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O Cavaleiro infiél

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Capítulo 24 – O Cavaleiro infiel

6° Cavaleiro da Magia – Shiron Arma Branca – Espelho das Ilusões

Elkens foi empurrado e caiu de joelhos num chão dourado. Estava no sexto templo, o refúgio do sexto Cavaleiro da Magia, mas teve a im-pressão de que já estivera naquele lugar. O teto, o chão e as paredes eram do mais puro ouro. Ao prestar um pouco mais de atenção Elkens percebeu que nunca esteve exatamente naquele corredor, mas sabia onde estava. Estava num corredor no in-terior do Templo do Sacrifício! Ele ficou confuso por um momento, mas logo se lembrou de tudo o que aconteceu. Meithel o empurrou pelo portal enquanto era atingido pe-las corrente de Magai. Precisava voltar para ajudá-lo… Mas não foi preciso. Assim que se virou para trás e viu o portal aber-to, três pessoas passaram por ele. O homem da frente era Meithel, mas Elkens surpreendeu-se em ver os outros dois: — Kanoles? – perguntou ele mal contendo sua surpresa. – Yusguard? O caçador de recompensas continuava com suas habituais vestes ne-gras; as listras também negras pintadas à mão continuavam em seu rosto, identificando-o como um membro do seu antigo bando; o cabelo continuava sujo e desgrenhado, mas havia algo diferente nele. Uma confiança renovada, uma nova esperança, Elkens não sabia descrever o que era. Talvez fosse apenas impressão, talvez a sua alegria em rever o amigo o estivesse confundindo, mas para ele Kanoles era um novo homem. Não o via mais como uma pessoa sem um destino, sem objeti-vos. Antes era isso o que ele pensava de Kanoles, um homem indeciso, que não sabia o que queria da vida; um andarilho, um viajante, um

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amante das viagens e aventuras. Elkens não sabia o que havia acon-tecido, mas via em Kanoles agora um homem comprometido com a missão deles, um simples humano que foi capaz de se envolver com protetores desconhecidos e tomar por sua a missão deles. Para Kanoles e Elkens, os objetivos eram um só. Kanoles estava tão comprometido com a missão de Elkens, Mifitrin e Meithel, que agora sua vida tinha um novo sentido, um novo e único sentido. Lutaria quando Elkens lu-tasse, gritaria quando Elkens gritasse, e descansaria somente quando Elkens descansasse, ou quando a morte o levasse. Esta era a sua vida agora, fazia parte de corpo e alma do destino de Elkens e os outros; fazia parte daquela missão em que muitos morreriam antes de concre-tizá-la. Mas Elkens deixou tudo isso de lado. O sorriso no rosto de Kanoles o encheu de uma alegria como não sentia nos últimos dias. Agora só fal-tava Mifitrin se juntar a eles. Só faltava isso para sua alegria ser completa. — Pensou que ia se livrar de mim tão fácil rapaz? – perguntou Ka-noles ainda sorrindo. Kanoles ainda continuava tratando Elkens co-mo uma criança. Uma criança determinada e corajosa, mas ainda as-sim uma criança; embora agora também enxergasse Elkens com novos olhos. Não fazia idéia das provações que Elkens foi obrigado a pas-sar, não imaginava todas as dores e sofrimento que ele agüentou, nem do medo que passou, mas tudo isso que ignorava era o motivo de El-kens ter mudado tanto em tão poucos dias. Quando olhou para El-kens, enxergou nele o líder que antes estava oculto, mas que agora era perfeitamente visível. — Como entraram aqui? – Elkens perguntou. — O nosso velho amigo Gauton estava nos esperando – respondeu o caçador de recompensas. Ele abriu a boca para dizer mais alguma coi-

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sa, mas então desviou os olhos de Elkens e percebeu onde estava. Seja lá o que iria dizer, as palavras morreram em sua garganta. Seu queixo caiu quando vislumbrou o lugar onde se encontravam. Por um segun-do Elkens ficou confuso, mas logo os olhos de Kanoles refletiram o dourado que havia por todos os lados, então ele compreendeu: Kanoles era um caçador de recompensas. Passou parte de sua vida em busca de tesouros raros e valiosos; aquele lugar feito completamente de ouro re-almente devia impressioná-lo. Elkens olhou para Meithel e constatou que o amigo também estava pasmo com o lugar onde se encontravam. — O que isso significa? – perguntou Elkens ao outro. – Por que es-tamos no Templo do Sacrifício? Meithel pensou por um breve momento na pergunta de Elkens, mas ela não fazia o menor sentido. — Não estamos no Templo do Sacrifício – disse ele ainda impressio-nado. – Estamos dentro dos Domínios da Magia. Kanoles e Yusguard observavam com curiosidade os dois, mas não conseguiam entender nada. Nenhum dos dois esteve presente nas aventuras da Floresta de Pedra, por isso não tinham como saber do que eles estavam falando. — Mas… – começou Elkens meio confuso; não sabia o que dizer. – Então por que você também ficou surpreso ao chegar aqui? Creio que já tenha passado por aqui várias vezes… Meithel encarou o amigo, então respondeu: — Sim, mas Shiron, o Cavaleiro deste templo, é mestre na arte de ilu-são. Acho que ninguém conhece a verdadeira aparência deste lugar, pois sempre que alguém passa por aqui o que vê é apenas uma ilusão.

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Elkens ficou em silêncio, encarando Meithel. Yusguard e Kanoles continuavam sem entender nada, mas não interromperam a conversa dos Sacerdotes com nenhuma pergunta. — Nós sabemos que foi Shiron quem tentou nos matar, pois sabemos que foi ele quem criou o Templo do Sacrifício com a ajuda do seu espe-lho. E esse espelho é o mesmo que Gauton teve de quebrar para que pudéssemos escapar daquele lugar. — Mas por que ele está fazendo isso? Por que transformou o sexto templo no Templo do Sacrifício? Por acaso ele quer continuar nos tes-tando, nos impondo testes perigosos onde nossas vidas correm risco? Nenhum dos dois disse mais nada. Meithel conhecia apenas parte do poder de Shiron, mas já sabia o quanto ele era poderoso. Mal puderam enfrentar suas ilusões na Floresta de Pedra, então o que seria deles agora que teriam de enfrentar o verdadeiro Cavaleiro? Finalmente Kanoles interrompeu, livrando-os de seus terríveis pensa-mentos: — É melhor irmos em frente. Se eu entendi bem o que Gauton nos ex-plicou, ainda temos que derrotar mais quatro Cavaleiros antes de po-der salvar o Guardião da Magia. Os Sacerdotes concordaram, então seguiram em frente. Ainda havia muita coisa a ser feita, muitos Cavaleiros para derrotarem. Quanto mais andavam naquele lugar, mais percebiam suas semelhanças com o Templo do Sacrifício. Era como se tivessem atravessado um portal que os levou de volta para aquele lugar, mas sabiam que não era verdade. Continuavam nos Domínios da Magia e estavam muito perto de uma nova batalha, desta vez contra o mais poderoso dos nove Cavaleiros, mais poderoso que o próprio Kaiser. Shiron era aquele que primeiro se rebelara contra Zander, aquele a quem Meithel presenciou tentando matar seu Guardião alguns dias atrás.

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No Covil, a batalha entre o domador de demônios e o quinto Cavaleiro da Magia já havia começado. As correntes de Magai avançavam con-tra Karnar, mas antes que ele fosse atingido o demônio Valadur en-trou na frente para proteger o seu mestre. O Valadur não dispunha de muitas habilidades mágicas, embora fosse muito ágil e forte. Entre os domadores geralmente não era utilizado em batalhas, mas sim como um eficaz meio de transporte, e esse foi o motivo por Karnar tê-lo domado. Graças ao Valadur, puderam chegar às Montanhas Gêmeas em um curto período de tempo; o Valadur se-quer chegou a fazer uma única parada, só parou quando chegou ao seu destino. Mas mesmo sabendo que não era um demônio indicado para batalhas, Karnar o usava e havia um motivo para isso; Magai estava caindo di-reitinho no seu plano. As correntes de Magai não conseguiram atravessar a resistente coura-ça do Valadur, mas ainda assim prenderam todo o seu corpo. O demô-nio bateu suas asas e tentou se livrar das correntes que o prendiam; sua incrível força arrastou Magai por alguns metros, até que ele pu-desse se recuperar. A luta entre o demônio e o Cavaleiro prosseguiu, mas logo Valadur se enfureceu. As correntes não conseguiram mais detê-lo, então o solta-ram de uma vez por todas. Karnar continuava observando a luta com seus olhos completamente brancos, na maior calma possível. — O Valadur é um demônio criado para proteger algo ou alguém – explicou o domador. – Por muito tempo ele protegeu as ruínas de Al-maren, mas agora ele protege a mim. Suas correntes não serão páreas para ele.

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Magai riu, um riso sem emoção. Aquilo fazia parte da sua conduta de Cavaleiro. Você é superior e precisa mostrar isso. Rir numa situa-ção como aquela fazia parecer que ele tinha o controle, que estava completamente confiante e não tinha medo de nada. Fazia parte da estratégia de fazer o inimigo se rebaixar, de fazê-lo parecer mais do que realmente é. Maior do que jamais foi. Esse é o orgulho de um Ca-valeiro, o orgulho por estar entre os melhores. Alguns, como Káfka e Shanara, não tem este orgulho, alguns não demonstram ter, mas Ma-gai não estava entre eles. Assim como Algoz, sentia um imenso orgu-lho por ser um dos Cavaleiros, não um orgulho maldoso, mas ainda as-sim o cegava para as batalhas, o impedia de admitir que, embora fosse um dos melhores, estava longe de ser invencível. — Seu demônio conseguiu enfrentar quarenta e duas das minhas cor-rentes – disse ele – mas creio que você não conhece o verdadeiro poder da minha arma branca. “Minha corrente tem a habilidade de se multiplicar, entende o que isso significa, domador de demônios? Significa que você não enfrentou nem metade do meu verdadeiro poder. Minhas correntes podem se multiplicar e multiplicar até atingirem cento e oito correntes. Será que o seu demônio ainda resistirá a todas elas?”. Com essa nova informação a calma inabalável de Karnar estremeceu, mas ainda assim ele não demonstrou. Ele estava ciente do poder do seu demônio e conhecia muito bem o seu limite. E o limite era aquele. Valadur não seria capaz de enfrentar um número maior de correntes. Aquele duelo já estava decidido… — Vamos ver o quanto ele agüenta – disse Magai agitando suas cor-rentes e jogando-as novamente contra Karnar. Mais uma vez o Vala-dur entrou na frente de seu mestre, protegendo-o, assim como os dois sabiam que iria acontecer.

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Enquanto as correntes avançavam contra o demônio, elas foram se multiplicando assombrosamente, até que cento e oito correntes atingi-ram o Valadur. Elas se prenderam em torno do pescoço do demônio, em suas garras, em sua cauda e em suas asas. Magai puxou com força e as correntes recuaram contra ele, tentando puxar o demônio para o chão. O Valadur gritou por alguns segundos, mas já havia ultrapassado o seu limite, então finalmente tombou aos pés do Cavaleiro. Atingiu o chão com um grande impacto, derrubando as árvores mortas que estavam em seu caminho, e não se levantou mais. O Valadur foi derrotado!

O grande corredor dourado parecia não ter fim. Elkens, Meithel, Yus-guard e Kanoles estavam correndo por ele, mas ainda não haviam avistado o seu fim. — Estamos presos na ilusão de Shiron – resmungou Meithel impaci-ente, acelerando ainda mais a corrida. Os outros o seguiram de perto. O som de seus passos apressados era a única coisa audível no templo. Yusguard já não sabia mais há quanto tempo estavam correndo por aquele corredor sem fim. Estava com medo. Aquilo tudo era novo para ele. Embora tivesse crescido ouvindo histórias sobre os protetores ain-da não havia se acostumado a tudo aquilo. Estava num lugar estra-nho, com pessoas diferentes, sem saber o que poderia encontrar no próximo passo. Estava com medo, mas não se intimidava. Ele precisa-va seguir em frente para conseguir vingar a morte de seu primo Luf-tar. Isso era tudo o que guiava neste momento: vingança.

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— Tem algo errado aqui – disse Meithel de repente. – Shiron é um dos Cavaleiros mais poderosos, acredito que o mais poderoso, mas ain-da não consigo sentir sequer vestígios do seu poder. — Ele pode estar ocultando seus poderes – disse Elkens correndo ao seu lado. — Isso não faz sentido. Para que ele ia querer se esconder? Shiron não precisa disso. Elkens não disse mais nada. Eles correram por mais alguns minutos, mas então finalmente Meithel perdeu a paciência: — SHIRON! ONDE VOCÊ ESTÁ? APAREÇA! Não ouve resposta alguma. — SHIRON! Silêncio. — SHIROOOOOOOOOON! Nada. — Acho que ele não está te ouvindo, Meithel – disse Yusguard. — Está sim – disse Meithel olhando atentamente pelo corredor à frente. – Shiron está brincando conosco… SHIRON! Desta vez algo aconteceu. Ainda não houve resposta alguma, mas eles ouviram o som de passos se aproximando, vindo de encontro a eles. Todos pararam de correr e se prepararam para lutar. Os dois proteto-res tocaram seus colares, os dois humanos sacaram suas espadas. A lu-ta iria começar. Logo eles viram um homem vindo na direção deles. Mas não era Shi-ron… Nos Domínios do Tempo, vários Mestres do Tempo estavam reunidos no Pátio da Antúnia. A árvore que era tão importante para os prote-tores do Tempo estava morrendo, e por isso os Mestres estavam posta-

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dos à sua volta, formando um círculo em torno da árvore. Kantus, o tutor da Sacerdotisa Mifitrin, também estava ali. — Kantus – chamou um dos Mestres. – Nossas forças não estão sen-do o suficiente. Precisamos de mais ajuda para salvar a Antúnia. O Mestre Kantus ficou meditando por alguns segundos. Antes ele foi um dos amigos do Mago Morton. Não era tão íntimo quanto Ka-limuns, mas sabia apreciar a incrível sabedoria do Mago e sempre bus-cava se aconselhar com ele. Agora estava lembrando-se de algumas coisas que o Mago dissera antes da sua morte: “Um dia, um dia quanto eu não estiver mais presente, vocês passarão por coisas terríveis. Mon irá se libertar do Exílio e ninguém poderá impedir isso. Mas antes que ele se liberte os Elementos irão enfraque-cer e definhar. A única coisa que você e os outros poderão e deverão fazer é atrasar esse enfraquecimento, não poderão fazer nada além disso. A nossa esperança estará nas mãos dos fracos e desacreditados. A chance deles vencerem é muito pequena, mas só eles terão essa chan-ce, portanto vocês deverão acreditar neles até o fim”. Kantus havia perguntado do que Morton estava falando, mas o Ma-go apenas respondeu: “Tudo em seu tempo”. Kantus não sabia sobre a Elemantísses, não fazia a menor idéia do que estava acontecendo den-tro dos Domínios da Magia, apenas sabia que os três Sacerdotes, El-kens, Meithel e Mifitrin, apenas eles teriam a chance de salvar a to-dos. — Mestre Kantus! – chamou um outro Mestre, livrando Kantus de seus pensamentos. – Precisamos buscar mais ajuda ou a Antúnia irá morrer! Kantus olhou para a bela árvore à sua frente, que agora já não era tão bela. Seus galhos estavam descascando e as folhas caiam a todo ins-tante. A Antúnia estava praticamente morta.

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— Não – respondeu o velho. – Precisamos ficar aqui e reunir o má-ximo de energia para manter a Antúnia viva. — Isso é impossível. Estamos todos concentrados em Katsu-gan, es-tamos no nosso limite. Nossas forças não são o suficiente e, desse mo-do, a Antúnia morrerá em algumas horas… — Se em algumas horas Mifitrin e os outros não vencerem o mal nos Domínios da Magia, todos estaremos mortos, não somente a Antúnia. Nenhum dos Mestres voltou a dizer algo, apenas retomaram a forma-ção e a concentração. A última folha da Antúnia caiu com a brisa que passou por eles… Nos Domínios da Alma as coisas também estavam ruins. Rachaduras surgiam nas paredes do Santuário Rubi e parte dele já havia desmoro-nado. No Bosque da Alma as árvores estavam mortas, assim como qualquer forma de vegetação ali dentro. Poucos protetores da Alma permaneciam ali, pois estavam todos aju-dando de alguma forma. Até mesmo o Guardião da Alma, Nai-Sáturan, não estava presente, e isso enfraquecia ainda mais a Alma. Alguns Sacerdotes permaneciam ali, pois precisavam cuidar das almas que ali estavam. Mas as almas não estavam chegando mais. Elas es-tavam se perdendo no meio do caminho e vários Sacerdotes tiveram de partir para caçá-las. Os Xamãs estavam invocando vidas passadas, espíritos, para tentar descobrir o que está acontecendo. Estavam invocando vidas que vive-ram durante a última guerra contra Mon. Vidas de sábios que com certeza sabiam de muita coisa do que estava acontecendo. Mas as coi-sas que diziam não faziam o menor sentido: — Os três nos salvarão! — A Elemantísses irá acontecer…

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— Mon voltará… — O novo Elemento irá nascer… Mas por mais que os Xamãs perguntassem, por mais que tentassem de todas as maneiras, não obtinham nenhuma resposta satisfatória. Era como se os espíritos não quisessem que eles soubessem o que ia aconte-cer ou o que estava acontecendo. Parecia que eles não queriam que ninguém se intrometesse no que estava por vir, como se isso fosse es-tragar tudo…

Quando o homem que andava na direção deles chegou mais perto, Ka-noles o reconheceu e se assustou: — É uma ilusão? – ele perguntou receoso. O homem que continuava vindo em sua direção era Yusguard, mas ele sabia que o verdadeiro Yusguard estava logo ao seu lado. — Não é uma ilusão – respondeu Yusguard sem emoção na voz, segu-rando sua espada com as duas mãos. - Aquele é o desgraçado do meu irmão. Kanoles era o único ali que não sabia que Yusguard tinha um irmão gêmeo, por isso ficou tão surpreso. Longuard continuou andando na direção deles e sorriu ao ouvir o irmão falar dele. — Como você é gentil, Yusguard – disse ele de forma irônica. – Sabia que sentiria minha falta e que viria até aqui… — Onde está Shiron? – perguntou Meithel interrompendo o assassino de Luftar. Longuard parou de andar quando já estava muito próximo deles, en-tão encarou Meithel.

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— Ninguém sabe ao certo onde Shiron está – disse. – Kaiser me contou que você foi um dos últimos a vê-lo. — Como assim? – perguntou Meithel surpreso. Fazia muito tempo que não via Shiron; a última vez que isso aconteceu foi quando… Longuard riu da ignorância de Meithel. Ele não era um protetor, mas ainda assim estava mais compenetrado nos acontecimentos importan-tes que Meithel. — Kaiser me contou que antes de você sair dos Domínios da Magia, alguns dias atrás, você foi falar com o Guardião e presenciou uma ba-talha entre Shiron e ele. Elkens se lembrou da história que Meithel contou na Convocação Elementar, que Shiron havia atacado o Guardião da Magia e depois fugiu. — Aquela foi uma das últimas vezes que Shiron foi visto por alguém. Kaiser também me contou que naqueles dias ainda não havia se aliado à Mon, por isso enfrentou Shiron para proteger o Guardião. Mas de-pois da luta que tiveram, Shiron fugiu e não foi visto novamente. Só então Kaiser passou para o lado de Mon e iniciou a Revolução Ele-mentar. Meithel procurava não dar ouvidos ao que Longuard dizia. Sabia que muito pouco do que ele dissesse seria verdade, mas ainda assim perce-bia que o outro sabia de muitas coisas. Talvez Meithel conseguisse ti-rar alguma informação dele. — Como isso aconteceu? Como Mon conseguiu se comunicar com Kaiser e convencê-lo a trair a Magia? Longuard riu com gosto. — Acha que eu sei de tudo? Sou quase o braço direito de Kaiser ago-ra, mas ainda assim ele não me conta tudo o que acontece, apenas o que é mais importante…

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Nenhum dos dois disse nada por algum tempo. Ao lado de Meithel, a mão de Yusguard que estava segurando a espada tremia, como se mal conseguisse esconder o desejo de vingar a morte de Luftar naquele momento, mas Elkens havia percebido isso e segurava o braço de Yus-guard. Não tinha nenhuma compaixão pelo irmão de Yusguard, pois vira a frieza dele ao matar Luftar, mas não podia deixar Yusguard matá-lo. Não por enquanto. Meithel riu de repente, um riso forçado, sem qualquer emoção. — Acha que acredito no que fala? Agora eu entendo o que está acon-tecendo aqui. APAREÇA SHIRON! Todos olharam confusos para ele. Até mesmo Longuard ficou confuso. — Meithel… – sussurrou Elkens ao seu lado. – Shiron não está aqui, agora sabemos disso… — Não! – interrompeu Meithel. – Ele está tentando ganhar tempo. Tudo isso aqui é uma ilusão. O templo, Longuard, tudo não passa de mais uma ilusão. Yusguard deu um passo à frente. Livrou-se das mãos de Elkens e avançou contra seu irmão, agitando a espada no ar. Sua espada ape-nas arranhou o pescoço de Longuard, mostrando a perfeição do seu ataque. Se ele quisesse, Longuard já estaria morto, mas não era isso o que Yusguard queria. — Você pode dizer o que quiser – disse ele virando-se para Meithel – mas isto não é uma ilusão. Conheço o brilho nos olhos do meu irmão, esse brilho de ganância por poder, e também reconheço a forma como suas pernas estão tremendo agora. Não é uma ilusão, definitivamente é o covarde do meu irmão. Longuard segurou a lâmina da espada sem medo, então afastou-a do seu pescoço.

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— Ele está certo – disse após recuperar a postura. – Não sou uma ilusão, nem este templo o é. Esta é a verdadeira aparência do sexto tempo, o Templo do Sacrifício. Shiron não está nos Domínios da Ma-gia, tampouco seu Espelho das Ilusões, por isso tudo o que vêem aqui é real. Então onde estaria Shiron, o sexto Cavaleiro da Magia? No templo anterior, Magai ria loucamente por ter vencido o Valadur de Karnar. — Eu te avisei, domador. Seu demônio não foi páreo para as minhas correntes. Entre eles estava o grande demônio alado, caído no chão do Covil. Não havia mais nenhuma corrente sobre ele, pois isso já não era neces-sário. O Valadur foi derrotado e não se levantaria mais. Magai encarou o domador de demônios e não gostou do que viu. Ali estava um homem coberto por vestes negras. Objetos estranhos pendu-rados por todo o seu corpo. Nas mãos tinha um bastão dourado e nas costas um chicote de domador. Seu rosto estava marcado por estra-nhos símbolos negros, tatuagens, e também por um discreto sorriso. Magai sentiu mais medo daquele sorriso do que jamais sentiu ao en-frentar o demônio. Ainda sorrindo o domador de demônios falou: — Parabéns Magai, você realmente derrotou o meu demônio. Mas não usei o Valadur com o objetivo de derrotá-lo, usei-o apenas para conhecer seus poderes. Você fez exatamente o que eu queria: revelou-me o limite do seu poder e agora eu sei que posso derrotá-lo. Magai nem tinha consciência de que suas mãos tremiam. Não sentia medo pelas palavras do domador, era aquele homem que o assombrava como nada tinha feito em toda a sua vida. A simples presença de

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Karnar lhe trazia o medo e abalava as estruturas do seu orgulho. Pela primeira vez desde que se tornara um Cavaleiro, Magai pensou em fugir de uma batalha. Mas apenas pensou; seu orgulho era dema-siado grande para agir como um covarde. Ainda amedrontado pelo sorriso confiante de Karnar, perguntou com uma voz debochada: — Pretende me atacar com esse seu bastão dourado? Ou talvez com esse chicote nas suas costas? Karnar não disse nada. Nem demonstrou ter ouvido o que Magai dis-se. Simplesmente fechou os olhos e esperou que algo acontecesse. O medo de Magai aumentou. Agora ele entendia o motivo do seu me-do; tinha medo de enfrentar o desconhecido. Não conhecia aquele ho-mem, não sabia o que ele queria, e não conhecia a amplitude de seus verdadeiros poderes. Magai podia enfrentar qualquer protetor, pois sabia que como Cavaleiro, estava muito acima da maioria deles. Mas não podia pensar desta mesma maneira para enfrentar o domador de demônios, pois não o conhecia. Não sabia quais eram os limites de um domador, nem que tipo de magia que dispunham para lutar. Esse era o seu medo. Karnar continuava com os olhos fechados. Nuvens negras passaram a se formar sobre o Covil. O grande vazio acima de suas cabeças foi pre-enchido por nuvens negras, como se uma verdadeira tempestade esti-vesse prestes a cair sobre eles. Logo começou a chover e Magai sentiu ainda mais medo. Recuou um passo sem que percebesse. — Está na hora de você conhecer o que vai te derrotar, Magai. A chuva ficou cada vez mais forte. Karnar abriu os olhos. — Apareça Shidra! Magai apenas observava, assustado. Alguma coisa passou a se formar entre ele e Karnar, alguma coisa que tomava forma da chuva. Logo

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apareceu. Tinha a forma de uma mulher, mas era mais baixa e com-pletamente formada por água. Os cabelos longos eram formados por fios de chuva. Tinha olhos grandes e azuis como o mar. Shidra tinha o mesmo rosto calmo de seu mestre, a mesma calma que fazia o coração de Magai gelar. A nova batalha estava prestes a começar… Magai não hesitou em atacar. Atirou suas cento e oito correntes em direção ao demônio. Um segundo antes de ser atingida, Shidra des-manchou-se em água, fundindo-se com a chuva que caía. A única coi-sa que as correntes atingiram foi a chuva que continuava a cair. Magai assustou-se, mas não baixou a guarda. Cada uma de suas cor-rentes apontou para um lado, como dezenas de serpentes que procu-ram pela presa fugitiva. Shidra não demorou a reaparecer, não muito longe de onde estivera segundos antes. Mais uma vez as correntes atacaram, mas novamente ela desmanchou-se em água, frustrando Magai mais uma vez. Karnar divertia-se. Assim como conhecia o limite do Valadur, agora também conhece o limite de Magai e sabe que ele não é páreo para Shidra. É tudo uma questão de conhecer o adversário e agora Karnar conhecia Magai. Mas Magai não conhecia Shidra, e por isso a batalha já estava decidida. Karnar estava tão calmo como se estivesse rela-xando à sombra de uma grande árvore, numa tarde de verão, sentindo a brisa fresca batendo em seu rosto. A corrente atacava, Shidra desaparecia… esta cena se repetiu por al-gumas vezes até que Magai finalmente desistiu de atacar. As corren-tes recuaram contra ele, ficando todas à sua volta. Não precisava ata-car o demônio, agora percebia isso. Era impossível atacar Shidra. Ela era parte da chuva e a chuva era parte dela. Ela podia estar em todos

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os lugares ou em nenhum. Mas foi então que Magai percebeu o pon-to fraco. Shidra era a arma de Karnar, assim como as correntes eram a sua. Ele não precisava destruir a arma, o que era impossível, apenas o seu dono. Não tinha que atacar o demônio, tinha que atacar o doma-dor. Tendo sua nova estratégia em mente, Magai atacou. As cento e oito correntes seguiram em ziguezague; pelo chão, pelo ar e pelas laterais do Covil as correntes avançaram contra o demônio. Shidra desapare-ceu, como já estava acostumada a fazer, mas nesse momento Magai sorriu. Não estava visando atacar o demônio, e ele havia caído em sua armadilha. As cento e oito correntes seguiram diretamente contra Karnar, que continuava afastado da batalha, apenas observando tudo com seus olhos brancos. — Morra seu desgraçado! As correntes avançaram pela chuva como serpentes sedentas pela pre-sa, mas não foi desta vez que sentiram o gosto do sangue de Karnar. Antes de atingirem-no, um paredão de água levantou-se à sua frente em um segundo. As correntes atingiram o paredão e atravessaram sem dificuldades, mas quando o paredão desmanchou-se em água, Karnar não estava mais ali. — Precisa melhorar sua pontaria, Magai! Karnar estava às suas costas agora. Shidra estava diante dele, prote-gendo-o. Magai virou-se e encarou seu adversário. Ainda não podia acreditar que não estava conseguindo derrotar aquele mero humano, que nem ao menos era protetor. Não conseguia acreditar que estava entre os melhores e ainda assim não conseguia vencer aquela batalha. Seus nervos estavam à flor da pele, a raiva que sentia por Karnar era única. Uma raiva tremenda daquele que lhe estava humilhando.

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— Vamos ver se consegue escapar agora – disse o Cavaleiro. Magai agora parecia completamente insano. Uma insanidade que Elkens e os outros já haviam visto em Mudriack, em Ego e Calarrin, e nos demais Cavaleiros. Uma insanidade que não era deles em si, mas uma insani-dade provocada pelo feitiço de controle lançado sobre eles por Kaiser. No momento em que começavam a perder, que não conseguiam cum-prir as ordens e os desejos de Kaiser, o feitiço de controle elevava-se a tal ponto que os fazia perder a sanidade. Na situação em que se en-contra, Magai não está nem mesmo sob as ordens de Kaiser, pois a in-sanidade de sua mente superou até mesmo isso. Agora ele é capaz de qualquer coisa para poder matar seu inimigo, mesmo que isso signifi-que a sua morte. Agora nada mais importava, somente a vitória. Ele agitou os braços e as cento e oito correntes passaram a circundá-lo num movimento rítmico. Nesse momento Shidra levantou um novo paredão de água diante de Karnar, pronta para levar seu domador pa-ra longe do ataque de Magai. Mas agora isso não seria possível… Magai agitou os braços e atirou suas correntes para todas as direções possíveis. Parecia que uma enorme teia de aranha havia se formado no Covil, pois as correntes foram para todas as direções e provavelmente Karnar seria atingido aonde quer que Shidra o levasse. Não havia co-mo Karnar ter escapado deste último ataque… O Cavaleiro olhou para todas as direções para encontrar o seu inimigo, e lá estava ele: Shidra estava ao lado de seu mestre, que fora perfura-do pelas correntes no ombro esquerdo, nas pernas, e uma quarta cor-rente havia feito um profundo corte em seu rosto. O sangue escorria pelos ferimentos e se misturava à água da chuva. Havia uma terrível expressão de dor em seu rosto, mas ainda assim aparentava calma. A velha e habitual calma de Karnar continuava inabalável, indestrutí-vel.

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Shidra, pelo contrário, não estava nem um pouco calma. A água que formava o seu corpo estava agitada, turbulenta. Seus cabelos er-guiam-se no ar como se a própria chuva estivesse subindo. Seus gran-des olhos azuis estavam contraídos de raiva. Enquanto Shidra se enfurecia, Karnar arrancou as correntes que per-furaram o seu corpo com as próprias mãos, a sangue frio. Não soltou sequer uma exclamação de dor ao fazê-lo, nem um único gemido. Ha-via passado pelo treinamento de dor para se tornar um domador; aqui-lo não era nada. O sangue jorrou por seus ferimentos, mas o domador não pareceu se importar. Shidra levantou seus braços furiosamente e, de forma surpreendente, a chuva parou de cair. Ficou imóvel no ar por alguns segundos antes de começar a seguir os movimentos do demônio da água. A raiva de Shidra agora estava amedrontando Magai mais que a cal-ma de Karnar. Mais uma vez o demônio agitou seus braços e dezenas de correntes de água se formaram da chuva, imitando a arma branca do Cavaleiro. Agora o Covil estava repleto de correntes, correntes brancas e correntes transparentes. Umas eram resistentes como a pe-dra, outras tinham a força de uma cachoeira. Os adversários se encararam, mas logo a luta reiniciou para enfim terminar. Magai agitou suas correntes contra Shidra e Shidra agitou suas correntes contra Magai. As correntes do Cavaleiro eram podero-síssimas, mas o que elas poderiam fazer contra a água? A batalha já estava decidida, assim como Karnar sempre soube. As correntes de Shidra não perfuraram o seu corpo, mas o impacto foi su-ficiente para jogar Magai contra uma das várias árvores mortas que havia pelo Covil e deixá-lo inconsciente no chão. As nuvens negras desapareceram num piscar de olhos, assim como a chuva. Shidra não demorou em desaparecer também, mas antes verifi-

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cou se estava tudo bem com o seu domador. Karnar estava livre para ir atrás de seus amigos, mas julgava que já havia feito o que estava ao seu alcance. Antes de seguir atrás de Elkens e os outros, primeiro pre-cisava curar os ferimentos do seu demônio alado, que continuava caí-do no chão. Podia fazer isso facilmente com a ajuda da sua magia e com as ervas que trazia consigo, mas precisaria de algum tempo. En-quanto seguia para medicar seu demônio tombado, Karnar sorria. Lembrava-se de Lavin, a valente domadora de demônios que os ajuda-ra no reino de Roldur. Enquanto estavam presos nas celas, Lavin ha-via lhe questionado se ele partiria de Roldur para ajudar seus amigos e Karnar havia respondido que não seria de grande ajuda. Mas, com um sorriso no rosto, ele admitia que estava errado. Ele derrotou um dos nove Cavaleiros, reconhecia que sua participação na guerra contra os Cavaleiros da Magia já havia sido crucial; havia feito a diferença e estava satisfeito consigo mesmo.

No Templo do Sacrifício, Longuard continuava impedindo que Elkens e os outros avançassem para o próximo templo. Meithel deu mais um passo à frente, então mais uma vez dirigiu a palavra ao irmão de Yus-guard. — Sabe de uma coisa Yusguard, os humanos não são fracos como eu sempre acreditei. Aqui estão dois exemplos disso: Kanoles e Yusguard. Karnar também é um ótimo exemplo, e ele está enfrentando Magai neste momento. Mas você Longuard, você não é um exemplo de força, nem de coragem. Se Kaiser te enviou até aqui para substituir Shiron e nos enfrentar, saiba que ambos cometeram um grande erro. Você não conseguirá nos deter aqui.

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Longuard ouviu Meithel atentamente até o fim, mas não conseguiu evitar de soltar uma grande gargalhada ao ouvir tudo o que Meithel tinha para dizer. — Acha que sou burro o bastante para enfrentar protetores? – per-guntou ele em meio à gargalhada. – Sei que são muito mais poderosos que eu e foi exatamente por isso que me aliei a Kaiser. E você está er-rado, Meithel. Kaiser não me enviou até aqui para impedi-los de se-guir em frente. Muito pelo contrário: ele disse que não vê à hora de enfrentá-los. — Então por que você está aqui, Longuard? – Kanoles perguntou com repugnância na voz. — Estou aqui porque vim realizar o desejo do meu irmão – respondeu ele virando-se para o seu gêmeo. – Você veio atrás de mim, não veio Yusguard? Você veio se vingar pela morte do nosso querido primo… Yusguard não agüentou ouvir seu irmão debochar da morte de Luftar, então mais uma vez apontou a espada para o seu pescoço. — Exatamente, irmão. Vim me vingar pela morte de Luftar. Longuard também sacou sua espada e apontou para o irmão. Um pa-recia o reflexo do outro num espelho. Eram exatamente idênticos. — Elkens. Meithel. Kanoles – disse Yusguard. – Quero que vocês vão em frente. Assim que eu matar este desgraçado eu encontro vocês. Elkens e Meithel encararam Yusguard por um momento, pensando em argumentos para convencer o homem de Covarmen a não fazer aquilo, mas Kanoles os empurrou, obrigando-os a seguir em frente. Por mais que os protetores fossem sábios e poderosos, não conseguiam entender com perfeição as questões de honra. Aquela era uma luta entre os dois irmãos, e ninguém tinha o direito de se intrometer. Aquela era uma questão de honra que só poderia ser resolvida com espadas e Kanoles entendia disso.

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Shiron estava na biblioteca da Torre Espiral. Sobre uma grande mesa espalhou pergaminhos, livros e diversos mapas das regiões de Gar-dwen. Com um lápis circulou todos os portais que davam acesso aos Domínios da Magia, os quatro paralelos e o portal principal. Depois fez um X sobre o vilarejo Rismã e passou a avaliar suas opções. Uma marcação em tinta vermelha indicava todos os locais em que os caça-dores de Laserin já haviam procurado por ela: em sete das doze Gran-des Cidades, em quinze cidades e vilarejos menores e em treze outros lugares desabitados, como florestas e montanhas. Shiron considerava a tentativa de tirar Laserin de Rismã por uns dias e levar os caçadores para lá, apenas para afastar as suspeitas de ela estar no vilarejo de uma vez por todas, mas seria arriscado demais. Mesmo que Laserin não estivesse em Rismã quando a busca fosse realizada, ainda havia o risco de os caçadores sentirem vestígios de sua magia por lá. Mesmo que Tûm tivesse alertado os moradores para não fazerem comentários sobre a garota para nenhum forasteiro, suas mentes ainda eram vulne-ráveis a invasões e a verdade seria arrancada de qualquer maneira. Shiron tinha de pensar em algo o mais rápido possível. Do jeito que as coisas estavam progredindo, o olhar dos caçadores logo se voltaria pa-ra Rismã e todos os seus esforços seriam em vão. De repente alguém entrou na biblioteca e se sentou na cadeira defronte a ele. Era Zander, Guardião da Magia. O Cavaleiro se apressou em esconder os mapas com suas marcações da visão do outro, assim como alguns pergami-nhos que poderiam denunciar o seu plano. — Tem sido difícil falar com você – disse Zander sem cumprimentá-lo. – Ignorou as duas últimas reuniões dos Cavaleiros e não atendeu

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nenhum dos meus chamados – ele olhou interessado para um perga-minho que Shiron não teve tempo de esconder, um pergaminho que fa-lava sobre a magia do Cristal de quatro Faces. ‒ Posso saber o que es-tá fazendo? Shiron pegou o pergaminho que atiçou a curiosidade de Zander e o co-locou sobre o monte de livros e mapas, virando as escrituras para bai-xo. — Estou estudando um modo de recuperarmos a criança… — Mas você não é mais um caçador oficial – Zander exclamou. – Demitiu-se desta função há meses… — Posso não ser mais um dos caçadores, mas ainda sim sei o perigo que ela representa para toda Gardwen. E tive uma idéia que pode nos ajudar a localizá-la de uma vez por todas. Zander sorriu e declarou: — Bom, isso aniquila minhas suspeitas de que tenha sido você quem a tirou daqui de dentro dos Domínios. As acusações dos outros caçado-res de que você a esteja protegendo parecem não ter fundamento… — Obviamente que não – Shiron concordou – afinal de contas fui eu quem a encontrei assim que nasceu e a trouxe para cá. Por que eu iria tentar mantê-la viva? Zander não respondeu, apenas continuou sorrindo daquele modo insi-nuante que Shiron tanto odiava. Zander pegou um dos livros que Shi-ron estivera lendo e argumentou: — Estudando sobre ligações mágicas… interessante. Mas não é para isso que estou aqui. Eu vim atrás de você para comunicar que na úl-tima reunião dos Cavaleiros, mais uma das que você não participou, nomeei Kaiser como Cavaleiro-Líder… — Fez muito bem – Shiron disse, abanando uma das mãos diante do rosto como se uma mosca o incomodasse. Ele não encarava Zander

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enquanto conversavam. Pegou um pergaminho em branco e passou a fazer anotações nele, como se não houvesse mais ninguém na bibliote-ca interrompendo seu serviço. — Fazendo um relatório? – perguntou Zander forçando um sorriso, tentando fazer com que Shiron ao menos olhasse para ele, que pelo menos demonstrasse estar ouvindo-o. — Não faço relatórios. Sabe disso. — É – Zander concordou desanimado, dando um sorriso forçado. – Você não costuma me informar das suas missões. Enquanto prosseguia com suas anotações, Shiron sentiu a mente de Zander aproximando-se da sua, então a bloqueou. Não iria permitir que o Guardião tentasse arrancar qualquer informação a força. Zan-der percebeu o bloqueio e afastou sua mente. — Mas não foi para te repreender que eu estivesse lhe chamando nos últimos dias – Zander mudou o tom de voz; não usava mais o tom in-sinuante por trás de cada palavra que costumava direcionar a Shiron. Seu tom de voz agora era apropriado para um conversa formal. ‒ Nem foi por isso que resolvi te procurar pessoalmente. Vim até aqui para esclarecer por que escolhi Kaiser como Cavaleiro-Líder ao invés de vo-cê. Shiron chegou ao fim do pergaminho e pegou outro, ainda em branco. Durante a pausa em que ficou sem escrever, disse: — Não precisa se explicar. Já disse que fez uma ótima escolha. Então voltou a escrever no novo pergaminho sem dizer mais nada, deixando a palavra com Zander: — Mas eu vim aqui para me explicar e vou fazer isso. Você e Kaiser são os únicos que me restaram da última geração de Cavaleiros. Tam-bém há Alain, mas ele próprio me disse que está velho demais para continuar sendo Cavaleiro, então acredito que me entregará seu colar

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em breve. Dos nove Cavaleiros que o Guardião antes de mim esco-lheu para servi-lo, apenas vocês continuam com o título de Cavaleiro mesmo após a trágica morte dele. Então seria mais do que justo que um de vocês fosse a minha indicação para ser o Cavaleiro-Líder. E eu escolhi Kaiser. “Mas você Shiron, supera Kaiser de longe. As habilidades dele são muito inferiores às suas; as técnicas que ele usa não podem ser compa-radas às suas e tampouco a sabedoria dele chega aos seus pés. Por isso acredito que você esteja se perguntando por que eu escolhi Kaiser e não você…”. Shiron parou de escrever no pergaminho repentinamente e Zander per-cebeu que era a vez dele falar, por isso ficou em silêncio. — Eu não me importo com isso Zander, acredite – Shiron agora enca-rava seu Guardião; Zander viu a indiferença em seus olhos. ‒ Fez muito bem em ter dado o título a Kaiser, e estou contente por ele. Kaiser irá representá-lo melhor do que eu jamais faria, não tenha dú-vidas quanto a isso… — Eu sei, afinal de contas você não é um Cavaleiro de Zander, ainda continua sendo um fiel Cavaleiro de Sirius, mesmo que ele tenha mor-rido. Mas volto a dizer que não estou aqui por causa disso, ainda que-ro lhe explicar por que escolhi Kaiser… — Não! ‒ Shiron o interrompeu, irritando-se um pouco, mas voltan-do a preencher o pergaminho com sua caligrafia. ‒ Veio até aqui para me dissuadir a jurar lealdade a você, mais uma vez. Você ainda não admite que eu tenha sido o único Cavaleiro a não jurar lealdade a você quando recebeu este colar de Guardião. Mas repito o que eu disse na-quele dia: só jurei lealdade a um Guardião em minha vida e ele está morto agora. Não foi você quem me deu este colar de Cavaleiro, então não lhe devo nada a não ser respeito.

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Zander ficou sem reação e sentiu-se desconfortável na presença de Shiron. Ele já não tentava compreender o motivo de Shiron não confi-ar nele, pois já havia desistido. Desde que se tornou Guardião da Ma-gia tenta se aproximar do Cavaleiro, ter algum tipo de relação mais próxima com ele, mas todas as suas tentativas falharam. Shiron não confiava em Zander e o Guardião já se conformava com isso, embora ainda alimentasse alguma esperança de que algum dia Shiron fosse aceitá-lo como substituto do falecido Guardião Sirius. — Não vim atrás de nenhum juramento Shiron, acredite nisso ou não, já não me importo com o que pensa. Desisti de conseguir a sua lealda-de já faz alguns anos. Já disse que vim apenas explicar o motivo de minha escolha ‒ Shiron abriu a boca para dizer algo, mas Zander al-teou seu tom de voz para que não fosse interrompido: ‒ Vim lhe expli-car por que escolhi Kaiser ao invés de você, mas sei que a resposta é óbvia. Você mesmo acabou de admiti-la: lealdade, Shiron. Por isso não te escolhi, embora fosse muito mais capacitado para exercer a fun-ção. Você não é leal a mim e nós dois sabemos disso. Eu poderia ter tomado seu colar de Cavaleiro a qualquer momento, mas não fiz nem farei isso. Reconheço suas habilidades e sei o quanto está disposto a se sacrificar pelo bem de Gardwen. Por este motivo você sempre continu-ará sendo um dos meus Cavaleiros, não importa o que você diga ou fa-ça. Eu o respeito mais do que você respeita a mim. Mas eu queria pe-dir que você me relatasse suas missões, já que vive sempre com sua mente bloqueada para mim e não sei de nada do que faz. Não precisa me pedir autorização para fazer nada, mas quero estar a par de suas ações, pois sei que suas missões são de alguma importância. E também quero que você me responda uma coisa, Shiron: O Guardião Sirius já está morto há décadas, então a quem você é leal? Quem são os parcei-ros que te ajudam nas suas missões secretas?

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Shiron deixou o pergaminho de lado, olhando diretamente para Zander, mas tomou o devido cuidado de não permitir que Zander in-vadisse seus pensamentos e arrancasse alguma informação à força. Mas Zander não voltou a tentar uma invasão forçada. Shiron o enca-rou por alguns segundos antes de responder: — É melhor você não saber disso por enquanto. Talvez um dia descu-bra por conta própria, mas não será hoje. Mas não se preocupe; se quer tanto saber a quem eu sou leal, eu te respondo: sou leal à Magia! Zander concordou com um aceno de cabeça. — E eu tenho plena confiança nisso, Shiron. Confio em você, apesar de nossas desavenças, confio e respeito você como um legítimo protetor da Magia. Sei o quanto você sofreu com a morte do Guardião Sirius, sei o quanto eram próximos, mas isso já foi há muito tempo. Precisa aceitar a morte dele, por mais trágica que seja e entender que… — Alguém ter tido coragem para assassinar Sirius foi a melhor coisa que aconteceu em muito tempo! Assustado com a opinião fria de Shiron, uma nova idéia passou pela cabeça de Zander. Sempre acreditou que Shiron sofresse com a morte do último Guardião da Magia, um assassinato que entrou para a his-tória dos protetores e jamais foi desvendado, mas agora encarava Shi-ron sob um novo ponto de vista. Durante os segundos de silêncio que se seguiram, Zander amadureceu a idéia em sua cabeça, baixou o tom de voz e perguntou com o conhecido tom insinuante: — Foi você quem o matou? Shiron encarou Zander como jamais havia feito em toda sua vida e o Guardião recuou alguns centímetros, endireitando-se na cadeira. Com uma expressão no rosto que Zander não soube decifrar, Shiron per-guntou:

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— Sirius foi meu melhor amigo e a pessoa que mais admirei! Que ti-po de homem acha que eu sou? Abalado diante da expressão de Shiron, Zander pigarreou, balançou-se na cadeira e meditou por mais de um minuto, encarando aqueles olhos misteriosos do Cavaleiro infiel, então finalmente respondeu: — Como eu disse, confio plenamente em você – uma breve pausa, mais um pigarreio. ‒ Meu único receio é que, se eu não tomar seu colar de Cavaleiro agora, um dia você possa usar este poder para me trair. Shiron sorriu, de um modo provocante que fez as entranhas de Zander gelarem, então insinuou: — Acabou de dizer que confia em mim… — E confio – Zander ressaltou. – Mas as pessoas mudam… E assim Zander deixou Shiron sozinho na biblioteca, sem imaginar que um dia Shiron realmente usaria seu colar para se opor a ele, e que chegaria inclusive a aprisioná-lo dentro dos Domínios da Magia. Zander não sabia disso mas, se soubesse, talvez não chegasse realmen-te a destituir Shiron do título de Cavaleiro.

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