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Adoecimento do Tempo (parte 2) Eduardo Laborne Ferreira Saúde Mental e Espiritual Transformamos a vida em uma sucessão inapelável de necessidades, de desejos a serem atendidos em caráter de urgência. Como a condição básica do desejo é a sua falta, só podemos desejar aquilo que não temos. Ao investirmos nosso tempo em aplacar esta fome e sede daquilo que nos falta, por um prazer de momento, abrimos espaço para a presença do vazio. Sentimos um vazio, mas... como sentir um vazio? A dor do vazio talvez seja o modo de nossa alma comunicar que não está sendo atendida. No atendimento do desejo, há o surgimento imediato de outro. Temos a percepção de que parte importante de nossas dores estão ligadas à busca de uma felicidade em objetos exteriores. Buscamos fora, incessantemente, aquilo que não encontramos dentro. Posso ter um objetivo na vida (ser uma celebridade, por exemplo), conseguir atingir esse objetivo e me sentir infeliz. Posso definir inúmeros objetivos e ter uma existência vazia de sentido. Pergunta: será a infelicidade um referencial da alma não atendida, naquilo que mais anseia? O oposto da felicidade é a infelicidade ou a indiferença pela vida? Felicidade se liga a uma busca pela autenticidade, reencontro consigo mesmo. E a condição para o encontro é a separação. O tamanho da dor da separação está sempre ligada ao tamanho da importância do encontro. Importância, importar é trazer para dentro, resgatar aquilo que realmente tem importância. Resgate daquilo que um dia já tive, mas perdi. “A insegurança é a mãe da rigidez”. Por medo de mudar, muitas vezes tomamos uma postura enrijecida diante da vida, interrompendo o fluxo da existência. A vida oferece, a vida recolhe, mas para acolher aquilo que a vida tem a me oferecer, devo que abrir mão do galho seco das coisas que não fazem mais sentido, para abrir espaço no coração para a semente daquilo que ainda vai ser. Hibernamos em nossos problemas esquecendo que a primavera só é possível depois do inverno. Encaramujados na própria vida, estamos ocupados e tão somente ocupados como em um esforço para disfarçar a ansiedade. A incapacidade de escutar os ruídos da alma e os barulhinhos do coração, são modos de fugir de si mesmo. A vida parece estar preenchida de mais vida quando se corre de um lado para o outro, como se estivesse realizando algo me deslocando entre aqui e ali, ou se permanecer ocupado fosse uma prova fundamental de minha importância. Na indefinição de um destino, não parar torna-se o paliativo moderno para a ansiedade. “Se não souberes esperar, não encontrarás o inesperado. O inesperado presenteia quem sabe esperar. Somente quem sabe esperar acolhe. Quem não sabe esperar se desespera.” (Rehfeld) Brilhar a minha própria luz para iluminar a minha dor. Se posso ser, se tenho liberdade de escolha, posso deixar de ser o que me adoece e buscar aquilo que me corresponde. Não sou bipolar, não sou deprimido. Não sou meu adoecimento, porém a alegria de vida nasce muitas vezes da sensação de que que o tempo passou mais rápido. Dos instantes de felicidade que passaram voando. Se você chegou até aqui, caro leitor, talvez este texto tenha feito sentido e o processo de ler tenha fluido mais célere que o de costume. Talvez você tenha percebido isso somente agora. E aí? 60 minutos são sempre 60 minutos? Tempo adoece? Psicólogo formado pelo Unicentro Newton Paiva, especialista em dependência química pela UNIAD-UNIFESP e em Psicologia Existencial Gestalt, pela FEAD. Formação na Abordagem Centrada na Pessoa, pelo Centro de Psicologia Humanista. Psicólogo de família do CETAS- Centro de Terapias e Assistência Social (HEAL).

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Adoecimento do Tempo (parte 2)

Eduardo Laborne Ferreira

Saúde Mentale Espiritual

Transformamos a vida em uma sucessão inapelável de

necessidades, de desejos a serem atendidos em caráter de

urgência. Como a condição básica do desejo é a sua falta, só

podemos desejar aquilo que não temos. Ao investirmos nosso

tempo em aplacar esta fome e sede daquilo que nos falta, por um

prazer de momento, abrimos espaço para a presença do vazio.

Sentimos um vazio, mas... como sentir um vazio? A dor do vazio

talvez seja o modo de nossa alma comunicar que não está sendo

atendida.

No atendimento do desejo, há o surgimento imediato de outro.

Temos a percepção de que parte importante de nossas dores

estão ligadas à busca de uma felicidade em objetos exteriores.

Buscamos fora, incessantemente, aquilo que não encontramos

dentro. Posso ter um objetivo na vida (ser uma celebridade, por

exemplo), conseguir atingir esse objetivo e me sentir infeliz.

Posso definir inúmeros objetivos e ter uma existência vazia de

sentido. Pergunta: será a infelicidade um referencial da alma não

atendida, naquilo que mais anseia? O oposto da felicidade é a

infelicidade ou a indiferença pela vida?

Felicidade se liga a uma busca pela autenticidade, reencontro

consigo mesmo. E a condição para o encontro é a separação. O

tamanho da dor da separação está sempre ligada ao tamanho da

importância do encontro. Importância, importar é trazer para

dentro, resgatar aquilo que realmente tem importância. Resgate

daquilo que um dia já tive, mas perdi.

“A insegurança é a mãe da rigidez”. Por medo de mudar, muitas

vezes tomamos uma postura enrijecida diante da vida,

interrompendo o fluxo da existência. A vida oferece, a vida

recolhe, mas para acolher aquilo que a vida tem a me oferecer,

devo que abrir mão do galho seco das coisas que não fazem mais

sentido, para abrir espaço no coração para a semente daquilo

que ainda vai ser. Hibernamos em nossos problemas

esquecendo que a primavera só é possível depois do inverno.

Encaramujados na própria vida, estamos ocupados e tão

somente ocupados como em um esforço para disfarçar a

ansiedade. A incapacidade de escutar os ruídos da alma e os

barulhinhos do coração, são modos de fugir de si mesmo. A vida

parece estar preenchida de mais vida quando se corre de um

lado para o outro, como se estivesse realizando algo me

deslocando entre aqui e ali, ou se permanecer ocupado fosse

uma prova fundamental de minha importância. Na indefinição de

um destino, não parar torna-se o paliativo moderno para a

ansiedade. “Se não souberes esperar, não encontrarás o

inesperado. O inesperado presenteia quem sabe esperar.

Somente quem sabe esperar acolhe. Quem não sabe esperar se

desespera.” (Rehfeld)

Brilhar a minha própria luz para iluminar a minha dor. Se posso

ser, se tenho liberdade de escolha, posso deixar de ser o que me

adoece e buscar aquilo que me corresponde. Não sou bipolar,

não sou deprimido. Não sou meu adoecimento, porém a alegria

de vida nasce muitas vezes da sensação de que que o tempo

passou mais rápido. Dos instantes de felicidade que passaram

voando. Se você chegou até aqui, caro leitor, talvez este texto

tenha feito sentido e o processo de ler tenha fluido mais célere

que o de costume. Talvez você tenha percebido isso somente

agora.

E aí? 60 minutos são sempre 60 minutos? Tempo adoece?

Psicólogo formado pelo Unicentro Newton Paiva, especialista em dependência química pela UNIAD-UNIFESP e em Psicologia Existencial Gestalt, pela FEAD. Formação na Abordagem Centrada na Pessoa, pelo Centro de Psicologia Humanista. Psicólogo de família do CETAS-Centro de Terapias e Assistência Social (HEAL).