saberes e mistérios sáliba
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Saberes e mistérios Sáliba
Relato de uma viagem iconográfica entre os Sáliba, grupo ameríndio
equatorial de Orocué, Casanare, Colômbia
Rita de Cácia Oenning da Silva1 Resumo: Neste ensaio, relato de uma viagem iconográfica, abordo os saberes e os mistérios dos Sáliba, povo indígena que vive nas proximidades de Orocué, Casanare, Colômbia, de família lingüística Sáliba-Piaroa, destacando sua agência na recuperaçao de saberes ancestrais práticos e simbólicos pela reintrodução do uso cotidiano da língua sáliba entre as gerações mais recentes. Buscam assim, manter a alteridade e autonomia daquele povo recuperando aspectos da cultura e cosmologia que consideram fundamentais, em parte aqui relatados. Afirmam que esses vinham sendo esquecidos pelas novas gerações por mudanças estruturais na vida cotidiana Sáliba. O artigo aponta como, através do uso de ferramentas modernas como a mídia digital, e dos filmes feitos com o auxílio das crianças em três reservas sáliba, esses criam um material que os representa iconograficamente para si e para seus outros.
O contato
Final de outubro do ano 2007. Chegávamos entre os Sáliba, povo indígena de
família lingüística Sáliva-Piaroa da planície (Llanos) Colômbiana, situados mais
precisamente nas reservas próximas do Rio Meta, no município de Orocué, Estado de
Casanare, Colômbia2. Depois de trabalharmos com jovens fugitivos da guerrilha
Colômbiana em Bogotá, seguiríamos, à convite de alguns líderes Sáliba, para realizar
um trabalho com as crianças nas reservas. A viagem tinha a tensão do desconhecido:
Quais os perigos de dois estrangeiros viajarem sozinhos para a região campesina da
Colômbia, local onde se concentrara a guerrilha há anos? Como seriam os Sáliba? Como
1 Doutora em Antropologia Social/UFSC, Co-diretora Shine a Ligh, Membro Grupo Gesto/UFSC. 2 Segundo Júlio César Melatti, num pequeno texto sobre os povos indígenas dos llanos, “Os Llanos se estendem entre a margem esquerda do Orinoco e os flancos orientais dos Andes, prolongando-se até o delta do mesmo rio. Os Llanos Ocidentais, que têm como limite meridional o Guaviare, é um tributário do Orinoco ao sul do qual domina a floresta amazônica e como fronteira setentrional o rio Portuguesa, um afluente do Apure, por sua vez afluente do Orinoco, que constituiria uma fronteira cultural dos índios dos Llanos. A fronteira colombiano-venezuelana cruza os Llanos Ocidentais. Trata-se de uma planície coberta de savanas e matas-galeria, cujo clima alterna regularmente uma estação chuvosa com outra seca. É uma região que parece assemelhar-se com os cerrados e florestas-galeria do centro-oeste do Brasil, inclusive pela freqüência da palmeira moriche (Mauritia flexuosa), do mesmo gênero de nossa palmeira buriti (Mauritia vinifera)” (Melatti, 1997:01).
seria possível um trabalho de vídeo com os mesmos? Íamos acompanhados de um líder
sáliba. Aquela era uma longa e noturna viagem, por uma estrada de buracos gigatescos,
saindo de Yopal, capital de Casanare, em direção a Orocué. Pelo caminho, alguns
soldados pararam o ônibus para vistorias, ocasionando mais tensões na viagem.
Depois de um lindo amanhacer nas planícies, chegamos numa pequena vila, onde nos
esperavam num centro comunitário, professores e lideranças Sáliba. Cedo pela manhã
conversamos sobre o projeto de vídeo a ser desenvolvido com esses.
Atento à internet e à produção videográfica feita sobre e por indígenas, Herardo
Horopo, um líder dos Índios Sáliba da cabeceira do Río Orinoco, havia contactado
Kurt Shaw em 2004, através do site da ONG Shine a Light. Quando foi possível a
execução do projeto em 2007, eu realizava alguns projetos de produção videográfica
com Shine a Light, e esse seria um dos projetos a ser desenvolvido.
O intuito de Heraldo Horopo era de produzirmos com as crianças das reservas
sáliba um material videográfico ao modelo do Statel Stuk, feito com os Mayas de
Chiapas, México, numa parceira de Shine a Light com a Organização Não
Governamental Maya Melel Xojobal3. O que fizera o líder Sáliba buscar meios para
produzir um material sobre eles próprios, era o fato que enfrentavam-se com um
dilema: o contato com o mundo fora das reservas, que vem sendo uma constante entre
os Sáliba desde o século XVII com o contato com os missionários, bem como a entrada
dos serviços do estado e dos benefícios oferecidos por esse (escola, sistema público de
saúde, cesta básica), vinha fazendo os Sálibas afastarem-se gradativamente do uso da
língua Sáliba na cotidianidade, e de hábitos ancestrais que, segundo eles próprios,
caracteriza a vida sáliba. Embora os Sálibas sejam conhecidos como negociadores com
outros povos, e demonstrassem desde o princípio do contato conosco de gostar de
interagir com os produtos culturais e com o modo de vida moderno (incluso alguns
deles frequentando universidades), não queriam perder o seu próprio modo de vida,
sua língua, seus rituais, etc. Estavam cientes que a perda da língua implica em perder
muito mais, conforme afirmou um dos professores Sálibas quando chegamos na
3 Statel Stuk trata-se de um trabalho videográfico onde as crianças mayas mostram uma visão sobre si mesmos, incluíndo o seu modo de pensar, agir e representarem-se. Alguns líderes mayas, organizados, queriam mostrar as dificuldades que seu povo enfrentava vivendo num meio urbano, turístico, fora da aldeia.
reserva. Os Sálibas que nos contactaram pretendiam reavivar o uso da língua nas
reservas, mantendo-se bilíngues; queriam produzir um material bilíngue sobre si
mesmos – tanto em espanhol quanto em Sáliba, que auxiliasse as crianças, mesmo
frequentando a escola (cujo ensino era ainda em espanhol) falassem o idioma nativo.
Embora nos anos oitenta os Sáliba tivessem conquistado o direito a escolas nas
reservas, foi somente nos anos 2000 que conseguiram que os professores dessas
escolas fossem, em maioria, membros da comunidade sáliba. Isso mudara a dinâmica da
escola e eles queriam aproveitar da situação para voltar a falar a língua sáliba entre as
várias gerações. Antecipando-se ao movimento em prol do direito ao uso da própria
língua nativa nas escolas indígenas, os sálibas propunham fazer algo concreto que os
auxiliasse nesse processo, já que percebiam o forte interesse das crianças pela
tecnologia, mas com a desvantagem a eles que grande parte da tecnologia se acessa em
outras línguas que não sáliba.
A língua Sáliba parece ser entendida por seus falantes como um importante
aspecto de diferenciação entre os demais grupos étnicos, mas também aquela que
carrega em si aspectos cosmológicos, identitários, do fazer cotidiano, dos ritos e mitos,
etc, como nos mostra o documento produzido por esses: “Proyecto Educativo
Comunitario del Pueblo Sáliba de Casanare”
Una de las preocupaciones sobre la permanencia y el control de las
dimensiones culturales, lo aporta nuestra lengua materna, la que nos permite una manera de pensar y conducirnos con autonomía; nuestro ethos cultural genera costumbres y usos, que nos definen como un pueblo dentro del concierto de lo diverso; los ritos y los mitos, son la estrategia de transmisión de la cultura permitiendo la actualización; nuestra medicina tradicional constituye una manera de restituir la armonía y el equilibrio entre la Madre Naturaleza, el comportamiento social y las normatividad trasgredida; el mundo diverso en que vivimos, nos da un territorio, donde está la vida de nosostros y de todos los seres, espacio de reproducción cultural dónde se desarrolla el pensamiento, sistema de gobierno, la cultura, el arte, la educación,entre otros tejidos sociales (Proyecto Educativo Comunitario del Pueblo Sáliba de Casanare, 2006:86)
A língua sáliba somente se assemelharia em parte com a língua falada pelos
piaroa, da Venezuela, com os quais os próprios Sálibas admitem haver algum
parentesco lingüístico. “Conseguimos nos comunicar”, afirmou um dos líderes sáliba.
Em alguns casos vêm sendo classificada por especialistas como família lingüística
Sáliba-Piaroa, e em outros somente Sáliba. Em 1920, Paul Rivet já destacava esse
afinidade lingüística entre os Piaroa e os Sáliba4, tese essa que parece não ter sido
contrariada até o momento, embora alguns lingüístas queiram agregar a essa família
outros grupos como os mako, considerado por Migliazza (1985) como um dialeto dos
Piaroa - logo, parte da família lingüística sáliba-piaroa.
No primeiro dia em que nos reunimos com alguns dos professores das reservas
Sáliba, esses afirmaram perceber que com o desuso da língua também iam se perdendo
aspectos importantes da convívio e da cultura Sáliba, como os rezos, os rituais de
iniciação, os modos de convívio diário. Um dos educadores afirmou que toda a riqueza
que os sáliba possuem e valorizam na sua cultura pode se perder com a perda da
língua, uma riqueza que, segundo ele, remete ao mundo ancestral sáliba; isso acarretaria
na perda de muitas coisas da “grande história do nosso povo”, nos afirmou esse
informante. Também afirmou que para seguirem com a cosmologia sáliba precisam da
lingual. Só assim poderiam se relacionar com os diferentes mundos dessa cosmologia,
aspecto que vamos tratar com mais detalhes adiante. Afirmaram que atualmente já não
praticavam rituais que eram freqüentes poucos anos atrás, como pintar as adolescentes
quando mestruassem pela primeira vez, preparando-as assim para o casamento. Os
jovens e as crianças não usavam, como os velhos e alguns adultos ainda o faziam, os
rezos sáliba, o uso ritual das ervas e os métodos tradicionais de cura, as técnicas de
caça e pesca, os conhecimentos de parto, e especialmente, sentiam estarem perdendo
prescrições e o respeito a determinados mitos Sáliba. Um dos professores disse que
por adquirirem o hábito de viverem em pequenas casas nucleares5, agora bastante
difundido naquelas comunidades, eliminaram um importante momento nas reservas: o
da vida comunitária na “casa redonda”, local onde gerações podiam conviver e aprender
mutalmente. Nas antigas moradias coletivas, “as casas grandes redondas”, afirmavam
ser freqüente a fogata, um fogo feito no centro da casa, ocasião em que se aprendia e se
mantinha, através do contato freqüente entre as diversas gerações Sáliba, aspectos
fundamentais da cosmovisão e da cultura Sáliba. Na fogata, afirmou Samuel Joropa,
4 Rivet, Paul. Affinités du Sáliba et du Piaróa. Journal de la Société des Américanistes. Year 1920. Volume 1. Issue 12, pp. 11-20. 5 Embora as casas se situem sempre perto de parentes próximos, como de costume, agora, apoiados por programas de governo os Sálibas constróem também pequenas casas, onde se agregam famílias nucleares. Muitas dessas casas, no entanto, ainda seguem o modo tradicional de construção, com
era frequente se contar histórias, falar do modo como os Sálibas concebem a vida
comunitária, lembrar das prescrições e proibições relacionadas à cosmovisão do grupo,
aprender a conviver e a interagir diariamente com diferentes gerações. Assim, parecia
que os Sáliba buscavam, através da produção dos vídeos, ferramentas que
possibilitassem negociar entre a modernidade e a tradição, entre o modo de vida dos
anciões e o das crianças, já que, segundo eles, os mais velhos conservam e conhecem
vários aspectos que consideram essencial manter no estilo de vida sáliba6, mas são
também as crianças e os jovens agentes de mudanças para uma vida melhor, e as que
entendem melhor o mundo contemporâneo e o acesso à tecnologia, essa considerada
importante para os sáliba.
Os Sáliba mostraram-se cientes do que diz Cauby Novães (1998:117) de que
“Imagens (…) são artefatos culturais” (…). E que “que a produção de registros
fotográficos, fílmicos e videográficos pode permitir a reconstituição da história cultural
de grupos sociais, bem como permitir um melhor entendimento de processos de
mudança social, do impacto das frentes econômicas e da dinãmica das relações
interétnicas”. Era por isso que nos contactaram, embora eles mesmos revelaram que
tinham corrido com alguns outros pesquisadores, especialmente um “antropólogo”
que segundo um dos informantes, “queria descobrir onde estaria enterrado o Tesouro
do Caribabare”7. No entanto, afirmaram terem ocasionalmente visitas de estudiosos
paredes e telhados feitos de folhas de palmas, o que garante o frescor das casas sáliba. Algumas casas têm, em separado, banheiros feitos de cimento. 6 Os modos tradicionais de produção de artesanatos de uso doméstico e cotidiano (talhadas em madeira, no barro e ou com fibras), a medicina tradicional, as formas tradicionais de cultivo, de caça, pesca, os rituais de cura, ainda praticados pelos curandeiros locais, os rezos, também em parte presentes no dia-a-dia especialmente dos anciões e dos acima de 30 anos, entre outros. 7 Contam os sálibas que tal tesouro fora enterrado pelos jesuítas no período que foram expulsos da Colômbia. Ao serem expulsos das missões, os jesuítas não conseguiram levar todo o ouro pego pelos fiéis e o enterraram na missão jesuítica, que fica próxima das terras onde se localizam os resquardos sáliba. (Ver Omaña, 1995). Segundo Pacheco (sd) a missão jesuítica nas planícies Colômbianas começou quando o arcebispo de Santafé, Hernando Arias de Ugarte, preocupado com o “abandono espiritual de los Índios de los Llanos del Casanare, confió esta región a la Compañía de Jesús (1624), entregándole la doctrina de Chita, entonces en mano del clero diocesano” (:10). Alguns jesuitas trabalharam por alguns anos nesta missão, até que o sucessor da sede de Santafé passou a duvidar do mesmo e os jesuitas tiveram que abandonar-la en 1628 (Pacheco, sd). Depois disso, em 1959, alguns indigenas de Tame foram a Santafé pedir doutrineiros. Diz Pacheco (sd) ainda que “Em 1659 o provincial Hernando Cabero restaurou a anterior misión. Enviou em 1661, Ignacio Cano, Juan Fernández Pedroche e Alonso de Neira, a los que se unió el francés Antonio Bois-le-vert (castellanizado en Monteverde). Estes misionários fundaram as doctrinas de o reducciones de Pauto, Tame, San Salvador del Casanare, Nuestra Señora del Pilar de Patute y Macaguane, as quais se juntaram novos misionários. “Los indígenas evangelizados eran al principio sobre todo achaguas y tunebos; se
lingüístas, com os quais mantinham largo contato8. Nós, em contraste, íamos a convite
deles e para o fim específico que desejavam. Os onze dias que estivemos entre eles foi
de imensa troca, resultando numa produção videográfica interessante e reveladora do
modo de vida e dos mistérios9 sálibas.
Os principais resguardos sáliba são: Consejo, Ucumo, Duya, San Juanito,
Caimán, Paravare, Guanapalo, Macucuama, Tapaojo e Santa Rosalía, este último
situado no baixo Casanare. Segundo Sanches (2003), a população estimada, somando
os vários resguardos é de 1.929 pessoas. Estivemos em três reservas: Consejo, Duya e
San Juanito, locais onde realizamos o trabalho de vídeo, articulado entre os líderes, os
professores locais, as crianças Sáliba, especialmente as freqüentadoras das escolas
Sáliba presentes em cada uma das reservas, e suas famílias. Os Sálibas foram bastante
acolhedores. Nos receberam com curiosidade, e normalmente com um tom bastante
descontraído, fazendo piadas jogosas sobre “gringos”. Tanto os bebês, as crianças
quanto jovens, adultos e anciãos10 estavam presentes nos eventos de gravação, e notei
haver entre eles um respeito ao conhecimento e ao interesse de cada qual. Os grupos
onde estive normalmente falavam Sáliba em casa, especialmente entre os adultos e os
mais velhos (alguns somente falantes da língua Sáliba), mas com as crianças e entre as
crianças, predominava o espanhol, já que essas foram inseridas nas escolas, onde se
ensinou por anos somente em espanhol. Todas as crianças Sáliba pareciam
compreender perfeitamente a língua Sáliba, mas normalmente respondiam em
extendió luego a guahivos y sálibas” (Pacheco, sd: 14,15). 8 Talvés seja esse um dos motivos de existirem poucos trabalhos acadêmicos antropológicos sobre os Sálibas, mas acredito que outro forte motivo era que nos anos oitenta, período de poucos estudos naquela região, a Guerrilha Colombiana era bastante acentuada naquela parte do país. Encontrei disponível, em grande parte, estudos lingüísticos sobre os sáliba. Ainda assim, Alain Fabre (2005:01), considera que “La lengua sáliba ha sido objeto de pocos estudios. Caben mencionarse, entre los más recientes, a los siguientes: Benaissa (1979, 1991), Estrada (1996, 2000), Morse & Frank (1997), Morse, Frank & Simons (2003) y Suárez (1977)”. Alguns dos pesquisadores que estiveram entre os sáliba e aqui citados, são parte do Summer Institute of Linguistics (SIL), tão fortemente criticado por ter um projeto de pesquisa e conhecimento da língua que envolve, ao mesmo tempo, catequizar os povos indígenas dentro de uma doutrina evangélica. Nas conversas sobre religião, creencias, como eles diziam, percebi que os sálibas aderem ainda hoje alguns preceitos jesuíticos da velha catequisação, mais que aos novos movimentos religiosos que vêm catequizando grupos índigenas pelo mundo. 9 Expressão usada por alguns sáliba para referir-se aos aspectos simbólicos e praticos, essências dentro do conhecimento e dos habitos sáliba, não evidentes por si, como as prescrições.
10 Segundo o “Plan de Vida Pueblo Sáliba. Sueños de Pervivencia”. documento formulado pela Asociación de Autoridades Indígenas Sálibas de Orocué (ASAISOC) em 2004, enviado a nós antes de
espanhol. Alguns adultos mencionaram o fato das crianças demonstrarem uma certa
vergonha em falar“la lengua”. Explicaram que isso se deu quando as escolas foram
criadas nas reservas, e os profissionais contratados combatiam o uso da língua nativa,
por não a entenderem.
A produção do material videográfico bilíngue, resultado da nossa estada entre
os sáliba e dsiponível online em http://www.shinealight.org/Saliva.html, serve
atualmente como recurso didático nas escolas indígenas, que vêm gradativamente
substituindo as aulas em espanhol pelas aulas em Sáliba. Seu uso, segundo o relato
posterior à nossa estada na região feita pelos sáliba, auxilia no processo de recuperação
do uso cotidiano da língua Sáliba. A produção, embora acompanhada e mediada pelos
adultos, foi feita especialmente com as crianças Sáliba11. Entrevistamos os mais velhos
e ou alguns especialistas sáliba.
Patrícia Monte-Mór (1990:6), falando sobre texto escrito e imagem nos
estudos antropológicos, diz que “Conscientes de que ambos são construções, autorais,
ficamos mais livres para produzir novos filmes, vídeos e ensaios fotográficos, não
como ‘simples registros do real’, mas como construções a partir da observação e da
pesquisa”. Para mim, e, certamente para os próprios Sálibas, o material produzido foi
um meio de pesquisa e de contato com aspectos que consideram importantes na sua
própria cultura e uma possibilidade de construção de conhecimento. Como Lagrou
(2005:23), falo de imagens (verbais, visuais e virtuais) “em vez de em artefatos”
porque meu interesse foi também “em imagens veladas e imateriais e com a
importância de experiências às quais se ilude apenas, […] quanto em objetos
interagindo uns com os outros num mundo imediatamente observável”.
Os sáliba vivem certamente um processo de autopoiesis, como veremos no
decorrer desse artigo e nos filmes que resultaram do contato com esses. Isto é, vivem
um processo constante de produção de novos sentidos. Esse processo, como indica
visitarmos a reserva, os Sálibas dividem as idades da seguinte forma: menores de um ano, menores de 5 anos, entre 5 e 18 anos, entre 18 e 60 anos, e finalmente os maiores, considerados anciões. 11 Os Sálibas haviam nos convidado para esse projeto por trabalharmos com mídia digital com crianças. Entendiam que necessitavam acessar conhecimentos com os mais velhos e que se pudessem colocar o interesse das crianças na própria fala deles usando a mídia, estariam dando um passo importante para colocar em foco o saber Sáliba; queriam que fossem as próprias crianças as que produzissem esse conhecimento, podendo assim sentirem-se parte da produção de um saber que estariam apreciando mais tarde.
Lagrou (2005) continua, no nosso caso, no contexto do encontro etnográfico. E
acrecentaria, videográfico. Foram os próprios sáliba os que dicidiram o que queriam
filmar. Por isso, o nosso olhar seguia principalmente os interesses deles, do mesmo
modo que esse artigo o segue. Os “nativos” fizeram perguntas aos seus, embora nossa
presença e indagações tenha reavivado memórias, saberes, vínculos. Nós
acrescentamos outras perguntas mais, que nos foram incitadas nesse contato.
Olhar persistente
Querendo interagir um pouco mais com os garotos da família que nos recebera
para o almoço no primeiro dia, fomos numa tarde a uma partida de futebol, que
aconteceria entre os moradores da reserva Concejo. Dela participariam crianças, jovens
e homens Sáliba, mas especialmente as crianças eram os protagonistas da partida.
Também eram em maior número. Quando chegamos, os rapazes se dirigiram ao campo,
e eu me direcionei ao local onde sentavam várias mulheres e crianças, num dos lados do
campo. Fui me aproximando, cumprimentando as pessoas. Apenas duas ou três
mulheres responderam, timidamente, e as muitas crianças pequenas que lá se
encontravam, ficaram me olhando fixamente, sem nada dizer. Segui até onde estavam
algumas mulheres e, pedindo permissão, sentei mais ou menos próximo a elas. Um
silêncio se fez entre nós por uns minutos e só se rompeu quando o jogo começou.
Os jogadores corriam de um lado a outro, gritando. Embora o jogo de futebol
enchesse agora o silêncio do lugar, eu pouco pude participar do evento futibolístico,
ainda que como expectadora. Uma cena instigante foi se construindo ao meu redor, sem
que eu tivesse chance de sair dela. Várias crianças pequenas, entre 2 e 5 anos
aproximadamente, foram se aproximando de mim e num instante me vi completamente
cercada por umas 15 delas. Me olhavam fixamente, sem desviar o olhar um segundo
sequer. Aquele modo de me olhar fixamente foi me constrangindo de tal modo, que,
sem saber exatamente como agir, tentei, sem sucesso, mudar e expressão da face, afim
de interagir com as mesmas. Nada. Quando tentei falar em espanhol, não notei
resposta além de olhares fixos aos meus momvimentos. Confesso que me senti como
um animal na jaula; ou, quem sabe, como um “nativo” se sente ao ser observado por
seus antropólogos? Envergonhada, completamente sem saber o que fazer, me mantive
ali, quase imóvel, alvo daqueles pequenos olhos.
Depois de vários minutos, o movimento de uma das meninas que estava perto
de mim, mudou a situação. Ela deixara cair uma pequena pulseira de missangas que
tinha entre as mãos. Todos olhamos para a pulseira, que caíra bem perto de mim.
Parecia que algo grave acontecera que preocupara a todos. Um silêncio no ar. Eu
aproveitei a situação para uma aproximação da menina. Tomei a bijuteria do chão e
entreguei à menina. Ela sorriu timidamente, e ao pegar, deixou cair novamente e eu
aproveitei e juntei-a, jogando mais próximo dela, que agora notou minha intenção de
brincar, e jogou novamente a pulseira na minha direção, soltando uma tímida risadinha.
Percebendo que a brincadeira atraira alguns dos meus observadores, peguei um
pequeno pedaço de madeira que se encontrava no solo, joguei na direção de um outro
menino, que se encontrava ao lado da menina, acompanhando atento o jogo que
iniciara. Ele juntou e devolveu, rindo para mim. Fiz isso mais umas duas vezes antes
de ter todas as demais crianças juntando coisas do solo e lançando em minha direção,
rindo quando as lancavam e esperando que eu devolvesse para o arremesssador. Ali
fiquei por quase 30 minutos, ocupada com a nova estratégia de fazer vínculos, agora
coberta de pedaços de madeira, pequenas plantas soltas ao solo, partes secas de
árvores, as quais, ao receber, tentava devolver ao emissário. Ao final, depois de uns
minutos, tinha o colo coberto de coisas, e passei somente a soltá-los ao meu lado,
deixando claro que me cansara da brincadeira.
Nesse mesmo momento as mães passaram e chamaram algumas das crianças
para seguirem com elas, já que o futebol tinha finalizado. Voltaram às suas casas. A
brincadeira rendeu um vínculo com as crianças, ainda que temporário, e muitas picadas
de um pequeno e invisível ácaro chamado pelos Sáliba de coloradito12, que vinham
junto com o material orgânico que as crianças jogavam sobre meu colo. Acordei naquela
madrugada com dezenas de picadas, crescendo em bolas vermelhas pelo corpo, e
passei mais de uma semana tentando evitar aumentar o tamanho das feridas que dela se
originaram, que eram muitas. Quando cheguei em Bogotá novamente, ainda estava
12 No Brasil é conhecido como micuim. É um ácaro da família Trombiculidae, gênero Trombicula. As larvas desse ácaro são parasitas do homem e de diversos animais e ficam 15 dias no hospedeiro e causam dermatite intensa, pois inoculam saliva tóxica, que lesa as células, alimentando-se de tecido linfóide (Barsa).
enfeita de picadas e tive dois dias de um cansaço intenso, com febre.
Dessa história, uma série de aspectos poderia explorar para falar sobre o modo
pelo qual percebi os Sáliba, e do modo que penso que se relacionam com o mundo.
Mas vou me centrar num aspecto que foi recorrrente durante a minha visita a eles: a
tremenda capacidade de concentração e observação que notei existir entre eles, também
espressa no olhar daquelas crianças. Notei entre eles uma grande valorização do olhar e
um senso estético que revelaram ter sobre o mundo. Os Sáliba, como os Piaroa
(Overing, 2005), parecem dar especial atenção a uma estética do cotidiano, marcando
no fazer diário, o cuidado com os objetos e com os seres que os rodeiam (humanos e
não humanos) e nas relações que tecem entre si. Parte do conhecimento adquirido entre
e sobre os sálibas relato abaixo.
A arte Sáliba no fazer
O primeiro dia entre os Sáliba foi na Reserva Concejo, fomos recebidos por um
grupo de famílias locais, e várias das crianças que vinham para a escola. Fomos
especialmente acolhidos pela família do professor Samuel Joroba e pela família de Don
Evaristo Catimay, o mais velho ancião Sáliba da região. Em contato com as crianças e
alguns dos membros dos resguardos, foi interessante notar o interesse dos mesmos
pela produção de imagens. Em poucos minutos em contato com a câmera fotográfica e
com a filmadora, os Sálibas produziram um acervo interessante de imagens. Foram
rapidamente conversando entre eles e agilizando os recursos humanos para as
filmagens, falando com uns para concederem entrevistas, com outros para traduzirem
ao espanhol, etc.
Flechas: eu cuido pra fazer bem bonita
Nesse primero dia inicíamos as filmagens. Don Evaristo Catimay (86 anos),
ancião caçador, famoso por produzir boas flechas, aceitou imediatamente produzir e
ensinar frente às câmeras como fazer uma flecha. As crianças, auxiliadas por mim e
Kurt Shaw, filmaram e fotografaram as diferentes etapas do processo. Ensinando em
língua Sáliba, o que Don Evaristo dizia era filmado pelas crianças e traduzido para o
espanhol por Samuel Joropa, professor daquela reserva. Ao lado de Don Evaristo
estavam também lideranças e caçadores Sáliba, que discutiam, paralelamente à
filmagem, como eram as caças, o que era importante saber para ser um bom caçador,
causos e situações que há poucos anos tinham experimentado, quando a caça era mais
presente entre eles. Antes de serem restrigidos em reservas, os homens Sáliba eram
exímios caçadores e pescadores, usando seu conhecimento para alimentar suas famílias.
O filme “Como hacer una Flecha”, disponível online em
http://www.shinealight.org/Flecha.html, resultado desse dia de filmagem, tem a beleza
e a calma que senti entre os Sáliba. Don Evaristo é um dos maiores conhecedores da
caça local, e por isso recebe o respeito da comunidade. Tal respeito não é uma
exigência do conhecedor, mas um forma dos sáliba em reconhecer o conhecimento que
uma pessoa possui, fato que vi existir também com as crianças, que eram incentivadas,
mas não forçadas, a participarem de cada atividade proposta naquele dia. Participavam
na medida do seu interesse, e da forma como desejassem. Ao construir a flecha, Don
Evaristo tomava cuidados especiais na produção de cada etapa, e a beleza da flecha
estava também ligado ao seu bom funcionamento. O ferro deveria ser bem polido, as
penas bem cortadas e atadas, as partes da flecha (macho e fêmea) bem encaixáveis um
ao outro, e ao final, um olhar apurado do artista notava se essa tinha a simetria e
alinhamentos corretos para o seu funcionamento. Um comentário ao final mostra o
senso do ideal estético da produção da flecha. Sr Evaristo - A flecha está pronta. Tá bonita. Rita - O que se pode caçar com essa flecha? E - A Cachican...Dá uma olhada. Como lhe pareceu que ficou? Tem que ver de qual lado se
pode botar o arco. Hoje em dia o pessoal não tenta fazer flechas tão bonitas. Eles não tomam cuidado ao fazer. Mas quando eu vejo uma flecha, eu presto atenção. Eu cuido para fazer bem bonita.
E o especialista brinca com os demais: E - Quando nós costumávamos caçar perto daqui, eu pegava peixes grandes. Vamos para o
riacho para flechar e pescar, então? (risos) R -Vamos.
Depois de filmarmos Don Evaristo fazendo a flecha, as crianças seguiram com
a câmera fotográfica em mãos, e a levaram para outros ambientes onde não entrei.
Foram para dentro da grande casa, onde fotografaram a família, fotografaram-se uns
aos outros sorrindo, brincando, estudando, etc. Nos fotografaram várias vezes ao lado
deles. Mas o maior motivador das fotos era a relação deles com os animais. Patos,
cachorros, gatos, gados, pareciam parte da vida cotidiana das crianças, com os quais
demonstram ter alegria e intimidade no convívio caseiro. As fotos tiradas pelos sáliba
revelam simplicidade e a beleza do convivio entre os mesmos, bem como a intimidade
da aproximação e o contexto do processo da filmagem13.
Artesanato e o respeito ao conhecimento da astronomia
O mesmo zelo pelo fazer artesanal de Don Evaristo ao cofeccionar a flecha
mostrou ter Tobias Guacarapare, da reserva San Juanito, ao fazer o sibucán e o roba
índia, dois outros artesanatos tradicionais entre os Sáliba, bem como na reserva Duya,
o Sr. Santos Heliodoro Caribana, ao fazer o sombreiro de palha (chapéu de palha) e
Luís María Caribana e Domitila Guacarapare, ao mostrarem o processo do fazer da
roupa ritualística sáliba.
O sibucán é um aparato de uso culinário dos Sáliba; trata-se de uma espécie de
saco feito de filamentos de Palma de Moriche14, que serve para expremer massas,
separando a água nela contida (de yuca, maiz, etc), secando a mesma para o fabrico de
alimentos. É usado especialmente no fabrico do casabe, um pão típico feito de yuca
doce, descrito também nesse artigo. Já o roba índia, que segue mais ou menos o
mesmo padrão de produção do sibucán, é uma peça que serve de adorno e para
brincadeiras acerca do rapto de mulheres15. O detalhe na produção dos dois artefatos
vai desde a colheita do material (fibras), que devem seguir prescrições, a preparação da
mesma, que implica no bom corte da fibra, separação da parte mais flexível e durável
da mesma, e o processo de entrelaçamento entre as fibras, que requer atenção, cuidado
e conhecimento artesanal e geométrico. No caso do sibucán, as várias fibras (num
número aproximado de 42 - dependendo do tamanho do sibucán que se deseja se pode
agregar mais, mas sempre em número par) são entrelaçadas numa trança complexa,
13 Ver artigo iconográfico nessa mesma edição da Revista Tellus. 14 Também conhecida no Brasil como Palma de Buriti. 15 Embora tenham usado o termo rapto de mulheres e até brincado com uma das adolescentes de que ia ser raptada, não fui capaz de perceber se há ou houve, em algum período, a prática do rapto, ou se aquela foi apenas uma brincadeira usado naquele momento.
iniciada num entrelaçamento transversal de dois feixes da fibra, de forma a permitir
que, ao serem devidamente malhadas, corram entre si, para aumentar e diminuir o
espaço interno do “saco”, e assim ser capaz de espremer a massa nele introduzida.
Para produzir um sibucán, um especialista necessitará de 6 horas de trabalho intenso.
Já um Rouba índia foi produzido como modelo em menos de 1 hora de trabalho. Para
ver o filme “Artesania Sáliba: Roba índia e Sibucán”, onde acessar
http://www.shinealight.org/salibasibucan.html. Depois de fabricar um roba índia,
acompanhados de um número de quase 20 crianças seguimos até a casa do especialista
para ver os sibucáns já fabricados e um deles iniciado.
O chapéu de palha dos sáliba feito pelo Sr. Santos Heliodoro Caribana
(Reserva Duya) é tradicionalmente produzido a partir de um capim chamado
colemocho, que só pode ser cortado no período de lua minguante para que o mesmo
não mude de cor e não apodreça rapidamente16. Sr. Santos disse ser necessário rezar o
pasto no ato da colheita, para que os bebês não tenham problemas com a ação desse
sobre si17. Afirmou que quando se colhe e não se reza o pasto, esse pode ferir o
umbigo da criança e pode matá-la. Depois de cortado o capim, se deixa secar na
sombra, e depois de seco, se tece o chapéu com cuidado para que as fibras sejam
costuradas uniformemente, sem deixar uma parte grossa e outra fina. A costura é
tradicionalmente feita com fibra de Moriche, uma palmeira comum na região, que
envolve várias prescriçoes entre os sáliba, como destacaremos mais adiante. Os sáliba,
atualmente, vêm usando fibra de nylion para que o chapéu tenha maior durabilidade.
Para ver o filme “El Sombrero de Palha”, acessar
http://www.shinealight.org/Sombrero.html.
16 Os sáliba guardam o conhecimento da lua adequada para a colheita e plantio de cada espécie. Respeitam a colheita no período de lua indicado por seus ancestrais para todos os materiais, incluso os utilizados para fabrico de artesanato e construção de casas. Nesse caso, não devem ser cortados na fase crescente. Já existem outros devem ser cortados na fase crescente, como a do talho de Moriche para confeccionar o sibucán e o roba índia. Já no plantio, a mazorca (milho), a yucca (mandioca ou aipim), e plátano (banana), devem ser plantados em lua minguante, pois se plantados na fase da lua crescente, vão crescer bonitas, mas não darão frutos bons ou raíz grande. A cana de açúcar, ao contrário, deve ser plantada na crescente. Também têm restrições para os dias da semana. Nas quintas feiras, por exemplo, não recomendam plantar a yuca, pois dizem que se plantada nesse dia, a raiz ficara presa no meio do talo. Também evitam sair na terça feira para caçar nem para viajar, já que nesse dia estão mais suceptíveis a acontecimentos desagradáveis. Por isso, evitam-no. Estes são conhecimentos que os sáliba aprenderam de seus antepassados e que respeitam no seu cotidiano, e que temem perder com o desuso da língua sáliba. 17 Este é um tema recorrente entre os sáliba e voltarei a ele nos sub-ítens que se seguem.
Culinária Na reserva de San Juanito, fomos recebidos na escola local pelas crianças e
pelos professor Teófilos Joropa. Nessa reserva queriam gravar como se faz um prato
típico da culinária Sáliba: o casabe, que se trata de um pão fino feito de farinha de
mandioca doce. Acompanhados de umas 15 crianças de faixa etária entre 5 e 14 anos, e
do professor e professora sáliba, seguimos para a casa dos tios de Teófilos, que nos
aguardavam para a gravação. Lá, encontramos Dionilda Catimay, uma senhora de
aproximadamente 55 anos, que se encontrava deitada numa rede, já que estava doente
naqueles dias. Segurava consigo, uma criança de aproximadamente dois anos. Também
estava na casa duas de suas filhas e seu marido, que costurava um saco de pesca com
uma grande agulha.
Acompanhados de umas 15 crianças, fomos até o plantio de yuca dulce (aipim
ou mandioca doce18) e gravando cada passo, registramos na língua Sáliba traduzido
para o espanhol, o modo de produzir casabe. O processo de fazer o casabe se começa
arrancando a yuca da terra, pois se precisa de yuca fresca. Dessa, se aproveita a raíz
para o casabe e os talos ou caules se usa para um novo plantio. Se prepara yuca doce
também cozida, em forma de yare (suco de yuca) e o mañoco, todos comidas típicas
entre os sáliba. Segundo Teófilos, fazer o casabe é um dos hábitos cotidianos entre os
sáliba, e são as mulheres quem normalmente se encarregam do mesmo. Adolescentes
aprendem desde cedo a preparar essa comida.
Durante o fabrico do casabe, Dionilda Catimay, da rede situada na entrada da
cozinha, ajudava na descrição do modo de fazer. Se raspa a raiz da yuca doce para
extrair a parte escurecida, se lava e rala a mesma em um grande ralador feito de
alumínio, para transformar a raíz em massa de yuca. Depois de ralado, se coloca a
massa num sibucán, o espremedor feito de bambu citado já no item anterior, para
extrair a água da farinha. Depois disso, coloca-se em um manar (um pilão) e soca para
afinar a farinha ralada. Peneira-se essa farinha, separando a parte mais fina da mais
18 No Vocabulário Sáliba-Espanhol, Espanhol-Sáliba, compilado por Taik Benaissa em 1991, pude encontrar mais de10 tipos diferentes de yuca.
grossa. Da parte mais fina se faz o casabe. Estando a massa pronta, se prepara o fogo,
e se espalha a mesma no budare de argila, uma espécie de forma feito pelos sáliba,
onde se cozinha. É preciso saber como se espalha a massa no budare para que o
casabe não fique desuniforme, e também saber controlar o fogo para que o casabe não
que se queime. Embora alguns dos membros do grupo tivessem dito que as jovens não
se interessam mais pelo fabrico do casabe, foram 3 delas, todas com aproximadamente
15 anos, quem lideraram e fizeram o processo como um todo, descascando, limpando,
ralando a yuca, extraindo o líquido da massa, e preparando a farinha sobre o budare
para o cozimento do casabe. O modo como os Sáliba realizaram a produção do casabe
mostrou ser essa uma tarefa feminina, embora os homens sejam tambem responsáveis
pelo prantio da yuca. Assim como o casabe, as peças em argila usadas na cozinha
sáliba normalmente são feita unicamente por mulheres.
Durante o processo da gravação desse documentário foram as crianças de 04 a
14 anos de idade que filmavam. O modo com que essas mantinham o foco e a firmeza
ao segurarem a câmera mostrava a atenção que os Sáliba mantêm num determinado
tema, aspecto nem sempre encontrado em grupos que havia trabalhado anteriormente
que tinham pouco acesso à tecnologia. O filme “Como hacer Casabe” está disponível
em http://www.shinealight.org/salibacasave.html.
Uma cosmologia Sáliba: medicina, parto, rezos e outros mistérios
A medicina
O segundo dia na reserva de Concejo foi dedicado a gravar conhecimentos de
medicina entre os Sáliba. Iríamos aproveitar a visita do pai de Samuel Joropa, o Sr Juan
de La Cruz Joropa19, de aproximadamente 75 anos, à reserva Concejo. Vinha
caminhando desde a Reserva Guanapalo, situada à sete horas de Concejo. Com ele, seu
filho Samuel, seus dois netos, Neider e Gordo e um dos sobrinhos, Esau Alberto
Gaitán Ponare percorremos a reserva, buscando ervas, árvores e arbustos os quais os
19 Infelizmente Sr Juan de La Cruz Joropa, um homem doce e de muito bom humor, faleceu em meados de 2009.
Sáliba recorrem em casos de enfermidade. Com um humor peculiar, sempre
comentando situações engraçadas ou fazendo pequenas piadas contextualizadas, Sr
Juan ensinou em língua sáliba os métodos de colheita, as receitas de cura e o modo de
usar cada um dos medicamentos. Embora o Sr Juan fosse procurado como conhecedor
de botânica, medicina, rezos Sáliba, e fosse até um parteiro conhecido, disse que nunca
quiz assumir a profissão de curador pois, segundo ele, exige uma série de
comportamentos da pessoa que ele não queria assumir como o jejum sexual e os
estados de embriagues necessários. Um curandeiro, para obter esse status entre os
Sáliba, deve fazer jejum sexual e alimentar e deve beber frequentemente a bebida
alcóolica dos Sáliba para que possa acessar o conhecimento da emfermidade de forma
mais eficaz. Sr. Juan disse ser incapaz de cumprir com tais aspectos, e que prefiria
fazer o que sabia sem precisar recorrer profundamente aos conhecimentos que
recorrem os chupadores e curandeiros Sáliba. Falava especialmente da especialidade do
chupador, um curandeiro sáliba que tem capacidade de extrair a doença do enfermo
chupando a mesma com a boca. Segundo Sr. Juan, somente alguns dos curandeiros
chegam a desenvolver essa capacidade, especialmente porque é uma especialidade que
exige muito contato com os espíritos, que é feito em momentos de embriagues do
curandeiro. Para a filmagem, fomos percorrendo os pasto, os quintais onde se cultivam
ervas caseiras, a floresta e as proximidades dos rios dos Sáliba, para buscar plantas que
servem de medicamentos Sáliba.
Embora se possa recorrer à essas plantas e colhe-las quando se precisa delas, Sr
Juan disse que Se tem tradição que a maioria dos remédios se colhe na Sexta feira Santa. Qualquer planta que se pode guardar se colhe nesse dia. […] se colhe na sexta feira Santa e se guarda sobre o fogão, onde se cozinha. Aí ela fica e quando uma pessoa precisa, se cozinha e se serve.
As principais emfermidades apontados pelos Sáliba são a dor de rins, diarréia,
especialmente infantil, a agitação infantil, as infecções, gripes, febres, tosses, feridas no
corpo, dores no peito (coração, pulmão), males ocasionados pelos espíritos malos
(painodo) especialmente aos recen nascidos, como a diárreia, o susto, os sonhos ruins
(também a mãe pode ser atacada). Painodos podem levar uma criança consigo,
matando-a. Também atacam as mulheres em período menstrual. Para defenderem-se
desses espíritos, uma das estratégias dos sáliba é queimar a resina de uma árvore,
encontrada nas florestas, a qual Sr Juan fez questão de nos mostrar, e que Samuel
explicou:
Samuel: Essa árvore se chama Paraño. É uma madeira. Ela tem uma resina que se usa para fazer "salmério", ou seja, se queima a resina para espantar os espíritos maus. Quando uma criança recen nasceu, ou quando uma mulher recen deu a luz, se queima a resina e se usa como protetor. Eles [a mae e o recen nascido] são perseguidos pelos espíritos maus. Esta é uma crença dos sálibas. Por exemplo, um menino pequenino não pode banhar-se no riacho. Entre os sáliba se crê que os espíritos maus saem da água. São os que nós chamamos Vainodos. Em sáliba o chamamos Vainodo. Ou vainode quando é um só.Existem muitos espíritos na água que são maus.Então para que eles não se aproximem e façam mau às pessoas, se molha com essa resina. Essa é uma resina grossa, parecida com a borracha. Rita - E qual é o mau que os espíritos fazem? Samuel: Causam muitos males. As vezes lhes dá diarréia, uma diarréia forte. As vezes os assustam, e se assusta as crianças não dormem tranqüilos. Ou a mãe, pode ter sonhos ruins. Então é porque os espíritos maus os estão perseguindo. Se perseguem muito a criança, matam-na. Sim, e a levam. Se crê que nos riachos, onde estão as pedras, nelas existem outros espíritos, maus também. Por isso se têm como proteção a resina dessa árvore. Ao se queimar a resina, ela produz um cheiro forte, que impede que os maus espíritos se aproximem da criança ou da mãe. Também as mulheres que estão no período menstrual, para que os espíritos maus não as persigam devem queimar a resina ou colocar na parte superior da coxa.
Aspectos similares foram relatados pelos demais informantes que nos
concederam entrevistas, como veremos. O filme “La Medicina Sáliba”, contando mais
sobre os rezos e os mistérios sáliba se encontra disponível no link
http://www.shinealight.org/hierbas.html.
Segundo os sáliba, a infermidade é usualmente atribuída a uma violação das
normas sociais, em especial as dirigidas a controlar e previnir a própria enfermidade,
ou seja, os cuidados higiênicos com os alimentos, o manejo sanitário adequado, do
descuido com o manejo dos recursos naturais, os cuidados com o corpo. Portanto, aos
sáliba é necessário estar atento todo momento ao cumprimento das normas sociais. O
ritual é o espaço próprio de cura. Isso se dá dentro de um sistema imaginário
representativo da enfermidade, que depende da cosmovisão do grupo. Ou seja, das
relações entre a comunidade, a natureza, as deidades e o médico tradicional. O ritual
de cura tenta restabelecer a harmonia e o equilibrio perdido nessa relação20.
O nascimento Sáliba
Ainda na reserva Concejo, gravamos a entrevista com a parteira Angela Ponare,
mãe de Marta Ponare, professora sáliba. Dona Angela contou sua própria história
como parteira. Com apenas 8 anos de idade, na casa dos tios, participou ativamente do
primeiro parto. Uma prima iniciara o trabalho de parto, mas tinha dificuldades porque
a criança se encontrava na posição virada ao esperado a um parto normal. Foi quando,
ao presenciar o sofrimento da prima e ao perceber que os adultos presentes (a mãe e
sua tia) não sabiam o que fazer, Angela começou a tocar a barriga da parturiente e
sentindo a posição da criança, tratou de movê-la para deixá-la com a cabeça para baixo.
Durante a entrevista, falou dos cuidados que a parteira deve ter ao auxiliar um parto, as
etapas do mesmo e deu especial enfase aos cuidados que se deve ter a família quando
nasce uma criança.
Quando uma criança sáliba está por nascer, a família da parturiente busca a
parteira em sua casa, e essa, ao chegar, verifica se a criança está na posição normal para
nascer. Se não está, arranja com as mãos para que a criança fique na posição certa;
depois prepara uma cama21, onde a criança será recebida no momento do parto, e
abraçando a parturiente por detrás, aperta na sua barriga, ajudando-a a fazer força para
o nascimento. Quando a mulher tem dificuldades no parto, os Sáliba preparam alguns
tipos de chás, como água das folhas de café, chá de barba de uma lapa macho (um tipo
de bagre), que auxiliam na descida da criança. Se ainda assim a criança não desce, é
preciso esperar um pouco mais para iniciar o parto. Entre os Sáliba, os homens
também exercem o papel de parteiros. Na entrevista, Samuel Joropa explica como seu
pai, Sr. Juan de La Cruz Joropa, utilizava métodos distintos para ajudar no processo
do nascimento. Esse faz rezos, bate com uma sombrinha preta nas costas da mulher,
ou oferece a essa chás de teia de aranha ou a clara de ovo para a mulher beber.
Quando nasce a criança, se corta o cordão umbilical com uma tesousa, se limpa
o sangue de todos os utensílios utilizados e ao pai da criança, se esse estiver presente
20 Referências encontradas no Proyecto Educativo Comunitario del Pueblo Sáliba de Casanare de 2006 (p. 85, 86), mas também comentado por ocasião da visita entre os sáliba. 21 Os Sáliba normalmente não dormem em camas, mas sim em redes confeccionadas por eles mesmos.
na hora do parto, obrigatoriamente caberá fazer um buraco no solo e enterrar a
placenta. Dona Angela e Samuel salientam que o parto, assim como todas as coisas
sáliba, têm seus “mistérios”. E falam longamente da importãncia dos cuidados que
devem ter o pai e a mãe da criança recem nascida. Depois que a criança nasce, o pai e a
mãe devem ficar atentos ao seu umbico, pois se crê que é pelo umbigo que vêm a vida
da criança. Entre os cuidados a serem tomados, os sáliba dizem que os pais não podem
usar agulhas para costurar por uns 15 - 20 dias, pois se o faz, maltrata o umbigo da
criança. Também não pode cortar coisas com facas. O pai não pode trabalhar e não
pode fazer coisas pesadas, pois se o faz a criança sofre e o peso do esforço pode fazer
saltar o umbigo para fora. Não pode sair para qualquer parte; não deve pisar onde
pisam vacas, cavalos, especialmente o gado zebu, pois esse tem um espírito mau que
pode afetar a criança e matá-la. Não pode passar por cima das pedras, ou andar pelos
rios pelas tardes, ou passar pelos pântanos, pois aí existem os espíritos maus da água,
que segundo os sáliba, são os piores espíritos que podem existir. Esses podem levar à
morte os recem nascidos. Também a mãe e a criança não podem passar por rios, pois o
espírito da água podem caçar a criança e matá-la. É preciso também cuidar das fezes da
criança, enterrando-a. Não se pode deixá-la sem cuidados pois existe um espanto, um
espririto chamado choloantê (tambem chamado pelos Sáliba de tui, ruainodito, ou
silvador), que se lambe as fezes, pode causar uma diarréia verde que destrói a criança.
Para se protegerem desses espíritos, os sálibas usam constantemente os rezos, que são
direcionados aos mesmos. As restrições também estão relacionadas ao alimento e à
bebida. Durante uns 15 a 20 dias a mãe não pode comer pescado, e quando for comer
pescado, esse deve ser rezado. O pai não pode ingerir bebida alcóolica, pois isso
embriagaria também a criança. Enquanto os pais estão em dieta, cabe à família e à
comunidade colaborar levando comida, especialmente carne, pescado, ou mariscos. Se
o casal já tem outros filhos mais velhos, cabe a esses a caça e a pesca. Se não, cabe aos
cunhados, aos tios da parturiente, ou a outro membro da família da mesma. Os
vizinhos podem levar alimento, como o casabe ou a mandioca, banana. Na dieta da
mulher, para que recupere as forças perdidas no parto, estão incluídos o caldo de ovos
e o sancoche (caldo de galinha criola).
As prescrições relacionadas a gerar um novo sáliba se extendem ao período de
gravidez. Os sálibas reconhecem que uma criança começa a aprender ainda dentro do
ventre. Assim, uma mulher Sáliba normalmente deve, ao engravidar, trabalhar do
mesmo modo ou ainda mais do que trabalha em outros períodos. Deve mostrar sua
força de trabalho, pois ainda no ventre a criança aprenderá a ser esforçado e a valorizar
o trabalhar. Dona Angela enfatizou que uma mulher preguiçosa produzirá uma criança
preguiçosa, o que é contrário ao modo de vida e ao ideal de pessoa sáliba.
Reconhecendo-se como fortes e trabalhadores, não cultuam a preguiça entre si e
valorizam uma pessoa que se esforça e trabalha duramente.
A cosmologia sáliba
Através da entrevista com o sr Juan de la Cruz Joropa e de Angela Ponaré, da
Reserva Concejo e com Luiz Maria Caribana e Santos Heliodoro Caribana, da Reserva
Duya, foi possível entender um pouco da cosmovisão dos sálida. Essa cosmovisão
relaciona todos os momentos da vida sáliba, cotidiano e ritualístico, e se relacionam
com os vários momentos da biografia de uma pessoa. Segundo a cosmologia Sáliba, é
na ação cotidiana e ritualística que esses se relacionam com todos os outros seres,
incluso os que eles chamam de seres invisíveis, que se encontram em todas as coisas
que vivem, como o espírito das árvores, das pedras, dos Moriches (palmeiras), e com
os quais eles dizem que se relacionam em todas as instancias da vida, respeitando-as.
Segundo os antepassados sáliba, conforme nos informa Luiz Maria Caribana Nos dizem os antepassados que na vida tudo se transformava: em pessoas, em coisas. Que tudo era uma só relação e que todos se comunicavam. E por isso, ao Moriche, se tem respeito, se tem cuidado. As árvores, todas as árvores têm um espírito ao qual se deve pedir permissão para usar, por exemplo, das frutas. O rezo é um pedido de pedido de permissão para se utilizar disso. E se não falamos a língua sáliba, como vamos fazer esses rezos para pedir a permissão, por exemplo? Um desenho encontrado no documento “Proyecto Educativo Comunitario del
Pueblo Sáliba de Casanare” de 2006, que segundo um dos informantes da Reserva
Duya, foi feito por uma das crianças sáliba, nos apresenta essa interrelação. A criança
mostra uma conexão entre o mundo mortal, o mundo cultural e o mundo imortal.
Embora para uma maior explanação do desenho penso ser necessário uma conversa
com o seu realizador, vou sugerir que esse expressa a relação agônica e fundamental
que os sáliba têm com esses três mundos, que em verdade são parte de um mesmo
mundo: o mundo sáliba. Parece que para os sáliba, a relação com a mortalidade e
imortalidade, passa pelo próprio mundo cultural que esses vivem, embora reconheçam
a existência de elementos que interagem com esse mundo e que, em relação com os
sáliba, pode causar desequilíbrio no seu universo cotidiano. Por isso, precisam sempre
cuidar, lutar, enganar os espíritos, ao mesmo tempo em que precisam cuidar desses e
respeitar sua existência, ou seja, negociar constamente com esses mundos.
O conhecimento saliba considera a agência da natureza e do mundo dos
espíritos em relação à agência humana. Para fazer extração de qualquer fruta, para
caçar, para pescar, devem pedir permissão a esses seres. Esse respeito é um respeito à
lei da origem, segundo o relato do Sr Santos Heliodoro. Se uma pessoa desrespeita tal
lei, esse desrespeito causa danos ao equilíbrio da vida comunitária e especialmente à
saúde de joxo (pessoa) e do grupo. Segundo a filosofia Sáliba, todas as coisas que
existem têm agência, têm sua própria vontade, mas cabe aos sáliba saberem como
evitarem que coisas ruins aconteçam, tomando precauções adequadas, e com isso,
controlando a ação dos demais seres sobre a vida deles. Assim, as enfermidades e a
morte, os conflitos latentes se manifestam quando os Sáliba não tomam conhecimento
de alguma proibição ou não cumprem com os preceitos da natureza. A cosmologia
sáliba faz uma conexão entre ecologia, saúde, ética, moral e estética cotidiana e extra-
cotidiana.
Percebi que suas prescrições/prevenções de males mais fortes relacionam-se à
água, pois dizem ser nela, especialmente, que estão os espíritos de água22, também
chamados de madres de água, ou em Sáliba, fainohdu (plural)/ fainodi (singular), seres
invisíveis os quais podem matar uma criança recen nascida facilmente, caso o pai ou a
mãe passem por um caño (um riacho, córrego, ou rio) sem fazer um rezo adequado.
Mas também é à água que se deve apresentar uma criança quando essa nasce, fazendo-
a conhecida e dando-lhe um lugar social e espiritual. Esse constitui o batismo sáliba:
dar um lugar à criança dentro da cosmologia.
[…] As crianças, todas nossas crianças são batizadas na nossa cultura. Batizar na nossa cultura é dar-lhe de alimento o pescado e levar a banhar no caño e ai se está purificando e se tá dando a conhecer esse outro…, ou seja, que banhando se permite que a água conheça essa nova pessoa que chegou. Isso é o que fazemos. Por exemplo, o pai de uma criança não pode andar por ai com a mesma sem dar-lhe essa purificação e dizer que há esse outro ser que se vai conviver dentro desse meio. Então, se uma pessoa sai assim, como se não tivesse acontecido nada, então há algo negativo que faz com que essa criança morra. Não se pediu permissão e entrou como se fosse dono de tudo. Para tudo há um dono: para o pasto há um dono, para a agua há outro dono, para as árvores há um dono, e todos esses são deuses que estão convivendo ai, e são eles seres superiores que se deve estar em contato com eles.
A pegunta que fiz aos sáliba era se os espíritos eram todos maus, e eles
disseram: Um diz as vezes que são maus porque mataram a uma criança, ou são maus porque, por exemplo, uma jovem foi ao caño em sua primeira mestruação e se engravidou, não é porque os deuses são maus, mas é porque desobedece a essas regras. São regras que se deve estar sempre em contato, e se não se segue, há reação contra essa pessoa. São as leis de origem. São leis que estão postas e não foram implantadas pelas pessoas. Por exemplo, agora estão abundando as lagostas por aqui um animal que está danificando todas as árvores. Então, cada coisa ruim que acontece a uma pessoa, depende dela mesma. Por exemplo, o mosquito se previnia atraves do uso da fumaça [feita da queima da planta] de mata ratão e de outras árvores. E tambem quando se contruia uma casa, pegava um salmoro, e queimava dentro da casa, com mataraton, e o mesmo fazia ao redor da casa feita de palma, e deixava durante nove dias assim, sem ir viver nela… (ver filme http://www.shinealight.org/astronomia.html
Embora vários entre os Sálibas adultos que conheci aleguem que muitos dos
rezos e das prescrições sejam hoje esquecidos pelo seu povo, percebi, de modo forte e
geral, uma consciência e um esforço entre esses para reaver e reconsiderar tais
prescrições, mitos, rezos na cotidianeidade para manter o sistema e a vida comunitária
sáliba em equilíbrio.
Quando falávamos sobre esse tema com a família que nos acolhera para um
22 Entre os Sáliba se pensa que todos os espíritos maus provêm da água. Existem ainda outros espíritos menores que também fazem mau. Se crê que a terra tem um espírito, as pedras outro, os pântanos outro, e se crê que todos eles vivem na água.
almoço, relataram um evento acontecido com eles próprios que os fazia repensar os
rumos do futuro do seu povo e deles próprios. Os sáliba têm um forte poder
organizativo e todos os temas importantes na coletividade são discutidos e as medidas
tomadas para as melhorias.
O evento se relacionava ao perigo de não seguirem as prescrições para o pós-
parto e de como acreditam elas serem verdadeiras. Como vimos, as restrições
relacionadas ao nascimento de uma criança (nee) são muitas. Entre essas restrições,
além das já destacadas acima, está o pai e a mãe não poderem sair de casa e não poder
fazer qualquer tipo de trabalho por uns 15 dias para que a criança não fique cansada e
venha a adoecer; a mãe não poder comer pescado ou somente comer depois de rezado
para que não adoeça; o pai não pode seguir o rastro de animais, para que a criança não
fique nervosa. Os Sáliba precisam também evitar totalmente, por aproximadamente 15
dias, o contato de uma criança recen-nascida com o arco-íris. Para explicar o porque do
seu relato, contaram um mito relacionado ao arco-íris, que dizem terem aprendido dos
ancestrais, mito esse não respeitado por eles por ocasião do nascimento do seu último
filho e que quase ocasionou a morte desse. Esse mito, embora tenha efeito forte na vida
de um recem nascido, fala também do descumprimento do ritual de passagem de uma
menina à chegada de sua primeira menstruação. Uma jovem, quando chegava sua
primeira menstrução, tinha que ser rezada e não deveria sair de um lugar especial, onde
era levada, e permanecia deitada por 4 dias em um chinchorro (rede), sem comer.
Depois desses 4 dias passados, davam-lhe comida e era rezada. Depois, para finalizar
o rito de passagem, era levada ao rio ou um córrego para ser banhada acompanhada
de por um médico tradicional ou rezador e um jovem e outros membros da
comunidade.
Vamos ao mito do Arco-íris:
O mito conta que uma jovem que estava passando pelo ritual da primeira
menstruação, tendo seu pai saído para caçar e a mãe saído para a roça, foi fortemente
recomendada a não sair de casa de modo algum. Vendo que os pais demoravam muito a
chegar, desrespeitando a prescrição, a jovem saiu e cruzou um rio sem fazer os rezos
adequados. No outro lado do rio, encontrou uma cobra, que a atacou e a engravidou. A
moça, assustada, voltou à casa, mas não revelou à família que tinha saido. Sua barriga
cresceu e ela deu a luz uma “criança-cobra”, que não obedecia nem a mãe, nem os avós.
Essa criança sempre feria as pessoas, não ajudava nos afazeres da casa, criava conflitos
no grupo, enfim, tinha um comportamento considerado inadequado a um sáliba e fazia
coisas consideradas erradas por esses. Pelos sucessivos mal comportamentos, um dia
a crianca foi explulsa de casa pelo avô e, sendo rechassada pela família, vai em direção
ao rio. Lá, encontra-se com seu pai, e toma a forma de uma cobra de muitas cores – um
arco-íris. Sobe ao céu em forma de arco-íris. Assim, cada vez que uma mulher sáliba
menstrua, ou que uma criança recem nasce, devem evitar de todo modo o contato com
essa cobra, que está no céu em forma de arco-íris.
O ritual de passagem da menina é um dos quais os sáliba não praticam mais.
Segundo eles várias outras prescrições da cultura cosmológica sáliba vêm sendo,
gradativamente deixadas de lado por motivos práticos, ou por contato com a cultura
institucional exterior. No entanto, como salientei acima, o temor e as histórias que
confirmam a importãncia de seguir tais prescrições e de não abandonar completamente
essas, está muito presente na vida cotidiana do grupo, como veremos, finalmente, na
narrativa do casal sáliba que acabara de me contar o mito.
Na gravidez do último filho, que na época em que eu estava por lá tinha
aproximadamente 4 anos, a mãe, embora filha de parteira, preferiu dar à luz no hospital
pública da cidade de Orocué, distante 4 horas caminhando da Reserva Concejo, onde
moram. O parto no hospital era agora um dos recursos que tinha sido oferecido aos
sáliba pela saúde pública municipal. A família, pelos costumes sáliba, deveria ficar
pelo menos 15 dias sem expor-se ao tempo, para evitar o contato com o Arco-íris e
mesmo de não fazer o esforço do retorno, aspecto que poderia também criar problemas
ao menino. Como o sistema hospitalar não cobria os vários dias de estada no hospital,
a família decidiu pagar um quarto particular. Já haviam se passado dez dias e a família
já não tinha recursos para permanecer os 15 dias necessários. A mulher foi convencida
pelo homem a voltarem para casa. Para convencer a mulher o homem alegou que aquele
era um hábito passado, e que as coisas tinham mudado muito e por isso não sofreriam
mais por causa de 5 dias. Ainda não completamente convencida e temerosa, voltaram
os 3, pai, mãe e a criança. No meio do caminho iniciou uma garoa, e para o susto do
casal, especialmente da mulher, apareceu um arco-íris no horizonte. Embora tivessem
embrulhado a criança nas cobertas para protégé-la dos raios do arco-íris, essa adoeceu
fortemente. Por meses os médicos nos hospitais em Yopal (Capital de Casanare) e até
de Bogotá, ao qual a família recorreu indo de moto já que as estradas ruins fazem a
viagem longa e dificil via carro, não conseguiram dar um diagnóstico exato. A criança
quase morreu. Depois dessas muitas ídas aos médicos sem qualquer sucesso, em
Bogotá a família encontrou por acaso com um curandeiro Sáliba, que também tinha ido
buscar ajuda para sua própria doença. Esse disse, quase de imediato, saber qual era o
problema da criança, e que sabia quem poderia curá-la. Disse, sem que o casal relatasse
a saída antes dos 15 dias do hospital, que o mal que afligia a criança vinha do arco-íris.
Indicou um curandeiro Sáliba, que procurado confirmou o diagnóstico e fez os rituais
de cura, os rezos, e pode finalmente curar a criança. O casal, ao me contar a história,
discutia também entre eles, o fato que ambos tinham deixado para trás duas coisas
fundamentais na sua cultura, que ocasionava esse mal: não ter o parto caseiro e não
ficar em repouso por 15 dias.
Foi na casa desse casal que gravamos os filmes sobre o parto Sáliba e sobre a
medicina, rezos, mistérios do uso de ervas. Estavam empenhados em retomar ao modo
tradicional Sáliba de saúde para poder viver melhor nos resquardos, já que isso define,
em grande parte, o que é ser Sáliba.
Nosotros los Sáliba nos definimos a partir de un sistema cultural propio, construido
ideológicamente desde nuestras concepciones cosmológicas - principios que rigen el mundo; cosmogónicas - orígenes del mundo, y de cosmovisión - manera de pensar e interpretar el mundo. (Proyecto Educativo Comunitario del Pueblo Sáliba de Casanare, 2006).
Para finalizar:
Os sáliba não são, de modo algum, saudosistas ou tradicionalistas. Sua
performance não se dirige ao passado como algo perdido no tempo nem para o futuro
sem esperança. Não pensam que o conhecimento, a cultura e a vida são estáticas ou
que sistema fechado. São, ao contrário, completamente abertos ao contato com o
mundo que os cerca fora das reservas. Estão constantemente em debate com o poder
público, discutindo os modos de saúde e educação oferecidos por esses, têm uma
organização interna rigorosa, embora aberta e democrática, onde discutem seu passado,
presente e futuro. Tampouco demonizam o mundo moderno e os benefícios por esse
oferecidos, como foi o caso da utilização da mídia digital. São, nesses termos, quase
canibais. Alimentam-se com o que vêm do outro, para pensar e construírem a si
mesmos. Mas não fazem isso ingenuamente. Fazem com a consciência da sua
alteridade, e com a agência necessária para repensarem sua própria história. Sua
performance é tanto para si quanto para o outro, buscando, nessa relação a auto-
formatação. Não esperam presentes e ofertas do poder público. Buscam interagir com
esse de forma igualitária e não como esmoleiros. Nesse sentido, foi que talves tenha
aprendido tanto com eles nesses 11 dias que lá passei. Foi uma experiência única, e
firmei com eles uma relação de amizade sincera e de respeito mútuo que se mantém
ainda hoje, embora por internet e telefone. Eles muito me ensinaram com seu modo
calmo de viver, sua estética, a persistência em valorizar o seu próprio saber, e de
garantir o seu lugar no mundo, sem se fecharem em si mesmos. Se precisasse descrever
esse povo em poucas palavras, diria que ser sáliba é ser agente, é fazer o mundo,
embora cientes que o mundo também os faz.
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