssemostentarlevá-losparaCrydee.

—Temosmeiosdeaprendero idiomadeles,comtempo—disseCalin.—Duvido que cooperassem em um deslocamento. O mais provável é quetentassemdaroalarmedurantetodoocaminho.

Martindeurazãoaoargumento.Voltou-seaoouvirumtumulto.Tomassurgiunaclareira,caminhandoapassoslargos.Dolganestavaprestes

acumprimentá-lo,mashaviaalgonaatitudeenaexpressãodojovemguerreiroqueosilenciou.OsolhosdeTomasrevelavamumaloucura,algoqueoanãojátinhavislumbrado,masqueagoratranspareciacomtodaaclareza.

Tomas tou os prisioneiros amarrados e desembainhou a espadalentamente, apontando-a aos invasores.Martin e os anõesnão reconheceramas palavras que proferiu; no entanto, os elfos caram chocados com o queouviram.Vários elfosmais velhos caíramde joelhos, em súplica, enquanto osmais jovens recuaram, demonstrando o re exo causado pelo terror. SomenteCalin se manteve rme, embora parecesse abalado. Devagar, o Príncipe dosElfosvirou-separaMartin,comorostopálido.

— Finalmente, o valheru se encontra de fato entre nós— disse em tomhorrorizado.

Ignorando todos os outros na clareira, Tomas avançou até o primeiroprisioneiro tsurani.Osoldadoamarradoolhouparacimacomumamisturademedo e desa o. De repente, a espada dourada se ergueu no alto e desceu,decepando a cabeça do homem.O tabardo branco cou salpicado de sangue,que escorreu, deixando-o imaculado. Dos escravos amontoados, ouviu-se umgemidobaixodemedo,eosolhosdosoutrossoldadossearregalaramdepavor.Emummovimento lento,Tomas sevirouparaopróximo soldadoe,umavezmais,asuaespadacolheuumavida.

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Martinselibertoudaparalisiadochoque,forçando-seadesviarosolhosdacarni cina. Sentia umpavor tremendo,mas que não se comparava ao que oselfos demonstravamna humilhação sentida perante Tomas.O rosto deCalinevidenciava uma luta interior, enquanto tentava superar a obediência quaseinstintiva às palavras proferidas no idioma antigo dos valheru, senhores detodosemtempospassados.Oselfosmais jovens,menosversadosnasabedoriaantiga, não compreendiam a necessidade avassaladora de obedecer àquelehomemvestidodebrancoedourado.Oidiomadosvalheruaindaeraoidiomadopoder.

TomasdeuascostasàsuachacinaeMartin couespantadocomaforçadoseuolhar.NãorestavaqualquervestígiodogarotodeCrydee.Agora,todooseuser estava preenchido por uma presença extraterrena. O braço de TomasrecuoueMartin sepreparoupara esquivar-sedogolpe.Qualquerhumanoeraumavítimaempotencialeatéosanõesrecuaramdiantedaassustadoraameaçaque ele projetava. Nesse instante, uma fraca centelha de reconhecimentoatravessouoseuolhareeledisse,emumavozdistante:

—Martin,peloamorqueantesnutriaporvocê,saiaouperderáavida.Reunindo coragem para enfrentar o maior pavor que já sentira, Martin

gritou:—Nãovouficaraquiparadovendovocêchacinarhomensindefesos!De novo, ouviu-se a voz distante, impregnada de soberania ancestral e

grandiosidaderecuperada.— Esta gente entrou em meu mundo, Martin. Ninguém poderá disputar

aquelequeéomeudomínio,aminhareserva,unicamentemeu!Vocêtambém,Martin, ousará entrar em meu mundo? — Valendo-se de uma velocidadesobrenatural,Tomasgirouedoistsuranipereceram.

Martin investiu, atravessandoadistânciaqueos separava comumsalto, e,com um empurrão, afastou Tomas dos prisioneiros. Os dois caíram eMartinagarrouopulsoqueseguravaaespadadourada.

Aindaquefosseumhomemforte,capazdecaminharquilômetroscomumgamo recém-abatido nos ombros, o caçador não era adversário à altura deTomas.Damesmaformacomqueselivrariadeumacriançaincômoda,Tomaso afastou e cou de pé com rapidez. Martin voltou a saltar, mas desta vezTomasestavapreparado.Limitou-seaagarrá-lopelatúnica,dizendo:

—Ninguémpoderáseoporàminhavontade.—AtirouMartinpelaclareira

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comosepesassemenosdoqueumdécimodeseupeso.OsbraçosdeMartinseagitavamnoarenquantoeledescreviaumarcobemacimadochão,natentativadecontrolaraqueda.Caiucomforçae,aobater, todosaoredorouviramoarqueexplodiudeseuspulmões.

Dolgan correu para junto dele, pois os elfos continuavam subjugados peloqueviam.Ochefedosanões jogouaáguadeumodreque traziaà cinturanorosto de Martin, sacudindo-o para que recobrasse a consciência. Quandorecuperouossentidos, foirecebidopelosgritosabafadosdepuroterrorvindosdosescravostsuraniqueassistiamàchacinadossoldados.

Martinseesforçouparafocalizaravisão,poisacenaàsuafrenteoscilavaerodopiava.Quandoconseguiuvercomnitidez,inspirouemumsilvodeterror.

Tomas abateu o último soldado tsurani e começou a avançar para osescravos encolhidos.Pareciam incapazesde semexer, contemplandodeolhosarregaladosoportadordesuadestruição;paraMartin,assemelhavam-seaumamanadadeveadosqueforamsurpreendidosporumaluzrepentinanaescuridãodanoite.

UmgritoroucosaiudoslábiosdeMartinquandoTomasmatouoprimeiroescravo tsurani, um homem franzino de aspecto miserável. Martin do Arcotentouselevantar,comossentidosvacilantes,eDolganoajudou.

Tomasergueuaespadaeoutromorreu.Novamentealâminadouradasubiue ele olhou para o rosto de sua vítima. De olhos escancarados de pavor, umgaroto que não teria mais do que doze anos aguardava em pé o golpe queacabariacomasuavida.

De repente, o tempo se dilatou, e Tomas cou com aquele momentocongelado em sua mente. Examinou os cabelos escuros e os grandes olhoscastanhosdogaroto.Acriançaseagachou,aguardandoamortequeviapairarsobre si, sacudindo a cabeça enquanto os lábios repetiam uma única fraseinúmerasvezes.

Na luz fracada clareira,Tomasviuum fantasmaantigo,o espectrodeumamigo há muito esquecido. Um vínculo relembrado, originado nas primeirasmemóriasdecriança,voltoua seassociarà suaconsciência.As imagenseramvagas,opassadoeopresentemisturados.

—Pug?—disseTomas.Emsuamente,explodiuumadoreoutravontadeprocuroudominá-lo.—Pug!—berrou.

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— Mate-o! — foi a resposta enraivecida e em seu interior se digladiaramduasvontades.

—Não!—gritouooutro.Todos os que estavam na clareira viam Tomas petri cado, estremecendo

comalgumaespéciedebatalhainterna,aespadaerguidaesperandoserlargada.Estessãoinimigos!Mate-os.Éummenino!Nãopassadeumacriança!Eleéinimigo!Ummenino!OrostodeTomassetornouumamáscaradedor;cerrouosdentesetodos

os músculos do corpo caram retesados, esticando a pele no seu crânio. Osolhos se arregalaram e começaram a surgir gotas de suor de baixo do elmo,descendopelassobrancelhasefaces.

Martin conseguiu se levantar, cambaleando. Deslocou-se devagar, cadamovimentoprovocandodoresdevidoàquedaquesofrera.

A mão de Tomas se deslocou para baixo com lentidão, cada centímetrorepresentando um passo trêmulo e vacilante enquanto lutava por dentro. Ogarotoestavaparalisado,incapazdesemexer,seguindoomovimentodaespadacomosolhos.

—SouAshen-Shugar!Souvalheru!—entoavaumavozemseuinterior,emumaenxurradaderaiva,loucuradebatalhaeânsiadesangue.

Contraessemarderaiva,permaneciaumsingelorochedo,umavozcalmaedébilvindadedentroquedizia,simplesmente:SouTomas.

Omarde raiva batiano rochedode serenidade semparar, submergindo-oconstantemente, recuando e voltando a investir. Contudo, a maré baixava acada investida e o rochedo cava visível, erguendo-se acima da rebentaçãoenfurecida. Ocorreu a aniquilação de algo, um trovejar de épocas perdidas epassadas, que agitou a mente de Tomas. Ficou zonzo, mergulhando em umapaisagemdesconhecida,procurandoumpontode luzquesabia serocaminhopara a liberdade. As marés o arrastaram e ele batalhou, esforçando-se pormanter a cabeça acima da superfície do mar negro que o sufocava. No alto,uivava um vento malé co, cantando em seus ouvidos uma melodia funesta.Debateu-se e voltou a ver o ponto de luz. Uma vez mais a maré o engoliu,forçando-o a se afastar de seu objetivo, embora daquela vez parecesse maisfraca.Voltoua tentarnadarpara a luz.Foi entãoqueomar se revoltou,uma

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derradeiraeterrível investida,culminandoemumataqueabsoluto.SouAshen-Shugar! Seguiu-se o quebrar da vontade, arrebentando como o galho seco deumaárvore sobopesodaneveacabadadecair, comoosomdogelovelhodeinverno separtindoao toquedaprimavera, como se aúltima investida tivesserepresentadoumcustoaltodemais.

Omarnegroperdeua fúria e amainoue ele seviumaisumavez em terrarme,umsingelorochedo.SouTomas. Adistância,opontodeluzcomeçouaseexpandirdiantedeseusolhos,precipitando-seatéenvolvê-lo.

SouTomas.—Tomas!Piscou e viu que voltara à clareira. À sua frente, viu o garoto agachado, à

esperadamorte.VirouacabeçaeviuMartin,apontando-lheumaflecha.—Abaixeaespada,pelosdeuses, senãomatovocêaímesmo—advertiuo

MestredeCaçadeCrydee.OolharpasmodeTomaspercorreua clareira e viuos anões comarmas a

postos, assim como alguns dos elfos mais velhos. Calin, ainda tremendo,desembainharaaespadaeavançavadevagaremsuadireção.

MartinolhouparaTomas comatenção, sem temê-lo,mas respeitando suaincrível força evelocidade.Aguardou,vendoaindaum lampejode loucura emseusolhos,atéque,comoseumvéutivessesidoerguido,eleosviucomclareza.Aespadadouradacaiude repentedamãodeTomaseosolhospálidos,quaseincolores,seencheramdelágrimas.Orapazcaiudejoelhosedeseuslábiossaiuumgemidodeangústia,levando-oaexclamar:

—Oh,Martin,noquemetornei?Martinabaixouoarco,vendoTomasseabraçar.TathareoutrosTecedores

de Feitiços entraram na clareira. Aproximaram-se de Tomas, e entãoexaminaramtodososqueseencontravamnaquelelugar.Tãoterríveiseramossoluços atormentados do rapaz, tão imensamente envoltos em mágoa eremorso,quemuitosdoselfosseviramchorandotambém.

—Sentimos o tecido de nossos feitiços se rasgar ainda há pouco, por issocorremosparacá—disseTatharaMartindoArco.—Temíamosachegadadovalheruecomrazão,pelovisto.

—Eagora?—perguntouMartin.—O outro lado do equilíbrio. Que o valheru foi nalmente expulso pelo

rapaznãohádúvida;contudo,agoraTomasdeveestarsentindoopesodeanos

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eanosdechacinaedeculpa,no lugardo júbilodequandotiravaoutrasvidas.Osfardoscarregadospeloshumanosvoltaramaserosdele,everemosagoraseconseguesuportá-los.Essaagoniapoderáserseufim.

Martindeixouo elfo idoso, indo ao encontrodeTomas.À luz fraca, foi oprimeiroaperceberamudança.Desapareceraaqualidadesobrenaturaldesuasfeições,osolhos cintilantes, omodoaltivo.Voltara a serTomas,umhomem,embora o legadodaquela experiência sempre o fosse declarar como algomaisdoqueumhomemcomum:asorelhasdeelfo,osolhosclaros.DesapareceraoSenhor de Poder, o Antigo, o Valheru. Onde antes existia um Senhor dosDragões, via-se agora um homem subjugado, perturbado e enfermo,atormentadopeloquefizera.

Tomas levantou a cabeça quando Martin tocou no seu ombro. Olhosavermelhados, quase enlouquecidos pela dor, observaram-no por um breveinstante, para depois se fecharem como se procurassem esquecer de tudo aoredor.Durantealgumtempo,elfoseanõescontemplarameosescravostsuranisemantiveram calados, cientes de que ocorrera uma espécie demilagre, semconseguirem compreender,mas certos de que tinham sidopoupados. E assimpermaneceram, enquanto Martin do Arco embalava o homem de branco edouradoquesoluçava,chorandoemumaangústiaterríveldeseouvir.

glaranna estava sentada em sua cama, penteando o longo cabelo louroavermelhado. Como antes, aguardava Tomas, tão esperançosa quanto

temerosa.Umgritodeforaafezselevantar.Ajeitouasvestesesaiudeseusaposentos.

Emumaplataforma,viuumgrupodeelfoseanõesavançarrumoaocentrodeElvandar. Com eles vinham Martin do Arco e alguns humanos, sem dúvidaseresdooutromundo,levandoemcontaaformacomoestavamvestidos.

Levouasmãosàboca,arquejando.NocentrodogrupovinhaTomase,aoseulado,umgarotodeolhosarregaladosdiantedoesplendordeElvandar.

Aglaranna não conseguiu se mexer, receando que aquilo que estavatestemunhando fosse fruto de uma ilusão nascida da esperança. Enquantoesperava,otempopassoucorrendo,atéque,por m,Tomasestavaàsuafrente.Deixando o menino, avançou. Martin deu a mão ao garoto e o levou dali,concedendoàRainhadosElfoseaTomasaprivacidadenecessária.

Tomasestendeuobraçodevagar, tocandooseurosto,deleitando-secoma

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visãodela,comoseaestivessevendopelaprimeiravezemCrydee.Porfim,semdizer uma única palavra, envolveu-a em seus braços. Abraçou-a em silêncio,deixandoquesentisseofervordoamorqueoinvadiasemprequeavia.

Passadoalgumtempo,sussurrounoouvidodela:—Por cadamomentode amarguraque lhe causei, óminha senhora, rogo

aos deuses queme concedammais um ano para lhe oferecermuitas alegrias.Sou,novamente,osúditoqueaadora.

Tomadacompletamentepelaalegriaparaconseguirfalar,aRainhadosElfosoabraçoucomforça,atristezanãomaisdoqueumalembrançaindistinta.

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Emissário

stropasestavamparadasemsilêncio.Longas colunas de homens aguardavama vez para passar a fenda quelevavaaMidkemia.O ciaispassavam,garantindo,comsuapresença,a

disciplina nas leiras. Laurie, de máscara e trajes típicos de um SacerdoteVermelho, estava impressionado com o nível de controle que aqueles o ciaistinhamsobreseushomens.Consideravaocódigodehonradostsurani,emqueseobedeciacegamenteàsordens,algomuitoexótico.

LaurieeKasumisedeslocaramdepressaao longodas leiras, logoatrásdoprimeirodestacamentoqueestavacruzandooportal.Lauriedobrouosjoelhosesecurvou,demodoadisfarçarasuaaltura.Comotinhamprevisto,quasetodosossoldadosdesviavamoolharquandopassavaofalsoSacerdoteVermelho.

Quandochegaramàdianteiradacoluna,Kasumientrouna la.Oseuirmãomaisnovo,queforapromovidoaLíderdeAtaqueparaaatualofensiva,pareceunãoprestaratençãoàchegada tardiade seucomandantenemaosacerdotedeTurakamuquechegaracomele.

Após uma demora quase in ndável, a ordem chegou e avançaram para obrilho reluzentede “nada”quemarcava a fenda entreosdoismundos.Viramcurtosclarões,sentiramtonturaspassageiraseseviramcaminhandoemfrentesob uma garoa midkemiana. Cortinas de umidade, pouco mais do que umaneblina densa, caíam ao redor deles. Os soldados tsurani, habituados a umclimaquente,seenrolaramnascapas.

Umo cial consultouKasumi rapidamente e foramdadas ordens às tropaspara que se pusessememmarchaparanordeste e, a umadistância especí ca,montassem acampamento. Lá, Kasumi e Hokanu deveriam se apresentar natenda do Senhor da Guerra para receberem instruções. O Senhor da Guerra

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tinha regressado a Kentosani, a Cidade Sagrada, se preparando para osTorneios Imperiais, mas o subcomandante os instruiria quanto aos deveres eáreasderesponsabilidadeatéoseuregresso.

Avançaram depressa e montaram acampamento. Assim que a tenda docomandante foi erguida, Laurie e os irmãos Shinzawai entraram. Enquantodesfaziamtrouxasderoupamidkemianaearmas,Kasumidisse:

—Assimqueregressarmosdareuniãocomosubcomandante,comeremos.Hoje à noite, comandaremos uma patrulha em nossa área e, nessa hora,tentaremosnosesgueirarparalonge.—Kasumiolhouparaoirmão.—Apósanossa fuga, irmão, cabe a você ocultar a nossa ausência tanto tempo quantoconseguir.Assimqueocorreremcombates,poderádizerquecaímosnasgarrasdoinimigo.

Hokanuconcordou.—Talvezsejahoradeirmosnosapresentar.KasumiolhouparaLaurie.— Fique aqui dentro. Não queremos correr riscos. É o maldito sacerdote

maisaltoquejávi.Laurieconcordou.Sentou-seemalgumasalmofadaseesperou.

patrulha se deslocava em silêncio pelas árvores. A chuva cessara, mas otempo caramais frescoeLauriereprimiuumarrepio.Osanospassados

noclimaquentedeKelewantinhamacabadocomasuacapacidadedeignorarofrio. Pensou nas novas tropas de Tsuranuanni e em como reagiriam quandocaíssem as primeiras neves. Provavelmente com uma indiferença deliberada,independentemente do que estivessem sentindo. Um soldado tsurani jamaisdemonstrariadesconfortodevidoaalgotãotrivialcomoáguaemformatosólidocaindodocéu.

Escolheram a Passagem Norte, pois conduzia à frente de combate maisextensa e seria menos provável que os detectassem atravessando as leiras.Chegaram à entrada da passagem, conduzidos por um guarda. Assim quesaíramdo vale, viraramumpoucomais para leste do que tinha sido pedido àpatrulha.

Alémdosbosquesdispersosecolinasondulantes,seencontravaaestradadeLaMut para Zūn. Assim que os dois viajantes deixassem a patrulha ealcançassem a estrada, rumariam para Zūn, comprariam cavalos e partiriam

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paraosul.Comsorte,chegariamaKrondoremduassemanas.Látrocariamasmontarias e seguiriam para Salador, onde embarcariam em um navio comdestinoaRillanon.

Oúnicoobstáculo entre eles e a estrada eraumagrandepartedoExércitodoReino.Casofossemdescobertosporumapatrulha,tentariamsefazerpassarpor viajantes que tinham sido capturados pelos tsurani, mas que tinhamconseguido escapar. Não tinham como confundir Laurie com um tsurani e odomínio que Kasumi tinha do Idioma do Reino era tão perfeito que podiafacilmentepassarporcidadãodoReinonaturaldoValedosSonhos,umaregiãofronteiriça ao Grande Kesh onde eram falados vários idiomas, de modo quefacilmenteaceitariamolevesotaquedeKasumi.

Apatrulhasedeslocouapasso rme,devorandoquilômetros.Laurieseguiaao lado de Kasumi, espantado com o vigor dos soldados. Podiam não estardemonstrandocansaço,maseleosentia.Hokanufezsinalparaqueapatrulhaparassenoaltodeumagrandeáreaplana,pertodosbosques.

—Retornaremosdaquiparanossaáreadepatrulha.Nãodevemosencontrarmaisnenhumsoldadotsuraniapartirdestetrecho.Vamostorcer,pelobemdevocês,quetambémnãonosdeparemoscomtropasdoReino.

Deu um sinal e continuaram. Entregaram mochilas e roupas a Laurie eKasumi,quesetrocaramdepressaeseguiramocaminhoqueapatrulhatomara.Seguiriam a curta distância, fazendo uso da patrulha como cobertura, casosurgissemtropasdoReino.

Entraramemumpequenovaleederamcomapatrulhadetidaporalgomaisà frente. O último homem da la gesticulou para que não zessem barulho.Avançaram até a dianteira e Laurie olhou ao redor, procurando uma saídarápidasesurgissemproblemas.

—Pensei terouvidoalgumacoisa,masháváriosminutosquenão seouveumúnicosom—disseHokanuemvozbaixa.

Kasumifezumacenocomacabeça.— Então, avancem. Aguardaremos até terem atravessado aquele

descampadomais à frente e depois seguiremos para o bosque.— Indicou umarvoredo,nooutroladodaclareira.

Quandoapatrulhachegouaocentrododescampado,asnuvensseabrirameraiosdeluariluminaramaárea.

— Maldição! — Kasumi praguejou em voz baixa. — Só falta acenderem

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tochas.Derepente,virammovimentoseouviramruídosvindosdasárvores.Ochão

estremeceu quando os cavaleiros investiram, saindo das árvores que osescondiam.Todosusavampesadascotasdemalhaeelmoscompletos.Traziamlançascompridasapontadasparaosatônitossoldadostsurani.

Os tsuranimal tiveramtempopara formarumarude linhadedefesaantesqueoscavaleiros investissem.Guinchosdecavalosehomens invadiramoareos tsurani tombaram diante do ataque. Os cavaleiros atropelaram os tsurani,reagrupandonaextremidadedovale,ondeestavamescondidososdoisfugitivos.Deram meia-volta e tornaram a investir. Os tsurani que sobreviveram aoprimeiroataque,menosdemetadedocontingente,sedeslocaramrapidamenteparaoestedovale,ondeasárvoreseainclinaçãodaencostapoderiamdi cultaracapacidadedeataquedoscavaleiros.

LaurietocounobraçodeKasumi,fazendosinalparaadireita.Eraevidenteque o o cial tsurani estava com di culdades para controlar o impulso de sejuntar a seus homens. Subitamente,Kasumi partiu, prosseguindo junto à orladasárvoresenquantocorriadevagar.Laurieoseguiu,distinguindooquepareciaserumatrilhatoscaqueseguiaparaleste.PuxouamangadeKasumieapontou.Deramascostasàbatalhaepartiram.

dia seguinte reveloudois viajantes caminhandopela estradaque levava aZūn. Ambos vestiam camisas de lã, calças e mantos. Um exame mais

atentodeumolhotreinadorevelariaqueomaterialnãoerarealmente lã,masum produto semelhante. Os cintos e botas eram feitos de pele de needra,tingidospara se assemelharema couro.O estilo eramidkemiano, tal comoasespadasquelevavamnoscintos.

Umdelesobviamenteeraumtrovador,poistraziaumalaúdependuradoporcimadamochila.Ooutropareciaummercenárioousaqueador.Umobservadorqualquer não seria capaz de adivinhar de onde vinham ou as riquezas quecarregavamnaquelasmochilas,poiscadaumdelestraziaumapequenafortunaempedraspreciosasescondidasnofundodamochila.

PorelespassaramrapidamentesoldadosdecavalariarumoaonorteeLauriedisse:

— As coisas mudaram desde que saí daqui. Aqueles homens na orestaeramlanceirosreaiskrondorianos,eaquelesqueacabaramdepassarvestiamas

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cores doMirante deQuestor. Todas as forças dos Exércitos doOeste devemestar se reunindo aqui. Parece haver algo no ar. Talvez tenham conseguidodeduziroplanodoSenhordaGuerraparaumaofensivaemlargaescala.

—Não sei. O que quer que esteja acontecendo, não parece indicar que asituação está tão estável quanto fomos levados a crer em nosso mundo. AsAlianças estão muito inquietas desde a morte do Lorde Minwanabi e osurgimentodenovasforçasnoGrandeJogo.OSenhordaGuerrapoderáestaraindamais desesperado do que omeu pai imagina.A concentração de forçasaquipresenteme levaapensarqueavitóriadoSenhordaGuerrapoderánãoser fácil de alcançar. — Kasumi permaneceu em silêncio por algum tempoenquantocaminhavampelaestrada.—EsperoqueHokanuestejaentreosqueconseguiramchegaràsárvores.—EraaprimeiravezquemencionavaoirmãoeLaurienãosoubeoquedizer.

ois dias mais tarde, Laurie, um menestrel de Tyr-Sog, e Kenneth, ummercenáriodoValedosSonhos,estavamsentadosnaEstalagemdoGato

Verde na cidade deZūn.Ambos comiam comum apetite voraz, pois há doisdiasqueviviamderaçõesmilitares:bolosdecereaisefrutassecas.

Laurie passara mais de uma hora negociando com um comerciante depedras preciosas pouco respeitável o valor de várias pedras menores.Contentara-secomumterçodaquiloquerealmentevaliam,dizendo:

—Seacharquesãoroubadas,nãovaiquererfazermuitasperguntas.—Porquenãolhevendeutodasaspedraspreciosas?—perguntouKasumi.—Oseupainosdeupedraspreciosasqueseriamsu cientespara carmos

descansadosatéo mdosnossosdias.MesmoquetodososnegociantesdeZūnse juntassem, duvido que conseguissem reunir todo o ouro necessário paracomprá-las. Venderemos algumas durante a viagem; além disso, são menospesadasdoqueouro.

Quandoterminaramarefeição,osdoishomenspagaramesaíram.Kasumimalconseguiaseconteraovermetalportodolado,asriquezasdeumavidaemKelewan. O custo de uma refeição pago em moedas de prata bastaria parasustentarumafamíliatsuraniduranteumano.

Avançaram apressadamente por uma das ruas mais movimentadas dacidade, rumo ao portão sul. Tinham lhes dito que ali perto um respeitávelmercador de cavalos lhes venderiamontarias e omaterial necessário por um

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preço justo. Encontraram o homem, um tipo magro de nariz aquilino queatendiapelonomedeBrin.Lauriepassouquaseumahorapechinchandoduasdas melhores montarias do mercador. Eles o deixaram demonstrando suapreocupaçãoquantoàcapacidadequeosdois teriamdedormirànoite,depoisde teremtrapaceadoumhomemdenegócioshonesto,privando-ododinheirodequeprecisavaparaalimentarosfilhosfamintos.

Quando atravessaram o portão que os colocaria na estrada para Ylith,Kasumidisse:

—Grandepartedesuaterramepareceestranha,masmelembreidaminhapátriaquandovocênegociavacomaquelemercador.Osnossosmercadoressãomuito mais amáveis e jamais pensariam sequer em levantar a voz daquelaforma,masnãodeixadesertudoamesmacoisa.Todostêm lhosquepassamfome.

Laurie riu e esporeou o cavalo, fazendo-o avançar. Não demorou paradeixaremdeavistaracidade.

o sul do Mirante de Questor, cruzaram o caminho de alguns soldados,desta vez tropas regulares do Reino e reservas que se arrastavam

penosamenteapé,enquantoosoficiaisseguiamacavalo.Laurie eKasumi tinhamparadopara soltaros cavalos,deixando-ospastar,

enquantoa leirapassava.Oguerreiroobservouossoldadosquepassavamcomum olhar de especialista. Soldados com fardas vermelhas marchavam emformação rigorosa, emesmo os reservasmais esfarrapados ainda conseguiamterumarorganizado.Acaravanademercadorias seguiaordenadamente,umavez que os condutores experientes mantinham os animais a uma distânciaadequada.Quandopassaram,Kasumidisse:

—Aqueles soldados sãomelhoresdoque todososoutrosque jávi emseumundo,Laurie.Osdefardavermelhaparecempro ssionais.Marchambem.Osoutrosparecemterexperiência,apesardoaspectodescuidado.

Lauriebalançouacabeça.—Reconheçooestandarte.Trata-sedaguarniçãodeShamata,noValedos

Sonhos.Játiveramasuacotadecon itoscontraossoldadosdeKeshesãoumgrupoveterano.Osoutrossãoreservas,mercenáriosvindosdoVale,umbandode rapazes menos afáveis que você não gostaria de enfrentar. — Lauriecomeçou a aparelhar o cavalo.—Na verdade, são uma força de homens tão

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bemtreinadaquantoasqueosseusconterrâneosjáenfrentaram.Assim que aprontaram os cavalos, Laurie e Kasumi voltaram a montar e

partiram.Poucodepois,avistaramoMarAmargo,quandoaestradacontornouascolinasdoMirantedeQuestor.

Laurieparouocavalo,olhandofixamenteparaomar.—Oquefoi?—perguntouKasumi.Lauriecolocouamãosobreosolhos.— Navios! Uma frota inteira rumo ao norte. — Ficou algum tempo

observando,atéqueKasumiconseguiuverpontosbrancosnoazuldomar.—Paraondevão?—perguntouKasumi.—Ylithéoúnicograndeportoaonorte.Devemlevarmantimentosparaa

guerra.Retomaramocaminho.Foramtomadosporumasensaçãodeurgência,pois

tudo o que tinham visto apontava que a guerra estavamais intensa, e quantomaisdemorassem,menoschancesteriamdecumpriramissão.

uatorzediasdepois,alcançaramoportãonortedeKrondor.Aopassarem,váriosguardasdepretoedouradoosolharamcomdescon ança.Quando

osguardasdoportãojánãopodiamouvi-los,Lauriedisse:—Aqueles não são os tabardos do Príncipe. O estandarte de Bas-Tyra se

ergueemKrondor.Avançaramdevagarmaisumminuto,atéqueKasumiperguntou:—Oquesignificaisso?—Nãosei.Masachoqueconheçoumlugarondepoderemosdescobrir.—

Percorreramumasériede ruasdelimitadasdecada ladoporarmazénse casascomerciais.Ouviam-seossonsdasdocas,amuitasruasdedistância.Foraisso,obairroestavacalmo.

—Queestranho—observouLaurieenquantoavançavam.—Estapartedacidadecostumavatermaismovimentonestahoradodia.

Kasumi olhou ao redor, sem saber o que esperava ver. As cidadesmidkemianas, comparadas às cidades do Império, pareciam pequenas e sujas.Ainda assim, havia algo estranho na ausência de atividade naquele lugar. Aomeio-dia,ZūneYlithfervilhavamdesoldados,mercadoresecidadãos,mesmosendo cidades menores do que Krondor. À medida que avançavam, umasensaçãodeinquietaçãotomoucontadeKasumi.

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Entraram em uma zona da cidade aindamais isolada do que o bairro dosarmazéns. Ali, as ruas eram mais estreitas e os edifícios de quatro e cincoandares deixavam pouco espaço de passagem. Sombras sinistras eramconstantes, ainda que fosse meio-dia. As pessoas que se viam na rua, algunsmercadores e mulheres a caminho do mercado, seguiam calados e a passorápido.Paraondequerqueoscavaleirosolhassem,viamexpressõesdecautelaedesconfiança.

Laurie conduziuKasumi até umportão, atrás do qual se podia ver a partesuperior de um edifício de três andares. Laurie inclinou-se na sela e puxou acordadeumasineta.Nãoobtendoresposta,apósalgunsminutosvoltouatocar.

Pouco depois, foi aberta uma portinhola na porta, onde viram um par deolhoseouviramumavoz:

—Oquequeremaqui?— Lucas, é você? — perguntou Laurie em tom severo. — O que está

acontecendoparanãodeixarentrardoisviajantes?Osolhossearregalarameaportinholasefechou.Oportãoseabriucomum

rangidodeprotestoeumhomemsaiuparaabri-locompletamente.— Laurie, seu patife!— disse, deixando os cavaleiros entrarem.— Já faz

cinco...não,seisanos.EntrarameLaurie couespantadocomoestadodaestalagem.Deumdos

lados, estava o estábulo, em ruínas. Do lado oposto, junto ao portão, pendiauma tabuleta acima da entrada principal, retratando em tons desbotados umpapagaiodemuitascoresdeasasabertas.Atrás,ouviramoportãofechar.

OhomemquesechamavaLucas,altoemagro,decabelogrisalho,disse:— Vocês terão de colocar os cavalos no estábulo. Estou sozinho aqui e

tenhode voltar ao salão antes queosmeushóspedes comecema roubar tudopor lá. Vejo vocês lá dentro e depois nos falamos. — Voltou-se e os doiscavaleirosforamtratardasmontarias.

—Hámuita coisa acontecendo aqui que eu não entendo— disse Laurie,enquanto tiravam as selas dos cavalos.—OPapagaioArco-Íris nunca foi umlugarsensacional,massemprefoiumadasmelhorestavernasdoBairroPobre.—Escovouoseuanimalemsilêncio.—Sehálugarondepodemosdescobriroque está acontecendo emKrondor, esse lugar é aqui. Ao longo dos anos quepasseiviajandopeloReino,aprendio seguinte:quandoosguardasdosportõesprestammuitaatençãoaosviajantes,éhorade caremumlocalondenãoseja

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provável que eles frequentem. Podem lhe cortar a garganta rapidamente noBairro Pobre, mas raramente verá um guarda por estas bandas. Se elesaparecerem,ébemprovávelqueohomemquetentavacortarasuagargantaoescondaatéelespartirem.

—Edepoiseletentarácortaraminhagarganta.Laurieriu.—Vocêaprenderápido.Depois de cuidarem dos cavalos, os dois viajantes pegaram as selas e as

sacolaseaslevaramparaaestalagem.Ládentro,foramrecebidospelavisãodeum salão mal iluminado, com um balcão comprido ao longo da parede dofundo.À esquerda, via-se uma enorme lareira, e à direita, uma escadaria quelevavaaopisosuperior.Haviaváriasmesasvaziaseduasdelastinhamclientes.Oshóspedesolharamderelanceparaosrecém-chegados,maslogoretornaramàssuasbebidaseconversassussurradas.

LaurieeKasumiforamatéobar,ondeLucasestavalimpandoalgunscoposdevinhocomumtraponadalimpo.LargaramasmochilaseLauriedisse:

—TemvinhodeKesh?— Um pouco, mas é caro — respondeu Lucas. — Tem havido pouco

comérciocomKeshdesdequecomeçaramosproblemas.LaurieolhouparaLucas,comoseestivessecalculandoocusto.—Sendoassim,duascervejas.Lucasserviuduasgrandescanecasdecervejaeacrescentou:—Ébomvê-lo,Laurie.Sentifaltadasuavozsuave.— Não foi isso que disse da última vez — disse Laurie. — Se bem me

lembro,vocêacomparouaosguinchosdeumgatoàprocuradebriga.RirameLucasdisse:—Comasituação tãodesoladora, queicomocoraçãomaismoleparaos

verdadeiros amigos. Restam poucos. — Olhou atentamente para Kasumi eLaurieoapresentou:

—EsteéKenneth,umverdadeiroamigo,Lucas.Lucasnãodeixoudeobservarotsurani,masacabousorrindo.—ArecomendaçãodeLaurietemmuitopeso.Sejabem-vindo.—Estendeu

amão,queKasumiapertou,àmaneiradoReino.—Ficofelizcomaacolhida.Lucasfranziuatestaaoouvirapronúncia.

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—Forasteiro?—DoValedosSonhos—respondeuKasumi.—DoladodoReino—acrescentouLaurie.Lucasobservouosoldado,entãoencolheuosombros.— Não importa. Não me importa nem um pouco, mas tenha cuidado.

Vivemos uma época de descon ança e há pouca simpatia com forasteiros.Tenha cuidado com quem fala, pois correm rumores de que os soldados deKesh estão prestes a se deslocarmais uma vez para o norte, e você não estámuitolongedeserumkeshiano.

AntesqueKasumipudesseretorquir,Laurieinterveio:—QuerdizerquehaveráproblemascomKesh?Lucassacudiuacabeça.—Não sei dizer. Nomercado corremmais boatos do que pulgas em um

mendigo.—Abaixou a voz.—Há duas semanas, chegarammercadores comnotíciasdequeoImpériodoGrandeKeshestavanovamenteguerreandonosul,procurandovoltara subjugaros seusantigosvassalosdaConfederação.Então,porenquantoasituaçãodevepermanecercalmaporestasbandas.Hámaisdecemanos,aprenderambemoqueéa loucuradeumaguerraemduas frentes,quando conseguiram perder Bosania por completo e, mesmo assim, nãoconseguiramderrotaraConfederação.

— Estamos viajando hámuito tempo e poucas notícias nos chegaram aosouvidos—disseLaurie.—PorqueoestandartedeBas-TyraestáhasteadoemKrondor?

Lucas deu uma olhada pelo salão. Os clientes com as bebidas à frentepareciamalheiosàconversanobalcão,mas,aindaassim,pediusilêncio.

—Vou lhesmostrar um quarto— disse em voz alta. Tanto Laurie comoKasumi caramumpouco surpresos,mas pegaram seus pertences e seguiramLucasatéopisodecima,semmaiscomentários.

Guiou-os até um pequeno quarto, com duas camas e uma mesinha decabeceira.Depoisdefecharaporta,disse:

—Con oemvocê,Laurie,porissonãolhefareimaisperguntas,mas quesabendoquea situaçãomudoumuitodesdeaúltimavezquevocêesteveaqui.Até no Bairro Pobre há ouvidos que pertencem ao Vice-Rei. Bas-Tyra tem acidadesoboseudomínioesóumtolofalasemverquemestáescutando.

Lucas sentou-se em uma das camas, enquanto Laurie e Kasumi zeram o

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mesmonacamaemfrente.—QuandoBas-TyrachegouaKrondor,traziacomeleodocumentodoRei

que o nomeava regente de Krondor, com plenos poderes de Vice-Rei —prosseguiu Lucas. — O Príncipe Erland e a família foram aprisionados nopalácio,emboraGuydigaquesetratadeuma“prisãopreventiva”.Emseguida,Guy caiu sobre a cidade com vontade. Bandos de recrutamento forçadopercorrem o cais e sãomuitos os homens que navegam agora na armada deLordeJessup,semqueasmulheresouos lhossaibamoqueaconteceuaoseupai. Desde então, quem quer que fale em oposição ao Vice-Rei ou ao Reisimplesmente “desaparece”, porque Guy possui uma polícia secreta ouvindoatrás de todas as portas da cidade. Todos os anos, os impostos sobem paracustear a guerra e o comércio está se extinguindo, salvo aqueles que vendemparaoexército,emesmoessesestãosendopagoscomgarantiasquenãovalemnada. São tempos difíceis e o Vice-Rei nada faz para torná-los melhores. Acomida está escassa e, quando aparece, há pouco dinheiro para comprá-la.Muitos agricultores perderam suas fazendas por não pagarem os impostos eagoraa terranãoécultivada,poisnãoháquema lavre.Assim,osagricultoresvagam pela cidade, aumentando a população. Grande parte dos jovens foirecrutadaparao exércitooupara a armada.Tenhamcuidadoparanão seremapanhados pelos guardas, seja lá por que motivo for, e quem atentos aosbandosderecrutamentoforçado.Aindaassim—disseLucasdandoumarisada—, vivemos momentos excitantes por estes lados quando o Príncipe AruthaapareceuemKrondor.

—OfilhodeBorric?Eleestáaqui?—perguntouLaurie.UmacentelhadesatisfaçãoapareceunosolhosdeLucas.— Não mais. — Voltou a rir. — No inverno passado, com grande

descaramento,oPríncipeentrouemKrondorpormar.DeveteratravessadoosEstreitos das Trevas no inverno, senão nunca teria chegado à cidade naquelaépoca.—Contou-lhesresumidamenteafugadeAruthaeAnita.

—RegressaramaCrydee?—perguntouLaurie.Lucasconfirmou.—UmmercadorquechegoudeCarseumas semanasatrásvinhacheiode

novidadessobre issoeaquilo.Umadascoisasqueouviu foiquealgunstsuraniandavamfazendodassuasaoredordeJonrilequeoPríncipedeCrydeeestavadispostoa iraté láparaajudar,se fossepreciso.DemodoqueAruthadeveter

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regressadoasalvo.—Guydeveterficadoloucocomessasnotícias—comentouLaurie.OsorrisodeLucasdesapareceu.—Bem, cou, Laurie. Ele havia atirado o Príncipe Erland nasmasmorras

paraobtersuapermissãoparasecasarcomAnita.Deixou-oláquandosoubedafugadaPrincesa.Deveterpensadoqueamoçairiapreferirregressaradeixaropaipresoemumacélulaúmida,masseenganou.CorreorumorpelasruasdequeoPríncipeestámoribundodevidoaofrio.Éporissoqueacidadeestánesteestado. Ninguém sabe o que acontecerá se Erland falecer. Ele é querido, epoderemos terproblemas.—LaurieolhouLucascomumapergunta tácita.—Nãotemnadaavercomumarebelião—respondeuLucas.—Estamosabatidosdemais. Contudo, é possível que alguns guardas de Guy não apareçam naparada, e serão muitos os contratempos que os mantimentos sofrerão atéchegarem à guarnição, bem como ao palácio e coisas assim. Eu não gostarianadadeestarnapeledocoletordeimpostosdoVice-ReidapróximavezqueoenviaremaoBairroPobre.

Laurierefletiusobretudooqueouvira.—DaquiseguiremosparaoLeste.Oquesabedascondiçõesnaestrada?Comlentidão,Lucassacudiuacabeça.—Aindaépossívelviajar.AssimquepassaremoCharcoNegro, creioque

nãoterãograndesdi culdades.TemosouvidoqueascoisasnoLestecontinuamcomocostumavamser.Aindaassim,sefosseeu,teriacuidado.

—Teremosdificuldadesparasairdacidade?—perguntouKasumi.— O portão norte continua sendo a melhor forma de sair. Tem poucos

homens, como sempre.Porumpequenopagamento, osZombadores poderãolevá-losemsegurança.

—Zombadores?—perguntouoguerreiro.Lucaslevantouassobrancelhas,admirado.— Você vem de muito longe. A Guilda dos Ladrões. Ainda controlam o

BairroPobreeoJustomantémsuainfluênciasobremercadoresecomerciantes,especialmentenas docas.Obairrodos armazéns é seu segundo lar, depois doBairro Pobre. Eles podem tirar vocês da cidade, caso tenham problemas noportão.

— Nós nos lembraremos disso, Lucas — disse Laurie. — Então, e a suafamília?Nãoosviporaqui.

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Lucaspareceuencolher.—Aminhamulhermorreudefebre,Laurie,háalgunsanos.Osmeusdois

lhos estão no exército.No último ano, tive poucas notícias deles.Da últimavez que recebi uma mensagem, estavam no norte, com os Lordes Borric eBrucal.Acidadeestácheiadeveteranosdeguerra.Vocêpodevê-lospor todolado.Sãoosquenãotêmmembrosouqueestãocegos.Noentanto,nãodeixamde usar os velhos tabardos. São uma visão patética. — Ficou com um olhardistante.—Esperoqueosmeusrapazesnãoacabemassim.

LaurieeKasuminãocomentaramnada.Lucasdespertoudeseusdevaneios.—Tenhodevoltarláparabaixo.Ojantarseráservidodaquiaquatrohoras,

embora não se pareça com o que eu costumava servir. — Quando oestalajadeirosevirouparasair,disse:—SeprecisarementraremcontatocomosZombadores,meavisem.

DepoisqueLucassaiu,Kasumidisse:—Édifícil conhecero seupaís,Laurie, e continuar considerandoaguerra

comoumfeitoglorioso.Laurieconcordou.

armazém estava escuro e cheirava amofo. Tirando Laurie, Kasumi e osdoiscavalosnovos,encontrava-sevazio.TinhampernoitadonoPapagaio

Arco-Íris, compradoduasnovasmontarias aumpreço elevadíssimoe tentadosairda cidade.Quando chegaramaosportõesda cidade, foram impedidosporumdestacamento de guardas de Bas-Tyra. Ficou evidente que os guardas nãoiriam deixá-los partir sem lhes causarem problemas, mas Laurie e Kasumiescaparam, e uma corrida desenfreada pela cidade teve início. TinhamdespistadoosperseguidoresnoBairroPobreeregressadoaoPapagaioArco-Íris.LucasenviaraumrecadoaoJustoeestavamnaquelemomentoaguardandoporumladrãoqueosguiasseparaforadacidade.

Umassobio interrompeuosilêncio,eLaurieeKasumidesembainharamasespadas emum instante.Foramcumprimentadosporuma risada estridente e,doalto,umasilhuetacaiu.Naescuridão,eradifícilverdeondesaltaraa gura,masLauriedescon ouqueovisitantejáestivesseescondidonasvigasháalgumtempo.

A guraavançoue,ameia-luz,perceberamtratar-sedeumgarotoquenãotinhamaisdoquetrezeanos.

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—Háumafestanacasadaminhamãe—disseorecém-chegado.—Etodossedivertirãobastante—retorquiuLaurie.—Entãosãoosviajantes.—Você é o guia?— perguntou Kasumi, sem se esforçar para esconder a

surpresanavoz.Avozdogarotopareciacheiadecoragem.— Sim, Jimmy, a Mão, é o seu guia. Não encontrarão melhor em toda

Krondor.—Oquetemosdefazer?—perguntouLaurie.— Em primeiro lugar, tratemos de meus honorários. São cem soberanos

cadaum.Sem comentários, Laurie tirou várias pedras preciosas e as entregou ao

garoto.—Servem?Ogaroto se viroupara a portado armazéme a abriuumpouco, deixando

entrarumraiode luar. Inspecionouaspedrascomolhosdeperitoeregressouparajuntodosdoisfugitivos.

— Servem. Por mais cem, podem car com isto. — Apresentou umpergaminho.

Laurieopegou,mas, compouca luz,não conseguiu entenderoque estavaescrito.—Doquesetrata?

Jimmyriu.— Uma permissão real, dando autorização ao portador para percorrer a

EstradadoRei.—Égenuína?—quissaberotrovador.—Temaminhapalavra.AfaneiestamanhãdeummercadordeLudland.É

válidapormaisummês.—Certo—disseLaurie.Omenestreldeuoutrapedrapreciosaaogaroto.Depoisdeguardaraspedrasnobolso,oladrãodisse:—Daqui a pouco, vamos ouvir um tumulto no portão. Alguns de nossos

rapazes vão montar um espetáculo para os guardas. Quando tudo virar umagrandeconfusão,passamosporeles.

Voltouàportaeolhouparafora,semmaiscomentários.Enquantoesperava,Kasumisussurrou:

—Podemosconfiarnele?

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—Não,masnãonos restaoutraopção. Seo Justopercebesseque lucrariamais nos entregando, poderia fazê-lo. No entanto, os Zombadores não têmgrandeapreçopelosguardas, e,deacordocomLucas, agoraaindamenos,porissoépoucoprovável.Aindaassim,fiqueatento.

O tempo foi passando de forma interminável, até que se ouviram gritos.Jimmydeusinalcomumassobioestridente,retribuídoporalguémnarua.

—Éagora—disse,saindo.LaurieeKasumioseguiram,puxandooscavalos.—Sigam-medepertoedepressa—disseopequenoguia,avançando.Ao dobrarem uma esquina, viram o portão norte. Um grupo de homens

estava envolvido emumabriga, emuitospareciam sermarinheirosdasdocas.Os guardas tentavam restabelecer a ordem, mas, sempre que tiravam umarruaceiroda confusão, outro surgia das sombras que rodeavamoportão e sejuntavaaogrupo.Empoucosminutos,todososguardasestavamenvolvidosnatarefadedarfimàbrigaeJimmydeuordem:

—Agora!Afastou-se do edifício correndo, seguido de perto pelos viajantes,

precipitando-separaomuropertodaguarita.Deslocaram-sepelas sombras,oruídodoscascosdoscavalosabafadopelagritariadabriga.Aochegarempertodoportão,viramumúnicoguarda,dooutro lado,quenão tinhamconseguidoavistardopontoondeantesseencontravam.

LauriepôsamãonoombrodeJimmy.—Teremosdederrubá-lorápido.— Não. Se desembainharem armas, os guardas deixarão a distração para

tráscomosefosseumbordelemchamas.Eujácuidodele—contrapôsJimmy.Jimmy deu um salto e correu para o guarda. Quando o guarda apontou a

lançaparaseupeitoegritou“Alto!”,Jimmyochutoucomforçanaperna,acimada bota.O homem deu um gemido, olhando depois para o pequeno agressorcomfúriaestampadanorosto.

—Ora,seupequeno...Jimmymostrou-lhealínguaecomeçouacorrerparaasdocas.Oguardasaiu

atrás dele, enquanto os dois viajantes passavam sorrateiros pelo portão. Umavez do lado de fora da cidade, montaram depressa e partiram. Enquanto seafastavamdeKrondor,ouviamossonsdabriga.

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DescansaramumdianoCharcoNegro,emumaestalagemnopovoadoquecava abaixo do castelo. Tinham passado dois dias nas colinas e

precisavamdescansarasmontariasantesdeatravessaremospradosatéCruzdeMalac.Acidadeestavasilenciosaenadadeinteressanteacontecera,atéaportadaestalagemseabrireentrarumhomemdevestesmarronsesujas.Ohomemeraidosoecurvadopelosanosetãomagroquepareciaenfermo.Oestalajadeiroergueuosolhosdascanecasdecervejaqueestavalavandoedisse:

—Oquedeseja?—Porfavor,senhor,umpoucodecomida—disseoidosodevagar.—Temdinheiro?— Posso fazer feitiços para livrar a sua estalagem de pragas, caso as

ratazanasoaflijam,senhor.Talvez...—Rua!Não tenho comidaparamendigosnemmagos.Para fora!E, se eu

encontraroleiteazedo,soltooscãesemcimadevocê!Omagoolhou ao redor.Laurie estendeu amãopor cimadamesa e tocou

Kasuminobraço.Assuasorigenstsuranioestavamtraindo,poismostravaumassombro evidente como que via.Diante dele se encontrava ummago sendotratadotãomiseravelmentequantosuasroupas.OtoquedeLauriefezcomqueserecompusesse.Omagoseviroulentamenteesaiudaestalagem.

Laurie levantou-sedeumsalto e sedirigiuaoestalajadeiro.Atirandoumasmoedasnobalcão,pediu:

—Depressa.Umpedaçodecarnefria,umpãoeumodredevinho.Oestalajadeiro couadmirado,masasmoedasnobalcãooconvencerema

satisfazer o pedido. Quando a comida pedida foi posta em cima do balcão,Laurie a pegou. Deteve-se para pegar uma fatia de queijo de um tabuleiro ecorreuportaafora.Kasumificoutãoespantadoquantooestalajadeiro.

Laurie procurou o idoso, encontrando-o no nal da rua, ereto enquantoavançavacomumcajadonamão,quefaziaasvezesdebengala.Correuatrásdohomem,dizendo,quandooalcançou:

—Desculpe,maseuestavanatavernae…—Mostrouacomidaeoodre.Viuoorgulhodiminuirnosolhosdoidoso.—Porqueestáfazendoisso,menestrel?—Tenhoumamigoqueémago,umamigomuitoespecial.Umavez,eleme

fezumgrandefavoreeu...écomosefosseumaretribuição—explicouLaurie.O mago aceitou a explicação e a comida. Enquanto se ocupava com os

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alimentos,o trovadorconseguiucolocarsorrateiramenteduaspedraspreciosasnabolsavaziaqueomagotraziaàcintura.Bastariamparagarantirqueomagonuncamaisprecisassepassarfomesevivessecommodéstia.

—Comosechamaessemago?Talvezeuoconheça.—Milamber.Ovelhotesacudiuacabeça.—Nuncaouvifalardele.Ondeelevive?Laurieolhouparaoeste,ondeosolestavasepondoatrásdascolinas.—Longedaqui,meuamigo—respondeu,umaemoção intensanavoz.—

Muitolongedaqui.

naviobatiacontraasondasenquantoatripulaçãometiaasvelasnosrizes.Laurie e Kasumi se encontravam no convés, contemplando as torres de

Rillanonàmedidaqueonavioentravanoporto.—Umacidadefabulosa—disseoantigoo cialtsurani.—Nãotãogrande

como as cidades do meu mundo, mas muito diferente. Todos aqueles dedosminúsculosdepedraeascoresdosestandartesafazemparecerumacidadedaslendas.

—Estranho— comentou Laurie.— Pug e eu sentimos omesmo quandovimosJamarpelaprimeiravez.Deveserporquediferemmuitoumadaoutra.

Permaneceram na coberta, sentindo a brisa fresca, embora conseguissemtambém sentir o calor do sol. Vestiam ambos as roupas mais elegantes queconseguiram comprar em Salador, pois desejavam comparecer com boaaparência diante da corte, sabendo que as chances de deixarem que vissem oReiseriampoucasseparecessemmerosvagabundos.

Ocapitãodonaviodeuordensparaquefossemrecolhidasasúltimasvelase,pouco depois, o barco deslizou até o seu lugar, atracando nas docas. Foramatiradas cordas a homens que aguardavam no cais e amarraram depressa aembarcação.

Logo que conseguiram, os dois viajantes desceram pelo portaló e sedirigiram à cidade.Rillanon, a antiga e lendária capital doReino das Ilhas, seencontrava enfeitada com cores, reluzindo ao sol, embora se sentisse umatensãoquasepalpávelnaatmosferadasruasedosmercados.Portodoladoporonde passavam, as pessoas conversavam em tons sussurrados, como setemessem ser ouvidas, e até os vendedores nas barracas de rua pareciam

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oferecerosseusprodutossemconvicção.Eraquasemeio-diae,semprocuraralojamento,sedirigiramlogoaopalácio.

Quandochegaramaoportãoprincipal,umo cial vestido comas cores roxa edouradadaGuardadaCasaRealindagouoqueoslevaraatéali.

—Trazemosmensagensdamais alta importânciaparaoRei a respeitodaguerra—disseLaurie.

Oo cialponderou.Estavambem-vestidosenãoaparentavamserosloucoshabituais com profecias de desgraças ou profetas de uma verdade inde nível,mas tampouco eram o ciais do exército, nem faziam parte da corte. Decidiupela solução mais frequente nos exércitos de todas as nações, em todas asépocas:passá-losparaumsuperior.

Foram escoltados por um guarda até o gabinete de um assistente doChanceler Real. Fizeram com que aguardassem alimeia hora antes de seremrecebidos pelo assistente. Entraram no gabinete do homem, sendoconfrontados peloMordomo-Mor daCasaReal, umhomenzinho arrogante ebarrigudo.Quandofalava,suarespiraçãoeramuitoruidosa.

— Que assuntos trazem os cavalheiros até aqui? — perguntou, deixandoclaroqueaquelaapreciaçãoeraprovisória.

—TrazemosumamensagemparaoReia respeitodaguerra—respondeuLaurie.

— Oh? — fungou. — Qual o motivo para que esses documentos oumensagens,ousejaláoquefor,nãosejamentreguespelaadequadaviamilitar?

Kasumi, claramente frustradopela espera, depois de já se encontraremnopalácio,disse:

—Deixe-nosfalarcomalguémquepossanoslevaratéoRei.OMordomo-MordaCasaRealficouindignado:—SouoBarãoGray.Écomigoquefalará,homem!Estouinclinadoapedir

aos guardas que os atirem na rua. Não podemos incomodar Sua Majestadesempre que um charlatão tenta obter uma audiência. É a mim que têm deagradarenãoofizeram.

Kasumiavançoueagarrouatúnicadohomempelopeito.—SouKasumidosShinzawai.OmeupaiéKamatsu,LordedosShinzawaie

ChefedeGuerradoClãKanazawai.FalareicomoseuRei!LordeGray empalideceu visivelmente. Puxava amão de Kasumi de forma

descontrolada,tentandofalar.Ochoquediantedoqueacabaradeouvireoque

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sentia por estar sendo tratado daquela forma competiam dentro dele. Erademaisparaconseguirfalar.Balançouacabeça,frenético,atéKasumiolargar.

— O Chanceler Real será informado imediatamente — disse o homem,alisandoafrentedatúnica.

Avançou até uma porta, enquanto Laurie o observava caso chamasse osguardas,tomando-osporloucos.Mesmoquetivesseoutrasideias,osmodosdeKasumioconvenceramdequeerabastantediferentedetudooquejávira.Ummensageirofoienviadoe,passadosalgunsminutos,entrouumhomemdecertaidade.

—Doquesetrata?—disseelesimplesmente.— Sua Graça — começou o Mordomo-Mor —, acho que será melhor o

senhorfalarcomesteshomenseavaliarseSuaMajestadedeverárecebê-los.Ohomemsevirouparaexaminarosoutrosdoisalipresentes.— Sou o Duque Caldric, Chanceler Real. Que razões têm para serem

recebidosporSuaMajestade?— Trago uma mensagem do Imperador de Tsuranuanni — respondeu

Kasumi.

Rei estava sentadodebaixo de umpavilhãona varanda comvista para oporto. Mais abaixo, um rio passava bem em frente ao palácio, fazendo

partedoplanooriginal dedefesa, embora jánão fosseusado como fosso.Porcimadoleito,viam-sepontesgraciosas,levandoaspessoasdeumamargematéaoutra.

O Rei Rodric estava sentado, aparentemente atento ao que Kasumi dizia.Brincavademododistraídocomumaboladouradanamãodireita,enquantootsuranidescreviaemdetalhesamensagemdepazenviadapeloImperador.

QuandoKasumi terminou,Rodric cou caladopor algum tempo, como seestivesse pesando o que acabara de ouvir. O tsurani entregou um maço dedocumentos aoDuqueCaldric e couà esperada respostadoRei.Apósmaisummomentodesilêncio,acrescentou:

— As propostas do Imperador estão delineadas em detalhe naquelespergaminhos,Majestade,casodesejeestudá-lascomcalma.Aguardareiotempoqueforconvenienteparalevarasuaresposta.

Rodricpermanecia calado eosmembrosda corteque se encontravamporpertoseentreolharamdemodonervoso.Kasumiestavaprestesavoltarafalar

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quandooReidisse:—Divirto-mesemprequevejoosmeussuditozinhoscorrendodeum lado

paraoutrodacidade,comoformiguinhas.Pergunto-mecomfrequêncianoquepensam, em suas vidinhas simples. — Virou-se para os dois emissários. —Sabem,poderiamandarmatarqualquerumdeles.Bastaria escolherum,destamesmavaranda.Bastariadizeraosmeusguardas“Estãovendoaqueleindivíduodechapéuazul?Cortem-lheacabeça”eelesassimfariam.PorqueeusouRei.

Laurie sentiu um arrepio subir pela sua espinha. Aquilo era pior do quequalquercoisaque imaginara.OReiparecianão terouvidoumaúnicapalavradoquelheforadito.

—Sefalharmos,umdenósterádevoltarparainformaromeupai—disseKasumiemvozbaixanoidiomatsurani.

Diantedisso,oReilevantouacabeçacombrusquidão.Arregalouosolhosefaloucomvoztrêmula:

—Oqueé isso?—Avoz couestridente:—Nãoadmito sussurros!—Oseurostoganhouumaspectoferoz.—Sabem,andamsempresussurrandosobremim,osdesleais,maseuseiquemsãoeosvereidiantedemim,dejoelhos,ah,verei. Aquele traidor do Kerus se ajoelhou antes de ser enforcado. Tambémteria enforcado a família dele se não tivesse fugido para Kesh. — Olhouatentamente para Kasumi.—Você acha que consegueme enganar com essahistóriapeculiareessessupostosdocumentos.Qualquertoloconsegueperceberoseudisfarce.Sãoespiões!

ODuque Caldric parecia angustiado e tentou acalmar o Rei. Havia váriosguardasporperto,que iammudandoopesodocorpodeumpéparaooutro,constrangidoscomoqueestavamouvindo.

O Rei afastou o Duque solícito. A sua voz ganhou um tom que beirava ahisteria:

— São agentes de Borric, aquele traidor. Ele emeu tio planejavam tirar omeu trono.Mas euos impedi.Omeu tioErlandmorreu...—Fezumapausa,comoseestivesseconfuso.—Não,querodizer,eleestádoente.ÉporissoqueomeulealDuqueGuyfoienviadodeBas-TyraparagovernarKrondoratéqueomeu amado tio recupere a saúde...—Os seus olhos pareceram se desanuviarpor um momento, e ele prosseguiu: — Não estou me sentindo bem. Comlicença.Voltareiafalarcomvocêsamanhã.—Levantou-sedacadeira.Deuumpasso e se virou para trás, tandoLaurie eKasumi.—Por que queriam falar

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comigo?Oh, sim,paz.Sim,parece-mebom.Estaguerra éhorrível.Temosdelhe dar um m para que eu possa voltar às minhas construções. Temos derecomeçaraconstruir.

UmpajemsegurouRodricpelobraçoeolevou.—Sigam-meenãodigamnada—disseoChancelerReal.Levou-os às pressas pelo palácio até chegarem a uma porta ladeada por

guardas. Um dos guardas a abriu e eles entraram. Lá dentro, viram que setratavadeumquartocomduasgrandescamaseumamesacomcadeirasemumcanto.

— A sua chegada não é oportuna— disse o Chanceler.— O nosso Rei,comocertamenteperceberam,éumhomemdoente,eeutemoqueelenãoserecupere.Esperoqueamanhãestejamais capazde entendera suamensagem.Permaneçamaqui,porfavor,atéquesuapresençasejasolicitada.Umarefeiçãolhes será trazida.—Voltou para a porta e, antes de sair, acrescentou:—Atéamanhã.

oramacordadosporumgritonanoite.Laurielevantou-serapidamenteefoiaté a janela. Espreitando através das cortinas, avistou uma silhueta na

varandamaisabaixo.Emroupadedormir,oReiRodricestavacomaespadanamão, golpeando os arbustos. Laurie abriu a janela e Kasumi juntou-se a ele.ConseguiamouvirosgritosdoReivindosdebaixo:

— Assassinos! Eles chegaram! — Guardas correram e revistaram osarbustos,enquantoospajensdacorteconduziamomonarcaaosgritosdevoltaaoseuquarto.

—Naverdade,osdeusesodeixaramperturbado—disseKasumi.—Devemmesmoodiarasuanação.

—Temo,amigoKasumi,queosdeusespoucotenhamavercomisso.Nestemomento,creioqueomelhorquetemosafazeréencontrarumaformadesairdaqui.Parece-mequeSuaMajestadeRealnãovaiestarcomdisposiçãoparaasdelicadasquestõesdeumanegociaçãodepaz.CreioqueserámelhorrumarmosparaoesteparafalarmoscomoDuqueBorric—disseLaurie.

—Esseduqueconseguirápôrfimaestaguerra?Lauriefoiatéacadeiraondeasuaroupaestavadobrada.—Esperoque sim—disse, pegando a túnica.—Seos lordes daqui cam

olhando o Rei se comportar daquela forma e não reagem, em breve ocorrerá

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umaguerracivil.Serámelhorresolverumaguerraantesdesecomeçaroutra.Vestiram-sedepressa.—Esperoqueencontremosumnavioquezarpecomamarédamanhã—

disse Laurie. — Se o Rei mandar fechar o porto, caremos encurralados. Ébastantelongeparairnadando.

Enquanto arrumavam seus pertences, a porta se abriu e o Chanceler Realentrou.Parouaovê-losdepéevestidos.

—Aindabem—disse,fechandoaporta.—Têmobomsensoqueeuacheiquetivessem.OReimandouexecutarosespiões.

Laurieestavaincrédulo.—Eleachaquesomosespiões?ODuqueCaldric sentou-se emumadas cadeiras juntoàmesa,mostrando

cansaçonorosto.—SeiláoqueSuaMajestadeachaessesdias.Algunsdenósaindatentamos

impedir os seus piores impulsos, mas a cada dia está cando mais difícil. Éhorrível assistir à enfermidade que o domina. Anos atrás, era um homemimpetuoso,éverdade,masseusplanoscontinhamumavisão,certobrilholoucoquepoderia ternos tornadoanaçãomaisnotáveldeMidkemia.Hoje emdia,sãomuitososmembrosdacortequetirampartidodesuacondição,usandoosmedos dele para promover seus próprios desígnios. Receio que, em breve, eusereiconsideradotraidoremejunteaosoutrosnamorte.

Kasumiafivelouaespada.—Por que ca,VossaGraça? Se isso é verdade, porquenão vem conosco

falarcomoDuqueBorric?ODuqueolhouparaoprimogênitodosShinzawai.—SouumnobredoReinoeeleémeuRei.Cabeamimfazeroquepuder

paraevitarqueeleprejudiqueoReino,mesmoquetenhadepagarcomavida;contudo,nãopossolevantararmascontraele,nemajudarquemo zer.Nãoseicomofuncionaoseumundo,tsurani,masnestetenhodeficar.EleémeuRei.

Kasumibalançouacabeça.—Compreendo.No seu lugar, faria omesmo. É umhomemde coragem,

DuqueCaldric.ODuquelevantou-se.—Souumhomemcansado.OReitomouumabebidafortequelhedei.Não

aceitaquemaisninguémlhedê,poistemeserenvenenado.Pediaomédicoque

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O

lhedessealgoparadormir.Vocêsjávãoestaremaltomarquandoeleacordar.Nãoseiseeleselembrarádesuavisita,mascertamentealguémfaráquestãodelembrá-lo, hoje ou no máximo amanhã. Por isso, não demorem. VãodiretamenteaoencontrodoDuqueBorricecontemaeleoqueaconteceu.

—ÉverdadequeoPríncipeErlandmorreu?—perguntouLaurie.—Sim,éverdade.Anotícia chegouháumasemana.A sua saúdeprecária

não aguentou amasmorra úmida. Borric é agora o herdeiro do trono. Rodricnuncasecasou:omedoquesentedasoutraspessoaséavassalador.OdestinodoReinoestánasmãosdeBorric.Vocêsprecisamlhedizerisso.

Avançaramatéaporta.Antesdeabri-la,oDuquedisse:—Digamaeletambémqueéprovávelqueeuestejamortocasoelevenhaa

Rillanon. Será melhor assim, pois eu teria de confrontar quem quer queerguessearmascontraoEstandarteReal.

Antes que Laurie e Kasumi pudessem falar, ele abriu a porta. Havia doisguardasdoladodeforaeoDuquelhesdeuordemparaqueosacompanhassematéasdocas.

— OAndorinha Real está ancorado no porto. Deem isto ao capitão. —Mostrou um pergaminho a Laurie. — Trata-se de uma proclamação realordenandoquesejamlevadosaSalador.—Mostrououtropergaminho.—EsteoutroordenaaqualquerExércitodoReinoqueauxilieasuajornada.

Despediram-se com um aperto de mão e os dois emissários seguiram osguardas pelo corredor. Laurie olhou para trás, vendo que o velho Duqueaguardava, curvado e fatigado, com o rosto marcado pela inquietação eamargura,bemcomopelomedo.Quandodobraramumaesquina,deixandodeveroDuque,Lauriepensouquenãohaviadinheironomundoqueo levasseatrocardelugarcomaqueleidoso.

scavalosespumavam.Oscavaleirososaçoitavamnasubidadacolina.EraaúltimaetapadaviagematéLordeBorric,iniciadahámaisdeummês,e

jáavistavamoseu m.OAndorinhaRealoslevararapidamenteatéSalador,deonde tinham partido de imediato para oeste. Tinham dormido pouco pelocaminho, trocando montarias ou as requisitando, sempre que possível, apatrulhas de cavalaria, recorrendo à proclamação real que Caldric lhes dera.Laurie não tinha certeza, mas descon ava que tinham percorrido aqueladistânciamaisdepressadoquealguémjamaisconseguira.

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Pordiversasvezes,desdequehaviamsaídodeZūn,tinhamsidoparadosporsoldados.EmtodasasvezesapresentaramaproclamaçãodoChancelerquelhespermitiaseguirviagem.Aproximavam-se,porfim,doacampamentodoDuque.

OSenhordaGuerratsuranitinhalançadooseugrandeataque.AsforçasdoReino tinham conseguido aguentar por uma semana, sucumbindo, por m,quando dezmil novos soldados tsurani tinham jorrado através das leiras doReino,desequilibrandoabalança.Oscombatesentãosetornaramimplacáveis,umabatalhaintensaeininterruptaqueduroutrêsdias,atéomomentoemqueo Exército do Reino foi destroçado. Ao m, uma grande parte da frente debatalha sucumbira e os tsurani tinham erguido uma forti cação fora daPassagemNorte.

Naquelemomento,elfoseanões,assimcomooscastelosdaCostaExtrema,estavam isoladosda forçaprincipal doExércitodoReino.Nãohavia qualquerformadecomunicação,poisospombosquelevavamasmensagenshaviamsidomortos quandoo antigo acampamento fora destruído.Desconhecia-se a sortedasoutrasfrentesdecombate.

Os Exércitos do Reino estavam se reorganizando, e Laurie e Kasumidemoraram algum tempo até encontrarem o acampamento que servia dequartel-general.Enquantoavançavamatéopavilhãodecomando,viramsinaisdeumaamargaderrotaportodolado.EraopiorrevésdaguerraparaoReino.Paraondequerqueolhassem,viamhomensferidosouenfermoseaquelesquenãoapresentavamferimentostinhamumaexpressãodedesespero.

Umsargentodaguardaveri couaproclamaçãoeordenouaumguardaqueos acompanhasse até a tenda do Duque. Chegaram à enorme tenda docomando e um criado tomou conta dos cavalos enquanto o guarda entrava.Poucodepois,saiuumjovemalto,debarbaloura,trajandootabardodeCrydee.Atrásdelevinhamumhomemcorpulentodebarbagrisalha—ummago,pelotraje—eoutrohomem,robusto,comumacicatrizirregularnorosto.LaurieseperguntouseseriamosvelhosamigosdequePugfalara,mas focoudepressaaatençãonojovemoficial,queparouàsuafrente.

—TragoumamensagemparaoLordeBorric.Ojovemsorriuamargamente,dizendo:—Podemetransmitiramensagem,senhor.SouLyam,filhodoDuque.—Não quero lhe faltar com o respeito, VossaAlteza,mas tenho de falar

pessoalmente com oDuque. Assimme ordenou oDuque Caldric— a rmou

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Laurie.À menção do nome do Chanceler Real, Lyam trocou olhares com os

companheiros e afastou a aba da tenda. Laurie e Kasumi entraram, seguidospelos outros. Lá dentro ardia um pequeno braseiro e uma mesa enorme eravista commapas em cima. O Príncipe os conduziu a outra seção da enormetenda,separadaporumacortina,queafastou,deixandoquevissemumhomemdeitadosobreumcatre.

Era um homem alto, de cabelo preto com madeixas grisalhas. O rostodenunciavaexaustão,estavapálidoetinhaos lábiosazulados.Arespiraçãoerairregular e cada inspiração ressoava alto enquanto dormia. A roupa estavalimpa,masseviammuitasbandagensporbaixodocolarinhoaberto.

Lyamlargouacortinaquandoentrououtrohomemnatenda.Envelhecido,comcabeloquasetodobranco,caminhavaeretoetinhaombroslargos.

—Oquesepassa?—perguntouemvozbaixa.— Estes homens trazem uma mensagem de Caldric para o meu pai —

respondeuLyam.Ovelhoguerreiroestendeuamão.—Deemamensagemparamim.VendoLauriehesitar,ohomemquaseladrou:—Raios, homem, souBrucal.ComBorric ferido, sou eu que comando os

ExércitosdoOeste.—Nãotragomensagensescritas,VossaGraça—disseLaurie.—ODuque

Caldric pediu que apresentasse o meu companheiro. Este é Kasumi dosShinzawai,emissáriodoImperadordeTsuranuanni,quetrazumaofertadepazaoRei.

—Apazchegará,porfim?—perguntouLyam.Lauriebalançouacabeça.—Infelizmente,não.ODuquetambémpediuparatransmitiroseguinte:o

Rei enlouqueceu e o Duque de Bas-Tyra assassinou o Príncipe Erland. TemequesomenteLordeBorricpossasalvaroReino.

Brucalficouvisivelmentechocadocomasnotícias.—Sabemosagoraqueos rumores sãoverdadeiros—disseaLyamemvoz

baixa. — Erlandera prisioneiro de Guy. Erland está morto. Não consigoacreditar.—Sacudindoacabeçaparaafastarochoque,prosseguiu:—Lyam,seiqueestápreocupadocomoseupai,masprecisaseconformarqueoDuqueestá

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morrendo; em breve, você será o Duque de Crydee. Com Erland morto,tambémseráherdeirodotronopordireitodenascença.

Brucalsentou-sepesadamenteemumbancojuntoàmesadosmapas.—Éumfardopesadooquevocê irácarregar,Lyam,masoutrosnoOeste

procurarãosua liderançacomoprocuravamadeseupai.Sealgumavezexistiualgumafeto entreosdois reinos, ele agora está sob tensão,pertodopontoderuptura, com Guy no trono de Krondor. Agora está evidente que Bas-TyrapretendesetornarRei,poisnãosepodedeixarRodric,enlouquecido,ocuparotronopormuitomaistempo.—OlhouoPríncipefixamente.—Embreve,vocêterá de decidir o que nós noOeste faremos. Se ordenar, teremos uma guerracivil.

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A

11

Decisão

CidadeSagradaestavaemfesta.Bandeirasesvoaçavamnoaltodosedifícios.Aspessoas cavamnabeiradas ruas, atirando ores à passagemdos nobres que eram levados em

suas liteiras até o estádio. Era um dia de grande celebração, quem poderia sesentirinquietoemumdiaassim?

Alguém preocupado chegou à sala do padrão do estádio, as últimasreverberaçõesdeumsinoindicandoachegadadeumGrandedeTsuranuanni.Milamber tentou se livrar da inquietação por um instante, enquanto saía dasala, ao lado da tribuna central do Grande Estádio Imperial. A multidão denobres tsurani que esperava pelo início dos torneios se afastou para deixarMilamberpassarpelo arcoque levava à tribunadosmagos.Olhando ao redordo pequeno mar de mantos negros, reparou em Shimone e Hochopepa, queguardavamumlugarparaele.

GesticularamsaudaçõesquandodeixouocorredorentreaseçãodosmagoseadaFacçãoImperialista, indo juntar-seaeles.Láembaixo,naarena,algunsseresquelembravamanões,habitantesdeTsubar—achamadaTerraPerdidaque cava alémdoMar de Sangue—, combatiamgrandes criaturas parecidascom insetos, como os cho-ja, mas desprovidas de inteligência. Espadas demadeira fraca e mordidas, em sua maioria inofensivas, proporcionavam umcon itoque eramais cômicodoqueperigoso.Osplebeus enobresdemenorimportância que já se encontravam sentados riam com interesse. Aquelasdisputas os mantinham distraídos enquanto os notáveis e os quase notáveisaguardavam a entrada no estádio. O atraso em Tsuranuanni se tornava umavirtudequandosealcançavaumdeterminadonívelsocial.

—Éumapenaterdemoradotantoachegar,Milamber—disseShimone.—

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Hápoucoocorreuumdesafioparticularmenteagradável.—Fiqueicomaimpressãodequeasmortesaindanãotinhamcomeçado.Hochopepa,mastigandoavelãscozidasemóleosdoces,disse:—Éverdade,masnossoamigoShimonetempaixãopelostorneios.—Hápouco,jovenso ciaisdefamíliasnobreslutaramcomarmasdetreino

até o primeiro derramamento de sangue para demonstrar suas capacidades econquistarhonraparaseusclãs...—disseShimone.

— Para não falar nos frutos de apostas bastante disputadas — observouHochopepa.

— Houve uma luta animada entre os lhos de Oronalmar e de Keda —prosseguiuShimone,ignorandoocomentário.—Háanosnãoviaumaexibiçãotãoboa.

Enquanto Shimone descrevia o combate, Milamber deixou o olhar vagar.Avistou os pequenos estandartes das famílias Keda, Minwanabi, Oaxatucan,Xacateca,AnasatiedeoutrasfamíliasnotáveisdoImpério.ReparounaausênciadoestandartedosShinzawaieponderousobreessefato.

—Parecemuitoapreensivo,Milamber—disseHochopepa.Milamberconfirmoucomumacenodecabeça.— Antes de partir para o festival, recebi a notícia de que o Conselho

Supremoaprovouontemumamoçãoparareformarosimpostossobreasterraseaboliraescravidãopordívidas.AmensagemchegoudoLordeTuclamekla,eeunãoconseguientender,pormaisquepensasse,porquea teriaenviado,atéque, ao terminar, agradeceu-me por ter fornecido os conceitos de reformasocialqueamoçãopretendiapromulgar.Fiqueichocadocomessaação.

Shimoneriu.— Se tivesse sido um estudante tão obtuso, ainda hoje vestiria o manto

branco.MilamberoolhousementendereHochopepaexplicou:— Você anda por aí causando todo tipo de rumores com seus discursos

diante da Assembleia, insistindo com frequência em nossas enfermidadessociais,edepoisficaespantadoporalguémoterouvido?

—Oqueeudisseaosnossos irmãosmagosnãoeraparaserdiscutido foradossalõesdaAssembleia.

—Que absurdo—disseHochopepa.—AlguémnaAssembleia falou comumamigoquenãoeramago!

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—Oqueeugostariadesaber—disseShimone—écomoessepunhadodereformasapresentadasaoConselhoSupremopeloClãHunzanlevaoseunomeanexado.

Milamberpareceuconstrangido,parasatisfaçãodeseusamigos.— Um dos jovens artistas que trabalharam nos murais da minha

propriedadeé lhodosTuclamekla.Éverdadequediscutimosasdiferençasdeculturas e valores sociais dos tsurani e do Reino, mas somente comoconsequêncianaturaldenossasdiscussõesarespeitodosestilosdearte.

Hochopepa ergueu os olhos para o céu, como se procurasse orientaçãodivina.

—QuandosoubequeaFacçãopeloProgresso,dominadapeloClãHunzan,porsuavezdominadopelafamíliaTuclamekla,citouvocêcomoinspiração,nãoconseguiacreditarnoqueestavaouvindo,masagoraperceboquesuamãoestáemtodososproblemasquea igemoImpério.—Olhouparaoamigocomumaexpressãodeseriedadefalsa.—Diga,éverdadequeaFacçãopeloProgressovaimudardenomeparaFacçãodeMilamber?

Shimone riu, enquanto Milamber xava Hochopepa com uma expressãoameaçadora.

— Katala acha graça quando co aborrecido com este tipo de situação,Hocho. Você também tem o direito de achar graça, mas quero que se saibapublicamente quenão eraminha intenção que isso acontecesse. Limitei-me afazeralgumasobservaçõeseemitiralgumasopiniõeseaquiloqueoClãHunzaneaFacçãopeloProgressofazemdelasnãoéobraminha.

—Temoque, se uma gura tão famosa como vossa excelência não desejaque essas situações ocorram, então talvez seja melhor que costure a boca—disseHochopepa,emtomdecensura.

ShimoneriueMilambersentiuvontadederirtambém.—Muito bem,Hocho— retorquiuMilamber.—Assumo a culpa; porém

nãoseiseoImpérioestápreparadoparaasmudançasqueachonecessárias.—Jáouvimosseusargumentosemoutrasocasiões,Milamber,mashojenão

é hora para isso, nem este é o lugar adequado para debates sociais — disseShimone. — Tratemos dos assuntos urgentes. Lembre-se de que muitosmembros da Assembleia se sentiram ofendidos pelas suas preocupações arespeitodeassuntosqueconsideramdaesferapolítica.Emboraeumeinclineaapoiar suas noções incentivadoras e progressistas, não se esqueça de que está

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criandoinimigos.Soaram trombetas e tambores, assinalando a chegada iminente da Facção

Imperialistae interrompendoasconversas.Os seresdeTsubareos insetoidesforam enxotados da arena, sendo levados pelos domadores.Quando o campocou vazio, surgiram serviçais com ancinhos e enxadas para alisar a areia. Osomdastrombetasvoltouaserouvidoeviu-seentrarosprimeirosmembrosdaprocissão imperial, arautos trajando o branco do Império. Traziam trombetascompridasecurvas,inventadasapartirdoschifresdeumgrandeanimal,queseenrolavam ao redor dos ombros e terminavam acima da cabeça. Atrás delesvinhamtocadoresdetamboresquebatiamemumrufarconstante.

Quando se colocaram em posição, diante da tribuna imperial, entrou aguardadehonradoSenhordaGuerra.Todosusavamarmaduraseelmoscomacabamentos em pele de needra completamente descolorida. A couraça e oelmo tinham bordas de precioso ouro que brilhava ao sol. Milamber ouviuHochopeparesmungararespeitododesperdíciodaquelemetalraro.

Depoisdesecolocarememposição,umarautoveteranoanunciou:— Almecho, Senhor da Guerra! — A multidão levantou-se, aplaudindo.

Vinha acompanhado pelo seu séquito, incluindo váriosMantos Negros— osmagosde estimaçãodoSenhordaGuerra, comoeramchamadospelosoutrosmembrosdaAssembleia.Entreesses, sedestacavamosdois irmãos:ElgahareErgoran.

Emseguida,oarautoanunciou:— Ichindar!Noventa e uma vezes Imperador!—Amultidão explodiu em

vivasquandoa jovemLuzdoCéuentrou.Vinhaacompanhadoporsacerdotesdecadaumadasvinteordens.Amultidão se levantouemuma tempestadedeaplausos.OclamorparecianãoterminareMilamberseperguntouseoamordopovotsuranipoderiaampararaLuzdoCéucasoocorresseumconfrontoentreo Senhor da Guerra e o Imperador. Apesar da reverência dos tsurani pelatradição,elenãoacreditavaqueoSenhordaGuerrafossehomemdeabdicardeseupostosemquestionar—umacontecimentosemprecedentenahistória—,casooImperadorassimordenasse.

Quandoobarulhocomeçouadiminuir,Shimonedisse:—Parece,amigoMilamber,queavidacontemplativanãocondizcomaLuz

doCéu.Não posso dizer que o censure, uma vez que ca sentado o dia todosem outra companhia que não seja a de muitos sacerdotes e garotas tolas

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escolhidas pela beleza, e não pela capacidade de conversação.Deve sermuitoentediante.

Milamberriu.—Duvidoqueamaiorpartedoshomensconcordasse.Shimoneencolheuosombros.— Sempre me esqueço de que você foi treinado já muito velho e que

tambémtemumaesposa.Hochopepapareceuangustiadoaoouvirfalardeesposas.—OSenhordaGuerravaifazerumanúncio—interrompeu.Almecho levantou-se, erguendo as mãos para pedir silêncio. Quando o

estádioficouemsilêncio,suavozressoou:—OsdeusessorriemaTsuranuanni!Tragonovidadesdeumagrandevitória

contra os bárbaros do outro mundo! Esmagamos o seu maior exército e osnossosguerreiroscelebram!LogotodasasterrasdoquechamamReinoestarãoprostradasaospésdaLuzdoCéu.—Virou-seefezumamesurarespeitosaaoImperador.

Milambersentiuumaestocadaaoouvirasnotícias.Semperceber,começoualevantareHochopepaoagarroupelobraço,sibilando:

—Vocêétsurani!Milambertentouselibertardochoqueinesperadoeconseguiuserecompor.—Obrigado,Hocho.Quaseperdiacabeça.—Silêncio!—pediuHochopepa.VoltaramaatençãoparaoSenhordaGuerra.—...e,emsinaldenossadevoçãoàLuzdoCéu,dedicamosestesjogosasua

honra.—ExplodiramvivasportodooestádioeoSenhordaGuerrasesentou.—NãoparecequeoImperadorestejaentusiasmadocomasnotícias—disse

Milamber em voz baixa para o amigo. Hochopepa e Shimone observaram oImperador,quemantinhaumaexpressãoestoica.

—Eleocultabem,masachoquetemrazão,Milamber—disseHochopepa.—Algonissotudopareceincomodá-lo.

Milambernadadisse,sabendoperfeitamenteacausadainquietação:aquelavitória iria prejudicar a iniciativa de paz da Roda Azul e dariamais poder aoSenhordaGuerraàscustasdoImperador.

ShimonetocounoombrodeMilamber.—Ostorneiosvãocomeçar.

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Quandoasportasdaarenaseabriramparaqueentrassemoscombatentes,MilamberexaminouoImperador.Erajovem,vinteepoucosanos,epossuíaumarinteligente.Tinhaatestalargaeseucabelocastanhoavermelhadocaíaatéosombros.Virou-senadireçãodeMilamber,parafalarcomumsacerdoteaoseulado,eMilamberviuosolhosverde-claroscintilaremaosol.Porum instante,seus olhares se cruzaram e houve um breve lampejo de reconhecimento,levando Milamber a pensar: “Quer dizer que lhe contaram sobre a minhaparticipaçãoemseuplano.”OImperadorprosseguiuaconversasemhesitar,eninguémmaispercebeuatrocadeolhares.

—Éumcombatedeclemência—disseHochopepa.—Lutarãoatésórestarum.Esseseráperdoadoporseuscrimes.

—Quecrimessãoesses?—perguntouMilamber.— O habitual: pequenos furtos, mendigar sem autorização do templo,

prestar falso testemunho, fugir dos impostos, desobedecer a ordens lícitas eoutrosdogênero—respondeuShimone.

—Equantoaoscrimescapitais?— Assassinatos, traição, blasfêmia, atacar o seu senhor são crimes sem

perdão.—Subiuotomdevozparasefazerouviracimadoruídodamultidão:— São colocados junto com os prisioneiros de guerra que não servirão paraseremescravos.Sãosentenciadosacombatersemcessaratéamorte.

Umgrupodesoldadossaiudaarena,deixandoaareiaparaosprisioneiros.—Criminososcomuns—disseHochopepa.—Nãoserámuitodivertido.Aobservaçãopareciacerta,poisosprisioneiroseramumgrupodeplorável.

Vestidossomentecomumatanga,seguravamarmaseescudosquenãoestavamacostumados a manejar. Muitos eram velhos e enfermos, parecendodesorientados e confusos, com os machados, espadas e lanças pendendo dasmãos.

Atrombetaanunciouoiníciodocombateeosidososeenfermosforamlogomortos. Alguns sequer conseguiram levantar as armas para se defender,confusos demais para tentarem se manter vivos. Em poucos minutos, váriosprisioneiros jaziam mortos ou moribundos na areia. De repente, a açãodiminuiu, pois os combatentes enfrentavam oponentes de igual perícia ehabilidade. Lentamente, a quantidade de combatentes foi diminuindo e anatureza imprudente da disputa mudou. Às vezes, quando um oponentetombava,umcombatente cava juntodeoutraduplaque lutava,oque,muitas

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vezes, resultava em um combate a três, aprovado pela multidão com umentusiasmo ensurdecedor, uma vez que o combate grosseiro iria resultar emumaprofusãodesanguederramadoesofrimento.

Por m,restaramtrêslutadores.Doisdelesnãotinhamconseguidodar maocombate.Estavamàbeiradaexaustão.Oterceirohomemseaproximoucomcautela,mantendo igual distância entre ele e os outros dois, procurando umavantagem.

Poucossegundosdepois,essavantagemsurgiu.Empunhandofacaeespada,deu um salto e desferiu um golpe na cabeça que fez tombar um doscombatentes.

— Idiota!—exclamouShimone.—Nãovêqueooutrohomemémelhorlutador?Devia ter esperadoatéqueumdoshomens estivessenitidamente emvantagem,paraatacá-loedeixarooponentemaisfracoaindanocombate.

Milamber sentiu-se trêmulo. Shimone, que fora seu professor, era seumelhor amigo depois deHochopepa.Contudo, apesar de toda a educação, detoda a sabedoria, bradava pelo sangue de outros como se fosse o plebeumaisignorantenolugarmaisbarato.Pormaisquetentasse,Milambernãoconseguiadominaro entusiasmo tsuranipelamortedeoutros.Virou-separaShimoneedisse:

— Estou certo de que ele estava muito ocupado para se preocupar comaspectos táticos. — O sarcasmo não teve qualquer efeito em Shimone, queobservavaatentamenteocombate.

Milamber reparou que Hochopepa estava ignorando o combate. O astutomago tomava nota de todas as conversas nas tribunas; para ele, os jogosrepresentavammaisumaoportunidadedeestudarosaspectossutisdoJogodoConselho. Milamber achou aquela cegueira diante da morte e do sofrimentoque estavamocorrendomais abaixo tãoperturbadoraquantoo entusiasmodeShimone.

A luta terminou depressa, o homem da faca saíra vencedor. A multidãosaudouavitóriacomentusiasmo.Foramatiradasmoedasparaaareia,paraqueovitoriosoregressasseàsociedadecomumapequenaquantia.

Enquanto limpavam a arena, Shimone chamou um arauto, perguntando arespeitodasatividadesprevistasparaaqueledia.

Virou-separaosoutros,visivelmentesatisfeitocomasnotícias.—Hásóalgumas lutasemduplas,depoisdoisdesa osespeciais,umgrupo

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deprisioneiroscontraumharulthfamintoeumcombateentrealgunssoldadosdeMidkemiaeguerreirosthurilcapturados.Issodeverásermuitointeressante.

AexpressãodeMilamberrevelavaquenãoestavadeacordo.Considerandoserahoracertaparaperguntar,disse:

—Hocho,viusealguémdaFamíliaShinzawaiestápresente?Ele olhou ao redor do estádio, procurando os estandartes de família das

casasmaisnotáveisdoImpério.— Minwanabi, Anasati, Keda, Tonmargu, Xacateca, Acoma… Não,

Milamber. Não sei dizer se algum de seus antigos, ah, benfeitores, está aqui.Nãoqueesperasse.

—Porquê?—Ultimamente,caíramemdesgraçajuntoaoSenhordaGuerra.Tevealgo

a ver como fracasso de alguma tarefa de que foram incumbidos.Alémdisso,ouvidizerque são considerados suspeitos, apesardeo clãdeles ter se juntadosubitamente ao esforço de guerra. O Clã Kanazawai se perde nas glóriaspassadaseosShinzawaisãoosmaisconservadoresdogrupo.

Os combates prosseguiram ao longo da tarde, cada ummais elaborado doque o anterior, pois o nível de habilidade dos oponentes também iaaumentando.Nãotardouparaqueterminasseocombatedasúltimasduplas.Amultidão aguardava em uma ansiedade silenciosa, e até os nobres caramcalados,poisoeventoqueseseguiaeraincomum.Umgrupodevintelutadores,midkemianospelaaltura,marchouatéocentrodaarena.Traziamcordas,redescom pesos, lanças e grandes facas curvas. Usavam somente tangas e os seuscorpos besuntados de óleo brilhavam à luz do m de tarde. Ficaram parados,com um ar descontraído, embora os soldados que se encontravam naassistência tivessem reconhecidoos sinais de tensão comuns aos combatentesantes do início de uma batalha. Passado um minuto, abriram-se as enormesportas duplas no lado oposto do estádio e um horror de seis patas entroudesajeitado.

O harulth ostentava presas compridas e garras a adas, acompanhadas deuma atitude agressiva e pele grossa. Era praticamente do tamanho de umelefante de Midkemia. Hesitou apenas para piscar devido à luminosidade,investindo em seguida diretamente contra o grupo de homens, que correramem todas as direções, procurando confundir a criatura. O harulth, devido àingenuidade ou à persistência, perseguiu umpobre infeliz. Com três enormes

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passadas,prendeuohomemcomumapata,devorando-oemduasmordidas.Osoutros se reagruparam atrás do animal e abriram rapidamente as redes. Acriaturagirou,maisdepressadoqueseachariapossívelparaumanimaldaqueletamanho, voltando a investir.Desta vez, os homens aguardaram até o últimomomento, lançaram as redes e se atiraram para o chão. As redes tinhamganchosnasextremidadesparase ncaremnapelegrossadabesta,que,aosever envolvida, depressa começou a rasgá-las. Enquanto estavamomentaneamenteocupada,oshomenscomlançasatacaram.Oharulthreagiucom perplexidade, sem saber ao certo de que lado vinha o seu suplício. Aslanças se mostravam ine cazes, pois não conseguiam penetrar na pele doanimal. Percebendo depressa a inutilidade daquela abordagem, um doslutadorespuxououtroeapontouparaaretaguardadacriatura.Correramparaacauda,quevarriaochãodeumladoparaoutrocomaforçadeumaríete.

Falaram rapidamente, largando as lanças quando a criatura escolheu umalvo. Ela atacou furiosa e abocanhou outro homem. Ficou imóvel enquantoengoliaapresa.Osdoishomensàretaguardacorreramesaltaramparaacaudado animal, que pareceu não notar de imediato, reagindo depois com um giroviolento, atirandoo segundohomemao chão.Ficando completamente virada,deteve-seenquantodevoravaohomematurdido.Ooutroarranjouumaformadesesegurar,usandoospoucosmomentosdepausaemqueoharulthengoliaseu companheiro para subir pela cauda, até o ponto onde se unia à coxa dacriatura.Erguendoobraço,en ouafacacompridaentreduasvértebrasqueseviamdelineadasporumapele solta. Erauma jogadadesesperada e amultidãono estádio gritou em aprovação. A faca penetrou a cartilagem dura entre ossegmentos dos ossos, perfurando a coluna vertebral. A criatura urrouenraivecidaecomeçouarodopiar,ameaçandojogaropassageiroincômodonochão,masnãodemorouparaqueopardepatasdetrássucumbisse.Oharulthcou desorientado por um segundo, puxando com os dois pares de patas dafrenteopesomortodoúltimopar.Porduasvezestentouabocanharemvãoopequenoatormentador,masopescoçolargonãolhepermitiacumpriratarefa.O homem retirou a faca e rastejou pela espinha, enquanto os homenssobreviventes corriam de um lado para outro, distraindo a criatura. Por trêsvezes quase foi atirado do dorso do animal, conseguindo manter a posição.Quando se encontrou um pouco à frente do par de patas do meio, en ou alâmina entre as vértebras novamente. As patas centrais sucumbiram logo a

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seguir,eohomemfoiatiradoaochão.Oharulthberrouderaivaedor,masfoiimobilizado de nitivamente. Os lutadores recuaram e esperaram. Dois cortesna coluna pareceram bastar, pois, passados alguns minutos, o harulth caiu,enfraquecido,agitandoaspatasdianteirasporinstantesatédeixardesemexer.

Opúblicogritoucomentusiasmadaaprovação,poisnuncaantesumgrupode lutadores tinha levado amelhor contraumharulth semque seperdessem,pelo menos, cinco vezes mais homens. Nessa disputa, tinham sido três asvítimasmortais.Os lutadores caramaliparados, comas armas escorregandode membros debilitados devido à exaustão. A batalha durara menos de dezminutos,masoconsumodeenergia,aconcentração,a transpiraçãoeomedodesgastaram os homens a ponto de atingirem uma debilidade extrema.Entorpecidosealheiosaosaplausosdamultidão,dirigiram-secambaleandoparaa saída. Somente o homemque desferira os golpesmostrava alguma emoção,poischoravaaoavançarpelaareia.

— Por que será que aquele homem está tão perturbado? — perguntouShimone.—Foiumaesplêndidavitória.

Milamberrespondeuemumavozqueforçouparasoarcalma:—Porqueestáexausto,commedoeenojado.—Acrescentouemvozbaixa:

— Além disso, está longe da sua pátria. — Engoliu em seco, se debatendocontraa afronta.Emseguida, acrescentou:—Sabeque tudo issonão serviuaqualquer objetivo. Ele continuará a entrar nesta arena, combaterá outrascriaturas, outros homens, até amigos de sua terra, até que, cedo ou tarde,morrerá. — Hochopepa olhou atônito para Milamber e Shimone pareciaconfuso.— Se eu não tivesse tido sorte, poderia ser um daqueles homens láembaixo—acrescentou.—Aquelesquelutaramsãohomens.Tinhamfamíliaelares,amavameriam.Agora,sólhesrestaesperarachegadadamorte.

Hochopepafezumacenovagocomamão.—Milamber, você temo hábito inquietante de levar as coisas para o lado

pessoal.Milamber sentia-se enojado e irado pelo espetáculo sangrento,mas forçou

essas emoções para o fundo do seu ser. Estava determinado a permanecernaquelemundo.Seriaumtsurani.

A areia foi limpa e as trombetas voltaram a soar, anunciando o últimocombatedatarde.Umadúziadeguerreiroscomaraltivotrajandocouraçasdecombate,punhoscravejadosdepregosetoucascompenachoscoloridos,saiude

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um dos extremos da arena.Milamber nunca vira aquela gente pessoalmente,mas reconheceu as fardas das visões que tinha tido na torre. Eram osdescendentesdos altivosCavaleirosdeSerpentes, os thuril.Todos tinhamumolhardurodedeterminaçãoinflexível.

Na outra extremidade, marcharam para a arena doze guerreiros vestidoscomimitaçõescoloridasdearmadurasmidkemianas.Averdadeiraarmadurademetal que tinhamenvergado fora consideradademasiado valiosa e, aomesmotempo, sem graça para o torneio, e os artesãos tsurani tinham concebidoimitaçõesestilizadas.

Os thuril caram observando os recém-chegados com um desdémimplacável. De todas as raças da humanidade, somente os thuril tinhamconseguido resistir ao Império. Os thuril eram, incontestavelmente, osmelhorescombatentesdasmontanhasemKelewan.Suas forti cações cavamemelevadaspastagensagrícolasimpossíveisdeconquistar.Tinhamconseguidomantero Impérioafastadoduranteanosatéapaz serdeclarada.Eraumpovoalto,resultadodaquaseinexistênciadecruzamentocomasraçasmaisbaixasdeKelewan,queconsideravaminferiores.

As trombetas voltaram a soar e a multidão cou em silêncio. Um arautogritouemvozclara:

—Umavezqueestes soldadosdaConfederaçãouril violaramo tratadoentre as suas nações e o Império, guerreando contra soldados do Imperador,forambanidospeloseuprópriopovo,queosconsiderouproscritos,obrigando-os a sofrerem punições. Irão lutar contra os prisioneiros do mundo deMidkemia.Combaterãoatéquereste somenteumdelesempé.—Amultidãodeuvivas.

A trombeta soou e os lutadores se colocaram em posição de combate. Osmidkemianos se abaixaram, de armas em riste, enquanto os thuril semantiveram em pé, exibindo expressões de desa o.Um dos thuril avançou apassos largos, parando em frente do midkemiano mais próximo. Em tonsinsolentes,faloudepressaefezumgestoqueabrangiatodaaarena.

Milamber sentiu um acesso fervoroso de raiva crescendo dentro de si,associadoàvergonhaporaquiloaqueestavaassistindo.TambémhaviatorneiosemMidkemia— ouvira falar deles—,mas não eram assim.Os homens quelutavamemKrondoreoutros lugaresportodooReinoerampro ssionaisqueganhavam a vida lutando até que se derramasse sangue. Às vezes, poderia

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ocorrer um duelo até a morte, embora se tratasse sempre de um assuntopessoal,quandojánãorestavaoutraformaderesolveradisputa.Ali,tratava-sede um desperdício gratuito de vidas humanas, para satisfazer os entediados eociosos,ossaciadosquebuscavamlembrançascadavezmaisvívidasdequesuasvidastinhamalgumvalor.Milamberolhouaoredor,sentindo-seenojadoaoverasexpressõesnosrostosdaspessoaspertodele.

O guerreiro thuril continuou o seu discurso, sendo observado pelomidkemiano, enquanto se percebia uma mudança na atitude de ambos quesugeriaumaalteraçãodeestadodeespírito.Antes,estavamtensos,preparadospara a batalha; naquele momento, pareciam quase descontraídos. O thurilprosseguiu,apontandoparaaaglomeraçãodegente.

Nessemomento,ummidkemiano, alto edeombros largos, avançou comose fosse falar. O thuril cou em sentido, de espada em riste, preparado paraatacar. Ouviu-se uma voz de trás, quando outro guerreiro disse algo quecontinha um tom que parecia transmitir tranquilidade. O primeiro thurilrelaxouvisivelmente.

O midkemiano tirou o elmo devagar, revelando um rosto cansado emacilento,enquadradoporcabelopretoencharcadoeviscoso.Olhouaoredorda arena enquanto o público começava a sussurrar e resmungar diante docomportamento imprevisto dos guerreiros, fazendo um aceno brusco com acabeça.Largoua espadaeo escudoe falouaos companheiros.Logoosoutroslutadoresnaarenaseguiramoexemplo,atéquetodasasarmas caramlargadasnochão.

Milamber cou intrigado comaquele estranho comportamento e Shimonedisse:

— Isso vai acabar emuma carni cina.Os thuril não combatemos da suaespécieeparecequetambémnãovãolutarcontraosbárbaros.Umavez,viseisthurilmataremtodososquemandaramcontraeles,masdepoisserecusaramalutar uns contra os outros. Quando os guardas entraram para matá-los, eleslutaram,fazendo-osrecuar.Por m,osarqueirosdoaltotiveramdeabatê-los.Foi uma desgraça. Amultidão se revoltou e o diretor do torneio foi feito empedacinhos.Morreumaisdeumacentenadecidadãos.

Milambersentiu-sealiviado:aomenosseriapoupadodeassistiraopovodeKatala e seu próprio povo se matando. Foi então que a multidão começou agritaremdesaprovação,vaiandooscombatentesrebeldes.

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HochopepadeuumacotoveladaemMilamber,dizendo:—OSenhordaGuerraparecenãoestarachandograçanenhuma.Milamber reparou na expressão furiosa do Senhor da Guerra enquanto

assistiaàofertaquefizeraaoImperadortransformar-seemumafarsa.Almecholevantou-sedevagardeseulugaraoladodaLuzdoCéuebradou:

—Quecomeceocombate!Domadorescorpulentos,guardasquetrabalhavamparaodiretordotorneio,

correramparaaarenaempunhandochicotes.Cercaramoslutadoresimóveisecomeçaram a chicoteá-los. Milamber sentiu o estômago revirar enquanto osdomadoresbatiamcomviolência,cortandoapeleexpostadosbraçosepernasdos soldados thuril e midkemianos. Habituado ao chicote quando trabalharanos pântanos, conhecia aquele toque terrível. Sentiu cada chicotada sofridapelosqueseencontravamnaareia,láembaixo.

A multidão começava a car nervosa, pois não tinham ido ver homensimóveis serem chicoteados. Soaram vaias e assobios dirigidos a quem seencontrava na tribuna imperial, enquanto algumas almas mais intrépidaslançavam lixo emoedas de baixo valor para a arena,mostrando o desagradodiante daquele espetáculo. Por m, um dos domadores perdeu a paciência,aproximou-se de um guerreiro thuril e bateu-lhe no rosto com o cabo dochicote.Antesquepudessereagir,othurilsaltouearrancouochicotedasmãosdohomemsurpreso.Derepente, enrolou-oaoredordopescoçodohomemecomeçouaestrangulá-lo.

Os outros domadores concentraram toda sua atenção no guerreiro queatacavaocompanheiro,começandoagolpeá-lodescontroladamente.Apósmaisde uma dezena de golpes, o thuril começou a cambalear, caindo de joelhos.Contudo, não largou o chicote, estrangulando o homem, que arquejava. Osgolpesdesciamincessantessobreothuril,atéquesuaarmadura couvermelhadosanguedaflagelação.Mesmoassim,elenãolargouavítima.

Quando o homem sucumbiu, olhos esbugalhados em um rosto azulado, oquerestavadeforçanothuril tambémpareceude nhar.Quandoocorposemvidadodomadorcaiunaareia,oguerreirothurilcaiuaolado.

O primeiro a reagir foi um soldado de Midkemia. Mostrando umaindiferença fria, limitou-se a pegar uma espada e atravessá-la em um dosdomadores. Em seguida, em conjunto, os soldados thuril e midkemianosempunharamasarmase,emmenosdeumminuto,mataramtodososoutros.

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Depois,novamenteemconjunto,osprisioneirosatiraramasarmasaochão.Milamber esforçou-se para manter a calma diante dessa demonstração.

Sentiaumagrandeadmiraçãoporaqueleshomens.Aceitavamamorteemvezdemataremunsaosoutros.Erapossívelquealgunsdaqueleshomenstivessemcavalgado com ele pelo vale, no ataque em que descobriram a máquina doportal, tantos anos antes. Aparentava serenidade, um perfeito tsurani, masfervilhavapordentro.

—Tenhoummaupressentimento—sussurrouHochopepa.—Sejaoquefor que Almecho procurava obter para reforçar a sua posição junto aoImperador,corresériosriscos.TemoquenãoestejaaceitandobemarelutânciadeseusantigoscompatriotasemmorrerparadiversãodaLuzdoCéu.

—Malditasejaestadiversão—disseMilamberquasebufando.OlhouparaHochopepacomumaexpressãoirada,umaexpressãoqueomagoobesonuncaantesvira.Milamberdisse,quaseempé:—Malditossejamosquesedivertemcomumesportetãosangrento.

Hochopepaagarrou-opelobraçoetentoupuxá-loparaoseulugar,dizendo:—Milamber,controle-se.Omagomais jovem soltou-se, ignorando a ordem, e, juntamente com os

companheiros,olhouparaatribunaimperial,ondeumcapitãodaguardafalavacomoSenhordaGuerra.Milambersentiuumestranhoarrebatamentoemseuíntimo e, por um momento, lutou contra o impulso repentino de usar ospoderes que tinha para colocar o Senhor da Guerra entre os que seencontravamna arena, para ver como se sairia contra aqueles que recusavammorrercomgraciosidadequandoeleassimordenava.

Foi então que se ouviu a voz de Almecho, silenciando quem estava porperto.

—Não, semarqueiros.Aqueles animaisnão irãomorrer comoguerreiros.— Virou-se para um dos seus magos de con ança, emitindo instruções. Ohomem de manto negro assentiu e começou a proferir o feitiço. Milambersentiuospelosdanucaarrepiadosquandoapresençadamagiasemanifestou.

Ouviu-seumaexclamaçãobaixadereverênciaportodooestádioquandooshomensnaareiacaíramsemsentidos,rolandodesorientados.

—Amarrem-nos,construamumestradoeenforquem-nosàvistade todos—gritouoSenhordaGuerra.

Assuaspalavrasforamrecebidascomumsilêncioatônito,seguidoporgritos

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de“Não!”,“Sãoguerreiros!”e“Nãoháhonranenhumanisso!”.Hochopepa fechou os olhos e suspirou ruidosamente. Falou tanto para si

mesmocomoparaoscompanheiros:—O Senhor daGuerra está deixando que o seu famosomau gênio leve a

melhormaisumavez,eagoraestamosdiantedeumcolapso.Nãoseráfavorávelà suaposiçãonoConselhoSupremonemàestabilidadeno Império.—Comoumabestaenraivecidaeemapuros,Almechosevirou,silenciandotodososqueestavamjuntodele,masosqueseencontravammaisafastadosprosseguiramosprotestos. Pelos padrões tsurani, tratava-se de uma grande indignidadereservada apenas àqueles que não possuíam honra. Ainda que impedindo oesporte que a turba apreciava, os prisioneiros haviam demonstrado que nãotinhamdeixadodeserguerreirose,comotal,mereciamumamortehonrosa.

Hochopepavirou-separadirigir apalavraaMilamber,detendo-se aover aexpressãodoamigo.AraivadeMilambereraevidente,rivalizandocomaraivado Senhor da Guerra. Pressentindo a iminência de algum acontecimentoterrível,Hochopepa chamou a atençãode Shimone, notandoque ele tambémobservava calado o semblante assustador do amigo. Tudo o que Hochopepaconseguiudizer,emvozbaixa,foi:

—Milamber,não!—Eoescravoquese tornaramago jáavançava.Passoudepressapelochocadomagoobeso,dizendosomente:

—ProtejaoImperador.—AcabeçadeMilambergiravacomoimpactodaemoção repentina, reprimida durante anos, que agora jorrava livremente. Foitomadoporumacertezaestranhaepoderosa.“Nãosoutsurani!”,admitiuparasimesmo. Jamais poderia compactuar comuma coisa daquelas. Pela primeiravezdesdequevestiraomantonegro,sentiusuasduasnaturezasemharmonia.Pelos padrões de ambas as culturas, tratava-se de uma desonra, algo que lhedavaumpropósitotemeroso,isentodedúvidas.

Com exceção daqueles que se encontravam perto da tribuna imperial, amultidãoempesoentoava“Aespada,aespada,aespada”,exigindoumamortede guerreiro para cada homem na arena. O ritmo tornou-se uma pulsaçãolatejanteparaMilamber,acentuandoasuafúriaquasedesenfreada.

Chegando a um ponto entre os magos e a tribuna imperial, Milamberreparounossoldadosecarpinteirosquecorriamparaaarena.Osmidkemianosethurilaturdidosestavamsendoamarradoscomoanimaisparaabateearaivadamultidãoestavaatingindoumnívelperigoso.Algunso ciaismais jovensde

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famílias nobres nos níveis mais baixos do estádio pareciam prestes adesembainhar as espadas e saltar para a areia, disputando pessoalmente odireito dos prisioneiros de morrerem como soldados. Aqueles tinham sidoadversáriosvalorososemuitosdosqueassistiamjátinhamenfrentadosoldadosthuril e do Reino. Não hesitariam em matar aqueles homens no campo debatalha,masserecusavamaassistiràhumilhaçãoqueosseusvalentesinimigosestavamsofrendo.

Uma avalanche negra de cólera, aversão e amargura invadiuMilamber. Asuamentegritava indignada, apesardas tentativaspara controlá-la. Inclinouacabeçaparatrás,osolhosrevirarame, talcomoaconteceraporduasvezesemsua vida, surgiram letras de fogo em suamente. Porém nunca antes tivera acapacidade de aproveitar o momento, e com uma alegria quase animalescamergulhou no recém-aberto poço de poder em seu interior. Ergueu o braçodireitoedamãoexplodiuenergia.Umalabaredaazul,quebrilhavamesmosoba luz do sol, precipitou-se para baixo, atingindo a areia entre os guardas doSenhor da Guerra. Homens vivos foram arremessados em todas as direções,como folhas levadaspelo vento.Aquelesque entravamcomomaterial paraocadafalsoforamderrubadospelaexplosãoeopúblicodas lasmaisabaixo couatordoado pela violência do impacto. O barulho na arena cessou quando amultidãoficousemfaladevidoaochoque.

Todososolhosseviraramparaaorigemdaquelaexplosão,enquantoosqueestavam perto dele começavam a recuar instintivamente. Milamber estavavermelhode raiva e as córneasbrancas eramvisíveis ao redordas íris escurasenquanto perscrutava a arena. Com um movimento curto como se estivessedandoumgolpe,omagobradou:

—Basta!Ninguém se mexeu, a não ser Hochopepa e Shimone. Não sabiam quais

seriamas intençõesdeMilamber,mas,considerandoaquelaatitude, levaramaordemdelemuito a sério.Correramaté onde estavao Imperador, igualmenteatônito e fascinado, tal como todos que se encontravam no estádio. FalaramrapidamentecomIchindarelogoolugardoImperadorficouvazio.

Milamberolhouparaaesquerdaaoouvirumrugidoindignado:—Quemseatreve?Omago foi confrontado com a visão do Senhor daGuerra, erguido como

um semideus enfurecido em sua armadura branca.A expressão do Senhor da

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GuerraestavaàalturadosemblantedeMilamber.— Eu! — gritou também Milamber. — Isto não pode ocorrer; não

continuará!Maisnenhumhomemmorreráparaadiversãodeoutros!Mal conseguindo se controlar,Almecho, Senhor daGuerra dasNações de

Tsuranuanni,gritou:—Que direito tem para agir dessa forma?—Os tendões em seu pescoço

estavam salientes e todos osmúsculos de seu corpo estremeciam, enquanto atestasemostravacobertaporgotasdesuor.

AvozdeMilamberbaixoudetomeassuaspalavrasforamcuidadosamenteditascomumaraivaprovocadora:

—Odireitoquetenhodeagircomoachocorreto.—Voltou-seefalouparaumguardapertodele:—Liberteoshomensqueseencontramnaarena.Deixe-osiremliberdade!

Oguardahesitouporumsegundo,atéqueaeducaçãotsuraniserevelou.—Sejafeitaasuavontade,Grande.—Fiqueondeestá!—gritouoSenhordaGuerra.Amultidãosibilouaoinspiraremconjunto.EmtodaahistóriadoImpério,

nuncaaconteceraumconfrontoentreumGrandeeumSenhordaGuerra.OguardaparoueMilamberdissecomrispidez:

—Asminhaspalavrassãolei.Vá!Semdemora,oguardaavançoueoSenhordaGuerraberrouderaiva:—Vocêestáviolandoalei!Ninguémpodelibertarumescravo!Com a raiva novamente fervilhando, Milamber gritou para o Senhor da

Guerra:—Euposso!Estouàmargemdalei!OSenhordaGuerra sentou-sepesadamente, como se tivesse sidoatingido

por um golpe invisível. Em toda a sua vida, nunca ninguém se atrevera acontrariarasuavontadedaquelamaneira.Emtodaahistória,nenhumSenhorda Guerra tinha sido forçado a suportar tal humilhação em público. Estavaatordoado.

Próximoaele,outromagolevantou-sedeumsalto.—Poiseuochamodetraidore falsoGrande.Procuradebilitaropoderdo

Senhor daGuerra, trazendo caos à ordemdo Império.Deve se retratar dessaafronta!

No mesmo instante surgiu um alvoroço frenético quando todos os que

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tinhamouvidocorreramparaseafastardosdoismagos.Milamber touomagodeestimaçãodeAlmecho.

—Pretendeoporseuspoderesaosmeus?O Senhor da Guerra contemplouMilamber com puro ódio estampado no

rosto.Nãodesviouosolhosdorostodojovemmagoaodizeraoseufavorito:—Destrua-o!Os braços de Milamber se lançaram para cima, cruzando os pulsos. De

imediato, foi rodeado por uma suave auréola dourada de luz. O outro magolançouumraiodeenergiaeabolaazulde fogoatingiuoescudodouradosemqualquerconsequência.

Milamber coutenso,cheioderaiva.Emduasocasiõesemsuavida,quandoforaatacadopelostrollsequandolutaracomRoland,tinhaalcançadoreservasocultas, de onde extraíra o poder. Agora, afastou as últimas barreiras entre amente consciente e aquelas reservas escondidas. Já não representava ummistérioparaMilamber aquele poçode onde todoo seupoder provinha.Pelaprimeira vez em sua vida, Milamber alcançou o pleno entendimento daquiloque era, de quem era: não um Manto Negro, limitado pelos ensinamentosantigosdeumúnicomundo,masantesumadeptodaArteMaior,ummestrequedominavaplenamentetodaaenergiafornecidapordoismundos.

OmagodoSenhordaGuerrao tavaamedrontado.Aliestavamaisdoqueuma curiosidade, um mago bárbaro. Ali estava uma gura que inspiravaprofundo respeito, de braços no ar, corpo trêmulo de raiva e olhos quepareciamresplandecercomenergia.

Milamber bateu palmas acima da cabeça e ouviu-se o estrondo de umtrovão,abalandoquemestavaaoseuredor.Desuasmãos,umaenergiaexplodiupara o ar, pairando acima de sua cabeça. Um turbilhão de forças cintilantesrodopiava por cima domago, erguendo-se como se estivesse prestes a lançaruma echa.A fontenãoparouaté carbemnoalto.Começoua se estender,cobrindo o estádio como uma cúpula gigantesca.A visão deslumbrante durouum pouco mais, até que os céus pareceram explodir, cegando aqueles queolhavamparacima.Océu couescuroeo solenfraqueceu,comoseestivessesendocobertoporvéuscinzentos.

AvozdeMilamberchegouaocantomaisafastadodoestádio:— Porque viveram como viveram durante séculos não justi ca esta

crueldade. Todos os que estão aqui presentes serão julgados e ninguém é

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inocente.Maismagospartiram,desaparecendodeseus lugares,mas forammuitosos

que permaneceram. Outros plebeus sensatos fugiram pelas saídas maispróximas, restando ainda muitos que achavam que tudo aquilo se tratava deoutro torneioparadiversão.Erammuitososqueestavamembriagadosdemaisouexcitadospeloespetáculoparaentenderemaadvertênciadomago.

ObraçodeMilamberformouumarcoaoseuredor.—Jáqueretiramtantoprazerdamorteedesonradeoutros,vejamoscomo

encaram a destruição!—Um arquejo emitido pelamultidão respondeu à suaproclamação. Milamber ergueu uma mão bem acima de sua cabeça e todoscaramemsilêncio.Atéa ligeirabrisadeverãocessou.Emseguida,comumaforçatremenda,faloueaspessoasempalideceramaoouvi-lo,poiseracomoseamorte tivesse encarnado e falado. Ecoando por todo o estádio, as palavras deMilamberforamouvidas:

—Tremamesedesesperem,poiseusouoPoder!Começoua seouvirum som intenso e estridente vindodele.Opróprio ar

estremeceuenquantoumamagiapoderosaestavasendoforjada.—Vento!—gritouMilamber.Uma brisa cortante que fedia a putrefação, nauseabunda e repugnante ao

passar,soproupeloestádio.Umgemidobaixodetristezaemedofoilevadopelovento que soprava cada vez com mais força e, enquanto aumentava deintensidade, traziamais perigo, mais desespero. Esfriou, a ponto de provocardor naqueles que poucas vezes tinham sentido frio.Os homens choravam aosentirem aquela carícia cortante e, muito acima do estádio, formaram-senuvensnaescuridão.

Os ventos uivavam, abafando os gritos da multidão na arena. Os nobrestentavamfugir,aterrorizadosdemaisparaconseguiremfazeroutracoisaanãoser empurrar a própria família, pisoteando os idosos e os que tinhamdi culdades de locomoção.Muitos caíam de joelhos ou eram derrubados dosassentosparaaareiadaarena.

Enormes nuvens carregadas, pretas e cinzentas, deslizavam no céu,parecendo rodopiar emumponto diretamente acima da cabeça deMilamber.Uma luz sinistra envolvia o mago, pulsando de energia. Encontrava-se nocentrodatempestade,uma guraterrívelnaescuridão.Oventobradouafúriaque carregava e, ainda assim, a vozdeMilamber atravessouo somcomouma

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faca:—Chuva!Caiu uma chuva fria, levada pelas rajadas. Acelerou depressa o ritmo,

tornando-seumaenxurradaeemseguidaumdilúvio.Acascatatombavasobreos que se encontravam abaixo, empurrando-os dolorosamente para baixo,fustigando-os com uma força assustadora, obviamente sobrenatural. Algunsconseguiramescaparparaostúneis,enquantoosdemaisseagarravamunsaosoutros,horrorizados.

Alguns magos tentaram repelir os feitiços, mas em vão, e acabaram pordesmaiar de exaustão. Jamais se vira uma demonstração tão imponente depoder bruto. Ali estava alguém que dominava verdadeiramente a magia,conseguindocontrolaroselementosdanatureza,revelando-seporcompleto.Omagoquedesa araMilamberestavarecostadoemseulugar,atônitoepiscando,tentandoperceber algumvestígio de ordemno caos onde estava envolvido.OSenhordaGuerratentavasuportaratempestade,esforçando-separasemantererguidoe recusando-sea se submeterao terrorde todososqueestavamà suavolta.

Milamberabaixouobraço,ergueuumamãoàsuafrenteeaesticou.—Fogo!—gritou,e,umavezmais,todosconseguiramouvi-lo.Asnuvenspareciamqueimar.Oscéusexplodiramquandocortinasdecores

terríveis, chamas de todas as tonalidades, percorreram descontroladas aescuridão. Relâmpagos irregulares dardejavam pelo céu, como se os deusesestivessemanunciandoojulgamento naldahumanidade.Aspessoasgritavamcomumterrorprimitivodiantedaqueleelementoenlouquecidodanatureza.

Foientãoquecomeçouachuvadefogo.Caíramgotasqueatearamfogonosbraços e nas roupas, nos rostos e nosmantos.Guinchos de dor chegavamdetodos os lados e as pessoas tentavam em vão extinguir as chamas que lhesqueimavamapele.Desaparecerammaismagosda arena, levando comeles oscompanheiros inconscientes.Milamber cou sozinho na seção dosmagos. Ofedordecarnequeimadainvadiuoar,misturadocomoodoracredomedo.

Milambercruzouosbraçosàfrente.Dirigiuoolharparabaixo.—Terra!Ouviu-se um intenso estrondo vindo de baixo. O chão sob o estádio

começouatremerdevagar.Asvibraçõesaumentaramdeintensidadeeoarfoipreenchidocomumzumbidoirritado,comoseumenxamedeinsetosgigantes

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tivesse cercado a arena. Nesse momento, um ribombar abafado juntou suaharmoniaaozumbidoeochãocomeçouasedeslocar.

As vibrações passaram a tremores, ganhando um violento movimentorolanteeondulante.Milamber semantinhacalmo,comoseestivesseemumailha. Era como se o solo, a terra, tivesse ganhado uidez. As pessoas eramatiradasparaaarena.Oenormeestádiovibravacomforçasprimitivas.Estátuascaíram dos pedestais e os grandes portões foram arrancados das dobradiças,ouvindo-se o estalar e o ranger de madeira antiga. Deslizaram da frente dostúneis cambaleantes como bêbados, caindo na areia e esmagando quemestivesseàfrente.Muitasdasferassobaarenaenlouqueceramcomoterremotoetantobateramnas jaulasquequebraramferrolhoseabriramportas.Fugiramdos túneis, e passaram por cima dos portões caídos; gritaram, rugiram eurraram ao sentirem a chuva de fogo. Enfurecidas pelo terror, lançaram-sesobre os espectadores aturdidos que jaziamna areia,matando aleatoriamente.Via-seumhomemsentadoeaturdido,quedavapalmadas,distraído,nasgotasem chamas que caíam do céu, enquanto a poucosmetros outro era estripadoporalgumterrordeflorestasdistantes.

Entãoaarenacomeçouagemerquandoaspedrasantigasprincipiaramasedeslocar, movendo-se umas sobre as outras. A argamassa que durara ummilêniotransformou-seempóemumsegundoquandooestádiodesmoronou.Osgritosdemisericórdiaforamlevadospelosventosouabafadospelacacofoniada destruição. A violência aumentou e o mundo parecia prestes a serdespedaçado. Milamber voltou a erguer as mãos acima da cabeça. Juntou aspalmaseouviu-seomaiorribombardetrovãoatéentão.Depois,subitamente,ocaoscessou.

Acima,océu coulímpidoeosolbrilhou,eumabrisaligeiravindadolestesoprounovamente.Ochãoestavacomodeveriaestar,imóvelesólido,eachuvadefogonãopassavadeumalembrança.

Osilêncioqueseseguiufoiensurdecedor.Começaramaseouvirosgemidosdosferidoseossoluçosdosaterrorizados.OSenhordaGuerrapermaneciaempé, o rosto lívido, compequenasqueimadurasmarcadasna face enosbraços.No lugardo grandioso líderdo Impériohaviaumhomemprivadode todas asemoções, exceto o terror. Tinha os olhos tão arregalados que se viam ascórneas. Mexia os lábios, como se estivesse tentando falar, mas não emitiaqualquerpalavra.

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A

Milamber voltou a erguer asmãos acima da cabeça e o Senhor daGuerracaiuparatrás,soluçandodepavor.Omagobateupalmasedesapareceu.

brisa vespertina levava a fragrânciade oresdoverão.No jardim,Katalaentretinha William com um jogo de palavras; ela insistira que os dois

deviamaprenderoidiomadapátriadeseumarido.A tarde estava quase terminando, pois estavam mais para leste do que a

CidadeSagrada.Osoljáiabaixoaoeste,eassombrasnojardimalongavam-se.Sem o toque de sino que anunciava a chegada de Milamber, Katala sesobressaltouquandoomaridosurgiunaentradadecasa.Levantou-sedevagar,poispressentiuquehaviaalgoerrado.

—Marido,oquefoi?WilliamcorreuparaopaieMilamberdisse:—Maistardelhecontotudo.TemosdepegarWilliamefugir.Williampuxouomantonegrodopai.—Papai!—gritou,exigindoatenção.Omagopegouofilhoeoabraçoucom

força,atéquedisse:—William, vamos viajar até aminha terra natal.Você precisa ser forte e

nãochorar.Omenino estendeuo lábio inferior, pois, se o pai estava pedindoquenão

chorasse, devia haver uma boa razão, mas acabou fazendo um aceno com acabeçaeconteveaslágrimas.

— Netoha! Almorella! — chamou Milamber e, pouco depois, os doisserviçais entraram no jardim. Netoha fez uma mesura, enquanto AlmorellacorriaparaoladodeKatala,queinsistiraqueaacompanhasseparaanovacasade Milamber quando ele foi buscar a família na propriedade dos Shinzawai.Maisdoqueescrava,eracomoirmãdeKatalaetiadeWilliam.Logopercebeuquealgumacoisaestavaacontecendoesurgiramlágrimasemseusolhos.

—Vocêsvãopartir—disseela,maisumaafirmaçãodoqueumapergunta.Netohaolhouparaoamo.—Qualéasuavontade,Grande?—Vamospartir—disseMilamber.—Épreciso.Eusintomuito.—Netoha

recebeu as notícias estoicamente, tal como era adequado a um tsurani, masAlmorellaabraçouKatala,chorandocopiosamente.

— É meu desejo suprir suas necessidades — prosseguiu Milamber. —

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Preparei documentos para quando este dia chegasse. Quando partirmos,encontrarãotodoomeutrabalhocatalogadoemmeugabinete.Acimadamesado gabinete, na prateleira do topo, encontrarão um pergaminho com lacrepreto.Deixo-lhe estapropriedade,Netoha.—Edisse aAlmorella:—Sei quegostamumdooutro.OdocumentoqueoutorgaapropriedadeaNetohacontémumacláusulaquelheconcedea liberdade,Almorella.Eleseráumbommaridoparavocê.NemmesmooImperadorpoderáignorarumdocumentocomoselodeumGrande,porissonãosepreocupem.

A expressão deAlmorella era umamescla de descrença, alegria e tristeza.Balançou a cabeça devagar, indicando que compreendia, e em seus olhos agratidãoeraevidente.

Milambervoltou-senovamenteparaNetoha:— Vou doar os terrenos mais baixos das pastagens a Xanothis, o pastor.

Cuidedasnecessidadesdosoutrosquetrabalhamaqui,Netoha.Agora,nomeugabinete também irão encontrar vários documentos selados com lacrevermelho. Precisam queimá-los de imediato. O que quer que façam, nãoquebrem o lacre antes de queimá-los. Todos os outros trabalhos deverão serenviados a Hochopepa, da Assembleia, com a minha profunda amizade e odesejodequepossamserúteis.Elesaberáoquefazercomtudoisso.

AlmorellavoltouaabraçarKatalae,emseguida,beijouWilliam.—Depressa, garota—disseNetoha.—Aindanão é senhoradesta casa e

temostrabalhoimportanteafazer.—Ohadonracomeçouafazerumamesura,masacaboudizendo,balbuciando:—Grande,eu...euesperoque quembem.— Fez uma mesura apressada e começou a se dirigir ao gabinete. MilamberpôdevislumbrarumvestígiodelágrimasnosolhosdeNetoha.

Almorella, com as lágrimas escorrendo pelo rosto, seguiu Netoha paradentrodecasa.Katalavirou-separaMilamber:

—Agora?—Agora.—Enquantoos levavaparaasaladopadrão,disse:—Tenhode

descobrir uma coisa antes de tentarmos atravessar o portal. — Abraçou aesposa,comofilhoentreosdois,edesejouchegaraoutropadrão.

Por breves instantes, foram envolvidos por uma neblina esbranquiçada elogochegaramaoutra sala. SaírameKatalapercebeuque estavamnacasadosenhorShinzawai.

Correram para o gabinete de Kamatsu e abriram a porta sem cerimônia.

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Kamatsu levantou os olhos, irritado com a interrupção. Mudou logo desemblantequandoviuquemestavaàporta.

—Grande,oquesepassa?—perguntou,enquantoselevantava.Milamber resumiu os acontecimentos desse dia e Katala empalideceu ao

ouvirorelato.OLordeShinzawaisacudiuacabeça.—Épossívelquetenhadesencadeadoprocessosquemudarãoparasemprea

ordem interna do Império, Grande. Espero que não seja um golpe fatal. Sejacomo for, precisaremos de alguns anos para avaliar os efeitos. A Facção peloProgresso já está fazendo ofertas de aliança à Facção pela Paz. Em tão poucotempo, o senhor teve um grande efeito sobre a minha pátria. — Kamatsuprosseguiu,impedindoMilamberdefalar:—Porémnãosetratadeumimpulsode momento. O senhor, que outrora foi meu escravo, aprendeu muito, masaindanãoé tsurani.DecertocompreendequeoSenhordaGuerranãopoderápermitirtalrevéssem carhumilhado.Omaisprováveléquetireasuaprópriavida devido à ignomínia,mas aqueles que o seguem, sua família, seu clã, seussubordinados,irãosentenciá-loàmorte.Jádevemtercontratadoumassassinooumagos dispostos a enfrentá-lo.O senhor não tem outra escolha a não serfugirparasuaterranatalcomasuafamília.

William decidiu que chegara a hora adequada de chorar, pois, apesar dastentativas de mostrar valentia, a mãe estava assustada e o garoto sentiu suatristeza. Milamber deu as costas a Kamatsu e entoou um feitiço, fazendoWilliamadormeceremuminstante.

—Dormiráatéestarmosemsegurança.—Katalaconcordou,sabendoqueseriamelhorassim,aindaquenãoapreciasseessanecessidade.

—Não temomago algum,Kamatsu—disseMilamber—,mas temopeloImpério. Bem sei que, por mais que os meus professores na Assembleiatentassem,nuncasereitsurani.PorémsirvooImpério.Naminharepugnânciadiante do que testemunhei na arena, soube com toda a certeza o que jásuspeitava há algum tempo. O Império tem de mudar de rumo ou estarácondenado a sucumbir. O coração podre e débil desta cultura não poderásuportar o seu próprio peso por muito mais tempo e, tal como uma árvorengaggicomotroncoapodrecidopordentro,cairásoboprópriopeso.Hámaisquestões,sobreasquaisnãopossofalar,queaprendiduranteotempoqueaquivivi e que me indicam que terão de ser feitas grandes mudanças. Tenho departir, pois, se permanecer aqui, a Assembleia, o Conselho Supremo, en m,

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todo o Império cará dividido. Teria di culdades em deixar o Império se aminhapartidanãofossepeloqueémelhorparaos interessesdeTsuranuanni.Foiesseomeutreino.Contudo,antesdepartir,tenhodesaber:LaurieeoseufilhoderamnotíciasarespeitodapropostadepazdoImperador?

— Não. Sabemos que desapareceram durante uma batalha na primeiranoite.OshomensdeHokanu zeramumabuscapelaáreadepoisdocombateenão encontraram sinal deles, por isso partimos do princípio que conseguiramescapar ilesos. O meu lho mais novo tem certeza de que alcançaram umaestradapor trásdas linhasdecombatedoReino.Desdeentão,nãorecebemosmaisnotícias.Outrosmembrosdenossafacçãoaguardamcomtantaansiedadequantoeu.

Milamberponderou.—EntãooImperadoraindanãoestápreparadoparaagir.Tinhaesperanças

dequeissoacontecesseembreve,parapodermossairemsegurançaduranteoperíodo de trégua, antes que a oposição a mim se organize. Agora, tendo oSenhordaGuerraanunciadoavitóriasobreoexércitodoDuqueBorric,talvezapaznuncaaconteça.

— É evidente que não é tsurani, Grande — disse Kamatsu. — Como oSenhor da Guerra caiu em desgraça devido à destruição dos torneios que elededicou à Luz do Céu, a Facção Bélica está desorganizada. Agora, o Clã dosKanazawai irá uma vez mais se retirar da Aliança pela Guerra. Os nossosaliados na Roda Azul irão se esforçar para dobrar as pressões e conseguir aobtenção de uma trégua no Conselho Supremo. A Facção Bélica se encontrasemum líder efetivo.MesmoqueoSenhordaGuerravenhaa se revelar semhonraenão se suicide, será afastadodepressa,pois aFacçãoBélicaprecisadeumlíder forteeosMinwanabi sãoambiciosos;há trêsgeraçõesqueprocuramalcançarobrancoedourado.Contudo, surgirãooutrosnoConselhoSupremoque também apresentarão as suas pretensões. A Facção Bélica carádesorientada, o que nos fará ganhar tempo para reforçar a nossa posiçãoenquantoprossegueoJogodoConselho.

KamatsuolhoudemoradamenteparaMilamber.—Comodisseantes, jáháquemtramesuamorte.Vá semdemoraparao

seu mundo. Se não demorar, talvez consiga atravessar a salvo. Talvez sejampoucos os que pensam que irá diretamente para a fenda. Qualquer outroGrande demoraria uma semana para organizar sua casa. — Sorriu para

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Milamber. — Grande, o senhor foi uma brisa fresca em um quarto com arestagnado enquanto esteve conosco. Lamento vê-lo deixar a nossa terra,masprecisapartirimediatamente.

—Esperoquechegueodiaemquepossamosvoltaranosencontrarcomoamigos,LordeShinzawai,poissãomuitososconhecimentosqueosnossosdoispovospodiamtrocar.

OSenhordosShinzawaicolocouamãonoombrodeMilamber.—Tambémesperoachegadadessedia,Grande.Enviareiasminhaspreces

comvocês.Sómaisumacoisa:se,poracaso,encontrarKasumiemseumundo,diga-lhequeopaipensanele.Agoraváeadeus.

—Adeus—disseMilamber.Pegouamulherpelobraçoefezocaminhodevolta à sala do padrão. Quando chegaram lá, soou um sino e Milamberempurrou a esposa e o lho para trás dele.Uma breve neblina branca surgiusobreochãodopadrãoeFumitaapareceu,surpreso.

—Milamber!—exclamou,avançando.—Pare,Fumita!Omagomaisvelhoseimobilizou.—Nãoquero lhe fazermal.ChegaramnotíciasàquelesdaAssembleiaque

não assistiram aos torneios sobre o que ocorreu. A Assembleia está numagrande agitação.Tapek e os outrosmagos do Senhor daGuerra exigem a suavida. Hochopepa e Shimone o defendem. Nunca antes se viu uma discórdiaassim.NoConselho Supremo, a FacçãoBélica exige o mdaneutralidade daAssembleiaduranteépocasdeguerraeaFacçãopeloProgressoeaFacçãopelaPaz estão unidas em uma aliança evidente com a Facção da Roda Azul. OImpérioestádecabeçaparabaixo.

Omagomais velho pareceu car cada vezmais abatido enquanto fazia orelato. Parecia anos mais velho do que em qualquer outra ocasião de queMilamberselembrasse.

— Creio que você tenha razão em muitas de suas crenças, Milamber.Devemos termudanças no Império sob pena de entrarmos em declínio,mastantasmudanças,tãodepressa?Nãosei.

Fez-seummomentodesilêncioentreambos,atéqueMilamberdisse:—AgipeloImpério,Fumita.Precisaacreditar.Omagomaisvelhobalançouacabeçalentamente.— Acredito em você,Milamber, ou pelomenos assim desejo.— Pareceu

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endireitar-se.—Sejaqualfororesultado,aAssembleiaterámuitocomqueseocupar quando a situação tiver acalmado. Talvez consigamos guiar o Impériopara um rumo mais saudável. Porém precisa se apressar. Nenhum soldadotentará detê-lo, pois somente alguns fora da Cidade Sagrada conhecem seusatos,masos favoritosdoSenhordaGuerra jápodemestaràsuaprocura.Nostorneios,apanhouosnossosirmãosdesurpresa,enenhumpoderiaenfrentá-loindividualmente, mas caso se organizem contra você, até os seus ostensivospoderesdepoucoserviriam.Teriademataroutromagooumorrer.

—Sim,Fumita,eusei.Preciso ir.Nãodesejomataroutromago,mas fareiissoseforobrigado.

Fumitapareceuaflitoaoouviraquelaspalavras.—Comoiráalcançaroportal?Nuncaestevenaregiãodeescala,nãoé?—Não,masvouàCidadedasPlaníciesedelápossoirdeliteira.—Émuito lenta.A liteira levarámaisdeumahorapara chegar à zonade

escala. — Levou a mão ao manto e retirou um dispositivo de transferência.Ofereceu-oaMilamber.—Aterceiraposiçãoo levarádiretamenteàmáquinadafenda.

Milamberaceitou.—Fumita,éminhaintençãotentarfecharoportal.Fumitasacudiuacabeça.—Milamber,mesmocomos seuspoderes,não creioque seja capazdisso.

Mais de vinte magos trabalharam para criar a grande fenda e os feitiços decontrole foram estabelecidos unicamente do lado de Kelewan. A máquinamidkemianaserveapenasparaestabilizaralocalizaçãodoportal.

— Eu sei, Fumita. Em breve você saberá, pois enviei o meu trabalho aHocho.Aminhapesquisa“misteriosa”concentrou-seemumestudo intensivodas energias do portal. É possível que saiba mais sobre elas do que qualqueroutro mago da Assembleia. Bem sei que poderá ser uma ação desesperada,talvezatéaniquiladora,doladomidkemiano,masestaguerratemdeacabar.

—Então chegue a salvo ao seumundo e espere.O Imperador irá agir embreve,estoucertodisso.OgolpequevocêdesferiucontraoSenhordaGuerrafoi pior do que qualquer derrota no campo de batalha. Se a Luz do Céu derordens para que se faça paz, então talvez possamos lidar com a questão doportal.ContenhaasuamãoatéseinformaracercadareaçãodoReiàpropostadepaz.

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O

—QuerdizerquevocêtambémparticipadoGrandeJogo?Fumitasorriu.—Nãosouoúnicomagoqueseentregaàsjogadaspolíticas,Milamber.Eue

Hochopepa fazemos parte de tudo isso desde o início.Vá, e que os deuses osacompanhem. Desejo-lhes uma jornada sem perigos e uma vida longa eprósperaemseumundo.

Passou por Milamber e pela família dele. Quando deixaram de vê-lo,Milamberativouodispositivo.

soldadodeuumsalto.Estavasentadodebaixodeumaárvore,abrigando-sedocalordosol,queestavaprestesasepôr,quando,derepente,ummago,

umamulhereumacriançasurgiramàsuafrente.Aindaestavaselevantandoeeles já seguiam em direção àmáquina do portal, a várias centenas demetrosdaquelelocal.Quandochegarampertodamáquina,umaplataformacompostesaltosdecadalado,entreosquaispodiaseverumespaço“vazio”quetremeluzia,ooficialencarregadodeatravessarastropasficouemsentido.

—Tireesteshomensdaplataforma.— Seja feita a sua vontade, Grande. — Berrou ordens e os homens

recuaram.MilamberdeuamãoaKatalaealevoupelafenda.Umpasso,umbrevemomentodedesorientaçãoelogoseviramnomeiode

um acampamento tsurani no vale das Torres Cinzentas. Era noite e viam-sefogueirasardendo.Várioso ciais caramsurpresosquandoviramumachegadatãoinusitada,masosdeixarampassar.

—Vocêtemcavaloscapturados?—perguntouMilamber.Umdosoficiaisbalançouacabeça,semdizernada.—Tragadois,imediatamente.Selados.— Seja feita a sua vontade, Grande— respondeu um dos homens e saiu

correndo.Pouco depois, um soldado trouxe dois cavalos. Quando se aproximou,

MilamberviuquesetratavadeHokanu.O lhomaisnovodosShinzawaiolhouaoredoraoentregarasrédeasaMilamber.

— Grande, acabamos de receber a notícia de que houve um terrívelacontecimento nos Torneios Imperiais, embora os relatos sejam vagos.Descon o de que sua vinda inesperada possa estar relacionada com essesrelatos.Precisapartirdeimediato,poisoacampamentoestárepletodehomens

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doSenhordaGuerrae,casocheguemàmesmaconclusão,nãoseioqueserãocapazesdefazer.

MilamberpegouWilliamnocoloenquantoKatalamontavacomaajudadeHokanu.Omagolheentregouofilhoemontouoseucorcel.

—Hokanu, estive agoramesmo com o seu pai. Vá até ele; ele precisa devocê.

— Regressarei à propriedade de meu pai, Grande. — O jovem tsuranihesitou,acabandoporacrescentar:—Casoencontremeu irmão,diga-lhequeestouvivo,poiselenãosabe.

Milamberdissequeassimfaria,virando-sedepoisparaKatalaepegandoasrédeasdocavalodamulher.

—Segureocabeçotedasela,meuamor.EulevoWilliam.Semmaispalavras, saíramdoacampamento.Porváriasvezesencontraram

guardas dispostos a pará-los, mas detinham-se quando viam o manto negro.Cavalgaram durante horas ao luar. Milamber conseguia ouvir os gritos dossoldadosenquantolevavasuafamíliaparaumlugarseguro.

Katala aguentou tudo como os guerreiros dos quais descendia eMilambercou admirado. Nunca antes montara um cavalo, mas não se queixou. Serretirada de seu lar e, de um momento para outro, ver-se em outro mundoescuro e estranho, onde não conhecia ninguém, devia ser uma experiênciaassustadora.Demonstrouterafibraque,antes,Milambersóimaginava.

Apósumaviagemaparentementeinterminável,umavozsoounaescuridão.Vislumbraramfigurasvagasesombriasentreasárvores.

—Alto!Quemvemláestanoite?—AvozfalavanoIdiomadoRei.Ostrêsviajantes pararam e o homem que seguia à frente, revelando alívio na voz,respondeu:

—PugdeCrydee!

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K

12

Agitação

ulganestavasentadoemsilêncio.Tratava-sedeumreencontrotemperadodetristeza.Pugseencontravajuntoda camadeLordeBorric, nitidamente transtornado, enquantoo

Duquemoribundo sorria com tristeza. Lyam, Brucal eMeecham aguardavamporperto,falandoemvozbaixa,eKataladistraíaWilliamenquantooDuqueePugconversavam.

Borricfalavaemvozbaixa,poisaenfermidadedebilitarasuavozeseurostosecontorciadedordevidoàdificuldadepararespirar.

—Fico felizpor ver... que regressouparanós,Pug.E co aindamais felizporverasuaesposaeoseu lho.—Tossiueumaespuma,salpicadadesangue,surgiunoscantosdaboca.

Katalatinhalágrimasnosolhos,poisoafetoqueomaridotinhaporaquelehomemaemocionava.BorricfezsinalaKulganeocorpulentomagocolocou-seaoladodeseuantigoaprendiz.

—Diga,VossaGraça.BorricsussurroueKulgansedirigiuaMeecham:—PodeacompanharKatalaeogarotoatéanossa tenda?LaurieeKasumi

estãoesperandolá.KatalaolhouinterrogativamenteparaPugeeleassentiu.Meechamjápegara

nocoloomenino,queoolhoucomalgumceticismo.Depoisdesaírem,Borricse esforçoupara se erguer umpouco, sendo ajudadoporKulgan, que colocoualmofadas para apoiá-lo. ODuque tossiu ruidosa e demoradamente, os olhosfechadoscomforçadevidoàdor.

Quandovoltouaconseguirrespirar,suspirou,falandopausadamente:— Pug, lembra-se de quando o recompensei por ter salvado Carline dos

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trolls?—Pug acenou coma cabeça, commedode falar por causada emoçãoque sentia. Borric prosseguiu: — Lembra-se, por acaso, de que lhe prometioutrarecompensa?—Pugvoltouacon rmar.—QuemmederaTullyestivesseaqui para poder fazê-lo, mas vou tentar resumir. Há muito que acho que oReinodesperdiçaumdeseusmelhoresrecursosaoconsiderarosmagoscomoproscritosemendigos.Oserviço lealdeKulganao longodosanosprovouqueeu estava certo. Agora, você regressou, e, embora entenda somente umapequenapartedoquemecontou,perceboquesetornoumestreemsuaarte.Euesperavaquevocêvoltasse,poistiveumavisão.Deixei-lheumaquantiadeouro,aguardandoodiaemquesetornariaummagomestre.Comesseouro,gostariaque você, juntamente com Kulgan e outros magos, criasse um centro deinstrução, que todos possam frequentar e onde compartilhem seuconhecimento. Tully lhe entregará os documentos que contêm as minhasinstruções,explicandoemdetalhesaminha intenção.Contudo,pororapossoapenasperguntar:aceitaessatarefa?Construiráumaacademiaparaoestudodamagiaeoutrossaberes?

Pug balançou a cabeça con rmando, os olhos cheios de lágrimas. Kulganestavaboquiaberto,semacreditarnoqueestavaouvindo.Oseumaioranseio,aambição de uma vida, partilhada com o Duque nas horas de ócio em que seconfessavamsonhosnacompanhiadecálicesdevinho,iriaseconcretizar.

Borric começou a tossirmais uma vez até que, passado o ataque, voltou afalar:

—Possuoo título de propriedadedeuma ilha, no centrodoGrandeLagodasEstrelas,pertodeShamata.Quando,por m,estaguerraterminar,váparaláeconstruaalia suaacademia.TalvezumdiavenhaaseromaiorcentrodeaprendizagemdoReino.

Mais uma vez, o Duque foi atormentado pela tosse, produzindo um somainda mais terrível do que antes. Arquejou após o ataque de tosse, malconseguindofalar.FezsinalparaqueLyamseaproximasseeapontouparaPug:

—Conte-lhe—disse,deixando-secairnasalmofadas.Lyamengoliuemseco,reprimindoaslágrimas,efalouparaPug:— Quando você foi levado pelos tsurani, meu pai desejou fazer uma

homenagem à suamemória. Ponderou o que seria adequado, pois você haviademonstrado valentia em três ocasiões, duas vezes salvando a vidadeKulgan,além da vida de minha irmã. Considerou que só lhe faltava um nome, pois

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ninguém conhecia a sua ascendência. Por isso, ordenou a redação de umdocumento que foi enviado para os Arquivos Reais, inscrevendo o seu nomenosanaisda famíliaconDoin,adotando-oemnossacasa.—Lyamforçouumsorriso.—Quemmederapoderpartilhar comvocêessasnotícias em temposmaisfelizes.

Emocionado, Pug ajoelhou-se ao lado deBorric. Pegou amãodoDuque ebeijouoanelcomsinete,incapazdefalar.Comvozdebilitada,Borricdisse:

— Não podia ter mais orgulho de você se fosse meu lho verdadeiro —arquejou.—Useonossonomehonradamente.

Pugapertouamãooutrorapoderosa,agoradébilesemforças.OsolhosdeBorriccomeçaramasefecharenquantotentavarespirar.PuglargouamãoeoDuquegesticulouparaquetodosseaproximassem.AtéovelhoBrucaltinhaosolhosvermelhosenquantoesperavamqueavidadoDuqueseapagasse.

—Vocêétestemunha,velhocompanheiro—sussurrouaBrucal.O Duque de Yabon ergueu uma sobrancelha e olhou com expressão

interrogativaparaKulgan.—Oqueelequerdizer?— Deseja que testemunhe a sua declaração no leito de morte. Tem esse

direito—respondeuKulgan.Borricolhouparaomagoedisse:—Tomecontade todososmeus lhos,velhoamigo.Deixequeaverdade

sejarevelada.— Por que meu pai diz “todos os meus lhos”? — perguntou Lyam a

Kulgan.—Queverdade?Kulgan olhou para Borric, que balançou fracamente a cabeça, dando

consentimento.Aspalavrasdomagoforamproferidascomserenidade:—Oseupaireconheceoseufilhomaisvelho:Martin.Lyamarregalouosolhos.—Martin?O braço de Borric esticou-se de súbito em um surto repentino de força,

agarrandoamangadeLyam.Puxou-oparajuntodeleemurmurou:—Martinéseuirmão.Tratei-oinjustamente,Lyam.Éumbomhomemeo

amo muito. — A Brucal falou com voz áspera uma única palavra: —Testemunhe!

Brucalconcordou.Comlágrimasescorrendoatéobigodebranco,jurou:

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N

—Eu,Brucal,DuquedeYabon,testemunhooqueacabeideouvir.Derepente,oolhardeBorric cou inexpressivo.Oestertordamortesoou

emseupeitoeoDuqueficouimóvel.Lyam caiu de joelhos e chorou e os outros não refrearam a tristeza que

sentiam.NuncaantesPugviveraummomentotãoagridoce.

aquelanoite,osilêncioimperavanatendaqueMeechamdestinaraaPugeàsuafamília.AnotíciadamortedeBorriclançaraumamortalhasobreo

acampamentoemuitodaalegriadeKulganpeloretornodeseuaprendiz,sãoesalvo, counublado.Odiapassoudevagar,comtodosreatandoamizades,aindaque falassem em voz baixa e pouca felicidade sentissem. De vez em quando,alguém saía da tenda, afastando-se para car sozinho com seus pensamentos.Iamsendopartilhadosnoveanosdehistóriae,naquelemomento,PugfalavadesuafugadoImpério.

KatalavigiavaWilliam,enroscadoemumacamacomobraçoporcimadeFantus. O dragonete e o garoto tinham olhado um para o outro e logodecidiram que eram amigos. Meecham estava junto da fogueira ondecozinhavam,prestandoatençãonosoutros.LaurieeKasumiestavamsentadosnochão,deacordocomocostumetsurani,enquantoPugterminavaorelato.

Kasumifoioprimeiroafalar:—Grande,comoconseguiudeixaroImpérionestemomentoenãoantes?Kulganergueuumasobrancelha.Aindaestavaabsorvendoasalteraçõesem

seuantigoaprendiz.AquelaconversasobreoCaminhoSuperioreoCaminhoInferioraindaeradifícildeentenderenãoqueriaacreditarnaatitudedotsuraniemrelaçãoaogaroto.Corrigiu-se:aojovemhomem.

—Apósomeu confronto como SenhordaGuerra, cou evidente que euserviriaoImpériodeixando-o,poisaminhapresençasópoderiacausardivisõesemummomentoemqueoImpérioprecisasecurar.Aguerratemdeterminareapazprecisaserrestabelecida,poisoImpérioestásendoexaurido.

—Sim—acrescentouMeecham—, tal como está acontecendo aoReino.Noveanosdeguerraestãonosdeixandoesgotados.

Kasumi sentia-se igualmente incomodado pelo tom informal com queaquelaspessoasfalavamcomPug.

— Grande, o que acontecerá se o Imperador não conseguir deter o novoSenhordaGuerra?Oconselhonãotardaráaelegê-lo.

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—Nãosei,Kasumi.Nessecaso,tentareifecharoportal.Kulgandeuumabaforadademoradanocachimbo,produzindoumanuvem

espessa.—Continuosementendertudooquedisse,Pug.Peloquecontou,nãovejo

nadaquepossaimpedi-losdeabriroutrafenda.—Nadaos impedirá, excetoo fatodequeosportais são instáveis.Nãohá

formadecontrolaronde surgiráa fenda; foiporacasoque surgiuestaentreonossomundo e Kelewan. Assim que foi estabelecida, poderiam surgir outras,comoseocaminhoentreosdoismundosatraísseoutrasfendascomooímãéatraído pelometal. Os tsurani poderiam voltar a tentar criar o portal, mas éprovável que cada tentativaos levasse aoutrosmundos. Se voltassempara cá,seriapurasorte,umapossibilidadeentremilhares.Sea fendase fechar, talvezdemoremanosparavoltar,seéquealgumavezvoltarão.

—PeloquerelatousobreosuicídiodoSenhordaGuerra—disseKulgan—,devemoscontarcomumatréguanoscombates?

FoiKasumiquerespondeu:— Temo que isso não ocorra, amigo Kulgan, pois conheço o

SubcomandantedesteSenhordaGuerra.ÉMinwanabi,umafamíliaorgulhosade um clã poderoso, e a sua causa ganharia muito se durante a reunião doConselhoSupremooseuclãlevassenotíciasdeumavitóriaesmagadora.Omaisprováveléquelanceumgrandeataquedentrodepoucosdias.

Kulgansacudiuacabeça.—Meecham,talvezsejamelhorpediraLordeLyamquesejunteanós;ele

precisaouvirisso.—Ohomemaltoselevantouesaiudatenda.Kasumifranziuatesta.—AcabeiconhecendoumpoucodestemundoeconcordocomoGrande.É

óbvioqueapazseriavantajosaparaambos,masnãomepareceiminente.Poucosminutosdepois,ojovemDuqueentrounatendaatrásdeMeecham

eKasumirepetiuaadvertência.— Sendo assim, temos de nos preparar para o ataque— foi a reação de

Lyam.Kasumipareceuincomodado.— Lorde, tenho de lhe pedir perdão, mas, caso os combates venham a

ocorrer,nãopossolutarcontraomeupovo.Permitequeeuregresseàsminhasfileiras?

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F

O Duque re etiu sobre aquele pedido e Pug reparou que o rosto estavacando marcado pela pressão do comando. Os olhos sorridentes e o sorrisopermanentetinhamdesaparecido.Maisdoquenunca,lembravaopai.

—Compreendo.Darei ordens para que o deixem passar, seme der a suapalavradehonradequenãorepetiránadadoqueouviuaqui.

Kasumiconcordouelevantou-secomintençãodepartir.Pugfezomesmo,dizendo:

—Darei a você uma última ordem,Kasumi, comomago de Tsuranuanni.Volteparajuntodoseupai,poiseleprecisadevocê.Maisumsoldadomortoemnadaajudaráasuanação.

Kasumifezumamesuracomacabeça.—Sejafeitaasuavontade,Grande.KasumideuumabraçoemLaurieesaiucomLyam.—Foram tantas as coisas que contou que tenho di culdade para absorver

tudo — disse Kulgan. — Creio que, por ora, talvez seja melhor nosrecolhermos,poiseuprecisodescansar.

Quandoovelhomagoselevantou,Puglhedisse:—Tenhoadiadoumapergunta.ETomas?—OseuamigodeinfânciaestábemeseencontracomoselfosdeElvandar.

Éumguerreiromuitofamoso,talcomodesejavasetornar.Pugsorriu.—Ficofelizporouvirisso.Obrigado.Kulgan,LaurieeMeechamsedespediramesaíram.—Marido,estácansado—disseKatala.—Venharepousar.Pugfoiatéacamaondeelaestavasentada.— Você me surpreende. Esta noite passou por tanta coisa e ainda se

preocupacomigo.Elapegouamãodele.—Quandoestoucomvocê, tudoestácomodeveser.Masvocêpareceque

carregaomundonosombros.—Temoquesejaopesodedoismundos,meuamor.

oramacordadosportrombetas.QuandoPugeKatalaselevantavam,foramsurpreendidospelaentradarepentinadeLaurienatenda.Pelaluminosidade

quandoafastaraaaba,eraevidentequetinhamdormidoatétarde.

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—ORei está chegando!—Ofereceuumaspeçasde roupaaPug.—Vistaisto.

Percebendo a sensatez de não andar pelo acampamento de manto negro,Pugobedeceu.LaurievirouascostaseKatalavestiuatúnica.FoiparajuntodeWilliam,queestavasentadonacamacomarassustado.Eleseacalmoudepressae começou a puxar a cauda de Fantus, fazendo o dragonete resmungar emprotestoasuasafrontas.

Pug e Laurie saíram da tenda, dirigindo-se ao pavilhão de comando, quetinhavistaparaoacampamentodosExércitosdoRei.Aolonge,naextremidadesudeste do acampamento, avistarama comitiva real se aproximandodepressa,ouvindoos vivasdos soldadosquando viampassar o estandarte real.Milharesde soldados aclamavam, pois nunca tinham visto o Rei e a sua presença lheselevavaoespírito,bastanteabatidodesdeaderrotacontraostsurani.

LaurieePug caramaoladodatendadecomando,masemumpontoondeconseguissemouviroquesucedia.ODuqueBrucalnãodesviouosolhosdoRei,mas Lyam reparounos dois, fazendo com a cabeça um aceno de aprovação àpresençadeambos.

Asduas leirasdaGuardadaCasaRealavançaramatéaentradada tenda,dividindo-separaqueoReipudesseavançaratéafrente.Rodric,ReidoReino,vinhamontadoemumenormecavalodebatalhapreto,quecomeçouarasparosolo ao parar diante dos dois duques. Rodric vestia uma vistosa armadura debatalha decorada com ouro, com muitas caneluras e relevos gravados nacouraça. O elmo era dourado, com uma coroa ao redor. No topo, esvoaçavaumaplumaroxa,sopradapeloventomatinal.

Após algum tempo, retirou o elmo e o entregou a umpajem.Permaneceumontadoeexaminouosdoiscomandantes,olhando-osdecimacomumsorrisoenigmático.

—Então,nãocumprimentamoseusoberano?Osduquesfizeramumamesura.—Majestade,ficamossurpresos—disseBrucal.—Estamossempalavras.Rodricriueosomtinhatraçosdeloucura.— Isso é porque não avisei de antemão. Queria fazer uma surpresa. —

OlhouparaLyam.—QueméestecomotabardodeCrydee?—Lyam,VossaMajestade—respondeuBrucal.—DuquedeCrydee.— Só é Duque se eu disser que é Duque — gritou o Rei. Mudando

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repentinamentedehumor,disse, em tomapreensivo:—Lamento amortedeseu pai. — Seguiram-se risadinhas. — Mas ele era um traidor, sabe? Eu iamandarenforcá-lo.—Lyam coutensoaoouviraspalavrasdeRodriceBrucaloagarroupelobraço.

OReipercebeuebradou:— Você atacaria seu Rei? Traidor! Você, seu pai e os outros são todos

farinhadomesmosaco.Guardas,prendam-no!—Apontouparaojovem.Quando os guardas reais começaram a desmontar, os soldados do Oeste

avançaramparaimpedi-los.—Parem!—ordenouBrucal,detendoossoldadosocidentais.Virou-separa

Lyam.—Umapalavrasuaeestouraráaguerracivil—sibilou.— Entrego-me, Vossa Majestade — disse Lyam. Os soldados do Oeste

protestaram.— Terei de mandar enforcá-lo, sabe disso — disse o Rei com frieza. —

Levem-noparaatendadeleenãoodeixemsair.—Osguardasacataram.OReivoltouaatençãoparaBrucal.—Élealamim,LordeBrucal,ouYabontambémganharáumnovoDuque,assimcomoCrydee?

—Aminhalealdadeestácomacoroa,Majestade—foiaresposta.OReidesmontou.—Sim,acredito.—Voltouarir.—Sabequeomeupaiotinhaemgrande

estima,nãosabe?—DeuobraçoaoDuqueeentraramnatendadecomando.LaurietocounoombrodePug,dizendo:—Émelhor carmosemnossastendas.Sealguémdacortemereconhecer,

aindamejuntoaoDuquenaforca.Pugconcordou.—VáchamarKulganeMeechamedigaparanosencontrarememminha

tenda.Laurie saiu correndo e Pug voltou à tenda. Katala estava alimentando

Williamcomumatigeladeensopadodanoiteanterior.—Infelizmente,parecequeencontramosoutrocaldeirãodeproblemas,meuamor—dissePug.—ORei se encontra no acampamento e está mais louco do que eu imaginava.Teremosdepartirembreve,poiselemandouprenderLyam.

Katalaficouhorrorizada.—Paraondeiremos?—EuconsigonoslevaraCrydee,parajuntodoPríncipeArutha.Conheçoo

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pátiodoCastelodeCrydeetãobemcomosealihouvesseumpadrão.Nãodevoterdificuldadesemnostransportarparalá.

Laurie,MeechameKulganchegarampoucodepoisePugdescreveuoplanodefuga.Kulgansacudiuacabeça,dizendo:

—LeveogarotoeKatala,Pug,maseufico.—Eeu—acrescentouMeecham.Pugpareciaincrédulo.—Masporquê?—Servi o pai de Lyam e agora é a ele que sirvo. Se oRei tentar executar

Lyam,haveráluta.OsExércitosdoOestenão carãoparadosenquantoLyaméenforcado. O Rei só traz com ele a Guarda Real, que será rapidamentesubjugada.Quandoissoacontecer,começaráaguerracivil.Bas-TyralideraráosExércitosdoLeste.Lyamiráprecisardeminhaajuda.

—Aquestãonãoseráresolvidaassimtãodepressa—disseMeecham.—OsExércitosdoOestetêmexperiência,masestãocansados.Nãoestãomotivados.OsExércitosdoLestenãoestãocansadoseGuy,oNegro,éomelhorgeneraldoReino.Lyamaindanãofoipostoàprova.Abatalhaserálonga.

Pugentendeuoqueestavasendodito.— Talvez não cheguemos a esse ponto. Brucal parece disposto a seguir o

comando de Lyam, mas o que acontecerá se mudar de ideia? Quem poderádizerseYlith,Tyr-SogeosoutroscontinuarãoaseguirLyamsemaorientaçãodeYabon?

Kulgansuspirou.— Brucal não irá vacilar. Odeia Bas-Tyra tanto quanto Borric odiava,

embora por razões não tão pessoais. Vê o dedo de Guy em todas asmovimentaçõespara submeteroOeste.CreioqueoDuquedeYabondebomgrado cortaria a cabeça de Rodric, mas, ainda assim, é possível que Lyam serendaemvezdeprovocarumaguerraciviledeixarqueoOestecaianasmãosdos tsurani.Temosde esperarpara ver.Oque émaisuma razãopara você irparaCrydee,Pug.SeLyammorrer,Aruthaéoherdeirodacoroa.SeoReilevarissoadiante,nãopararáatéAruthaestarmorto.AtéMartin—cujapretensãoseria manchada pela sua ilegitimidade — e Carline seriam perseguidos eassassinados. Talvez até Anita. Rodric não iria arriscar o nascimento de umherdeiroocidentaldotrono.ComamortedeLyam,oderramamentodesanguesópararáquandoumdosdois,RodricouArutha,estiver sentadono tronodo

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E

Reino, sem contestações. Você é o mago mais poderoso do Reino. — Pugcomeçou a protestar.— Sei o bastante das artes para avaliar suas habilidadespelo que você nos contou. Recordo-me como era promissor quando garoto.Vocêécapazdefeitosinigualáveisemnossomundo.Aruthaprecisarámuitodevocê,poisnãopermitiráqueamortedo irmão que impune.Crydee,CarseeTulanavançarãoassimqueaquestãodos tsuraniestivercontrolada.Outrossejuntarão,especialmenteBrucal.Aessaaltura,aguerracivilestaráemmarcha.

Meechamcuspiuparaforadatenda.Ficoupetri cado,segurandoaaberturaporuminstante,dizendoemseguida:

—Creioqueadiscussãochegouaofim.Olhem.Juntaram-se a ele na entrada. Nenhum deles tinha os olhos de lince do

homemlivree,de início,nãoconseguiramavistaroqueele indicava.Atéque,aospoucos,reconheceramanuvemdepó,aolonge,asudeste.Estendia-seporquilômetros equilômetros ao longodohorizonte,uma faixamarromsujaqueavançavadebaixodoazuldocéu.

Ohomemlivrevirou-seeolhouparaosoutros.—OsExércitosdoLeste.

stavamjuntoaumpavilhãodecomando,nomeiodeumgrupodesoldadoslaMutianos. Acompanhando Laurie, Kulgan, Pug e Meecham estava o

CondeVandrosdeLaMut,oantigoo cialdecavalariaquecomandaraoataquenovaleanosantes,quandohouveoprimeirocontatocomoportal.Receberaotítulo após a morte do pai, menos de um ano depois da captura de Pug,revelando-seumdoscomandantesmaiscapazesdoReinonocampodebatalha.

Umacompanhiadenobresvinhasubindoacolinaemdireçãoaopavilhão.O Rei e Brucal os aguardavam. Ao lado de cada lorde seguia um porta-estandartecomainsígniadonobre.Vandrosanunciouonomedecadaexércitorepresentado:

—Rodez,Timons, Sadara,Ran,Cibon, estão todospresentes.—Virou-separaKulgan.—DuvidoquerestemmilsoldadosentreestelocaleRillanon.

—Nãovejoumestandarte:Bas-Tyra—disseLaurie.Vandrosperscrutouastropas.— Salador, Taunton Profundo, Ponta da Flecha... tem razão. A águia

douradasobreofundonegronãoseencontraentreosestandartes.—Guy,oNegro,nãoétolo.JáocupaotronodeKrondor.CasoLyamseja

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enforcadoeRodricsucumbanocampodebatalha,nãodemoraráaalcançarotronoemRillanon—comentouMeecham.

Vandrosolhouparatrás,ondeosnobresestavamreunidos.— Quase todo o Congresso de Lordes está presente. Caso regressem a

Krondor sem o Rei, Guy não demorará a ser coroado. Muitos destes sãohomensdesuaconfiança.

—QueméaquelesoboestandartedeSalador?—perguntouPug.—NãoéLordeKerus.

Vandroscuspiunochão.—ÉRichard,antigoBarãodeDolth,atualDuquedeSalador.OReimandou

enfocar Kerus e sua família escapou para Kesh.Hoje em dia, Richard rege oterceiroducadomaispoderosodoLeste.ÉumdospreferidosdeGuy.

Quandoosnobres se apresentaramperanteoRei,RicharddeSalador,umhomemderostocoradoquelembravaumurso,falou:

—Meususerano,estamosreunidos.Ondepodemosmontaracampamento?—Acampamento?Nãovamosfazeracampamentonenhum,senhorDuque.

Avançamosacavalo!—Virou-separaLordeBrucal:—ReúnaosExércitosdoOeste, Brucal. — O Duque fez sinal e os arautos precipitaram-se peloacampamento, gritando ordens para que se reunissem. Logo se ouviram ostamboresetrombetasdeguerraportodooacampamentoocidental.

Vandros foi se juntar aos seus soldados e, pouco depois, eram poucos osobservadoresquerestavam.Kulgan,Pugeosoutrosseafastaramparaumdoslados,saindodocampodevisãodoRei.

OReisedirigiuaosnobresreunidos:— Há nove anos que temos suportado os modos delicados do comando

ocidental. Eumesmo irei liderar o ataque que expulsará o inimigo de nossasterras.—Virou-separaBrucal:—Porumaquestãodedeferênciaparacomasua idade avançada, meu caro, transmito o comando da infantaria ao DuqueRichard.Vocêpermaneceráaqui.

OvelhoDuquedeYabon,queestavavestindo suaarmadura,pareceu carofendido,maslimitou-seadizer:

—Majestade—Apalavrasaiunumtomfrioetenso.Virou-serigidamenteeentrounatendadecomando.

TrouxeramocavalodoReieRodricmontou.Umpajempassou-lheoelmocomacoroaeoReiocolocounacabeça.

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O

—Ainfantariadeveráseguirtãodepressaquantopossível.Agora,partamos!O Rei incitou o cavalo colina abaixo, seguido pela Guarda Real e pelos

nobresreunidos.Depoisdedesaparecerdevista,Kulganvirou-separaosoutrosedisse:

—Sónosrestaesperar.

diaparecianãoter m.Cadahoraquepassavaeracomoumdiapassandolentamente.Estavamsentadosna tendadePug,pensandonoqueestaria

ocorrendoaoeste.O exército avançara, sob o estandarte do Rei, ao som de tambores e

trombetas. Mais de dez mil soldados de cavalaria e vinte mil soldados deinfantaria tinham investido contra os tsurani. Restavam poucos soldados noacampamento,osferidoseumacompanhiadeplantão.Acalmaquesesentialáforaeraenervanteapósobarulhoquasepermanentedodiaanterior.

WilliamestavacadavezmaisagitadoeKatala forabrincarcomeledo ladode fora. Fantus recebeu de bom grado a oportunidade de descansar sem serincomodadopeloseuincansávelcompanheirodebrincadeira.

Kulgan estava calado fumando seu cachimbo. Ele e Pug tinhampassado otempo falando esporadicamente sobre assuntos de magia, embora semantivessemcaladosamaiorpartedotempo.

Lauriefoioprimeiroaaliviaratensão.—Não aguentomais esta espera—disse ele, se levantando.—Acho que

devíamosverLordeLyameajudá-loadecidirasaçõesaseremtomadasquandooReiregressar.

KulganacenoucomamãoparaqueLaurievoltasseasesentar.— Lyam não tomará qualquer atitude, pois é lho de seu pai e não iria

começarumaguerracivil,nãoaqui.Sentado,Pugseentretinhacomumaadaga.— Com os Exércitos do Leste em campo, Lyam sabe que uma revolta

poderia levar à entregadoOeste aos tsurani e da coroa aBas-Tyra. Subirá aocadafalsoeelemesmocolocaráacordaemvoltadopescoçoantesdeassistiraumasituaçãodessas.

—Issoseriaamaiordastolices—contrapôsLaurie.—Não— argumentou Kulgan—, não seria tolice, menestrel, antes uma

questão de honra. Lyam, tal como o pai, acredita que a nobreza tem a

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responsabilidade de dedicar o trabalho de uma vida, e a própria vida se fornecessário, ao Reino. Uma vez que Borric e Erland morreram, Lyam é oprimeiro na linha de sucessão ao trono. Contudo, a sucessão é incerta, poisRodric não nomeou um herdeiro. Lyam não suportaria usar a coroa se ojulgassemusurpador.ComArutha a questão é outra, pois faria o que julgasseconveniente:subiriaaotrono,aindaquenãodesejassefazê-lo,preocupando-secomoquedissessemdelequandofossedito.

Pugconcordou.—CreioqueKulganestáanalisandocorretamente.Nãoconheçoosirmãos

tão bem quanto ele, mas julgo que teria sido melhor se tivessem nascido naordeminversa.Lyamdariaumbomrei,masAruthaseriaumreiadmirável.Oshomens seguiriamLyamatéamorte,maso irmãomaisnovo fariausode suaastúciaparamantê-losvivos.

— Uma avaliação justa — admitiu Kulgan. — Se há alguém que poderáencontrarumaformadesairmosdestaconfusão,essealguéméArutha.Temacoragem do pai,mas também tem um discernimento tão rápido quanto o deBas-Tyra. Poderia resistir às intrigas da corte, embora as abomine.—Kulgansorriu.—Quandoerampequenos,chamávamosAruthade“apequenanuvemtempestuosa”, pois, quando se irritava, era dado a olhares ameaçadores e agrande turbulência, enquanto Lyam se irritava depressa, lutava depressa e seesqueciadetudoemseguida.

AsreminiscênciasdeKulganforaminterrompidaspelosomdegritosvindosdefora.Levantaram-sedeumsaltoecorreramparaforadatenda.

Umcavaleirocobertodesangue,comotabardodeLaMut,passouporelesatodaavelocidade,eelescorreramatrás.ChegaramàtendadocomandoquandoLordeBrucalsaía.

—Quaissãoasnovidades?—perguntouovelhoDuquedeYabon.—OCondeVandros enviou estamensagem:Vitória!—Ouviram-semais

cavaleiros aproximando-se. — Passamos por eles como vento. Conseguimosromper a frente de combate a leste do inimigo e a forti cação caiu. Nós osseparamos, conseguindo isolar os que se encontravam lá, depois viramosparaoesteeatropelamososqueprocuravamajudá-los.AinfantariaestáaguentandobemeacavalariaestáfazendoostsuraniregressaremàPassagemNorte.Fogememdebandada!Odiaestáganho!

Foi dado um odre ao cavaleiro, pois parecia que sua voz estava prestes a

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falhar. Inclinou-o por cima do rosto e deixou o vinho verter para a boca,escorrendo pelo queixo e se juntando ao vermelhomais escuro que salpicavaseutabardo.Atirouoodrenochão.

—Hámais.RicharddeSaladortombou,bemcomooCondedeSilden.EoReifoiferido.

OrostodeBrucalreveloupreocupação.—ComoestáoRei?—Mal,infelizmente—respondeuocavaleiro,segurandoocavalonervoso,

queempinava.—Éumferimentograve.Racharamoseuelmocomumaespadalargadepoisdemataremoseucavalo.Morreramcemhomensparaprotegê-lo,poiso seu tabardo real eraumchamarizparaos tsurani.Ele está vindo.—Ocavaleiroapontouparaocaminhodeondeviera.

Pugeosoutrosseviraram,vendoqueseaproximavamtropasacavalo.Naprimeira linha, viramumguarda real segurandoà sua frenteoRei, cujo rostoestava cobertode sangue. Segurava-seno cabeçote da sela comamãodireita,enquantoooutrobraçopendiaaseulado.Pararamdiantedatendaeosoldadoauxiliou o Rei a desmontar. Começaram a levá-lo para dentro, mas o Reiconseguiupronunciar,comumavozdébilearrastada:

—Não.Nãome tiremdo sol.Tragam-meumacadeiraparaquepossamesentar.

AindaestavamchegandonobresquandofoitrazidaumacadeiraparaoRei.Ajudaram-no a se sentar, inclinado para trás, com a cabeça pendendo àesquerda. Tinha o rosto coberto de sangue e, através da ferida no courocabeludo,entrevia-seoossobranco.

Kulganaproximou-sedeRodric.—MeuRei,possotratarseusferimentos?O Rei se esforçou para ver quem falara. Os seus olhos pareceram car

desfocadosporinstantes,ganhandonitidezemseguida.— Quem falou? O mago? Sim, o mago de Borric. Faça o favor, estou

sofrendo.Kulgan fechou os olhos, concentrando seus poderes para aliviar o

sofrimento do Rei. Colocou amão no ombro de Rodric e quem estava pertopôdeobservarosoberanodoReinorelaxaraolhosvistos.

— Agradeço-lhe, mago. Sinto-me melhor. — Rodric virou um pouco acabeça com grande esforço. — Meu Lorde Brucal, traga Lyam à minha

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presença.Lyamestavaemsuatenda,sobescolta,eordenaramaumsoldadoquefosse

chamá-lo.Poucodepois,ojovemsecurvoudiantedoprimo.—Meusenhor,estáferido?Um Sacerdote de Dala aproximou-se de Kulgan, concordando com a

avaliação do ferimento feita por este. Olhou para Brucal e sacudiu a cabeçadevagar.ForamtrazidaservasebandagensetrataramdoRei.Kulgandeixouosacerdoteprestandoassistênciaevoltouparajuntodosoutros.Katalasejuntaraaeles,comWilliamaocolo.

— Receio que o ferimento seja fatal — disse Kulgan. — O crânio estáquebradoefluidosestãosaindopelaabertura.

Assistiram em silêncio. O sacerdote afastou-se para o lado, começando arezar por Rodric. Todos os nobres, com exceção dos que se encontravam nocomando da infantaria, estavam agora en leirados diante do Rei. Ouviam-semais cavaleiros se aproximarem. Juntaram-se aos outros que presenciavam equeospunhamapardosacontecimentos.Fez-sesilêncioquandooReifalou.

—Lyam—disseemvozfraca.—,tenhoestadodoente,nãoéverdade?—O jovem Duque não respondeu, embora seu rosto revelasse emoçõescontraditórias.Nãonutriagrandeafetopeloprimo,maseleaindaeraoRei.

Rodric arriscou um leve sorriso. Um dos lados de seu rosto se moveuligeiramente, como se não conseguisse controlar os músculos por completo.Rodricestendeuamãodireita,queaindaconseguiamexer,eLyamasegurou.

—Nãoseioquemepassoupelacabeçanosúltimostempos.Muitodoqueaconteceu me parece um sonho, sombrio e assustador. Tenho estado presonessesonho,masagoraconseguimelibertar.—Atestacomeçoua carsuadae o rosto empalideceu. — Expulsei o demônio de dentro de mim, Lyam, econsigo agora ver que agi erroneamente em muitas ocasiões. Cheguei a sercruel.

Lyamajoelhou-sedianteoRei.—Não,meuRei,nãocruel.O Rei tossiu com violência, arquejando em seguida quando o ataque

acalmou.— Lyam, resta-me pouco tempo. — Subiu um pouco o tom de voz: —

Brucal, seja testemunha. — O velho Duque olhava para o Rei, o rostoimplacávelcomoumamáscara.AvançouparajuntodeLyamedisse:

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—Aquiestou,Majestade.OReiapertouamãodeLyam,endireitando-seligeiramente.Subiuotomde

vozaodizer:— Nós, Rodric, o quarto deste nome, soberano hereditário do Reino das

Ilhas, proclamamos desta forma que Lyam conDoin, nosso primo de sangue,possui sangue real. Como primogênito conDoin, o nomeamos Herdeiro dotronodenossoReino.

Lyam lançou um olhar alarmado a Brucal, mas o idoso Duque sacudiubrevementeacabeça,exigindo-lhesilêncio.Lyamabaixouacabeça,mostrandoumatristezasincera.ApertoucomforçaamãodoRei.

—Eu,Brucal,DuquedeYabon,testemunhooqueacabeideouvir—disseBrucal.

AvozdeRodricsooufraca:— Lyam, peço-lhe um favor. Seu primo Guy fez o que fez sob minhas

ordens. Lamento a loucura queme levou a depor Erland. Sabia bem que, aomandá-lo para asmasmorras, estaria condenando-o àmorte, e nada z paraimpedirqueissoacontecesse.Porisso,tenhacompaixãodeGuy.Éumhomemambicioso,masnãoéperverso.

Em seguida, o Rei falou de seus planos para o Reino, pedindo que fossemretomados, embora commais consideraçãopelopovo.Faloudemuitosoutrosassuntos: da sua infância e da tristeza que sentia por nunca ter se casado.Passado algum tempo, a fala tornou-se incompreensível, até que a cabeçatombouparafrente,caindosobreoseupeito.

BrucalordenouaalgunsguardasquecuidassemdoRei.Levantaram-nocomcuidadoeo levaramparadentro.BrucaleLyamentraramna tenda,enquantoos outros nobres caram aguardando do lado de fora. Iam se juntando maisrecém-chegados,paraosquaisasnotíciaseramrelatadas.QuaseumterçodosExércitosdoReinoseencontravaemfrenteaopavilhãodecomando,ummarderostosqueseestendiapelaencostadacolina.Ninguémfalava,participandopacientementedavigíliadamorte.

Brucalfechouaabadatenda,impedindoapassagemdobrilhoavermelhadodo ocaso.Depois de examinar o Rei, o Sacerdote deDala olhou para os doisduques.

—Elenãovoltaráarecuperarossentidos,meussenhores.Ésóumaquestãodetempo.

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BrucalpegouLyampelobraço,levando-oparaumcanto.—NãodevedizernadaquandoeuoproclamarHerdeiro,Lyam—falouem

umsussurro.Lyamsoltouobraço,fitandooidosoguerreiro.—Você foi testemunha,Brucal—retorquiuemtons tambémsussurrados.

—Presencioumeupai reconhecerMartin comomeu irmão, legitimando-o.ÉeleoconDoinmaisvelho.AproclamaçãodesucessãofeitaporRodricnãotemvalidade.Partiudoprincípiodequeeueraomaisvelho!

Brucalfalouserenamente,aindaqueaspalavrasfossemríspidas:—Vocêtemumaguerraparaterminar,Lyam.Posteriormente,casoconsiga

realizar esse simples feito, terá de levar seu pai e Rodric de volta a Rillanon,para enterrá-los no túmulo de seus antepassados. A partir do dia dosepultamentodeRodric,serãocumpridosdozediasdelutoatéque,aomeio-diadodécimoterceiro,todosospretendentesàcoroairãoseapresentarperanteosSacerdotesdeIshapeperantetodoomalditoCongressodeLordes.Entreagorae esse dia, terá muito tempo para decidir o que fazer. Por ora, precisa ser oHerdeiro. Não há alternativa. Esqueceu-se de Bas-Tyra? Caso você vacile, eleentrará emRillanoncomo seu exércitoummês antesdevocê.Então terádelidarcomumaimplacávelguerracivil,meurapaz.Assimqueconcordaremsemanter de boca fechada, ordenarei às minhas tropas de con ança que sedirijamaKrondor,levandooseloreal,paradeteremGuy,oNegro.JogarãoBas-Tyra nas masmorras antes que os homens dele consigam intervir; hákrondorianos leais su cientes para se certi caremdisso. Podemantê-lo presoaté você chegar aKrondor, depois fazê-lo chegar aRillanon para a coroação,sejaasuaouadeMartin.Porémvocêprecisaagir,senão,pelosdeuses,teremosos lacaiosdeGuy incitandoàguerracivilmenosdeumdiadepoisdevocê terdeclaradoMartinolegítimoHerdeiro.Vocêentende?

Lyamconfirmouemsilênciocomumacenodecabeça.— Será que os homens de Guy permitirão que seja detido?— perguntou

comumsuspiro.—Nemmesmoocapitãodesuaguardapessoalirácontrariarumdespacho

real, especialmente se for rati cado pelos representantes do Congresso deLordes. Eumesmome encarregarei de garantir as assinaturas nesse despacho—afirmou,cerrandoamãodiantedorosto.

Lyamficoucaladoporalgumtempo,atéquedisse:

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— Tem razão. Não desejo desencadear problemas no Reino. Farei comodisse.

Os dois homens regressaram para junto do Rei e aguardaram. Passaramquase duas horas até que o sacerdote levou o ouvido ao peito do Rei,informando:

—OReimorreu.Brucal e Lyam juntaram-se ao sacerdote em uma oração silenciosa por

Rodric. Em seguida, o Duque de Yabon tirou um anel da mão de Rodric edirigiu-seaLyam:

—Venha,chegouomomento.Afastou a aba da tenda e Lyam olhou para fora. O sol já se pusera e as

estrelas cintilavam no céu noturno. A multidão parecia um oceano de luzes,poistinhamacendidofogueirasetrazidotochas.

Nem um único homem arredara pé, ainda que estivessem exaustos eesfomeadosapósavitória.

BrucaleLyamsurgiramàentradadatendaeoDuqueidosoanunciou:— O Rei morreu. —Mostrava uma expressão glacial, embora seus olhos

estivessemraiadosdevermelho.Lyamestavapálido,massemanteveereto,decabeçaerguida.

Brucalergueualgoacimadacabeça.Viu-seoclarãodaschamasvermelhasre etido no pequeno objeto quando captou a luz das tochas. Os nobres queestavammaispróximosbalançaramascabeçasaoentenderem,poisaqueleerao sinete real, usado por todos os reis conDoin desde que Delong, o Grande,zarparadeRillanonecruzaraomar,colocandooestandartedoReinodasIlhasnacostadocontinente.

BrucalpegouamãodeLyam,colocando-lheoanel.Lyamexaminouavelhajoia gasta, com a divisa gravada no rubi ainda bem visível, sem sinais dedeterioração pela passagem do tempo. Quando levantou o olhar paracontemplar a multidão, um nobre avançou. Era o Duque de Rodez, que seajoelhoudiantedeLyam.

— Alteza— disse. Um a um, todos os que se encontravam na frente datenda,nobresdoLesteedoOeste,ajoelharam-seemhomenageme,comoumaonda,todososqueestavamreunidosalitambémseajoelharam,atéLyamseroúnicoempé.

O jovemolhoupara todos, emocionadoe incapazde falar.Colocouamão

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B

noombrodeBrucalefezsinalparaquetodosseerguessem.Derepente,todaamultidãoestavaempéeexplodiramvivas:—Salve,Lyam!LongavidaaoHerdeiro!—OssoldadosdoReinobradaram

a sua aprovação em dose dupla, pois eram muitos os que sabiam que, horasantes, a ameaça de guerra civil tinha pairado sobre suas cabeças.Homens doLeste e do Oeste abraçaram-se e celebraram, pois fora evitado um terrívelfuturo.

Lyamergueuasmãose fez-se silêncio.Suavozressoouacimadasoutrasetodosouviramsuaspalavras:

— Que nenhum homem se alegre esta noite. Que os tambores sejamabafadoseastrombetastoquembaixo,poisestanoitechoramosamortedeumRei.

rucalindicouomapa.— A forti cação está cercada e todas as tentativas de invadi-la foram

rechaçadas.Conseguimosisolarquasequatromildossoldadostsurani.A noite já ia avançada. Rodric fora enterrado com as honras possíveis no

acampamento.Não tiveramos aparatos da realeza comuns a um funeral real,pois os assuntos de guerra não o permitiam. Fora embalsamado e enterradocom a armadura ao lado de Borric, em uma encosta com vista para oacampamento. Quando a guerra chegasse ao m, seriam trasladados para ostúmulosdeseusantepassadosemRillanon.

Naquele momento, o jovem Herdeiro examinava o mapa, analisando asituação à luz do último comunicado vindo da frente de batalha. Os tsuranimantinham-se rmesnaPassagemNorte,àentradadovale.Ainfantariaabriratrincheiras diante deles, retendo os que se encontravam no vale e isolandoambasasforçasaolongodorioCrydeeedoquerestavadafortificação.

—Repelimos a ofensiva do inimigo—disse Lyam—,mas é uma faca dedoisgumes.Nãopodemostentarlutaremduasfrentes.Tambémtemosdeestarpreparados casoos tsurani tentemnos atacar apartir do sul.Nãoprevejoumfimpróximo,apesardenossosavanços.

— Com certeza os que se encontram no forte não vão demorar para serender—disseBrucal.—Estãoisolados,compoucacomidaepoucaáguaenãopodemesperarquevenhamreabastecê-los.Estarãomorrendodefomedaquiapoucosdias.

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—Perdoe,LordeBrucal,masissonãoiráacontecer—interrompeuPug.—Oquepodemganharcomaresistência?Aposiçãodelesédesesperada.— Estão ocupando forças que poderiam estar atacando o acampamento

principal.Nãodevedemorar atéque a situação emTsuranuanni se resolvadealgummodo,permitindoqueosmagosregressemdaAssembleia.Entãocomidaeáguaserãotransportadasseminterferências.Alémdisso,acadadiaquepassaos tsurani saem fortalecidos, pois chegam reforços deKelewan. São tsurani epreferirãomorreraseremcapturados.

— Estão assim tão sujeitos à honra a ponto de preferirem morrer? —perguntouLyam.

— Sim, estão. Em Kelewan, sabem somente que prisioneiros se tornamescravos.Desconhecemoconceitodetrocadeprisioneiros.

— Então temos de atacar a forti cação imediatamente e com todas asnossas forças — a rmou Brucal. — Temos de esmagá-los, deixando nossossoldadoslivresparaoutrasameaças.

—Vaiserdifícil—comentouLyam.—Destavez,nãoteremosoelementosurpresadonossoladoeelesestãoentrincheiradoscomotoupeiras.Éprovávelquepercamosdoishomensparacadasoldadodoinimigo.

KulgantinhasemantidoafastadoemumcantocomLaurieeMeecham.— É uma verdadeira tragédia que tenhamos somente conseguido uma

ampliaçãodasbatalhas.TãopoucotempoapósapropostadepazdoImperador.—Talvezaindanãosejatarde—dissePug.LyamolhouparaPug.—Comoassim?Kasumijádeveterenviadoanotíciadequeapropostafoi

recusada.—Éverdade,mas talvezainda tenhamos tempode enviarumamensagem

dizendoqueserácoroadoumnovoreidispostoanegociarapaz.— Quem levará essa mensagem? — perguntou Kulgan. — Você poderá

pagarcomavidaseregressaraoImpério.—Podemosatéconseguirresolverdoisproblemasdeumasóvez.Alteza,o

senhormepermitiráprometeraostsuranisalvo-condutoatésuasfileiras?Lyamponderouopedido.—Euofarei,casomedeemasuapalavradehonradequenãoregressarão

duranteumano.—Entãoireifalarcomeles—a rmouPug.—Talvezaindaconsigamospôr

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Ofimaestaguerra,apesardascalamidadesqueseabateramsobrenós.

s guardas tsurani, nervosos e alertas, caram tensos ao ouvirem umcavaleiroseaproximar.

—Estãochegando!—gritouumdeles,elogohomenscorreramparapegarem armas, dirigindo-se às barricadas. As forti cações do sul aindapermaneciam intactas, mas ali, na extremidade oeste, sentinelas tinhamconstruídoàspressasumabarreiradeárvoresabatidasevalasrasas.

Osarqueirosseposicionaram, echasnosarcos,masainvestidaaguardadanão chegou. Avistaram uma única silhueta a cavalo. Tinha as mãos erguidasacima da cabeça, de palmas juntas indicando que pretendia negociar. Alémdisso,trajavaummantonegro.

Ocavaleiroavançoucomocavaloaté juntodabarricadaeperguntou,comumtsuraniperfeito:

—Quemestánocomando?—OComandanteWataun—respondeuumoficialsurpreso.—Quemodos são esses, Líder deAtaques?—perguntou o cavaleiro com

rispidez.Notouascorese insígniasnacouraçaenoelmodohomem.—SeráqueosChilapaningoperderamacivilidade?

Ooficialficouemsentido.— Perdão, Grande — gaguejou o homem. — É que não esperávamos o

senhor.—TragaaquioComandanteWataun.—Sejafeitaasuavontade,Grande.Pouco depois, surgiu o comandante da forti cação tsurani. Era um velho

guerreiro de pernas arqueadas e peito largo e, tratando-se ou não de umGrande, a sua preocupação principal residia no bem-estar das suas tropas.Olhoucomdesconfiançaparaomago.

—Aquiestou,Grande.—Vimaquilhedarordensparaqueregresseaovalecomseussoldados.OComandanteWataunsorriupesaroso,sacudindoacabeça.—Lamento,Grande,masnãoposso fazê-lo.Chegou-nosanotíciadesuas

façanhas e de que aAssembleia pôs emdúvida a suaposição.A esta altura, éprovávelqueosenhorjánãoseencontreàmargemdalei.Casonãotivesseseaproximadosinalizandoopedidodenegociação,jáoteriacapturado,aindaque

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Q

pudessenossairmuitocaro.Pugsentiu-se ruborizar.Sabiaque seriaprovávelqueaAssembleiaviessea

expulsá-lo,masouvi-lolhecausavasofrimento.Infelizmente,sabiaque,devidoao treino a que fora sujeito, não deixaria de experimentar um sentimento delealdadeparacomaquelelugarestrangeiroenuncairiasesentircompletamenteemcasanasuaterranatal.

Suspirando,Pugdisse:—Sendoassim,oqueiráfazer?OLíderdeForçasMilitaresencolheuosombros.—Manteraposiçãoatual.Morrer,sefornecessário.—Entãolhefaçoumaproposta,Comandante.Caberáavocêdecidirseéou

nãoumaartimanha.KasumidosShinzawailevouumapropostadaLuzdoCéuaoReimidkemiano.Tratava-sedeumapropostadepaz.OReiarejeitou,masagora será coroadoumnovo rei, que está disposto a negociar a paz. Peço-lhequeleveàCidadeSagrada,aoImperador,amensagemdequeoPríncipeLyamaceitaráapaz.Aceitafazê-lo?

Ocomandanteponderou.—Seéverdadeoquediz,seriaestúpidodesperdiçarosmeushomens.Que

garantiasestádispostoaconceder?—Dou-lheaminhapalavra, comoGrande, se éque issoainda temalgum

valor, dequedigo a verdade.Também lheprometoque será concedido salvo-conduto a seus homens para regressarem ao vale, com a promessa de quevoltarão e permanecerão no Império durante um ano. Além disso, irei até aentradadovale,atésuasfileiras,comorefém.Issobasta?

O comandante meditou por instantes enquanto passava em revista seushomensfatigadosesedentos.

—Concordo,Grande.SeavontadedaLuzdoCéuéo mdaguerra,quemsoueuparaprolongá-la?

—OsOaxatucan hámuito são conhecidos por sua valentia. Que se saibaquetambémsãodignosdehonrapelasensatezquerevelam.

Ocomandantefezumamesura,virando-sedepoisparaossoldados:—Deemoaviso.Marchamos...rumoànossaterra.

uatrodiasdepois,chegouaoacampamentoanotíciadequeo Imperadorconcordaria com a paz. Pug passara umamensagem paraWataun levar

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peloportal.TinhaoselopretodaAssembleia,eninguémiria impedirarápidaentrega. Tinha como destinatário Fumita, pedindo-lhe que levasse à CidadeSagrada amensagemde que o novoRei doReino não exigia ressarcimento equeaceitariaapaz.

LyamsemostraraemocionadoquandoPugleraamensagem.Dentrodeummês, o próprio Imperador atravessaria a fenda demodo a assinar os tratadosformaiscomoReino.Pugquasechoraraaoleraquelaspalavras,quedepressaseespalharampelo acampamento, anunciando o mda guerra.Ouviam-se vivasentusiasmados.

PugeKulganestavamsentadosnatendadomagomaisvelho.Pelaprimeiravezemanos,experimentavamumasensaçãoqueseaproximavadarelaçãoquetinham antes. Pug estava concluindo uma demorada explicação acerca dosistemadeinstruçãoanoviçosaplicadopelostsurani.

—Pug—disseKulgan ao dar uma prolongada baforada no cachimbo—,achoqueagora,como naldaguerra,poderemosregressaraonossoofíciodemagos.Noentanto,agoravocêéomestreeeu,oestudante.

—Temosmuitoaaprenderumcomooutro,Kulgan.Porémreceioquesejadifícilperdervelhoshábitos.Nãocreioqueconseguiriamehabituarà ideiadevocêserestudante.Alémdisso,sãomuitasascoisasqueconseguerealizarequeeuaindanãoconsigo.

Kulganficouadmirado.— Verdade? Achei que as minhas simples artes estavam abaixo da sua

grandeza.PugvoltouasentiroembaraçodostemposemqueforaaprendizdeKulgan.—Continuafazendopoucodemim.Kulganriu.—Sóumpouco,rapaz.Evocêcontinuaaserumrapaz, tendoemcontaa

minha idadeavançada.Nãoé fácilverumaprendizdesinteressadose tornaromagomaispoderosodeoutromundo.

—Creio que desinteressado é a palavra correta.A princípio, só queria sersoldado.Achoquevocêsabiadisso.Foiquandodecidi, nalmente,mededicaraosestudosqueainvasãoteveinício.—Pugsorriu.—Creioquetevepenademim, naquele dia em que quei sozinho diante da corte do Duque, o únicomeninoquenãofoichamado.

— Em parte, é verdade, embora eu tivesse sido o primeiro a pressentir o

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poder que você tinha. Esse juízo foi corroborado, independentemente dosextraordináriosacontecimentosqueforamnecessáriosparaqueoseutalentosetornasserealidade.

Pugsuspirou.— Bem, a Assembleia émuito completa na educação que dá. Logo que o

poder é detectado, só existem duas opções: sucesso ou morte. Uma vez quetodos os outros pensamentos são banidos, poucas preocupações restam aoestudantealémdoestudodamagia.Semisso,duvidoquetivessealcançadoestepatamar.

—Não acho— disse Kulgan.— Se os tsurani nunca tivessem aparecido,vocêaindateriaumgrandiosocaminho.

Ficaramalisentados,consoladospelapresençaumdooutro.Passadopoucotempo,acenderamofogo,poisaescuridãoestavachegando.Katalaespreitouàentradadatendacomintençãodeperguntaraomaridoseiriasejuntaraelaeao lhonobanquetedecomemoraçãodadopeloReiLyam.Olhouparadentroeviuqueestavamambosabsortosconversando.

Recuoue,esboçandoumsorriso,regressouparajuntodofilho.

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T

13

Desilusões

omasacordousobressaltado.Na escuridão que antecedia a aurora, sentiu algo estranho. Sentou-se,comtodosossentidosalertas,tentandoentenderoqueodespertara.

Ao seu lado, Aglaranna se mexeu. Desde que voltara do confronto comMartin por causa dos prisioneiros tsurani, ele cou livre de seus sonhosestranhoseataquescegosderaiva.JánãoeraogarotodeCrydee,nemoantigoSenhor dos Dragões, era agora um novo ser que possuía características deambos.

Eladespertoueestendeuamãodevagaratétocá-lonoombro.Osmúsculosestavam relaxados, livres da tensão que assinalava a sua luta com os antigossonhos.Respiroufundoeperguntou:

—Tomas,oquesepassa?Elecobriuamãodelacomasua.—Nãosei.Sentialgoestranhoagorahápouco.—Sentou-secomacabeça

ligeiramente inclinada, como se estivesse escutando algo ao longe. — Umaalteração...umamudançanopadrãodascoisas,talvez.

A Rainha dos Elfos não disse nada. Desde que se tornara sua amante, seacostumara àquela inquietante capacidade de pressentir acontecimentos emoutroslugares,umacapacidadesemigual,mesmoentreosmelhoresdosvelhosTecedoresdeFeitiços.Vestígiodaherançavalheru,aquelaconsciênciaganharaplenitudedesdequerecuperaraahumanidade.Consideravaestranho,embora,de certa forma, tranquilizador, que os poderes valheru de Tomas só tivessemcadomaismarcantese intensosdepoisde ter recuperadoahumanidade.Eracomo se alguma força tivesse conspirado paramantê-los contidos até Tomaspossuirasensatezparausá-los.

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L

Tomasdesistiudetentarouvir.—Temorigemaleste,umamisturadejúbilocomgrandetristeza.—Avoz

pareciacarregadadeemoção.—Éumaeraqueacaba.Roloudocatree levantou-se,a luzfracarevelandomúsculospoderososaos

olhosél cosdeAglaranna.Ficouàportadosaposentosdeambos,olhandoparaalémdeElvandar,escutandoossonsdanoite.Tudopareciatranquilo.

O odor da oresta, carregado, adocicado e inebriante, tinha vestígios dearomasdaceiadanoiteanterioredocheirodepãofrescosaindodofornoparaa refeição daquela manhã. Os pássaros notívagos cantarolavam, enquanto ospássaros diurnos davam início aos chilreios que antecediam a aurora; o sol sepreparavaparanascerno leste.Tomassentiao toquedoar fresconapelenuacomo uma carícia, uma sensação de estar completo e tranquilo como nuncaantesemsuajovemvida.

Os braços de Aglaranna lhe envolveram a cintura e ele sentiu o abraço,apertadoapontodeperceberasbatidasdeseucoração.

—Meusenhor,meuamor—disseela—,volteparanossacama.Virou-senocírculodeseusbraços,sentindoocalordocorpo.—Sinto algo...—Abraçou-a com força, aindaque comcarinho.—Éum

sentimentodeesperança.Aglarannapodia sentiro calorqueemanavadelequando seudesejo reagiu

aodela.—Esperança.Quemderafosseverdade.Tomasolhouparao rostodaRainha,os sentidos tãovivosquantoosdela,

deleitando-secomavisão.—Nuncapercaaesperança,minhaRainha.Beijou-a intensamente e o quequer queo tivessedespertado foi esquecido

depressa.

yamestavasentadoemsuatenda,emsilêncio.Redigiaumamissivaqueiriaenviar para Crydee quando um guarda entrou, anunciando a chegada de

PugeKulgan.Lyamlevantou-separacumprimentá-lose,quandooguardasaiu,fezsinalparaquesesentassem:

— Precisomuito da sabedoria de vocês.— Recostou-se e acenou para ospergaminhosàsuafrente.—SequeremosqueAruthachegueanósatempodaconferência de paz, estasmissivas deverão sair hoje daqui. Porém nunca tive

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grande aptidão para cartas e, confesso, estou com grandes di culdades emsepararosacontecimentosdasemanapassada.

—Posso?—perguntouKulgan,apontandoparaacarta.Lyamacenoudandoconsentimentoeomagopegouopergaminhoeleu:—“Paraosmeusestimadosirmãoeirmã:écomprofundatristezaquelhes

comunico amorte de nosso pai. Ele foi feridomortalmente durante a grandeinvestidatsurani, liderandoumcontra-ataquecomointuitodesalvarsoldadoscercados,sobretudomontanhesesHadatiqueauxiliavamaguarniçãodeYabon.OsHadati louvamoseunomeecriamsagasemsuahonra, tamanha foiasuavalentia. Faleceu com o pensamento nos lhos e o seu amor por todos nósnuncaesmoreceu.OReitambémfaleceuecoubeamimaliderançadenossosexércitos. Arutha, gostaria de tê-lo a meu lado, visto que estamos perto dotérmino da guerra. O Imperador está disposto a negociar a paz. Iremos nosreunirnovaleaonortedasTorresCinzentasdaquiavinteenovedias,aomeio-dia.Carline,peçoqueembarquecomAnita rumoaKrondor,poishámuitoaser feito lá e a PrincesaAlicia precisa da lha.Arutha e eunos juntaremos avocêsassimqueapazseconcretizar.Comamor,partilhandoasuatristeza,seuirmãodedicado,Lyam.”

KulganficoucaladoatéLyamdizer:— Achei que você pudesse acrescentar uma coisa aqui e ali, para lhe

conferirelegância.— Creio que comunicou o falecimento de seu pai com simplicidade e

suavidade—disseKulgan.—Éumaexcelentemissiva.Lyamsemexeu,desconfortávelnacadeira.—Aindafaltaescrevermuitacoisa.NãofaleisobreMartin.Kulganpegouumapena.—Voucopiá-la,poissualetraestáumpoucoespremida,Lyam.—Comum

sorriso afetuoso, acrescentou: — Você sempre preferiu a espada à pena.Acrescentareialgumasinstruçõesno nal,solicitandoaMartinqueacompanhesua irmã aKrondor.Gardan e Fannon tambémdeverão acompanhá-los. Bemcomoumacompanhiadehonradaguarniçãodo castelo.Assim,pareceráquedesejahonraraquelesquetãobemserviramCrydee.Destaforma,terábastantetempoparadecidirqualomelhormododecontaraMartinoqueprecisa.

Pugsacudiuacabeçacomtristeza.—Quemdera vocêpudesse acrescentar onomedeRoland a essa lista.—

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Depoisquechegaraaoacampamento,forainformadodamortedoEscudeirodeTulan.Kulgan lhecontara tudooque sabiaa respeitodosacontecimentosemCrydeeeemoutros lugares,ao longodosúltimosanos,envolvendoosantigosamigosdePug.

—Quecabeçaaminha!—exclamouLyam.—Carlinenãofazideiadeseuregresso,Pug.Precisaacrescentaressefato,Kulgan.

—Esperoquenãosejaumgrandechoque—dissePug.Kulganriu.—Nãotantoquantodescobrirquevocêtemesposaeumfilho.MemóriasdesuaadolescênciaedesuarelaçãotempestuosacomaPrincesa

voltaram,fazendocomquePugdissesse:—Esperoquetambémtenhaabandonadoalgumasdasideiasqueacalentava

hánoveanos.Lyam riu pela primeira vez desde amorte do pai, genuinamente divertido

pelodesconfortodePug.—Relaxe,Pug.Faleimuitas vezes commeu irmão eminha irmãao longo

dosanosecreioqueCarlineéumajovemmuitodiferentedameninaquevocêconheceu.Tinhaquinzeanosdaúltimavezqueaviu.Penseemsuasprópriasmudançasnosúltimosnoveanos.

Pugbalançouacabeça.Kulgan terminou o trabalho, passando o documento a Lyam, que o leu e

disse:—Agradeço-lhe,Kulgan.Acrescentouadosecertadeamabilidade.AabadatendaseergueueBrucalentrou,orostovelhoeenrugadocheiode

contentamento.—Bas-Tyrafugiu!—Como?—perguntouLyam.—Osnossos soldadosaindadevemestar a

umasemanaoumaisdeKrondor.OvelhoDuquesentou-sepesadamenteemumacadeira.—Encontramosumagaioladepombos-correiosescondida,pertencentesao

falecidoRicharddeSalador.UmdeseushomensenviouumamensagemaGuyinformando-o da morte de Rodric e de sua nomeação como Herdeiro.Interrogamosessesujeito,umcriadoparticulardeRichard.AdmitiuserumdosespiõesdeBas-TyranacortedeRichard.Guyescapoudacidade,achandoqueumdeseusprimeirosatoscomoReiseriamandarenforcá-lo.Meupalpiteéque

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irádiretamenteparaRillanon.—PoiseuachoqueesseseriaoúltimolugardeMidkemiaondeeledesejaria

estar—observouKulgan.—Digamoquequiserem,masGuy,oNegro,nãoénadatolo.Permaneceránaclandestinidade,nãoduvido,masvoltaremosaveramãodele antes de tudo isso acabar.Até a coroa assentar na cabeça de Lyam,GuyaindapossuiráumpoderimensonoReino.

Lyam pareceu inquieto ao ouvir o último comentário, lembrando-se dadeclaraçãodopai às portasdamorte.Desde a advertênciadeBrucal paraquenão citasse Martin, todos mencionavam somente a coroação de Lyam, semreferênciasàpossívelpretensãoàcoroaporpartedeMartin.

LyamtentouafastaraquelespensamentosenquantoBrucalprosseguia:—Aindaassim,comBas-Tyraescondido,grandepartedenossosproblemas

se resolveram. Com a guerra perto do m, podemos regressar à questão dereconstruiroReino.Quantoamim,estoucontente.Estou candomuitovelhoparatodaessabobagemdeguerraepolítica.Lamentoapenasnãoterum lhoparapoderrenunciaremseufavoremeafastar.

LyamolhouatentamenteparaBrucalcomumadescrençaafetuosa.—Jamais se submeteria espontaneamente,velhoguerreiro. Iráparao leito

demortearranhandoegolpeando,eissodaquiamuitosanos.—Quemfalouemmorrer?—resfolegouBrucal.—Oqueeuqueroécaçar

com os meus cães e soltar os meus falcões, e também ir pescar, de vez emquando. Quem sabe? Pode até ser que encontre uma graciosa camponesaenérgica o su ciente parame aturar, queme case de novo e ainda tenha umlho.SeaqueletontodoVandrostiverinteligênciasu cienteparacasarcomaminhaFelinah,verãoquenãodemoraráasetornarDuquedeYabonquandoeumeafastar.Porqueelaaindaesperaporeleéumaincógnita.—Levantou-sedacadeira.—Vou tomarumbanhoquente e dormir umpouco antes do jantar.Comasualicença.

Lyamfezsinalpermitindoqueseretirassee,quandoBrucalsaiu,disse:—Nuncaconseguireimehabituaràspessoaspedindominhapermissãopara

irevir.PugeKulganselevantaramdesuascadeiras.— É melhor se habituar, pois de agora em diante todos o farão— disse

Kulgan.—Comasuapermissão...?Simulandoaversão,Lyamfezsinalparaquesaíssem.

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Oconselho estava reunido em assembleia eAglaranna tomou seu lugarnotrono.Alémdosconselheiroshabituais,MartindoArcoestavapresente,

ao lado de Tomas. Quando todos tinham ocupado seus lugares, Aglarannaanunciou:

— Você pediu a reunião do conselho, Tathar. Diga o que traz à nossapresença.

TatharfezumamesurademoradadiantedaRainha.— Nós, membros do conselho, julgamos que chegou a hora de um

consenso.—Sobreoquê,Tathar?—perguntouaRainhadosElfos.Tatharrespondeu:—Hámuitoquenosesforçamosparadarum nalpací coeseguroaesta

questãodoTomas—respondeuTathar.—Édo conhecimentode todos aquipresentes que as nossas artes foram usadas para acalmar a fúria interior,atenuando o poderio do valheru, para que o jovem transformado não cassesobrecarregadocomopassardotempo.

FezumapausaeMartinseaproximoudeTomas,sussurrando:—Problemas.Tomasosurpreendeucomumsorrisosutil,piscandooolho.Umavezmais,

Martin sentiu alguma tranquilidade ao perceber que o divertido garoto queconhecera em Crydee estava tão presente naquele jovem homem quanto oSenhordosDragões.

—Vaificartudobem—sussurrouTomas.—Chegamosàconclusão—prosseguiuTathar—dequeesteassuntoestá

encerrado,poisjánãotememosTomascomoumAntigo.—Semdúvidasãoboasnotícias—disseAglaranna.—Porémissoémotivo

paraconvocaroconselho?—Não, senhora.Hámais um assunto que temos que dar por terminado.

Pois, embora não tenhamos mais medo de Tomas, ainda assim não nossujeitaremosaoseucomando.

Aglarannalevantou-se,claramenteultrajada.—Quemousasuporqueassimserá?Ouviramalgumapalavrasugerindoque

Tomasprocuragovernar?Tatharmanteve-sefirmeperanteodesagradodaRainha:—Minha senhora, a sua perspectiva é a de quem ama.— Antes que ela

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conseguisseretorquir, levantouamão.—Nãomedirijapalavrasríspidas, lhademeumelhor amigo;não estou julgandoninguém.O fatodepartilhar a suacamacomelenãodizrespeitoaninguém,anãoseravocêsdois.Nãolevamosamal. Contudo, ele agora temmeios para fazer uma reivindicação e queremosresolveroassuntosemmaisdemora.

AglarannaempalideceueTomasavançou.—Doqueestáfalando?—perguntou,comvozautoritária.Tatharpareceuumpoucosurpreso.—Elacarregaoseufilhonoventre.Nãosabia?Tomas cou sem palavras. Dentro dele, uíram sentimentos em con ito.

Umfilho!Aindanãotinhasidoinformado.OlhouparaTathar.—Comosabe?Tatharsorriu,semomenorvestígiodezombaria.—Souvelho,Tomas.Seiverossinais.TomasolhouparaAglaranna.—Éverdade?Elaconfirmoucomumacenodecabeça.—Sóirialhecontarquandojánãofossepossívelocultaraverdade.Elesentiuumapontadadeincerteza.—Porquê?— Para lhe poupar preocupações. Até o término da guerra, não pode se

preocuparcommaisnada.Eraminhaintençãonãoosobrecarregarcomoutrospensamentos.

Tomas cou calado por um instante, até que lançou a cabeça para trás edesatouagargalhar,produzindoumsomlímpidoealegre.

—Umfilho.Louvadossejamosdeuses!TatharolhouparaTomas,pensativo.—Vocêreivindicaotrono?—Sim,reivindico,Tathar—respondeuTomas,sorrindo.—Asucessãocabeamim,Tomas—disseCalin,pelaprimeiravez.—Terá

dedisputá-lacomigo.TomassorriuparaoPríncipe.—Nãoerguereiaespadacontravocê,filhodeminhaamada.—SepretendesernossoRei,terádefazê-lo.Tomasaproximou-sedeCalin.Nuncaexistiraafetoentreambos,pois,mais

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do que qualquer outro, Calin sempre temera a ameaça potencial que Tomasrepresentava para o seu povo e estava agora preparado para lutar, se fossenecessário.

TomascolocouamãonoombrodeCalineoolhounosolhos.—VocêéoHerdeiro.NãoestoufalandodemetornarseuRei.—Afastou-

se,dirigindo-seaoconselho:—Soucomomeapresentodiantedevocês,umserde dois legados. Em mim, possuo o poder dos valheru, ainda que deles nãotenhanascido.Minhamente se recorda de eras que hámuito não passamdepó.Contudo,possuoasmemóriasdeumgarotoeconsigo,umavezmais,sentiraalegriaderiredotoquedeumaamante.—OlhouparaaRainhadosElfos.—Reclamo,somente,odireitodemesentaraoladodaminhaRainha,comasuabênção, como seu consorte. Receberei unicamente os poderes que meconferirem,querdapartedela,querdesuaparte,nadamais.Casodecidamnãome atribuir qualquer poder, permanecerei ao seu lado. — Em seguida,acrescentoucom rmeza:—Porémnãocedereinesteponto:olegadodonossofilhonãosofreráqualquermáculadevidoaumnascimentodesafortunado.

Ouviu-se um murmúrio geral de aprovação e Tomas virou-se paraAglaranna:

—Casomeaceitecomomarido—disse,noantigoidiomadoselfos.OsolhosdeAglarannacintilavam.OlhouparaTathar.—Aceito.Háalguémaquipresentequemenegueessedireito?Tathar olhou para os outros conselheiros. Não percebendo qualquer

divergência,disse:—Temanossapermissão,senhora.Desúbito,ouviram-segritosdeaprovaçãodoselfosreunidosenãodemorou

para que outros se aproximassem para indagar a incomum demonstração deatividade no conselho. Em seguida, juntaram-se aos festejos, pois todosconheciamoamorqueaRainhanutriapeloguerreirodebrancoedouradoeoconsideravamumconsorteadequado.

—Suasatitudessãosensatas,Tomas—disseCalin.—Casotivesseagidodemododiferente,haveriaconfrontosoupermaneceriamdúvidas.Agradeçoasuaprudência.

Tomasapertouamãodelecomforça.—É justo,Calin.Asuapretensãoestáalémdequalquerdúvida.Quandoa

sua Rainha e eu zermos a viagem para as Ilhas Abençoadas, o nosso lho

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permanecerásendoseusúditoleal.AglarannaveioparajuntodeTomaseMartinjuntou-seaeles.—Felicidadesparaasuavida.—TomasabraçouoamigoeaRainhaseguiu-

lheoexemplo.Calinpediusilêncio.Quandoobarulhodiminuiu,disse:— Chegou a hora de falarmos sem subterfúgios. Que todos saibam que

aquiloqueháanoséfatoconsumadoéreconhecidoagorapublicamente.TomaséComandanteMilitar deElvandar ePríncipeConsortedaRainha.Todos lhedevemobediência,salvoaRainha.Eu,Calin,assimafirmei.

— Eu também atesto a veracidade dessa a rmação — ecoou Tathar. Oconselhocurvou-sediantedaRainhaedeseufuturomarido.

—FaçobememdeixarElvandarnomomentoemquea felicidade retorna—disseMartin.

—Vaipartir?—perguntouAglaranna.—Infelizmente,épreciso.AguerracontinuaeaindasouMestredeCaçade

Crydee.Alémdisso—disse,sorrindodeorelhaaorelha—,receioqueojovemGarret esteja se habituando ao repouso e a desfrutar de sua generosidade.Tenhodecolocá-loacaminhoantesqueengorde.

—Ficaráparaassistiraocasamento?—perguntouTomas.QuandoMartincomeçouasedesculpar,Aglarannacontrapôs:—Acerimôniapoderáocorreramanhã.Martincedeu.—Maisumdia?Comtodoogosto.Ouviu-se outro grito e Tomas viu Dolgan abrir caminho na multidão.

Quandoolíderdosanõeschegoujuntodeles,explicou:— Não fomos convidados para o conselho, mas, quando ouvimos gritos,

viemos.—Atrásdele,TomaseAglarannaviramoutrosanõesseaproximando.TomascolocouamãonoombrodeDolgan.—Velhocompanheiro,vocêébem-vindo.Chegouduranteumacelebração.

Haveráumcasamento.Dolganosolhoucomumsorrisodecumplicidade.—Sim,ejánãoerasemtempo.

cavaleiro incitouseucavalo,ultrapassandoas leirasde soldados tsurani.Aindasentiaalgumdesconfortoaovertantosavançaremparao lesteeo

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inimigo recente cou vendo-o passar com expressões cautelosas enquantoseguiarumoaElvandar.

Laurie parou o cavalo junto a um grande a oramento de rochas onde umo cial tsurani de armadura branca e laranja supervisionava a passagem dossoldados.Pelaplumaeas insígniasdeo cial, tratava-sedeumLíderdeForçasMilitares,rodeadopeloseuquadrodeLíderesdeAtaqueseLíderesdePatrulha.Dirigiu-seaoLíderdeForçasMilitares:

—Ondeficaovaumaispróximo?OsoutrosoficiaisfitaramLauriecomdesconfiança;noentanto,casooLíder

de Forças Militares tivesse cado surpreso com o domínio quase perfeito doidioma tsurani pelo estrangeiro, não o demonstrou. Inclinou a cabeça para olocaldeondeosseushomensvinhamedisse:

—Ficapertodaqui.Amenosdeumahorademarcha.Maisdepressanoseuanimal, sem dúvida. Está marcado por duas grandes árvores de cada lado deumaclareira,acimadeumlugarondeháumapequenaquedad’água.

Laurie não teve di culdades em identi car as cores da casa que o homemvestia,poiseraumadasCincoGrandesFamílias,edisse:

—Obrigado,LíderdeForçasMilitares.Honrasejafeitaàsuacasa, lhodosMinwanabi.

OLíderdeForçasMilitares se endireitou.Não sabiaquemerao cavaleiro,maseracortêseessacortesiatinhadeserretribuída.

—Honrasejafeitaàsuacasa,desconhecido.Laurie passou pelos desanimados soldados tsurani que se arrastavam ao

longo das margens do rio. Encontrou a clareira acima da pequena cascata eentrou na água. Naquele local a corrente era forte, mas o cavalo conseguiuatravessá-la sem incidentes. O menestrel sentia o borrifo da queda d’águaquandoo vento soprava em suadireção.Erauma sensação refrescantedepoisdaviagemnocalor.Montaraantesdoraiardodiaesópoderiapararapósocairdanoite.QuandojáestivessenasproximidadesdeElvandarefosseinterceptadopor sentinelas dos elfos. Certamente estariam observando com interesse aretiradadostsurani,eumdelespoderialevá-loatéaRainha.

Laurie se oferecera para levar a missiva, pois julgava que o mensageirocorreriamenos perigo se falasse tsurani.Durante a viagem, fora interceptadotrêsvezes,esclarecendoao ciaisdescon adosparaondesedirigia.Astréguaspoderiamestaremvigor,masaconfiançaaindaerapouca.

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Quandopassouorio,Lauriedesmontou,poisocavaloestavaexausto.Levouo animal para se refrescar. Retirou a sela do dorso damontaria e penteava-ocomuma escova que trouxera no alforje quando viu alguém sair domeio dasárvores.Laurieseassustou,poisnãose tratavadeumelfo.Eraumhomemdecabelo escuro, grisalhonas têmporas, vestido comuma túnicamarrome comumcajadonamão.Aproximou-sedomenestrel,sempressa;pareciaàvontade.

—Bonsolhosovejam,LauriedeTyr-Sog.O homem revelava modos estranhos e Laurie não se recordava de tê-lo

encontradoemoutraocasião.—Euoconheço?—Não,maseuseiquemvocêé,trovador.Laurie se aproximou da sela, onde estava a espada. O homem sorriu,

agitando amão no ar. Subitamente, Laurie sentiu-semuito calmo e parou deavançar para a espada. Quem quer que fosse aquele homem, era obviamenteinofensivo,pensou.

—Oqueotrazàflorestadoselfos,Laurie?Semperceberporquê,Laurierespondeu:—TragomensagensparaaRainhadosElfos.—Oquevocêtemadizer?—QueLyaméagoraoHerdeiroequeapazfoirestaurada.Eleconvidaos

elfoseosanõesparaqueviajematéovaledaquiatrêssemanas,poisseráláqueapazseráassinada.

Ohomemacenouacabeça.—Compreendo.VouagoraaoencontrodaRainha.Transmitireiorecado.

Vocêdeveteralgomaisinteressantecomqueocuparotempo.Laurieestavaprestesaprotestar,massedeteve.Ohomemdeuumarisada.—Esedescansasseaquiestanoite?Osomdaáguaacalmaenãoéprovável

quechova.Amanhã,regresseaoPríncipeelhedigaquelevouasuamensagemaElvandar.FaloucomaRainhaecomTomas,eambosaceitaramosdesejosdoPríncipe.OsanõesdaMontanhadePedra tambémserão informados.Depois,digaaLyamqueoselfoseosanõesestarãopresentes.Queelefiquedescansado,poistodoscomparecerão.

Laurie fezumacenocomacabeça.Oqueohomemdizia fazia sentido.Oestranhovirou-separapartir,dizendoemseguida:

—Apropósito,émelhornãomencionaronossoencontro.

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Laurie nadadisse, aceitandoo que lhe fora transmitidopelo desconhecidosem levantar objeções.Quando o homem partiu, sentiu um grande alívio porestarvoltandodeElvandareportertransmitidoamensagem.

cerimôniateve lugaremumaclareiratranquila,ondeAglarannaeTomastrocaramvotosdiantedeTathar.Nãohaviamaisninguémpresente,como

eracostumeentreoselfosquandotrocavamvotosdeamor.Tatharinvocouasbênçãosdosdeuseseos instruiunosdeveresquetinhamumcomooutro.Nofinaldacerimônia,disse:

— Agora, retornem a Elvandar, pois é tempo de festejar e celebrar.Trouxeramalegriaaoseupovo,minhaRainhaemeuPríncipe.

Levantaram-sedaposiçãodejoelhosesebeijaram.Tomasrecuou,dizendo:—Recordareiparasempreestedia,minhaamada.—Virou-seecolocouas

mãos em concha ao redor da boca. No idioma antigo dos elfos, gritou: —Belegroch!Belegroch!Venhaanós.

Ouviu-se o som de cascos batendo na terra. Uma pequena manada decavalos brancos entrou velozmente na clareira, se dirigiu a eles e todos seempinaram em saudação à Rainha dos Elfos e ao seu consorte. Tomas saltouparaagarupadeumdeles.OgaranhãoélficoficouquietoeTathardisse:

—Nãopoderiaterdemonstradomelhorqueagoraéumdenós.Aglaranna e Tathar montaram e zeram o caminho de volta a Elvandar.

Quandoforamavistadosdacidadedasárvores,irromperamgritosdealegriadoselfos reunidos. Como Tathar dissera, a visão da Rainha e de seu PríncipeConsorte montados nos garanhões él cos con rmava o lugar de Tomas emElvandar.

OsfestejosseprolongaramdurantehoraseTomasnotouqueaalegriaquesentiaerapartilhadaportodos.Aglarannaestavasentadaaoseulado,poisforacolocado um segundo trono no espaço do conselho, em reconhecimento daposiçãodeTomas.Todososelfosquenãoestivessemvigiandoosseresdooutromundo passavam diante dos dois, jurando lealdade e oferecendo bênçãos àunião.Osanõestambémvieramdarosparabéns,juntando-seàsfestividadesdecorpo e alma e inundando as clareiras de Elvandar com as suas ruidosascantorias.

Acelebraçãoprosseguiuatéaltashorasdanoite.De repende,Tomas coutenso.Pareceusentirumventogelado.Aglarannaagarrou-lheobraço,sentindo

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quealgodeerradoestavaacontecendo.—Marido,oquefoi?Tomasolhouparaovazio.—Algo...estranho...comonaoutranoite:esperançoso,porémtriste.Subitamente,ouviramumgritodaorlada clareira abaixodeElvandar,que

se sobrepôs aos ruídos da celebração, mas que não conseguiram entender.Tomas levantou-se, com Aglaranna ao seu lado, indo até a beira da grandeplataforma.Olhandoparabaixo,viuumbatedorelfonochão,claramentesemfôlego.

—Oquesepassa?—gritouTomas.—Meusenhor—ouviu-searesposta—,osseresdooutromundo:estãose

retirando.Tomas cou paralisado. Aquelas simples palavras o atingiram como um

soco.Nãoconseguiaentenderoque zeraostsuranipartiremapóstantosanosdeguerra.Afastouaquelasensação.

—Comquefinalidade?Estãosereunindo?Obatedorsacudiuacabeça.— Não, meu senhor, não estão se preparando. Deslocam-se sem pressa,

sem agitação. Os soldados parecem desanimados. Estão levantando osacampamentos ao longodo rioCrydee e rumampara leste.—O rosto viradopara cimadoguardamostravauma expressãode entendimento atônito, aindaque alegre.Olhou para quem estava ali perto e, com um sorriso, se limitou aconstatar:—Estãoindoembora.

Irrompeu um incrível clamor de júbilo, levando muitos às lágrimas, poispareciaque,por m,aguerraacabara.Tomasseviroueviu lágrimasnorostodaesposa.Elaoabraçoueassim caramporalgunsmomentos.Passadoalgumtempo,onovoPríncipeConsortedeElvandardisseaCalin,queseencontravaaliperto:

—Enviebatedoresparaqueossigam.Podesetratardeumaartimanha.—Achamesmoqueé,Tomas?—perguntouAglaranna.Elesacudiuacabeça.— Desejo apenas me certi car, mas algo dentro de mim me diz que

terminoumesmo.Oquesentifoiaesperançapelapazmisturadacomatristezada derrota. — A Rainha tocou-lhe a face e ele prosseguiu: — Vou enviarmensageiros ao acampamento do Reino para que Lorde Borric possa nos

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esclareceroqueestáacontecendo.—Emcasodepaz,elenosenviaráumamissiva—disseAglaranna.Tomasolhouparaela.—Temrazão.Sendoassim,aguardemos.—Olhouparao rostodela, com

séculos de idade,mas ainda pleno da beleza de umamulher em seu auge.—Estediaseráduplamenterelembradocomoumdiadecelebração.

omas e Aglaranna não caram surpresos quando Macros chegou aElvandar, pois tinham deixado de se admirar com o mago desde a sua

primeiravisita.Semcerimônia,elesurgiudasárvoresquerodeavamaclareira,atravessando-aatéacidadenasárvores.

Toda a corte estava reunida, incluindo Martin do Arco, quando MacrosparoudiantedaRainhaedeTomas.Fezumamesuraedisse:

—Saudaçõesàsenhoraeaoseuconsorte.— Bem-vindo, Macros, o Negro — disse a Rainha. — Veio esclarecer o

mistériodaretiradadosseresdooutromundo?Macrosseapoiounocajadoeacenouafirmativamentecomacabeça.— Trago novidades. — Pareceu ponderar cuidadosamente as palavras. —

FiquemsabendoquetantooReiquantooLordedeCrydeemorreram.LyaméagoraoHerdeiro.

TomasprestouatençãoemMartin.OrostodoMestredeCaça coulívido.As feiçõespermaneceram impassíveis,masTomaspercebeu claramentequeoamigoficaraabaladocomasnotícias.TomassevirouparaMacros:

—Não conheci o Rei, mas o Duque era um excelente homem. Lamentoouvirtaisnotícias.

Macros se aproximou de Martin, que observou o feiticeiro, pois, emboraainda não o conhecesse, já ouvira falar dele, visto que Arutha lhe contara oencontrona ilha eTomas relatara a intervenção que zera durante a invasãotsuraniaElvandar.

— Você, Martin do Arco, deverá partir de imediato para Crydee. De lá,embarcarácomasPrincesasCarlineeAnitarumoaKrondor.—Martinestavaprestes a falarquandoMacros ergueuamão;osque se encontravamna corteparecerampararparaganhar fôlego.Quase sussurrando,Macrosdisse:—Porm, seupai pronunciouo seunome comamor.—Deixou cair amão e tudoficoucomoestavaantes.

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Martin não se sentiu agitado, experimentando uma sensação de confortocom as palavras do mago; sabia que mais ninguém percebera a sucintaobservação.

— Ouçam agora outras boas notícias — prosseguiu Macros. — A guerraterminou.LyameIchindarvãoseencontrardaquiavintediasparaassinaremotratadodepaz.

Ouviram-se vivas na corte e os que se encontravam no topo gritaram asnotícias aos que se encontravam mais abaixo. Não tardou para que toda aoresta dos elfos ecoasse com sons de júbilo. Dolgan voltou a entrar noconselho,esfregandoosolhos.

—Oquesepassaaqui?Outracelebraçãosemanossapresençaenquantoeucochilava?Assim,vouacabarachandoquejánãosomosbem-vindos.

Tomasriu.—Nãoénadadisso,Dolgan.Vábuscarseus irmãose juntem-seanósnas

celebrações.Aguerraterminou.Dolgan pegou o cachimbo, jogando fora o resto de tabaco queimado que

haviaalieempurrando-ocomopépelabeiradadaplataforma.— Até que en m — disse, abrindo a bolsa. Virou-se, como se estivesse

ocupadoenchendoocachimbo,eTomas ngiunãorepararnorostomolhadodolíderdosanões.

ruthaestavasentadono tronodopai, sozinhonograndesalão.Tinhanamãoacartadoirmão,quejáleradiversasvezes,tentandoentenderqueo

pai,defato,partira.Atristezaseabaterasobreele.Carline receberabemasnotícias.Quispermanecerno jardim tranquilo ao

ladodatorre,sozinhacomseuspensamentos.NacabeçadeArutha,ospensamentosestavamdescontrolados.Recordou-se

da primeira vez que o pai o levara para caçar, depois se lembrou de outraocasião quando regressara da caça comMartin do Arco e como, estufado deorgulho, escutara a exclamação do pai ao ver o grande gamo que trouxera.Lembrava-sevagamenteda tristezaquandosouberadamortedamãe,maseraum acontecimento distante, embaçado pelo tempo. De repente, surgiu-lhe aimagemdopaienfurecidonopaláciodoReieAruthasuspiroudemoradamente.

—Pelomenos—disseparasipróprio—,grandepartedoquevocêdesejouveioaacontecer.RodricfaleceueGuycaiuemdesgraça.

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—Arutha?—chamouumavozdooutroladodosalão.Aruthalevantouoolhar:Anitasurgiudassombrasdaportaeseuschinelos

decetimnãofaziambarulhoaoatravessarochãodepedradasala.Perdidoempensamentos,oPríncipenãonotaraqueelaentrara.Traziauma

pequenavela,poisocairdanoitedeixaraosalãoenvoltoemescuridão.—Ospajensnãoqueriamincomodá-lo,maseujánãoaguentavavê-loaqui

sentadoesozinhonoescuro—disseela.Aruthasentiu-sesatisfeitoealiviadopor ela ter aparecido. Uma jovem de bom senso incomum e de modoscarinhosos,Anitaforaaprimeirapessoaqueenxergaraporbaixodaaparênciacalma e do humormordaz deArutha.Mais do que aqueles que o conheciamdesdepequeno,elacompreendiaseusestadosdeespíritoeconseguiaaliviá-los,sabendoaspalavrascertasqueoconsolavam.—Jáseidasnotícias,Arutha—dissesemesperarresposta.—Sintomuitíssimo.

Aruthasorriu.—Ainda não superou o pesar pelo falecimento de seu pai e já partilha o

meu.Vocêémuitobondosa.AnotíciadamortedeErlandchegaraumasemanaantesemumnaviovindo

de Krondor. Anita sacudiu a cabeça, fazendo o seu macio cabelo ruivo sedeslocarcomoumaondaaoredordorosto.

—Meupai estavadoentehámuitos anos.Preparou-nospara a suamorte.Nãorestavamgrandesdúvidasquandoolevaramparaasmasmorras.EuestavacientedissoquandopartideKrondor.

—Aindaassim,demonstraforça.Esperosuportartãobemquantovocê.Hátantoafazer.

—Acho que ambos irão governar com sensatez— ela falou serenamente—,LyamemRillanonevocêemKrondor.

—Eu?EmKrondor?Tenhoevitadopensarnisso.Ela se sentouao ladodele,no tronoqueCarlineocupavaquando cavaao

ladodopaina corte. Estendeu amão, pousando-a sobre amãodeAruthanobraçodotrono.

— Tem de ser. Depois de Lyam, você é o Herdeiro da coroa. Cabe aoHerdeiro a função de Príncipe de Krondor. Não hámais ninguém que possagovernarlá.

Aruthapareceuconstrangido.—Anita,semprepressupusqueumdiametornariaCondedeumcastelode

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menor relevância ou que talvez zesse carreira como o cial em um dosexércitosdosBarõesfronteiriços.Jamaispenseiqueviriaagovernar.Aindanãosei se recebocomagradoa ideiademe tornarDuquedeCrydee,quantomaisPríncipedeKrondor.Alémdisso,Lyamirásecasar,tenhocerteza:elesempreatraiu as atenções das garotas e, como Rei, certamente terá muitaspretendentes.Quandoeletiverum lho,ogarotopoderásetornarPríncipedeKrondor.

Anitasacudiuacabeçacomconvicção.—Não,Arutha.Hámuitotrabalhoafazeragora.OReinoOcidentalprecisa

de alguém com pulso forte, o seu pulso. Não é provável que outro Vice-Reivenha a inspirar con ança, pois todos os Lordes descon arão de quem fornomeado.Precisaservocê.

Arutha olhou atentamente para a jovem.Nos cincosmeses de estadia emCrydee, começara a gostar muito dela, ainda que não fosse capaz de lhetransmitir o que sentia; nunca encontrava as palavras certas quando estavamjuntos.Diaapósdia,elaeracadavezmaisumabelamulherecadavezmenosumamenina.Noentanto,aindaeramuitonova,oquecontribuíaparadeixá-loconstrangido. Com a guerra em curso, não pensara nos planos dos pais deambos a respeito de um possível casamento, que lhe tinham sido reveladosnaquela noite a bordo doCorredor Marinho . Agora, com a paz quaseestabelecida,Aruthaseviurepentinamenteconfrontadocomaquelaquestão.

—Anita,oquedissetalvezsejaverdade,masvocêtambémtempretensõesaotrono.Nãodissequeoplanodeseupaidenoscasar tinhacomopropósitoreforçarasuapretensãoaKrondor?

Anitaoencaroucomenormesolhosverdes.—EraumplanoparaenfrentarasambiçõesdeGuy.Destinava-seareforçar

a pretensão de seu pai ou de seu irmão à coroa, caso Rodric morresse semherdeiros.Agoravocênãoprecisasesentirpresoaessesplanos.

—SeeuaceitarotronodeKrondor,oquevocêfará?—Minhamãee eu temosoutraspropriedades.Achoquepoderemosviver

muitobemdessesrendimentos,estoucertadisso.Debatendo-secomasemoçõesemseuíntimo,Aruthafaloupausadamente:—Aindanão tive tempodepensar em tudo isso.Daúltimavezqueestive

emKrondor,percebiquãopoucoseisobrecidadesgrandeseaindamenossobreaartedegovernar.Vocêfoicriadatendoemvistaessasresponsabilidades.Eu...

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eueraapenasosegundofilho.Nãotenhopreparo.— Não faltam homens competentes, tanto aqui como em Krondor, para

aconselhá-lo. Você tem uma boa cabeça, Arutha, bem como a capacidade dever o que tem de ser feito e a coragem para agir. Será um bom Príncipe deKrondor.—Levantou-se,inclinando-separalhedarumbeijonorosto.—Temmuitotempoparadecidircomomelhorservirseuirmão,Arutha.Tenteapenasnãodeixarqueestanovaresponsabilidadeosobrecarregue.

— Vou tentar. Ainda assim, iria me sentir melhor se soubesse que vocêestariapertodemim...vocêesuamãe—acrescentoudepressa.

Elasorriuafetuosamente.—Estaremospertocasoprecisedenossoconselho,Arutha.Éprovávelque

permaneçamos na nossa propriedade nas colinas perto de Krondor, a poucashoras a cavalodopalácio.Krondor é aúnica terraque conheço eminhamãesempreviveuali,desdemuitonova.Casodesejenosver,bastaenviaraordemenósregressaremosdebomgradoàcorte.Alémdisso,casodesejedescansardofardodesuafunção,seráumhóspedemuitobem-vindo.

Aruthasorriuparaagarota.—Descon o que irei visitá-las regularmente,mas espero não esgotar essa

hospitalidade.—Jamais,Arutha.

omas estava sozinhonaplataforma, contemplandoas estrelas atravésdosgalhos acima. Seus sentidos de elfo perceberam alguém se aproximando.

Comumacenodecabeça,cumprimentouofeiticeiro:— Tenho somente vinte e cinco anos de vida, Macros, embora carregue

memóriasdemuitasépocas.Passeitodaaminhavidaadultaguerreando.Tudopareceumsonho.

—Nãotornemosessesonhoumpesadelo.Tomasolhoucomatençãoparaofeiticeiro.—Comoassim?Macros cou calado durante algum tempo e Tomas aguardou as suas

palavraspacientemente.—Restaumaúltima tarefa,Tomas, e sobre você recaiu a responsabilidade

determinarestaguerra—disseofeiticeiroporfim.—Não gosto do tom de suas palavras. Achei que havia dito que a guerra

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acabara.—No dia do encontro entre Lyam e o Imperador, você terá de reunir os

elfoseosanõesaoestedocampo.Quandoosmonarcassereuniremnocentrodocampo,ocorreráumatraição.

—Quetraiçãoseráessa?—OrostodeTomastraíaaraivaquesentia.— Pouco mais posso adiantar, a não ser que, quando Ichindar e Lyam

estiveremsentados,vocêterádeatacarostsuranicomtodasassuasforças.SóassimMidkemiapoderásesalvardadestruiçãototal.

UmolhardedesconfiançaatravessouorostodeTomas.—Pedemuitoparaalguémdispostoadartãopouco.Macros estava perfeitamente ereto, com o cajado ao seu lado, como um

soberanosegurandoocetro.Apertou os olhos escuros e as sobrancelhas se uniram acima do nariz

adunco. A voz se manteve suave, mas as palavras mostravam irritação. AtéTomassentiaalgosemelhanteaumprofundorespeitonapresençadofeiticeiro.

—Pouco!—disse,remoendoapalavra.—Dei-lhetudo,valheru!Estáaquiàcustademinhasaçõesao longodosanos.Grandepartedaminhavida,maisdoquepossaimaginar,foidedicadaàpreparaçãodasuavinda.SeeunãotivessesubjugadoedepoisfeitoamizadecomRhuagh,vocêjamaisteriasobrevividonasminas deMacMordainCadal. Fui eu que preparei a armadura e a espada deAshen-Shugar, deixando-as juntamente com o Martelo de olin e o meupresenteaodragão,paraqueséculosmaistardevocêosdescobrisse.Fuieuqueo encaminhei na direção certa, Tomas. Se não tivesse vindo em seu auxílio,anosatrás,hojeElvandarnãopassariadecinzas.AchaqueTathareosoutrosTecedoresdeFeitiçosdeElvandarforamosúnicosatrabalharemseuinteresse?Sem a minha ajuda ao longo desses últimos nove anos, você teria sidocompletamente aniquilado pelos presentes do dragão. Nenhum humanopoderia ter suportadoumamagia tãoantigaepoderosasema intervençãoquesóeupoderiaprovidenciar.Quandoera levadonasvisitasoníricasaopassado,fuieuqueoguieidevoltaaopresente,euotrouxedevoltaàsanidade.—Avozdo feiticeiro se elevou: — Fui eu que lhe forneci o poder para conseguirin uenciar Ashen-Shugar! Você foi o meu instrumento! — Tomas recuoudiantedafúriacontroladadaspalavrasdofeiticeiro.—Não,Tomas,eunãolhedeipouco.Dei-lhetudo!

Pela primeira vez desde que vestira a armadura em Mac Mordain Cadal,

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Tomas sentiumedo.Na bramais básica do seu ser, percebeu o poder que ofeiticeiropossuíaeque,casoMacrosassimdesejasse,poderiaesmagá-locomoauminsetoincômodo.

—Quem é você?— perguntou em voz baixa, com omedo controlado navoz.

AraivadeMacrossedissipou.Voltoua seapoiarnocajadoeosmedosdeTomas o abandonaram; com eles sumiram todas as memórias desses medos.Comumarisada,Macrosdisse:

—Àsvezes,percoacabeça.Peçoperdão.—Voltoua carsério.—Nãolhepeço isso por qualquer exigência de gratidão.O que z está feito, e nadamedeve.Porém que sabendo: tanto a criatura chamadaAshen-ShugarquantoorapazdenomeTomaspartilhamumamorduradouroporestemundo,cadaumàsuamaneira,emboranãocompreendamaformaqueoamordooutrotoma.Ambos possuem os aspectos do amor a esta terra: o desejo dos valheru deprotegerecontrolareodesejodorapazhumanodecuidareprover.Contudo,caso falhe nesta tarefa que lhe apresento, caso falte determinação quando omomento se aproximar, que sabendo com uma certeza horrenda que estemundonoqualnosencontramosdesapareceráparasempre.Istolhejurocomosendoverdade.

—Entãofareicomomeinstruiu.Macrossorriu.— Vá então até sua esposa, Príncipe Consorte de Elvandar, mas, quando

chegarahora,reúnaseuexército.EuvouàMontanhadePedra,poisHarthorneseussoldadosirãosejuntaravocê.Irãoprecisardetodasasespadasedetodososmartelosdeguerra.

—Elesirãoreconhecê-lo?MacrosfitouTomas.—Éóbvioquemereconhecerão,TomasdeElvandar,nãotenhadúvida.—ReunireitodoopoderiodeElvandar,Macros.—Umtomsinistrotomou

contadasuavoz:—Poremosumfimaestaguerra,paratodoosempre.Macros agitou o cajado e desapareceu. Tomas cou sozinho durante

bastante tempo, debatendo-se com um receio recente: omedo de que aquelaguerrapudessedurarparasempre.

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Traição

sexércitosestavamfrenteafrente.Veteranosdeguerra tavam-seatravésdovaledescampado,parecendonão estar preparados para relaxar na presença de um inimigo que

combatiamhámaisdenoveanos.Cadaumdosladostrouxeracompanhiasdehonra, representando os nobres do Reino e os clãs do Império. Cada umaperfazia mais de mil homens. O que restava do exército de invasão tsuraniestava entrando no portal, regressando a Kelewan, e deixando para trássomente o destacamento de honra do Imperador. O exército do Reinopermaneciaacampadoàentradadasduaspassagensparaovaleesóseretirariaquandootratadoestivesse rmado.Arecentecon ançaaindaeramarcadapelacautela.

DoladodovaleocupadopeloReino,Lyamestavamontadoemumcavalodebatalhabranco,aguardandoachegadadoImperador.Pertodele,osnobresdoReino, de armaduras limpas e polidas, também estavam montados em seuscavalos.Comeles,encontravam-seoslíderesdamilíciadasCidadesLivreseumdestacamentodepatrulheirosnataleses.

Ouviram-se trombetasdooutro ladodo campo e a comitivado Imperadorsurgiu da fenda. Os estandartes imperiais esvoaçavam ao vento, enquantoavançavamparaafrentedocontingentetsurani.

Aguardando o arauto tsurani que atravessava as várias centenas demetrosque separavam os monarcas antagônicos, o Príncipe Lyam virou-se paraverificarquemestavaaliperto.TinhamsidoatribuídasaPug,Kulgan,Meechame Laurie posições de honra devido aos serviços prestados ao Reino.OCondeVandros,bemcomováriosoutroso ciaisquesetinhamnotabilizado,tambémestavamporperto.AoladodeLyamestavaArutha,montadoemumalazãoque

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empinava,animado,semsairdolugar.Pug olhou ao redor, com uma sensação vertiginosa ao avistar todos os

símbolos de duas poderosas nações cujos destinos estiveram tão intimamenteligados a ele. Do outro lado da planície, conseguia avistar e reconhecer osestandartesdaspoderosasfamíliasdoImpério:Keda,Oaxatucan,Minwanabieoutras.Atrásdele,esvoaçavamosestandartesdoReino,detodososducadosdelesteaoeste,desdeCrydeeatéRan.

Kulgan reparou no olhar distante de seu antigo aprendiz e tocou-lhe noombrocomocajadocompridoquetrazianamão.

—Tudobem?Pugsevirou.—Tudo.Senti-meligeiramentesobrecarregadoporuminstante,consumido

por lembranças. De certa forma, é estranho ver este dia chegar. Ambas asfacções desta guerra eram inimigas implacáveis e, ainda assim, tenho ligaçõescomambasasterras.Achoquetenhosentimentosqueaindadevoexplorar.

Kulgansorriu.—Depois disto, haverámuito tempo para introspecções.Quem sabe eu e

Tully possamos auxiliá-lo. — O velho clérigo acompanhara Arutha naquelacavalgada brutal, não querendo perder a conferência de paz. Contudo, oscatorzediasnaselatinhamcobradooseupreço:Tully jaziaenfermonatendadeLyam,quetiveradelheordenarquenãosaísse,poiscontinuavadeterminadoaacompanharacomitivareal.

O arauto tsurani parou na frente de Lyam. Fez umamesura pronunciadaparadepoisdizeralgonoidiomatsurani.Pugavançouparatraduzir:

—Ele disse: “SuaGrandiosaMajestade Imperial, Ichindar, noventa e umavezes Imperador, Luz doCéu e soberanode todas as nações deTsuranuanni,envia saudações ao seu irmão monarca, Sua Grandiosa Alteza Real, PríncipeLyam, soberano das terras conhecidas como Reino. O Príncipe aceita o seuconviteparasejuntaraelenocentrodestevale?”

—Diga-lhequeretribuoassaudaçõesequetereimuitoprazeremiraoseuencontro no local indicado— respondeu Lyam. Pug traduziu, recorrendo àsformalidadestsuraniadequadasàocasião,eoarautovoltouafazerumamesura,regressandoàssuasfileiras.

Quandoviramaliteiraimperialavançar,LyamfezsinalparaquesuaescoltaoacompanhasseepartiramaoencontrodoImperadornocentrodovale.Pug,

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KulganeLaurie faziampartedaescoltadehonra;Meechamaguardoucomossoldados.

OscavaleirosdoReinochegaramprimeiroaolocaldesignadoeaguardaramenquanto o séquito imperial avançava.A liteira era sustentada pelas costas devinteescravos,escolhidospelasemelhançadealturaeaparência.Osvolumososmúsculossobressaíamcomoesforçodecarregarapesada liteira incrustadadeouro. Leves cortinas brancas pendiam de suportes de madeira embutidos aouro, decorados com pedras preciosas de grande valor e beleza. As joias e ometalraroreluziamcomosraiosdesol.

AtrásdaliteiramarchavamosrepresentantesdasfamíliasmaisimportantesdoImpério,ChefesdeGuerradosclãs.Eramcinco,umparacadafamíliaaptaaelegerumnovoSenhordaGuerra.

A liteira foi abaixada e Ichindar, Imperador das nações de Tsuranuanni,desceu.Trajavaumaarmaduradourada,devalorincalculáveldeacordocomospadrões tsurani. Na cabeça, trazia um elmo enfeitado com um penacho ecobertocomomesmometal.AvançouatéLyam,quedesmontaraparairaoseuencontro.Pug, que seria o tradutor, desmontou e se colocoudeumdos ladosdosdoissoberanos.OImperadorlhefezumbreveacenocomacabeça.

Lyam e Ichindar se examinaram atentamente, parecendo car surpresoscom a juventude umdo outro. Ichindar era somente três anosmais velho doqueonovoHerdeirodoReino.

Lyam começou dando as boas-vindas ao Imperador com amizade eesperançanapaz. Ichindar respondeudemodo semelhante.Depois, aLuzdoCéudeuumpassoàfrenteeestendeuamãodireita.

—Creioqueéesteoseucostume,não?LyamapertouamãodoImperadordeTsuranuanni.Deummomentopara

outro, a tensãodesapareceu eouviram-se vivasde ambosos ladosdovale.Osdoisjovensmonarcassorriameoapertodemãosfoiforteefirme.

—Queestesejaoiníciodeumapazduradouraentreasnossasduasnações—disseLyam.

— A paz é novidade para Tsuranuanni, mas estou con ante de queaprenderemos depressa— respondeu Ichindar.—OmeuConselho Supremoseencontradivididoquantoàsminhasações.Esperoqueosfrutosdastrocaseaprosperidadeobtidapelaaprendizagemmútuapermitamunificarasatitudes.

—Esse tambéméomeudesejo—disseLyam.—Para assinalar a trégua,

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pedique lhepreparassemumpresente.—FezsinaleumsoldadoavançoudasleirasdoReinoemseucavalo, trazendopelamãoumlindocavalodebatalhapreto.Nagarupa,traziaumaselapretatrabalhadaemouroedacabeçadaselapendiaumaespadalarga,cujopunhoestavaornamentadocomjoias,talcomoabainhaqueaprotegia.

Ichindar contemplou o cavalo com algum ceticismo, mas cou abismadopelaartedaespada.Ergueuaenormelâmina,dizendo:

—Éumagrandehonra,PríncipeLyam.Ichindarvirou-separaumdeseusacompanhantes,quedeuordemparaque

trouxessemumbaú.DoisescravosodepositaramemfrenteaoImperador.Eraesculpido emmadeirangaggi, comumbonito acabamento escuro e brilhante.Arabescos rodeavam entalhes de animais e plantas tsurani em baixo-relevo.Cadaumdessesdesenhosforahabilmentetingidocomtonsmaisclarosemaisescuros, em um detalhe que se aproximava do natural. Por si só, era umbelíssimopresente,porém,quandoabriramobaú,umapilhadasmaisvaliosaspedras preciosas lapidadas, todas maiores do que o polegar de um homem,cintilouaosol.

—Teriadi culdadeemexplicarumaindenizaçãoaoConselhoSupremo—disseoImperador—,eminhaposiçãojuntoaelenãoéamelhornomomento;porémnãopodiamnegarumpresenteparaassinalaraocasião.Esperoquesirvapararessarcirumapartedadestruiçãocausadapelaminhanação.

Lyamfezumaligeiramesura.— É generoso e lhe agradeço. Aceita tomar uma bebida em minha

companhia?—O Imperador aceitou e Lyam ordenou que fossemontado umpavilhão. Uma dúzia de soldados galopou para a frente e desmontou. Várioscarregaramposteserolosdetecido.Empoucotempo,foilevantadoumgrandepavilhão, aberto dos lados. Sob a cobertura, foram colocadas uma mesa ecadeiras.Outrossoldadoscolocaramvinhoecomidanamesa.

PugpuxouumagrandecadeiraalmofadadaparaoImperadoreAruthafezomesmoaoirmão.Osdoissoberanossentaram-seeIchindardisse:

— Parece mais confortável do que o meu trono. Tenho de mandar fazerumaalmofada.

Foi servido vinho e Lyam e o Imperador beberam à saúde um do outro.Depois, foi proposto um brinde à paz. Todos os presentes brindaram ebeberam.

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T

U

Ichindardirigiu-seaPug:—Grande,parece-mequeestaocasiãoserámaissaudávelparaquemestáà

nossavoltadoqueonossoúltimoencontro.—Estoucon antedequeserá,VossaMajestadeImperial.Esperoquetenha

perdoadoaperturbaçãoqueprovoqueinosTorneiosImperiais.OImperadorfranziuatesta.—Perturbação?Estavamaisparadestruição.Pug traduziu para os outros, enquanto Ichindar sorria pesarosamente em

reconhecimento.— EsteGrande introduziumuitas inovações emmeu Império. Receio que

não conseguiremos ver o mde suaobramesmoquandoo seunome já tiversido esquecido. Ainda assim, faz parte do passado. Preocupemo-nos com ofuturo.

Os convidados de honra de ambos os acampamentos permaneceram nopavilhão, enquanto os dois monarcas iniciavam a discussão quanto à melhorformadeestabelecerrelaçõesentreosdoismundos.

omas contemplava o pavilhão. Calin e Dolgan o ladeavam, aguardando.Atrás deles, mais de dois mil elfos e anões estavam a postos. Tinham

entrado no vale pela Passagem Norte, passando pelas forças do Reino alireunidas. Contornaram a clareira, reunindo-se no bosque a oeste, de ondeusufruíamdeumavisãosemimpedimentosdetudooquesepassava.

Umsegundoanão,HarthorndaMontanhadePedra,seaproximoudeles.—Sim,jovemelfo.Parecequeestátudobemcalmo,apesardasadvertências

dofeiticeiro.Derepente,perceberamumanévoadecaloratravessandoocampo,comose

tivessem cado com a visãomarejada e tremulando; logo Tomas e os outrosavistaramsoldadostsuranidearmasemriste.

Tomassevirouparaosqueestavamatrás,avisando:—Apostos!

m soldado do Reino levou o cavalo até o pavilhão. Os lordes tsurani otaram descon ados, pois até então os únicos soldados que tinham se

aproximadodopavilhãoeramosqueserviamacomidaeasbebidas.—Alteza!—gritou.—Algoestranhoestáacontecendo.

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—Oquê?—exclamouLyam,perturbadopelaexcitaçãodohomem.—Denossaposição,conseguimosversilhuetassedeslocandopelas orestas

paraoeste.Lyam se levantou e vislumbrou guras na beira da oresta. Pouco depois,

enquantoPugtraduziaodiálogoaoImperador,disse:—Sãoosanõeseoselfos.—Virou-separaIchindar.—InformeiaRainha

dos Elfos e os Comandantes Militares dos anões sobre a paz. Devem estarchegando.

OImperadorseaproximoudeLyameexaminouosbosques.—Porquepermanecemnasárvores?Porqueseescondem?Lyamsedirigiuaocavaleiro:—Váatéláeconvide-osasejuntaremanós.Oguardaobedeceu.Quandoestavaameiocaminhodobosque,ouviu-seum

grito vindo das árvores e, logo em seguida, precipitaram-se elfos vestidos deverdeeanõescomarmaduras.Nadamaisseouviaalémdecânticosegritosdeguerra. Ichindarolhou comar confusopara as guras que avançavam.Váriosde seus acompanhantes desembainharam armas. Um soldado das leirastsuranicorreuatéopavilhãoegritou:

—Majestade,estamosperdidos.Éumacilada!Todosostsuranirecuaram,espadasempunho.— É desta forma que negocia a paz? — gritou Ichindar. — Fazendo

promessasenquantoplanejatraição?Lyamnãoentendeuaspalavras,masotomerabastanteclaro.AgarrouPug

pelobraço,dizendo:—Diga-lhequenãoseioqueestáacontecendo!Pug tentou se fazer ouvir acima do alvoroço no pavilhão, mas os nobres

tsurani já estavam se afastando, rodeando a Luz do Céu, enquanto soldadoscorriamdasfileirastsuraniparaajudarnaproteçãodeIchindar.

— Recuem! Recuem para as nossas leiras! — gritou Lyam quando ossoldadostsuraniseaproximaram.Osmidkemianosmontaramdepronto.

PugaindaconseguiuouviravozdeIchindaracimadoruído:— Traidor, mostrou sua verdadeira natureza. Jamais Tsuranuanni irá

negociar comquemnão temhonra. Iremos esmagar seuReino aténão restarnadaalémdepó.

Ouviram-se sons de combate quando os elfos e os anões entraram em

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confronto com os soldados tsurani. Lyam e os outros cavalgaram até seussoldados,queaguardavamaordemparasejuntaràbatalha.

—Avançamos,Alteza?—perguntouBrucalquandoLyampuxouasrédeas.Lyamsacudiuacabeça.—Nãoqueroparticipardessatraição.Contemplou a cena que se desenrolava à sua frente. Os elfos e os anões

estavam fazendo os tsurani recuarem de volta à máquina do portal. OImperador e seus guardas estavam contornando-os, evitando a batalha,mantendo os guardas de honra entre os atacantes e a comitiva. Viam-semensageirosdesaparecerempelafenda.

Pouco depois, começaram a surgir soldados tsurani vindos do portal.Correram para atacar o inimigo. As leiras tsurani que estavam sucumbindoconseguiramaguentar,obrigandooselfoseosanõesarecuar.

AruthaaproximouocavalodamontariadeLyam.—Lyam!Temosdeatacar.Nãodemoraráparaqueoselfoseosanõessejam

esmagados. Do outro lado da fenda há mais dez mil soldados tsurani, a umpassodedistância.Sedesejapôr maestaguerrasangrenta,éprecisocapturaremanteraquelamáquina.

PugincitouocavaloesecolocoudooutroladodeLyam.—Lyam!—gritou.—PrecisafazeroqueAruthadiz.AdúvidaaindadominavaojovemHerdeiro.Puglevantouaindamaisotom

devoz:— Entenda o seguinte: durante nove anos, você enfrentou uma parte do

poderdoImpério,apenasossoldadosquepertencemaosclãsdaFacçãoBélica.Atéagora,vocêcontoucommuitosaliadosocultos,queconseguirambloquearum esforço de guerra em larga escala contra o Reino. Contudo, esta traiçãoenraiveceuoúnicohomemquepode exigir umaobediência inquestionável detodososclãsdoImpério.Ichindarpodeordenaramobilizaçãodetodososclãsde Tsuranuanni! Você nunca enfrentou mais de trinta mil guerreirosespalhadospelasváriasfrentes.Atéamanhã,essestrintamilpoderãoregressaraovale.Dentrodeumasemana,essenúmerodobrará.Lyam,vocênãofazideiadaimensidãodopoderqueIchindartem.Noespaçodeumano,poderáenviarummilhãodehomensemilmagoscontranós!Precisaagir!

Lyamestavarígidoemcimadocavalo,aamarguraevidentenorosto.—Podenosajudar?

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—Sim,casovocêconsigaabrircaminhoparaqueeuchegueàmáquina,masnão sei se terei a capacidade de desligá-la. Possuo outros poderes, é verdade,porém,aindaqueconseguissesubjugarocondicionamentoqueimpedeaminhaoposiçãoaoImpérioematassetodososhomensnestecampo,depoucoserviria,poisumahosteaindamaiorestariaaumpassodedistância.

Lyamfezumacenobruscocomacabeça.Devagar,virou-separaArutha.—EnviebatedoresàspassagensNorteeSul.ChametodososExércitosdo

Reinoàs leiras.—Aruthagirouegritouordens, e logopartiramcavaleirosatodaavelocidadeemdireçãoàsduaspassagens.

Lyamolhouparatrás,ondeestavaPug.— Se pode ajudar, faça-o, mas somente quando abrirmos um caminho

seguro.Vocêéoúnicomestredesuasartesnestemundo.—IndicandoLaurie,MeechameKulgan,disse:—Mantenha-os tambémafastadosdabatalha,poisnão fazem parte disto. Permaneça aqui e, se falharmos, recorra às suas artesparairaKrondor.CarlineeAnitadeverãoserlevadasparaoLeste,parajuntodo tio-avôCaldric, uma vez que oOeste irá certamente se tornar tsurani.—Desembainhouaespadaedeuordensparaavançar.

Osmil cavaleiros avançaramempeso, umaparedede aço emmovimento,ganhando ímpeto enquanto o ciais gritavam ordens, mantendo as colunasordenadas.Nessemomento,Lyamfezsinalparaqueinvestissemeas leirassedesarrumaram à medida que os cavaleiros avançavam pelo descampado emdireção aos tsurani, que ouviram o estrondo da cavalaria. Muitos recuaram,afastando-sedeelfoseanõesdemodoaformarumabarreiradeescudos.Pug,Laurie,MeechameKulgancontemplaramoscavaleirosdoReinocolidindocomos escudos. Cavalos e homens gritaram no momento em que as espadascompridassedobravamepartiam.Abarreiradeescudosvacilouàmedidaqueiamsucumbindohomens,masoutrossaltavamparatomarolugardaquelesquecaíam,eahostedoReinofoirepelida.Lyamvoltouaformarastropaseinvestiunovamente,destavezconseguindoatravessarosescudos.

Pugviuo ladodireitodas forças tsurani tombardiantedos cavaleiros.Masfoi o próprio Imperador que restabeleceu o equilíbrio de seus soldados e ocentro da posição semanteve.Mesmo àquela distância, Pug conseguia ver osnobrestsuranisuplicandoaoImperadorquefugisse.

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OImperador empunhava a espada e gritava ordens. Recusava-se aabandonar o campo. Estava dispondo seus homens em um círculo

apertadoparaprotegeramáquina,paraqueoutrospudessemchegaràquelevalevindosdeKelewan.Viuque saíam soldadosda fenda emgrandenúmero.Embreve,seriamsuficientesparadestruirapequenaforçadoRei.

Sentiuquea terraestremecia ligeiramentedebaixode seuspés, atéqueviuumdos lordes tsurani apontarparaalémdo Imperador. Ichindarviu centenasdecavaleirossurgiremdasárvoresaonorte.Asunidadesdecavalariadonortetinham sido as primeiras a responder ao chamado de Lyam. O Imperadordirigiu soldados recém-chegados para as leiras ao norte, de modo aenfrentaremanovaameaça.

Umgrito à esquerda fez comque se virasse.Umguerreiro alto, vestidodebrancoedourado,dizimavaosguardas tsurani, como intuitodechegaràLuzdo Céu. Todos os lordes tsurani correram para impedi-lo. Ali perto seencontravaumLíderdeForçasMilitares.CorreuatéoImperador,gritando:

—Majestade, tem de partir. Não conseguimos aguentarmuitomais. Se operdermos,oImpérioperderáocoraçãoeosdeusesnosvirarãoseusrostos.

O Imperador tentou afastá-lo, ao mesmo tempo que o gigante dourado ebrancoceifavaavidadeoutrolordetsurani.

—Rogoacompreensãodoscéus—disseoo cial,ebateucomopunhodaespadananucade Ichindar.O Imperador caiudesmaiadoeoLíderdeForçasMilitares gritou ordens a soldados para que o levassem pelo portal. — OImperador foi dominado! Ponham-no em segurança! — Sem questionar, ossoldadospegaramosoberanosupremoeotransportaramatéamáquina.

Um Líder de Ataques correu para o lado do Líder de Forças Militares,gritando:

—Senhor,todososnossoslordesmorreram!—OLíderdeForçasMilitaresviuqueoguerreiroaltoestavasendoforçadoarecuarsimplesmentepelograndenúmerodesoldadostsuraniquetinhamidointerceptá-lo,massódepoisdeeleterchacinadotodososveteranosChefesdeGuerraquetinhamacompanhadooImperador.BastouumaolhadaparaqueoLíderdeForçasMilitarespercebesseque o Imperador estava quase a salvo, pois os guardas que o transportavamdesapareceramde vista na extremidademais distante doportal. Surgiammaissoldados na áreamais próxima da fenda.Vendo que não haviamais tempo aperder,oLíderdeForçasMilitaresdisse:

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P

— Assumirei o cargo de Comandante de Forças Militares! Você será oSubcomandante substituto. Envie mais soldados para o norte. — O homempartiu correndo para colocarmais homens ao longo da frente de combate aomesmotempoqueacavalariadaPassagemNorteseaproximavaemumgalopeenfurecido.

Os novos atacantes atingiram a posição tsurani com um estrépitoensurdecedor. A barreira de escudos erguida às pressas vacilou, mas acabouaguentando.OComandante de ForçasMilitares olhou em volta e rezou paraqueconseguissemaguentaratéchegaremreforçosemnúmerosuficiente.

ug e os três companheiros viram as tropas do Reino vindas do norteinvestirem contra a barreira de escudos. Lanças se estilhaçaram e cavalos

tombaram,enquantohomensaosgritoserampisoteados.Abarreiraaguentoueas forçasdoReino se retiraramparapoderemvoltar à formaçãoenovamenteinvestir.OshomensdeLyamestavamsendorepelidos,oqueolevouaordenarumaretirada,demodoacoordenaroataquecomaforçadonorte.Oselfoseosanões sob o comando de Tomas se encontravam a oeste entre os tsurani e,emboraestivessemlhescausandograndesdi culdades,tambémestavamsendorepelidosaospoucos.

Quandooscavaleirosrecuaram,aatençãodostsuranisevoltouparaoselfose anões.Os que se encontravam atrás das posições na barreira de escudos aonorte e ao suldeixaramos seuspostospara apoiaremos camaradasno ancooeste.

Aoveraquelasmovimentações,Meechamobservou:—Seoselfosnãobaterememretirada,ostsuraniirãoesmagá-los.—Como

seotivessemouvido,osquatroobservadoresrepararamemumainterrupçãonoconfrontoaoeste.Elfoseanõesrecuaramsobacoberturadearqueiroselfos.

— Esta pausa irá reforçar os tsurani— disse Kulgan a Pug. Viam bem ogrande uxo de soldados que atravessava a fenda.—Se Lyamnão alcançar amáquina depois da próxima investida, o inimigo irá se fortalecer e nósfraquejaremos.

—Podemosretê-losseeleconseguircolocararqueirosnaentradadoportal—dissePug.—Umasequênciacontínuade echasdeverábastarpararetardá-los pelo tempo que demorará para se erguer alguma barreira. Então talvezconsigamosdesativá-la.

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— Será possível destruí-la? De outra forma, os riscos são enormes —perguntouLaurie.

Pugsemantevecaladoporalgunsinstantes.— Não sei se tenho poderes para destruir a brecha. Contudo, acho que

chegouomomentodetentar.Quandoiaesporearocavalo,umavozressoouvindadetrás:—Não!Viraram-se todos aomesmo tempo, deparando-se com uma gura vestida

demarrom,depéedecajadonamão,ondeantesnãohavianinguém.—Nemosseuspoderesestãoàalturadetaltarefa,Grande.—Macros!—exclamouKulgan.Macrossorriucomamargura.—Comoprevi, aqui estou quando a necessidademais exige, nomomento

maisdifícil.—Oquepodeserfeito?—perguntouPug.—Eufechareia fenda,masprecisodesuaajuda.—Virou-separaKulgan.

—Vejoqueaindatemocajadoquelheofereci.Aindabem.Desmontem.PugeKulgandesmontaram.Pug se esqueceradequeo cajadoque sempre

acompanhavaKulganforaoferecidoporMacros.Macrosseaproximou,parandodiantedeKulgan.—Coloqueapontadocajadocom rmezanochão.—Virou-seeentregou

o cajado que trazia a Pug.— Este cajado faz par com aquele. Segure-o comforçaenãoolarguenemporumsegundo,sequisersobreviveraestatarefa.—Contemplouocon itopertodali.—Estáquasenahora,masaindafaltaalgumtempo. Ouçam com atenção, pois o tempo urge. — Olhou para Pug e, emseguida,paraKulgan.—Quando tudo isto terminar, seoportal fordestruído,regressemàminhailha.Láencontrarãoexplicaçõesparatudooqueaconteceu,emboraeuachequenãovão carplenamentesatisfeitos.—Osorrisoamargovoltouasurgir.—Kulgan,setemesperançadevoltaraverseuantigoaprendiz,agarre esse cajado com toda a força que possui. Mantenha Pug em seuspensamentosenuncadeixequeocajadopercacontatocomsolomidkemiano.Entendeu?

—Masequantoavocê?—perguntouKulgan.Macrosrespondeuemtomríspido:—Aminhasegurançasódizrespeitoamim.Nãosepreocupemcomigo.O

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meu papel em todo este drama foi tão predestinado quanto o seu. Agora,observem.

Voltaram a prestar atenção à batalha.As tropas doReino vindas donorteinvestirameLyameTomasderamordensparaquesuasunidadessejuntassemno ataque. Os cavaleiros voltaram a se chocar nas barreiras de escudos e asleiras tsurani cederam. Por um momento, a cavalaria do Reino dominou ocampo e os tsurani caíram em direção ao interior. Em seguida, quando avantagemdacarga foi contra-atacadapeloagressivoenxameda infantariaquegolpeava cavalos debaixo dos cavaleiros ou que se juntava para atirar oscavaleiros ao chão, o equilíbrio regressou. Via-se um mar de guras quebatalhavam ao redor damáquina do portal.A organização era inexistente e adisciplinaescasseava.Oshomenslutavampelasobrevivência,enãoparaganharposições.Obarulhodometalbatendoemmadeira e couro ressoavapelovale.Por todo lado para onde se olhasse, jorrava sangue e o som da morte eraterrível.

MacrosolhouparaPugedisse:—Chegouahora.Caminhecomigo.Pugseguiuofeiticeirodemantomarrom.SeguravaocajadodeMacroscom

força, pois acreditava na advertência do feiticeiro de que era a sua únicaesperança de sobrevivência diante do que os aguardava. Avançaram pelabatalha, como se algo os protegesse. Várias vezes, um soldado se virou paraatacá-los, sendo logo interceptado por outro da facção contrária. Cavalosprestes a pisoteá-los eramdesviadosnoúltimo segundo. Era como se surgisseumcaminhoàfrentedeles,fechando-sedepoisquepassavam.

Aproximaram-sedoquerestavada frentedecombate tsurani.Umsoldadoqueseguravaumescudosucumbiuàlançadeumcavaleiro.Passaramporcimado corpo tombado e entraram no pequeno e relativamente calmo círculo aoredordafenda.Continuavamasurgirsoldadosdoportaleocírculocontinuavaacrescer.MacrosePugsubiramàplataformano ladomaisafastadoda fenda,enquanto saíam soldados em disparada do lado mais próximo. Os soldadospareciamnãoperceberapresençadosdoismagos.

Macros entrou no vazio da fenda. Pug o seguiu. Em vez do esperadoaparecimentoemKelewan, caramsuspensosemumlugarsemcor.Nãohaviagrande noção de direção. O lugar não tinha luz, embora não fosse escuro,apresentando diversos tons de cinza. Pug viu que estava sozinho, somente na

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companhia das batidas de seu coração nos ouvidos, con rmando quecontinuavaaexistir.

—Macros?—chamouemvozbaixa.—Aqui,Pug—surgiuavozdeMacros.—Nãoovejo.Ouviu-seumarisada.— Não, pois não há luz. O que vê é uma ligeira ilusão concedida pelas

minhas artes para quepossa ter umpontode referência aqui. Semuma vastapreparação, nem seus famosos poderes lhe poderiam ser úteis paramanter asanidade, Pug. Terá de aceitar que amente humana não tem condições paralidarcomestelugar.

—Quelugaréeste?— Este é um lugar entre os dois mundos. Foi aqui que os deuses se

enfrentaramduranteasGuerrasdoCaoseseráaquiquevamosrealizaranossatarefa.

—Homensestãomorrendo,Macros.Temosdenosapressar.— Aqui o tempo não existe, Pug. Em relação aos que se encontram na

batalha, estamos parados em um único instante. Poderíamos envelhecer efalecer e nem sequer um segundo teria passado no campo de batalha. Porémtemos de nos apressar em nossa tarefa. Nem eu conseguiria fazer isso semdespenderalgumaenergiaparanosmantervivos,energiadequeprecisaremosparaconcluironossoassunto.Nãodemoraremos,mastenhoquelhetransmitiralgumascoisas.Espereimuito tempoparaquecumprissea suapromessa.Nãopoderiafecharoportalsemasuaajuda.

Pug falou, embora os seus sentidos se rebelassem diante da paisagemcinzentaportodososladoseavozincorpóreaparecessevirdeumpontopertodele.

— Foi você que afastou o portal quando o Forasteiro surgiu e o Inimigotentou recuperar asnaçõesdeTsuranuanni. Semdúvida foiprecisoumpoderimpressionante.

Ouviuorisoabafadodofeiticeiro.— Você se lembra desse detalhe? Bom, naquela época eu era jovem. —

Como sabia que se tratava de uma resposta vaga, acrescentou: — Naqueletempo, a fenda era algo selvagem, criada pela vontade daqueles que seencontravamnoaltodastorresdaAssembleia.Limitei-meavirá-laparaoutro

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lado, frustrando o desejo do Inimigo, e com isso corri riscos enormes. Agoraesta fenda é controlada, rmemente ancorada em Kelewan, gerida por umamáquina, que a comanda.Há tambémmuitos feitiços complexosmantendo-aem harmonia com Midkemia que não me permitem manipulá-la. Consigoapenas lhedarum m,maspara issoprecisode ajuda.Antesde concluirmosestedramaemparticular, lhedigo isto: compreenderámuitascoisasdepoisdechegaràminhailha.Acimadetudo,porém,peço-lhequetenhaalgoemmenteaoouvir aminhamensagem.Lembre-seque z tudooque zpor ser omeudestino.Peçoquepenseemmimcombondade.

Embora não conseguisse ver o feiticeiro, Pug sentia a sua presença porperto.Começouafalar,masfoiinterrompidopelavozdeMacros:

— Quando eu terminar, use a pouca energia que lhe restar para setransportarparajuntodeKulgan.Ocajadooajudará,masterádeaplicartodososseusesforçosnessatarefa.Sefalhar,vocêmorrerá.

Era a segunda advertência de Macros, levando Pug a sentir pavor pelaprimeiravezemanos.

—Oqueacontecerácomvocê?—Cuidedesimesmo,Pug.Eutenhooutraspreocupações.Surgiuumasensaçãodemudança,comoseotecidodovazioaoredordeles

estivessesofrendolevesalterações.—Àminhaordem,liberteafúriaplenadeseuspoderes—disseMacros.—

OquerealizounosTorneiosImperiaisfoiapenasumvestígiodaquiloqueagoraterádeconseguir.

—Sabeoqueaconteceu?Ouviuoutrarisada.—Euestavapresente,emboraomeulugarnãofossetãobomquantooseu.

Tenhodeadmitirquefoibastanteimpressionante.Atéeuteriadi culdadesemfornecer um espetáculo tão grandioso. Já não nos resta tempo. Espere pelaminhaordemeentãodeixeoseupoderfluiratémim.

Pug não comentou. Sentia a presença do feiticeiro por perto, como seMacros estivesse se de nindo propositalmente para ele. Voltou a sentir asensação de mudança inesperada ao seu redor. De repente, surgiu uma luzofuscante,seguidapelaescuridão.Logodepois,tudoàvoltadePugexplodiuemdemonstraçõesenlouquecidasdeenergia,muitoparecidascomasqueassistirana fenda da PonteDourada. Por todos os lados explodiram cores ofuscantes,

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forçasprimitivasquenãoreconhecia.—Agora,Pug!—OuviuogritodeMacros.Pugdirecionousuavontadeàtarefa.Desceuatéosrecantosmaisprofundos

deseuser.Deláretiroutudooquepôdedopodermágicoqueconquistaraemambososmundos.Forçascapazesdedestruirmontanhas,deslocarriosdeseuscursos e arrasar cidades, todas estas Pug fez convergir. Depois, como serejeitasse algo doloroso demais para ser mantido, dirigiu toda a energia emdireção aopontoondepressentiaqueo feiticeiro estava.Houveumaexplosãoinimaginável e enlouquecida de todas essas forças e a matéria primitiva dotempoedoespaçogritouemprotestoàquelapresença.Pugconseguia senti-lasecontorcendoàsuavolta,comoseouniversofundamentalestivessetentandoexpulsarosinvasores.Subitamente,houveumaliberaçãoeforamexpulsos.

Pugseviupairandonamaisabsolutaescuridão.Andouàderiva,entorpecidoe sem conseguir pensar com coerência.Amente não conseguia aceitar o quesentiraeestavaprestesaperderossentidos.Sentiuosdedos caremfrouxoseo cajado começou a deslizar da mão. Agarrou-o convulsivamente, em uminstinto cego. Foi então que sentiu um puxão fraco. A sua mente resistiu àescuridão friaqueestava tentandodominá-lo, tentando lembrá-lodoquequerquefosse.Estavacadavezmaisfrioàsuavoltaesentiaospulmõesardendopelafaltadear.Esforçou-semaisumavezparaselembrardealgumacoisa,masnãoestavaconseguindo.Voltouasentiropuxãoepareceuouvirao longeumavozconhecida.

—Kulgan?—dissedebilmente,deixandoqueaescuridãooenvolvesse.

Comandante de Forças Militares tsurani estava vivo. Pensou naquelemilagre ao ver todos os que jaziam mortos ao seu redor na frente da

máquina do portal. Um minuto antes, a explosão matara centenas e, maisadiante,muitosoutrosestavamcaídoseaturdidos.

Levantou-se,examinandooqueestavaacontecendo.Aterríveldestruiçãodafenda também não servira para ajudar as forças do Reino. Viam-se homensdesesperados tentando controlar cavalos à beira da histeria, enquanto outrasmontarias fugiam como loucas, atirando os cavaleiros ao chão. A confusãoimperavaportodolado.Contudo,osqueseencontravamnasextremidadesdoconflitotinhamficadomenosaturdidos,eabatalhaestavasendoretomada.

Restavapoucaesperança; estavam isoladosdeKelewan, sempoder receber

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ajuda nem regressar em segurança. Ainda assim, quase igualavam as forçasinimigas em número de homens, e restava uma chance de tomarem aquelecampo.Lidariammaistardecomaquestãodoportal.

Derepente,ossonsdabatalhacessaramquandoasforçasdoReinobateramem retirada. O Comandante de Forças Militares olhou em volta e, nãoavistando o ciais de posto superior, começou a bradar ordens para quepreparassemabarreiradeescudosparaoutrainvestida.

AsforçasdoReinoestavamsereagrupandoaospoucos.Nãoatacaram,masocuparam posições do lado oposto aos tsurani. O Comandante de ForçasMilitares aguardou, enquantoos soldadosorganizavamas leiras.De todososladoscavaleirosdoReinoeramvistosapostose,aindaassim,nãoavançavam.

Lentamente, a tensão aumentou. O Comandante de Forças Militares deuordens para que fosse erguida uma plataforma.Quatro tsurani agarraram umescudo, onde o Comandante subiu, e os homens o ergueram. Arregalou osolhos.

—Elestêmreforços.Aolonge,viuseaproximaremcolunasdeforçasdoReinodaPassagemSul.

Comoestavammaisafastadasdo localdasnegociações, sóagorachegavamaocampodebatalha.

Umgritodadireçãoopostafezcomqueolhasseparaonorte:as leirasdeinfantariadoReinoavançavamdasárvores.Voltouaolharparaosule forçouos olhos. A distância, conseguiu discernir os sinais de uma grande força deinfantariaqueseguiaatrásdacavalaria.Oo cialpediuquebaixassemoescudoeoSubcomandanteperguntou:

—Oqueestáhavendo?— Todo o exército do inimigo está reunido aqui. — Engoliu em seco,

abandonando a habitual euma tsurani. — Mãe dos deuses! Devem ser unstrintamil.

—Então, antesdemorrermos, iremos lhes oferecerumabatalhadignadeumabalada—afirmouoSubcomandante.

OComandante de ForçasMilitares olhou ao redor. Por todo lado se viamsoldados sangrando, feridos e aturdidos. Dos exércitos do Reino mobilizadoscontra eles, somente um terço combatera. Pelo menos vinte mil soldadosdescansados se aproximavam de quatro mil tsurani, metade dos quaisincapacitadosparalutar.

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OComandantedeForçasMilitaressacudiuacabeça.—Nãohaverábatalha.Estamos isoladosdenossa terra, talvezpara todoo

sempre.Seráemvão.Passou pelo surpreso Subcomandante e atravessou a barreira de escudos.

Erguendo as mãos acima da cabeça num pedido de negociação, dirigiu-se aLyam devagar, temendo o momento em que se tornaria o primeiro o cialtsuranidahistóriaaserender.DemoroupoucosminutosparachegarpertodoPríncipe.Tirouoelmoeajoelhou-se.

LevantouoolharparaoPríncipedoReino,altoedecabelolouro,dizendo:—LordeLyam.Entregoosmeushomensemsuasmãos.Aceitaarendição?Lyamassentiu.—Sim,Kasumi.Aceitoarendição.

scuridão.Depois,umacrescente tonalidadecinza.Pugse forçouaabriraspálpebraspesadas.PorcimadeleestavaorostofamiliardeKulgan.Orostodeseuantigoprofessorseabriuemumgrandesorriso.—Ébomverqueestáoutravezentrenós.Nãosabíamosseestavamesmo

vivo.Oseucorpoestavatãofrio.Conseguesesentar?Pugaceitouobraçooferecidoe reparouqueMeechamestavaajoelhadoao

seulado,ajudando-o.Conseguiasentirofriodeixandoseusmembrosàmedidaqueosraiosdesollheaqueciamocorpo.Ficouparadoporuminstante,atéquedisse:

— Acho que irei sobreviver. — Ao dizer essas palavras, sentiu querecuperava as forças. Pouco tempo depois, sentiu-se capaz de se levantar eassimofez.

ViuosexércitosdoReinoreunidosàsuavolta.—Oqueaconteceu?— O portal foi destruído e os tsurani que caram aqui acabaram se

rendendo—disseLaurie.—Aguerraterminou.Pug estava debilitado demais para se emocionar. Olhou para os rostos

daqueles que estavam ao seu redor e percebeu o profundo alívio em seusolhares.Derepente,Kulganenvolveu-oemumabraço.

—Você arriscoua suavidaparapôr ma toda esta loucura.Avitória lhepertence,comoaqualqueroutrohomem.

Pugnãosemexeu,atéqueseafastoudeseuantigomestre.

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—FoiMacrosquepôsfimàguerra.Eleretornou?—Não.Sóvocê,e, logoquesurgiu,osdoiscajadosdesapareceram.Nãohá

sinaldele.Pugsacudiuacabeçaparadesanuviá-la.—Eagora?Meechamolhouporcimadoombro.—TalvezfossesensatovocêiratéLyam.Parecehaveralgumaagitação.Laurie eKulganajudaramPug,pois ele aindaestava enfraquecidodevidoà

provaçãopelaqualpassaranointeriordoportal.CaminharamatéondeLyam,Arutha,KasumieosnobresdoReinoreunidosaguardavam.Estavamvendooselfoseosanõesseaproximaremvindosdooutroladodocampo,comasforçasdoReinovindasdonorteatrásdeles.

Pug cou admirado ao ver o primogênito dos Shinzawai presente, poisjulgavaquetinharegressadoaKelewan.Eraodesânimoempessoa,empé,semarma nem elmo, e, como estava de cabeça baixa, não viu Pug e os outroschegando.

Pug prestou atenção nos elfos e nos anões. Quatro guras tomavam adianteira.Reconheceuduasdelas:DolganeCalin.Comelesvinhaoutroanão,quedesconhecia.QuandoosquatrochegarampertodoPríncipe,Pugpercebeuque o guerreiro alto de branco e dourado era o seu amigo de infância. Ficouatônito, assombrado com a mudança de Tomas, já que seu velho amigo eraagorauma gura imponenteque seassemelhava tantoaumelfoquantoaumhumano.

Lyam estava cansado demais para se indignar. Olhou para o ComandanteMilitardeElvandaredissecalmamente:

—Quemotivosteveparaatacar,Tomas?—Os tsuraniestavamdearmasempunho,Lyam—respondeuoPríncipe

Consortedoselfos.—Estavamprestesaatacaropavilhão.Nãoviu?Apesardaexaustão,avozdeLyamsubiudetom:—Vi somente suas hostes atacarem uma conferência de paz. Nada vi no

ladodostsuraniquefosseagressivo.Kasumilevantouacabeça.—Alteza,pelaminhahonra,desembainhamosarmasnomomentoemque

elesnosatacaram.—ApontouparaasforçasdeTomas.LyamvoltouaseconcentraremTomas.

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—Não lhe enviei a carta de quehaveria umperíodode trégua, ao qual seseguiriaapaz?

—Éverdade—respondeuDolgan—,euestavapresentequandoofeiticeirotransmitiuamensagem.

—Ofeiticeiro?—perguntouLyam.Virou-seechamou:—Laurie!Precisofalarcomvocê.

Laurieavançou.—Alteza?—VocêtransmitiuomeurecadoàRainhadosElfoscomooinstruí?—Pelaminhahonra.DeiorecadoàRainhaempessoa.TomasolhouLyamnosolhos,acabeçainclinadaparatráseumaexpressão

dedesafionorosto.—Eujuroquenuncaviessehomematéhoje.Orecadoqueadvertiaparaa

traiçãoqueostsuraniplanejavamnosfoidadoporMacros.KulganePugavançaram.—Alteza—interveioKulgan—,seestasituaçãotemamãodofeiticeiro,ao

queparece,assimaconteceuemtodooresto,querdizerquetalvezsejamelhordesvendaressemistériocomcalma.

Lyamaindaestavairritado,masAruthadisse:—Deixeestar.Poderemosdesvendartodaessaconfusãonoacampamento.Lyamfezumacenobruscocomacabeça.— Regressemos ao acampamento. — O Herdeiro dirigiu-se a Brucal: —

Formeumaescoltaadequadaaosprisioneirosetraga-os.—Depois,olhouparaTomas.—Tambémoqueronaminhatendaquandoregressarmos.Hámuitoaser explicado. — Tomas concordou, embora não parecesse feliz com aperspectiva.Lyambradou:—Regressamosdeimediatoaoacampamento.Deemoaviso.

Oso ciaisdoReinocorreramparaassuascompanhiaseaordemfoidada.Tomas se virou e viu um desconhecido a seu lado. Olhou para o rostosorridente,atéqueDolgandisse:

—Estácego,rapaz?Nãoreconheceseucompanheirodeinfância?TomasolhouparaPugenquantoomagoexaustoavançavaumpoucomais.— Pug?— disse em voz baixa. Estendeu os braços e abraçou o irmão de

criaçãoqueperderahámuitotempo.—Pug!Ficaram ali calados, no meio do clamor dos exércitos que partiam, com

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lágrimasescorrendopelorosto.Kulgancolocouasmãosnosombrosdeambososhomens.

—Venham,devemosregressar.Temosmuitoquefalare,graçasaosdeuses,agoranãonosfaltatempoparafazê-lo.

acampamento estava em festa. Apósmais de nove anos, os soldados doReinosabiamque,nodiaseguinte,nãoiriamcorreroriscodemorrerou

de serem feridos. À volta das fogueiras ouviam-se canções e por todo ladoressoavam gargalhadas. Para amaior parte deles, pouco importava que outrosestivessemferidosnas tendas,soboscuidadosdesacerdotes,equealgunsnãoconseguissemsobreviverparaveroprimeirodiadepazousaborearosfrutosdavitória. Tudo o que interessava aos que celebravam era que se encontravamentreossobreviventeseporissoserejubilavam.Maistarde,haveriatempoparachoraroscompanheirosmortos.Naquelemomento,deleitavam-secomavida.

Na tenda de Lyam, o ambiente eramais comedido.No caminho de volta,Kulganmeditaraprofundamentesobreosacontecimentosdaqueledia.Quandochegaram à tenda, o mago de Crydee tinha construído uma imagemaproximada do que acontecera. Expusera a sua opinião aos que ali seencontravamreunidos,econcluíanaquelemomento.

—Aoqueparece—disseKulgan—,Macrospretendia queoportal fossefechado. Tudo aponta para a terrível duplicidade que foi usada com essepropósito.

Lyamestavasentado,ladeadoporAruthaeTully.—Continuosementenderoqueoterádominadoparaadotarmedidastão

graves.Oconflitodehojeceifoumaisdeduasmilvidas.— Descon o que iremos encontrar a resposta a essa e outras questões

quando chegarmos à sua ilha — disse Pug. — Até lá, não acho que iremossequercomeçaraentender.

Lyamsuspirou,dirigindo-seaTomas:—Pelomenos queiconvencidodequevocêagiudeboa-fé.Estousatisfeito

porisso.Seriadifícilimaginá-loresponsávelpelacarnificinadehoje.Tomasergueuocálicedevinho,quetinhaestadobebericando.— Tambémme agrada não existiremmotivos para desavenças. Contudo,

sintoquefuiusadoemtodaestasituação.—Assimcomotodosnós—ecoaramHarthorneDolgan.

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— É provável que todos tenhamos desempenhado alguma função em umesquemadoNegro—disseCalin.—TalvezsejacomoPugdisse,econsigamosapuraraverdadenaIlhadoFeiticeiro;porémmesintoressentidocomtodaestamalditasituação.

Lyam olhou para onde Kasumi estava sentado rígido, olhando em frente,parecendoignorartudooqueestavasendoditoàsuavolta.

—Kasumi—chamouLyam—,oquefareicomvocêecomseushomens?Aoouvirseunome,osolhosdeKasumipareceramganharvida.—Alteza,conheçoseuscostumes,poisLauriemeensinoubastante—disse

ele.—Contudo,nãodeixeidesertsurani.Nonossomundo,oso ciaisseriamcondenadosàmorteeoshomensescravizados.Nãomecompeteaconselhá-loneste assunto. Não sei qual o método habitual de lidar com prisioneiros deguerraemseumundo.

Oseutomeramonocórdio,sememoção.Lyamiafalar,massecalouaoverPuglhefazendoumsinal.Omagoqueriafalar.

—Kasumi?— Sim, Grande?— Tomas pareceu surpreso com a expressão honorí ca,

mas não se manifestou. Os dois amigos de infância não tinham conseguidotrocar mais que algumas histórias apressadas enquanto regressavam aoacampamento.

—OqueteriafeitocasonãotivesseserendidoaoPríncipe?—Teríamoslutadoatéamorte,Grande.Pugfezumacenocomacabeça.—Compreendo.Entãoéresponsávelporpreservarasvidasdequasequatro

mildosseushomens,nãoéverdade?EoutrosmilharesdesoldadosdoReino.AexpressãodeKasumiseatenuou,revelandoasuavergonha.—Tenhovividocomoseupovo,Grande.Talvez tenhaesquecidoaminha

educação tsurani. Desonrei a minha casa. Quando o Príncipe determinar odestino dosmeus homens, pedirei permissão para tirar aminha própria vida,emborasejaumahonragrandedemaisparaquemeconceda.

Brucaleosoutrospareceramhorrorizadosaoouviraquelaspalavras.Lyamnãodemonstrouqualqueremoção,dizendosimplesmente:

—Não há qualquer desonra.Morrendo, você não teria ajudado nenhumacausa.Enãomaiscausa,agoraqueoportalfoidestruído.

—Assimsãoosnossoscostumes—disseKasumi.

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—Poisdeixaramdeser—retorquiuLyam.—Estaéagorasuaterra,jáquenãotêmoutra.OqueKulganePugnosdisseramarespeitodasfendasmostraqueserápoucoprovávelqueumdiaconsigamregressaraTsuranuanni.Vocêsvão permanecer aqui e pretendo fazer com que essa perspectiva se tornevantajosaparatodosnós.

UmbrilhofracodeesperançaatravessouosolhosdeKasumi.OHerdeirosevirouparaLordeBrucaledisse:

—Meu senhor,DuquedeYabon.Qual o seuparecerquanto aos soldadostsurani?

OvelhoDuquesorriu.— Estão entre os melhores que já vi. — Diante da observação, Kasumi

revelouumpoucodeorgulho.—Assemelham-se à IrmandadedasTrevas emferocidade, embora tenham uma natureza mais nobre; são tão disciplinadosquantoosinfanteskeshianosepossuemovigordospatrulheirosnataleses.Nogeral,nãohádúvidadequesãosoldadosexcepcionais.

—Um exército como esse poderia fornecer segurança adicional às nossasagitadasfronteirasaonorte?

Brucalsorriu.—AguarniçãoLaMutiana foi a quemais ataques sofreudurante a guerra.

Seriaumaaquisiçãovaliosaali.OCondedeLaMutecoouocomentáriodeseuDuque.Lyamvirou-separa

Kasumi.—Manteriaa ideiade tiraraprópriavida se seushomenspermanecessem

livresecomosoldados?—Comoissoépossível,Alteza?—perguntouofilhodosShinzawai.—Sevocêeosseushomensjuraremlealdadeàcoroa,ireicolocá-lossobo

comandodoCondedeLaMut.SerãohomenslivresecidadãoselhesserádadaaresponsabilidadededefenderemanossafronteiraaonortecontraosinimigosdaespéciehumanaquehabitamasTerrasdoNorte.

Kasumi coucalado,semsaberoqueresponder.Laurieseaproximoudele,dizendo:

—Nãohádesonraalguma.OrostodeKasumimostrouumaexpressãodealívioevidente.—Aceitoeestoucertodequemeushomensfarãoomesmo.—Apósuma

pausa, acrescentou:—Chegamos como guarda de honra do Imperador. Pelo

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queouviaqui,fomosigualmenteusadosporessefeiticeiro.Nãopretendoquesederramemaissangueporcausadetudoisso.Agradeço,Alteza.

—Acho que umposto deCapitãoCavaleiro seria adequado a um líder dequase quatro mil homens — interveio Lorde Vandros. — Concorda, meuDuque?—BrucalassentiueVandrosprosseguiu:—Venha,Capitão,temosdefalarcomseunovobatalhão.

Kasumi levantou-se, fez uma mesura para Lyam e saiu com o Conde deLaMut. Arutha tocou o ombro do irmão. Lyam virou a cabeça e o Príncipedisse:

— Basta de assuntos de Estado. Está na hora de celebrarmos o m daguerra.

Lyamsorriu.— Tem razão.—Virou-se para Pug.—Mago, vá buscar a sua simpática

esposa e o seu lho. Quero estar rodeado por coisas que lembrem o lar e afamília.

TomasfitouPug.—Esposa?Filho?Comoassim?Pugriu.—Temosmuito sobre o que falar. Podemos pôr a conversa em dia assim

queeutrouxeraminhafamília.Dirigiu-seàsuatenda,ondeKatalacontavaumahistóriaaWilliam.Ambos

se levantaramdeumsalto e correrampara ele,pois aindanãoo tinhamvistodesde o regresso das tropas. Ele enviara recado por um soldado, informandoqueestavabem,masocupadocomassuntosdoPríncipe.

—Katala,Lyamnosconvidaparajantar.Williampuxouomantodopai.—Tambémqueroir,papai.Pugpegouofilhonocolo.—Oconvitetambéméparavocê,William.

celebraçãodentroda tendanãoera tãobarulhentacomoaqueocorria láfora.Aindaassim,os convidados tinhamsido entretidospelasbaladasde

Laurie e desfrutado do regozijo que a paz trazia. A comida era amesma dosoutros dias no acampamento, mas tinha um gosto melhor. Uma grandequantidadedevinhotambémcontribuíraparaoespíritofestivo.

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Lyam estava sentado com um cálice de vinho na mão. Espalhados pelatenda, os outros estavam entretidos em tranquilas conversas. O Herdeiro seencontrava ligeiramente embriagado, emboraninguém levasse issoamal,poispassara pormuitas provações nomês anterior.Kulgan,Tully eArutha, que oconheciam como ninguém, sabiam que Lyam pensava no pai, que estaria alisentadocomeles,nãofosseuma echatsurani.Diantedaresponsabilidadedaguerra, seguida pela questão da sucessão, Lyam, ao contrário do irmão, nãodispusera de tempo para vivenciar o luto. O sentimento de perda eraavassaladornaquelemomento.

Tullylevantou-se.— Estou cansado, Alteza — disse em voz alta. — Peço licença para me

retirar.Lyamsorriuparaseuvelhoprofessor.—Claro.Boanoite,Tully.Os outros presentes na tenda o seguiram depressa, despedindo-se do

Herdeiro. Lá fora, os convidados do pavilhão desejaram boa noite uns aosoutros.Laurie,Kulgan,Meechameosanõestambémpartiram,deixandoPugeafamíliacomCalineTomas.

Os amigos de infância tinham passado a noite trocando histórias dosúltimos nove anos. Ambos carammaravilhados com as histórias do amigo.PugexpressarainteressenamagiadoSenhordosDragões,assimcomoKulgan.OsmagosmostraramvontadedevisitarumdiaoSalãodoDragão.Dolgan seofereceuparalhesindicarocaminhocasodecidissemfazeressaviagem.

A amizade reanimada resplandecia nos dois jovens, emboracompreendessemquenãopodiaseroqueforaantigamente,poisambostinhampassado por muitas e grandes mudanças. Além da armadura do dragão e domanto negro, aquela questão ganhava relevância na presença de William eKatala.

Katalatinhaficadofascinadacomoselfoseanões.Williamficaraencantadocom tudo, especialmente com os anões, e agora dormia nos braços da mãe.QuantoaTomas,elanãosabiaoquepensar.Assemelhava-sebastanteaCalin,semdeixardeseparecerbastantecomosoutroshomensdoacampamento.

Tomasobservouogarotoadormecido.—Ele é a caradamãe,mas levadoo su ciente parame lembrar de outro

garotoqueconheci.

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Pugsorriuaoouviraquelaspalavras.—Esperoqueavidadelesejabemmaistranquila.Aruthadeixouatendadoirmão, juntando-seaeles.Ficouao ladodosdois

meninos que o tinham acompanhado até as minas de Mac Mordain Cadal,tantosanosatrás.

—Talveznãodevessedizer,mashámuitosanos,quandovisitouomeupaipela primeira vez, Calin, dois garotos foram ouvidos conversando, semperceberem,enquantobrincavamemumacarroçadefeno.

TomasePugolharamparaoPríncipesementender.—Nãoselembram?—perguntouArutha.—Umgarotolouroemagricela

estava conversando com um garoto mais baixo, dizendo que um dia iria setornarumguerreirofamosoequeseriarecebidocalorosamenteemElvandar.

PugeTomasriramdessalembrança.—Eumelembro—dissePug.—OoutroprometeusetornaromagomaispoderosodoReino.— Quem sabeWilliam também venha a concretizar seus sonhos quando

crescer—disseKatala.Aruthasorriucomumbrilhomaliciosonosolhos.—Entãonãoopercadevista.Antesdeadormecer,tivemosumademorada

conversaeelemedisseque,quandocrescer,querserumanão.—Todosriram,excetoKatala,queolhouparao lhocomumaexpressãopreocupadaantesdesejuntaraosrisos.

AruthaeCalinsedespediramdosoutroseTomasdisse:—Tambémvoumerecolher.—IránosacompanharaRillanon?—perguntouPug.— Não, não posso. Tenho de car com a minha senhora. No entanto,

quandoacriançanascer,venhamnosvisitar,poisacelebraçãoserágrandiosa.—Prometeramqueiriam.Tomasdisse:—Vamospartirparacasapelamanhã.Osanõesregressarãoàssuasaldeias,poishámuitoafazer.Estãoseparadosdasfamíliashámuitotempo.ComoregressodoMartelodeolin,fala-sedeumaassembleia para nomearem Dolgan Rei do Oeste. — Baixando a voz,acrescentou:—Sebemquesejamaisprovávelqueomeuvelhoamigofaçausodesse martelo no primeiro anão que zer essa sugestão em sua presença.—Colocando a mão no ombro de Pug, disse: — É muito bom que ambostenhamossobrevividoa tudo isso;mesmonasprofundezasdeminhaestranha

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loucura,nuncameesquecidevocê.—Tambémnuncaoesqueci,Tomas—dissePug.— Quando desvendar esse mistério na Ilha do Feiticeiro, espero que me

avise.Puggarantiuqueassimfaria.Abraçaram-se,despediram-seeTomaspartiu,

parandomaisàfrenteeolhandoparatrás,comumbrilhodemeninonoolhar.—Aindaassim,gostariadeestarpresentequandoreencontrarCarlinecom

umaesposaeumfilhoatiracolo.Pug corou, pois antevia esse futuro encontro com sentimentos

contraditórios.AcenouparaTomasatéoamigodesaparecerdevista,reparandodepois que Katala o olhava com uma expressão determinada. Em tomponderadoesemvariações,elaperguntou:

—QueméCarline?

yamlevantouoolharquandoAruthaentrounatendadecomando.— Achei que já tivesse se retirado — disse o irmão mais novo. — Está

exausto.— Precisava de tempo para pensar, Arutha. Não tenho tidomuito tempo

sozinho e queria ordenar as ideias. — A sua voz revelava cansaço epreocupação.

Aruthasentou-seaoladodoirmão.—Queideias?— Esta guerra, nosso pai, você, eu... — pensou em Martin —, outras

coisas...Arutha,nãoseisepodereiserRei.Aruthaergueuligeiramenteassobrancelhas.—Não teveescolha,Lyam. Irá se tornarRei, então tireomelhorproveito

dessasituação.— Posso recusar a coroa em favor de meu irmão — disse Lyam

pausadamente—,assimcomoErlandrenunciouemfavordeRodric.—Equeótimo caldeirãode sopa isso virou. Se for uma guerra civil o que

pretende,essaseráumaboaformadeconsegui-la.OReinonãopodesedaraoluxo de um debate no Congresso de Lordes. Ainda tem muitas feridas paraseremcuradasentreoLesteeoOesteeGuyduBas-Tyraaindaestáàsolta.

Lyamsuspirou.—VocêseriaumReimuitomelhor,Arutha.

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Aruthariu.— Eu? Não estou gostando nem da perspectiva deme tornar Príncipe de

Krondor.Ouça-me, Lyam, quando éramos garotos, invejava o afeto que vocêconquistava tão depressa. As pessoas tinham sempre preferência por você. Àmedida que fui crescendo, compreendi que não era porque antipatizavamcomigo;simplesmentehaviaalgoemvocêqueasfaziacon aremvocêeamá-lo.ÉumaboaqualidadeparaumRei.Nunca invejeio fatodeque iriasucedernosso pai como Duque, assim como agora não invejo a sua coroa. Já penseiantesque,depoisdaguerra, iria tirar algum tempopara viajar,mas agoranãoserápossívelfazê-lo,poistenhodegovernarKrondor.EntãonãodesejeofardoadicionaldetodooReinoemmeusombros.Eunãoaceitaria.

—Aindaassim,seriaumReimuitomelhor.—Osirmãoscruzaramolharesenãoosdesviaram.

Arutha fez uma pausa e franziu a testa, tando o irmão com um olharcético.

— Talvez fosse, mas é você que será coroado Rei e eu espero que assimpermaneçapormuitotempo.—Espreguiçou-sequandoselevantou.—Voumedeitar. Foi um dia longo e cansativo. — Quase à saída da tenda, disse: —Acalme as suas dúvidas, Lyam. Será um bom soberano. Com Caldric oaconselhando,juntamentecomosoutros,Kulgan,TullyePug,seránossoguianestaeradereconstrução.

— Arutha, antes de ir... — começou Lyam. Arutha aguardou, enquantoLyamtomavaumadecisão.—GostariaquevocêacompanhasseKulganePugàIlhadoFeiticeiro. Jáesteve láe... gostariadeouviro seuparecera respeitodoque encontrarem.—Arutha cou insatisfeito e começou a levantar objeções,masfoiinterrompidoporLyam:—BemseiquepretendeiraKrondor,masnãoserãomaisdoquealgunsdias.DepoisquechegarmosaRillanon,teremosdozediasatéacoroação,tempomaisdoquesuficienteparaquevocêsejunteanós.

Mais uma vez Arutha começou a manifestar discordância, mas acabouconsentindocomumsorrisosarcástico.

—Con eemsimesmo,Lyam.Seeunãoreclamaracoroa,terádeaceitá-la.—Aosairdatenda,acrescentoucomumagargalhada:—Nãoháoutroirmãoparareclamá-la.

Lyam cousozinho,bebendodistraídoovinho.Dandooutrolongosuspiro,disseasipróprio:

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—Háoutro irmão,Arutha, e queosdeusesme ajudema tomar a decisãocorreta.

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O

15

Legado

naviosoltouaâncora.A tripulação prendeu as velas nos mastros enquanto o grupo quedesceria fazia seuspreparativos.Meechamacompanhavaapreparação

doescaler.OsmagosestavamansiososparachegaraocastelodeMacros,poistinhammaisperguntasdoquetodososoutros.Aruthatambémestavacurioso,depois de se conformar com a viagem. Percebeu que tinha pouca vontade defazer parte do longo cortejo funerário que saíra de Ylith no dia em quezarparam. Enterrara o pesar pelo pai nas profundezas de seu ser; lidaria comissonoseudevidotempo.Laurie caracomKasumiparaajudarna integraçãodossoldadostsuraniàguarniçãoLaMutiana,depoisosencontrariaemRillanon.

Lyam e seus nobres tinham embarcado para Krondor, acompanhando oscorpos de Borric e Rodric. Anita e Carline se juntariam a eles e todosacompanhariam os mortos em uma procissão de Estado até Rillanon, ondeencontrariam o derradeiro descanso no túmulo de seus antepassados. Após operíodotradicionaldedozediasdeluto,LyamseriacoroadoRei.Aessaaltura,játeriamchegadoaRillanontodososqueiriamassistiràcoroação.AtarefadePugeKulgandeveriaestarconcluídaatempodechegaremàcapital.

O escaler cou pronto e Arutha, Pug e Kulgan se juntaram a Meecham.Depoisdeserdescidoatéaágua,seisguardaspegaramosremos.

Osmarinheirostinham cadobastantealiviadospornãoseremobrigadosaacompanhar o grupo que ia desembarcar, pois, ainda que os magos ostranquilizassem,nãotinhamqualquerdesejodepisarnaIlhadoFeiticeiro.

Oescaler foipuxadoparaapraia eospassageirosdesceram.Aruthaolhouaoredor.

—Nãopareceterhavidoqualquermudançadesdequeestivemosaqui.

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Kulganseespreguiçou,poisasinstalaçõesabordoeramexíguaseapreciavaasensaçãodeterrafirmesobospés.

— Ficaria surpreso se houvesse algumamudança. Aposto queMacros eradaquelesquegostavademanteracasaemordem.

— Vocês seis permanecerão aqui — disse Arutha ao se virar. — Se nosouviremchamar,venhamdepressa.—OPríncipecomeçouaseguirocaminhoque subia a colina e os outros foram atrás sem comentários. Alcançaram opontoondeocaminhoapresentavaumabifurcaçãoeAruthadisse:—Viemoscomoconvidados.Acheiqueseriamelhornãoparecermosinvasores.

Kulgannadadisse,umavezqueestavaocupadoobservandoocasteloqueseaproximava.A inusitada luzazulqueviramnitidamentenaúltimavisitaà ilhaestavaausenteda janelada torremaisalta.Ocasteloaparentavaestardeserto,sem movimentos nem sons. A ponte levadiça estava abaixada e o portão deferroerguido.

—Pelomenos,nãoteremosdeinvadirocastelo—comentouMeecham.Ao chegarem à ponte levadiça, pararam. O castelo se erguia acima deles,

comsuasmuralhasaltase torresaltaneiras,ameaçador.Tinhasidoconstruídocompedras escuras,quenão reconheciam.Emvoltadograndearcoacimadaponte,estranhascriaturasalienígenasesculpidasoscontemplavamcomolharesxos. Bestas aladas e com chifres estavam empoleiradas nas beiradas,aparentementeparalisadas,tãohabilmentetinhamsidotalhadas.

Pisaramnaponte e atravessarama ravina fundaque separavao castelodorestoda ilha.Meechamolhouparabaixo,vendoqueasmuralhasde rochadaaberturadesciamatéoníveldomar,ondeasondasbatiamnapassagem.

—Émaise cazdequemuitosfossosquejávi.Fazcomquesepenseduasvezesantesdeatravessarenquantoalguémfazpontariadasmuralhas.

Entraram no pátio e olharam ao redor, como se a qualquer momentoesperassemquealguémsurgisseemumadasmuitasportasnasmuralhas.Nãohavia sinal de criatura viva, mas os terrenos ao redor da fortaleza estavamcuidadoseemordem.

Comonãosurgiuninguém,Pugdisse:— Creio que encontraremos o que procuramos dentro da torre. — Os

outros avançaramcomele emdireçãoà grande escadariaque levava àsportasprincipais.Quandocomeçaramasubirosdegraus,asenormesportasforamseabrindo, até todos discernirem uma silhueta na escuridão mais à frente.

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Quandoasportas terminaramomovimentocomumestrondonasparedesdatorre,asilhuetaavançouparaaluzdodia.

Sempensar,Meechamdesembainhouaespada,poisacriaturadiantedelespareciamuitocomumgoblin.Apósumabreveveri cação,Meechamguardouaarma; a criatura não zera qualquer gesto ameaçador, limitando-se a esperarpelogruponotopodasescadas.

Eramais alta do que amaioria dos goblins, quase atingindo a estatura deMeecham. A testa era marcada por grossas saliências e o nariz volumosoconstituíaocentrodorosto,massuasfeiçõeserammaiselegantesdoqueasdeumgoblin.Doisolhosescurosquepiscavamobservavamogrupo,queretomouasubida.Quandochegaramao topo,acriaturamostrouosgrandesdentesemum sorriso aberto. Tinha a cabeça coberta por um denso tapete de cabelospretos e a pele revelava a tonalidade verde esmaecida da tribo dos goblins,emboranãoapresentasseaposturacorcundatípicadessascriaturas,mantendo-se ereta como umhomem.Vestia calça e túnica bem cortadas, ambas de corverde-clara. Nos pés, calçava um par de botas pretas polidas, que quasechegavamaosseusjoelhos.

— Bem-vindos, amos, bem-vindos — disse a criatura sorrindo. — SouGathise tenhoahonradeservircomoseuan triãonaausênciademeuamo.—Asuadicçãorevelavaumligeirosibilo.

—OseusenhoréMacros,oNegro?—perguntouKulgan.—Claro.Desdesempre.Entrem,porfavor.Os quatro homens acompanharamGathis até o grande vestíbulo, parando

para olhar ao redor. Com exceção da ausência de pessoas e dos habituaisestandartes com brasões, a entrada era muito semelhante à do castelo deCrydee.

—Omeuamodeixouinstruçõesprecisassobreasuavisita,tantoquantofoipossível prever, por isso preparei o castelo para a sua chegada.Querem algo?Tenhovinhoecomidapreparados.

Kulgan sacudiu a cabeça. Não sabia que criatura era aquela, mas não sesentiamuito tranquilocomalgo tão semelhanteaumservoda IrmandadedasTrevas.

—Macrosdissequedeixariaumamensagem.Antesdetudo,gostariadelê-la.

Gathisfezumabrevemesura.

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—Comoquiser.Acompanhem-me,porfavor.Conduziu-osporumasériedecorredoresechegaramaumaescadariaque

ascendiaemcaracolatéagrandetorre.Subiramosdegrausatéchegaremaumaportatrancada.

—Omeuamodissequeseriamcapazesdeabrirestaporta.Sefalharem,sãoimpostores,eeutereidesersevero.

Meecham agarrou o punho da espada ao ouvir aquelas palavras, mas Pugcolocouamãonobraçodocorpulentohomemlivre.

—Como o portal se fechou,metade demeu poder se perdeu, aquele queadquirideKelewan,masnãocreioqueissosejaumproblema.

Pugseconcentrouemabriraporta.Emvezdahabitualreaçãodeabrirparatrás,houveumaalteraçãonaprópriaporta:amadeirapareceusetornar uida,ondulandoàmedidaqueasuperfícieganhavanovaforma.Nãodemoroumuitoparaquevissemumrostoseformandonamadeira.Pareciaesculpidoembaixo-relevo, lembrando Macros. Era bastante vívido nos detalhes e pareciaadormecido.Emseguida,aspálpebrasseabrirametodosperceberamquehaviavidanosolhos, centrosnegros emum fundobranco.Aboca semexeu edelasaiu uma voz, produzindo um som grave e ressonante que falava tsurani comperfeição:

—Qualéoprimeirodever?—ServiroImpério—respondeuPugsempensar.O rosto voltou a se dissipar na porta e, quando já não restava qualquer

vestígiodele,aportaseabriu.EntraramnogabinetedeMacros,oNegro,umasalaenormequeocupavatodoopisosuperiordatorre.

—PresumoquetenhaahonradereceberosamosKulgan,PugeMeecham?—perguntouGathis.Olhouatentamenteparaoquartoelementodogrupo.—Deve ser o Príncipe Arutha. — Quando eles con rmaram, a criaturaprosseguiu: — O meu amo não tinha certeza se Sua Alteza viria, emboraachasseprovável.Tinhacertezaqueosoutrostrêscavalheirosiriamestaraqui.—Comamão, fez ummovimentoque abrangeu a sala.—Tudoo que estãovendo está ao seu dispor. Se me dão licença, regressarei com a mensagem etambémcombebidasecomida.

Gathis saiu e os quatro observaram o que o gabinete continha. Fora umaparedevaziadeondepareciaevidentequetinhasidotiradaumaestanteouumarmáriorecentemente,todooaposentoestavarodeadoporprateleirasdochão

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aoteto, todascarregadasde livrosepergaminhos.PugeKulganquase caramparalisadosdeindecisãoquantoaolocalondepoderiamcomeçarainvestigação.

Arutharesolveuoproblemaaoseaproximardeumaprateleiraondeestavaum grande pergaminho preso por uma ta vermelha. Tirou-o e o colocou namesaredondaqueseencontravanocentrodasala.Pelaúnicaeenormejanelado gabinete entrava um feixe de luz do sol que iluminava o pergaminhoenquantoodesenrolava.

KulganseaproximouparaveroqueoPríncipeencontrara.—ÉummapadeMidkemia!PugeMeechamficaramatrásdeKulganeArutha.—Masquebelomapa!—exclamouoPríncipeArutha.—Nunca vi nada

parecido.—Comodedo,indicouumpontoemumagrandemassaterrestrenocentro.—Vejam!AquiéoReino.—Emumapequenapartedomapaestavaminscritas as palavrasReino das Ilhas. Abaixo, viam-se as amplas fronteiras doImpério do Grande Kesh. Ao sul do Império, percebiam-se claramente osEstadosdaConfederaçãoKeshiana.

—Peloquesei—disseKulgan—,poucoshomensdoReinoseaventuraramnaConfederação.Asúnicasinformaçõesdequedispomossobreseusmembrosnos chegamatravésdo Império edeunspoucos capitãesmais temeráriosquevisitaramalgunsdeseusportos.Sabemososnomesdessasnações,enadamais.

—Emuminstante,aprendemosmuitosobreonossomundo—dissePug.—VejamcomooReinoésóumapequenapartedestecontinente.—Indicouavasta extensão de terras ao norte do Reino e a massa terrestre de grandeamplitudeabaixodaConfederação.OcontinenteinteiroestavamarcadocomainscriçãoTriagia.

— Parece que há muito mais a respeito de nossa Midkemia do quesonhamos— disse Kulgan. Indicou outras massas de terra do outro lado domar.EstavamassinaladascomoWiñeteNovindus.Emcadaumadessasregiõesestavam traçados estados e cidades. Também eram visíveis dois grandesarquipélagos, cujas ilhas tinhammuitas cidades assinaladas. Kulgan abanou acabeça. — Tem havido rumores de mercadores de terras longínquas que seaventuram até os portos mercantis da Confederação Keshiana, ou que têmcontatoscomospiratasdasIlhasdoOcaso,masnãopassamderumores.Nãoco admirado por nunca termos ouvido falar desses lugares. Só um capitãomuitoaudazlevariaoseunaviorumoaumportotãodistante.

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Foram despertados do estudo domapa pelo som deGathis retornando aogabinete.Traziaumabandejacomumjarroequatrocálicesdevinho.

—Omeuamomepediuque lhes comunicassequepoderiamdesfrutardahospitalidade deste lar pelo tempo que desejassem.— Colocou a bandeja namesae serviuovinhonoscálices.Emseguida, tirouumpergaminhodebaixoda túnica, entregando-o aKulgan.—Pediu-me que lhes entregasse isso.Voume retirar enquanto examinam amensagem demeu amo. Caso precisem demim,bastapronunciaremomeunomeeeuestareiaquiemuminstante.—Fezumaligeiramesuraesaiu.

Kulgan contemplou o pergaminho. Estava selado com um lacre preto, noqual estava gravada a letraM. Quebrou o lacre e desenrolou o pergaminho.Começoualersócomosolhos,paradepoisdizer:

—Vamosnossentar.Pugenrolouograndemapaeoguardou,regressandodepoisàmesaondeos

outros já estavam sentados. Puxou uma cadeira e aguardou comMeecham eArutha,enquantoKulganlia,sacudindoacabeçadevagar.

—Ouçam—pediu,começandoaleremvozalta:“Aos magos Kulgan e Pug, as minhas saudações. Previ algumas de suas

perguntase zoquepudepararesponderomelhorpossível.Temoquemuitasquem sem resposta, pois há coisas sobre a minha pessoa que terão depermanecer conhecidas somente por mim. Não sou o que os tsuranichamariam de Grande, embora tenha visitado aquele mundo diversas vezes,comoédoconhecimentodePug.Aminhamagiaéúnicaedesa adescriçõesemtermosdeCaminhoSuperiore Inferior.Bastadizerque souumandarilhodevárioscaminhos.Vejo-mecomoservodosdeuses,emborapossaseraminhavaidade falando. Sejaqual for a verdade, conhecimuitas terras e trabalhei emmuitas causas. Do início da minha vida, pouco direi. Não pertenço a estemundo, tendo nascido em uma terra distante, tanto no espaço quanto notempo. Não émuito diferente destemundo,mas são várias as razões que oslevariamaconsiderá-loestranho,tendoemcontaosseuspadrões.Tenhomaisanos do que aqueles que gosto de lembrar, sendo considerado velho até pelascontasdoselfos.Porrazõesincompreensíveis,vivi longosanos,emboraomeupovo seja tãomortal quantoo seu.Pode serque, ao entrarnas artesmágicas,conferi amimmesmo esta imortalidade, ainda que demodo inconsciente, oupode ser o dom, ou a maldição, dos deuses. Desde que me tornei feiticeiro,

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conheçoomeufuturo,assimcomooutrosconhecemoseupassado.Nuncafugidaquiloquesabiaquemeesperava,emboratantasvezesdesejassefazê-lo.Servigrandes reis, bem como simples camponeses. Vivi nasmaiores cidades e nascabanas mais rudimentares. Foram muitas as vezes em que entendi osigni cadodaminhaparticipação, emoutras issonão aconteceu,mas sempreseguiocaminhoquemefoipredestinado.”

Kulganparoudeler.—Issoexplicacomoeletinhatantosconhecimentos.—Retomoualeitura:“De todasasminhasobras, aminha funçãonaguerradoportal foi amais

penosa. Nunca antes senti tanta vontade deme afastar do caminho àminhafrente.Nuncaantesfuiresponsávelpelaperdadetantasvidas,eporelaschoromais do que possam imaginar. Contudo, ao considerarem a minha “traição”,tenhamemmenteaminhasituação.Nãoseriacapazde fechara fendasemaajuda de Pug. Estava destinado que a guerra teria de continuar enquanto eleaprendia o seu ofício em Kelewan. Pelo terrível preço pago, considerem osganhos.EmMidkemia,resideagoraalguémquepraticaaArteSuperior,queseperdeucomachegadadohomemduranteasGuerrasdoCaos.Osbenefícios,sóahistóriapoderádizer,mascreioqueserãovaliosos.Noquedizrespeitoaomomentoemquefecheioportal,quandoapazestavaaumpasso,possoapenasdizerqueerafundamental.OsGrandestsuranitinhamesquecidoqueosportaispodemserdetectadospeloInimigo.”

Kulganlevantouosolhos,surpreso.—Inimigo?Pug,precisoquemeexpliqueessareferência.PugexplicouresumidamenteoquesabiadolendárioInimigo.—Serápossívelqueexistaumserassimtãoterrível?—perguntouArutha.

Asuaexpressãorevelavaincredulidade.—Queexistiuoutrora,nãorestamdúvidas,equeaindaexistaumsercom

tais poderes, não é difícil de imaginar— disse Pug.— Contudo, de todas asrazões plausíveis para as ações de Macros, essa é a última que eu julgariapossível.NinguémnaAssembleiapensounisso.Éincrível.

Kulganretomoualeitura:“Para ele, é como um farol, atraindo aquela entidade terrível através do

espaçoedo tempo.Podiamsepassaranosantesqueaparecesse,mas,quandochegasse aqui, todos os poderes de seumundo teriam di culdades, talvez atéfossem insu cientes, para expulsá-lo de Midkemia. A fenda tinha de ser

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fechada. As razões pelas quais optei para me certi car de seu fechamento àcustadetantasvidasdevemserevidentesparavocês.”

—Oqueelequerdizercom“devemserevidentes”?—interrompeuPug.—Aoqueparece,Macrosestudaraanaturezahumana—disseKulgan.—

Poderia ter conseguido convencer o Rei e o Imperador a fechar o portal,havendotantoaganharaomantê-loaberto?Talvezsimoutalveznão,mas,sejacomofor,haveria sempreaquela tentação tãohumanademantê-loaberto“sómais umpouco”.Acho que ele sabia disso e certi cou-se de que essa escolhanãofossepossível.—Kulganvoltouàleituradopergaminho:

“Quantoaoqueiráaconteceragora,nãoseidizer.Aminhavisãodofuturoterminacomaexplosãodoportal.Seéaminhahoraousimplesmenteoiníciodeumanovaerademinhaexistência,nãoseidizer.Caso tenhamassistidoaomeu falecimento, decidi seguir o seguinte rumo: toda aminha pesquisa, comalgumasexceções,estácontidanestasala.DeveráserusadaparaaprofundarasArtesSuperioreInferior.Expressoomeudesejodequeseapossemdoslivros,pergaminhos e tomos aqui contidos e que os utilizem tendo em vista essanalidade.EstáseiniciandoumanovaépocademagianoReinoeémeudesejoqueoutrossebeneficiemdostrabalhosquedesenvolvi.Emsuasmãosdeixoestanovaépoca.”

—Estáassinado:“Macros”.Kulgancolocouopergaminhonamesa.—Entreasúltimaspalavrasquemedirigiudissequedesejavaserrecordado

combondade—dissePug.Ficaramcaladosporalgumtempo,atéqueKulganchamou:—Gathis!Empoucossegundos,acriaturasurgiuàporta.—Sim,amoKulgan?—Sabeoqueestepergaminhocontém?—Sim,amoKulgan.Omeuamofoibastanteexplícitoemsuasinstruções.

Certificou-sedequeteríamosconhecimentodesuasexigências.—Teríamos?—perguntouArutha.Gathismostrouoseusorrisodedentesgrandes.—Souapenasumdosserviçaisdemeuamo.Osoutrostêminstruçõespara

semanteremafastadosdesuavista,poiseletemiaqueapresençadelescausassedesconforto. O meu amo não tinha muitos dos preconceitos humanos e se

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satisfaziaemjulgarcadacriaturaqueencontravacombaseemseusméritos.—Oquevocêéexatamente?—perguntouPug.—Pertençoaumaraçaaparentadaaosgoblins,talcomooselfosemrelação

à Irmandade das Trevas. Éramos uma raça muito antiga e poucos de nóssobrevivemos,muito antesdeoshumanos chegaremaoMarAmargo.Osquerestaram,Macrostrouxeparacá,eeusouoúltimo.

Kulganobservouacriaturacomatenção.Apesardoaspecto,haviaalgonelaqueinspiravasimpatia.

—Eagora,quefará?—Aguardareioregressodomeuamo,mantendoacasaemordem.—Esperaqueeleregresse?—perguntouPug.—Éprovável.Daqui a umdia, oudaqui a umano, oudaqui a um século.

Nãoimporta.Quandoeleregressar,estarátudoemordem.—Eseeletiverfalecido?—perguntouArutha.—Nesse caso, envelhecerei emorrerei esperando,mas não acho que isso

tenha acontecido. Há muito tempo que sirvo o Negro. Entre nós há um...entendimento. Se tivesse morrido, eu saberia. Está simplesmente... ausente.Mesmo que tenhamorrido, poderá regressar. O tempo não tem, para omeuamo, o mesmo signi cado que tem para os outros homens. Fico feliz emesperar.

Pugponderouaquelaspalavras.—Elerealmentedevetersidoomestredetodaamagia.OsorrisodeGathisaumentou.— Ele teria rido ao ouvir isso, amo. Estava sempre se queixando de que

aindahaviatantoparaaprenderetãopoucotempoparafazer.Issovindodeumhomemquejáviveraanosincontáveis.

—Temosde buscar homenspara carregar tudo isso para onavio—disseKulganaoselevantardacadeira.

—Não sepreocupe, amo—disseGathis.—Voltemao seunavioquandoestiverempreparados.Deixemdoisescaleresnapraiadaenseada.Aoprimeiroraio de sol do dia seguinte, encontrarão tudo a bordo, preparado para oembarque.

Kulganbalançouacabeçaemsinaldeconcordância.—Muitobem; entãodevemos começar a catalogar todas estasobras antes

deastirarmosdaqui.

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Gathisfoiatéumaprateleira,regressandocomumpergaminhoenrolado.— Antecipando suas necessidades, amo, preparei uma lista com todas as

obrasqueaquiseencontram.Kulgan desenrolou o pergaminho e começou a ler o inventário das obras.

Arregalouosolhos.—Ouçam—exclamou,excitado—,háaquiumacópiadas Expectativasde

TransformaçãodeMatéria ,deVitalus.—Osolhossearregalaramaindamais.— E aPesquisa Temporal , de Spandric. Esta obra era tida como perdida háséculos! — Olhou para os outros, que evidenciavam espanto. — Além decentenasdevolumescomonomedeMacros.Trata-sedeumtesourodevalorincalculável.

—Ficosatisfeitocomessaavaliação,amo—disseGathis.Kulgan começou apedir que lhe trouxessemaqueles volumes,masArutha

disse:—Espere, Kulgan. Assim que começar, teremos de amarrá-lo para tirá-lo

daqui. Regressemos ao navio e aguardemos que tudo isso seja levado para lá.Temosdezarparembreve.

Kulgan lembrava uma criança de quem roubaram o doce. Arutha, Pug eMeechamriramcomavisãodocorpulentomago.

— Não há motivos de força maior para que quemos — disse Pug. —Teremos anospara estudar tudo isto após a coroação.Olhe ao redor,Kulgan.Pretendeinalartudoistodeumsófôlego?

UmaexpressãoresignadaatravessouorostodeKulgan.—Muitobem.Pugpassouogabineteemrevista.—Pensebem.Umaacademiaparaoestudodamagia, comabibliotecade

Macrosnocentrodetudo.OsolhosdeKulganseiluminaram.— Tinha quase me esquecido do legado do Duque. Um lugar de

conhecimento.Oaprendizdeixarádeaprendersócomoseumestre,umavezque terá vários. Com este legado e seus ensinamentos, Pug, começamosmaravilhosamente.

—Émelhorpartirmos,seéquequeremoscomeçaralgumacoisa—avisouArutha.—HáumnovoReiparasercoroadoequantomaisnosdemorarmos,maisprovávelseráquevocêsepercaaquidentro.

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Kulganassumiuumarofendido.—Bem,levareialgumascoisinhasparaestudarenquantoestiverembarcado,

casonãotenhaobjeções.Aruthaergueuumamãoconciliatória.—Comoquiser—disse,comumsorrisopesaroso.—Mas,por favor,não

maisdoquesejapossívelcarregaratéoescaler.Kulgansorriu,mostrandoumestadodeespíritomaisalegre.—Combinado.—Virou-separaGathis.—Poderiame trazeraquelesdois

volumesquemencionei?Gathis apresentou os dois volumes, velhos e bastante usados. Kulgan

pareceusurpreso,enquantoGathisexplicava:— Achei que chegariam a esse acordo, por isso os tirei das prateleiras

enquantodiscutiamoassunto.Kulgan caminhou para a porta, sacudindo a cabeça devagar enquanto

contemplavaosdois livrosque levava.OsoutrososeguirameGathis fechouaporta quando saíram. A criatura semelhante a um goblin os conduziu até opátio,desejando-lhesboaviagemàportadatorre.

Quandoasgrandesportassefecharamatrásdeles,Meechamdisse:—EssetaldeMacrospareceterlevantadocincoperguntasparacadaumaa

querespondeu.—Temrazão,velhoamigo—disseKulgan.—Talvezconsigamosentender

muitomais pelas suas notas e outras obras. Talvez não, e talvez sejamelhorassim.

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R

16

Renascimento

illanonestavaemfesta.Por todo lado se viam estandartes esvoaçando ao vento e grinaldas deores da estação no lugar dos panos pretos que tinham assinalado o

períododelutopelofalecidoReieporseuprimoLordeBorric.ChegaraahoradecoroarumnovoReieopovoestavaalegre.OpovodeRillanonpoucosabiasobre Lyam,mas ele era bonito e generoso em distribuir sorrisos ao público.Paraopovo,eracomoseosol tivessesaídodetrásdasnuvenscarregadasquetinhasidooreinadodeRodric.

Entreopovo,poucoseramosquepercebiamosmuitosmembrosdaguardareal que circulavampela cidade, sempre alertas a sinais de agentes e possíveisassassinosdeGuyduBas-Tyra.Eramaindamenososquesedavamcontadoshomensdevestes simplesqueestavamsempreporpertoquandoalgumgrupodiscutiasobreonovoRei,ouvindooqueeradito.

Aruthaavançouagalope,sempressa,emdireçãoaopalácio,deixandoPug,Meecham e Kulgan atrás. Amaldiçoou o destino que os tinha atrasado quaseuma semana, privando o navio de ventos a menos de três dias de Krondor,seguindo-seademoradaviagematéSalador.AmanhãjáestavanametadeeosSacerdotes de Ishap já exibiam anova coroa doRei pelas ruas. Emmenos detrêshorasapareceriamdiantedotronoparaqueLyamaceitasseacoroa.

Arutha chegou ao palácio e logo ecoaram gritos dos guardas por todo oamplopátio:

—OPríncipeAruthaestáchegando!OPríncipepassouocavaloaumpajeme subiucorrendoa escadaria atéo

palácio. Ao chegar à entrada, Anita surgiu correndo até ele, com um sorrisoradiantenorosto.

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—Oh—exclamou—,étãobomvoltaravê-lo!—Também é bom vê-la— disse ele, sorrindo também.— Tenho deme

prepararparaacerimônia.OndeestáLyam?— Escondeu-se no Sepulcro Real. Deixou recado para que você fosse

imediatamenteaoseuencontro.—Avozdemonstrouinquietação.—Háalgoestranho aqui, mas ninguém parece saber o quê. Somente Martin do ArcoestevecomLyamdesdeojantardeontemànoite,e,quandoeuviMartinpelaúltimavez,eleestavacomumaexpressãoestranhíssima.

Aruthariu.—Martinandasemprecomaresestranhos.Venha,vamosverLyam.Elaserecusouadeixá-loignoraraadvertência.— Não, vá sozinho; foi o que Lyam ordenou. Além disso, tenho de me

prepararparaacerimônia.Mas,Arutha,háalgomuitosuspeitonoar.Arutha pareceu car mais pensativo. Anita costumava perceber aquelas

situações.—Muito bem.De qualquer forma, tenho de esperar que tragam osmeus

pertencesdonavio.IreimeencontrarcomLyame,quandotodoessemistériofordesvendado,ireimejuntaravocênacerimônia.

—Fazbem.—OndeestáCarline?—Correndopararesolverissoeaquilo.Euaavisodesuachegada.Beijou-onorostoe foiemboraapassorápido.Aruthanãovisitavao jazigo

de seus antepassados desde que era criança, na época emque fora aRillanonpara a coroaçãodeRodric.Pediu aumpajemqueo levasse até lá eo rapazoconduziuatravésdeumlabirintodecorredores.

Aolongodostempos,opaláciosofreradiversas transformações:novasalasforam acrescentadas, novas construções em cima das que tinham sidodestruídaspelo fogo,por terremotosoupelaguerra;noentanto,nocentrodoenorme edifício ainda havia a antiga torre.A única indicação de que estavamentrando nos salões antigos foi o surgimento repentino de paredes de pedraescura,alisadaspelaaçãodotempo.Doisguardasvigiavamaporta,porcimadaqual estava esculpido um brasão em baixo-relevo dos reis conDoin: um leãocomcoroaqueseguravaumaespadanasgarras.

—PríncipeArutha—disseopajem,eosguardasabriramaporta.Aruthaentrounapequenaantecâmara,ondeseviaumaescadariaquedescia.

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Desceu os degraus passando por las de tochas que ardiam intensamente,manchandoaspedrasdasparedesde fuligemnegra.Osdegraus terminarameArutha se viu diante de uma grande entrada em arco. De ambos os ladoserguiam-se as estátuas heroicas de antigos reis conDoin. À direita, de feiçõesatenuadas pelo tempo, estava a estátua de Dannis, primeiro Rei conDoin deRillanon, que reinara cerca de setecentos e cinquenta anos atrás.À esquerda,erguia-seaestátuadeDelong,oúnicoReichamadode“oGrande”,poisforaoqueprimeirolevaraoestandartedeRillanonatéocontinentecomaconquistadeBas-Tyra,duzentosecinquentaanosapósDannis.

Arutha passou entre as efígies de seus antepassados e entrou na cripta.Avançou entre seus ancestrais, sepultados nas paredes e em grandescatacumbas.Reise rainhas,príncipeseprincesas, ladrõese tratantes, santoseeruditos ladeavam o caminho. Na extremidade mais distante da enormecâmara,encontrouLyamsentadojuntoaocatafalcoquesustentavaocaixãodepedra do pai. Uma imagem de Borric havia sido esculpida na superfície docaixão,dandoaideiadequeofalecidoDuquedeCrydeeestavaadormecido.

Aruthaseaproximoudevagar,poisLyampareciaabsortoempensamentos,masestelevantouacabeçaedisse:

—Temiaquenãochegasseatempo.—Eutambém.Apanhamosumtempoinfelizquenãonospermitiuavançar

rápido,masestamostodosaqui.Agora,oquesepassa?Anitamedissequevocêpassouanoitetodaaquiefaloudaexistênciadeummistério.Oqueé?

—Penseimuito no assunto,Arutha. Todo o Reino saberá daqui a poucashoras,masqueriaquesoubesseoque zeouvisseoquetenhoadizerantesdosoutros.

—AnitadissequeMartinesteveaquicomvocê,hojedemanhã.Oqueestáacontecendo,Lyam?

OHerdeiro se afastou do túmulo do pai, apontando. Inscritas nas pedras,podiamseleraspalavras:

AquijazBorric,TerceiroDuquedeCrydee,MaridodeCatherine,

PaideMartin,Lyam,

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OAruthaeCarline.

s lábios de Arutha se moveram, mas não se ouviu qualquer palavra.Sacudiuacabeçaeperguntou:

—Queloucuraéesta?LyamsecolocouentreAruthaeaimagemdopai.—Nãoé loucura,Arutha.NossopaireconheceuMartinnoleitodemorte.

Eleénossoirmão.Éofilhomaisvelho.OrostodeAruthacontorceu-sederaiva.—Porquenãomecontou?—Suavozrevelavaangústia.—Comquedireito

ocultouissodemim?Lyamsubiuotomdevoz:—Todososquesabiamjuraramguardarsegredo.Nãopodiamarriscarque

soubessemantesqueapazfosseassinada.Haviamuitoaperder.Aruthaempurrouoirmãoparaolado,olhandoincréduloparaainscrição.—Agorafaztodoosentido,deumaformaperversa.AexclusãodeMartin

da Escolha. O fato de nosso pai querer sempre saber do paradeiro dele. Aliberdadedeviajarcomoquisesse.—OressentimentoressoounaspalavrasdeArutha.—Mas por que agora? Por que nosso pai reconheceriaMartin apóstantosanosdenegação?

LyamtentouconsolarArutha:— Reuni os elementos que consegui com Kulgan e Tully. Além dos dois,

maisninguémsabia,nemFannon.Nossopai couhospedadonacasadeBrucalduranteoprimeiroanoemqueexerceuocargo,depoisdofalecimentodenossoavô.Envolveu-secomumacriadabonitaquegerouMartin.Passaram-secincoanos até nosso pai saber de sua existência. Ele viera para a corte, conheceranossamãeeosdois se casaram.Quando teve conhecimentodeMartin, ele játinha sido abandonadopelamãe, que o deixara comosmonges daAbadia deSilban. Nosso pai optou por deixá-lo aos cuidados deles. Quando eu nasci,nosso pai começou a sentir remorsos por ter um lho que não conhecia e,quando completei seis anos, Martin estava pronto para a Escolha. Nosso paitratou de trazê-lo para Crydee. Contudo, não o reconheceu por medo dehumilharnossamãe.

—Masporqueagora?

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Lyamolhouparaaimagemdopai.—Quem sabe o que passa pela cabeça de umhomemnosmomentos que

antecedem amorte? Talvez culpa, ou certo sentido de honra. Seja qual for omotivo,reconheceuMartineBrucalfoisuatestemunha.

AraivaaindaestavapresentenavozdeArutha:— Agora, temos de lidar com toda esta loucura, independentemente das

razõesquelevaramnossopaiacriá-la.—FitouLyamcomumolharsevero.—Oqueeledissequandootrouxeaqui?

Lyamdesviouoolhar,comosesofressecomoqueestavarelatando.—Ficouemsilêncio,atéqueovichorar.Por m,disse:“Fico felizporele

ter lhe contado.” Arutha, ele sabia.— Lyam agarrou o irmão pelo braço.—Todos esses anos, nosso pai julgava que Martin ignorava seu direito denascença,maselesabia.Nemumaúnicaveztentouusaresseconhecimentoemseuproveito.

AraivadeAruthaserenou.—Dissemaisalgumacoisa?—Somente“Obrigado,Lyam”esaiu.Arutha começou a andar de um lado para outro, até que se voltou para

Lyam.—Martinéumbomhomem,dosmelhoresquejáconheci.Sereioprimeiro

aadmiti-lo.Masessereconhecimento!Meusdeuses,vocêsabeoqueprovocou?—Tenhoplenaconsciênciademeusatos.— Colocou na balança tudo o que conseguimos conquistar ao longo dos

últimosnoveanos. Iremosagoraenfrentarambiciosos senhoresorientais casodecidamsereuniremapoioaMartin?Acabamosumaguerraparacomeçarmosoutraaindamaisimplacável?

—Nãohaverácontestação.Aruthaparoudeandar.Apertouosolhos.—Comoassim?Martinprometeunãoreivindicaroseudireito?—Não.DecidinãomeoporaMartin,casoelequeiraacoroa.Arutha cou atônitoporummomento, emchoque enquanto tavaLyam.

Pela primeira vez, compreendia as terríveis dúvidas que o irmão expressarasobresetornarRei.

—VocênãoquerserRei—disse,emtomacusador.Lyamriuamargamente.

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—Ninguémemseuperfeitojuízodesejaria.Foivocêquedisse, irmão.Nãoseiseeuestariaàalturadosfardosdarealeza.Contudo,agoranãodependedemim.SeMartinreclamaracoroa,reconhecereiseudireito.

—Seudireito!O sinete real passoupara a suamão,diantedamaioriadosLordesdoReino.VocênãoéumErlanddoentesesubmetendodiantedo lhodoirmãoemrazãodasaúdedebilitadaedenãoexistirumasucessãoevidente.VocêfoinomeadoHerdeiro!

Lyamabaixouacabeça.—Aproclamaçãodasucessãonãotemvalidade,Arutha.Rodricmenomeou

Herdeiroporsero“primogênitoconDoin”,algoquenãosou.Martiné.Aruthaconfrontouoirmão:— Um belo aspecto legal, Lyam, que poderá signi car a destruição deste

Reino! Se Martin expressar sua pretensão perante o congresso reunido, osSacerdotes de Ishap irão partir a coroa e o assunto passará para oCongressodos Lordes, para aí encontrarem uma solução. Mesmo com Guy naclandestinidade, existemdezenasdeDuques, vintenasdeCondeseumahostedeBarõesquedebomgradocortariamagargantadosvizinhospara convocarum congresso desses. As negociações desse gênero acabarão commetade dosEstados do Reino mudando de mãos em troca de votos. Seria um autênticocirco! Se você aceitar a coroa, Bas-Tyra não poderá agir. Porém, se apoiarMartin,serãomuitososqueserecusarãoasegui-lo.Umimpassenocongressoé exatamente o que Guy deseja. Aposto tudo o que tenho em como ele seencontra em algum lugar na cidade neste exato momento, maquinando paraqueocorraessareunião.Seoslordesorientaisserecusaremaaceitaradecisão,Guysurgiráeserãomuitososquesereunirãosoboseuestandarte.

Lyampareciadesoladocomaspalavrasdoirmão.—Nãoseidizeroqueocorrerá,Arutha.Oqueseiéquenãopodiateragido

deoutraforma.AruthapareciaprestesabateremLyam.—Vocêpodeterherdadoofardodosentidodehonrafamiliardenossopai,

mascaberáatodosnósenfrentaromassacre!Peloamordoscéus,Lyam,oqueachaque iráacontecer seumcaçadoratéagora semnomese sentarno tronoconDoin simplesmente porque o nosso pai andou metido com uma criadabonitinhaháquasequarentaanos?Iráestourarumaguerracivil!

Lyammostrou-seinflexível:

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— Se trocássemos de posição, você teria negado aMartin o seu direito àprogenitura?

AraivadeAruthasedissipou.Olhouparaoirmãocomevidenteassombro.—Deuses!VocêsesenteculpadopelofatodenossopaiterrenegadoMartin

avidatoda,nãoéverdade?—Afastou-sedeLyam,comosequisessevê-loemperspectiva.—Setrocássemosdeposição,semdúvidaeunegariaaMartinseudireito de progenitura. Após trinta e sete anos, que diferença poderão fazermaisunsdias?DepoisdemetornarReiedeestar rmeemmeutrono,entãoonomearia Duque, iria lhe dar um exército para comandar, faria deleConselheiro Principal, o que quer que fosse preciso para aliviar a minhaconsciência,mas somente após ter o Reino seguro.Não desejaria queMartinpassasse por Borric, o Primeiro, e Guy fosse Jon, o Pretendente, e faria opossívelparaqueissonãoacontecesse.

Lyamsuspirou,desapontado.—Então você e eu somos dois tipos de homemmuito diferentes,Arutha.

Disse-lheno acampamentoquedaria um reimuitomelhordoque eu.Talveztenharazão,masoqueestáfeitoestáfeito.

—Brucalsabedisso?—Sónóstrês.—OlhoudiretamenteparaArutha.—Sóos lhosdenosso

pai.Aruthaenrubesceu,irritadocomaobservação.— Não me entenda mal, Lyam. Tenho grande afeto por Martin, mas

estamos tratando de questões muito além da consideração pessoal. — Ficoupensando por um instante.—Quer dizer que está tudo nasmãos deMartin.Aindabemquevocênãotornouoassuntopúblico.OchoqueserágrandecasoMartin avance na coroação. Pelo menos poderemos nos preparar comantecedência.

Aruthaavançouparaasescadas,parouesevirouparaoirmão.— O que disse serve para os dois lados, Lyam. Talvez o fato de não

conseguirnegarMartinfaçadevocêumReimelhordoqueeuseria;porém,pormais que o ame, não permitirei que o Reino seja destruído por causa dasucessão.

Lyamparecia incapaz de continuar a discutir como irmão.A fadiga, umaresignação penosa perante o que o destino reservava, transpareceu em suaspalavras:

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P

—Oquevaifazer?—O que temde ser feito.Voume certi car de que aqueles que nos sãos

leais sejam avisados. Caso seja necessário combater, pelo menos teremos avantagemdasurpresa.—Fezumapausa.—OmeuafetoporMartinégrande,Lyam,precisasaberdisso.Quandoerapequeno,euoacompanheiváriasvezesemcaçadaseelesereveloucrucialquandotivemosdelevarAnitaemsegurançaparalongedoscãesdeguardadeGuy,umadívidaquejamaisconseguireisaldar.Em outro tempo e lugar, eu o aceitaria como meu irmão de braços abertos.Contudo,casohajaderramamentodesangue,Lyam,debomgradoomatarei.

Aruthasaiudacriptadeseusantepassados.Lyam cousozinho,sentindoafriezadeséculospenetraremsuapele.

ugolhoupelajanela,entregueareminiscências.Katalachegouaoseuladoeeledespertoudosdevaneios.—Você está linda—disse Pug. Ela usava um vestido comprido de tecido

vermelho-escurobrilhante,enfeitadocomdouradonocorpeteenasmangas.—AmaiseleganteDuquesadacortenãoestaráàalturadesuabeleza.

Katalasorriuaoouviroelogio.— Obrigada, marido. — Rodopiou, exibindo o vestido. — Acho que seu

Duque Caldric é um verdadeiro mago. Como o pessoal dele conseguiuencontrar todas estas coisas e aprontá-las em apenas duas horas é verdadeiramagia.—Deupalmadinhasna saia comprida.—Éprecisopráticaparaandarcomessesvestidoscompridosepesados.Achoquepre roastúnicascurtasdemeu mundo. — Afagou o tecido. — Ainda assim, é um tecido maravilhoso.Neste seu mundo frio, vejo a necessidade. — O tempo esfriara, agora que overão estava acabando. Dentro de menos de dois meses, a neve começaria acair.

—Seachaqueagoraestáfrio,espereatéchegaroinverno,Katala.Williamentroucorrendo,vindodoquartoadjacente.— Mamãe, papai — gritou com uma exuberância infantil. Trajava uma

túnica e calças dignas de um pequeno nobre, de tecido e confecçãoexcepcionais. Saltou para os braços estendidos do pai. — Aonde vão? —perguntou,deolhosarregalados.

— Vamos ver Lyam ser coroado Rei, William — respondeu Pug. — Nanossaausência,presteatençãoaoqueaamadizenãoaborreçaoFantus.

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Omeninobalançou a cabeça,maso sorrisinho endiabradodeixoudúvidasquantoàsuacredibilidade.AcriadaquevinhatomarcontadeWilliamentrouelhedeuamão,levando-odevoltaaoquarto.

PugeKatalasaíramdosaposentosqueCaldriclhesatribuíraesedirigiramàsala do trono. Quando viraram em um corredor, viram Laurie saindo de seuquarto,comumnervosoKasumiaoseulado.

Aovê-los,Laurieseanimou,dizendo:—Ah!Aíestão.Esperavavê-losantesdoiníciodascerimônias.Kasumi fezumamesura aPug, emboraomago estivesse vestido comuma

elegantetúnicaecalçasmarrom-avermelhadasemvezdomantonegro.—Grande—cumprimentou.—Aqui,issofazpartedopassado,Kasumi.Porfavor,mechamedePug.—Vocêsdoisestãomuitobemderoupaeuniformenovos—disseKatala.Laurie usava roupas coloridas de acordo com a moda mais recente, uma

túnicaamarelacomumcoleteverdeporcimaecalças justasepretas,en adasembotasaltas.KasumiestavavestidocomouniformedeCapitãoCavaleirodaguarniçãoLaMutiana,túnicaecalçasverde-escuraseotabardocomacabeçadelobopardodeLaMut.Omenestrelsorriu.

—Com toda a excitação dos últimosmeses, atéme esqueci de que tinhacomigoumapequenafortunaempedraspreciosas.Comonãopossodevolvê-lasaoLordeShinzawaieo lhoserecusaarecebê-las,parecequetenhodireitoaelas. Já não terei de me preocupar em encontrar uma viúva que tenha umaestalagem.

—Kasumi,comovãoascoisascomseushomens?—perguntouPug.— Nada mal, embora ainda exista algum desconforto entre eles e os

soldados LaMutianos. Passará, com o tempo. Encontramos a Irmandade umasemana depois de partirmos. São bons combatentes, mas os derrotamos. Naguarnição, todos os homens celebraram, tsurani e LaMutianos. Foi um bomcomeço.

Abatalha foramaisdoqueKasumi contara.Anotícia chegara aRillanon.OsIrmãosdasTrevase seusaliadosgoblins tinhamatacadoYabon, invadindouma das guarnições fronteiriças, enfraquecida durante a guerra. Os tsuranitinhamfeitoumdesviodamarchaparaZūn,entãoseprecipitaramparaonortee libertaramaguarnição.Lutaramcomo loucospara livrarosantigos inimigosda hoste mais numerosa de goblins e conseguiram rechaçá-los para as

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montanhasaonortedeYabon.LauriepiscouoolhoparaPug.—Umavezquesetornaramheróis,nossosamigostsuraniforamrecebidos

calorosamentequandochegaramaquiemRillanon.—Comoestavamafastadosdocentrodaguerra,oshabitantesdacidadenãosentiammuitomedonemódiopelos antigos inimigos, recebendo-os de forma que seria impensável nasCidades Livres, em Yabon ou ao longo da Costa Extrema. — Creio que oshomensdeKasumificaramumpoucoatordoadoscomtudo.

—Éclaroque caram—concordouKasumi.—Umarecepçãocomoaquetivemosteriasidoimpossívelemnossomundo,masaqui...

— Ainda assim — prosseguiu Laurie —, parecem estar se habituandodepressa.OshomensdesenvolveramumrápidoapreçopelosvinhosecervejasdoReinoeparecequeatéconseguiramsuperaraaversãopormulheresaltas.

Kasumidesviouoolharcomumsorrisoconstrangido.—OnossoarrojadoCapitãoCavaleirofoirecebidoháumasemanaporuma

das nossas famílias de mercadores mais abastadas, que procura desenvolvermais negócios com o Oeste — disse Laurie. — Desde então é vistoregularmentenacompanhiadafilhadecertomercador.

KatalariuePugsorriucomoembaraçodeKasumi.—Elesemprefoiumalunoqueaprendedepressa—dissePug.Kasumi abaixou a cabeça, as bochechas vermelhas, mas revelando um

grandesorriso.— Ainda assim, é difícil conceber a enorme liberdade de que dispõem as

suascompatriotas.Agoraperceboporqueosdoiseramtãoobstinados.Devemteraprendidocomassuasmães.

AatençãodeLauriefoidesviadaporalguémqueseaproximava.Pugreparouna expressão de evidente admiração no rosto do trovador. O mago se virou,sendo agraciado pela visão de uma belamulher que se aproximava com umaescoltadeguardas.ArregalouosolhosaoreconhecerCarline.Eraumamulherencantadora, como a adolescência prometera. Ela se aproximou deles e, comum aceno, dispensou a guarda. Tinha um ar majestoso no elegante vestidoverde,comumatiaracravejadadepérolassobreocabelopreto.

—Mestremago—disseela—,nãocumprimentaumavelhaamiga?PugfezumamesuradiantedaPrincesa,sendoimitadoporKasumieLaurie.

Katalafezumaligeiramesura,talcomoumadascriadaslheensinara.

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—Princesa,me lisonjeia ao se lembrar de um simples garoto da torre—dissePug.

Carlinesorriu,comumbrilhonosolhosazuis.—Oh,Pug...vocênuncafoinadasimples.—Olhouparaalémdele,vendo

Katala.—Ésuaesposa?—QuandoPugcon rmoueasapresentou,aPrincesadeuumbeijonorostodeKatala,dizendo:

— Minha querida, ouvi dizer que era bonita, mas as descrições de meuirmãonãolhefizeramjustiça.

—VossaAltezaémuitoamável—respondeuKatala.Kasumiretomouocomportamentonervoso,masLaurienãotiravaosolhos

da jovemmulher de verde. Katala teve de puxá-lo com força pelo braço pararecuperaraatençãodomenestrel.

— Laurie, pode mostrar um pouco do palácio para mim e para Kasumi,antesdoiníciodacerimônia?

Laurie mostrou um sorriso de orelha a orelha, fez uma mesura eacompanhouKasumieKatalapelocorredor.PugeaPrincesa caramvendo-osdesaparecer.

—Asuamulherémuitoperspicaz—disseCarline.Pugsorriu.—Nãohádúvidadequeéexcepcional.Carlinepareciarealmentefelizporvê-lo.—Peloquesei,tambémtemumfilho.—William.Éendiabrado,masémeutesouro.NaexpressãodeCarlinesurgiuumvestígiodeinveja.—Gostariadeconhecê-lo.—Fezumapausa,acrescentandoemseguida:—

Vocêtemmuitasorte.—Muitasorte,Alteza.Elalhedeuobraçoecomeçaramaandarsempressa.—Tão formal,Pug?Oudevochamá-lodeMilamber, comoouvidizerque

eraconhecido?Pugviuqueelasorriaesorriutambém.—Às vezes, não sei, embora aqui Pug pareçamais adequado.—Fez uma

careta.—Parecequeouviumuitoameurespeito.Elasimulouumbeicinho.—Vocêsemprefoimeumagopreferido.

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Gargalharamjuntos.Depois,baixandoavoz,Pugdisse:—Lamentomuitoamortedeseupai,Carline.Elaficouumpoucotriste.—Lyammecontouquevocêestavapresentenoúltimomomento.Ficofeliz

por ele ter visto, antes demorrer, que regressou são e salvo. Sabia que ele otinhaemgrandeestima?

Pugsentiu-seenrubescerdeemoção.— Deu-me um nome de família; não deve haver melhor forma de

demonstrá-lo.Vocêsabiadisso?Carlineanimou-se.—Sabia, Lyam tambémme contou.Agora somospraticamente primos—

observou, rindo. Caminhando, ela falou em voz baixa: — Você foi o meuprimeiro amor,Pug,mas, acimade tudo, foi sempremeu amigo.Estoumuitofelizporverquemeuamigovoltouparacasa.

Eleparou,dando-lheumbeijodelicadonorosto.—Eseuamigoestámuitofelizporestaremcasa.Enrubescendoumpouco,elaolevouatéumpequenojardimemumterraço.

Avançaram para o sol resplandecente e sentaram-se em um banco de pedra.Carlinesuspiroudemoradamente.

—QuemmederaquemeupaieRolandpudessemestarpresentes.—TambémfiqueiarrasadoaosaberdamortedeRoland—afirmouPug.Elasacudiuacabeça.—Aquelebrincalhãoviveumaisemseuspoucosanosdoquegrandeparte

dos homens em toda uma vida. Escondia-se muito atrás daqueles modoslibertinos,mas,sabe,achoquedevetersidoumdoshomensmaissensatosqueconheci até hoje. Agarrava cada minuto e espremia dele toda a vida queconseguia. — Pug a olhou e viu que tinha os olhos brilhando com asrecordações.—Seaindaestivessevivo,euteriamecasadocomele.Descon oque discutiríamos todos os dias, Pug; oh, como ele conseguiame irritar.Mastambémmefaziarir.Ensinou-metantosobreavida.Guardareiparasempreasuamemóriacomomaiorcarinho.

— Fico feliz por ver que aceitou suas perdas, Carline. Tantos anos comoescravoedepois comomagoemoutromundomemudarambastante.Aoqueparece,vocêtambémmudoubastante.

Elainclinouacabeçaparacontemplá-lo.

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—Não creio que você tenha mudado tanto assim, Pug. Aí dentro, aindaexisteumapartedaquelegaroto,daqueleque cavasempretãoperturbadocomaatençãoqueeulhedava.

Pugriu.—Acho que tem razão.De certa forma, você tambémnãomudoumuito,

pelomenos parece que aindamantémo jeito para perturbar os homens, se équepossodeduzirissopelareaçãodomeuamigoLaurie.

Ela sorriu,mostrandoum rosto radiante, ePug sentiuumaperto leve, umeco daquilo que sentira quando era criança. Contudo, agora não sentia maisdesconforto,poissabiaqueamariaCarlineparasempre,emboranãodaformaqueimaginaranaadolescência.Maisdoqueumapaixãotumultuosaoudoquealigação profunda que tinha com Katala, sabia que seus sentimentos eram deafetoeamizade.

CarlineretomouoúltimocomentáriodePug:—Aquelebelolouroqueestavacomvocêaindahápouco,quemera?Pugsorriucomarcúmplice.—Seusúditomais leal,aoqueparece.ÉLaurie,umtrovadordeTyr-Soge

ummalandrodeperspicáciaecharmeilimitados.Possuibomcoraçãoeespíritocorajoso, e é um verdadeiro amigo. Um dia, irei lhe contar como salvou aminhavida,arriscandoasua.

Carlinevoltouainclinaracabeça.—Parece-me um indivíduo intrigante.—Pug percebeu que, emboramais

velhaemaiscontida,poisconheceraa tristeza,emgrandeparteelanão tinhamudado.

—Certavez,brincando,prometiqueaapresentariaaele.Agora,estoucertodequeeleficariaencantadoemconhecê-la,Alteza.

— Então temos de providenciar isso.— Levantou-se.— Tenho de ir mepreparar para a coroação. Logo os sinos tocarão e os sacerdotes irão chegar.Voltaremosaconversaroutrahora,Pug.

Eletambémselevantou.—Seráumprazer,Carline.Ofereceu-lheobraço.Umavozvindadetrásdisse:—EscudeiroPug,possofalarcomvocê?Viraram-seeviramMartindoArcoafastado,nofundodojardim.Fezuma

mesuraàPrincesa.

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—Mestre Martin do Arco! — exclamou Carline. — Aí está você. Desdeontemquenãoovia.

Martinesboçouumsorriso.—Precisei carsozinho.EmCrydee,quandosintoessanecessidade,voltoà

oresta. Aqui — indicou o grande jardim no terraço —, foi o melhor queconseguiarranjar.

Carlineoolhouperplexa,masnãodeumaiorimportânciaaocomentário.—Bem, espero que consiga assistir à coroação.Agora, seme dão licença,

tenhodeir.—Recebeuasdespedidascortesesdeambosefoiembora.—Ficofelizporvoltaravê-lo,Pug—disseMartin,olhandoparaomago.—Eeuavocê,Martin.Detodososmeusantigosamigosaquipresentes,éo

últimoquereencontro.TirandoosqueaindaestãoemCrydee,vocêcompletouomeu regresso.—PugpercebeuqueMartin estavapreocupado.—Háalgumproblema?

Martinolhouparaalémdojardim,paraacidadeeomardistante.—Lyammecontou,Pug.Disse-mequevocêtambémsabe.Pugentendeudeimediato.—Euestavapresentequandoseupaimorreu,Martin—disseemvozcalma.Em silêncio,Martin começou a caminhar e, ao chegar ao muro baixo de

pedraquerodeavaojardim,agarrou-ocomforça.—Omeupai—disse,comamargura.—Quantosanosespereiparaouvi-lo

dizer: “Martin, sou seu pai.” — Engoliu em seco. — Nunca quis saber deherançaecoisasassim.Contentava-meemseroMestredeCaçadeCrydee.Seaomenoselemesmometivesseditoisso.

Pugrefletiuantesdefalar.— Martin, muitos homens se arrependem dos atos que cometeram. São

poucososquetêmoportunidadederepararomalfeito.Seuma echatsuraniotivesse levado em um segundo ou se tivessem ocorrido centenas de outrassituações, talvez não houvesse tido a oportunidade de fazer o pouco queconseguiu.

—Eusei,masaindaéumconsolomuitopequeno.—Lyam lhe contou suas últimas palavras? Ele disse: “Martin é seu irmão.

Tratei-oinjustamente,Lyam.Ébomhomemeoamomuito.”OsnósdosdedosdeMartin carambrancosenquantoapertavaomurode

pedra.

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—Não,nãoamava—respondeuserenamente.—LordeBorric não era umhomem simples,Martin, e eu não passava de

umgarotoquandooconheci,mas,oquequerquesedigasobreele,nãosepodedizer que era mal-intencionado. Não pretendo entender por que agiu comoagiu,masnãohádúvidadequeoamava.

— Foi tudo uma grande tolice. Eu sabia que ele era meu pai e ele nuncasoube queminhamãe tinhame contado.Quão diferentes teriam sido nossasvidasseeutivessefalado?

—Sóosdeusessabem.—EstendeuamãoetocounobraçodeMartin.—Oque interessaagoraéoque fará.O fatodeLyamter lhecontadosigni caqueirá tornar público seu direito de progenitura. Se já tiver contado a outros, acortedeveestaremrebuliço.Éoprimogênito,etemdireitoareclamaracoroa.Jásabeoqueiráfazer?

OlhandoPugcomatenção,Martindisse:—Falade tudo issocommuita tranquilidade.Aminhapretensãoao trono

nãooincomodanada?Pugsacudiuacabeça.—Vocênãotemcomosaber,maseufuiconsideradoumdoshomensmais

poderosos de Tsuranuanni. Em determinadas circunstâncias, aminha palavraimportavamais do que a ordemde qualquer rei.Acho que sei aonde o poderpode levar e que tipo de homens o procura. Duvido que você tenha umaambição pessoal tão desmedida, a menos que tenha mudado muito desdequando eu vivia em Crydee. Se aceitar a coroa, será pelo que acredita serembonsmotivos.Poderásersimplesmentepara impedirumaguerracivil,pois,seescolheromantodeRei,Lyamseráoprimeiroalhejurar delidade.Sejaqualfor a razão, agirá com sensatez.Caso opte por aceitar a cor roxa, certamentedaráomelhordesiparaserumbomsoberano.

Martinpareceuimpressionado.—Vocêmudoumuito,EscudeiroPug,maisdoqueeuesperava.Agradeçoo

parecer amável com relação àminha pessoa,mas acho que deve ser o únicohomemnoReinoaacreditarnisso.

—Sejaqual for averdade, é lhode seupai e jamais trariadesonraa estacasa.

DenovoaspalavrasdeMartintranspareceramcertaamargura:— Haverá aqueles que acharão que meu nascimento já foi uma grande

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P

desonra.—Olhou para a cidade abaixo, virando-se depois para tar Pug.—Quemderaaescolhafossefácil,masLyamseencarregoudecomplicá-la.Seeuaceitaracoroa,serãomuitososquemostrarãorelutância.SerenunciarafavordeLyam,háquempossameusar comodesculpa, recusando jurar delidadeaLyam.Oh,deuses! Se a questão fosse entremimeArutha,Pug,nãohesitariaumsó segundoem lhedaro lugar.MasLyam?Háseteanosquenãoovejoeessesanosomudaram.Pareceumhomemassaltadopordúvidas.Éóbvioqueéumcomandantedecampomuitocompetente,masRei?Enfrentoaperspectivatemíveldequeeupoderiaserumreimaiscapaz.

—Como eu disse antes, caso reclame a coroa, você fará pelas razões queconsiderar corretas, razões relacionadas com o dever — disse Pug comserenidade.

AmãodireitadeMartinsefechouempunho,queergueudiantedorosto.— Onde termina o dever e começa a ambição pessoal? Onde termina a

justiça e começa a vingança?Háumapartedemim,umaparte revoltada, quediz: “Tire todo o proveito destemomento,Martin.” Por que não ReiMartin?Depois, outra parte demimpergunta semeupai colocou este fardo emmeusombrossabendoqueumdiaeuviriaaserRei.Oh,Pug,qualéomeudever?

— Isso é algo que cada um de nós tem de decidir sozinho. Não possoaconselhá-losobreisso.

Martininclinou-senoparapeito,comasmãoscobrindoorosto.—Talvezsejamelhoreuficarsozinho,senãoseimporta.Pug foi embora, ciente de que um homem inquieto ponderava sobre seu

destino.EodestinodoReino.

ug encontrou Katala com Laurie e William, conversando com o DuqueBrucaleoCondeVandros.Aoseaproximar,ouviuoDuquedizer:— Pois parece que, por m, vamos ter um casamento, agora que este

desajeitado—indicouVandros—pediuamãodeminha lha.Talvezeuvenhaa ter netos antes de morrer, a nal. Veja o que acontece quando esperamosmuitoparacasar.Osnossos lhosaindanãosecasarame jásomosvelhos.—InclinouacabeçaquandoviuPug.—Ah,mago,aíestávocê.

Katalasorriuquandoviuomarido.—TeveumreencontroagradávelcomaPrincesa?—Muitoagradável.

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Batendocomoindicadornopeitodele,Kataladisse:—Quandoestivermossozinhos,vairepetirtodasaspalavras.Os outros riram com o embaraço de Pug, embora ele entendesse que ela

estavaapenasbrincando.—Ah,mago,suaesposaétãoencantadoraquemefazdesejarteroutravez

sessentaanos—disseBrucal.PiscouoolhoparaPug.—Entãoeuaroubariadevocê e ao diabo com o escândalo. — Pegou o braço do mago e dirigiu-se aKatala:— Com sua licença, senhora,mas em vez disso tenho de roubar umminutodotempodeseumarido.

Afastou um surpreso Pug do grupo e, quando já não podiam ser ouvidos,disse:

—Tenhonotíciasdegrandegravidade.—Eusei.— Lyam é um tolo, um tolo nobre.—Desviou o olhar por um instante,

ficandocomumolharausenteaoselembrar.—Noentanto,éfilhodeseupaietambémnetodeseuavô,e, talcomoessesdoisqueoantecederam,possuiumsentidomuito profundode honra.—Os olhos idosos voltaram a se focar.—Porémquemmederaque seu sentidodedever fosse igual.—Baixandoaindamaisavoz,disse:—Mantenhaasuaesposapertodevocê.Osguardasnosalãovestem o roxo e morrerão para defender o Rei, seja ele quem for. Porém asituação pode se complicar. Muitos dos homens do Leste são de naturezaimpulsiva, habituados demais a que sejam logo satisfeitas suas maisinsigni cantes exigências. Pode acontecer de alguns deles abrirem as bocas eterem de mastigar aço. Meus homens e os de Vandros estão espalhados portodo o palácio, enquanto os tsurani de Kasumi caram lá fora, a pedido deLyam.Os Lordes do Leste não gostaram,mas Lyam é oHerdeiro e eles nãopodemrecusar.Juntamentecomosqueficarãodenossolado,podemostomaropalácio e mantê-lo. Com Guy du Bas-Tyra escondido e Richard de Saladormorto, os Lordes orientais perderam a liderança. No entanto, restammuitosdelesnailha,commuitas“guardasdehonra”nacidadeeaoredor,epoderiamtornar esta cidade um campo de batalha se fugissem do palácio antes de sernomeado um Rei. Não, não sairemos daqui. Nenhum oriental traidor poderásair daqui para conspirar comGuy, oNegro. Irão todos se ajoelhar diante doirmãoquereceberacoroa.

PugseadmirouaoouvirBrucal.

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—QuerdizerqueapoiaráMartin?AvozdovelhoBrucaltornou-sesevera,emboraamantivessebaixa:—Ninguém irámergulhar omeu Reino em uma guerra civil,mago. Pelo

menosenquantoeurespirar.ConverseicomArutha.Nenhumdenósapreciaasopções,massabemosqueaçõestomar.SeMartinforcoroadoRei, todosterãodeseajoelhardiantedele.SeforLyamoRei,Martinterádejurar delidadeounão sairá vivo daqui. Se partirem a coroa, tomaremos este palácio e nenhumLordesairádaquiatéqueoCongressonomeieumdos irmãoscomoRei,nemque quemos um ano trancados naquele maldito salão. Já apanhamos váriosagentesdeGuynacidade.Eleestáaqui,emRillanon,nãotenhodúvida.Seumameia dúzia de nobres conseguir escapar do palácio antes que o Congresso sereúna, estourará a guerra civil. — Bateu com o punho na mão aberta. —Malditas tradições. Enquanto conversamos, os sacerdotes avançam para opalácio,eacadapassoestãomaispróximosdomomentodaescolha.SeLyamtivesseagidoantes, terianosdadomais tempo,oupodianão ter sequeragido.Ou se tivéssemos conseguido prender Guy. Se conseguíssemos falar comMartin,maseledesapareceu...

—EufaleicomMartin.Brucalapertouosolhos.—Qualéseuestadodeespírito?Queplanostem?—É umhomemperturbado, comopode imaginar.Ver-se com esse fardo

nos ombros e com tão pouco tempo para se habituar à ideia. Sempre soubequem era seu pai e estava conformado em levar esse segredo para o túmulo,aposto,masseviuagoraatiradodesúbitonocentrodaquestão.Nãoseioqueele irá fazer.Nemelesaberá,atéomomentoemqueossacerdotespuseremacoroadiantedele.

Brucalafagouoqueixo.—Ofatodesaberenãoterusadoesseconhecimentoemseuproveitoatesta

seu caráter. No entanto, o tempo continua a ser pouco. — Indicou o grupojuntoàportaprincipalquedavaparaosalão.—Émelhorregressarparajuntodesuaesposa.Fiqueatento,mago,poispoderemosprecisardesuasartesantesdeestediachegaraofim.

Regressaram para junto dos outros e Brucal levouVandros eKasumi paradentro, conversando com eles em voz baixa. Antes que Katala pudesse falar,Lauriedisse:

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—Oquesepassa?QuandoleveiKatalaeKasumiaumavarandaquedáparao pátio, vi homens de Kasumi por todo lado. Por um segundo, achei que oImpériovenceraaguerra.Nãoconseguiquemecontassenada.

—BrucalsabequeseguirãoasordensdeKasumisemobjeções—dissePug.—Doquesetrata,marido?Complicações?—perguntouKatala.— Não tenho muito tempo para explicar. Poderá haver mais do que um

pretendente ao trono. Não saia de perto de Kasumi, Laurie, e mantenha aespadapronta.Sesurgiremproblemas,sigaasordensdeArutha.

Laurie assentiu, o rosto marcado por uma expressão sinistra decompreensão.EntrounosalãoeKataladisse:

—EWilliam?—Estáasalvo.Oquequerqueaconteça,seráaquinosalãoprincipal,enão

nos aposentos dos hóspedes. A verdadeira a ição terá início a seguir. — Aexpressãodelademonstrouquenãoentendiabem,masaceitouoqueomaridodisse.—Venha.Temosdeocuparnossoslugaresládentro.

Entraram no salão e se dirigiram a um lugar de honra perto da frente.QuandopassavampelamultidãoreunidaparaveroReisercoroado,ouviramofalatório à medida que os rumores iam se espalhando. Chegaram perto deKulgan e o corpulento mago acenou a cabeça em cumprimento. Meechamaguardava poucos passos atrás, encostado em uma parede. Perscrutava a sala,assinalando as posições de todos os que se encontravam à distância de umaespadadeKulgan.Pugreparouqueafacadecaçacompridaegastanãoestavacompletamente fechadanabainha.Podianão saberqual eraoproblema,masemumsegundoestariapreparadoparadefenderseuvelhocompanheiro.

— O que está havendo? — sibilou Kulgan. — Estava tudo calmo até hápoucosminutos;agora,asalaestáemrebuliço.

PugseaproximoudeKulganedisse:—Martinpoderáseapresentarperanteacoroa.Ovelhomagoarregalouosolhos.—Deusesepeixes!Issoébemcapazdedeixaracortedeouvidosatentos.—

Olhou ao redor e viu que grande parte dos nobres do Reino já ocupara seuslugaresnosalão.

—Agoraétardedemaisparasefazeralgoalémdeesperar—disse,comumsuspirodepesar.

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Amosentrouderompantenojardim,praguejandofuriosamente.— Mas por que diabos alguém há de querer estes ramalhetes por todo

lado?Martinergueuosolhosequasenãoconseguiaapanharocopodecristalque

AmosTrasklheatirou.—Masque...—exclamou,enquantoAmosoenchiadevinhodeumjarro

decristalquetrazianamão.— Achei que talvez estivesse precisando de um trago, bem como de um

camaradadebordocomquemdesabafar.Martinapertouosolhos.—Comoassim?Amosencheuseucopoebebeuumdemoradotrago.— Já se espalhou pelo palácio, meu rapaz. Lyam é boa pessoa, mas tem

pedras no lastro se acha que pode levar umgrupode cinzeladores à cripta deseu pai para gravarem lá seu nome e depois lhes exigir silêncio com algo tãotrivial quanto uma ordem real. Todos os serviçais deste palácio já sabiamquevocê era o novo primogênito menos de uma hora depois de aqueles rapazesteremacabadootrabalho.Anotíciajáseespalhou,acrediteemmim.

Martinbebeuovinho,agradecendoemseguida:—Obrigado,Amos.—Observouovinhotintonocopo.—Vocêachaque

devoserRei?Amosriu,produzindoumsomagradávelecaloroso.—Quantoaisso,tenhoduasopiniões,Martin.Emprimeirolugar,ésempre

melhor ser capitão do que grumete e é por isso que sou capitão e não sougrumete.Emsegundolugar,hádiferençasentreumnavioeumreino.

Martinriu.—Pirata,issoéumabelaajuda.Amosficoucomumarofendido.— Maldito seja, consegui fazê-lo rir, não consegui? — Inclinou-se,

descansandoumcotovelonomurodojardimenquantoseserviademaisvinho.—Veja só, no porto real há um lindo navio de trêsmastros.Não tenho tidomuito tempo,mas, com o indulto doRei, haverámuitos rapazes acabados desair do brigue que não hesitariam em zarpar com o Capitão Trenchard. E sesoltássemosamarrassemdestino?

Martinsacudiuacabeça.

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—Parecebom.Emtodaaminhavida,foramtrêsasvezesqueentreiemumnavioecomvocêquasemorriemtodasastrês.

Amospareceuofendidonovamente:—AsprimeirasduasvezesforamculpadeAruthaenaterceiraaculpanão

foiminha. Nãomandei aqueles piratas ceresianos nos seguirem de Salador aRillanon.Alémdisso,seembarcarcomigo,seremosnósafazerasperseguições.OMardoReinoéummarcompletamentenovoparaTrenchardnavegar.Quemediz?

AvozdeMartinganhouumtommelancólico:— Não, Amos, embora tivesse quase tanta vontade de zarpar com você

quanto de regressar à oresta. Mas não posso fugir à decisão que tenho detomar.Paraobemouparaomal,souoprimogênito,ecabeamimapretensãoao trono.—Martin olhouAmos atentamente.—Acha queLyam conseguiráserRei?

Amossacudiuacabeça.—Éclaro,masnãoéessaaquestão,é?OquequersaberéseLyamseráum

bom Rei. Não sei, Martin. Mas lhe digo isto: já vi muitos marinheirosempalideceremdemedoemumabatalha,apesardelutaremsemhesitação.Àsvezes,nãoépossívelsaberdoqueumhomemécapazatéchegaromomentodeagir. — Amos parou um momento, ponderando as palavras. — Lyam é umsujeitobomobastante, como jádisse.Morredemedode se tornarRei enãoposso culpá-lo.Mas quando estiver no trono... acho que poderá ser um bomRei.

—Quemmederasabersetemrazão.Ouviu-seumgongoelogoossinoscomeçaramatocar.— Bom— disse Amos—, já não lhe restamuito tempo para decidir. Os

SacerdotesdeIshapseencontramnosportõesexteriorese,quandochegaremàsaladotrono,nãohaverácomocortarasamarrasezarpar.Oseurumoestarátraçado.

Martinseafastoudomuro.—Obrigadopelacompanhia,Amos,epelovinho.Vamosmudarodestino

doReino?Amosbebeuoquerestavadovinhodojarrodecristal.Atirou-oparaolado

e,acimadobarulhodovidroquebrando,disse:—VáládecidirodestinodoReino,Martin.Euaparecereimaistarde,quem

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E

sabe, se não conseguir aquele naviozinho de que falei. Talvez voltemos anavegarjuntos.SemudardeideiaquantoaserReiousedecidirqueprecisadetransporte veloz para sair de Rillanon, vá até as docas antes do pôr do sol.Estareiporláevocêserásemprebem-vindoàminhatripulação.

Martinapertouamãodelecomforça.—Atéapróxima,comosempre,pirata.Amos foi emboraeMartin cousozinho,organizandoas ideiasdamelhor

formapossível,atéque,tendotomadoumadecisão,deuinícioaopercursoatéasaladotrono.

sticando o pescoço, Pug conseguia ver quem entrava no salão. O DuqueCaldric acompanhava a viúva de Erland, a Princesa Alicia, pelo longo

corredor até o trono. Anita e Carline os seguiam. De Kulgan, ouviu aobservação:

—Pelasexpressõessombriasepalidez,apostoqueAruthajálhesdisseoquepodeacontecer.

Pug reparou como Anita agarrava a mão de Carline com força quandochegaramaoslugaresquelhesforamreservados.

— Que situação, descobrir que se tem um irmão mais velho nestascircunstâncias.

—Todosparecemestarlidandobemcomasituação—sussurrouKulgan.Os gongos anunciaram que os sacerdotes ishapianos tinham entrado na

antecâmara, e viram Arutha e Lyam entrar. Ambos traziam os mantosvermelhosdosPríncipesdoReinoe avançaramapasso rápidoaté a frentedosalão. Os olhos de Arutha percorreram o lugar, como se estivesse tentandoavaliar o estado de espírito das pessoas em todos os lados. Lyam aparentavaestarcalmo,comoseestivesseresignadoaaceitaroquequerqueodestinolhereservasse.

Pug viu Arutha sussurrar uma breve palavra ao ouvido de Fannon que ovelho Mestre de Armas, por sua vez, sussurrou ao Sargento Gardan. Ambosolharamaoredordemodotenso,comasmãos juntoaospunhosdasespadas,atentosatodosquealiseencontravam.

ElenãoviasinaldeMartin.— Talvez Martin tenha decidido se esquivar do assunto — sussurrou a

Kulgan.

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Ovelhomagoolhouemvolta.—Não,aliestáele.PugolhouparaondeKulgan indicaracomumacenodecabeça.Naparede

maisdistante,juntoaumcanto,erguia-seumacolunagigante.Emsuasombra,se encontravaMartin.Não era possível ver as suas feições,mas a postura erainconfundível.

Os sinos começaram a badalar e Pug olhou para ver o primeiro dossacerdotes ishapianos entrar no salão. Atrás dele, outros se seguiram,caminhando coordenados em um passo cadenciado. Das portas laterais,ouviram-seosferrolhosseremcorridos,poiseratradiçãofecharosalãodesdeoinícioatéofinaldacerimônia.

Depoisdeentraremosdezesseissacerdotes, fecharamasgrandesportas.Oúltimosacerdotefezumapausaemfrenteàsportas,comumpesadocajadodemadeira em uma mão e um grande lacre na outra. Com movimentos ágeis,colocou o lacre nas portas. Pug reparou que o lacre continha a insígniaheptagonaldeIshap,sentindoamagiainterior.Sabiaqueasportassópoderiamser abertas por quem ali tinha colocado o lacre ou por alguém de artessuperiorese,nessecaso,correndograndesriscos.

Apósselarasportas,osacerdotecomocajadoavançouentrea ladeseusirmãos sacerdotes que aguardavam, entoando rezas em voz baixa. Um delesseguravaanovacoroaqueforacriadaporeleserepousavaemumaalmofadadeveludoroxo.AcoroadeRodricforadestruídapelogolpequelheceifaraavida,mas,caso tivesse cado inteira, teria sidoenterradacomele,deacordocomatradição. Caso não fosse coroado nenhum Rei naquele dia, a coroa seriaestilhaçadanaspedrasdo chão e só seria fabricadaumanova coroaquandooCongresso de Lordes informasse aos sacerdotes que tinham elegido um novorei.Pugseadmiravacomaimportânciadadaaumsimplesarodeouro.

Os sacerdotes avançaram, parando diante do trono, onde aguardavamoutrossacerdotesdeordensinferiores.Comoeracostume,tinhamperguntadoaLyamsepretendiaqueosacerdotedafamíliacelebrasseainvestiduraeLyamassimdesejara.OPadreTullyseencontravaàfrentedadelegaçãodoTemplodeAstalon. Pug sabia que o idoso sacerdote assumiria depressa o rumo dacerimônia, fosse qual fosse o lho de Borric a receber a coroa, considerandoquetinhasidoumaescolhasensata.

O principal sacerdote ishapiano bateu com o cajado no chão, dezesseis

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pancadasregularesecompassadas.Osomecooupelosalãoe,quandoterminou,asaladotronoficouemsilêncioabsoluto.

—ViemoscoroaroRei!—exclamouoSumoSacerdote.—QueIshapabençoeoRei!—retorquiramosoutrossacerdotes.—EmnomedeIshap,oúnicodeusacimadetodos,eemnomedosquatro

deusessuperioresedosdozedeusesinferiores,queseapresentemtodosaquelesquetêmpretensãoaotrono.

PugpercebeuqueestavaprendendoarespiraçãoquandoviuLyameAruthase colocaremdiante dos sacerdotes. Pouco depois,Martin saiu das sombras eavançou.

QuandoMartin surgiu, ouviu-se um silvo coletivo de respiração suspensa,pois erammuitos os que se encontravam no salão que não tinham ouvido orumorouquenãotinhamacreditadonoqueouviram.

Quandoos três se apresentaramà frente, o sacerdote bateu comopesadocajadonochão.

—Agorachegouahoraeaquiéolugar.—Emseguida,tocoucomocajadonoombrodeMartin,mantendo-oalienquantoperguntava:—Quedireitoalegaparaseapresentardiantedenós?

Martinsepronuncioucomumavoznítidaepotente:—Alego o direito de nascimento.— Pug sentia a presença damagia. Os

sacerdotesnãodeixavamas pretensões ao trono somente sujeitas à honra e àtradição.Comotoquedocajado,ninguémpodiaapresentarfalsotestemunho.

Repetiu-seoprocedimentoeamesmarespostafoidadaporLyameArutha.OcajadovoltouapousarnoombrodeMartineosacerdoteperguntou:—Declareseunomeepretensão.— SouMartin, primogênito de Borric, lhomais velho de sangue real—

ressoouavozdeMartin.Ouviu-se um zumbidopelo salão, silenciadoquandoo cajadodo sacerdote

bateunochão.OcajadofoicolocadonoombrodeLyam,querespondeu:—SouLyam,filhodeBorric,desanguereal.Ouviram-sealgumasvozesquediziam:—OHerdeiro!O sacerdote hesitou, repetindo em seguida a pergunta a Arutha, que

respondeu:—SouArutha,filhodeBorric,desanguereal.

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OsacerdotecontemplouostrêsjovenshomensesedirigiuaLyam:—ÉvocêoHerdeiroreconhecido?Lyamrespondeucomocajadopousadonoombro:— O direito de sucessão me foi outorgado face ao desconhecimento da

existênciadeMartin.Éumlegado falso,poisRodric julgavaqueeuerao lhomaisvelhodosconDoin.

O sacerdote retirou o cajado e consultou os outros sacerdotes. O salãopermaneceu em silêncio enquanto os sacerdotes se reuniam para discutir areviravolta inesperada. O tempo foi passando angustiantemente, até que, porm,oSumoSacerdote sevoltounovamenteparaos três.Entregouo cajadoelhe foi dado o círculo dourado que era a coroa do Reino. Proferiu uma curtaoração:

— Ishap, conceda a todos os que perante nós se encontram orientação esensatezemtodoesteassunto.Queoeleitoajacomprobidade.—Emvozfirmedisse:—Éóbvioqueasucessãonãoéperfeita.—ColocouacoroaemfrenteaMartin.—Martin,comoprimogênitodesanguereal,temodireitodereclamaracoroaemprimeiro lugar.Martin, aceita este fardoe, assimsendo,aceita sernossoRei?

Martinolhouparaacoroa.Osilêncioerapesadonasalaenquantotodososolhosestavampostosnohomemaltovestidodeverde.Prendendoarespiração,amultidãonosalãoaguardouaresposta.

Foi então que Martin estendeu as mãos lentamente, tirando a coroa daalmofada na qual repousava. Ergueu-a e todos os olhares na sala a seguiram,re etindo um raio de luz que entrava através de uma janela no alto eespalhandoumaglóriaresplandecenteportodoolocal.

Segurando-aacimadacabeça,declarou:—Eu,Martin,abdicodeminhapretensãoàcoroadoReinodasIlhas,agora

eparasempre,emmeunomeeemnomedetodaaminhadescendênciadesdeopresente até aúltimageração.—Comummovimento repentino, colocouacoroanacabeçadeLyam.AvozdeMartinvoltouaressoar,deixandoperceberem suas palavras um desa o provocador: — Salve Lyam! Rei legítimo eincontestável!

Houveummomentodesilêncioenquantotodososqueseencontravamnosalãoabsorviamoquetinhamacabadodever.FoientãoqueAruthaencarouamultidãoatônitaesilenciosaesuavozinvadiuoar:

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—SalveLyam!Reilegítimoeincontestável!Lyamestavaladeadopelosirmãoseosalãoexplodiucomgritosevivas.—SalveLyam!SalveoRei!OSumoSacerdotedeixouquea celebraçãoprosseguissepor algum tempo,

atéquepegouocajadoebateunochão,exigindosilêncio.OlhouparaLyamedisse:

—Lyam,aceitaestefardoe,assimsendo,aceitasernossoRei?Deolhospostosnosacerdote,Lyamrespondeu:—SereioseuRei.Novamente a sala foi invadidapor vivas e o SumoSacerdote deixouque o

ruído prosseguisse. Pug reparou no alívio visível em muitos rostos: Brucal,Caldric,Fannon,VandroseGardan,quetinhamestadoapostoscasosurgissemcomplicações.

Umavezmais,oSumoSacerdotesilenciouosalãobatendocomocajadonochão.

—Tully daOrdem deAstalon— chamou, e o velho sacerdote da famíliaavançou.

Outros sacerdotes retiraram o manto vermelho de Lyam, substituindo-opelomanto roxoda realeza.Os sacerdotes se afastarameTully colocou-senafrentedeLyam.

—TodosossúditosdoReinoagradecemsuapaciênciaesabedoria—disseaMartineaArutha.OsirmãosdeixaramLyamesecolocaramjuntodeAnitaeCarline.

CarlinesorriucalorosamenteparaMartin,pegouamãodeleesussurrou:—Obrigada,Martin.Tullyvirou-separaamultidão,entoando:— Este é o momento e este é o lugar. Estamos aqui presentes para

testemunharacoroaçãodeSuaMajestade,Lyam,primeirodeseunome,comonossolegítimoRei.Háalguémpresentequepretendacontestaressedireito?

Eram vários os Lordes orientais com ar infeliz, mas não foi levantadaqualquerobjeção.TullyvoltouparaafrentedeLyam,queseajoelhoudiantedosacerdote.TullycolocouamãonacabeçadeLyam.

—Este éomomentoe este éo lugar. Sobrevocê recaiu este fardo,Lyam,primeirodeseunome, lhodeBorric,dalinhagemdereisconDoin.AceitaestedestinoeseránossoRei?

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—SereioseuRei—respondeuLyam.Tully tirou amão da cabeça de Lyam e se abaixou para pegar amão que

tinhaosinetereal.—Este é omomento e este é o lugar. Lyam conDoin, lho de Borric, da

linhagemdereis,juradefendereprotegeroReinodasIlhas,servindo elmenteaoseupovo,provendooseubem-estar,felicidadeeprosperidade?

—Eu,Lyam,jurosolenemente.Tully deu início a uma longa liturgia e, no nal das orações, o Rei se

levantou. O velho padre retirou a sua mitra ritual, entregando-a ao SumoSacerdote de Ishap, que a entregou a outro dosmembros da ordemde Tully,que,porsuavez,ajoelhou-sediantedeLyam,beijando-lheosinete.Levantou-seeacompanhou-oaotrono,enquantoosacerdoteishapianoentoava:

—IshapabençoeoRei!Lyam sentou-se. Foi trazida uma espada antiga, outrora empunhada por

Dannis,oprimeiroreiconDoin,quecolocaramnosjoelhosdoRei,emsinaldequedefenderiaoReinocomaprópriavida.

Tully virou-se e fez um aceno com a cabeça ao Sumo Sacerdote de Ishap,quebateunochãocomocajado.

—Omomentodaescolhajáfazpartedopassado.ProclamoLyamIonossoReijusto,legítimoeincontestado.

Amultidãorespondeuruidosamente:—SalveLyam!VidalongaaoRei!OsSacerdotesdeIshapentoavamcânticosemvozbaixaeoSumoSacerdote

osconduziuàporta.Bateucomocajadonolacre,quebrando-ocomumestalo.Bateuoutrastrêsvezesnaportaeosguardasqueseencontravamdooutroladoas abriram. Antes de sair, entoou a última frase do ritual de coroação. Paraquemestava foradosalãoenão tinha tidooprivilégiodeassistiràcerimônia,anunciou:

—Espalhemanotícia.LyaménossoRei!Mais depressa do que o voo de um pássaro, a notícia se espalhou pelo

palácio,pelacidade.Nasruas,brindou-seaonovomonarcaenemumapessoaemmilsabiaquãopertooReinoestiveradeassistiraumacalamidadenaqueledia.

OssacerdotesishapianossaíramdosalãoetodososolharessevoltaramparaonovosoberanodoReino.

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Tully fez sinal aosmembros da família real eArutha,Martin eCarline secolocaram diante do irmão. Lyam estendeu a mão e Martin se ajoelhou,beijandoosinetedoirmão.Seguiu-seAruthae,porfim,Carline.

AliciaconduziuAnitaaotrono,aprimeiradalongadescendênciadenobresque se seguiram, dando início à demorada obrigação de aceitar a lealdade dospares do reino. LordeCaldric dobrou um joelho trêmulo diante de seuRei e,quando se ergueu, viram-se lágrimas de alívio em seu rosto. Quando Brucaljuroulealdade,dissealgumaspalavrasaoRei,eLyamassentiu.

Seguiram-setodososoutrosnobresdoReinoatéque,horasdepois,oúltimodos Barões fronteiriços, guardiões das Fronteiras Militares Setentrionais, quenão se subordinavamanenhumLordee sóaoRei, levantou-se e foi se juntaraosoutrosnosalão.

EntregandoaespadadeDannisaumpajem,Lyamlevantou-seedisse:— É nosso desejo que se iniciem as celebrações. Porém há assuntos de

Estadoquecarecemdeatençãoimediata.Grandepartesãoassuntosagradáveis,mas há um assunto desagradável que tem de ser resolvido. Hoje houve umaausência, de alguém que procurou obter o trono que temos o privilégio deocupar. Não se pode negar que Guy du Bas-Tyra planejou uma traição. Éinquestionável que cometeu um assassinato obsceno. Contudo, o falecido Reimostroudesejodequefosseusadacompaixãonesteassunto.ComosetratadoúltimopedidodeRodric, concederei essamisericórdia, embora fossedenossoagrado fazer Guy du Bas-Tyra pagar por todos os seus atos. Que seja dadanotícia,apartirdehoje,dequeGuyduBas-Tyraéconsideradocriminosoeestábanido de nosso Reino, sendo seus títulos e propriedades con scados pelacoroa.QueseunomeebrasãosejamriscadosdalistadeLordesdoReino.Quenenhum homem lhe ofereça abrigo, fogueira, comida ou água. — E para osLordesreunidosacrescentou:—Algunsdospresentes foramaliadosdoantigoDuque, por isso não temos dúvida de que a nossa sentença lhe chegará aosouvidos. Digam-lhe que fuja, que vá para Kesh,Queg ou Roldem.Digam-lheque se esconda nas Terras doNorte semais ninguém o receber,mas, se forencontrado dentro de nossas fronteiras após esta semana, perderá o direito àvida.

NinguémnosalãosemanifestoueLyamprosseguiu:—Os nossos reinos têm passado tempos de grande tristeza e sofrimento;

embarquemosagoraemumanovaera,umaeradepazeprosperidade.—Fez

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sinal para que os irmãos regressassem para junto dele e, ao se dirigirem aotrono,AruthaolhouparaMartin.Derepente,mostrouumgrandesorrisoe,emuma inesperada demonstração de emoção, abraçou Martin e Lyam. Por umbreve instante, todos os presentes no salão zeram silêncio enquanto os trêsirmãosseabraçavamcomforça,atévoltaremairrompervivasportodoolugar.

Enquanto o ruído prosseguia, Lyam falou aos irmãos. A princípio,Martinapresentava um sorriso de orelha a orelha, mas logo mudou de expressão.Tanto Arutha quanto Lyam balançavam as cabeças vigorosamente, enquantoMartin cavacomorostopálido.Começouaprotestarcomveemência,sendointerrompidoporLyam,quelevantouamãopedindosilêncio.

—OnossoReinopassaporumareorganização.Façosaberque,doravante,o nosso adorado irmão Arutha é Príncipe de Krondor e, até que chegue umlhoànossacasa,Herdeirodotrono.—Diantedoúltimocomunicado,Aruthanãopareceunadasatisfeito.Lyamprosseguiu:—TambéménossodesejoqueoDucadodeCrydee,aterradenossopai,permaneçananossafamíliapelotempoque a sua descendência perdurar. Tendo em vista esse propósito, nomeioMartin,onossoadorado irmão,DuquedeCrydee,comtodasaspropriedades,títulosedireitosquelhecorrespondem.

Novamente,amultidãodeuvivas.MartineAruthaseafastaramdeLyameonovoReidisse:

— Aproximem-se do trono o Conde de LaMut e o Capitão CavaleiroKasumideLaMut.

Kasumi e Vandros avançaram. Kasumi estivera todo o dia nervoso, poisVandrosdepositaranelegrandecon ança.AimpassibilidadetsuraniseimpôseelesecolocouaoladodeVandrosquandochegouaotrono.

Ajoelharam-sediantedeLyam,quelhesdisse:—OmeuLordeBrucalmepediuque zesseesta felizproclamação.Oseu

vassalo,CondeVandros,irádesposarasuafilha,aSenhoraFelinah.Damultidão,ouviu-senitidamenteavozdeBrucal:—Jánãoera semtempo.—Váriosnobresmais idososdacortedeRodric

ficaramlívidos,masLyamjuntou-seàrisadageral.— O Duque também solicitou permissão para se retirar para as suas

propriedades,ondepoderáencontrarasrecompensasdeumlongoeútilserviçoprestado ao Reino. Demos o nosso consentimento. Como não tem lhos,desejaqueseutítulosejatransmitidoparaalguémcapazdecontinuaraoserviço

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do Reino, alguém que tenha demonstrado uma capacidade excepcional nocomando da guarnição LaMutiana dos Exércitos do Oeste durante o con itorecente.Porsuascorajosasfaçanhaseserviço el,aprovamosocasamentoeécomgrandesatisfaçãoquenomeamosVandrosDuquedeYabon,comtodasaspropriedades, títulos e direitos que lhe correspondem. Levante-se, LordeVandros.

Vandrosseergueu,umpoucoabalado,regressandodepoisparaoladodeseufuturosogro.Brucal lhedeuumapalmadaamigávelnascostaseapertou-lheamão.LyamvoltouaatençãoparaKasumiesorriu.

—Apresenta-seperantenósalguémque,atépoucotempo,considerávamosinimigo. Hoje, nós o consideramos como nosso súdito leal. Kasumi dosShinzawai, pelos seus esforços para trazer a paz aos nossos doismundos emcon ito, e pela sua sabedoria e coragem na defesa das nossas terras contra aIrmandadeda SendadasTrevas, lhe concedemoso comandoda guarniçãodeLaMut e o nomeamosConde de LaMut, com todas as propriedades, títulos edireitosquelhecorrespondem.Levante-se,CondeKasumi.

Kasumiestavaabismado.Devagar,estendeuamãoepegouamãodoRei,aexemplodosoutrosnobres,ebeijouosinete.

—Senhor,meuRei,aminhavidaeaminhahonrasãosuas—disseaoRei.—LordeVandros,aceitaoCondeKasumicomoseuvassalo?—perguntou

Lyam.Vandrossorriu.—Comtodoogosto,Majestade.KasumivoltouparajuntodeVandros,osolhosbrilhandodeorgulho.Brucal

aplicou-lheoutrapalmadacordialnascostas.Foramatribuídosmais cargos,pois erammuitas asvagasdevidoàs intrigas

da corte de Rodric e às mortes durante a guerra. Quando parecia que estavatudoterminado,Lyamdisse:

—QueoEscudeiroPugdeCrydeeseaproximedotrono.PugolhouparaKatalaeKulgan,surpresoporouvirseunome.—Oque...?Kulgandeu-lheumempurrão.—Válásaber.PugseaproximoudeLyamefezumamesura.—Oqueocorreu foiumassuntoparticularentreomeupaieestehomem

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A

—disseoRei.—Agora, énossodesejoque todosnonosso reinosaibamqueeste homem, outrora chamado Pug, órfão de Crydee, tem agora o seu nomeinscritonosregistrosdenossa família.—EstendeuamãoePugajoelhou-seàsua frente. Lyam apresentou o sinete e colocou asmãos nos ombros de Pug,pedindo-lhe que se levantasse. — Tal como foi desejo de nosso pai, assim énosso desejo. A partir deste dia, que todos em nosso Reino saibam que estehomeméPugconDoin,membrodafamíliareal.

Muitosdospresentesnosalão caramadmiradoscomaadoçãoeaelevaçãoà nobreza de Pug, mas aqueles que conheciam as suas aventuras aplaudiramvigorosamentequandoLyamdeclarou:

—ContemplemnossoprimoPug,PríncipedoReino.Katalaignoroutodasasformalidadesecorreuparaabraçaromarido.Foram

váriososLordesorientaisque franzirama testa,masLyamriu,beijando-anorosto.

— Venham! — bradou Lyam. — Chegou a hora de celebrarmos. Quevenham os bailarinos, músicos e malabaristas. Tragam mesas de comida evinho.Quereineadiversão!

s festividades prosseguiram.As celebrações tinhamocorrido a tarde todasemparar.Umarauto ao ladodamesadoRei liamissivas enviadas a ele

por aqueles impossibilitados de assistir à coroação: muitos nobres e o Rei deQueg, assim como monarcas de pequenos reinos das costas orientais.Mercadores importantes e Mestres das Guildas das Cidades Livres tambémenviaram felicitações. Também foram recebidas missivas de Aglaranna eTomas, bem como dos anões do oeste, da Montanha de Pedra e das TorresCinzentas. O idoso Rei Halfdan, soberano dos anões do leste em Dorgin,enviou osmelhores votos e até oGrandeKesh enviou saudações, juntamentecomumpedidoparaquepudessemsereunircommaiorfrequênciademodoaresolver paci camente a questão do Vale dos Sonhos. A mensagem vinhaassinadapelaprópriaImperatriz.

Aoouviraúltimamensagem,LyamdisseaArutha:— Para Kesh ter enviado uma mensagem pessoal em tão pouco tempo,

signi caqueaImperatrizpodesegabardosespiõesmaise cazesdeMidkemia.VocêprecisaserperspicazemKrondor.

Arutha suspirou, pois não lhe agradava muito a perspectiva. Pug, Laurie,

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Meecham,Gardan,Kulgan,Fannon eKasumi estavam todos sentados àmesadoRei.Lyam insistiraparaque se juntassemà família real.OnovoCondedeLaMutaindapareciaestaremestadodechoquecomonovoposto,emborasuafelicidadefosseevidentee,mesmonaquelesalãoruidoso,chegavaaelesosomfraco dos guerreiros lá fora, entoando cânticos tsurani de celebração. Pugpensounoincômodoqueestariamcausandoaosporteirosepajensreais.

Katalasejuntouaomarido,informandoqueofilhoestavacochilando,assimcomoFantus,exaustodetantobrincar.

—Espero que seu bichinhode estimaçãonão se aborreça por estar sendoconstantementeimportunado—disseKatalaaKulgan.

Omagoriu.—Fantusadoraaatenção.— Com tantas recompensas distribuídas, Kulgan, me surpreende não ter

ouvido o seu nome—disse Pug.— Serve elmente a família doRei hámaistempodoquequalqueroutro,salvoTullyeFannon.

Kulganresfolegou.— Eu, Tully e Fannon nos encontramos com Lyam ontem, antes de

sabermos que ele iria reconhecer Martin e lançar a confusão na corte. Elecomeçouabalbuciaralgumaspalavrasacercadecargoserecompensaseseiláoque mais, mas todos pedimos que nos dispensasse. Quando começou aprotestar, disse-lhe que nãome importava o que quisesse conceder a Tully eFannon, mas, se tentasse me fazer avançar à frente desta gente toda, nãohesitariaemtransformá-loemumsapo.

Anita,ouvindoaconversasemquerer,riu.—Entãoéverdade!Pug,relembrandoaconversaquetiveracomAnitaemKrondortantosanos

antes, juntou-se ao riso. Recordou tudo o que ocorrera nos anos desde quevisitaraacabanadeKulgannaflorestaerefletiuporummomento.Apósmuitosperigosecon itos,estavadevolta, ileso, juntoda famíliaedosamigos,ecomum empreendimento ousado, a construção da academia, ainda por realizar.Desejou que outros, Hochopepa, Shimone, Kamatsu, Hokanu, assim comoAlmorella e Netoha, pudessem partilhar com ele aquela felicidade. TambémdesejouqueIchindareosLordesdoConselhoSupremopudessemconheceraverdadeira razão da traição naquele dia de paz. Acima de tudo, desejava queTomaspudesseestarcomeles.

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—Tãopensativo,marido?Pugreagiu,saindodaqueleestadodeespírito,esorriu.—Minhaamada,estavapensandoquesouumhomemabençoadoemtodos

osaspectos.A esposa colocou a mão na dele, devolvendo o sorriso. Tully se inclinou

sobre amesa e fez sinal coma cabeçapara a outraponta, ondeLaurie estavaarrebatadoporCarline,queriadealgumagraçaqueeledissera.Eraóbvioqueela o achava tão charmoso quanto Pug garantira; na verdade, parecia estarfascinada.

—AchoquereconheçoaquelaexpressãonorostodeCarline—dissePug.—ParecequeLaurieestámetidoemencrenca.

—Conhecendo omeu amigo Laurie, é uma encrenca que ele receberá debomgrado—disseKasumi.

Tullytinhaumarpensativo.—HáumducadoemBas-TyraqueagoraprecisadeumDuqueeeleparece

serumjovemcapaz...Hmmm...—Basta!— ladrouKulgan.—Não chega de pompa para você? Já precisa

casar o pobre do rapaz com a irmã doRei para poder voltar a celebrar outracerimônianopalácio?Deuses!Acabaramdeseconhecer!

Tully e Kulgan pareciam prestes a embarcar em outra de suas famosasdiscussõesquandoMartinosinterrompeu:

—Vamosmudardeassunto.Minhacabeçaestágirandoenãoprecisodosdoisbatendoboca.

Tully e Kulgan trocaram olhares surpresos, para depois sorrirem. Emuníssono,disseram:

—Sim,meusenhor.Martin se lamentou, enquanto os que estavam ao redor acabaram por se

juntaràsgargalhadas.Sacudiuacabeça.—Parece tudo tão estranho, depois de tantos temores e preocupações tão

recentes. Ora, quase optei por seguir com Amos... — Levantou o olhar. —OndeestáAmos?

Aoouvironomedomarujo,AruthatambémlevantouacabeçadaconversaqueestavatendocomAnita.

—Ondeandaessepirata?—Elemedissequalquercoisasobreencontrarumnavio.Acheiqueestava

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tentandomeanimar,masnãoovejodesdeacoroação—respondeuMartin.— Encontrar um navio! — exclamou Arutha. — Os deuses choram! —

Levantou-se,dizendo:—CompermissãodeVossaMajestade.—Vá e traga-ode volta—disseLyam.—Por tudooqueme contou, ele

mereceumarecompensa.—Euvoucomvocê—disseMartin,levantando-se.—Comprazer—respondeuArutha.Os dois irmãos saíram correndo do salão, chegando ao pátio em um

instante.Porteirosepajensseguravamcavalosparaosconvidadosquepartiammais cedo.Arutha eMartin agarrarambruscamente os dois primeiros da la,deixando dois nobres inferiores sem montaria. Os dois nobres caramboquiabertos,emumamisturaderaivaeespanto.

—Milperdões,meussenhores—gritouAruthaenquantoavançavaagalopeparaosportões.

Quandopassaramosportõesdopalácio, cruzandopelaponte emarcoqueatravessavaorioRillanon,Martininformou:

—Eledissequeiriazarparaopôrdosol!—Nãotemosmuitotempo!—gritouArutha,e,porruassinuosas,voaram

atéoporto.Acidadeestava lotadadegentecelebrando,oque fezcomquetivessemde

diminuiro ritmodemodoa evitarmachucar aspessoasque enchiamas ruas.Chegaramaoportoepuxaramasrédeasdoscavalos.

Um único guarda estava sentado como se estivesse dormindo antes daentrada para as docas reais. Arutha desceu do cavalo e sacudiu o homem.Oelmodoguardacaiudacabeçadelequandotombouparaafrente,escorregandoatéochão.Aruthaverificoueafirmou:

—Estávivo,masamanhãvaiterumabeladordecabeça.Arutha voltou a montar e apressaram-se ao longo da comprida doca de

Rillanon até o último cais. Foram recebidos pelos gritos dos homens nocordame de um navio quando viraram os cavalos para a extremidade de umcompridocaisdeembarque.

Uma bela embarcação se afastava lentamente do cais e, quando pararam,Martin e Arutha viram Amos Trask no tombadilho. Ele acenou acima dacabeça,aindaaumadistânciaquepermitiaveroseurostosorridente.

—Ah!Parecequetudoacaboubem!

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AruthaeMartindesmontaramenquantoadistânciaentreonavioeocaisiaaumentandolentamente.

—Amos!—gritouArutha.OCapitãoapontouparaumedifíciodistante.—Osrapazesqueestavamdesentinelaaquiestãotodosnaquelearmazém.

Estãoumpoucomachucados,masvivos!— Amos! Esse é o navio do Rei! — gritou Arutha, acenando para que o

navioregressasse.AmosTraskriu.—Andorinha Real me pareceu um nome imponente. Bem, digam ao seu

irmãoqueumdiaodevolvo.Martincomeçouarir,sendoseguidoporArutha.—Grandepilantra!—bradouoirmãomaisnovo.—Vouconvencê-loalhe

ofereceronavio.Comumprofundogritodedesespero,Amosselamentou:—Ah,Arutha,assimvocêtiratodaagraçadavida!

FIMDOLIVROII

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Sobreoautor

RAYMONDE.FEIST é umdosnomesmais importantesdahistóriada literaturafantástica.NasceunoSuldaCalifórnia e, atualmente, vive emSanDiego.Foitambém em San Diego que se formou, com honras, em Ciências daComunicação em 1977. Traduzido em mais de trinta países,Mago foi o seuprimeiro livro e serve de base para uma vasta obra que tem conquistado, aolongodosanos, as listasdebest-sellersdoeNewYorkTimes e doTimes ofLondon. Quando não está escrevendo, Feist é um colecionador de DVDs,estudioso da história do futebol americano, fã de ilustração e um grandeapreciadordebonsvinhos.

Paramaisinformações:

www.sdebrasil.com.br