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REVISTA ACADÊMICA SABERES LINGUÍSTICOS N’AMAZÔNIA ISSN 2316-8471 CAPANEMA (PARÁ) – ANO 1 – NÚMERO 4 – 2013

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FACULDADE PAN AMERICANA Saberes linguísticos n’Amazônia – ISSN 2316-8471

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REVISTA ACADÊMICA

SABERES LINGUÍSTICOS N’AMAZÔNIA

ISSN 2316-8471

CAPANEMA (PARÁ) – ANO 1 – NÚMERO 4 – 2013

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FACULDADE PAN AMERICANA

REITOR DIRETORA GERAL

DIRETOR PEDAGÓGICO DIRETOR ACADÊMICO

SECRETÁRIA ACADÊMICA COORDENADOR DE FILOSOFIA

COORDENADOR DE LETRAS COORDENADOR DE PEDAGOGIA

COORDENADOR DE TEOLOGIA

Mons. Dr. Dom Dirceu Milani Profª Cleudimar Milani Prof. Marco Antônio Teixeira de Paula Profº Lionel Milani Madre Francesca Soares Milani Prof. MSc. Wladirson R. da S. Cardoso Prof. MSc. Marcos dos Reis Batista Prof. Marco Antônio Teixeira de Paula Prof. MSc. Sharles Cruz

SABERES LINGUÍSTICOS N’AMAZÔNIA ISSN 2316-8471

Capanema (Pará) – ANO 1 – NÚMERO 4 - 2013

DIRETOR-GERAL

MEMBROS

Prof. MSc. Marcos dos Reis Batista Profa. MSc. Graciane Felipe Serrão Profa. MSc. Renata de Cássia Dória da Silva Prof. MSc. Marcos dos Reis Batista Prof. MSc. Regis Guedes Prof. MSc. Marcelo Dias Prof. MSc. Wladirson R. da S. Cardoso Prof. Esp. Marco Antônio Teixeira de Paula Profa. Esp. Grazielle de Jesus Leal de Sousa Prof. Esp. Adson Manoel Bulhões da Silva

O Periódico SABERES LINGUÍSTICOS N’AMAZÔNIA é uma publicação acadêmica do Curso de Letras da

Faculdade Pan Americana com periodicidade semestral e suporte em CD-ROM. Os artigos e resenhas aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores. Suas

opiniões não refletem necessariamente as do corpo editorial desta publicação.

Figura da capa: http://www.joseeduardomartins.com/10000-univ-big.jpg

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APRESENTAÇÃO

É com muita satisfação que a Coordenação do Curso de Letras da Faculdade Pan

Americana coloca em público a quarta edição do Periódico SABERES LINGUÍSTICOS N’AMAZÔNIA. Trata-se de uma publicação desenvolvida em conjunto entre docentes e discentes da Instituição. Assim, busca-se por meio da reflexão e observação diante da problemática educacional a apresentação de pesquisas desenvolvidas em âmbito amazônico com o intuito de dar retorno à sociedade a qual esta Instituição de ensino superior está inserida e, também, com textos que colaborem com a formação dos estudantes e pesquisadores que atuam no âmbito amazônico.

O primeiro artigo – intitulado Investigando a construção de identidades de aprendizes de inglês no curso de Letras de autoria de Andressa Furlan Ferreira e de Mariana R. Mastrella-de-Andrade – investiga a maneira como as identidades de alunos de inglês no curso de Letras são construídas a partir de suas interações no contexto de aprendizagem e também a partir dos discursos que regem as “verdades” do que vem a ser ensinar e aprender línguas. O segundo texto (Letramento: a leitura no contexto das aulas de Língua Portuguesa) de Maria Suellen de Souza Sá e de Gerlândia de Castro Silva analisa como se dá a prática da leitura nas aulas de Língua no 6º ano do Ensino Fundamental, na Escola Estadual Maria Deusarina, localizada na cidade de Castanhal, no estado do Pará.

Já o terceiro artigo de Stelamary Domingos tem como título “aprendendo um sistema de escrita de segunda língua” e apresenta o resultado de pesquisa com estudantes iniciantes no sistema de escrita de francês como segunda língua (francês-SEL2) que tinham como sistema de escrita de primeira língua o português do Brasil.

Passando para os Estudos literários, Leomir Silva de Carvalho apresenta o trabalho O tempo mítico em ó serdespanto, sendo este o quarto trabalho que tem como objetivo analisar o tempo mítico, sob a perspectiva de Benedito Nunes (1929-2011), presente no fragmento intitulado “A história” da obra Ó Serdespanto (2006) de Vicente Franz Cecim. Como percurso da análise, o estudo procede por meio das implicações conceituais atribuídas ao tempo mítico em Nunes; em seguida a perspectiva recai sobre as particularidades formais da obra ceciniana e os matizes de significado que dela decorrem, bem como a análise de duas imagens, o homem e a mãe, e seu reflexo simbólico na narrativa mítica “A história”.

Renata Ortiz Brand~o nos oferece o trabalho “Palavras da instauração da república: o cidadão brasileiro nos discursos de posse de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto” em que realiza a análise semântico-enunciativa dos discursos de posse dos dois primeiros presidentes do período republicano no Brasil, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. O escopo é investigar como a palavra cidadão significa na enunciação dos dois

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presidentes; que predicações/determinações recebe nos textos que compõem o corpus. O estudo está ancorado na Semântica do Acontecimento, cuja filiação é materialista. Por fim, A literatura árabe e seu impacto no ocidente de Peter France é o texto traduzido por Marcos dos Reis Batista em que é tratado a recepção de textos de origem árabe em traduções para línguas europeias.

Com esta publicação desejamos a todos uma ótima leitura.

Prof. MSc. Marcos dos Reis Batista

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SUMÁRIO

INVESTIGANDO A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES DE APRENDIZES DE INGLÊS NO CURSO DE LETRAS Andressa Furlan Ferreira; Mariana R. Mastrella-de-Andrade – Universidade de Brasília

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LETRAMENTO: a leitura no contexto das aulas de Língua Portuguesa Maria Suellen de Souza Sá; Gerlândia de Castro Silva – Universidade Federal do Pará

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APRENDENDO UM SISTEMA DE ESCRITA DE SEGUNDA LÍNGUA Stelamary Domingos – Universidade Federal do Rio de Janeiro

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O TEMPO MÍTICO EM Ó SERDESPANTO Leomir Silva de Carvalho – Universidade Federal do Pará

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PALAVRAS DA INSTAURAÇÃO DA REPÚBLICA: O CIDADÃO BRASILEIRO NOS DISCURSOS DE POSSE DE DEODORO DA FONSECA E FLORIANO PEIXOTO Renata Ortiz Brandão – Universidade Estadual de Campinas

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A LITERATURA ÁRABE E SEU IMPACTO NO OCIDENTE Peter France Marcos dos Reis Batista – Universidade do Estado do Pará (Tradutor)

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INVESTIGANDO A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES DE APRENDIZES DE INGLÊS NO CURSO DE LETRAS

Andressa Furlan Ferreira Mariana R. Mastrella-de-Andrade

Universidade de Brasília

RESUMO: Aprender uma língua estrangeira implica em engajar-se na contínua produção das identidades (RAJAGOPALAN, 2001) dos sujeitos participantes do processo de ensino-aprendizagem, as quais são reconhecidamente fluidas e cambiáveis, jamais fixas. Trata-se de uma construção social e discursiva. Com base nessas premissas, este artigo tem por objetivo investigar a maneira como as identidades de alunos de inglês no curso de Letras Inglês são construídas a partir de suas interações no contexto de aprendizagem e também a partir dos discursos que regem as “verdades” do que vem a ser ensinar e aprender línguas. A metodologia utilizada foi de cunho qualitativo, a partir da qual se apresentam relatos de experiência pessoais narrados pelos próprios estudantes, graduandos em uma universidade pública brasileira. A coleta de dados foi feita por meio de questionários online com 4 voluntários. Os dados analisados sugerem que muitos alunos receiam ter suas identidades negativamente marcadas, possuem visões equivocadas sobre o papel do erro na aprendizagem de línguas e evitam participar de interações a fim de evitar exposições orais. Esses resultados dão espaço para discussões sobre os significados da aprendizagem de línguas no contexto brasileiro. Palavras-chave: identidade; Letras; aprendizes; inglês. ABSTRACT: Learning a foreign language implies in a continuous identity production (RAJAGOPALAN, 2001) of the people taking part in the teaching and learning process. Identities are acknowledged as flowing and interchangeable, never fixed. They are socially and discursively constructed. Based on such premises, this article aims to examine the way English Major students have their identities constructed concerning the learning process. The methodology applied to it was of qualitative order, and its result presents personal experiences shared by the students themselves, enrolled in a Brazilian public university. The data collection was possible through an online questionnaire, having 4 volunteers taken part in it. The analysis suggests that many students fear having their identities negatively constructed. They are likely to deal with misunderstood perspectives regarding the role of errors when learning a foreign language, which makes them avoid participating in oral interaction. The results allow for important issues to be discussed about the meanings of language learning in the Brazilian context. Key-words: identity; Letras; apprentices; English.

FORMAÇÃO DOCENTE

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INTRODUÇÃO As investigações com foco em identidades têm ganhado grande espaço no campo

da Linguística Aplicada nas últimas décadas, o que pode ser visto através do grande número de publicações sobre o tema na área e a quantidade crescente de pesquisas que têm as identidades, nos mais variados contextos, enfocadas (MOITA LOPES, 2002; 2006). Pensar em identidade atualmente implica em deslocar a ênfase sobre a descrição de sujeitos, enfocando-a sobre a ideia de tornar-se, uma concepção que envolve movimento e transformação a partir de uma noção de linguagem que opera e realiza o que se diz (BUTLER, 1997).

Aprender uma língua estrangeira implica em engajar-se na contínua produção das identidades (RAJAGOPALAN, 2001) dos sujeitos participantes do processo de ensino-aprendizagem, especialmente quando identidade é entendida como relação, não como característica fixa ou naturalmente dada (NORTON, 2000). Assim, enfocar a identidade dos sujeitos participantes no processo de ensino-aprendizagem de inglês como LE é importante pelo fato de tal enfoque possibilitar um maior acesso ao tipo de relações sociais que se estabelecem nos contextos formais de ensino, isto é, na sala de aula, bem como aos discursos que posicionam o sujeitos e as interações que constroem e (re)negociam identidades, se constituindo enquanto conflitantes. Tratar da identidade dos sujeitos da aprendizagem é também apropriado por permitir que lidemos com questões individuais e sociais de forma mais equilibrada, não dissociando o sujeito de seu contexto, não fazendo dicotomias entre fatores individuais e sociais, mas reconhecendo-os enquanto tais em sujeição à estrutura e, ao mesmo tempo, em agência e operação, num modelo de relação em constante formação e transformação. Além disso, é também importante ressaltar, como o faz Norton (2000), que as identidades não são algo simplesmente abstrato ou neutro, mas são todas políticas, engendradas em relações desiguais de poder. Isso nos impele a outra razão para justificar a importância das investigações sobre a construção de identidades: elas são responsáveis por promover ou negar acesso a interações na nova língua, rotulando e categorizando quem são os sujeitos que podem ter acesso às práticas interativas no processo de aprendizagem (NORTON, 2000; NORTON e TOOHEY, 2002).

Nessa perspectiva teórica, o projeto maior intitulado “Quem pode ensinar, quem pode aprender? A construção de identidades em contextos de ensino-aprendizagem de língua estrangeira” gera este plano de trabalho com o objetivo específico de investigar a maneira como as identidades de alunos de inglês no curso de Letras Inglês são construídas, bem como as relações e interações no contexto de aprendizagem que produzem tais identidades.

Tendo como foco esse objetivo, o trabalho buscará responder às seguintes perguntas de pesquisa:

1) Como os alunos de inglês no curso de Letras Inglês se identificam e são identificados no processo de aprendizagem em sala de aula?

2) Que tipos de experiências ou interações participam na construção dessas identidades e de que forma elas promovem ou embargam o acesso dos alunos na aquisição da competência linguística na língua estrangeira?

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O QUE É IDENTIDADE?

“O apelo da identidade fala desde o ser do ente” (HEIDEGGER, 1971, p. 52)

O conceito atual de identidade é caracterizado como múltiplo e inconstante. O

indivíduo contemporâneo sofre frequentes confrontos de identidades, as quais podem ou não ser adotadas. Porém, sua concepção nem sempre foi essa. Na verdade, ela varia de acordo com o período em que fora vivenciada na História. Sua definição, portanto, depende de um contexto histórico-pragmático a ser adotado. Considerando o percurso histórico, Stuart Hall, em sua obra “A identidade cultural na pós-modernidade”, distinguiu três concepções principais de identidade: o sujeito do Iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno.

O sujeito iluminista se apresentava individualmente unificado, usuário pleno da consciência e da razão, todas concernentes à sua pessoa. O sujeito sociológico, por outro lado, se construía na sua relação com outras pessoas, aquelas que lhe mediavam valores e símbolos do mundo ao seu redor. A formação da identidade concentrava-se na interação entre o eu e a sociedade, sendo que o eu era formado e modificado no diálogo contínuo com o mundo exterior. O sujeito pós-moderno, por sua vez, resultou desse processo histórico de formação identitária. Ele se originou do conflito advindo do choque do sujeito iluminista com o sujeito sociológico, o que também refletiu as mudanças estruturais e institucionais da época. Logo, na pós-modernidade, a identidade pode ser projetada diversamente, caracterizando-se como fracionada, instável, incompleta e até mesmo incoerente.

A concepção da individualidade pós-moderna, porém, se iniciou há mais tempo do que se costuma imaginar. No período medieval, o colapso das instituições que o sustentavam desvinculou essa amarra intrínseca que havia entre o sujeito e o coletivo, proporcionando, assim, uma nova perspectiva sobre o indivíduo propriamente dito. Ao passo que as sociedades se complexaram, o coletivismo voltou a se tornar presente, ainda que de maneira peculiar sobre as identidades. O sujeito da sociedade complexa enfrenta o dilema entre o eu e o outro, entre o ser individual que é e o indivíduo que ele próprio representa no coletivo, passando por um processo de deslocamento da identidade. O deslocamento da identidade se baseia na identificação do indivíduo em algum aspecto do mundo exterior, seja em alguma função que ele exerce em um determinado grupo, seja na identificação em outro indivíduo (HALL, 2003).

Uma série de rupturas nos discursos modernos provocou o deslocamento identitário, aspecto caracterizante do sujeito pós-moderno. Hall (2003) selecionou os cinco maiores expoentes que contribuíram para a descentralização do sujeito racional-cartesiano, os quais foram:

Althusser, com sua teoria anti-humanista (na qual o raciocínio não deriva de uma essência universal do Homem, mas está alojado em cada sujeito individual);

Freud, com sua descoberta do inconsciente (a identidade não é inata, mas trabalhada ao longo do tempo por meio de processos inconscientes);

Saussure, ao defender que não somos os autores da língua e respectivos significados que ela provém, apenas a utilizamos como um meio para nos expressar;

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Foucault, com a sua teoria do “poder disciplinar” (quanto mais coletiva e organizada a natureza institucional, maior a individualização do sujeito);

O impacto do Feminismo, uma vez que ele politizou o processo de identificação.

A identidade do sujeito pós-moderno, então, mostra-se instável. Diante de tantas

possibilidades, a liberdade da qual ele usufrui no processo de identificação, assim como as situações inconscientes a que é submetido, provocam uma inconstância no caráter de sua identidade social. É com base nessa perspectiva teórica de instabilidade, contradição e fragmentação identitária que este artigo se desenvolverá. Diante do exposto, cabe indagar: como o processo identitário procede ou ocorre nos dias atuais? Quando se adquire uma língua, se integra ao sistema social que a utiliza, pois se adquirem os meios comunicativos requeridos para uma interação com o outro. O indivíduo é inserido naquele campo à medida que se familiariza com a língua estudada. Um interesse pessoal passa a se atenuar ou florescer no indivíduo conforme ele compreende sua arquitetura. Onde quer que se depare com ela, há um interesse em entender o conteúdo trazido pela língua-alvo, visto que o indivíduo que a estuda detém a capacidade de adentrar aquele domínio ao depreender significado e coesão dos códigos. No entanto, durante esse processo de aquisição da língua, ocorrências traumáticas podem vir a ocorrer, o que prejudica a desenvoltura linguística do falante. Tais ocorrências estão primariamente conectadas a identidade social, tanto do estudante quanto do professor. A identidade social, construída por meio de exposição e participação em práticas de uso da língua submete o aluno a diversos papéis sociais, tais como especialista de linguística, especialista de literatura, falante fluente, entre outros, podendo afetar ou incentivar seu processo de aprendizagem e aperfeiçoamento. No âmbito das línguas estrangeiras, estudantes de cursos de Letras, principalmente, podem estar propícios a sofrer uma pressão maior de tais papéis, uma vez que o conhecimento aprofundado e padronizado da língua estudada é o determinante de seus cursos. Ainda que não corresponda à sua língua-mãe, do licenciando ou bacharelando é esperado que dominasse a língua-alvo em todas as quatro habilidades (escrita, leitura, compreensão auditiva e expressão oral), independentemente de sua formação e experiência com aquela língua anteriormente.

Entretanto, apesar de a expectativa ser compatível com o objetivo do curso, a maneira como é imposta não deveria ocorrer sem maiores e aprofundadas reflexões. Cada estudante carrega uma bagagem pessoal de relação com a língua, seja formalmente, seja emocionalmente (SAVIGNON, 1991). Qualquer interferência nesse campo individual é precípua, seja ela positiva ou negativa, uma vez que ela pode fortalecer o estímulo, incentivando ao sucesso, assim como pode dar início à aversão da relação do indivíduo com a língua-alvo.

LÍNGUA E IDENTIDADE Ao estudar uma língua, investe-se não somente em um meio de comunicação

alheio ao sujeito, mas também em duas outras aquisições: de um mundo ideológico e de uma sequência de raciocínio até então diferente para o estudante da língua. Logo, a

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questão da identidade se coloca em xeque nesse ambiente, pois se trata de uma área onde facilmente aspectos linguísticos se cruzam com aspectos identitários.

A língua por si mesma já é diversificada, se considerarmos suas variações regionais. Uma variação linguística, por sua vez, é dotada de algum valor específico dentro de uma sociedade, o que atribui ao seu falante valor semelhante. Por exemplo, há uma variação da língua que é adotada como padrão, geralmente sendo de caráter complexo e de difícil acesso popular. No ambiente profissional, se o falante não detém conhecimento das normas da língua padrão, geralmente, é discriminado e, em alguns casos, até mesmo recusado por não saber empregá-la. Isso ocorre não apenas no âmbito do mercado de trabalho, como também em outros ambientes sociais. A própria mídia tem o poder de selecionar uma variação como padrão, tornando-a prestigiada ou não, dependendo da maneira como é abordada. Maurizzio Gnerre (1985) afirma que o emprego de uma variedade linguística atribui valores ao seu falante, valores esses que nela anteriormente foram embutidos. Em outras palavras, uma variedade da língua reflete o poder e a autoridade que seus falantes têm nas relações econômicas e sociais.

Assim como Gnerre (1985), outros pensadores também trataram a respeito da relação entre sujeito, identidade e língua. Lacan (1977), por exemplo, reafirma o pensamento de Gnerre sob uma perspectiva psicanalista, pois defende que o sujeito se afirma na linguagem. Maurice Merleau-Ponty (2007), entretanto, afirma que toda linguagem é “indireta”, que, no di|logo, cada ego se demite de si para se atingir no outro.

As imagens sociais erigidas de acordo com o uso da língua em situações pragmáticas tratam de identidades coletivas. Todavia, a discriminação que ocorre nesses ambientes também é concernente à identidade do sujeito, uma vez que o indivíduo se vê sujeito a essas ocorrências, podendo, inclusive, influenciar em sua identidade pessoal. Segundo Foucault: “na Idade Cl|ssica, as línguas tinham uma gramática porque tinham poder de representar; agora representam a partir dessa gram|tica” (FOUCAULT, 2000, p. 257).

O mecanismo interior das línguas, além de determinar a semelhança e a individualidade entre elas, também exerce a função de portador de identidade e de diferença. O que define uma língua é seu sistema flexional, sua arquitetura interna que modifica “as próprias palavras segundo a postura gramatical que ocupam umas em relaç~o {s outras” (FOUCAULT, 2000, p. 256). No entanto, a maneira como ela edifica as representações é de ordem social.

É muito comum encontrarmos as conceituações e referências a respeito do que seja fazer uso da língua na vida cotidiana relacionadas, de um modo ou de outro, a uma visão de que ela (a língua) seja um veículo por meio do qual se descrevem realidades ou um meio neutro de comunicação. Em princípio, é para isso que aprendemos desde criança a fazer uso da linguagem: para estabelecer comunicação. Referências como essas fazem com que o significado de se fazer uso da linguagem seja meramente o desempenho da função que ela possuiria de estabelecer contato, de transmitir ideias que as pessoas possuem, de conectar as mentes dos indivíduos e uni-los, possibilitando assim que possam se expressar e, ao fazê-lo, expressar o que são. Essa seria uma visão representacionalista de linguagem, a qual a vê como código transparente e neutro que supostamente representaria as coisas.

Em uma visão representacionalista de linguagem, como o próprio nome sugere, ela seria responsável por representar o mundo. Do latim re- (prefixo) “de novo, de volta” e praesentare que se refere a “trazer algo { presença de; mostrar; exibir; pôr algo diante

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de”1, poderíamos dizer que representar teria o significado de tornar algo presente de novo, ou seja, algo que possui uma existência prévia e que, ao ser representado – no caso, quando falamos sobre ele, tornaria a se fazer presente. Nessa visão, fazer uso da língua seria prover então a representação do mundo, dos objetos, das idéias, todos anteriores àquele uso, já estabelecidas. É a ideia de uma linguagem transparente e explícita, um código cuja função é a transmissão e apreensão de mensagens. Nessa visão, tem-se o estabelecimento de correspondência entre a expressão e o seu referente, de forma que assim um represente a realidade. Também mostra a crença na oposição entre mundo e linguagem, dicotomia proveniente de uma visão representacionalista da referência, portanto, de linguagem:

as categorias mundo e linguagem, neste caso, remetem à noção de referência como uma construção ilusória entre as expressões e os objetos, considerando estáveis os elementos da ligação entre os dois (...). A dicotomia mundo/linguagem se sustenta sobre a possibilidade de linguagem representar mundo, aqui ‘representar’ no sentido de estabelecer correspondência (PINTO, 2002, p. 135).

A compreensão de linguagem com a qual este trabalho compartilha busca romper

com uma visão representacionalista. Contudo, se não tomamos a linguagem como instrumento de representação do mundo e se descartamos uma oposição entre mundo e linguagem, como então estabelecemos a relação entre os dois, já que podemos nos ver sempre, de alguma forma, imersos em ambos? Em que está implicada a não adoção de uma visão representacionalista de linguagem?

A língua não é um meio neutro de comunicação nem um veículo por meio do qual se descrevem realidades. Essa afirmação é sustentada sobre uma compreensão de língua a partir da teoria dos atos de fala de Austin (1976) e de autores que têm se baseado em tal teoria para analisar e compreender diversos aspectos da vida social. Assim sendo, se a língua não é apenas expressão de ideias ou representações e se ela é, em si mesma, a própria construção dessas ideias e representações (FOUCAULT, 2000), e se ela é também performativa, ou seja, se ela realiza aquilo que se diz (AUSTIN, 1976), então uma das coisas que sabemos que ela realiza é exatamente que somos, ou seja, nossas identidades (MASTRELLA, 2007). Tendo então essa compreensão, trataremos a seguir sobre a relação entre língua, identidade e ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras.

A RELAÇÃO ENSINO-APRENDIZAGEM ENTRE LÍNGUAS E IDENTIDADE Partindo de uma visão performativa de linguagem, podem-se encontrar direções

para interrogações como: de que forma podemos falar em posições de sujeito sem fixar a identidade, sem defini-la ou encerrá-la em categorias unitárias? Além disso, como os alunos assumem posições de sujeito nos discursos da aprendizagem de língua estrangeira? Acreditamos que é também com a ajuda da teoria de Butler (1999) sobre o conceito de performatividade que podemos pensar essas questões. Segundo ela, para pensarmos em identidade é preciso deslocar a ênfase na descrição – a identidade de

1 Conforme The Online Etymology Dictionary, disponível em: <http://www.etymonline.com/>, acesso em 05/07/05.

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alguém é essa, tal pessoa é assim – para a idéia de “tornar-se”, para uma concepç~o da identidade como movimento e transformação a partir de uma noção de linguagem que opera e realiza o que se diz. Uma concepção de linguagem como produtiva e performativa, um fazer, porém,

não um fazer por um sujeito que pode-se dizer que preexiste ao feito [mas] a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos dentro de uma estrutura altamente regulatória que se solidifica com o tempo para produzir a aparência de substância, de uma forma natural de ser. (BUTLER, 1990, p. 33)

Essa forma “natural de ser”, da qual Butler (1990) fala no trecho citado, que aparece naturalizada, como se sempre fora assim, é o que conhecemos como o “normal”, normalizado, não passível de questionamentos. Isso acontece em todas as realidades que nos cercam, inclusive na pedagogia que, conforme aponta Giroux (1999, p. 13), constrói conhecimento, relações sociais e subjetividades2. Enquanto tal, portanto, a sala de aula de LE deveria ser explorada a partir do que lhe é “normal, natural”, baseada em uma perspectiva performativa de linguagem, como aponta Butler (1990). A linguagem performa realidades e faz identidades em cada ato de fala. Para ser produtiva, carrega em si uma historicidade condensada, que não tem origem no sujeito que fala, mas faz parte de uma rede contextual histórica e discursiva, a qual acumula e, ao mesmo tempo, dissimula sua força.

Diante dessas considerações sobre como as identidades são construídas e como podem ser acessadas, consideramos importante abordar a seguinte questão: por que falar em identidade na aprendizagem de inglês como língua estrangeira? De acordo com Norton e Toohey (2002, p. 115), tal aprendizagem engaja as identidades dos aprendizes pelo fato de que língua não é apenas um sistema lingüístico de signos e símbolos, mas também uma prática social complexa, de atribuição de valor e significado a quem fala. As atribuições de valor e de significado têm a ver com a forma como os falantes e, no caso, os aprendizes, se identificam e são identificados enquanto sujeitos e participantes em um determinado contexto de interação. A língua estrangeira, enquanto tal, também tem um papel ativo na contínua produção das identidades dos aprendizes, especialmente quando identidade é entendida como relação, não como característica fixa ou naturalmente dada3. Assim, é o papel íntimo e crucial que a língua exerce na construção das identidades que faz com que seja também íntima a relação entre identidade e LE, bem como, a meu ver, de grande importância as investigações sobre a construções identitárias no processo de ensino-aprendizagem de língua estrangeira.

Como já foi dito anteriormente, em outras seções neste capítulo, tratar de identidade nos remete, mais comumente, à idéia de identidade nacional, que marca as fronteiras de uma determinada cultura – certas características definidas, atribuídas a um

2 Pedagogia, para esse autor, não se resume a apenas um conjunto de estratégias e habilidades para ensinar conteúdos, mas, num sentido mais amplo e crítico, como “uma forma de produç~o política e cultural profundamente envolvida na construção de conhecimento, subjetividades e relações sociais” (GIROUX, 1999, p. 13). 3 Essa idéia de identidade como relação é também defendida por Skutnabb-Kangas (1991 apud Rajagopalan, 2001, p. 87), que busca enfatizar que, por não ser característica, mas sim relação, as condições de negociação de identidade devem ser também consideradas como objetos vitais de estudo.

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grupo de indivíduos. A idéia da identidade cultural, entretanto, tem sido criticada por alguns autores que adotam uma perspectiva de estudos da pós-modernidade pelo fato de ser, segundo eles, uma tentativa de fixação da identidade. Norton (1997b) afirma preferir o termo identidade social a identidade cultural, explicando que esse último tende a entender a identidade como homogênea e fixa, com categorias preconcebidas. Para a autora, a identidade social é a relação entre o indivíduo e o mundo social mais amplo, mediada por instituições, tais como família, escola, local de trabalho, serviços sociais e tribunais de justiça (NORTON, 1997b, p. 420). Em outro momento, Norton (2000, p.5) define a identidade como a forma como uma pessoa entende seu relacionamento com o mundo, como esse relacionamento é construído ao longo do tempo e do espaço e como a pessoa entende as possibilidades para o futuro. Com isso, a autora procura enfatizar que os estudos de aquisição de segunda língua (SLA – Second Language Acquisition) precisam desenvolver uma concepção de identidade que seja compreendida com referência a estruturas sociais mais amplas e frequentemente desiguais e injustas, que são reproduzidas (e, enfatizaríamos, também produzidas) na interação social do cotidiano. Nessa compreensão de identidade, a língua possui um papel fundamental: ela é constitutiva e constituída pela identidade do aprendiz. Isso também se assemelha ao que propõe Heller (1987), pois a autora dá lugar de destaque à língua na formação da identidade. Para ela, é através da língua que a pessoa negocia sua compreensão de si mesma (self) em diferentes lugares e momentos no tempo. É também através da língua que a pessoa ganha acesso – ou esse lhe é negado – a redes sociais de poder que dá aos aprendizes oportunidades de falar. Com isso, podemos perceber que a língua não é simplesmente um meio neutro de comunicação, mas é nela e por meio dela que os significados são construídos e as relações sociais estabelecidas. Nesse mesmo sentido, essa compreensão do lugar da língua na construção da identidade e na propiciação de acessos às relações sociais pode também ser transportada para o contexto das relações que se estabelecem na sala de aula, considerando a visão que Canagarajah (1999) tem desse ambiente enquanto um lugar de autonomia relativa – ao mesmo tempo que se faz sob a influência do mundo social externo, possui maneiras próprias de se constituir, de estabelecer relações entre os sujeitos e de resistir a práticas já estruturadas.

Indo além, tendo em vista a produção da identidade não como categorias sociais ou culturais fixas, mas como uma questão de performatividade, como uma constante e contínua negociação de como nos relacionamos com o mundo e nos fazemos por meio da linguagem, temos que a aprendizagem de língua estrangeira, bem como toda a estrutura formal institucionalizada de ensino de línguas, está intimamente ligada a questões de formaç~o e transformaç~o de identidades. Como ressalta Pennycook (2001), “se levarmos a sério a ideia de que o engajamento no discurso é parte da contínua construção da identidade, então o contexto da educação de segunda língua levanta questões significativas sobre a construção e a negociação de identidade (PENNYCOOK, 2001, p. 149).

Com isso, consideramos relevante enfocar a identidade dos aprendizes no processo de ensino-aprendizagem de inglês como LE pelo fato de tal enfoque possibilitar um maior acesso ao tipo de relações sociais que se estabelecem nos contextos formais de ensino, isto é, na sala de aula, bem como aos discursos que posicionam o sujeitos e as interações que constroem e (re)negociam identidades, se constituindo enquanto conflitantes. Além disso, tratar da identidade do sujeito da aprendizagem é também

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apropriado por permitir que lidemos com questões individuais e sociais de forma mais equilibrada, não dissociando o sujeito de seu contexto, não fazendo dicotomias, mas reconhecendo-os enquanto tais em sujeição à estrutura e, ao mesmo tempo, em agência e operação, num modelo de relação em constante formação e transformação. METODOLOGIA DA PESQUISA

Este foi um estudo de cunho qualitativo, segundo o qual os fatores sociais não podem ser vistos como fixos, mas assumindo sempre uma diversidade de significados múltiplos e socialmente construídos (BURNS, 1999). Nesse sentido, a opção metodológica foi com base em histórias de vida, através de relatos de experiência, já que eles possibilitam o reaparecimento de “sujeitos face {s estruturas e aos sistemas, a qualidade face { quantidade, a vivência face ao instituído” (NÓVOA, 1995, p. 18). Assim, a coleta de dados foi feita por meio de questionários online com estudantes de inglês do curso de Letras de uma universidade pública brasileira. Quatro participantes, três homens e uma mulher, responderam ao questionário fornecendo relatos sobre suas experiências de aprendizagem e de uso da língua inglesa como língua estrangeira. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

As entrevistas, seguindo o caráter qualitativo deste estudo, foi realizada por escrito com quatro estudantes – uma mulher e três homens – de Letras Inglês de uma universidade federal brasileira da região do Centro-Oeste. Todos os entrevistados são jovens adultos e provêm de famílias de classe média, o que concluímos a partir das respostas dadas por eles aos questionários.

Dividimos esta seção de análise em alguns tópicos, os quais buscam responder às perguntas de pesquisa (conforme apontadas anteriormente na introdução deste artigo) que guiaram nosso estudo, todas ligadas à questão de como o processo de contato com a língua inglesa contribui para a construção da identidade do aprendiz de inglês no curso de Letras. IDENTIDADE E A ESCOLHA DO NOME FICTÍCIO

A fim de analisar a relação da escolha do nome fictício com a identidade do entrevistado, tomaremos como base a teoria de aquisição denominada aculturação por Schumman (1978). Vera Menezes Paiva (2009), substituindo o termo por afiliação, afirma que “afiliaç~o corresponderia ao grau de relacionamento com a cultura da segunda língua ou com falantes dessa língua e a construção de identidades. Afiliações com a segunda língua funcionam como um potente combustível que move o sistema de ASL (Aquisiç~o de Segunda Língua)”.

Tendo isso em vista, houve uma preferência da maioria dos candidatos por nomes estrangeiros, como “Werter”, “Cat Stevens” e “Rachel”. A exceç~o foi o entrevistado que optou pelo nome “Abra~o Silva”. A escolha deste nome refletiu como o próprio estudante vê sua identidade social, afirmando sua identidade brasileira e excluindo qualquer vínculo de origem inglesa ou internacional, como é afirmado a seguir: “‘Abra~o’ por causa da personagem bíblica de mesmo nome. Sou crist~o. ‘Silva’

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por ser um nome comum nas famílias brasileiras. A escolha do nome não tem nenhuma relaç~o com o inglês”4. Werter, outro entrevistado, possui membros familiares que detêm conhecimento de uma literatura estrangeira, uma realidade um tanto quanto distante de muitas famílias brasileiras. Diferindo da perspectiva identitária de Abraão, a explicação provida por ele foi a seguinte: “Werter. ‘The sufferings of young Werter’ (Goethe) foi o primeiro livro que li em inglês, há 6 anos. Alguns familiares que conhecem a estória a relacionam a mim; quanto ao protagonista, essas mesmas pessoas me dizem que somos muito parecidos”. Esse aspecto familiar do qual ele se refere j| desponta um diferencial em sua aprendizagem, o que refletiu na construção de sua identidade, a qual, diferente da do participante Abraão Silva, não é exclusivamente brasileira nem procura enfatizar isso. Ao contrário, mostra forte influência estrangeira e o desejo de marcar tal relação. Cat Stevens, assim como Werter, justificou sua escolha apresentando uma clara influência que um produto cultural da língua inglesa lhe incutiu: “Um cantor inglês que admiro muito. Ele canta de maneira simples as coisas simples da vida. Aprendi bastante vocabulário com as músicas dele e procurando informações, em inglês, acerca de sua biografia”. Rachel também demonstrou uma afiliaç~o explícita para com a língua inglesa. Inclusive, com a produção cultural, como pode se conferir em seu depoimento:

Eu escolhi o nome Rachel, foi o primeiro nome que me veio à cabeça, acho que porque eu estava assistindo Friends. Gosto muito de tal seriado e gosto muito da personagem com esse nome. Assistir a esse seriado me ajuda no aprendizado do inglês, pois como já estou acostumada com as vozes dos atores e com o ritmo de fala deles, consigo compreender mais facilmente o que falam. Acho que a única conexão com minha identidade social é que muitos amigos meus também assistem ao seriado que conta histórias do cotidiano de 6 amigos.

Werter, Cat Stevens e Rachel demonstraram já de início uma afiliação pela língua inglesa, o que demonstra uma relação mais próxima com ela e respectivos produtos culturais (por “produto cultural” entende-se o conceito proposto por Pierre Bourdieu), como se conferirá novamente em um novo tópico nesta seção de análise e discussão dos dados. ALUNOS DA EDUCAÇÃO BÁSICA: identidades não merecedoras de investimento de ensino de inglês?

Quanto ao ensino escolar de língua inglesa, todos apresentaram insatisfação explícita. Segundo Abra~o Silva, “nas escolas regulares vejo-o como deficiente, pobre. Ao considerar a língua inglesa em si mesma, seu ensino é voltado apenas para atender as necessidades imediatas do aluno, como provas bimestrais e vestibulares”. Cat Stevens enfatiza: “A minha vivência foi péssima. O professor fingia que ensinava; o aluno fingia que aprendia. Salas lotadas, alunos com níveis diferentes. N~o havia muito o que fazer...”.

4 As falas dos participantes serão apresentadas entre aspas ao longo desta seção de análise dos dados.

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De modo geral, os participantes relataram que o conteúdo transmitido no ambiente escolar é muito superficial e improdutivo. O material didático não atinge as expectativas de um ensino qualificado para substanciar a aprendizagem da língua estrangeira. Além disso, o professor não costuma preparar um material diversificado e satisfatório, visto que ele não desfruta de tal liberdade nesse meio pedagógico. A gestão educacional é falha neste ponto, pois limita e pressiona o conteúdo a ser passado aos alunos, o que prejudica o desenvolvimento do professor e o interesse dos estudantes. Isso pode ser compreendido na experiência relatada por Werter no trecho a seguir, a qual não foi diferente da de Abraão Silva nem de Cat Stevens:

Minha experiência no fundamental, que foi em escola particular, eu diria que foi praticamente nula, pois além de lições de vocabulário limitadas também havia uma forte utilização de gramáticas adaptadas no modelo português/inglês; não havia profundidade no estudo da língua, somente lições de preenchimento de lacunas com palavras que eram aprendidas até em programas matinais infantis. Já no ensino médio, na escola particular era uma forte tendência à leitura e interpretação de textos. Na escola pública era o mesmo modelo do ensino fundamental. Minha experiência com essas aulas foi, diria, bem ‘morna’.

“Pra quê estudar inglês se nem português falo direito?” é um questionamento recorrente em salas de aula de ensino público (MOITA LOPES, 1996), que mostra uma compreensão de que o aluno não tenha em si a capacidade ou o preparo para aprender a língua estrangeira. Tal afirmação contribui para a construção da identidade dos alunos como não merecedores de investimentos no que se refere ao ensino da língua inglesa ou qualquer outra língua estrangeira, uma vez que limita suas potencialidades. Segundo Moita Lopes (1996), esse tipo de crença ou afirmativa mostra preconceitos e desconhecimentos sobre a relação entre língua materna e língua estrangeira, além de uma visão limitada sobre o processo de ensino-aprendizagem de línguas. Como efeito, tem-se uma descrença na possibilidade de que se possa ensinar e aprender inglês na educação básica na escola pública e, consequentemente, tem-se uma visão de que os alunos dessa instituição não sejam capazes de corresponder aos investimentos de ensino da LE. Isso está de acordo com o que relata Cat Stevens (o participante deste estudo no trecho anteriormente citado).

O desinteresse em aprender uma língua tão diferente do meio social em que se vive é fruto de frustrações com a disciplina em questão. Ainda assim, apesar de diferir do meio social, o inglês encontra-se nitidamente presente no cotidiano brasileiro, seja no uso da internet, no meio da informática, em músicas, filmes ou até mesmo no uso de estrangeirismo, além do próprio meio profissional. Justamente por ter se infiltrado no dia-a-dia do cidadão brasileiro, o estudante se acostumou com a presença da língua estrangeira, podendo se acomodar ou aprofundar em seu domínio. Por isso, necessita-se de projetos e didáticas que superem esses obstáculos e instiguem os estudantes.

A falta de perspectiva profissional referente a idiomas estrangeiros também é evidente entre os alunos que não são submetidos a um ensino fortalecido de inglês, o qual, infelizmente, é encontrado apenas em cursos específicos particulares. Justamente por se encontrarem à parte do ensino público, o acesso ao ensino qualificado de língua

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inglesa torna-se elitizado, restrito somente aos que podem investir uma quantia que famílias de baixa renda não usufruem (GIMENEZ, 1999). Assim, é preciso que haja mais cursos preparatórios de livre acesso para os professores, cursos que explorem as quatro habilidades linguísticas de forma construtiva, e não superficialmente. É preciso também abranger os assuntos abordados criativamente, e não restringi-los a um conteúdo clichê, de fácil compreensão e sem muita exigência crítica dos alunos. De acordo com o relato do aluno participante Cat Stevens, esse cenário também ocorre no ensino superior de língua estrangeira: “na verdade, h| muitos docentes e discentes que est~o acomodados com a situação do jeito que está; afinal ela é muito cômoda: finge-se que ensina; finge-se que aprende”.

O aluno não deve ser subestimado, pelo contrário, ele deveria ser instigado a superar os desafios com os quais ele se depara. O desafio do novo e do desconhecido serve de incentivo para aqueles alunos que já estão aptos a aprofundar na matéria, incitando-os a não abandonar o que supostamente já seria do domínio deles.

Quanto ao aluno iniciante, porém, a aplicação dessa proposta deveria ser moderada, a fim de que não assuste nem desencoraje o estudante, que sempre deve ter seu esforço reconhecido. Rachel enfatiza com a sua experiência:

O inglês sempre foi obrigatório nas escolas em que estudei, desde o 1° ano. Nas escolas o ensino da língua inglesa sempre foi superficial, principalmente para mim que estudava inglês em uma escola de idiomas e já tinha um domínio maior que grande parte das pessoas da minha sala. Exatamente por isso que o professor nunca podia avançar muito na matéria, sempre havia pessoas com mais dificuldade ou que quase não tinham contato com o inglês.

O PAPEL DA FAMÍLIA COMO ESTÍMULO DE CONTATO COM A LÍNGUA ESTRANGEIRA PARA UM ALUNO BEM-SUCEDIDO

Segundo os alunos participantes deste estudo, suas famílias sempre incentivaram o estudo do inglês, proporcionando a oportunidade de o aluno estudar em um curso particular específico. O participante Abra~o Silva alegou que “n~o chegou a ser uma cobrança, mas sim um conselho. Disseram que estudar inglês me ajudaria na escola e seria bom se eu evoluísse meus conhecimentos na |rea”. Sobre isso Cat Stevens relata que

Na época, não havia inglês obrigatório na escola, e as referências do curso [especializado de idiomas]5 eram as melhores. Foi uma experiência muito boa. Aprendi pronúncia, escrita e conversação. Os professores ensinavam de uma maneira bastante lúdica, conjugando teoria linguística com a prática da língua. Nesse percurso fiz grandes amigos e aprendi bastante acerca da cultura estadunidense.

5 Os símbolos [ ] presentes nas falas dos participantes indicam inclusão, por parte das autoras, de frases explicativas sobre o assunto em questão.

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Matricular o filho em um curso de inglês é uma prática comum entre famílias de classe média alta, pois é de conhecimento geral que o ensino público não atende as exigências do mercado de trabalho (GIMENEZ, 1999). A participante Rachel discorre quanto { imposiç~o da família: “Hoje n~o h| mais, pelo fato de o inglês ter se tornado uma opção minha. Quanto ao meu irmão menor, ele já aprende inglês na escola, desde os 5 anos. O inglês se tornou comum na nossa vida”, e continua: “j| fiz inglês em 2 escolas de idiomas diferentes, pelo fato de o inglês da escola ser superficial e não exigir muito do aluno. Hoje eu agradeço demais aos meus pais por terem me colocado em escolas de idiomas desde cedo, creio que isso me ajudou bastante e facilitou meu aprendizado”.

Há sites virtuais que tratam do assunto “quando matricular seu filho em um curso de inglês”. Os próprios domínios têm enfoque para o navegante que pertence à classe média alta ou à classe alta, porque não há preocupação com a renda ou com as formas de pagamento, apenas com as condições ideais de matricular o filho, como, por exemplo, matricular na “idade certa” para um maior aproveitamento e adaptação à língua estrangeira. A resposta ideal para essa pergunta, entretanto, não deveria ser pertinente, pois a escola pública da educação básica deveria ser capaz de prover aos alunos as possibilidades de aprender língua estrangeira com sucesso. Na realidade, porém, as famílias se veem obrigadas a matricular seus filhos em cursos particulares caso tenham o capital necessário para investir e almejem melhores condições para os estudantes. Praticamente, não há espaço para o estudante de baixa renda estudar o idioma estrangeiro, uma vez que as bolsas são extremamente escassas e não se apresentam em número suficiente para atender a todos os pedidos. Isso implica em uma importante questão: tem acesso ao aprendizado de inglês quem pode por ele pagar, isto é, o fator classe social, as condições socioeconômicas dos aprendizes são determinantes para o acesso à língua estrangeira, contribuindo para identidades em prestígio e, em contrapartida, identidades menos privilegiadas frente ao desafio do domínio de uma LE. INFLUÊNCIAS ARTÍSTICO-CULTURAIS NA APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ESTRANGEIRA

Todos os participantes afirmaram que fatores extralinguísticos, tais como músicas, filmes e jogos, possibilitam contato e provocaram interesse pela língua. Não é de se estranhar que isso tenha ocorrido e que ainda ocorra com os entrevistados. A mídia é o instrumento de transmissão de língua e de cultura mais utilizado, atuando principalmente em famílias que têm condições de pagar por esses recursos. É também nesse meio que a identidade entra em conflito, uma vez que as produções de entretenimento se dispõem em massa para seu usuário, chocando ou aderindo à sua identidade cultural.

Muitos estudantes de língua inglesa são cativados a aprender a língua devido a fatores artístico-culturais. Esses fatores podem se apresentar por meio de séries televisivas, literatura, e, principalmente, da música. A música é o contato mais imediato entre a língua estrangeira e o aluno, pois se apresenta de fácil acesso, seja por rádio, meio virtual ou televisivo, dispondo a sonoridade da língua e já atraindo o ouvinte que se agradar com seu contato, como foi o caso de Cat Stevens ao justificar a escolha de seu nome no segundo tópico da seção de análise deste artigo.

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O participante Werter também explicita sua experiência e demonstra o quão estimulante e importante foi o contato com um produto cultural da língua inglesa para sua aprendizagem:

Sempre gostei de uma banda irlandesa chamada The Cranberries, cuja canção Linger é da qual tenho minha primeira lembrança de ter “vivenciado” a língua. Diria que foi aos 8 anos, possivelmente. Como eu queria entender o que a música dizia, pedi à minha irmã – que naquela época estava em seus 12 anos – para procurá-la na internet – ainda no sistema de conexão discada, então era uma tarefa complicada, pois o desempenho era ruim e a conexão era falha. Ela achou. Com um dicionário ela mesma traduziu para mim. Gostei tanto que foi também a primeira música que guardei para cantar de cor. Me lembro até hoje. Acredito que essa música tenha sido o estopim, pois gosto muito de estudar línguas. No mais, estudei no ensino regular – da 5ª à 8ª série, além do ensino médio, que cursei parte em escola privada e parte em pública. Não fiz curso específico de línguas, mas estudei por mim mesmo com os livros de minha irmã e os que minha mãe comprava ou ganhava. Quando fiquei mais velho comecei a assistir filmes e séries, ler romances em inglês também virou uma espécie de hobby, isso porque muitas literaturas de outras nacionalidades – como a japonesa, chinesa – não são encontradas em português.

Os quatro alunos de Letras entrevistados foram influenciados por esses instrumentos positivamente considerando a relação do indivíduo com a língua, tendo filmes, séries, músicas e jogos como fatores que mais influenciaram os estudantes a ponto de provocar um gosto pela língua, resultado da afiliação. Sendo assim, uma forma de incentivar os estudantes desinteressados seria o investimento em materiais mais interativos com outras áreas, especialmente artísticas. O conteúdo estudado que interliga a estrutura gramatical da língua inglesa com aspectos artísticos, seja em versões cinematográficas, musicais ou literárias, certamente será não somente bem recebido pelo aluno, como também possivelmente utilizado significativamente por ele. MOTIVAÇÕES PARA O INVESTIMENTO NA IDENTIDADE DE ESTUDANTE E PROFISSIONAL DE LETRAS INGLÊS

Dentre os participantes, é interessante notar que todos disseram ser motivados para a aprendizagem de inglês e pela busca pelo curso de Letras Inglês em função do apreço que têm pela língua, seja por sua literatura ou pela própria gramática. Para o participante Cat Stevens, sua motivaç~o é “compreender a gram|tica, os meandros textuais e as expressões de uma língua universal. Meu maior desejo é conseguir ler grandes obras liter|rias em inglês”.

Já Abraão Silva afirma que tem

objetivos pessoais e relacionados à carreira profissional. Também o gostar da língua. Gosto muito de estudá-la. Interesso-me por esta

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área, tanto que escolhi minha carreira relacionada ao inglês. Gosto de estudar o modo como a língua funciona. Gosto da gramática. Gosto de poder usar um meio de comunicação além da língua portuguesa.

De acordo com Norton (2000), a motivação dos aprendizes para aprender novas línguas vai muito além do que em geral chamamos de vontade ou desejo interior. Para a autora, trata-se de investimento em identidade e em aceitação social. Em Mastrella (2007, p. 6), encontramos que “a relaç~o com a língua estrangeira é construída com base no desejo por identidade, por reconhecimento social, desejo de autotransformaç~o”, o que pode ser entendido também a partir dos relatos dos participantes deste estudo sobre o que lhes motiva a aprender inglês e a investir no curso de Letras Inglês, como Werter, no trecho a seguir:

Sempre achei divertido. De alguma forma estudar inglês ou outras línguas estrangeira, ou mesmo estudar português me faz bem. Eu não sei explicar de forma satisfatória, mas estudar línguas desde criança faz parte do meu cotidiano. Eu geralmente não sou muito curioso por certas questões, mas acho que sou bastante curioso quanto a línguas e culturas, além de história, literatura e filosofia de produzida aqui mesmo no Brasil e em outras nações. Acho que todos temos algum tipo de forte ligação com a língua ou cultura, seja o fanatismo por algum romancista ou poeta, ou a fixação por algum grupo musical ou cineastas renomados, enfim, vejo que, de alguma forma, todos somos atraídos por essa língua. Quanto ao desenvolvimento na língua, vejo que há algumas diferenças. Por exemplo, eu me desenvolvi lendo, mas outros fizeram o mesmo ao assistir séries e filmes. Outros fizeram cursos no exterior ou grupos de conversação. Neste ponto as experiências são bem diversas. Não posso dizer que seja a minha língua “favorita”. Vejo o inglês como uma ferramenta muito útil, além de ser o meio pelo qual pude ter contato com conhecimentos que mudaram a minha vida. Construí ligações muito fortes com algumas obras de escritores(as) de língua inglesa, como Virgina Woolf, William Faulkner, Margaret Atwood, Earnest Hemingway, Philip Roth, mesmo Shakespeare, Thomas Kid e por aí vai. Mas também acho que é por causa de um certo dinamismo que vejo em se ter uma graduação em língua inglesa, pois são vários os ramos nos quais um profissional desta área pode atuar.

A VISÃO SOBRE ERROS: QUESTÕES DE IDENTIDADE E A AUTOCONFIANÇA PARA FAZER USO DA LÍNGUA ESTRANGEIRA

Em Mastrella (2002), a visão dos alunos sobre os erros é discutida como um dos aspectos que podem produzir e manter ansiedade em sala de aula de línguas. Segundo a autora, muitas vezes os alunos consideram que errar é algo inaceitável, especialmente porque imputa, sobre o sujeito que comete o erro, a ideia de não saber ou de não ser

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capaz, uma avaliação que constrói uma identidade negativa do aprendiz mediante seu grupo. No relato a seguir do aluno Abraão Silva, quando ele fala sobre sentir-se reprimido para usar a língua inglesa, podemos identificar essa questão:

Tímido para me expressar, mas não reprimido (no sentido real da palavra). Minha confiança está relacionada ao ambiente em que eu estou: se eu me sentir confortável e integrado ao meio, não terei tantos problemas para reproduzir a língua. Sem dúvidas, tenho mais confiança na minha escrita, pois tenho a possibilidade de corrigir o erro sem ele ser identificado pelos outros.

Como se pode notar no trecho citado por Abraão, a comparação entre a confiança para falar ou para escrever se deve ao fato de que, ao escrever, seus erros não são identificados por outros, mas por ele mesmo, o que não acontece no momento da fala. O relato de Rachel, a seguir, também dá indícios sobre essa questão:

Me sinto confiante, mas não totalmente. Sei que ainda preciso ampliar mais meu vocabulário, principalmente em relação às expressões próprias da língua inglesa, seja dos Estados Unidos ou da Inglaterra, principalmente. Me sinto mais confiante na escrita, pois a fala já entra como uma habilidade que requer mais prática e desenvoltura. Nunca me senti reprimida.

Durante a fala, a identidade do falante é construída conforme os parâmetros de verdade, os discursos, que o grupo tem sobre como deveria ser o ideal de produção oral no ambiente da sala de aula. De acordo com Mastrella e Dalacorte (2008), esse pode ser um aspecto silenciador dos alunos, que pode impedi-los de participar e fazer uso da língua estrangeira; ao eximirem-se da prática na nova língua para resistir a uma categorização de menos capazes, ou seja, para evitar que suas identidades sejam construídas negativamente, os aprendizes podem ter menos oportunidades de aprendizagem.

Relacionado à questão dos erros, os alunos participantes também falaram a respeito de serem corrigidos. Para Abra~o, “s~o meios de aprendizagem um pouco dolorosos. No entanto, ajudam a alcançar o dito ‘correto’. Ninguém gosta de errar. O erro traz a correção, e dependendo de como ela é feita, ela pode criar sentimentos de tristeza, culpa, timidez, etc.; o que acaba ferindo, nem que seja o ego”. É interessante notar, pelos termos do aluno, que a correç~o acaba “ferindo o ego”, ou seja, afeta a identidade de quem é corrigido. Esse é um tipo de crença que privilegia o saber, o que é correto a partir de um modelo de uso de língua que supostamente sabe usá-la em perfeição. Para Rajagopalan (2002), o suposto modelo de perfeição, o falante nativo, precisa ser problematizado a partir de uma visão de língua não estruturalista, porém discursiva, e sem considerar que a língua possua donos que sabem sobre ela dizer com autoridade e exatidão.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista as discussões empreendidas neste trabalho, a partir dos dados que

informaram as análises, retomamos aqui, como considerações finais, as perguntas de pesquisa que guiaram o estudo. A primeira pergunta dizia respeito a como os alunos de inglês no curso de Letras se identificam e são identificados no processo de aprendizagem em sala de aula. Sobre essa questão, é preciso ressaltar que todos os participantes desta pesquisa iniciaram o curso de Letras já com níveis intermediários ou avançados de proficiência na língua inglesa. Assim, os dados coletados sugerem indícios de que alguns alunos entram na universidade com uma experiência já iniciada com a língua inglesa, a qual inicia a partir do contato com músicas, artistas etc., além da influência de cursos de idiomas anteriores. Com isso, a entrada no curso de Letras pode ser muitas vezes frustrante, pois, em meio a turmas heterogêneas, os alunos que já possuem uma história de vivência anterior com a língua inglesa não encontram espaços para avançarem na aprendizagem, considerando as aulas das diversas disciplinas bastante monótonas ou repetitivas.

Esse assunto também se relaciona com a segunda pergunta de pesquisa, a qual buscava analisar os tipos de interação que participam na construção das identidades dos alunos e que possivelmente promovem ou embargam o acesso dos alunos na aquisição da competência na LE. Os dados analisados sugerem que muitos alunos possuem visões equivocadas sobre o papel do erro na aprendizagem de línguas, evitando participar ou procurando muitas vezes atuar mais em participações escritas, a fim de evitar exposições orais na LE.

Em função do espaço limitado para a discussão neste artigo, ressaltamos, por último, a expectativa de que os resultados das análises deste trabalho possam servir de subsídios para se pensar e repensar a sala de aula de inglês no curso de Letras enquanto espaço democrático de ensino-aprendizagem.

REFERÊNCIAS

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LETRAMENTO: a leitura no contexto das aulas de Língua Portuguesa

Maria Suellen de Souza Sá Gerlândia de Castro Silva

Universidade Federal do Pará RESUMO: Este artigo analisa como se dá a prática da leitura nas aulas de Língua no 6º ano do Ensino Fundamental, na Escola Estadual Maria Deusarina, localizada na cidade de Castanhal/PA. Fundamentou-se no paradigma qualitativo de pesquisa, tendo como referência metodológica o estudo de caso. A fim de investigar com maior propriedade a situação problema, utilizamos como técnicas de pesquisa a entrevista com a professora de Língua Portuguesa e a observação em sala de aula. Deram base para a análise do objeto em questão autores como: Brasil (1998), Marcuschi (2001), Soares (2002), Tfouni (2004), Klaiman (2008), dentre outros. O estudo constata que o letramento numa perspectiva sociohistórica se faz de forma incipiente e precária nas aulas de Língua Portuguesa. A leitura como parte do processo de letramento é trabalhada de forma descontextualizada da realidade sociocultural do aluno. Palavras-chave: Letramento. Língua Portuguesa. Ensino. Leitura. ABSTRACT: This article analyzed as the practice of literacy in the classroom in the Portuguese Language in the 6TH year of Primary Education, in Maria Deusarina School, located in Castanhal city (Para). It is based on a qualitative paradigm of research, having as a methodological reference the case study. In order to investigate with greater ownership the problem situation, we use as research techniques the interview with Portuguese Language professor and the observation in the classroom. Some authors provided the basis for the analysis of the object in question as following: Brazil (1998), Marcuschi (2001), Soares (2002), Tfouni (2004), Klaiman (2008), among others. The result of the research shows that the literacy has been treated in an incipient and precarious form in the Portuguese language classes and this has been taught in a decontextualized way of sociocultural reality of the student. Keywords: Literacy. Portuguese language. Teaching. Reading. 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho oferece um breve olhar sobre o letramento nas aulas de Língua Portuguesa, especificamente sobre a dimensão da leitura. Ler ainda é um fardo para muitos educandos, pois esta atividade, na maioria das vezes, apresenta-se desprovida de sentido pessoal e social, o que proporciona, aos alunos, antipatia pelo ensino da Língua Portuguesa. Apesar do conceito de letramento pressupor ou envolver o trabalho com leitura, oralidade e escrita, este estudo focalizará o aspecto leitura no contexto das aulas da disciplina Língua Portuguesa. Nosso interesse em investigar o ensino da leitura surgiu a partir do momento em que tomamos contato com as concepções e práticas de letramento do Programa Mais

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Educação6 do Governo Federal brasileiro do qual participamos como bolsista desenvolvendo atividades de letramento. Na oportunidade, nos deparamos com duas perspectivas de leitura: uma já vivenciada por nós, quando estudantes da Educação Básica, em que a leitura pressupunha a decodificação de letras, palavras e frases, tendo o aluno que passar pelo processo de memorização das letras e dos seus respectivos sons, soletrar as sílabas para formar as palavras etc, sem fazer relação alguma com o seu contexto pessoal e social. A outra nos foi apresentada pelo Programa Mais educação, em que a leitura ia além do ato de decodificar as palavras, ou seja, ler significava compreender o texto e o contexto do texto, sua relação com a realidade sociocultural e histórica do aluno, permitindo uma interação do leitor com o texto e com seu contexto.

Neste sentido, o letramento sugere um trabalho com a leitura e a escrita que vá além da decodificação e copia de palavras. É necessário promover a leitura e a escrita de forma inserida na realidade sóciohistórica do indivíduo. Isto implica em selecionar variados tipos e gêneros textuais, variados portadores de textos, de tal modo que estes possam permitir ao indivíduo um contato significativo com o mundo comunicativo no qual estão imersos. Foi nesse contexto, então, que surge a curiosidade de saber, para além do Programa Mais Educação, como se dava o processo de letramento na Educação Básica, especificamente no Ensino Fundamental. Tendo em vista, então, a operacionalização da pesquisa, optamos em delimitar a investigação para o conhecimento do aspecto leitura no processo de letramento, nas aulas de Língua Portuguesa, no 6º ano do Ensino Fundamental, tendo as seguintes questões como norteadoras do estudo:

- O letramento, em uma perspectiva sociohistórica, é trabalhado nas aulas de Língua Portuguesa?

- Como se desenvolve a leitura nas aulas de Língua Portuguesa? - Quais os gêneros discursivos trabalhados na leitura? - Quais os portadores de textos utilizados (livro didático, jornais, revistas,

quadros) no processo de leitura? - Existe relação entre os assuntos lidos nos textos e a realidade sociohistórica dos

alunos? Nossa preferência em conhecer como se dava o processo de leitura nessa série e

nível de ensino seu deu pelo fato de terem poucas pesquisas nesse nível, já que a maioria dos estudos existentes no campo do letramento refere-se às séries inicias do Ensino Fundamental. A escolha em verificar tal situação no contexto das aulas de Língua Portuguesa se deu por entendermos que é nessa disciplina que se deve ocorrer com maior ênfase o trabalho planejado de ensino aprendizagem da leitura e da escrita.

O estudo fundamentou-se no paradigma qualitativo de pesquisa que segundo Bogdan e Biklen (1994) tem como “objetivo não o juízo de valor, mas antes, o de compreender o mundo dos sujeitos e determinar como e com que critérios eles o julgam” (p.287).

6 O Programa Mais Educação foi criado pela portaria Interministerial nº 17/2007. É coordenado pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC). Abrange atividades agrupadas em macrocampos como Acompanhamento Pedagógico; Meio ambiente, esporte e lazer; Direitos humanos; Cultura e arte; Cultura digital; Prevenção e promoção da saúde; Educomunicação; Educação científica e Educação econômica. Mais informações acessar: www.mec.gov.br .

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A abordagem metodológica escolhida foi o estudo de caso, pois entendemos que a prática do letramento nas aulas de língua portuguesa, no 6º ano do Ensino Fundamental, configura-se como uma realidade particular, ou seja, um caso específico, com características próprias, que deveriam ser bem estudadas, sem excluir a possibilidade de levantarmos elementos que se relacionem com outras realidades.

Para aquisição das informações adotamos a entrevista semiestruturada e a observação. A primeira para conhecermos o pensamento da professora acerca da realidade estudada e a segunda com a intenção de perceber mais de perto a prática do letramento nas aulas de língua portuguesa e a relação entre discurso proclamado e a vivência deste em sala de aula.

Quanto à organização do artigo, o mesmo está dividido em dois itens que expressam dois momentos distintos, mas complementares da pesquisa. O primeiro, intitulado “alguns ditos sobre letramento” refere-se à pesquisa bibliográfica, onde procuramos nos aproximar da teoria do letramento para compreendermos suas dimensões e desdobramentos na pr|tica pedagógica. O segundo, intitulado “letramento no ensino de Língua Portuguesa”, refere-se à pesquisa de campo, onde descrevemos e analisamos como acontece o letramento no ensino de Língua Portuguesa, dando destaque para o aspecto leitura.

Para fundamentar a presente análise dialogamos com autores, tais como: Marcuschi (2001), Soares (2002), Tfouni (2004), klaiman (2008), dentre outros, que já desenvolveram estudos sobre a temática em análise.

Em fim, o estudo em voga trata-se de um recorte de uma realidade e que, por isso, não tem a pretensão de explicar exaustivamente o fenômeno em estudo, mais de contribuir com as pesquisas já existentes na área.

2 ALGUNS DITOS SOBRE LETRAMENTO E PRÁTICA DA LEITURA Neste tópico do trabalho apresentaremos sinteticamente algumas concepções de letramento, sua inserção no campo educacional, dando ênfase ao processo de leitura.

O termo ou express~o “letramento” ainda n~o foi dicionarizado. A complexidade do conceito é visível, haja vista a variação dos tipos de estudos que se propõem a investigá-lo. (KLEIMAN, 2008).

A express~o “letramento” foi utilizada pela primeira vez por Kato (1986), a partir da década de 80 quando a concepção de leitura, escrita, dentre outros aspectos do ensino da Língua Portuguesa, passaram a ganhar novos significados, não só no campo teórico e acadêmico, mas também nas práticas de ensino da Língua Portuguesa na Educação Básica.

Para Tfouni (2004), o letramento é um processo de aprendizagem social e histórica da leitura e da escrita em contextos informais e para usos utilitários que se distribui em graus de domínio que vai de um patamar mínimo ao máximo.

Assim, falar de letramento é falar das formas ou maneiras de como os povos ou sociedades trilham o caminho da escrita e da leitura. Mais que isso, letramento é um processo, é uma prática de aprendizagem da leitura e da escrita tendo em vista sua utilização nos mais variados espaços, momentos e situações da vida em sociedade. Assim sendo, letramento não é um ato mecânico de apresentação de letras e palavras para o indivíduo decodificar ou copiar, ao contrário, é uma ação altamente significativa e sociohistórica.

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Esse aspecto social do letramento destacado por Tfouni (2004) está em conson}ncia com a fala de outros autores como a de Kleiman (2008), ao dizer: “podemos definir hoje o letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos” (p.18-19).

A autora trata o letramento como um fenômeno que tem por objetivo o ensino da escrita como uma forma de potencializar o cidadão para lidar com as estruturas de poder na sociedade, adquirindo esse poder por meio do uso da escrita.

Essa relação do domínio da escrita e o poder nada mais são do que o domínio do uso e função da mesma, adquirida pelo indivíduo no seu convívio social informal (igreja, movimentos sociais, espaço de lazer) ou formal (escola, universidade, palestras) que lhe credenciam a participação em outros mundos, públicos e institucionais, como o da mídia, da burocracia, da tecnologia, tendo acesso à informação e à manipulação desta. Soares (2002), compreende o letramento como o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever, ou seja, é o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um individuo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita. A autora, porém, adverte que a condição de quem sabe ler e escrever não são mais suficientes, pois é preciso saber responder com propriedade às exigências de leitura e de escrita que a sociedade demanda continuamente. Neste sentido, o letramento sugere um trabalho com a leitura e a escrita que vá além da decodificação e copia de palavras. É necessário promover a leitura e a escrita de forma inserida na realidade sociohistórica do indivíduo. Isto implica em selecionar variados tipos e gêneros textuais, variados portadores de textos, de tal modo que estes possam permitir ao indivíduo um contato significativo com o mundo comunicativo no qual estão imersos.

Soares (2002) afirma ainda que o nível ou grau de letramento está ligado à maior ou menor presença de práticas de leitura e escrita no cotidiano escolar e social. O nível de letramento nos países desenvolvidos, por exemplo, é medido pelo número de anos completados na escola, sugerindo que em 4,5 ou mais anos a escola terá levado os indivíduos não só a aquisição da leitura, mas também ao uso e práticas sociais.

No Brasil, nos últimos anos, temos assistido uma força tarefa de governantes, educadores e sociedade em geral em potencializar a prática da leitura e da escrita, em casa, nas escolas e em outros espaços sociais, pois avançamos na compreensão de que a cidadania plena só é possível por meio do domínio da tecnologia e do uso adequado da função da leitura e da escrita.

Outro autor que se posiciona acerca do letramento é Marcuschi (2001). Ele afirma que letramento envolve:

As mais diversas práticas da escrita (nas suas várias formas) na sociedade e pode ir desde uma apropriação mínima da escrita [...] até uma apropriação profunda, como no caso do indivíduo que desenvolve tratados de Filosofia e Matemática ou escreve romances. Letrado é o indivíduo que participa de forma significativa de eventos de letramento e não apenas aquele que faz um uso formal da escrita (p. 25).

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Dessa forma, letramento está relacionado com o fazer significativo da escrita, da leitura, da oralidade, ou seja, trata-se de uma prática social e histórica marcada pela necessidade de sua utilização no dia-a-dia.

No campo educacional, letramento consiste no ato pedagógico de ajudar uma criança, jovem ou adulto a se auto-reconhecer como um ser de linguagem, que fala, que se comunica, que pode ler e escrever o mundo a sua volta, partindo da sua realidade social. Por isso cabe, então, à instituição escolar, responsável pelo ensino da leitura e da escrita, “ampliar as experiências das crianças e dos adolescentes de modo que eles possam ler e produzir diferentes textos com autonomia” (LEAL ET AL, 2006, p. 70).

O letramento na escola, especialmente, a prática da leitura, não pode ser dado de forma mecanicista e impositiva, alheia às necessidades pessoais e sociais do aluno. A leitura deve acontecer na escola de modo produtivo, dinâmico, dialógico e, principalmente, levando em consideração os contextos de relações e interação social em que os alunos estão envolvidos.

Talvez seja preciso que a escola pública brasileira reflita sobre os procedimentos que vem utilizando em relação à leitura, pois é comum ouvirmos falar que adolescentes e jovens estão concluindo o Ensino Fundamental sem terem alcançado a competência leitora necessária para ler e compreender os textos e contextos, com os quais se deparam cotidianamente.

Assim, para melhorar a condição do desenvolvimento dessa habilidade no campo educacional é necessário que a leitura possa ser tratada como prioridade. Por isso, trabalhar a leitura de forma mais lúdica, significativa e intensa com a criança desde a alfabetização, é uma alternativa para que tenhamos, num futuro próximo, adolescente e jovem apaixonados pelo ato de ler.

É preciso, ainda, possibilitar ao aluno o gosto pela leitura. Isso só é possível quando os professores também têm o habito de ler e fazem dessa prática um ato prazeroso e significativo. Mais que isso, é necessário que a escola planeje e execute uma política de valorização da leitura, em que todos os autores da educação escolar possam exercitar essa atividade.

A leitura tem muitas funções e uma delas é a função social. Assim, a leitura exerce grande importância na vida de todo e qualquer cidadão. Através dela, as pessoas podem se “libertar” para o mundo, n~o sendo obrigadas a conviver com as injustiças que muitas vezes acontecem com pessoas despreparadas e sem o conhecimento suficiente para que exerçam sua cidadania.

A leitura, nesse sentido, que dá força ao homem e o desperta para sua realidade social, não é apenas a de decodificação dos códigos lingüísticos, mas a que dá capacidade de interpretar o que ler e condições de atuar dignamente em sociedade, sendo ciente de seus deveres e direitos.

A prática do letramento, portanto, consiste em uma ação de ajuda aos indivíduos, dentro ou fora da escola, a desenvolverem suas habilidades para ler e escrever a vida, numa perspectiva que valorize o contexto pessoal e sociocultural dos mesmos. Esta se constitui mais que uma prática pedagógica, trata-se de uma prática social permeada de valores e ideologias, pois toda ação pedagógica não é neutra, ao contrário, sempre expressa uma concepção de homem e de sociedade e por isso expressa um compromisso com a transformação ou não da sociedade em que vivemos.

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3 A LEITURA NO PROCESSO DE LETRAMENTO NO CONTEXTO DA DISCIPLINA LÍNGUA PORTUGUESA

A reflexão que ora apresentamos é fruto de nossas constatações e inferências alcançadas por meio da investigação que realizamos, tendo como objetivo central conhecer como se dá o processo de letramento, especificamente, a prática da leitura, no fazer da disciplina Língua Portuguesa. Em vista do alcance de nossos objetivos e melhor compreensão de nosso objeto de estudo, delimitamos nossa pesquisa para o 6º ano do Ensino Fundamental, na Escola Estadual Maria Deusarina, em Castanhal-Pará.

Cabe esclarecer que nossa investigação partiu do pressuposto de que há um processo de letramento acontecendo na escola, e em especial no contexto das aulas de Língua Portuguesa, por compreendermos que nesta área do conhecimento se discute, planeja e se vivencia com mais constância o ato de ler, escrever, interpretar textos etc. Por outro lado, não tínhamos um conhecimento sistemático e profundo de como esse processo de letramento vinha acontecendo, em especial, como o processo de leitura estava sendo trabalhado nas aulas de Língua Portuguesa. Foi, então, a partir dessas inquietações que resolvemos executar a presente pesquisa.

Para uma melhor compreensão do presente estudo, apresentamos de modo sistematizado, as questões-problema que nortearam a pesquisa realizada:

- O letramento, em uma perspectiva sociohistórica, é trabalhado nas aulas de Língua Portuguesa?

- Como se desenvolve a leitura nas aulas de Língua Portuguesa? - Quais os gêneros discursivos trabalhados na leitura? - Quais os portadores de textos utilizados (livro didático, jornais, revistas,

quadros) no processo de leitura? - Qual a relação entre os assuntos lidos nos textos e a realidade sociohistórica dos

alunos? Para o desenvolvimento da pesquisa adotamos os referencias metodológicos da

pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso, tendo a entrevista semiestruturada e a observação como nossas técnicas de aquisição das informações.

Quanto à opção de adotarmos os procedimentos metodológicos próprios da pesquisa qualitativa, se deu por entendermos que nosso objeto ou problema de estudo só seria possível se compreendido na ótica da pesquisa qualitativa que, segundo Bogdan e Biklen (1982 apud Ludke e André, 1986) apresenta as seguintes características:

A pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal instrumento; os dados coletados são predominantemente descritivos; a preocupação com o processo é muito maior do que com o produto; o significado que as pessoas dão às coisas e à sua vida são focos de atenção especial pelo pesquisador (p. 11-13).

Quanto aos procedimentos adotados no decorrer da pesquisa, cabe aqui apresentá-los: levantamento e estudo bibliográfico objetivando fundamentar e situar melhor o objeto de estudo; entrevista estruturada com a professora de Língua Portuguesa e observação em lócus.

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Para a entrevista preparamos um conjunto de perguntas relacionadas à: concepção de letramento, ao letramento no contexto das aulas de Língua Portuguesa, ao trabalho de leitura nas aulas da referida disciplina, aos gêneros discursivos utilizados nos textos para leitura, aos portadores de textos e à relação dos assuntos trabalhados nos textos lidos e a realidade sociohistórica dos alunos. Já para nortear nosso trabalho de observação das aulas, tendo como foco central nosso objetivo de pesquisa já anunciado, preparamos um roteiro de observação com os seguintes aspectos: frequência em que se desenvolvia a leitura em sala de aula; como se dava o trabalho com a leitura, quais gêneros discursivos eram utilizados para leitura, que portadores de textos eram utilizados, quais os conteúdos ou assuntos dos textos lidos e sua relação com o contexto sociohistórico dos alunos. Foram feitas oito observações no período de 12 de abril a 06 de maio de 2011, as quais foram registradas em um caderno de campo.

Vale esclarecer que para esta análise nos guiaremos pelos aspectos definidos na entrevista dada pela professora, utilizando as informações obtidas durante o período de observações para complementar ou contradizer o discurso da entrevistada.

Nossa entrevistada é licenciada em Letras e Artes pela Universidade Federal do Pará, com especialização em Ensino Aprendizagem da Língua Portuguesa. A mesma já atua no Magistério em torno de dez anos, tendo sido professora da rede municipal de ensino, estando atualmente na rede estadual, acerca de seis anos. A mesma se identifica com o ensino da Língua Portuguesa, mas nem tanto com a profissão professor, conforme deixa claro em sua fala a seguir:

Gostar de ser professora de Língua Portuguesa...com a disciplina eu me identifico muito, mas, hoje, o gostar de ser professora, tem que gostar mesmo pra ser professora, né? Que as situações que acarretam o ambiente, a situação em si, a falta de apoio é complicado (PROFª DE LÍNGUA PORTUGUESA).

Dado os devidos esclarecimentos acerca dos procedimentos e demais dados da pesquisa, partiremos agora para a análise das informações adquiridas durante a entrevista e observações, obedecendo a ordem dos seguintes aspectos: concepção de letramento, prática da leitura nas aulas de Língua Portuguesa, gêneros discursivos trabalhados na leitura, portadores de textos utilizados no processo de leitura e relação entre os assuntos lidos nos textos e a realidade sociohistórica dos alunos.

No que concerne à concepção de letramento, a professora entrevistada, ainda que não formule completamente um conceito, nos dá elementos para compreendermos o que seria letramento em sua concepção, conforme veremos a seguir:

Por letramento a gente... trabalhar com as letras tanto que eu até falei que tem o letramento em matemática como deveria ser. O Letramento é tipo uma base do português, né, um auxilio, e o projeto mais educação ele vem como um apoio né, vem somar com as aulas de língua portuguesa tipo um reforço a mais com os alunos que tem muita dificuldade com leitura e produção de texto. O conceito eu acho que é saber ler, melhorar a leitura e saber interpretar essa leitura, não ser um analfabeto (PROFª DE LÍNGUA PORTUGUESA).

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Trabalhar com as letras, saber ler, melhorar a leitura, saber interpretar, não ser

analfabeto, eis alguns pontos da fala da professora que nos chamam atenção pelo fato de sua colocação está mais voltada à prática do letramento como processo formal de construção da competência leitora e escritora, aparentemente dissociada do contexto social. Além disso, mostra claramente como a escola em que trabalha tem deixado a prática do letramento a cargo do Programa Mais Educação do Governo Federal Brasileiro.

Vale ressaltar, ainda, tendo como ponto de partida a fala da professora, que existem muitos analfabetos por não dominarem os códigos lingüísticos, mais que são letrados do ponto de vista social, ou seja, sabem ler e compreender o mundo a sua volta, ainda que apresentem limitações para essa tarefa.

As colocações sobre letramento ora apresentadas refletem o que Kleiman (2008) nos diz:

Pode-se afirmar que a escola, a mais importante das agências de letramento, preocupa-se não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de prática de letramento, qual seja, a alfabetização, o processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico), processo geralmente concebido em termos de uma competência individual necessária para o sucesso e promoção na escola (p. 20).

Esta perspectiva de letramento contradiz inclusive os objetivos gerais do ensino

da Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental que é: Utilizar a linguagem na escuta e produção de textos orais e na leitura e produção de textos escritos de modo a atender a múltiplas demandas sociais, responder a diferentes propósitos comunicativos e expressivos e considerar as diferentes condições de produção do discurso (BRASIL, 1998, p.32).

Nesse sentido, faz-se necessário uma reavaliação da concepção e prática de letramento que vem ocorrendo em nossas escolas, haja vista promovermos um letramento que permita ao educando um aprender a ler e escrever significativo, relacionado com suas necessidades sociais, com aplicação concreta no cotidiano, permitindo ao mesmo exercer sua cidadania plenamente.

No que tange à prática da leitura nas aulas de Língua Portuguesa, perguntamos à professora entrevistada como ela trabalhava esse aspecto em suas aulas. A mesma afirma:

Os alunos como não têm o habito da leitura, eles têm vergonha de ler. Porque pra escutar o que eles falam... eles falam muito baixo. A maioria gosta que a gente leia junto. Agora tem uns que gostam de ler, que você percebe que eles têm o domínio da leitura, mas a maioria tem uma péssima leitura. Então pra gente trabalhar a oralidade, perceber como eles estão falando, eles tem muita

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vergonha porque eles têm deficiência. Na exposição de trabalho eles falam muito baixo. Alguns se sobressaem. Numa turma de 50, 10 sabem se destacar, tanto que eles sabem perguntar, indagar, agora a maioria só se agente for junto com eles perguntando de carteira em carteira. Só quando eles chegam na 7ª série ai eles estão no nível que a gente imaginou mais ou menos que poderia ser a 5ª série.

A professora não detalha em sua fala como ela organiza e executa o trabalho com a leitura, mas retrata a condição em que se encontram os alunos em relação ao ato de ler, chegando, inclusive, a mencionar a defasagem que os mesmos têm em relação à leitura, tendo como parâmetro a série que cursam. Vergonha de ler, leitura com voz baixa, dificuldade para decodificar as palavras durante a leitura etc, retratam um cenário que não é somente dessa turma de alunos, mas, com certeza, corresponde à realidade de alunos das escolas públicas brasileiras.

Com bases em nossas observações comprovamos que a leitura de textos era realizada em todas as aulas, mas geralmente feita pela professora para os alunos, tendo como portador desses textos o livro didático de português. Raramente se fazia a leitura coletiva ou individual de um texto, não oportunizando aos alunos a construção de capacidades inerentes ao ato de ler, conforme preconiza os PCNs de Língua Portuguesa:

A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo que sabe sobre a linguagem etc. Não se trata de extrair informações, decodificando letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência (BRASIL, 1998, p.69).

Neste sentido, apropriar-se dos mecanismos da leitura e da escrita e utilizá-los com propriedade e racionalidade seja para comunicar, defender uma idéia, palestrar, escrever um bilhete ou até mesmo fazer uma lista de supermercado, demonstra a autonomia do educando no uso dos mesmos. Mas, para que isso ocorra, é preciso que a escola crie necessidades de leituras, incentivando a interação social assim como o raciocínio lógico e organizado.

Sendo assim, espera-se que um leitor alfabetizado e letrado não seja apenas capaz de ler e escrever fazendo o uso adequado das regras da Língua portuguesa para a construção e interpretação de palavras, frases, orações e textos, mas também, de instaurar uma situação de interação discursiva com o texto lido, vivenciando um momento prazeroso de busca e apreensão de idéias, conhecimentos e informações diversas.

Dessa forma, a leitura só poderá ocorrer com a intervenção do professor independentemente do aluno ler baixo ou ter vergonha. É ele, o professor, que favorecerá a circulação de informações, cabendo ao mesmo orientar o aluno e encorajá-lo a usar todo o seu conhecimento prévio para que possa participar efetivamente do

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processo de leitura, utilizando suas técnicas de interpretação de modo a interagir com o texto, em busca do seu sentido.

A leitura, portanto, como aquisição do conhecimento, deve ser uma prática diária em todas as disciplinas. O aluno precisa ser respeitado em suas limitações e incentivado a vencê-las. Não foi o que observamos no cotidiano da sala de aula observada. Ao contrário, o que vimos foi uma grande preocupação por parte da professora em avançar com o conteúdo, seguindo à risca as páginas do livro.

Diante desse cenário, é cabível o que disse Paulo Freire em um Trabalho apresentado na abertura no Congresso Brasileiro de Leitura, realizado em Campinas, em novembro de 1981, acerca da concepção de leitura a ser levada em consideração por nossos professores, em nossas escolas:

A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto.

Logo, a escola deve proporcionar uma leitura que leve à compreensão dos textos e dos contextos sociohistóricos de onde partiram as produções textuais. A escola precisa incentivar os alunos a se posicionarem criticamente frente à realidade em que estão inseridos, por meio da leitura. Para que isso aconteça os professores devem lançar mão de determinados textos, produzidos por determinados autores, para instigar e esmerar a compreensão, a crítica e o posicionamento des seus alunos.

Quanto aos gêneros textuais7 trabalhados na leitura em sala de aula, a professora entrevistada se posiciona:

A gente utiliza carta, né, bilhetinho, história em quadrinho também é usada. Nos livros vêm esses gêneros. Vêm textos jornalísticos e eles se confundem muito com o discurso direto e indireto desde a 5ª série, tanto que até o Ensino Médio a gente tem que mostrar pra eles no texto, o diálogo, a conversa, porque usar o travessãozinho, a chamada dos verbos: ela falou, ele disse, tudo isso aí eles têm muitas dificuldades, mas a gente gosta de trabalhar esse tipo de discurso: narrativo no discurso livre e o discurso direto.

De acordo com que observamos podemos dizer que foram utilizados, de fato, para leitura e interpretação de textos, gêneros textuais como: tiras, poema, lista, carta e

7 gêneros textuais são fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social [...] contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia. [...] Caracterizam-se como eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados as necessidades e as atividades sócio-culturais, o que é facilmente perceptível ao se considerar a quantidade de gêneros textuais hoje existentes em relação às sociedades anteriores à comunicação escrita (MARCUSCHI, 2001,p.19).

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história em quadrinhos. Tal utilização tinha como suporte o livro didático de Língua Portuguesa adotado para a 6º ano.

O que nos chamou a atenção na utilização desses gêneros discursivos foi o fato de eles não serem explorados como deveriam ser. Os alunos não eram levados e instigados pela professora a conseguirem identificar as idéias centrais e secundárias do texto, o gênero textual, sua linguagem e estrutura, o modo como foi organizado, a fazer relação entre o que liam e o que pensavam, muito menos tirar conclusões sobre o que liam e a realidade em sua volta. A professora lia o texto e, em seguida, direcionava as perguntas de compreensão do mesmo para os alunos. Quando eles não sabiam, ela respondia para eles, que registravam em seus cadernos as devidas respostas.

Dessa forma, os alunos não tinham oportunidade e nem eram motivados a expressarem seus pensamentos por meio da fala e escrita em relação ao gênero trabalhado. E o mais impressionante era que os itens dos exercícios do livro didático utilizado, que pediam a produção textual, que possivelmente possibilitaria um maior conhecimento das fragilidades lingüísticas e a subjetividade de cada aluno por meio da escrita, eram ignorados. Em suma, era o exercício pelo exercício.

Outro aspecto que merece destaque refer-se aos textos adotados pela professora, no que tange às suas características e usos sociais. Estes pouco favoreciam a reflexão crítica e o despertar do pensamento elaborado, de modo que os alunos viessem a ter plena participação numa sociedade letrada, em que o ensino tem como objeto de estudo a diversidade dos gêneros textuais.

É preciso, portanto, tomarmos consciência de que o trabalho de leitura utilizando variados gêneros textuais é de fundamental importância para os alunos, pois aproxima-os dos vários enunciados produzidos pela linguagem humana nos mais diversos contextos da vida em sociedade. Dessa forma, texto e contexto se desenrolam com a nossa vida e por isso devem ser objetos de ensino, conforme nos orienta os PCNs de Língua Portuguesa:

Os textos se organizam como pertencente a este ou aquele gênero. Deste modo, a noção de gênero, constitutiva do texto precisa ser tomada como objeto de ensino... É necessário contemplar, nas atividades de ensino, a diversidade de textos e gêneros já que são organizados de forma diferente, além de sua relevância social (BRASIL 1998. P.23).

Quanto aos Portadores de textos8 para leitura, na maioria das vezes, era utilizado o livro didático de Língua portuguesa, conforme defende a professora:

A gente procura fazer uso máximo do livro.... As técnicas e metodologias, a gente usa muito o livro de português. Porque é uma correria, né?

Os portadores de textos são excelentes oportunidades de se trabalhar a realidade do aluno, no entanto, eles variam em relação à realidade dos sujeitos envolvidos nas 8 Para Soares (2002), todo objeto que apresente algo que possa ser lido ou qualquer objeto que leve um texto impresso ou manuscrito (seja um ‘texto gr|fico’ – palavras, um ‘texto iconogr|fico’ – uma imagem) são portadores de texto.

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situações de aprendizagem. A nossa realidade é rica de portadores de textos, mas talvez a falta de tempo para o planejamento das aulas leve os professores a se limitarem a um único suporte, neste caso, o livro didático.

Na perspectiva de melhorar o ensino da leitura, variando os suportes textuais, podemos citar alguns: rótulos de produtos alimentícios e de higiene pessoal; manuais dos eletrodomésticos; bula de Remédios; tv (anúncios, telejornais, telenovelas, filmes, documentários, programas de entrevistas, etc); rádios, conta de luz, água e telefone; revistas, jornais, quadro de arte, dentre outros, que podem ser utilizados no processo de leitura.

A utilização desses portadores de textos em sala de aula permite fazer com que os alunos não só percebam os diferentes gêneros discursivos, mas façam uma leitura do seu cotidiano, pois todos nós precisamos saber ler e compreender uma mensagem que cotidianamente é dirigida a nós, como por exemplo, as informações sobre os nutrientes de um alimento, contidas em uma embalagem.

A prática da leitura nos diferentes portadores de textos precisa ser realizada de forma a desenvolver mais que a leitura das palavras, deve provocar a releitura da realidade a partir de uma abordagem crítica dos textos. É fundamental que os sujeitos interajam com estes portadores textuais no seu cotidiano ou no ambiente escolar. Quanto maior a vivência com o material escrito, tanto maior a facilidade em compreender os usos da linguagem escrita. Se estes materiais de leitura estão associados à realidade individual e social deste sujeito tanto melhor. Se ele faz uso social freqüente destes portadores de textos, mais eficiente e significativo será o seu processo de letramento.

No que tange à relação dos assuntos discutidos nos textos e a realidade sociohistórica dos alunos não são nada comuns, ainda pode-se observar uma enorme distância entre o que se ensina na escola, as informações provenientes do livro didático e a realidade pessoal, familiar e comunitária dos alunos.

De acordo com nossas observações, dois entre cinco alunos da escola em questão tem aparelho celular e utilizam o mesmo para ouvir música (melody e funk), seja fora da sala de aula ou, até mesmo, dentro dela. As conversas paralelas à aula diziam respeito ao namoro, à sexualidade, ao gosto por vários estilos de música, dentre outros aspectos que os textos dos livros didáticos não abordavam. Por essa razão, talvez, se explique a falta de atenção e desconcentração dos alunos, as conversas paralelas, as entradas e saídas durante a aula etc.

Como fazer, então, o aluno gostar ou se interessar por algo que não tem sentido claro pra ele? A escola precisa conhecer melhor a cultura dos alunos para que o ensino seja significativo, conforme preconiza os PCNs de Língua Portuguesa de 5ª a 8ª séries:

Pensar sobre o ensino de língua portuguesa no terceiro e no quarto ciclo requer a compreensão da adolescência como o período da vida explicitamente marcado por transformações que ocorrem em várias dimensões: sociocultural, afetivo-emocional, cognitiva e corporal. [...]. Organizar o aprendizado de língua portuguesa nesses ciclos requer que se reconheçam e se considerem as características próprias do aluno adolescente, a especificidade do espaço escolar, no que se refere à possibilidade de constituição de sentidos e referencias nele colocada, e a

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natureza e peculiaridades da linguagem e de suas práticas (BRASIL, 1998, p. 45).

A compreensão da realidade e, por conseguinte a consciência crítica sobre a mesma, viria, neste sentido, com um trabalho organizado e intencional da escola, que partisse da realidade do educando e a ela voltasse, permitindo ao mesmo problematizá-la, conhecê-la, por meio das variadas formas de leitura, possibilitando a todos o que tanto almejamos: a leitura dos códigos lingüísticos e a leitura de mundo ao mesmo tempo. Tal fato nos possibilitaria sonhar com uma sociedade mais e melhor letrada, capaz de exercer plenamente a sua cidadania. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo nos possibilitou conhecer a realidade do letramento, especificamente do aspecto leitura, no contexto das aulas de Língua Portuguesa, no Ensino Fundamental. Tal estudo nos mostrou que um dos grandes desafios do processo de letramento, no campo educacional, é trabalhá-lo de forma significativa e contextualizada, despertando nos alunos o desejo por novas descobertas.

Além disso, a realidade estudada nos permite afirmar que ainda há educadores que vêem o ensino de qualidade como utópico e utilizam as dificuldades encontradas em sala de aula e a falta de tempo para não inovar. O letramento em uma perspectiva sociohistórica não é trabalhado, pois a maioria dos professores se prende a mera reprodução dos conceitos gramaticais que serão exigidos nos dias de prova, nos concursos, sem que esses conceitos possam proporcionar maior interação entre os alunos e dos alunos com o conhecimento, por meio da provocação, do debate e da produção individual.

O trabalho com leitura de forma planejada é quase que inexistente. A mesma continua sendo trabalhada de forma mecanicista, descontextualizada, sem relacioná-la com as vivências socioculturais dos leitores. Tais aspectos precisam ser melhor explorados nas aulas de Língua Portuguesa e em outras disciplinas também. Tal fato implica em melhores condições de trabalho docente, maior acompanhamento do trabalho do professor pelo serviço de coordenação pedagógica da escola, bem como maior investimento em formação continuada para todos os docentes.

Os gêneros textuais mais utilizados foram as tiras, história em quadrinho, lista, poemas, dentre outros. Estes pequenos textos, no entanto, eram utilizados apenas como recursos para se verificar o aprendizado dos alunos em relação a conceitos como substantivo, adjetivo, sinônimo, ligados à disciplina Língua Portuguesa.

O principal portador ou suporte de texto utilizado pela professora era o livro didático que, por sua vez, estava rico em gêneros textuais como: tiras, poemas, receitas, listas de compra etc. Porém, poucos explorados quanto às suas características, autores, linguagens etc.

Os conteúdos ou assuntos apresentados nos textos lidos abordavam temas como o preconceito, culinária, fantasias ou desejos de personagens, dentre outros. Estes assuntos não eram discutidos com o propósito de formar opinião sobre o assunto, relacioná-lo com fatos ou aspectos da vida dos alunos.

Diante de tais constatações, entendemos que a escola deve ser vista como ambiente de valorização e produção do letramento. Deve ser espaço propício para

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trabalhar a competência comunicativa e as diferentes formas de fala e produção textual, valorizando a cultura do aluno, aquilo que ele traz, tem e representa no meio social em que está inserido. A escola deve ser o ambiente primordial do letramento e o professor seu principal agente. Vale ressaltar que aprendizagem para o desenvolvimento intelectual e letrado está intrinsecamente ligada à intervenção do individuo na realidade em que está inserido, sendo este capaz de criar uma representação pessoal sobre um objeto do seu cotidiano ou conteúdo que quer aprender, construindo um significado próprio e pessoal a partir dos conhecimentos que possui. Nessa perspectiva, é fundamental, então, que nas aulas de Língua Portuguesa e nas demais disciplinas do currículo o questionamento sobre a importância ou relevância do que se aprende, do como se aprende e por que se aprende seja valorizado. O professor de Língua Portuguesa e os demais devem primordialmente ajudar o aluno a adquirir as habilidades de ler, compreender e usar diferentes gêneros textuais como: editoriais, reportagens, poemas e de localizar e usar informações extraídas de mapas, tabelas, quadros de horários etc, para que os mesmos pudessem desenvolver a competência de ler e escrever, com base em diferentes tipos de discursos e suas linguagens, compreendendo-os, interpretando-os e extraindo deles informações essenciais para suas vidas.

O ambiente escolar, por tanto, deve ser o principal local de formação do cidadão, pois deve permitir que os alunos estudem e utilizem a língua e as diferentes linguagens, dentro do contexto das práticas sociais da qual fazem parte. Esta ação permite que a escola, por meio de sua ação formadora geste uma sociedade mais justa, humana e cidadã.

5 REFERÊNCIAS

BOGDAN, R. BIKLEN. S. Investigação qualitativa em educação. Porto: Porto Editora, 1994.

BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental: língua portuguesa. Brasília, 1998.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. Trabalho apresentado na abertura no Congresso Brasileiro de Leitura, realizado em Campinas, nov. 1981. Disponível em: WWW.

KLEIMAN, Ângela B. (org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campina, SP: Mercado de Letras, 2008.

LEAL, Telma Ferraz et al. Letramento e alfabetização: pensando a prática pedagógica. In: BRASIL, Ministério da Educação. Ensino Fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade. Brasília: FNDE, Estação Gráfica, 2006.

LUDKE, Menga ; ANDRÉ, Marli R. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.

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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Atividade de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.

SOARES, Magda. Letramento em três gêneros. 2. Ed. Belo Horizonte: Autentica, 2002.

TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e Alfabetização. São Paulo: Cortez, 2004.

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APRENDENDO UM SISTEMA DE ESCRITA DE SEGUNDA LÍNGUA

Stelamary Domingos9 Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO: Este artigo apresenta o resultado de pesquisa com estudantes iniciantes no sistema de escrita de francês como segunda língua (francês-SEL2) que tinham como sistema de escrita de primeira língua o português do Brasil. Foram postas em paralelo, portanto, duas escritas com o alfabeto latino, mas de ortografias diferentes. Analisados os erros em ditados, encontraram-se evidências que apontaram três principais focos de obstáculos para os alunos: o nível de opacidade fonológica da ortografia do francês, um quadro de vogais maior que o do português, mas representado pelas mesmas cinco vogais latinas, e a ortografia do primeiro sistema de escrita influenciando a aprendizagem do segundo. Palavras-chaves: sistema de escrita de segunda língua, francês, português, transparência fonológica. RESUMÉ: Cet article présente le résultat d’une recherche faite auprès d’étudiants qui débutent dans l'écriture du français langue seconde, et qui ont comme premier système d'écriture le portugais brésilien. On a mis en parallèle deux écritures qui utilisent l'alphabet latin tout en ayant une différente orthographe. En analysant des fautes de dictées, on a trouvé des évidences qui indiquent les trois principales sources d'obstacles pour les élèves: le niveau d'opacité phonologique de l'orthographe du français; un tableau de voyelles plus grand que celui du portugais, quoique représenté par les mêmes cinq voyelles latines; et l'orthographe du premier système d'écriture influençant l'apprentissage du second. Les mots clés: systèmes d'écriture en langue seconde, français, portugais, transparence phonologique. 1. INTRODUÇÃO A aprendizagem formal de uma segunda língua (L2)10 não é tarefa fácil, posto que se tem de lidar não apenas com uma gramática diferente, mas também com um sistema de escrita diferente daquele da língua materna, a primeira língua (L1). Em relação à oralidade, uma segunda língua pode apresentar fonemas que não existem na língua materna, causa inicial de dificuldades de compreensão, assim como dificuldades em sua correta produção. Quanto ao sistema de escrita, é certo encontrar na L2

9E-mail: [email protected] Este trabalho foi realizado com bolsa de Iniciação Científica UFRJ-CNPq. Agradeço à minha Orientadora, Prof. Maria Carlota Rosa, o apoio e dedicação durante a vigência da bolsa. Agradeço também suas sugestões para a versão final deste artigo. 10 Emprega-se aqui segunda língua/L2 como “língua n~o materna”.

ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS

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correspondências entre fonemas e grafemas diferentes daquelas aprendidas na ortografia da primeira língua, que teria sido aprendida primeiro. Todo sistema de escrita tem suas particularidades. Semelhanças e diferenças entre o já conhecido e o que se está aprendendo estabelecem as dificuldades para o iniciante. Quanto mais semelhança houver, mais fácil e rápida será a aprendizagem, mas quais diferenças podemos encontrar? Para responder a essa questão, analisaram-se erros de alunos falantes nativos de português do Brasil e há muito alfabetizados na sua língua materna, mas iniciantes no estudo de francês. O objetivo era detectar dificuldades no início do aprendizado do sistema de escrita de segunda língua. Em paralelo, dois sistemas alfabéticos com escrita em caracteres latinos e ortografias diferentes: o português e o francês. 2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS Um sistema de escrita é um “conjunto de sinais — visuais ou táteis — usados para representar unidades de uma língua de um modo sistem|tico” (Cook & Bassetti, 2005: 2-3, citando Florian Coulmas). Esses sinais são os grafemas, “as menores unidades de um sistema de escrita” (Cook & Bassetti, 2005: 4). Cook & Bassetti (2005: 3) apontam ainda um segundo significado para sistema de escrita, que se confunde com ortografia. No primeiro sentido, os sistemas de escrita podem distinguir-se: a) quanto ao tipo de representação estabelecida no grafema; b) quanto às unidades linguísticas representadas; c) quanto à escrita empregada; e d) quanto à ortografia. É o que se verá a seguir. 2.1. No tocante aos tipos, a classificação dos sistemas diz respeito à referência do grafema: o significado ou o som. Um sistema de escrita pode relacionar o grafema a um significado; são os sistemas logográficos. Cook & Bassetti (2005:5) afirmam que um sistema desses pode ser compreendido mesmo por pessoas que não conhecem a fonologia da língua. Pode contar como evidência para essa afirmação a surpresa resultante da tentativa de introdução de uma escrita alfabética na China em meados do século XX, noticiada em jornais da época (Anônimo,1976a; Anônimo, 1976b; Bloodworth, 1979): a diversidade linguística da China tornou-se evidente ao se tentar implantar um sistema fonográfico, a ponto de afetar a denominação das figuras políticas e da toponímia pelas agências de notícias. No entanto, Cook & Bassetti ressaltam que mesmo esse tipo de sistema tem grafemas com contraparte fonológica, caso dos radicais fonéticos da escrita chinesa (Cook & Bassetti, 2005:5). Já nos sistemas de escrita baseados em som, ou fonográficos, o grafema “se conecta aos sons da fala” (Cook & Bassetti, 2005: 6), e nesses sistemas é possível imaginar a pronúncia de uma palavra escrita sem saber seu significado. O sistema de escrita francês e o português são exemplos de sistemas baseados em som. 2.2. No tocante às unidades linguísticas representadas, elas podem ser o morfema, a sílaba, todos os fonemas ou apenas os consonantais. O morfema é a unidade linguística representada nos sistemas de escrita baseados em significado, enquanto a sílaba e o fonema são unidades linguísticas representadas nos sistemas baseados em som. Os sistemas fonográficos se dividem entre os consonantais, que representam consoantes, e os alfabéticos, cujos grafemas representam todos os fonemas, tanto as consoantes como

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as vogais. Logo, os hanzi da China e os kanji do Japão são morfêmicos; o kana japonês e o tibetano são sistemas silábicos; o árabe e o hebraico têm sistemas de escrita fonográficos consonantais; o português e o francês, fonográficos alfabéticos. 2.3. Escrita é “a forma gr|fica das unidades de um sistema de escrita” (Cook & Bassetti, 2005:3, citando Florian Coulmas). O árabe e o hebraico, apesar de serem sistemas consonantais, têm escritas diferentes; assim também o grego e o português, ambos alfabéticos. 2.4. A ortografia é um “conjunto de regras estabelecido para que uma escrita possa ser usada em uma determinada língua” (Cook &Bassetti, 2005: 3), o que envolve n~o apenas a referência dos grafemas, como ainda as regras de hifenização, de pontuação, de acentuação. Num sistema fonográfico, caso do português e do francês, da ortografia fazem também parte as regras de correspondência. Uma regra de correspondência grafema-fonema no português estabelece que <x> pode ser lido como // em <caixa>,/ks/ em <táxi>, /z/ em <exausto>, como /s/ ou /ks/ em <sintaxe>. Uma regra de correspondência fonema-grafema no português estabelece que /z/ é representado de vários modos: <z> em <azul>, <s> em <mesa>, por <x> em <exame>. As regras de correspondência determinam se uma ortografia é mais ou menos transparente fonologicamente. Uma ortografia é transparente quando as relações estabelecidas pelas regras de correspondência grafema-fonema e pelas regras de correspondência fonema-grafema apresentam, diferentemente dos exemplos acima, uma relação um-para-um. O exemplo típico é o italiano (Cook & Bassetti, 2005:7). Um exemplo de sistema de escrita pouco transparente, ou opaco, é o inglês, pois nele as correspondências entre grafema e fonema são muito irregulares. É atribuída ao famoso escritor George Bernard Shaw (1856-1950) a crítica às irregularidades da ortografia do inglês que procurava demonstrar ser possível ler <ghoti> e <fish> do mesmo modo: <gh> como /f/ aparece em <tough>; <o> como /i/, em <women>; e <ti> como a fricativa pós-alveolar em <nation>. Este trabalho focaliza os passos iniciais no domínio da ortografia da língua francesa como segunda língua por estudantes nativos de língua portuguesa, cujo sistema de escrita foi o primeiro aprendido. São dois sistemas de escrita fonográficos. São escritas alfabéticas, porém têm ortografias diferentes. Essas diferenças condicionam certas dificuldades como se verá adiante. Doravante abreviaremos as denominações sistema de escrita da primeira língua e sistema de escrita de segunda língua como, respectivamente, SEL1 e SEL2. 3. METODOLOGIA E DADOS No corpus do presente trabalho encontram-se ditados de dois alunos iniciantes no aprendizado de francês como segunda língua (L2) e segundo sistema de escrita (SEL2). A língua materna (L1) e o primeiro sistema de escrita (SEL1) de ambos é o português brasileiro. Quando o corpus foi coletado, o estudante nomeado como "Aluno A" tinha doze anos de idade e cursava o sétimo ano do Colégio Pedro II, campus São Cristóvão. Já o estudante nomeado "Aluno B" tinha 21 anos de idade e cursava Língua Francesa II no curso de Letras (Português-Francês) da Universidade Federal do Rio de

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Janeiro. Tanto o “Aluno A” como o “Aluno B” estudavam francês havia cerca de um ano. Em ambas as instituições ensinava-se a língua francesa com base na pronúncia de Paris. Não houve controle acerca da audição dos sujeitos, nem das condições de ruído no ambiente em que as tarefas foram executadas. O material foi cedido pelos próprios estudantes, que assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) lhes assegurando anonimato e autorizando a divulgação dos dados e o uso na pesquisa. No projeto inicial previa-se um número de sujeitos maior, mas a apresentação do TCLE parece ter intimidado a grande maioria dos potenciais sujeitos. O corpus é constituído de ditados em classe. O vocabulário dos ditados já havia sido estudado nas aulas anteriores à da atividade. Nos quatro ditados, as palavras foram lentamente e separadamente ditas — exceto quando houve ligação, encadeamento ou elisão, fenômenos que afetam as fronteiras de palavras (Reis, 2000: 42). O asterisco (*) indica a ocorrência de um desses fenômenos na fronteira das duas palavras anteriores a ele. Os erros dos alunos estão numerados e analisados. O ditado 1 foi feito pelo "Aluno A". A tarefa foi corrigida pela docente e entregue aos alunos. Os ditados 2, 3 e 4 foram realizados pelo "Aluno B". Para a realização do ditado 2, a professora ditou um texto da página 117 do livro 1 da coleção Tout va bien! 11, material didático usado no curso. Após o término da tarefa, os alunos compararam o material produzido com o texto original e fizeram as correções necessárias. Os ditados 3 e 4, também foram feitos em sala de aula, sobre textos que apenas a professora tinha. Após o término destes ditados, as atividades foram corrigidas pelos próprios alunos com seu auxilio. 4. ANÁLISE 4.1. DITADO 1 - ALUNO A TEXTO ORIGINAL TAREFA REALIZADA PELO ALUNO A Il a des pouvoir extraordinaires Il a de(1) pouvoir extraordinaire(2) Nous allons* au* supermarché Nous alons(3) au supermarché Je suis brésilienne Je suis brèsillienne(4) Vous êtes* étranger Vous êtes estrangère(5) Tu peux nager Tu peux nager Ils veulent étudier Il(6) veulent ètudier(7) Elle regarde la télévision Elle regarde la tèlevision(8) C'est ma mère C'est ma mère Je vais au cinéma Je veux(9) au cinèma Il a dix ans* Il a dix ans

11AUGÉ, Hélène et alii. Tout va bien! Paris: Clé International.

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(1), (2), (6) - O grafema <s> em posição final não é representado fonologicamente, e o aluno não o escreveu. Por outro lado, em (5) há a escrita de um <s> que não existe na palavra, evidenciando que o aluno sabe que em alguns contextos o <s> não é falado. (3), (4) - Tanto <ll> como <l> podem representar /l/ na ortografia do francês; por seu turno o português-SEL1 não tem <ll>. (4), (5), (7), (8) - O aluno mostra não ter domínio da acentuação. (9) - Problema na identificação das vogais médias. 4.2. DITADO 2 - ALUNO B TEXTO ORIGINAL Le croque-monsieur Prenez deux tranches de pain de mie, mettez à l'intérieur une tranche de jambon blanc et de chaque côté, du gruyère râpé. Trempez le pain de mie dans de l'oeuf battu avec une goutte de lait. Faites dorer à feu doux des deux côtés. Vous avez* un* succulent croque-monsieur à manger bien chaud! Si vous faites frire deux oeufs* sur le tout , vous aurez* un* croque-madame, également excellent! TAREFA REALIZADA PELO ALUNO B. Le croque messieurs (1) Prenez de(2) tranche de pain demi(3), mettez à l'antérieur(4), une tranche de jambon blanc et de chaque côtê(5) du gruiller(6) râpé. Trompez(7) le pain demi(8) dans le(9) l'oeuf battu, avec une gute(10) de lait, faites dorrer(11) à feu doux le(12) deux côtés, vous avez un succulent croque monssieur à manger bienchôt(13) si vous faites frire deux oeufs sur le tout, vous aurez un croque madame et(14) également excellent. (1), (2), (4), (7) - Problemas com a correspondência fonema-grafema para vogais médias inexistentes em português. (3),(6)- No francês, o grafema <e> não é pronunciado quando em final de palavra. (6) -<gruiller> por <gruyère>: o aluno já sabe existir uma correspondência grafema-fonema para <ll> que não lhe atribui pronúncia. (3), (8), (13) - Problemas com a identificação de palavras ortográficas no interior de um grupo rítmico. (5), (6) - Novamente a inconsistência no emprego de diacríticos. Em (5), o acento circunflexo pode marcar que a vogal é mais aberta ou mais fechada. O uso desse acento sobre o grafema <o> indica que ele corresponde à vogal média-alta posterior arredondada /o/, como na diferença entre a palavra <cote> correspondente a /kt/, e <côte>, correspondente a /kot/. Provavelmente o aluno tinha conhecimento dessa regra, mas não sabia que ela não é igual quando o acento circunflexo está sobre o grafema <e>. Nesse caso, tal acento marca que a vogal é pronunciada com maior abertura, o que se

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evidencia na correspondência de <fête> com /ft/. Além disso, o aluno também pode ter confundido a utilização do acento circunflexo na escrita da língua francesa com sua utilização na escrita da língua portuguesa, já que no português tal acento gráfico marca uma vogal fechada, como em <bebê>. (6) - <gruiller>por <gruyère>. A semivogal /j/foi grafada não como <y>, mas como<i>, como em português. (9) - Sugere-se que o aluno não ouviu corretamente a consoante. (10) - O aluno faz a correspondência fonema-grafema no francês-SEL2 utilizando a correspondência do português-SEL1./gut/corresponde, no sistema de escrita francês, a <goutte>, não a <gutte>. Na língua portuguesa, /u/ corresponde ao grafema <u>, porém na ortografia francesa esse fonema corresponde ao grafema <ou>. (11) - Essa é outra situação na qual, diante de um fonema que não existe em sua língua materna, o aluno faz a correspondência fonema-grafema tomando por base seu SEL1. (12) - Possivelmente o aluno não escutou corretamente o que foi falado. (13) - O fonema /o/ pode ter mais de um correspondente grafêmico em francês, como os que estão em questão, <ô> e <au>. (14) É possível que o aluno não tenha ouvido corretamente, pois não há o /e/ de <et>, apenas o /e/ de <également>. 4.3. DITADO 3 - ALUNO B TEXTO ORIGINAL Le curriculum vitae doit avoir comme but d'obtenir un rendez-vous pour un entretien*. Le CV présente votre vie scolaire et professionnelle. Il doit être une bonne image de ce que vous êtes*. Toujours accompagné de votre lettre de candidature, écrite à la main, c'est souvent sa lecture que se décide à rendez-vous. TAREFA REALIZADA PELO ALUNO B Le curriculum vitae doit avoir comme but d'obtenir un rendez-vous pour un entretien. Le CV présente votre vie scolaire et professionaire(1). Il doit être une bonne image de ce que vous êtes. Toujour(2) accompagnée(3) de votre lettre de candidature, écrit(4) à* la main , c'est souvent à ça(5) lecture que se dècide(6) à rendez-vous. (1)- Sugere-se que o aluno não ouviu corretamente a última consoante pronunciada, confundindo duas consoantes líquidas, /r/ e /l/. (2) - O grafema <s> em posição final não é representado fonologicamente, e o aluno não o escreveu. (3)- Há a escrita de um <e> que não existe na forma masculina, evidenciando que o aluno sabe que em alguns contextos <e> não é falado. (4) - No francês, o grafema <e> não é pronunciado quando em final de palavra. Aqui, o <e> final não pronunciado da palavra <écrite> e a ressilabificação resultante do encadeamento induziram o aluno a escrever incorretamente.

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(5) É provável que o aluno não tenha ouvido corretamente, pois não há o /a/ de <à>, apenas /sa/. (6) O aluno mostra não ter domínio da acentuação. 4.4. DITADO 4 - ALUNO B TEXTO ORIGINAL Écrivez sur une feuille blanche, format 21 par 29,7. Envoyer toujours l'original. La lettre doit impérativement être écrite à la main pour permettre éventuellement une analyse graphologique ( étude du caractère et de la personnalité d'un individu à travers de son écriture). Soignez votre écriture, mais restez naturel. TAREFA REALIZADA PELO ALUNO B Écrivez sur une feille (1) blanche, format 21 par 29,7. Envoyer toujours l'originalle (2). La lettre doit impérativemant(3) être écrit(4) à la main pour permetre(5) éventuellement une analise(6) graphologique ( étude du caractère et de la personalité (7) d'un individue (8) à travers de son écriture). Sonhaiez(9) votre écriture, mais rester(10) naturalle(11). (1) - Problema na identificação das vogais médias. (2) e (11) - Quando apalavra ditada terminava com a consoante alveolar /l/, o aluno grafou <lle>. O fonema /l/ em posição final pode ter como correspondente <l> ou <lle> dependendo do gênero de que se trata. Por exemplo, <selle> e <sel> são homônimos, assim como <salle> e <sal>, <mal> e <malle>,etc. Sabendo que a consoante lateral alveolar pode corresponder na escrita a duas formas diferentes, o aluno encontrou uma dificuldade pela qual não passa na escrita de sua língua materna. (3) - Problemas com a correspondência fonema-grafema em SEL2 para vogais inexistentes em português (4) - No francês, o grafema <e> não é pronunciado quando em final de palavra. Aqui, o <e> final não pronunciado da palavra <écrite> e a ressilabificação resultante do encadeamento induziram o aluno a erro. (5) - Tanto <tt> como <t> remetem a /t/ em francês; por seu turno o SEL1 não tem<tt>. (6) - Para /i/, um dos correspondentes pode ser <y>, como no caso de /analiz/. No entanto, no SEL1 não há essa correspondência: para /i/ usa-se<i>. (7) - Mais um caso em que foi escrito um grafema simples, <n> num contexto em que ele deveria ser duplo, <nn>. (8) - Há a escrita de um <e> que não existe na forma masculina, evidenciando que o aluno sabe que em alguns contextos <e> não é falado. (9) - A correspondência da nasal palatal com <gn> não ocorre no SEL1, apenas no SEL2. (10) - A palavra ditada pode corresponder a <rester> e a <restez>. O conhecimento gramatical indicará a forma correta.

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5. DISCUSSÃO No ditado do aluno A, há dois focos principais para os erros cometidos no francês-SEL2: ainda não há o domínio das regras de acentuação nem do uso de grafemas que não têm representação fonológica. O aluno B também teve essas duas dificuldades, mas foram identificadas outras áreas de erros. São elas: a representação de fonemas existentes no francês-SEL2, mas não no português- SEL1; a possibilidade de mais de uma grafia para o mesmo fonema no francês-SEL2; a percepção de palavras ortográficas num grupo rítmico; e transferência de regras de correspondência do português-SEL1 para o francês-SEL2. As dificuldades com a acentuação decorrem das funções diferentes em ambos os sistemas. No sistema de escrita do francês o acento marca a qualidade da vogal; no português, marca a tonicidade, o que explica só haver um acento por palavra na escrita portuguesa, enquanto, na francesa, se pode utilizar mais de um acento. O que não significa que todos os acentos geraram erros: o aluno A acertou a acentuação, por exemplo, em <supermarché> e <mère>, o que pode sugerir que, não dominando as regras de acentuação do francês, o estudante acentuou as palavras alternadamente na esperança de em algumas acertar. No sistema de escrita do francês, alguns grafemas não são falados, o que exige do aluno o conhecimento prévio da escrita das palavras. O conhecimento da existência de correspondências de grafemas com fonema algum gerou duas situações de erro: o aluno por vezes escreveu grafemas que não existiam e, outras vezes, deixou de escrever os não pronunciados. A língua francesa tem um quadro de vogais maior que o do português. Assim, além da série anterior não-arredondada, representada em <il>, <blé>, <merci>, <plat> e da série posterior arredondada, representada em <genou>, <mot>, <mort>, também presentes em português, há ainda uma série de anteriores arredondadas, representadas em <rue>, <peu>, <peur>, uma posterior não-arredondada, como aquela representada em <bas>, uma central média, como em <le>, além de quatro nasais, representadas em <matin>, <sans>, <bon> e <lundi>. Além das semivogais /j/ (como em <pied>) e /w/ (como em <oui>), também encontradas em português, tem ainda uma labial-palatal, como em <lui>. Para a representação desse quadro, a ortografia do francês emprega as cinco vogais do alfabeto latino com ou sem diacríticos e dígrafos vocálicos. Nos erros, ambos os alunos representaram fonemas inexistentes em português com o grafema que na ortografia do português era o correspondente mais próximo, em termos de abertura, daquele inexistente. Uma outra fonte de dificuldades está no fato de a ortografia francesa ser menos transparente fonologicamente que a do português, sendo mais frequente a ocorrência de mais de uma correspondência gráfica para um fonema. A percepção de fronteiras de palavras num grupo rítmico surgiu no ditado 2. Por último, há cinco casos nos quais o estudante ouve uma palavra francesa e a escreve utilizando as regras de correspondência do sistema de escrita de sua língua materna, ou seja, identifica um fonema que também existe em sua língua e o faz corresponder ao grafema que usaria em seu primeiro sistema de escrita.

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6. CONCLUSÃO A ortografia do primeiro sistema de escrita tem influência quando do início da aprendizagem de um segundo sistema, ainda que o estudante não se aperceba, e isso é evidenciado nos casos em que os alunos A e B erraram a acentuação e utilizaram regras de correspondência da língua materna em suas tarefas. Uma vez que as tarefas analisadas foram ditados, i.e., tarefas em que os alunos tinham de decidir como grafar fonemas, o nível de transparência fonológica foi foco de dificuldade para os dois alunos. Como notam Cook & Bassetti (2005: 9), o francês é mais transparente fonologicamente em relação à leitura do que em relação à escrita, uma vez que as regras de correspondência fonema-grafema são mais irregulares que as regras de correspondência grafema-fonema. A dificuldade que isso pode trazer está evidenciada nos casos em que os alunos desconheciam os contextos em que as letras não correspondem a som algum, ou quando erraram a opção pelo grafema que poderia correspondera um fonema. Além disso, o fato de o francês ter fonemas que o português não tem condiciona um maior número de possibilidades de correspondências fonema-grafema para as mesmas cinco vogais do alfabeto latino e traz ao aluno o desafio de lidar com sons e correspondências antes desconhecidos. 8. REFERÊNCIAS

ANÔNIMO.1976a. Chinês simplificado/1. Jornal do Brasil, 29 de agosto de 1976.

ANÔNIMO. 1976b. Chinês simplificado/2. Jornal do Brasil, 29 de agosto de 1976.

BASSETTI,Benedetta. 2005. Effects of writing systems on second language awareness: Word awareness in English learners of Chinese as a Foreign Language. In: COOK, Vivian J. & BASSETTI, Benedetta (eds). Second Language Writing Systems. Clevedon, UK: Multilingual Matters. pp. 335-356. Disponível em http://eprints.bbk.ac.uk/archive/00000530 Acesso em 30 de agosto de 2013.

BLOODWORTH, Dennis. 1979. Pequim muda a grafia e divide ocidentais. Jornal do Brasil, 24 de fevereiro de 1979.

COOK, Vivian J .& BASSETTI, Benedetta. 2005. An introduction to researching second language writing systems. In: COOK, Vivian J. & BASSETTI, Benedetta (eds). Second Language Writing Systems. Clevedon, UK: Multilingual Matters. pp. 1-67.

REIS, César, 2000. Notasparaumapronúncia do francês. In Caligrama: Revista de Estudos Românico, 5. Versão eletrônica: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/caligrama/article/view/291 Acesso em 30 de agosto de 2013.

SILVA, Thaïs Cristófaro et alii. 2008. Fonética & Fonologia. http://www.fonologia.org/ Acesso em 30 de agosto de 2013.

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O TEMPO MÍTICO EM Ó SERDESPANTO

Leomir Silva de Carvalho Universidade Federal do Pará

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar o tempo mítico, sob a perspectiva de Benedito Nunes (1929-2011), presente no fragmento intitulado “A história” da obra Ó Serdespanto (2006) de Vicente Franz Cecim. Utilizo a teorização do tempo apontada por Nunes em Tempo na Narrativa (1995) para realizar a análise. Como percurso, primeiramente, procedo ao estudo das implicações conceituais atribuídas ao tempo mítico em Nunes; em seguida minha perspectiva recai sobre as particularidades formais da obra ceciniana e os matizes de significado que dela decorrem, bem como analiso duas imagens, o homem e a m~e, e seu reflexo simbólico na narrativa mítica “A história”. Por fim, associo a concepção de tempo mítico de Nunes ao fragmento de Ó Serdespanto quanto à forma e às imagens suscitadas neste, para compreender como o conceito do primeiro ilumina a obra do poeta paraense. Palavras-chave: Vicente Franz Cecim. Tempo Mítico. Ó Serdespanto. RESUMEN: Este trabajo tiene como objetivo analizar el tiempo mítico, bajo la perspectiva de Benedito Nunes (1929-2011), presente en el fragmento titulado “A história” de la obra Ó Serdespanto (2006) de Vicente Franz Cecim. Utilizo la teorización del tiempo apuntada por Nunes en Tempo na Narrativa (1995) para realizar el análisis. Como recorrido, primeramente, procedo el estudio de las implicaciones conceptuales atribuidas al tiempo mítico por Nunes; en seguida mi perspectiva recae sobre las particularidades formales de la obra ceciniana y los matices de significado que de ella decurren, también analizo dos imágenes, el hombre y la madre, y su reflejo simbólico en la narrativa mítica “A história”. Por fin, asocio la concepción de tiempo mítico de Nunes al fragmento de Ó Serdespanto en relación a la forma y a las imágenes suscitadas en este, buscando comprender como el concepto del primero ilumina la obra del poeta paraense. Palabras-clave: Vicente Franz Cecim. Tempo Mítico. Ó Serdespanto. INTRODUÇÃO

Vicente Franz Cecim nasceu em Belém. Sua obra iniciada com os livros reunidos em Viagem a Andara, o livro invisível (1988) não pretende se concluir. Tal viagem rumo ao lugar de mistério chamado Andara começa em 1979, com o que Cecim prefere nomear de o primeiro livro visível, A asa e a Serpente, que em sequência com os demais permitem somente ao observador vislumbrar o verdadeiro livro, este sim, que não se pode ler em palavras, escrito no silêncio, à espera de ser desvelado. Em 1983, Cecim lança no Congresso da SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência que acontecia em Belém, Flagrados em delito contra a noite/ Manifesto Curau convocando os escritores da região a recriar a História da Amazônia pelo imaginário. Neste Manifesto

ESTUDOS LITERÁRIOS

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percebe-se os posicionamentos estéticos e políticos de seu autor que pretendia alertar a consciência do amazônida sobre a necessidade de se constituir uma nova História, que agregasse homem e região pelo elemento criativo do imaginário. As palavras finais do Manifesto trazem a lume as disposições do autor: “Nossa História só ter| realidade quando o nosso Imagin|rio a refizer, a nosso favor”.

Com a reunião de seus sete primeiros livros na publicação supracitada, Viagem a Andara alcança reconhecimento nacional ao receber o Grande Prêmio de Crítica da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), em 1988, já tendo obtido o prestígio internacional com a Menção Especial no Premio Internacional Plural, do México, em 1981. Sua escrita então é aclamada por críticos e escritores como Benedito Nunes e Fabrício Carpinejar e comparada a Guimarães Rosa.

O fragmento que analiso neste artigo, intitulado “A história”, foi extraído do terceiro livro, Ó Serdespanto, que compõe a trajetória poética do autor; tal obra teve primeira edição lançada em Portugal pela editora Íman em 2001. Minha análise tem por escopo o estudo do tempo mítico, a ter como base os estudos de Benedito Nunes em O Tempo na Narrativa (1995), no fragmento que destaco abaixo:

A HISTÓRIA

Em Andara, é quando os homens esperam um anoitecer mais calmo que vêm as noites da vida nos lançar pedras de sombras e asas de areia vêm nos açoitar. Sendo assim em Andara: ó ser de espanto, ó ser despanto, ó serdespanto. Passando, pois, aquele homem a se chamar assim Serdespanto. Pois esse o nome que lhe deram quando ele nasceu, diz-se disso, a mãe, essa que denomina uma parte de si que sai de si aqui para fora, humanamente, para ser outro ser. Um outro espanto isso, deve-se reconhecer com melancolias, resignações, suspiros. Isso de nascer Em Andara, pois. Mais um tendo vindo. De rastros, humano. . Mas depois ele já não andava mais de rastros, esse Serdespanto. Muito alto, ou eram as nuvens que baixavam do céu para nele roçar,

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o certo é que os seus olhos atravessavam névoas, nadas. Uma neblina vaga sempre flutuando em torno de sua caixinha de osso, diz-se cabeça. Posta essa neblinazinha entre os dois buracos, diz-se olhos, através dos quais veria a vida, e a coisa dissimulada lá fora. - Maldita semi-noite, costumava dizer baixinho Serdespanto, tropeçando nas coisas duras que ela, a sonsa, sempre espalha à frente dos caminhos dos homens para nos despertar, com quedas, do sonho de estar vivo. Assim, a região dos murmúrios naquele homem ela se instalando. Se instalara. - Ó Serdespanto. Lamentasse sua mãe, da terra agora, o lhe ter aberto a portinha que as mulheres têm entre as pernas para nos fazer tombar aqui, caídos da casinha escura que elas, úmida, trazem dentro de si Pois depois que ele chegara ela se fora Aquele túmulo sendo uma outra casinha de terra onde a mãe agora habitasse em silêncio. (CECIM, 2006, p.61-4)

Como pontos a serem delineados para o estudo do tempo mítico em Ó

Serdespanto, primeiramente, analiso as implicações conceituais atribuídas ao tempo mítico em Nunes (1995). Em seguida, realizo um estudo do poema a partir da forma e das imagens nele suscitadas, o homem e a mãe. A escolha destas decorre da particularidade de serem os únicos personagens que interagem na obra em análise. E, posteriormente, descortino as similitudes e as divergências expressas entre a teorização do tempo mítico apresentada e “A história”. 1. A RECRIAÇÃO DO ETERNO

De acordo com Benedito Nunes em O Tempo na Narrativa, o tempo mítico se destaca das demais categorias de tempo por ele apresentadas – tempos cronológico e psicológico – por ser instaurado para representar a história do universo, isto é, sua origem se encontra nas narrativas míticas como o Gênese, história bíblica referente à criação do mundo e à trajetória mítica do povo hebreu; ou a Odisséia, epopéia atribuída a Homero que narra a trajetória do lendário herói Odisseu em retorno a sua terra Ítaca, que no decorrer de suas peripécias é auxiliado pelos deuses. Assim, o tempo mítico costuma repelir a sucessão causal do tempo cronológico por uma origem única, tal ancestralidade é capaz de nutrir as mudanças históricas sempre posteriores à causa primeva:

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Pois se a história do povo hebreu começa em Ur, na Caldéia, a sua trajetória mítica principia no jardim do Éden. Esse outro começo recobre o primeiro com a marca de uma origem perene, que o passado mais longínquo não absorve. Qualquer momento posterior da história, como processo de mudança, remontará a este tempo primordial enfaixado pelo mito, e que subsiste, em estado puro, na tradição religiosa. (NUNES, 1995, p.66)

Benedito Nunes pontua ainda que a necessidade de rememorar as origens, de

remeter a existência ao sagrado, intemporaliza o presente, ou seja, liberta o indivíduo da mutabilidade da vida. O filósofo paraense destaca o tempo mítico recriado por Virgínia Woolf em Orlando, no qual a autora confere a sua protagonista características arquetípicas do inconsciente, o que torna perene certos traços de Orlando, ainda que se transforme de personagem masculino para feminino ou atravesse o limite dos séculos. O fluxo e a continuidade, apesar das mudanças, é questionado pelo narrador no referido romance:

A mente humana, por outro lado, atua com igual estranheza sobre o corpo do tempo. Uma hora, uma vez alojada no estranho elemento do espírito humano, pode ser estendida cinquenta a cem vezes mais do que a sua duração no relógio; inversamente, uma hora pode ser representada com precisão por um segundo no tempo mental. (WOOLF, 1997, p. 75)

Em Ó Serdespanto, Cecim conta a trajetória do ser homônimo ao livro do qual se

sabe apenas que é homem, nascido em Andara, do ventre da mãe. E que tem como irmã uma ave que o acompanha em sua peregrinação a lugar desconhecido, capaz de controlar os sonhos de Serdespanto. Esta é a parte primeira de um percurso que perpassa por questionamentos sobre as verdades humanas, o tempo, o sagrado, as ilusões, o onírico. Para alcançar a expressão de sua mundividência o poeta paraense se utiliza de recursos híbridos, como a prosa poética, e instaura imagens que movem o leitor a co-criação da história a partir dos símbolos retirados de labirintos humanos. São nestes pontos, respectivamente, em que detenho minha análise nos próximos tópicos. 2. AS BRUMAS DA FORMA

A escrita ceciniana se singulariza por apresentar inovações formais que estão para além de classificações estanques, ou poesia, ou prosa. Em verdade, sua escrita está inserida em uma concepção de mundo e de literatura que transpassa o texto. Cecim está marcado pela descoberta do Uno, latente nos variados matizes da existência, e pelo olhar de surpresa ao tecer as descobertas na sombra e no silêncio. Sua obra se aproxima no ocidente de autores como Kafka e Guimarães Rosa, e das filosofias orientais como o Tao e o Zen. Quanto ao seu projeto poético, almeja fundar a literatura fantasma, a ser aquela que transcende o fantástico para causar o estranhamento pelo onírico, o simbólico e a reflexão existencial.

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No limite entre a prosa e a poesia, sua expressão se aproxima da prosa poética, gênero híbrido que se alicerça na confluência possível entre a narração presente na prosa e a riqueza de metáforas e imagens associadas, em geral, a poesia. De acordo com Massaud Moisés (1997), a prosa poética tem origens que a aproximam dos textos bíblicos, em sua divisão em versículos, ou, de maneira patente, no Cântico dos Cânticos. Todavia, o hibridismo entre ambos os gêneros transcorrerá com maior intensidade no simbolismo, a prolongar sua influência no século XX, o tempo das vanguardas, com destaque para o Surrealismo. A prosa poética para Moisés define-se pela confluência entre o eu e o não-eu, respectivamente, quando o lirismo se insere na narração dos acontecimentos suscitados pela imaginação a partir do mundo:

Desse modo, a prosa poética se definiria como o texto literário em que se realizasse o nexo íntimo entre as duas formas de expressão, a do “eu” e a do “n~o-eu”. Longe de ser pacífico, o encontro é marcado por uma tensão, de que o texto extrai toda a sua força comunicativa. No binômio, o substantivo é representado pela prosa, ou a express~o do “n~o-eu”, ao passo que a poesia funciona como um qualificativo. Estamos, pois, diante de um tipo específico de prosa, assinalado pela fusão da poesia e da prosa. (MOISÉS, 1997, p. 26)

Moisés (1997) cogita que narrativa poética seja o nome mais apropriado para

este gênero híbrido, visto que a narração o constitui. Todavia, na prosa poética, o enredo é menos denso, a contrariar os intrincados desdobramentos de uma prosa realista; o tom é intimista, o que torna a narração fértil de reminiscências, de matizes oníricas e de estranhamento; o inconsciente assume relevância de maneira que o mundo e o eu parecem confluir na realidade criada. Na narrativa poética, por fim, a metáfora é perceptível desde o início, o sentido se torna um enigma a ser perscrutado:

(...) à semelhança da poesia, e ao contrário da prosa de ficção habitual, a metáfora é de imediata ressonância: enquanto na prosa stricto sensu o sentido das metáforas somente se declara ou se mostra no término da narrativa, na prosa poética, o sentido, ou, quando não, o enigma do sentido, logo salta a vista. (MOISÉS, 1997, p.29)

Em Cecim, a narração se faz presente, no fragmento em análise, quando nos

defrontamos com o acontecimento, que pode sintetizar-se numa única palavra: o nascer. Aquele que nasce é o homem, uma parte da própria mãe que vai para fora, e se torna peregrino em Andara:

Pois esse o nome que lhe deram quando ele nasceu, diz-se disso, a mãe, essa que denomina uma parte de si que sai de si aqui para fora, humanamente, para ser outro ser. Um outro espanto isso, deve-se reconhecer com melancolias, resignações, suspiros. Isso de nascer. (CECIM, 2006, P. 61)

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O nascimento de tal homem é sublime, assinalado com a interjeição à frente de seu nome o qual passa a se chamar: Ó Serdespanto. As três maneiras dispostas pelo eu lírico na folha, quer acentuar a reunião das atribuições da existência a um ser individual numa gradação que pretende unir, numa única palavra, a atribuição maior do ser, o estranhamento com o mundo e consigo próprio:

Sendo assim em Andara: ó ser de espanto, ó ser despanto, ó serdespanto. Passando, pois, aquele homem a se chamar assim Serdespanto. (CECIM, 2006, P. 61)

O tempo agora é marcado pelo que acontece após o nascer, o ambiente em

Andara é coberto de brumas e ausências, e este caráter se reflete em Serdespanto que, em lugar dos olhos, possui o nada onde uma neblina gravita:

o certo é que os seus olhos atravessavam névoas, nadas. Uma neblina vaga sempre flutuando em torno de sua caixinha de osso, diz-se cabeça. Posta essa neblinazinha entre os dois buracos, diz-se olhos, através dos quais veria a vida, e a coisa dissimulada lá fora. (CECIM, 2006, P. 62)

O despertar pode ser doloroso, num espaço sem a proteção materna, condenado

a um vagar solitário. É quando Serdespanto se confronta com o real manifesto na vida e a mãe retorna ao silêncio da terra:

- Maldita semi-noite, costumava dizer baixinho Serdespanto, tropeçando nas coisas duras que ela, a sonsa, sempre espalha à frente dos caminhos dos homens para nos despertar, com quedas, do sonho de estar vivo. (CECIM, 2006, P. 62)

A seguir analiso brevemente o homem e a mãe, imagens extraídas do fragmento

da obra de Cecim, para verificar em sua riqueza simbólica a gênese do tempo mítico de Serdespanto.

3. OS SERES DE ESPANTO O tempo mítico como afirma Nunes, é instaurado no âmbito do singular, é o

evento único da gênese do cosmo, origem por si mesma do sagrado. No fragmento em análise, a história narrada não é somente um episódio na existência de um homem particular, mas toma proporções de mito ao nomear de maneira genérica a principais personagens, a mãe e o homem. Ainda que este assuma um nome, Serdespanto, o que se revela é um caráter que transcende a aparente individualidade para alcançar o humano:

Sendo assim em Andara: ó ser de espanto, ó ser despanto, ó serdespanto. Passando, pois, aquele homem a se chamar

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assim Serdespanto. Pois esse o nome que lhe deram quando ele nasceu, diz-se disso, a mãe, essa que denomina uma parte de si que sai de si aqui para fora, humanamente, para ser outro ser. Um outro espanto isso, deve-se reconhecer com melancolias, resignações, suspiros. Isso de nascer. (CECIM, 2006, P. 61)

O homem, de acordo com o Dicionário de Símbolos (2000), é concebido como

microcosmo, nele o universo se resume. Tal perspectiva é tomada pelas sociedades primitivas, a exemplo da Índia, onde o homem é um dos pilares do cosmo, como Atlas da mitologia Grega, que tem o encargo de suster Céu e Terra, a remeter o homem ao princípio da unidade. Ele também pode aludir ao entrelaçamento de relações do universo, neste caso, seu nascimento é a criação do mundo e sua morte o termo do mesmo:

Essa concepção do Gênesis é posta pela astronomia na própria base da sua doutrina: ali cerca as relações entre o microcosmo (o homem) e o macrocosmo (não só o universo, mas o pensamento englobante de Deus e força do universo). Para todo o homem seu pensamento é como uma criação do mundo: para ele é a mesma coisa que ele nasça ou o mundo. Assim a sua morte é como o fim do mundo. Àquele que morre tanto lhe faz morrer para o mundo quanto que o mundo morra com ele. (CHEVALIER, 2000, p. 495-496)

Segundo o Dicionário de Símbolos (2000) as Grandes Mães das mitologias

antigas são deusas da fertilidade como Gaia, Réia, Hera, Deméter, entre os gregos e Ísis entre os egípcios, isto se deve a mãe estar associada às imagens do mar e da terra, em que é patente a analogia com a fertilidade. A vida e a morte também se destacam do símbolo materno, o nascimento é originar-se do ventre da mãe, o regresso a terra é a morte: “a vida e a morte s~o correlatas. Nascer é sair do ventre da m~e: morrer é retornar a terra” (CHEVALIER, 2000, p.580).

Tais símbolos no poema em análise arrematam o mito de origem do humano. Ao nascer o homem dimana da terra e instaura o seu fado, vagar através do nada e do silêncio. Seu nome, Serdespanto, antes de individualizá-lo revela o caráter de todo aquele que nasce:

Em Andara, pois. Mais um tendo vindo. De rastros, humano. Mas depois ele já não andava mais de rastros, esse Serdespanto. Muito alto, ou eram as nuvens que baixavam do céu para nele roçar, (CECIM, 2006, P. 61-2)

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O homem é um microcosmo que mantém relação direta com o todo do qual

dimana, e, uma vez fora do todo, vaga como individualidade separada.

Pois depois que ele chegara ela se fora Aquele túmulo sendo uma outra casinha de terra onde a mãe agora habitasse em silêncio. (CECIM, 2006, p. 64)

CONCLUSÃO

O tempo, de acordo com Benedito Nunes, se instaura como questão. O homem organiza seu estar no mundo em um movimento constante, entre o início e o fim, e deste modo, tende a temporalizar a existência. Na narrativa, um fato desencadeado acontece devido a um outro que o precedeu, é o princípio da casualidade. O evento, neste caso, é onde o autor tece as entrelinhas deixando ao leitor o encargo de destecê-las, a perceber a ordem causal estabelecida. Neste caso, o tempo cronológico pode estar implícito, visto que fundamenta-se no fluxo recorrente e natural dos eventos, sujeitos à medição do cronômetro, e que se qualificam a partir de tal eixo de referência (o nascimento de um personagem, etc.).

O tempo psicológico, também chamado de duração interior, se define como a sucessão dos vivenciamentos internos. Não equiparável ao tempo cronológico, a duração interior singulariza-se pela fluidez que as demarcações objetivas podem assumir. A hora que passamos entediados numa fila decorre de maneira distinta se estamos nos divertindo numa festa. Portanto, o tempo psicológico prima pelo caráter subjetivo e qualitativo dos eventos, à medida que no cronológico há o imperativo físico da Natureza de percepção do presente, que deriva de um passado e de onde se projeta o futuro.

O tempo mítico se contrapõe às duas categorias de tempo supracitadas. Distancia-se da duração interior por sua natureza transubjetiva e impessoal e do tempo cronológico por repelir a ideia de sucessão temporal, isto porque o mito é uma narrativa fundadora, conta a história de um evento único instaurado no presente intemporal; que se repete sempre que é contado e abrange indivíduos de uma sociedade que mantêm relação de identidade com o mito:

A rigor não há tempo mítico, porque o mito, história sagrada do cosmos, do homem, das coisas e da cultura, abole a sucessão temporal. O que quer que o mito narre, ele sempre conta o que se produziu num tempo único que ele mesmo instaura, e no qual aquilo que uma vez aconteceu continua se produzindo toda vez que é narrado. (NUNES, 1995, p.66-67)

Assim, no poema em análise o tempo mítico se manifesta na forma como o eu

lírico estrutura sua narração, de maneira a relatar um acontecimento individual apenas na aparência, e a se deter nos aspectos fundadores que o singularizam e o torna a história da origem do ser. O princípio é marcado pelo nascimento do homem que emerge da terra, seu caráter primevo é acentuado no próprio nome que lhe é atribuído em tom sublime, Ó Serdespanto. É que o determina em seu destino, vagar por Andara e admitir o estranhamento inerente a sua relação com o mundo e consigo próprio.

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A prosa poética se manifesta na dissolução do enredo que se dissipa para tomar a forma de uma metáfora, o nascimento; a narração se desdobra como se estivesse acontecendo nos labirintos do próprio ser, rica em detalhes oníricos e brumas, parece que o evento transcorre num espaço irreal; por fim, o “eu”, o car|ter introspectivo, bem como o “n~o-eu”, o mundo empírico, confluem e se tornam indistintos no todo do poema de Cecim.

Quanto às imagens por ele utilizadas, destaquei o homem e a mãe para ressaltar a perspectiva simbólica atribuída a ambas e a ressonância mítica que encontram no poema analisado neste artigo. O homem é tido desde os tempos primevos como um microcosmo, uma síntese do universo, o seu nascimento está ligado a origem do mundo. A mãe, relacionada à terra, nos remete a fertilidade. O homem encontra a vida quando sai do ventre materno, e “fenece” ao retornar a terra. 6. REFERÊNCIAS

CECIM, Vicente Franz. Ó Serdespanto: ó ser de espanto, ó serdespanto, ó serdespanto. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Tradução Vera da Costa e Silva... [et al.]. – 15. Ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

LITERATURA – VICENTE CECIM. Disponível em: <http://www.culturapara.art.br/Literatura/vicentececim/index.htm>. Acesso em: 19 ago. 2009

MOISÉS, Massaud. Criação Literária: prosa II. São Paulo: Cultrix, 1997.

NUNES, Benedito. O Tempo na Narrativa. São Paulo: Ática, 1995. 2ª ed.

WOOLF, Virginia. Orlando – uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 1994.

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PALAVRAS DA INSTAURAÇÃO DA REPÚBLICA: O CIDADÃO BRASILEIRO NOS

DISCURSOS DE POSSE DE DEODORO DA FONSECA E FLORIANO PEIXOTO*

Renata Ortiz Brandão Universidade Estadual de Campinas

RESUMO: Este trabalho propõe realizar a análise semântico-enunciativa dos discursos de posse dos dois primeiros presidentes do período republicano no Brasil, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. O intuito é investigar como a palavra cidadão significa na enunciação dos dois presidentes; que predicações/determinações recebe nos textos que compõem o corpus. O estudo está ancorado na Semântica do Acontecimento, cuja filiação é materialista. Assim, não se toma a linguagem como transparente, pois se entende que as relações estabelecidas com o real são sempre históricas. Não se parte, portanto, de um sentido fixo a priori para a palavra, mas se busca na materialidade textual compreender suas especificidades. Por meio da análise das predicações/determinações diretas e indiretas que cidadão recebe nos discursos selecionados, buscou-se compreender o modo como a palavra significa nos movimentos de filiação e de diferença em relação aos sentidos que se estabilizam na República Ocidental Moderna a partir da Revolução Francesa. As análises mostraram tanto uma prevalência de cognata concidadãos sobre cidadão(s) e uma especialização de sentidos entre ambas; quanto uma crescente presença de palavras concorrentes não cognatas, como Nação, Brasileiros, Pátria, que significam antes um sentimento patriótico do que uma identificação com o regime jurídico-político republicano. Espera-se contribuir pontualmente com uma análise de detalhe para a compreensão dos sentidos desta palavra fundamental nas repúblicas ocidentais modernas neste momento de estabelecimento da República no Brasil. Palavras-chave: cidadão, enunciações presidenciais, República Brasileira, semântica ABSTRACT: This work proposes to make the enunciative-semantic analysis of the inaugural address of the first two presidents of the republican period in Brazil, Deodoro da Fonseca and Floriano Peixoto. The aim is to investigate how the word citizen means in the two presidents’ speeches; which determinations it receives on the texts chosen for the analysis. The study is anchored to the Semantics of the Event, whose enrolment is materialistic. So, we do not conceive language as transparent, once we understand that the relations established with reality are always historical. There is not, therefore, a priori fixed meaning for the word, because we seek to understand on textual materiality its specificities. Through the analysis of direct and indirect determinations that citizen gets on the selected speeches, we sought to understand how the word means in the movements of affiliation and difference in relation to the senses that are stabilized in modern Western Republics from the French Revolution. The analysis showed both a prevalence of the cognate fellow citizen over citizen and a specialization of the meaning between them, as a growing presence of non-cognate words competitors, as nation and Brazilians, meaning a patriotic feeling rather than an identification with the legal-political republican regime. We expect to contribute with a detail analysis to understand

ESTUDOS DO DISCURSO

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the meaning of this word, fundamental in modern Western republics at the moment of the Republic’s establishment in Brazil. Key words: citizen, presidential speeches, Brazilian Republic, semantic. 1. INTRODUÇÃO E OBJETIVOS

O presente trabalho, filiado a uma semântica enunciativa de base materialista, a Semântica do Acontecimento, teve como objetivo geral a compreensão da designação do nome cidadão na enunciação dos dois primeiros presidentes da República brasileira: Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. O intuito foi investigar como a palavra cidadão significa na enunciação dos dois presidentes; que predicações/determinações recebe nos textos que compõem o corpus12; bem como compreender os pontos de encontro na designação da palavra entre as enunciações de cada um deles e o modo como os dois primeiros governantes do regime republicano afirmam seu pertencimento ao novo regime. As questões pontuais nos permitem compreender a significação desta palavra fundamental na construção das Repúblicas Modernas no momento de implantação do novo sistema político no Brasil, tal como ela aparece na enunciação dos dois primeiros chefes de Estado.

A palavra-objeto – cidadão – é considerada no senso comum do domínio político, uma vez que faz parte da terminologia da organização do Estado e que é enunciada por locutores-políticos, “ou seja, por indivíduos que tomam a palavra enquanto representantes do povo, legitimados pelo regime político do país” (OLIVEIRA, 2012, p.110). Operamos com o movimento do político na enunciação, tal como definido por Guimarães (2002). O autor, inscrevendo-se em uma posição materialista nos estudos da linguagem, afirma que enunciar é uma pr|tica política, e que o político é “o fundamento das relações sociais, no que tem import}ncia central a linguagem” (2002, p.16). A definiç~o de político é relativa { enunciaç~o: “O político, ou a política, é para mim caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de pertencimento dos que n~o est~o incluídos” (2002, p.16). Nesse sentido, o político torna-se incontornável pelo fato de o homem falar e assumir a palavra, por mais que isso lhe seja negado em algumas situações.

A palavra, enunciada por locutores-presidentes no início da República, traz em sua história de enunciações a relação com o equivalente em francês – citoyen – e os movimentos de sentidos que a palavra do francês irradia nas línguas do Ocidente a partir da Revolução Francesa e da fundação da República Moderna Ocidental. A questão foi obervar como, por meio das predicações/determinações que recebe, a palavra cidadão se atualiza no dizer, o modo como significa no presente dos acontecimentos enunciativos em que os dois primeiros presidentes republicanos tomam a palavra, inscrevendo sentidos para o novo sistema político.

* Este trabalho de Iniciação Científica foi realizado com o financiamento e o apoio do PIBIC/CNPq, responsável por estimular uma maior articulação entre a graduação e a pesquisa, ampliando assim o acesso e a integração à cultura científica. Agradeço especialmente a minha orientadora, a Professora Dra. Sheila Elias de Oliveira, por todo suporte, ajuda, atenção e diálogo. 12 Textos repertoriados: o discurso do Marechal Deodoro da Fonseca de 16 de novembro de 1889, na Proclamação do Governo Provisório, publicada no Diário Oficial e o discurso de posse de Floriano Peixoto, de 23 de novembro de 1891, ambos retirados de Peixoto (1939).

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Nosso primeiro contato com os estudos sobre a palavra cidadão e outras de mesma raiz morfológica se deu por meio dos trabalhos de Oliveira (2006), que investigou o percurso da palavra cidadania como entrada nos dicionários de língua portuguesa, mostrando que, embora essa palavra venha do francês (citoyenneté) e que seu sentido derive de uma mudança de sentido político de cidadão registrada no final do século XIX semelhante à que acontece na França revolucionária do século XVIII com as equivalentes citoyen/citoyenneté, o percurso de cidadão e cidadania nos dicionários brasileiros do século XX é diferente do percurso lexicográfico das palavras equivalentes francesas. Como afirma Oliveira (2012, p.106):

A palavra cidadão, derivada do latim, sofre uma mudança de sentido na modernidade a partir da relação com o seu equivalente por tradução no francês – citoyen, o qual, com a Revolução Francesa e o processo de instauração do regime republicano, deixa de significar aquele que tem privilégios na cidade (sentido este que tem sua origem na Antiguidade Clássica), e passa a significar todo indivíduo na relação com o Estado, pela igualdade de direitos e deveres.

Cidadania surge deste novo sentido político de cidadão, instaurado pela relação

com citoyen e suas transformações na Revolução Francesa, que deram origem à citoyenneté. Ainda segundo Oliveira (ibidem), nos dicionários brasileiros de língua portuguesa, desde o primeiro, de 1938, e ao longo do século XX,

no verbete cidadão, há uma diluição do sentido político nos discursos jurídico e urbano, em acepções como “habitante da cidade” e “indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado”; j| no verbete cidadania não há sequer uma definição própria, mas um reenvio a cidadão por acepções como “estado de cidad~o” ou “qualidade de cidad~o”. É nos dois dicionários publicados no século XXI – o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001) e o Dicionário de Usos do Português (2002), que começamos a ter definições próprias no verbete cidadania. Elas vêm acompanhadas de alterações no verbete cidadão.

O percurso da autora mostra também que, se a instauração da República trouxe uma nova acepção política para a palavra, esta acepção permaneceu quase inalterada nos dicionários brasileiros, o que indica um trabalho enunciativo pequeno sobre a palavra ao longo de todo um século de República no Brasil. O primeiro momento deste percurso – a derivação de cidadania a partir do novo sentido político de cidadão – permite estabelecer um diálogo com o que historiadores já nos indicaram para a cidadania não enquanto palavra, mas enquanto fato político que a palavra designa. Segundo Hobsbawm (1996), “A França forneceu o vocabul|rio e os temas da política liberal e radical democr|tica para a maior parte do mundo” (1996, p.07). A Revoluç~o Francesa trouxe também a ideia de que o republicanismo é uma força de massa, ou seja, do povo, da Naç~o, e de que o Estado Nacional precisa ser “centralizado, forte e unificado” (HOBSBAWM, 1996, p.40), o que lhe permite afirmar que a Revoluç~o

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Francesa tenha “praticamente criado os termos ‘naç~o’ e patriotismo’ em seus sentidos modernos” (p.40).

O que o percurso das palavras cidadão e cidadania nos dicionários leva a questionar é em que medida a República brasileira se configurou de fato como uma “força de massa”. Quanto ao Estado, ele se tornou “centralizado, forte e unificado” {s custas de longos períodos ditatoriais, o que certamente teve impacto sobre a prática política republicana no Brasil, seja por parte dos cidadãos, seja por parte dos governos. Podemos supor, portanto, que a nação e o patriotismo tenham se construído diferentemente da França revolucionária. Carvalho (2003) faz uma afirmação contundente sobre a cidadania na República brasileira: diferentes conjunturas sociais, políticas e econômicas não permitiram a formação de cidadãos brasileiros nem o afloramento da cidadania, pois o sentido de que todos são iguais perante a lei e a implementação dos valores de liberdade e direitos individuais praticamente não existiram nem se efetivaram.

Para compreender os caminhos de cidadão, nos perguntamos, ao longo de nosso trabalho, qual o lugar dessa palavra, tão importante na Revolução Francesa e no pensamento republicano moderno, na enunciação dos dois primeiros presidentes da República brasileira. Estas perguntas ganham força em uma conjuntura em que, de um lado, há uma filiação a sentidos produzidos na França Revolucionária, atestados nos dicionários, como expusemos acima; por outro, há uma aparente estagnação nos sentidos da palavra em um longo período (o século XX).

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Esse estudo está ancorado na Semântica do Acontecimento. Inscrita em uma

posição materialista sobre a linguagem, esta teoria não toma a linguagem como transparente, pois entende que as relações estabelecidas com o real, com o que está para ser significado pela linguagem, são sempre históricas. Trata-se de uma semântica que “considera que a análise do sentido da linguagem deve localizar-se no estudo da enunciaç~o, do acontecimento do dizer” (GUIMARÃES, 2002, p.7). Entende-se que uma palavra, enquanto forma da língua, significa na relação dialética entre uma memória de enunciações passadas e o presente do acontecimento, produzindo uma latência de futuro. O acontecimento produz a cada vez uma nova temporalidade:

um presente que abre em si uma latência de futuro (uma futuridade), sem a qual nada é significado, pois sem ela (a latência de futuro) nada há aí de projeção, de interpretável. O acontecimento tem como seu um depois incontornável, e próprio do dizer. Todo acontecimento de linguagem significa porque projeta em si mesmo um futuro. Por outro lado este presente e futuro próprios do acontecimento funcionam por um passado que os faz significar. Ou seja, essa latência de futuro, que, no acontecimento, projeta sentido, significa porque o acontecimento recorta um passado como memor|vel” (GUIMARÃES, 2002, p.12).

É neste jogo entre presente, passado e futuro que se configura a designação de uma palavra no acontecimento enunciativo. A designação é entendida como a

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“significaç~o de um nome, mas n~o enquanto algo abstrato”, mas enquanto uma relaç~o linguística tomada na história (GUIMARÃES, 2002, p.9). Segundo Guimarães (2002, p. 10), “(...) a linguagem significa o mundo de tal modo que identifica os seres em virtude de significá-los” (2002, p.10). A operaç~o de referência produz uma identificaç~o do objeto de discurso no real das coisas e/ou das ideias, pela relação entre a palavra e as predicações/determinações que recebe no enunciado em que se inscreve, como parte de um texto. Não se trata, portanto, da atribuição de um sentido fixo ou único à palavra cidadão e suas determinações, mas sim “da compreensão do modo como o presente do acontecimento trabalha sobre a latência da significação da palavra, repetindo e/ou deslocando sentidos, e de que modo” isso se d| ao longo do corpus que aqui analisamos (OLIVEIRA, 2012, p.110). É preciso, então, observar as operações de textualidade em torno da palavra, e as cenas enunciativas configuradas a partir destas operações.

Uma cena enunciativa “se caracteriza por constituir modos específicos de acesso { palavra dadas as relações entre as figuras da enunciação e as formas linguísticas” (GUIMARÃES, 2002, p.23). Desse modo, é a cena enunciativa que distribui os lugares de enunciação no acontecimento, configurando assim o agenciamento das figuras da enunciação. As figuras da enunciação são o Locutor (L), o locutor-x (l-x) e os enunciadores (Es). O Locutor é aquele que é responsabilizado pelo dizer, aquele ao qual se atribui uma “assinatura” pelo dizer. Segundo Guimar~es (2002, p.24), “para se estar no lugar de L é necessário estar afetado pelos lugares sociais autorizados a falar” (p.24), ou seja, é necessário estar predicado por um lugar social. A este lugar social do locutor Guimarães chama de locutor-x, “onde o locutor (com minúscula) sempre vem predicado por um lugar social que a variável x representa (presidente, governador, etc)” (p.24). Nossos Locutores (Deodoro e Floriano), nas cenas enunciativas que analisamos, são autorizados a falar como presidentes; contudo, há uma nuance que os afeta, uma vez que assumem, ora o lugar social de chefe do governo provisório, no caso de Deodoro, ora o lugar social de funcionário substitutivo, no caso de Floriano. De todo modo, é do lugar de chefes de Estado que eles enunciam. Os enunciadores (individual, genérico, coletivo e universal) são lugares de dizer que se apresentam como representações - independentes ou fora da história – “da inexistência dos lugares sociais de locutor” (GUIMARÃES, 2002, p.26). O modo como se configura na enunciação o lugar de dizer projeta sentidos sobre a relação locutor-alocutário e esta predicação do “eu” e do “tu” incide sobre as formas linguísticas (em nosso caso, a que tomamos como objeto, a palavra cidadão), que vão sendo predicadas/determinadas nos textos em que se inscrevem. Essas determinações podem ser observadas nos movimentos textuais de reescritura(ção) (retomada) e articulação (contiguidade).

A reescrituraç~o, conforme Guimar~es (2007, p. 84), “é o procedimento pelo qual a enunciação de um texto rediz insistentemente o que já foi dito fazendo interpretar uma forma como diferente de si”. Por sua vez, a articulaç~o s~o relações de contiguidade local que, não redizendo, afetam as expressões linguísticas no interior dos enunciados ou na relação entre eles (ibidem). Eles funcionam segundo o princípio de deriva dos sentidos que constitui a unidade de um texto. A observação dos procedimentos textuais de reescritura e articulação, em nossa análise, permitiu observar as predicações e determinações semânticas diretas e indiretas da palavra cidadão nos discursos presidenciais. Segundo Guimar~es (2002), “n~o h| texto sem o processo de deriva de sentidos, sem reescrituraç~o” (2002, p.28). Essa deriva ocorre exatamente nos pontos em que se estabelecem identificações de semelhanças e de correspondências. Nesse

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sentido, as predicações de uma forma linguística (cidadão, no nosso caso), seja nos procedimentos de reescritura ou de articulação, realizadas sob uma aparência de neutralidade, mostram-se como pontos de deriva, de movimento dos sentidos. Esses dois movimentos sobre as palavras que se colocam como objetos de discurso de um texto permitem compreendê-lo como unidade complexa de significação, integrada por enunciados (GUIMARÃES, 2011, p.19). O efeito de unidade próprio da textualização é tomado na relação com a deriva de sentidos a partir da qual se constitui. Não se trata, ao buscar compreender a designação da palavra cidadão em um conjunto de textos, de uma busca pela decodificaç~o da palavra ou do texto; ao contr|rio, consideramos “o funcionamento da linguagem pensando nas condições em que os acontecimentos enunciativos se produzem” (ibidem, p.45).

Interessou-nos particularmente para este trabalho o artigo de Guimarães (2007) sobre o conceito de Domínio Semântico de Determinação (DSD), procedimento que nos é fundamental para as análises do corpus, uma vez que representa os sentidos das palavras em virtude da relação de uma palavra com a outra, no texto em que se insere. Importa para nós a concepção de Guimarães de que é o processo enunciativo que constrói essas determinações para as expressões linguísticas. Tais determinações são instáveis, embora funcionem sob o efeito da estabilidade. Assim, as palavras significam pelas relações de determinação semântica, constituídas pelo acontecimento enunciativo. As relações entre as palavras são escritas no DSD por meio de alguns sinais específicos, determinados por Guimar~es (2007): “├ ou ┤ou ┬ ou ┴ (que significam determina); — que significa sinonímia; e um traço como _______, dividindo um domínio, significa antonímia” (p.81). Na designação da palavra, assumindo que a linguagem funciona na tensão entre paráfrase e polissemia, serão investigados os movimentos parafrásticos e polissêmicos de cidadão na especificidade dos dois locutores-presidentes escolhidos, ou seja, buscando entender sua especificidade em relação à memória discursiva ligada à República tal como ela se configura na modernidade a partir da Revolução Francesa. Segundo Orlandi (2007), a memória discursiva é o interdiscurso, “aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente” (p.31). Segundo a autora, a memória discursiva é um saber que possibilita dizeres e que retorna como um já-dito que é base do que pode ser dito, do dizível, de modo a sustentar a tomada da palavra. Os processos parafrásticos, por sua vez, “s~o aqueles pelos quais em todo dizer h| sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória”, representando assim “o retorno aos mesmos espaços do dizer” em diferentes formulações de um dizer estabilizado, sedimentado. “Ao passo que, na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significaç~o”, de modo a lidar com o equívoco, com o movimento dos sentidos (ibidem, p.36).

Investigamos, neste trabalho, a especificidade de cidadão na enunciação dos presidentes analisados em relação aos dizeres possíveis e à filiação dos sentidos constituídos sobre a República Ocidental a partir da Revolução Francesa, bem como às outras redes de memória que se entrecruzam na enunciação da palavra. A análise das relações parafrásticas e polissêmicas estabelecidas sobre a palavra cidadão nos procedimentos de reescritura e articulação textuais permitiu, tendo em conta o conceito de político de Guimarães (2002), responder de que modo, por meio da enunciação de cidadão e de suas determinações, se afirma a relação entre governante e governados, e o pertencimento do governo que se inicia ao regime republicano, bem como de que modo se inclui, na enunciação do Estado, uma relação cidadão-República.

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Oliveira (2012) analisa os discursos de posse dos presidentes da Primeira República brasileira, com o objetivo de compreender as especificidades semânticas de cidadão(s)/concidadãos. Segundo a autora, os discursos de posse “anunciam um programa de governo e inauguram um modo de referência do novo governante aos seus governados. As palavras presentes no seu acontecimento enunciativo têm a força de projetar um futuro de interpretações sobre o governo que se inicia” (ibid., p.107-108). Oliveira levanta a hipótese de que a instabilidade de cidadão e de seus derivados é uma característica do modo como essas palavras se constituem no regime republicano brasileiro. Ela nega, no entanto, que esta instabilidade se deva apenas aos períodos de ditadura que vivemos no século XX, mas que se constitua também nas enunciações dos períodos democr|ticos, o que a autora associa “{ falta de um projeto republicano de Estado e de mecanismos que garantissem sua manutenção a despeito das mudanças de governo” (OLIVEIRA, 2012, p.127). A partir da hipótese levantada por Oliveira, investigamos as particularidades dos sentidos de cidadão(s) nas enunciações presidenciais de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, em sua instabilidade e, talvez, em pontos de estabilidade. Ao lançar luz sobre suas significações específicas, nas enunciações dos dois primeiros presidentes da República do Brasil, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, nossa análise, esperamos, permitirá aprofundar a análise da autora em relação a este primeiro momento da República no Brasil. 3. ANÁLISES E RESULTADOS

Os procedimentos textuais de reescritura (retomada) e articulação (contiguidade) servirão para observar as predicações/determinações semânticas diretas e indiretas da palavra cidadão nos discursos presidenciais que compõem o corpus. As predicações diretas são aquelas que incidem diretamente sobre cidadão, e as indiretas são aquelas que, ao predicarem palavras que predicam cidadão, a predicam por intermediação. Uma dessas palavras que predicam cidadão é República, já que cidadão identifica o sujeito republicano em sua relação com o Estado. Outra predicação indireta é a que incide sobre concidadãos ou outras palavras não cognatas que reescriturem cidadão(s). Procuramos observar também o modo como o locutor-presidente se significa e significa seus destinatários, além de terceiros a quem se refere, buscando compreender quem se inclui na identificação pelo nome cidadão. 3.1. DISCURSO DO MARECHAL DEODORO DA FONSECA - A PROCLAMAÇÃO DO GOVERNO PROVISÓRIO EM 16 DE NOVEMBRO DE 1889. IN: PEIXOTO, 1939.

Concidadãos – O povo, o exército e a armada nacional, em perfeita comunhão de sentimentos com os nossos concidadãos residentes nas províncias, acabam de decretar a deposição da dinastia imperial e conseqüentemente a extinção do sistema monárquico representativo. Como resultado imediato desta revolução nacional, de caráter essencialmente patriótico, acaba de ser instituído um governo provisório, cuja principal missão é garantir, com a ordem pública, a liberdade e os direitos dos cidadãos. Para comporem esse governo, enquanto a nação soberana, pelos seus

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órgãos competentes, não proceder à escolha do governo definitivo, foram nomeados pelo chefe do poder executivo da nação os cidadãos abaixo assinados. Concidadãos – O governo provisório, simples agente temporário da soberania nacional, é o governo da paz, da liberdade, da fraternidade e da ordem. No uso das atribuições e faculdades extraordinárias de que se acha investido para a defesa da integridade da pátria e da ordem pública, o governo provisório, por todos os meios a seu alcance, permite e garante a todos os habitantes do Brasil, nacionais e estrangeiros, a segurança da vida e da propriedade, o respeito aos direitos individuais e políticos, salvas, quanto a estes, as limitações exigidas pelo bem da pátria e pela legitima defesa do governo proclamado pelo povo, pelo exercito, pela armada nacional. (...)Concidadãos – O governo provisório reconhece e acata todos os compromissos nacionais contraídos durante o regime anterior, os tratados subsistentes com as potencias estrangeiras, a dívida pública externa e interna, os contratos vigentes e mais obrigações legalmente estatuídas. Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, chefe do governo provisório.

No discurso da Proclamação, há apenas duas ocorrências de cidadão (missão do

governo provisório de garantir o direito dos cidadãos, e os cidadãos abaixo assinados, escolhidos por Deodoro para compor o governo), o que indica, de saída, que esta unidade lexical está em concorrência com outras palavras, cognatas (como concidadãos) e também não cognatas (como habitantes do Brasil). Deodoro inicia a Proclamação do Governo Provisório chamando seus interlocutores de concidadãos, vocativo que é repetido diversas vezes em todo o discurso. A palavra cidadão(s) está presente no discurso e tem a seu lado a palavra concidadãos, que aparece sempre no plural. As duas palavras têm funcionamentos similares, mas não equivalentes. Dessa maneira, há uma nuance de sentido entre elas. Guimarães (2011) estabelece que, neste discurso de Deodoro, entre essas duas palavras (cidadão e concidadãos) se dá uma relação de sinonímia. Por meio de nossas análises, entendemos que cidadãos/concidadãos têm um duplo funcionamento: referem o todo da nação, significando-o de modo homogêneo, ou especificam indivíduos/grupos distintos da sociedade, dividindo os sujeitos na sua relação com o Estado. Neste duplo funcionamento, observamos uma direção mais forte em cada uma dessas palavras: concidadãos refere prioritariamente o conjunto da nação e cidadão(s) refere prioritariamente indivíduos ou grupos da nação. O sentido de cidadãos aponta para uma divisão, na medida em que a expressão direitos dos cidadãos estabelece uma divisão entre o cidadão e o próprio Estado, cuja missão é garantir-lhe direitos, e, nesse sentido, como garantidor, difere-se de seus garantidos. Já a expressão os cidadãos abaixo assinados aponta para uma divisão dos segmentos sociais, uma vez que há apenas alguns escolhidos para compor o governo. Nesse sentido, cidadão entra produzindo um sentido de divisão, pela hierarquia estabelecida entre os sujeitos e o governo, e de desigualdade, no qual se incluem e pertencem apenas os setores determinados (os abaixo assinados). Por sua vez, concidadãos, palavra concorrente e cognata, repetida diversas vezes como vocativo, funciona como uma marca formal que faz ecoar a nova forma de governo: a República. O efeito de sentido produzido por

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concidadãos é o de aproximação do governo e de seus governados. Contudo, tal aproximação se desfaz pelas divisões de cidadão(s)/concidadãos e, nesse sentido, concidadãos também não equivale à nação como um todo, mas trabalha na contradição entre o todo e suas divisões. O DSD abaixo ilustra as divisões na designação de cidadãos/concidadãos:

povo, exército, armada nacional ┴ Habitantes do Brasil ┤ CONCIDADÃOS — CIDADÃOS├ cidadãos abaixo assinados ┬ concidadãos residentes nas províncias Ao convocar seus interlocutores, chamando-os de concidadãos, Deodoro desliza

do lugar social de mandatário da nação para o lugar social de (con)cidadão, significando-se como igual a todos, como parte do todo da Nação, de modo que tal relação apresenta-se como inquestionável. Nesse sentido, trata-se de um enunciador-universal, na medida em que fala do lugar da verdade. A repetição do vocativo concidadãos produz um efeito de identificação do locutor e do alocutário com o lugar social de cidadão, o que é tido como universalmente válido (cf. GUIMARÃES, 2011). Tal deslizamento entre o lugar social de presidente e o de concidadão instaura um efeito de evidência contraditório, na medida em que há um presidente que é diferente de seu interlocutor, pois está predicado pelo lugar social de chefe do governo provisório, mas que, ao mesmo tempo, apresenta-se como igual a ele, isto é, ocupando o mesmo lugar social que ele.

O vocativo concidadãos, predicação indireta de cidadão é reescriturado por povo, exército e armada nacional, de modo que o locutor-presidente se destaca como mandatário, mas como exército e armada nacional, distintos do povo. Concidadãos, desse modo, significa por uma polissemia inscrita na palavra que funciona na enunciação, isto é, no discurso de proclamação de Deodoro. No entanto, há um efeito de evidência do étimo: “aqueles que s~o cidad~os como eu” que, no caso do vocativo, torna-se “vocês que são cidad~os como eu”. Os sentidos de concidadãos deslizam, seja para incluir uma coletividade dividida, seja para instituir uma dissimetria. Assim, não há homogeneidade senão como efeito. Há sempre divisões e diferenças que repartem de modo heterogêneo a palavra e seus referentes, que ora são tomados como parte de um todo, ora como pertencentes a grupos diferentes. Outra marca desta divisão, desta vez entre governante e governados, é a auto-denominação de Deodoro, enquanto locutor-presidente, como chefe do poder executivo/chefe do governo provisório, e como tal já não é mais parte do exército ou da armada nacional, mas mandatário do país.

As predicações de cidadão e de concidadãos discutidas acima mostram a relação estreita entre essas duas palavras, que apresentam entre si uma nuance de sentido. No início do governo republicano, há um foco maior nessas palavras republicanas, o que parece indicar que elas se prestam a produzir uma identificação com a memória republicana moderna, pela necessidade de instaurar e afirmar a República no Brasil.

Cidadão também é predicado indiretamente pela palavra República, na medida em que, como dissemos anteriormente, cidadão identifica o sujeito republicano em sua relação com o Estado. No entanto, como afirma Guimarães (2011) sobre o discurso da Proclamação, apesar de o discurso de Deodoro instituir a República no Brasil, a palavra república não aparece nem uma vez. Nesse sentido, entendemos que esta palavra

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significa sob o modo do implícito na expressão nominal revolução nacional. A observação das predicações de cidadão(s) e indiretas (sobre concidadãos e revolução) dá visibilidade a um processo político em que se afirma um rompimento com o passado, mas não se explicita nominalmente o presente. Nessa direção, os sentidos dessa revolução nacional, que seria o acontecimento instaurador da República, de um novo regime, apontam, contraditoriamente, para a continuidade.

Há um aspecto a ser mencionado de saída: o texto conhecido como a “Proclamaç~o da República”, se n~o traz a palavra república, não traz tampouco a palavra proclamação; há apenas uma única aparição da cognata proclamado. O verbo, no particípio passado, produz um efeito de estabilidade e de passado sobre o fato da proclamação. A proclamação não se dá como presente do dizer, mas como um passado no presente anunciado. Vejamos o DSD de República.

agente temporário da soberania nacional

┴ garantidor do bem da p|tria ┤ Governo Provisório ├ acatador de todos os compromissos e da defesa do governo nacionais do regime anterior ┴ (REPÚBLICA) ┬

revolução nacional — deposição da dinastia imperial e extinção do sistema monárquico representativo

No DSD acima de República, notamos que um movimento de continuidade

atravessa os seus sentidos. A revolução nacional é predicada por elementos que indicam o passado, a continuidade de um processo político, não uma mudança. Não há determinações sobre ela que explicitem um futuro de mudança, o que é contraditório em relação às acepções lexicográficas da palavra revolução, em que encontramos determinações como transformação, mudança, alteração brusca e significativa, sublevação, rebelião, movimento de revolta (HOUAISS, 2010).

Pelas determinações de governo provisório no DSD acima, o governo é acatador de compromissos e garantidor do bem da pátria e da defesa do governo, o que apaga o sentido de conflito presente na palavra revolução e institui uma hierarquia e, portanto, uma desigualdade, entre o governo e os cidadãos, pois o garantidor difere-se constitutivamente daqueles que por ele deverão ser garantidos e que anteriormente foram postos como seus iguais. Há também uma contradição entre revolução nacional e a garantia da ordem pública pelo Governo Provisório, na medida em que a ordem pública representa a ausência de revoltas manifestadas publicamente, o que se opõe aos sentidos de revolta e sublevação, latentes na acepção de revolução, presente nos dicionários. As únicas mudanças apontadas no discurso da Proclamação da República estão todas dentro da construção legal do Estado, como a abolição da vitaliciedade do senado, que pressupõe eleições, e a dissolução da câmara dos deputados.

No discurso de Proclamação, Deodoro refere o Governo Provisório como um agente temporário da soberania nacional, afirmando que, naquele momento, a nação soberana seria governada por aqueles escolhidos pelo chefe do poder executivo,

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enquanto aguardava pela escolha de um governo definitivo No entanto, pela observação do DSD, temos determinações cujos sentidos são marcados pelo viés da continuidade, contrárias aos sentidos de soberania, uma vez que o Governo Provisório tem como determinação ser o acatador de “todos os compromissos nacionais contraídos durante o regime anterior, os tratados subsistentes com as potências estrangeiras, a dívida pública externa e interna, os contratos vigentes e mais obrigações legalmente estatuídas”, ou seja, ainda submisso ao regime anterior e às dívidas e tratados impostos pelos países estrangeiros; desse modo, não comprometido com transformações políticas para um novo regime, o republicanismo.

Nesse sentido, a predicação indireta de cidadão pelo implícito de República mostra, por um lado, que não há uma afirmação explícita da república, uma vez que a palavra República não é dita. Ela não caracteriza uma nova relação política e democrática entre o Estado Republicano e seus cidadãos, mas sim a manutenção de estruturas. Tal entendimento se confirma quando observamos que a expressão concorrente e não cognata habitantes do Brasil predica indiretamente cidadãos. Essa predicação indireta é afetada por uma fluidez de sentidos, na medida em que refere ao todo, à coletividade, mas sua significação diz respeito apenas ao espaço territorial e não à relação dos sujeitos com o Estado. Ela mostra que cidadão(s)/concidadãos não são palavras de ordem, ou tampouco signos de uma nova prática política reivindicada ou posta, mas palavras que vêm de outro lugar, de uma memória republicana ocidental, para produzir uma identificação com os movimentos políticos dos Estados modernos. 3.3. DISCURSO DE POSSE DE FLORIANO PEIXOTO – 23 DE NOVEMBRO DE 1891. IN: PEIXOTO, 1939, P. 36-41.

Ao País: (..) A armada, grande parte do exercito e cidadãos de diversas classes promoveram pelas armas o restabelecimento da Constituição e das leis suspensas pelo decreto de 3 deste mês, que dissolveu o Congresso Nacional. A historia registrará esse feito cívico das classes armadas do País em prol da lei ,que não pode ser substituída pela força; mas ela registrará igualmente o ato de abnegação e patriotismo do generalíssimo Manoel Deodoro da Fonseca resignando o poder afim de poupar a luta entre irmãos, o derramamento do sangue de brasileiros, o choque entre os seus companheiros de armas, fatores gloriosos do imortal movimento de 15 de novembro, destinados a defender, unidos, a honra nacional e a integridade da pátria contra o estrangeiro e a defender e garantir a ordem e as instituições republicanas no interior do País. Esses acontecimentos que não têm muitos modelos nos anais da humanidade e dos quais podemos nos gloriar, como justamente nos gloriamos das duas revoluções pacificas que operaram pela Republica a transformação de todo nosso direito político e pela abolição do elemento servil, a transformação do trabalho nacional atestarão aos vindouros o amor do povo, da marinha e do exercito pelas liberdades constitucionais, que formam e enobrecem a vida das nações

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modernas. (..) No governo do Estado, que foi-me conferido pela Constituição, confio da retidão de sua consciência para promover o bem da pátria. Da confiança do povo, do exercito e da marinha espero não desmerecer. Das forças de terra e mar conheço o valor realçado pela disciplina e pelo respeito aos direitos da sociedade civil. Admirei e admiro os meus bons companheiros na guerra e na paz. A coragem e a constância que mostraram nos combates se transformaram nos anos de paz, que temos fruído, no amor da Liberdade e da Republica, que com o povo fundaram e com ele querem manter e consolidar. O povo que sabe e quer ser livre, deve igualmente respeitar a ordem, primeira condição da Liberdade e da riqueza. Na grandiosa oficina em que se trabalha no progresso da pátria não há vencidos nem vencedores, grandes ou pequenos. São todos operários de uma obra comum. A essa obra dedicarei todo o meu esforço, para esse trabalho peço e espero o concurso de todos os brasileiros. São estes os intuitos que me dominam, e que julguei dever expor ao País. Capital Federal, 23 de novembro de 1891. Floriano Peixoto

Floriano Peixoto assume o governo na condição da renúncia de Deodoro segundo

os termos constitucionais. Segundo Penna (1999), Floriano assume em um momento crítico, em que o regime republicano ainda estava ameaçado e instável. Nas palavras do historiador:

Floriano Peixoto foi simultaneamente a vítima e o responsável pela sucessão crítica por que passou o regime republicano em seus primeiros momentos. Vítima em razão de ter herdado uma situação extremamente delicada e de diferente equacionamento, responsável em virtude de ter agido na direção do confronto com aqueles que se opuseram ao seu governo. Assumindo na contramão de uma legalidade reclamada por certos intérpretes da Constituição, promulgada em fevereiro de 1891, Floriano tornou-se um símbolo da defesa da legalidade republicana. (PENNA, 1999, p.37-38)

Em seu discurso de posse, Floriano Peixoto apresenta seus primeiros intuitos que

o inspirariam em sua administração pública. O presidente traz propostas de governo, referentes, principalmente, à economia e à administração da fazenda pública. Além disso, ele pede o apoio do povo, do exército e da marinha para promover o bem da pátria. A divisão do todo nesses três setores mostra, de saída, que há uma divisão na sociedade, o que afeta os sentidos da palavra que aqui temos por especificidade analisar. Neste discurso, há apenas uma ocorrência da palavra cidadãos, no seguinte trecho:

A armada, grande parte do exercito e cidadãos de diversas classes promoveram pelas armas o restabelecimento da Constituição e das leis suspensas pelo decreto de 3 deste mês, que dissolveu o Congresso Nacional. (grifo nosso)

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No trecho acima, cidadãos parece apontar, como nos discursos de Deodoro, para a

divisão, pois além de estar predicado pela estratificação das classes sociais, a palavra funciona ao lado da expressão grande parte do exército e da armada, o que distingue civis e militares, predicando cidadãos como civis. É essa divisão entre os cidadãos (civis) segmentados em classes, o exército e a armada que Floriano aponta como responsável pelo feito cívico de restabelecer a Constituição, reescriturando as expressões nominais por classes armadas do País em prol da lei. Nas palavras de Floriano, notamos uma ênfase na militarização do Estado que, no limite, representa um embate com a própria República, o que se dá, contraditoriamente, em uma tentativa de defendê-la. Cidadãos aqui aparece predicada pela expressão diversas classes, que estão armadas, também por oposição a militares na divisão, mas por junção a eles pelas armas.

Nas palavras de Floriano, a renúncia de Deodoro foi uma medida que poupou a luta entre irmãos, expressão que é reescrita por o derramamento do sangue de brasileiros e por o choque entre os seus companheiros de armas. Nesse sentido, a palavra República significa, pelo viés do conflito, como um processo penoso e litigioso – o que difere da forma como o processo de instauração da República significava no discurso de Proclamação, isto é, como um processo pacífico, em perfeita comunhão de sentimentos, em que não se explicita a mudança. Ocorre ainda, por essas reescriturações, uma aproximação entre o Locutor e seus alocutários, de modo que o lugar social de presidente desliza para o lugar do coletivo, de um todos diluído, em que os brasileiros são predicados, ao mesmo tempo, como irmãos e companheiros daquele que é o chefe de Estado. Em razão de se tratar de um Locutor que assume o lugar social de um locutor-presidente, a figura do enunciador que aí fala é de um enunciador-coletivo, uma vez que representa a coletividade dos irmãos em armas. Os cidadãos, predicados indiretamente por brasileiros, significam por um viés sentimental, de irmandade e família, pois são irmãos e companheiros do chefe de Estado, do governante.

A palavra República aparece no discurso de posse de Floriano, mas não acompanhada de cidadãos/concidadãos, nem de cidadania. Há apenas duas ocorrências de República, no entanto, elas surgem para afirmar e para dizer que aquele regime se trata ainda de uma República, apesar da instabilidade e das ameaças. Não há democracia associada ao republicanismo, uma vez que a palavra República significa como uma revolução pacífica que atestou o amor do povo, da marinha e do exército. Há, desse modo, não uma relação política entre o Estado Republicano e seus cidadãos, mas sim uma relação sentimental, quase de devoção, que significa os sujeitos na sua identidade nacional forjada no patriotismo e no sentimento, no afeto pela pátria, pelo Estado, e que contradiz todo o conflito posto anteriormente.

República predica indiretamente cidadão e apresenta seus sentidos instabilizados por uma predicação que indica uma instabilidade referencial que encaminha para dois sentidos recorrentes: a República está em construção e precisa ser defendida. Nesse sentido, os cidadãos são predicados pela expressão operários de uma obra comum, cuja obra é trabalhar pelo de progresso da pátria. Há um processo de afirmação da necessidade de estabilização do regime do qual não participa a enunciação de cidadão(s) e concidadãos, palavras-símbolos da República Ocidental Moderna. Observamos apenas uma ocorrência de cidadãos, como afirmamos acima, e nenhuma, nesse discurso de posse, de concidadãos. Estas duas palavras estão em concorrência com outras, não cognatas, como país (“cumpre-me expor ao País”, “garantir a ordem e as instituições

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republicanas no interior do País”), brasileiros (“o derramamento do sangue de brasileiros”, “peço e espero o concurso de todos os brasileiros”), nação (“recursos econômicos da naç~o”), povo (“o amor do povo, da marinha e do exército pelas liberdades constitucionais”, “da confiança do povo, do exército, e da marinha espero n~o desmerecer”, “no amor da Liberdade e da República, que com o povo fundaram”, “O povo que sabe e quer ser livre”), pátria (“integridade da p|tria”, “promover o bem da p|tria”, “progresso da p|tria”), n~o sendo t~o mobilizadas e, por isso, tendo seu valor como signos republicanos esvaziado. O DSD abaixo ilustra nossas análises:

classes armadas do país em prol da lei ┴ operários de uma obra em comum ┤ CIDADÃOS ├ diversas classes

_________________________________________ a armada e grande parte do exército

As palavras concorrentes apresentadas acima (brasileiros, nação, pátria)

sustentam o dizer do presidente em um discurso patriótico, em detrimento de um discurso revolucionário republicano; são os sentidos da República em construção que se colocam no texto. A esfera do conflito se sobressai, os cidadãos estão armados; contudo, tal mobilização do sujeito republicano, exposta no dizer de Floriano, visa à aplicação da Lei, o restabelecimento da Constituição, o que não implica em si uma revolução, mas sim aponta para a defesa do regime republicano. Ao mesmo tempo, os cidadãos significam como aqueles que estabelecem uma relação de irmandade com o Estado, contrariando o sentido do conflito armado e, assim, produzindo sentidos de pacifismo. Os sentidos da palavra cidadãos são instabilizados por uma relação cuja prioridade é um patriotismo que não se constrói fundado na participação da coletividade na construção do país e da República que esteja além da tomada pontual das armas. A participação dos cidadãos significa pela divisão, no caso entre civis e militares e entre classes sociais, e está fundada no sentimentalismo e no amor, evocados senão dos próprios cidadãos, como se fossem gerados espontaneamente pelo fato de serem brasileiros. Desse modo, as unidades lexicais concorrentes a cidadãos e concidadãos constituem antes uma identidade nacional do que uma relação política com o Estado Republicano; além disso, elas apagam o sentido político da relação dos sujeitos com o Estado em nome de uma relação sentimental sem ancoragem histórica.

4. CONCLUSÕES As análises sobre a designação da palavra cidadão e suas concorrentes cognatas e

não cognatas que desenvolvemos neste trabalho mostraram que tais unidades lexicais entram produzindo sentidos, por um lado, de desigualdade e divisão, incluindo não o todo da nação, mas sim setores e classes determinadas; por outro lado, de um sentimentalismo patriótico de exaltação do regime e da Pátria que não está ancorado em uma participação efetiva da coletividade nos rumos do país, mas sim em um sentimento de amor que parece legitimar-se simplesmente no fato de o sujeito ser brasileiro. Desse modo, parece não haver uma reivindicação do modo de participação dos sujeitos republicanos na sua relação política com o Estado.

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Em relação aos movimentos de paráfrase e polissemia (ORLANDI, 2007), podemos cotejar os resultados de nossas análises na designação de cidadão entre as enunciações dos dois presidentes. Nos dizeres dos chefes de Estado aqui analisados, há sentidos que se mantêm e se estabilizam, produzindo, pela paráfrase, uma memória, o dizível. Tanto nos discursos de Deodoro quanto nos de Floriano, cidadão refere a indivíduos ou grupos/classes sociais da nação, apontando para uma divisão hierárquica que se dá entre o cidadão e o Estado e, ao mesmo tempo, entre os próprios cidadãos, divididos em categorias distintas, nas quais se incluem e pertencem, como vimos, apenas setores e segmentos sociais determinados. Cidadãos e sua concorrente cognata concidadãos aparecem predominantemente no plural e funcionam, nos dizeres dos dois presidentes, estabilizando os sentidos, como marcas formais que fazem ecoar, que dizem e afirmam a República como uma nova forma de governo para, de algum modo, aproximar o governo de seus governados, uma vez que carregam uma memória republicana ocidental. Tais palavras, no entanto, não significam como a reivindicação de uma nova prática política em que o povo participa coletivamente no regime republicano, mas sim como um discurso patriótico sentimental, que constrói a identidade nacional pautada por sentimentos individuais e ligada a um imaginário de pátria. O nacionalismo patriótico é assim reforçado pelo emprego de palavras concorrentes não cognatas, como nação, pátria, brasileiros, irmãos, que entram produzindo os sentidos de amor à Pátria, bem como de irmandade e de adoração ao regime e ao governo.

Pelo movimento de polissemia, que produz deslocamentos e rupturas no processo de significação, notamos que, nos discursos de Deodoro e de Floriano, a palavra República significa pelo equívoco. No dizer de Deodoro, a instauração do regime republicano é predicado como uma revolução nacional que se dá, contraditoriamente, por uma comunhão de sentimentos, ou seja, pelo viés do pacifismo. A República designa um processo político em que se afirma um rompimento com o passado, mas não se explicita nominalmente o presente; desse modo, o regime republicano aponta para a continuidade. Ao mesmo tempo, nos discursos de Floriano, vimos que a República é pautada pelos sentidos de um acontecimento liderado pelo militarismo, que reivindica seu lugar no processo de consolidação do regime. Desse modo, os sentidos se deslocam, produzindo deslizamentos, e República vai significando, pelo viés do conflito, como um embate, um processo penoso, como algo que deve ser defendido, afirmado, salvo e, assim, consolidado, pois sofre constantes ameaças e instabilidades em sua ordem interna.

Nessa tensão entre o mesmo e o diferente, entre o conflito e o pacifismo, o sujeito republicano, nos dizeres de Deodoro e de Floriano, significa como aquele que deve amar a Pátria e a República, bem como preservar a ordem pública, sem questionar as decisões e medidas do governo, o que garantiria um suposto progresso do país. O cidadão brasileiro não estabelece, portanto, uma relação política participativa e democrática com o Estado Republicano, mas sim uma relação sentimental, em que deve ser devoto de seu governo e admirador de seus líderes, mas não participante nas decisões públicas. 9. REFERÊNCIAS

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A LITERATURA ÁRABE E SEU IMPACTO NO OCIDENTE13

Peter France

ANTECEDENTES

A invasão napoleônica no Egito em 1798 pode ser considerada como o ponto de partida da literatura árabe moderna. O século XIX foi tido pela primeira vez na sua história em grande parte do Oriente Médio se mostrou exposto de maneira sistemática a uma influência em grande escala das ideias europeias e a revisão da sociedade islâmica tradicional que esta influência trouxe consigo com importantes consequências e em todos os casos nos mais diversos âmbitos da vida árabe (político, econômico, social, educativo, etc.). Junto a estas mudanças também se produziram outras de grande importância para o desenvolvimento da literatura árabe moderna, entre os quais se incluem o crescimento do novo público leitor, o nascimento de um período autóctone e o impulso de um novo estilo da prosa árabe, mais simplificada. Tanto no âmbito da poesia quanto da prosa, os autores reimplantaram as convenções da literatura árabe tradicional e, ao mesmo tempo, o aumento do número de traduções de textos ocidentais permitiu que leitores recém alfabetizados tivessem acesso a estilos literários europeus. O renascimento literário e cultural (nahda, em árabe) alcançou seu ponto culminante no último terço do século XIX e se completou de maneira efetiva na época da Primeira Guerra Mundial; Assim, a poesia teria visto florescer um vigoroso movimento “neocl|ssico”, enquanto as formas liter|rias tradicionais da prosa |rabe teriam sido praticamente substituídas pela novela ocidental, os contos e o teatro. A FICÇÃO ANTES DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

O desenvolvimento da literatura árabe moderna tardou a exercer algum impacto no Ocidente e a primeira obra que teve atenção fora do Oriente Médio foi a primeira parte da novela de Tâhâ Husain titulada Al-ayyâm (Os dias) e escrita em 1929. Trata-se de um dos trabalhos mais queridos na literatura árabe moderna, uma autobiografia escrita basicamente em terceira pessoa que narra a educação e a criação de um menino cego em uma aldeia do Alto Egito. A importância dessa obra ficou creditada quando se publicou em 1932 sua tradução inglesa, assim como sua tradução em diferentes línguas europeias. Dois novos volumes da autobiografia de Tâhâ Husain foram publicados em árabe em 1939 e 1967, respectivamente, também foram traduzidas para o inglês. A partir de um ponto de vista estilístico, Al-ayyâm é uma obra peculiar, sobre todo seu primeiro volume. Combina os paralelismos típicos da prosa árabe clássica com o estilo particular do autor, o qual plantou enormes problemas para o tradutor.

13 Texto original: FRANCE, Peter. La literatura árabe moderna y su impacto em Occidente. Disponível em http://www.libreria-mundoarabe.com/Boletines/n%BA86%20Oct.10/LiteraturaArabeModernaImpacto.htm. Artigo traduzido por Marcos dos Reis Batista.

ESTUDOS ÁRABES

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Infelizmente, as peculiaridades que proporcionam seu encanto em língua árabe de Tâhâ Husain soam em alguns idiomas ocidentais como algo simplesmente extravagante. O trabalho de Tâhâ Husain também foi o primeiro a atrair a atenção do Ocidente, algumas obras de ficção anteriores já haviam sido traduzidas para vários idiomas europeus. Hadîz ‘Îsâ ibn Hishâm (“A história de ‘Îs} ibn Hish}m”, 1892-1902) de al-Muwayli hî, representa o final de uma grande tradição, e talvez seja a última grande obra árabe escrita como uma série de maqâmât, um estilo de narrativa clássico que emprega a prosa rimada. Como tal, para o tradutor, essa apresenta problemas muito diversos em relação às obras de ficção mais modernas. Resulta de modo assombroso que somente vinte anos separam a obra de al-Muwayli hî da primeira novela árabe com um trama genuinamente contemporâneo: Zaynab (1913), de Muhammad Husayn Haykal, escrita enquanto o autor estava estudando na Europa. Entretanto, este relato sentimental de amor e de vida campesinos que reflete a nostalgia do autor pelo seu país de origem possui um certo ar antiquado.

Mais atrativas são as quatro novelas de Tawfiq al-Hakîm, todas elas autobiografias que mostram uma tendência já estabelecida na obra de 1931 de Ibrâhîm al-Mâzinî intitulada Ibrâhim al-kâtib (Ibrahim, o escritor). Desde um ponto de vista estrutural, Yawmiyyât nâ’ib fî al-aryâf (Diário de um fiscal rural) é considerada a mais importante das novelas de al-Hakîm, se destacando em virtude de algumas críticas sociais mais fortes que podemos encontrar na novela árabe anterior da década de 1950. Ao contrário, tanto ‘Awdat al-rû h (O regresso do espírito, 1933) como ‘Us fûr min al-sharq (Pássaro do leste, 1938) estão marcadas por uma falta de unidade artística que nenhum tradutor pode desfazer. Entretanto, o elemento nacionalista nas primeiras novelas lhes assegura sua constante popularidade, ao menos para o falecido presidente egípcio Nasser. Enquanto a segunda é um dos primeiros exemplos importantes de uma obra que ilustra uma série de temas relacionados com o conflito de valores entre o Oriente e o Ocidente. Esses temas, de certo modo, procedente das experiências vividas pelos árabes que estudavam no Ocidente, foram desenvolvidos mais tardes por uma série de autores, tanto egípcios como de outros lugares do mundo árabe. Entre outros exemplos, podemos mencionar a obra de 1942 intitulada Qindîl Umm Hâshim (A lâmpada de Umm Hâshim) do egípcio Yahyâ Haqqî, e Mawim al-hiyra ilâ al-shimâl (Época de migração para o norte) de 1966, escrita pelo autor sudanês al-Tayyib Salîh.

A FICÇÃO DEPOIS DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

O desenvolvimento da novela e o relato curto no mundo árabe depois da Segunda Guerra Mundial experimentaram uma sofisticação cada vez maior no que diz respeito às técnicas narrativas e a diversidade dos temas tratados, sobre um fundo político em constante evolução que a menos fica refletido nas distintas tendências literárias. Muitas dessas tendências se mostram nas obras de Nayîb Mahfûz, o escritor mais conhecido do mundo árabe e ganhador do Prêmio Nobel, do qual falaremos mais adiante. A primeira das tendências principais, o compromisso (iltizâm em árabe) teve sua origem em uma combinação de acontecimentos políticos e sociais e a obra que melhor reflete é Al-ard (A terra) de 1954 cujo autor é ‘Abd al-Ra mân al-Sharqâwî e da qual se levou a decidir que possível que seja a obra mais conhecida da moderna ficção árabe, tanto dentro quanto fora das regiões próximas ao Oriente Médio e redondezas. O livro gira em torno de certos aspectos do poder e da corrupção e emprega um tom descaradamente socialista.

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Um dos principais meios para atrair a atenção do leitor é o uso de uma língua coloquial nos diálogos, uma técnica que al-Sharqâwî desenvolve usando diversos dialetos em função do falante e que resulta quase impossível a reflexão nas traduções.

Talvez o leitor ocidental possa apreciar melhor o realismo desta fase da prosa árabe nas coleções de relatos curtos de escritores como Yûsuf Idrîs. A primeira coleção de relatos de Idrîs, Arjas layâli (As noites mais baratas) publicada em 1954 e ambientada no Cairo e no entorno rural egípcio, analisa de maneira excepcional as fraquezas da espécie humana e provocou uma grande controvérsia desde o momento de sua aparição. A obra de Yûsuf Idrîs não está marcada somente por um realismo cru, como também pelo emprego de uma linguagem absolutamente inconfundível que ao menos vai além do simples uso do dialeto egípcio nos diálogos, colocando em relevo as características do dialeto coloquial incluso às passagens narradas. Existem também boas traduções das obras de Yûsuf Idrîs, ao menos em parte, muita dessas características podem se perder.

A atmosfera do “compromisso” que dominou a literatura |rabe durante a década de 1950 começou a se perder com a chegada da década seguinte, quando o idealismo da revolução egípcia de 1952, encabeçada pelos oficiais livres, deu passo a desilusão. O novo estado de ânimo no Egito fica refletido na obra de um grupo de autores frequentemente conhecido como a “geraç~o dos sessenta” e entre os quis destacam Sun Allâh Ibrahîm, Yamâl al-Ghîtânî e Yûsuf al-Qa’îd. Provavelmente a obra que melhor reflita esse novo estado de ânimo seja a novela de Sun Allâh Ibrahîm intitulada Tilka al-râ’iha (Esse cheiro, 1966) um inspirado exemplo autobiogr|fico de “literatura de pris~o” árabe em que o protagonista recém saído do cárcere, anda sem rumo pelo Cairo, tentando em vão forjar relações com pessoas do seu passado. A sordidez que destila toda a obra e as descrições explícitas de temas sexuais causaram indignação na sua primeira publicação. Entretanto, vem sendo uma crônica lograda de monótonas vidas das classes baixas do Cairo.

Especialmente exigente desde o ponto de vista do tradutor são as obras de Yamâl al-Ghît}nî, cujo o uso frequente da “intertextualidade” oferece a soma de uma dificuldade; o tradutor não enfrente somente os habituais problemas linguísticos e culturais de traduzir do árabe, como também a tarefa de refletir, dentro da mesma obra, uma série de estilos literários que em outras ocasiões podem incluir complexas alusões históricas. Um bom exemplo em particular é o caso das obras de al-Ghîtânî, a novela intitulada Al-zaynî barakât (1971) a qual incorpora textos do historiador medieval Ibn Iyâs e outro material escrito com este mesmo estilo, dentro de um trabalho que retrata com imagens alegóricas a corrupção no Egito contemporâneo.

Uma voz absolutamente inconfundível na literatura árabe moderna, ainda que muito relacionada com a “geraç~o dos sessenta” é a de Idw}r al-Jarrât que ganhou a reputação de ser um autor especialmente difícil para traduzir. O domínio da sutileza da língua árabe por parte de al-Jarrât é muito superior a da maioria de seus contemporâneos e seu estilo de digressões a menos produz um efeito semelhante a um poema em prosa.

Ainda que muitas das mais recentes e interessantes inovações da prosa árabe se produziram no Egito, outras partes do mundo árabe também experimentou um crescimento na produção de obras de ficção inovadoras, somente uma parte das quais tem sido traduzida até agora a algumas línguas europeias. Entre os trabalhos mais ambiciosos estão os cinco volumes da obra intitulada Mudun al-milh (Cidades de sal, de

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1984) do autor saudita ‘Abd al-Rahmân Munîf, que narra os progressos de uma comunidade beduína ao longo do século XX abundante de petróleo, porém, dominada pelo Ocidente. A obra supõe um desafio importante para seu tradutor e oferece uma perspectiva do Oriente Médio muito diferente da maioria das novelas egípcias do mesmo período.

As traduções das novelas de al-Jarrât são raros exemplos de trabalhos traduzidos e publicados exclusivamente por seu valor literário e artístico. No reduzido mercado da literatura árabe moderna para línguas ocidentais, o fator comercial também tem um papel importante, pois o gosto de leitores se vê influenciado em grande medida pelas modas do momento. Um exemplo deste fenômeno pode ser visto no aumento das traduções das obras de Nayîb Mahfûz, depois que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1988 e no auge das traduções de trabalhos escritos por mulheres durante os últimos anos. A moda não é, desde então, garantia de excelência, seja do original, seja das traduções. Por exemplo, a relativa popularidade alcançada por suas traduções dos trabalhos de Nawâl al-As’d}wî sem dúvida se deve mais { admiraç~o por sua coragem como feminista declarada do que as opiniões dos críticos literários. TEATRO

As influências ocidentais que proporcionaram a substituição gradual das formas árabes tradicionais de narração em prosa pela novela e pelos relatos curtos também deram seus frutos na criação de um teatro ao estilo ocidental no Oriente Médio. As primeiras experiências nesse sentido tiveram lugar em Beirute em 1847, ainda durante a maior parte do século XIX e princípios do século XX, as produções teatrais se limitaram em grande parte à comédia e ao melodrama, junto a adaptações livres de obras de teatro ocidentais. A criação de um teatro egípcio maduro começou com os esforços de Muhammad Taymûr, Antûn Yazbak e Ibrâhîm Ramzî, na Primeira Guerra Mundial e culminou com Tawfîq al-Hakîm, quem dominou o teatro egípcio desde a década de 1930 até muito tempo depois da Revolução dos Oficiais Livres em 1952.

Embora as primeiras obras teatrais classificadas de tipo “intelectual” como Ahl al-kahf (Gente da caverna, 1933) e Shahrazâd (Sherezade, 1934) sendo estas algumas das mais importantes de Tawfîq al-Hakîm, muitas foram escritas para ser lidas em lugar de ser interpretadas, enquanto que as obras posteriores – desde a década de 1960 adiante – mostram a influência de técnicas procedentes do teatro ocidental de vanguarda. Entre estes trabalhos destaca Yâ tâli al-shayara (O escalador de árvores, 1964) a primeira obra teatral de al-Hakîm que mostra a influência do teatro do absurdo. A obra se caracteriza por seus animados e velozes diálogos, sua frescura e seu tom festivo.

A produção teatral de al-Hakîm também incluiu uma série de obras sobre temas sociais publicadas no final da década de 1940 e início dos anos 1950, com destaque para a mais significativa entre as quais se destaca é Ughniyat al-mawt (Canção da morte, 1947) , quiçá a obra teatral mais longa em árabe. A peça gira em torno do conflito entre os valores tradicionais e os modernos, um tema que lembra o cenário da já citada Yawmiyyât nâ’ib fî al-aryâf, uma de suas primeiras novelas. Uma vez mais, a obra se caracteriza pelos rápidos diálogos cruzados entre os personagens, uma questão que apresenta problemas específicos aos tradutores.

Um problema habitual para os dramaturgos árabes tem sido a eleição entre o árabe clássico e o coloquial como meio de comunicação. Al-Hakîm escreveu a maior

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parte de suas obras teatrais em |rabe cl|ssico, também {s vezes foram “traduzidas” ao coloquial quando eram interpretadas. Porém estas questões vêm sendo objeto de acalorado debate, assim como o tradutor deve enfrentar forçosamente o difícil dilema de adaptar um ou outro registro, sendo inevitável que grande parte da paixão que despertam entre certos setores da elite cultural árabe se perde nas versões traduzidas.

Como no caso da novela, o teatro recente se caracterizou por sua crescente tendência à experimentação e, ao mesmo tempo, por uma vinculação cada vez maior com a televisão. Tem tido também um considerável aumento da atividade teatral fora do Egito (Líbano, Palestina, Kuwait, Iraque e Tunísia), destacando em especial o caso da Síria, um país onde a recente inovação teatral – também talvez inesperada – tem sido especialmente chamativa. POESIA

A poesia árabe moderna se divide em três fases bem definidas, também sobrepostas: “neocl|ssica”, escrita em sua maioria entre o último terço do século XIX e a Primeira Guerra Mundial; “rom}ntica”, escrita em sua maioria no período do entreguerras e a “modernista”. Cada um destes estilos poéticos apresentou problemas específicos aos tradutores. Enquanto que a poesia neoclássica soube conservar de maneira estrita os esquemas métricos e rítmicos da poesia árabe medieval, com seus problemas de tradução correspondentes, o estilo romântico esteve muito influenciado pela poesia romântica ocidental, não somente em sua maneira de entender a poesia, como também, até certo ponto, na sua adoção de uma ampla variedade de formas poéticas. Quando se traduzem a algumas línguas europeias, estes poemas tender a soar, no melhor dos casos, como antiquados, e no pior, como uma simples imitação da poesia romântica ocidental.

Quiçá seja em parte esta razão pela qual se tenha traduzido relativamente pouco a poesia neoclássica e romântica. A maioria da poesia árabe traduzida recentemente data do período posterior a Segunda Guerra Mundial, quando os poetas começaram a adotar técnicas modernistas vindas do Ocidente, incluindo o uso da prosa poética e várias formas de verso livre. Como no caso da novela, a eleição do material a traduzir às vezes se viu influenciada por questões políticas, além das estritamente literárias. Entre os poetas mais traduzidos deste período estão os palestinos Mahmûd Darwîsh, Samîh al-Qâsim e outros. Dentre estes, talvez a poesia de Darwîsh seja a mais universal e atrativa. Dentre toda a sua produção poética disponível em numerosos idiomas, destacam obras como sua autobiografia, escrita em forma de prosa poética durante o bombardeio israelense de Beirute e intitulada Dhâkira lil-nislân (Memória para o ouvido, 1995). Grande parte da literatura palestina se viu inevitavelmente presa por acontecimentos políticos, porém, está longe de ser uma literatura monolítica. Também têm sido publicadas traduções de obras completas de autores como Boullata, Asfour, Jouri e Algar, al-Udhari, jayyusi e, acima de todos, Adûnîs, talvez o mais inovador e um ícone entre os poetas árabes modernos.

NAGUIB MAHFOUZ

Considerado por muitos como um dos melhores novelistas do século XX e também como a figura literária mais criativa e fecunda do mundo árabe moderno, o

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escritor egípcio Naguib Mahfouz (Nayîb Mahfû) produziu mais de 30 novelas e várias coleções de contos e obras teatrais com um amplo peso literário. Embora suas primeiras obras se caracterizem pelo realismo e pelos detalhes da vida urbana no Cairo, o estilo narrativo das últimas obras de Mahfouz recuperou os modelos narrativos tradicionais do árabe e sua tradição literária clássica, no lugar dos estilos europeus que previamente ele tinha empregado e adaptado.

Mahfouz tem sido e continua sendo muito lido em todo Oriente Médio, onde exerceu uma tremenda influência no desenvolvimento de novelas, muito antes de receber o reconhecimento internacional. Em 1988 se tornou o primeiro escritor árabe a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Eclético na eleição dos temas, Mahfouz se expressou em vários gêneros: realismo social, como em sua obra de 1947 intitulada Zuqâq al-Midaq (Saída de Midaq) e de novo em 1956, com sua trilogia do Cairo; novela negra em 1949, com Al-liss wal-kilâb ( O ladrão e os cachorros) e em 1951, com Bidâyah wa nihâyah (Princípio e fim); psicanálise, metafísicas e alegorias, como em seu Awlâd hâratinâ (Filhos do nosso bairro). Mahfouz trata temas como a alienação, a frustração política e a responsabilidade moral, os quais podem se encontrar em grande parte na ficção contemporânea.

A “Trilogia do Cairo” consta de Bayn al-qasrayn (Entre dois palácios), Qasr al-shawq (Palácio do desejo) e Al-sukkariyya (O açucareiro). Esta trilogia deu fama a Naguib Mahfouz e permitiu ser conhecido fora dos círculos literários egípcios. Nela o autor retrata um espírito nacionalista egípcio em elevação e a luta para escapar do domínio britânico. Afirma-se que a publicação de uma tradução para o francês das primeiras partes da trilogia se tornou importante fator que favoreceu a concessão do Prêmio Nobel a Mahfouz.

A exceção de um número limitado de leitores, a importância de Mahfouz como “mestre da linguagem” foi relativamente ignorada no Ocidente até não fez demasiado tempo, apesar de que algumas de suas obras já tinham sido traduzidas para o inglês e para o francês antes da concessão do prêmio Nobel. No The Politics of Dispossession (1995) Edward Said comenta a aparente reticência das principais editoras dos Estados Unidos para as traduções do árabe.

O uso que fez Mahfouz do árabe padrão nos diálogos de suas obras é uma linha característica de seu estilo literário e isto facilita o trabalho do tradutor, pois resulta extremamente complexo traduzir as formas do árabe dialetal. Quando o tradutor deve se ocupar de expressões coloquiais no idioma original pode decidir abreviá-las ou empregar uma linguagem padrão em versão traduzida. Em outras ocasiões, esta pode ser a única opção para evitar que se veja afetada a coerência do texto em seu conjunto. Ao contrário, o uso de localismos pode desorientar alguns leitores, como ocorre no caso do emprego de norte-americanismos como okey (tudo bem) ou buster (macho, tio, etc.) em algumas traduções para o inglês de obras de Mahfouz, como, por exemplo, “Pal|cio do desejo”. Outra possibilidade é empregar a transliteraç~o |rabe para se referir aos termos com fortes conotações culturais e logo fazer uso de uma série de notas de rodapé ou empregar glossários esclarecendo determinados termos, fazendo com que os textos se tornem mais acessíveis aos leitores estrangeiros. Isto é, por exemplo, o caso de Mirâyâ, de 1972 (Espelhos), uma novela enquadrada na vida política egípcia e que contém inúmeras referências a figuras históricas e aos principais partidos políticos, com os quais o leitor ocidental provavelmente estará pouco familiarizado. Contudo, as notas também podem ser úteis e oferecer certa informação ao leitor da tradução, seu abuso

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pode resultar negativo, pois rompe o ritmo da leitura e frustra todo o interesse de superar a especificidade do cenário, não fazendo justiça a intenção universalista e transcultural do texto original. Pode também acontecer que o leitor ocidental de traduções de obras árabes de ficção, sobretudo quando as traduções são bastante literais, fazendo com que se percebam aspectos desconcertados e alguns arcaísmos e aforismos em certas expressões que, de feito, são algo habitual em língua árabe e não indicam o uso de um estilo especialmente recarregado por parte do autor. BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

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