“sabe com quem estÁ falando”

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FUNDAO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLTICA DE SO PAULO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLTICA DE SO PAULO

SABE COM QUEM EST FALANDO?o rito e as peculiaridades da hierarquia no Brasil

trabalho desenvolvido por Carlos Eduardo Zamoner Joo Paulo Fagundes Ledo Juliana Castrillo Baracat Jlio Henrique Canuto da Silva Leonardo Ortolani Andr e Susana Chiemi Miura para apresentao de seminrio em setembro de 2005 na disciplina de Antropologia VI profa. Clarice Cohn.

SABE COM QUEM EST FALANDO?

So Paulo, novembro de 2005

SABE COM QUEM EST FALANDO?o rito e as peculiaridades da hierarquia no BrasilTrabalho referente apresentao de seminrio com base no texto Sabe com quem est falando? Um ensaio sobre a distino entre Indivduo e Pessoa no Brasil, de Carnavais, Malandros e Heris, de Roberto DaMatta, Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1997.

IntroduoA inteno deste trabalho apresentar uma anlise dos principais aspectos, crticas e a relao do texto citado acima com outros textos utilizados no curso de antropologia VI. Dessa forma, o trabalho fica dividido em seis partes: (1) apresentao dos conceitos; (2) comparao que o autor faz entre sociedades; (3) diferenciao observada pelo autor entre indivduo e pessoa; (4) as implicaes prticas do uso da expresso sabe com quem est falando?, j como uma primeira reflexo sobre o texto; (5) observao crtica sobre a obra e (6) a relao com outros textos estudados.

Conceitos e mtodos utilizados pelo autor.O trabalho de Roberto DaMatta, Carnavais, Malandros e Heris, situa-se como contribuio teoria das dramatizaes e ideologia. O autor pensa as classes sociais como grupos individualizados que lutam pela posse e controle do sistema. Com base no cotidiano da sociedade brasileira, e no atravs da evoluo temporal, o autor analisa as contradies nestas relaes sociais, como por exemplo a cordialidade frente a violncia. Utiliza portanto a dialtica: por exemplo, quando se verifica que a expresso estudada nega o carter espontneo das nossas relaes e o jeitinho ao mesmo tempo em que o torna vivel pela maneira como a hierarquizao exercida. A realidade humana vista como sendo feita de princpios relativos uns aos outros. Assim, esta anlise acaba por englobar outros pontos de observao, tais como a economia, poltica etc. e apesar de fazer um caminho inverso ao da observao historiogrfica, no a exclui. DaMatta utiliza tambm a antropologia social atravs de Luis Dumont mas propem que a noo do indivduo pode ser posta em contrastes com a idia de pessoa, demonstrando assim outro aspecto da realidade social. A inteno demonstrar como as duas noes permitem introduzir na anlise sociolgica o dinamismo necessrio para que se possa revelar a dialtica do universo social brasileiro. Utiliza tambm a sociologia comparada, que consiste no em observar as semelhanas, mas mostra um contraste entre sociedades (Brasil / EUA / ndia), tendo como objetivo a percepo do sistema de organizao e suas linhas mestras. Procura, ainda, localizar mecanismos scio-lgicos, explcitos ou implcitos na sociedade brasileira e, com isso, construir e ampliar um sistema universal de traduo de sistemas humanos na teoria antropolgica. A grande diferena da abordagem antropolgica nestes moldes o carter totalizador, com dados menos sujeitos perspectiva temporal, descobrindo o que a sociedade transforma em valores eternos (a-histricos e, por isso, imutveis). O ritual 2

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reafirma o real, expressa a totalidade e nas sociedades modernas serve para promover a identidade social e reafirmar a ideologia dominante e seus valores. No caso estudado, uma marca registrada do grupo, a utilizao da expresso sabe com quem est falando? demonstra e refora a estrutura hierrquica da sociedade brasileira, com suas peculiaridades. um rito autoritrio de separao de posies onde se manifesta a desconfiana do mundo e das regras o paradoxo da imagem que passamos e o que realmente somos.1

Comparao entre sociedades: EUA / Brasil / ndiaComo foi dito acima, DaMatta utiliza a sociologia comparada e faz as seguintes observaes: Nos EUA, os valores liberais e do indivduo esto acima das relaes pessoais. O contrato respeitado e valorizado. Tanto assim, que enquanto no Brasil se diz sabe com quem est falando? no sentido de garantir uma superioridade, l se diz quem voc pensa que ? num sentido exatamente oposto. L a expresso traz de volta ao sistema de leis e regras comuns a todos, os indivduos que tentavam passar sobre elas. Portanto, o indivduo, submetido e protegido pelo conjunto de leis, valorizado. Na ndia, ao contrrio, h um sistema fortemente hierrquico em que as diferenas de posio so reconhecidas e acatadas por todos. O individualismo norte-americano, nesta sociedade, seria impensvel. Cada um sabe das limitaes de sua posio social e a preserva. A pessoa, com sua posio hierrquica e com seus privilgios vindos da, reconhecida e valorizada. No Brasil enxerga-se um meio termo. H um sistema dual, composto por um conjunto de relaes pessoais estruturais, ou seja, que organiza a sociedade; e um sistema legal, moderno e individualista, de inspirao liberal e burguesa. No entanto, este sistema de leis que submete as massas, feito por quem tem est no topo dessas fortes relaes pessoais e permite que estas pessoas, e quem est prximo a elas, saltem as leis. Dessa forma, os valores como hierarquia, lealdade etc, so concebidos como eternos e imutveis, portanto fora da histria. Aqui, ao contrrio do que observado nos EUA, h uma tendncia a sair do sistema pois as relaes pessoais so totalizantes, e no o contrrio (as leis). Uma frase que caracteriza essa tendncia e prtica aos inimigos, a lei; aos amigos, tudo!. Em resumo, embora aqui exista um sistema moderno de leis, o que prevalece a hierarquia dada pelo poder institucional e/ou financeiro da pessoa.

Diferenciao entre indivduo e pessoa no Brasil.O principal ponto de observao de Roberto DaMatta est nas relaes do dia-a-dia e a que o autor enxerga a diferenciao, no Brasil, entre indivduo e pessoa como duas formas distintas de conceber o universo social e de agir. Ou seja, o contraste entre impessoal e pessoal, pblico e privado, annimo e conhecido, universal e biogrfico. O uso do sabe com quem est falando? mostra-se como um rito da autoridade (hierarquizao) na tentativa de transformao drstica da realidade legal para o mundo das relaes1

DAMATTA, Roberto. p.186

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corporativas, e funciona como um mecanismo que deixa de lado uma lei universalizante para colocar em pratica uma hierarquizao social, estabelecendo as posies das pessoas no sistema social. Ou seja, o uso da expresso desmascara situaes e posies sociais. Com isso, a expresso permite passar do anonimato, que revela a igualdade e o individualismo, a uma posio social bem definida, onde uma pessoa deve ter precedncia sobre a outra. O primeiro ponto a ser estabelecido aqui que a idia de indivduo comporta trs eixos bsicos. Num primeiro plano, a noo empiricamente dada do indivduo como realidade concreta (natural, independente das ideolgicas ou representaes coletivas e individuais). Nesse ponto o autor faz uma observao relevante e que deixa claro que esse indivduo construdo como unidade social relevante e ativa em uma formao social gera os ideais do individualismo e igualitarismo. a partir desse ponto que o autor contesta, pois embora toda sociedade seja constituda de indivduos empiricamente dados, nem todas as sociedades tomaram esse fato como ponto central de suas elaboraes ideolgicas. Num segundo plano, a ideologia dominante no mais dada igualdade paralela a todos, mas sim a juno de cada um para formar a complementaridade. Em vez de termos a sociedade constituda no individuo, teremos o oposto, o individuo constitudo na sociedade. a partir desse momento que o autor expem a noo de pessoa que corresponde a uma entidade que remete ao todo e no mais a unidade. Por fim, a noo de pessoa pode ser caracterizada como uma espcie de unio da coletividade no individual, que incorporado por meio de rituais e se convertem em fatos sociais significativos, fazendo com que o individuo se torne um elemento social, tornandose assim pessoa. DaMatta afirma que ambas categorias indivduo e pessoa so largamente utilizadas em todas as sociedades. Ocorre apenas que a noo de individuo como unidade isolada e auto-contida foi desenvolvida no Ocidente, ao passo que nas sociedades hierarquizantes e tradicionais, a noo de pessoa dominante. atravs dessa dialtica que o autor explica o sabe com quem est falando?, e desta maneira destaca a importncia terica das duas categorias para sua analise sociolgica. Aps estas consideraes, temos ento a seguinte distino entre indivduo e pessoa no Brasil. O indivduo aquele que no tem nenhuma relao e est submetido s regras, leis impessoais que regem as massas. O caso extremo dessa impessoalidade o migrante, que sai de sua regio e vai para outra bem diferente culturalmente tornando-se um renunciador da famlia, das amizades, enfim, do universo de relaes pessoais. Por isso, estes esto na categoria dos fodidos, como diz o autor. algo complexo e aparentemente contraditrio: estar submetido s leis significa que no ter direito algum. Ao contrrio, a pessoa aquela que est bem posicionada socialmente, seja de modo institucional, pelo cargo que ocupa e o poder atribudo a si por isto e tambm pelo poder financeiro. Com isso, nas situaes do cotidiano, ele usar o sabe com quem est falando? para impor a superioridade que sua posio lhe proporciona e que reconhecida por todos. DaMatta chegou a esta concluso a partir de uma entrevista feita por ele a um grupo de pessoas que teriam potencialmente a possibilidade de uso da expresso sabe com quem est falando? e obteve surpreendentes respostas que, embora no assumissem o uso, exemplificavam com detalhes as situaes em que era possvel lanar mo da expresso.

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A partir da, ele entrevistou outras pessoas que teoricamente no teriam condies para usar a expresso e observou que, embora alguns nem conhecessem a expresso, outros j tinham sido advertidos por ela e mesmo a utilizado. Um caso escolhido por um de meus colaboradores e narrado pelo prprio empregado (uma domstica) um excelente exemplo dessas reaes verticais intensas, em que existe a projeo de posio social: eu tomava conta de uma fazenda de um coronel e seus subordinados gozavam da casa. Um, por causa de uma mudana de quarto, resolveu perguntar se eu sabia com quem estava falando. Mas, quando chegou o coronel, eu perguntei a ele quem mandava na casa e ele disse que era eu e o com quem est falando teve de pedir desculpas.2 Com isso, se observou a projeo social dada pelo modo como essa hierarquizao exercida. Este sim, um modo peculiar do Brasil. As pessoas so educadas sob esta conduta. Em um livro sobre a histria do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), temos um claro exemplo disso. No texto dito que: ocupar propriedades no era uma deciso simples para famlias rurais pobres educadas para demonstrar grande respeito pela lei, bem como olhar os proprietrios de terra como seus superiores.3

Implicaes prticas do ritual do sabe com quem est falando?.A abordagem da DaMatta sobre o ritual do sabe com quem est falando? mostra que o uso desta expresso no um modismo, mas sim uma "marca" de nossa formao social. Neste trabalho, observamos duas coisas: por um lado, o "sabe com quem est falando?" promove uma igualdade com a projeo social quando o subalterno incorpora o privilgio do patro, por exemplo e alcanando coisas que a sua posio numa sociedade hierarquizada no permitiria; e por outro, a reproduo da hierarquizao por essas camadas (do sujeito que se projeta), impossibilitando a horizontalidade nas relaes sociais, que seria a condio para a cidadania. Com isso, as regras ficam frgeis, pois h algo alm dos contratos. A pessoa mais importante que o indivduo. Embora parea contraditrio, este costume em parte responsvel pelas nossas calorosas relaes pessoais, pois se num primeiro momento a forte hierarquizao parece impedir a malandragem e o jeitinho delimitando o lugar de cada um na organizao social, por outro possibilita estas caractersticas pela forma peculiar como ela exercida, de modo paternalista, com a projeo social, fazendo com que estas pessoas tambm saltem as leis e sintam-se, ao menos em termos morais, acima de pessoas que seriam seus iguais. Criam-se tambm "novas esferas de poder", por exemplo, entre os que esto desprovidos do poder institucional, como numa regio perifrica onde h forte esquema de trfico de drogas mas onde pode ser observada toda uma srie de condutas e classificao das pessoas.

Algumas observaes sobre a obraNesta parte do trabalho, apresentaremos a interpretao de alguns pontos do captulo estudado que so relevantes. DaMatta adota o mtodo da Antropologia Social ou Sociologia Comparada a fim de estabelecer uma premissa adequada sua proposta2 3

DAMATTA, Roberto. P.190. BRANFORD, Sue e ROCHA, Jan. p. 30

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epistemolgica e contribui com a discusso ao apontar novas perspectivas, conseguidas a partir desse mtodo. Mas nenhum mtodo perfeito e no possvel se esgotar o entendimento de tudo que constitui um objeto estudado. O autor consegue agregar informaes importantes durante o estudo e em suas concluses, mas tambm deixa margens que precisam ser aparadas para que no se tenha uma apreenso avessa a da inteno do texto. Os termos indivduos e pessoas, pretendem definir dois tipos ou duas classes de seres humanos conforme o comportamento que adotam no relacionamento com outros seres humanos, e os lugares em que esto. Etimologicamente os termos expressam idias diferentes, mas no opostas e no decorrer do uso desses termos eles se tornaram sinnimos, DaMatta tenta fazer uma distino semntica entre eles, mas essa tentativa gera confuso4. Numa atitude elitista, em vrios momentos DaMatta se posiciona como integrante do grupo de pessoas e inclui o leitor neste grupo5, deixando bem claro para qual parcela da populao o texto foi escrito: para as pessoas, para os estudiosos do assunto, e no para todo e qualquer um. Isto demonstra uma ciso existente em nossa sociedade: Apenas essas chamadas pessoas tm acesso a uma instituio de ensino superior e a textos como esse, mas ao colocar da forma como ele faz, d margem para que se legitime essa situao. Assim, ele tambm no traz para junto da discusso os prprios indivduos que estudou e de quem fala, pois usa uma linguagem prolixa tpica de acadmicos intelectuais. Isso tambm pode ser visto como um tipo de pensamento grande divisor6, assim como o prprio mtodo de comparar os sistemas e os habitantes, do Brasil e ndia, e do Brasil e Estados Unidos. DaMatta tenta definir os dois grupos de seres humanos, dizendo que pessoas tm mediadores que facilitam os ritos de passagem, mas que em algumas situaes vivem durante um pequeno tempo como indivduos (at se restabelecer a complementaridade, quando a casa domina a rua), enquanto os indivduos que tm de seguir imperativamente todas as leis (como se algum pudesse cumprir rigorosamente todas as leis), s contam com sua fora de trabalho para media-los, projetam em si o status de pessoas com quem mantm proximidade (uma forma de mediao passiva, ou involuntria), no possuem nenhuma relao de mediao e de complementaridade e que por vezes lanam mo da violncia como nico padrinho possvel. Cada frase afirma algo diferente quanto s possibilidades de mediao encontradas pelos indivduos, mas em todas ele se refere ao migrante, ao transeunte suscetvel ao uso da violncia contra o sistema. Nada contra ao uso da violncia contra o sistema, mas apesar de extremamente relevante, este dado levantado por DaMatta d margem para que se legitime a xenofobia. Nos ensinado que no devemos criticar o autor por algo que ele no se preocupou em responder, mas DaMatta ao estudar os indivduos, identifica um problema social vivido por eles e mesmo assim parece no demonstrar vontade de contribuir para alterar esta situao, por isso aqui a crtica sobre sua falta de preocupao com estas questes. Esses so os principais pontos que nos pretendemos examinar no texto que o antroplogo brasileiro Roberto DaMatta escreveu imbudo de suas preocupaes com4

Inclusive pro prprio DaMatta, pgina 242: Sem terem mediadores essas pessoas esto sujeitas s leis da oferta e da procura. 5 Um exemplo o da pgina 240: Recebemos, ento, ao longo de nossos ritos de passagem, padrinhos [...] que nos ajudam a enfrentar as dificuldades que a vida pe em nosso caminho. 6 Pg. 242: Enquanto para ns a individualizao raramente ocorre [...], para eles a individualizao a regra.

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identidade nacional. A partir disto fica uma sugesto que para resolver em parte os problemas apontados: Parece que ao tentar enquadrar pessoa e indivduo em categorias determinadas, DaMatta criou problemas para sua teoria que poderiam ser solucionados se fossem pensados em termos de relacionamentos pessoais e impessoais. Isto assumiria a ambigidade prpria do comportamento humano em geral (j que somos muito mais imponderveis do que as cincias humanas gostariam) e creio que manteria as principais propostas tericas levantadas pelo autor.

Relao com outros seminrios/textos.Nesta parte, para finalizar, destacamos algumas questes levantadas na apresentao em seminrio dos outros textos sobre identidade nacional e tentamos colocar uma resposta de acordo com o texto de DaMatta aqui estudado. - FRY, Peter, Feijoada e Soul Food: notas sobre a manipulao de smbolos tnicos e nacionais. O autor trata da formao da tradio e mostra o caminho de como algo autntico mascarado e, posteriormente, transforma-se em cultura de massas. O texto citado acima dialoga bastante com o texto estudado neste trabalho, fazendo a observao de uma outra perspectiva. Peter Fry trata do candombl como uma identidade africana que para permanncia do culto no Brasil teve de ser camuflado, associado a santos catlicos. J no texto de DaMatta, a estrutura autoritria tambm camuflada sob um conjunto de leis de inspirao liberal. Aqui, os indivduos, por conta da forte hierarquia, se aproximam dos centros de poder para buscar a ampliao de suas relaes pessoais e serem reconhecidos como pessoas. Este processo de projeo social acaba por possibilitar o jeitinho. - DAMATTA, Roberto. Digresso: a fbula das 3 raas a hierarquia evita o conflito A hierarquia lembrada na expresso sabe com quem est falando? para chamar a ateno dos indivduos a tomarem seus lugares na estrutura social. Indiretamente, isto mostra que as leis, regras e a suposta igualdade vinda da so, no caso brasileiro, de fachada visto que o que prevalece a posio social e as relaes sociais como meio de imposio (para quem detm essa espcie de poder) e a projeo social (para quem est prximo destas pessoas e tem uma relao de cumplicidade ou lealdade). o conceito de mestiagem foi uma interpretao do Brasil que se tornou hegemnica. Cabe pensar a relao da mestiagem complementar com o forte senso hierrquico, o que primeira vista parece uma contradio.

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Parece-me que a resposta para essa contradio posta, com base no texto aqui apresentado, a forma de organizao da sociedade brasileira. Podemos pensar a sociedade brasileira como uma espcie de hierarquia circular, onde h uma pessoa bem posicionada socialmente, isto , com poder institucional ou financeiro, no centro gozando dos privilgios que sua posio lhe oferece, e com as pessoas que esto em sua volta absorvendo alguns destes privilgios pela proximidade deste agente central que possui este poder. Estas pessoas podem ser desde a esposa do deputado at seu motorista ou empregada. Na mesma perspectiva estaria o problema do preconceito racial negado pelo conceito de mestiagem. Ele maior ou mais escancarado quanto mais longe esta pessoa estiver no circulo social das relaes pessoais. Na revista Caros Amigos do ms de setembro, temos um exemplo7: ao entrevistar o empreiteiro Ceclio do Rego Almeida, considerado o maior grileiro do mundo, o reprter Joo de Barros, ao tratar da questo das ocupaes de propriedade indagado pelo entrevistado se j entrou algum vagabundo na casa dele. Aps responder que sim, o reprter pergunta a Ceclio como ele reagiria no lugar dele. E a resposta: eu faria exatamente como voc fez. Se eu estivesse com minha famlia, meus filhos pequenos, eu tirava meu relgio, s no quero que faam nada com a minha mulher. O melhor banheiro que tenho para vocs me prenderem aquele, tome a chave, me prendam l. Voc no foi covarde, foi inteligente. Deve ter sido preto esse filho da puta que entrou, no ?. Mais adiante, no final da entrevista, o reprter pergunta se Ceclio se sente constrangido com sua riqueza diante de tanta pobreza. A resposta: Nenhum. Nenhum. Zero. Eu s no passei fome. Vivi na merda total anos e anos. Trabalhava das 6 da tarde a 1 da madrugada. Estudava com atestado de pobreza. No tinha roupa boa para sair. E no precisei invadir nada nem chorar pitanga pra ningum (...) zero a pena que eu tenho. Agora, se um homem entra no meu trabalho e for vesgo, eu mando consertar os seus olhos. Se tiver lbio leporino, eu mando arrumar. Se tiver o nariz arrebentado, eu mando restaurar o nariz no melhor restaurador de nariz que tenha. Seja quem for, do primeiro ao ltimo escalo. - SCHWARCZ, Lilia K. Moritz. Complexo de Z Carioca Na apresentao deste texto, foi levantada a questo sobre o motivo pelo qual a personagem Z Carioca, criado por Walt Disney, foi aceito como smbolo do brasileiro. O sabe com quem est falando? um ritual inverso ao carnaval, semana da ptria e as procisses religiosas. Por ser um rito indesejado, ele no tem uma data fixada para ser utilizado, e mostra o que ns, brasileiros, tendemos a ocultar: o formalismo e os preconceitos, e a maneira hipcrita como isto se d na nossa sociedade. De um lado, o inverso das nossas associaes espontneas, livres e amorosas dos futebis, cervejas na praia, carnavais e samba. , a primeira vista, a negao do jeitinho, do malandro posto que coloca cada um em seu lugar e talvez aqui esteja a resposta para a aceitao do Z Carioca como smbolo nacional: a tendncia a ocultar o autoritarismo em nossa formao social, j que esta atitude foi apoiada pelo governo da Revoluo de 1930, Getlio Vargas. Porm, indo um pouco mais alm, temos que da maneira como essa hierarquizao exercida, ela possibilita o jeitinho atravs da projeo social.7

BARROS, Joo de. pp. 32 e 33

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- VIANNA, Hermano. O Mistrio do Samba Neste seminrio, podemos destacar dois pontos: destacada a diviso no espao, na observao das reformas urbansticas ocorridas principalmente no Rio de Janeiro, com o intuito de demonstrar o status social de cada indivduo, expondo a excluso social. Ao final, colocada a expresso: o samba desceu o morro, enquanto o povo subiu... e l continua at o prximo carnaval... Nos parece que esta diviso social tem a ver com a idia de hierarquizao no sentido do cada um no seu lugar, deixando a mistura apenas para os rituais, com datas fixadas,embora toda ideologia que diz que h somente miscigenao. No entanto, a idia de miscigenao acaba por influenciar de fato as relaes e produes culturais, como nos vrios movimentos musicais. Isto prova que apesar da propaganda do governo dos anos 1930, o povo tomou esta idia e a transformou em algo original. Da mesma forma a aceitao hierrquica discutida em nosso seminrio com a projeo social, o jeitinho.

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Bibliografia

BARROS, Joo de. Exclusivo O maior grileiro do mundo, in: Caros Amigos, ano IX, nmero 102, setembro de 2005 ou no stio www.carosamigos.com.br BRANFORD, Sue e ROCHA, Jan. A fundao do MST, in: Rompendo a cerca: a histria do MST, So Paulo, Editora Casa Amarela, 2004. DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heris. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 1997.

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