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às Margens: de ponta a ponta

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Colaboradoras(es)Ana Paula

Carlos EduardoDanielDavid

DéboraEduardo

FranciscoGabriel

JeffersonJosevan

JulioLeonardo

LucasLuís Eduardo

NicolePedro A.Pedro L.Pedro M.RômuloRafael

S. MarcosStela

ThiagoValfrâncisWellington

Equipe responsávelAna Vitória Lossavaro

Carlos CorreiaLeôncio NascimentoMarcelo Ryngelblum

Nathielly Janutte

IlustraçãoCarolina Ito

Edição/Diagramação

Ana Luiza Voltolini Uwai

Agradecimentos

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Quem SomosDesde o final dos anos 80 no Brasil, o índice de infecção por HIV/Aids entre usuários de drogas injetáveis era bastante alto devido o compartilhamento de agulhas e seringas. Diante deste cenário, Andrea Domanico e Cristina Brites, idealizadoras do É de Lei, iniciaram atividades de redução de danos, a princípio vinculadas ao NEPAIDS – Núcleo de Estudos para Prevenção da AIDS, do Instituto de Psicologia da USP. Nas intervenções em cenas de uso de drogas, a equipe percebeu a importância de criar um espaço de interação social, onde fosse possível desenvolver um conjunto de atividades para além da prevenção de doenças, e nesse contexto nasceu o Centro de Convivência. Nos anos 2000, com a diminuição do uso da cocaína injetável e a chegada do crack, a perspectiva da RD começou a se expandir. Desta forma, o É de Lei começa a se reorganizar, ampliando a atuação e co-construindo novos insumos para efetivar a Redução de Danos. Cultura, Ensino&Pesquisa e Comunicação&Advocacy passam a ser frentes de atuação, proporcionando não só novas ferramentas à RD, mas também ampliando a incidência desta nos discursos e espaços para além das cenas de uso.

Atualmente, o É de Lei se destaca como uma das principais referências nacionais de redução de danos e mantém seu compromisso de contribuir para uma mudança na cultura no campo das drogas. Visando à diminuição do estigma e do preconceito em relação à pessoa usuária de drogas e, com isso, à diminuição dos agravos à saúde, da marginalização, da violência e das violações de direitos humanos.

A missão do É de Lei é co-criar e disseminar referências e práticas de cuidados e estratégias de redução de danos a partir da atuação junto a pessoas que usam drogas, trabalhadores da rede intersetorial, academia e gestores públicos, visando incidência política que transforme a lógica da guerra às pessoas.

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As pessoas que usam os serviços de saúde são, em certa medida, parceiras das trabalhadoras e trabalhadores que atuam nestes equipamentos. Tanto quem vai aos equipamentos em busca de atendimento quanto profissionais que prestam esse serviço desejam e trabalham em conjunto por um atendimento humanizado e compreensivo, sendo assim capazes de superar as eventuais dificuldades que surgem nos momentos de atendimento.

É a partir dessa constatação que o Centro de Convivência É de Lei organizou a cartilha Às Margens: de ponta a ponta.

Realizamos encontros para ouvir ambos os grupos, usuários/as e trabalhadores/as, a fim de entender o que todos/as têm a dizer sobre suas dificuldades de acessar os serviços da rede pública e prestar um bom atendimento.

O conteúdo dessa interação resulta neste material, destinado a todas as pessoas que prezam pela qualidade do SUS. Num formato simples e direto, a cartilha pretende mostrar de que forma é possível alcançar uma melhor condição de convivência entre as pessoas que se encontram nestes espaços e, dessa forma, tirar proveito de um ambiente mais humanizado e seguro.

A proposta de escrever o que foi dito e defendido por quem tem um lugar estigmatizado sugere um novo tipo de produção, valorizando a experiência de uso dos equipamento de saúde e assistência social pela população e construindo novos referenciais de atendimento em saúde. Assim, esperamos ampliar e reforçar as bases de uma vida menos bruta, violenta e injusta.

A construção conjunta desse material nos permite pensar em como a Redução de Danos pode produzir ferramentas para desenvolver novas forma de cuidar, ampliando a noção da pessoa que é atendida para além do seu uso de drogas ou sua condição social e produzindo novas relações da sociedade com quem faz o uso.

O que é a cartilha

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Há várias situações do dia a dia que desafiam a capacidade de cada um e cada uma, de modos diferentes. Dada toda a diversidade de público e a complexidade de casos que passam pelos diversos serviços, para conseguir atender a todas e a todos de forma que sintam que suas demandas foram atendidas, é importante conhecer minimamente as especificidades, tanto dos perfis de pessoas que acessam os serviços, assim como das demandas para as quais o equipamento foi designado, além das que surgem habitualmente, mesmo fora de contexto. Dessa forma, é possível respeitar as individualidades, criando um ambiente de empatia e facilitando a comunicação.

Neste bloco temos alguns casos reais, que foram adaptados para preservar a privacidade das pessoas que os apresentaram, e que também expressam, a partir das individualidades de quem passou por tais experiências, o que seria uma boa prática nestas situações.

Perfis,situações e recomendações de boas práticas

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Pessoas LGBT+ trazem consigo a potência da diversidade. Os/as profissionais devem acolher com respeito, por exemplo, compreendendo a importância de chamá-las pelo seu nome social, garantindo uma sociedade mais justa e menos violenta para essas pessoas. Profissionais da saúde são agentes fundamentais nessa construção pelo respeito à diversidade, e se aliam nessa busca imprescindível por uma realidade mais acolhedora.

Respeito à diversidade

Identidade de gênero é como você se entende e se identifica, podendo ser mulher, homem, queer ou outro, havendo uma pluralidade de gêneros.

Orientação sexual diz sobre por quem você sente atração: alguém do mesmo gênero que você, outro(s) gênero(s), o gênero oposto ao que você se identifica, nenhum gênero etc.Sexo biológico diz sobre o órgão genital, cromossomos e hormônios que biologicamente compõem o seu organismo.

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Embora o uso de drogas seja visto socialmente como uma prática criminosa, muitas pessoas fazem uso das mais variadas substâncias, lícitas e ilícitas, de forma recorrente, desenvolvendo ou não problemas de saúde por conta deste uso.

Pela forte estigmatização social, a seletividade policial e os preconceitos dominantes, recorrentemente pessoas usuárias de drogas se veem em situação de receio, medo ou vergonha. Definir as formas com as quais nos relacionamos com as diferentes substâncias, bem como a decisão pelas formas de cuidado mais adequadas às necessidades de cada um, é papel de cada indivíduo. Aos/às profissionais de saúde cabe a função de, a partir da escuta, ofertar os meios de cuidado à disposição naquele momento, respeitando a escolha desse indivíduo, seja ela a busca pela abstinência ou outras estratégias que reduzam os danos provocados pelas substância ou pelas consequências de seu uso.

Uso de drogas

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O estigma e a discriminação das pessoas que usam drogas diminuem a possibilidade dessa população adotar práticas de cuidado e se vincularem aos serviços de saúde e assistência.

Acessar o serviço e falar sobre seu uso é um momento difícil e chave para a vinculação com a pessoa. Por isso, é importante evitar julgamento e ter uma postura acolhedora. A confiança é fundamental para o atendimento em saúde.

Estigma e discriminação

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Todos e todas possuem crenças e modos de ver o mundo. Precisamos estar atentos/as para não impormos nossa visão de mundo, por exemplo com “sermões” e “lições de moral”. O respeito pelo/a outro/a, pela sua história, pelo seu modo de viver e entender a vida são a base do processo de cuidado. É importante escutar a história do sujeito sobre si mesmo e sua teoria sobre o próprio sofrimento.

Por exemplo, entender que a pessoa nem sempre se encontrará abstinente é uma forma menos conflituosa de lidar com a realidade dela, e pode ajudar a criar mais confiança entre ela e o o/a profissional. A abstinência é desejada por alguns usuários e usuárias, mas não é obrigatória, nem fundamental. Não julgar a embriaguez, a intoxicação por outras drogas, de um ponto de vista moral ou recriminatório, ajuda no fortalecimento dos vínculos com as pessoas usuárias e auxilia na reformulação dos projetos pessoais de vida delas.

Alteridade e empatia

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Pessoas usuárias e profissionais dividem a indignação e insatisfação com a estrutura do Sistema de Saúde e Assistência. É recorrente que a pessoa em situação de albergamento atente para a precarização destes espaços.

Da mesma forma, quem é profissional da saúde se vê muitas vezes obrigado/a a exercer seu trabalho em condições limite e desfavoráveis. O diálogo entre ambos sobre tais situações pode ajudar na compreensão destas, assim como possibilitar o fortalecimento do vínculo e confiança com as pessoas usuárias do serviço. Melhorar o espaço é fundamental para aumentar a chance das pessoas se vincularem e aderirem ao atendimento.

precarização dos serviços

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O Sistema de Saúde é também formado por serviços terceirizados, como a segurança e a limpeza, e multiprofissionais. Tanto pessoas usuárias quanto profissionais falam da importância de orientá-los para a compreensão do público atendido no Sistema de Saúde, seja nas situações complexas que envolvem a ausência de abstinência e consequente intoxicação de uma parcela de pessoas, seja nas situações em que é necessário lidar com as diversidades, como pessoas LGBT+, por exemplo.

Serviços Terceirizados

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Desde o começo da humanidade, os seres humanos fazem o uso de substâncias que alteram sua relação com a realidade. Portanto, atentar-se às substâncias usadas por quem chega a um serviço de saúde é fundamental na construção de um projeto terapêutico que faça sentido para aquela pessoa.

A decisão de parar de usar drogas é um processo longo, difícil e com muitos capítulos para quem deseja realizá-lo. Para algumas pessoas, este percurso pode provocar muito sofrimento, e recorrer ao uso pode se tornar uma estratégia para lidar com a tensão. Desta forma, é preciso entender que a abstinência é apenas uma das estratégias possíveis, e quem deve decidir a melhor forma de se relacionar com seu uso é a pessoa que procura o serviço. É importante estar aberto/a para pensar em ações plurais de cuidado, que não se restrinjam à abstinência, acolhendo o que há de singular na relação das pessoas com seu uso e pensando a partir daí.

Intervenções Plurais

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Casos de afastamento de crianças de mães usuárias de drogas tornaram-se corriqueiros em diversos estados brasileiros. Mulheres, sobretudo as que estão em situação de rua, têm perdido o direito de estar com o filho/a por fazerem uso problemático de drogas, principalmente o crack. Muitas vezes, elas sequer conhecem seus próprios bebês, pois são retirados diretamente da maternidade.

Nem crianças nem mães podem ser submetidas a situações que coloquem em risco sua saúde e integridade física. Por essa razão, já existem normativas nacionais a respeito de como encaminhar esse tipo de questão. Ao se deparar com mulheres grávidas e/ou mães que fazem uso de drogas, é importante manter o diálogo entre todos os serviços para que seu uso não tenha impacto sobre seu direito à maternidade, caso essa seja sua vontade, assim como o direito à saúde dela e da criança.

Maternidade e uso drogas

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A violência policial pode gerar situações extremamente nocivas para as pessoas usuárias, como o abuso da força física, o constrangimento e a intimidação. Muitas pessoas relatam dificuldade de circular pela cidade sem que sejam abordadas pela polícia. Outras mencionaram do receio de sair de suas “malocas” e o “rapa” tomar todos os seus pertences, como documentos, remédios, cobertores etc.

As táticas de repressão e violência direcionadas à população usuária de drogas, principalmente às pessoas em situação de rua e/ou vivendo em territórios periféricos, interfere diretamente nas estratégias de cuidado e qualidade de vida delas. A violência afeta a saúde porque ela diminui a qualidade de vida das pessoas, gerando medo e agravos. Muitas vezes, a força utilizada nas abordagens são excessivas e desnecessárias, com violência de ordem física, psicológica e muitas vezes relacionadas a gênero.

repressão e violência policial

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A rede de serviços e a atuação em redes

Dos entraves enfrentados pela população em situação de vulnerabilidade, os encaminhamentos entre serviços são os que apresentam maior incidência e que acabam dificultando a adesão por parte das pessoas usuárias aos tratamentos ou projetos individuais. Essa dificuldade nos encaminhamentos é particularmente desafiadora por dois motivos:

A capacidade dos equipamentos em atender a alta demanda da população é limitada;

A articulação entre os trabalhadores e as trabalhadoras dos diversos serviços é escassa;

Sobre o primeiro, as estratégias de implementação da política pública por parte da gestão dos serviços tenta dar conta e expor as dificuldades junto à gestão do equipamento e nas reuniões dos Conselhos de cada área podem fornecer à gestão informações importantes para pensar a adequação destes equipamentos.

Em relação à articulação entre os/as trabalhadores/as, a estratégia fundamental é a comunicação distribuída e avaliada coletivamente e acessível para todos e todas.

O trabalho de articulação entre equipes pode ser facilitado por uma pessoa que está encarregada de identificar e falar com as pessoas que atuam com um mesmo objetivo, ou que atuem sobre uma mesma territorialidade e população. Cada equipe pode eleger um/a articulador/a que cuida em manter as equipes em contato e que garanta a distribuição da informação para os demais colegas.

Embora normalmente esta forma de atuação envolva apenas as equipes de trabalhadores/as, sua potência está na possibilidade de articular também outros atores sociais que se encontrem na mesma área de atuação: escolas, coletivos, associações de bairro, artistas, educadores etc.

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Sobre esta estratégia específica, várias formas de atuação são possíveis, a depender do perfil das pessoas e equipes envolvidas:

Fórum: dispositivo para apresentação de trabalhos ou temas específicos que podem ser discutidos e avaliados pelos presentes. Este formato permite que as equipes apresentem as estratégias adotadas e compartilhem com seus pares que podem adotar a estratégia e/ou sugerir melhorias.

Assembleias: reunião onde as equipes envolvidas na atuação com uma população em comum podem fazer acordos e deliberar sobre formas de atuação, fluxos de atendimento etc.

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De onde partimos

Estigma SocialO estigma social está relacionado a uma marca que uma pessoa ou um grupo de pessoas carrega por conta de uma característica não esperada ou mesmo indesejada pelo senso comum/status quo. A manifestação mais marcante deste fenômeno é o preconceito em suas diversas formas.

A palavra estigma em sua origem quer dizer marca, mancha, cicatriz. O preconceito acontece quando alguém é tratado diferente por ser identificado como pertencente a um determinado grupo social. Quando isso acontece, deixamos de considerar a pessoa de maneira total, simplificando-a a uma determinada característica, quase sempre atrelada ao descrédito.

Dentro dos serviços públicos, segundo relatos de pessoas usuárias de drogas, é comum a discriminação tanto por parte de servidores e servidoras como também por outras pessoas que fazem uso desses serviços.

Mais notadamente, as pessoas que vivem em situação de rua, exatamente por esta condição, são as que mais enfrentam barreiras no atendimento. Essa situação é agravada a depender do grupo que fazem parte: mulheres, mulheres gestantes, população LGBTQ+, negras e negros, migrantes, pessoas em situação de sofrimento psíquico, pessoas com passagem no sistema de justiça criminal, pessoas em situação de prostituição, pessoas vivendo com HIV e pessoas que fazem uso de drogas.

O estigma pode se manifestar de maneira explícita em um comentário, uma piada, ou em uma ofensa direta, mas também se manifesta de maneira mais sutil, como um olhar torto e mal-encarado e um tratamento diferenciado.

É importante ressaltar que muitas vezes os estigmas e as discriminações se sobrepõem, não atuando de maneira independente. Por exemplo, uma mulher negra, lésbica, usuária de crack, gestante e com passagem pelo sistema de justiça criminal irá vivenciar e experienciar a sobreposição destas categorias sociais, se manifestando em opressões, violências e barreiras de acesso. Compreender a relação entre essas categorias é fundamental para garantir o acesso à saúde e a qualidade de vida.

Redução de danos

A redução de danos caracteriza-se como uma abordagem ao fenômeno das drogas que visa minimizar danos sociais e à saúde associados ao uso de substâncias psicoativas.

O início dessas intervenções foi marcado por ações no campo da saúde, que hoje tem se ampliado da esfera do direito à saúde para as esferas do direito à cidadania e dos Direitos Humanos. As práticas de redução de danos buscam a socialização política de pessoas usuárias de drogas de maneira crítica, no sentido de tornarem-se protagonistas do

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seu cuidado com a saúde, da busca pela efetivação de direitos, e da discussão de políticas governamentais e de Estado, individual e coletivamente.

A origem da Redução de Danos data de 1926, na Inglaterra, com a publicação do Relatório Rolleston, a partir do qual se indicava a prescrição médica de opiáceos para dependentes químicos de heroína, como forma de prevalecer os benefícios desta administração frente aos potenciais riscos da síndrome de abstinência.

Já a primeira iniciativa comunitária surgiu na Holanda, em 1984, como reivindicação de pessoas usuárias de drogas injetáveis, que preocupadas com os elevados índices de Hepatite B entre si, por conta do compartilhamento de seringas, demandaram ações do governo para a contenção da epidemia. A partir de então foi criado o primeiro programa de distribuição e troca de agulhas e seringas.

No Brasil, a redução de danos data do final da década de 80 com a troca de seringas usadas por estéreis, em Santos, nas cenas de uso de drogas injetáveis para conter a disseminação de HIV/AIDS, já que o compartilhamento de seringas era uma prática constante.

Desta forma, não há uma fórmula a ser seguida quando o assunto é redução de danos. Estratégias utilizadas na década de 80 para o cuidado no uso de cocaína injetável, hoje são constantemente repensadas. Isso só é possível a partir de uma construção entre trabalhadores, trabalhadoras, usuários e usuárias, considerando que muito mudou desde então, como o consumo, por exemplo, que deixou de ser injetado para ser fumado.

A invenção e a criatividade são princípios organizadores da atuação a partir da RD. Estar aberto a ouvir sobre o padrão de uso de uma determinada pessoa, suas queixas a respeito deste e pensar junto estratégias que façam sentido para que o uso cause uma quantidade menor de danos é o grande desafio. Despir-se de normas, proibições, moralismos e estar junto de quem quer falar sobre o seu uso produz.

Vulnerabilidadee Situação de Rua

Vulnerabilidade é um “conjunto de fatores de natureza biológica, psicológica, social e epidemiológica cuja interação amplia os riscos ou danos de uma pessoa ou população frente a uma determinada doença ou situação.”(C231 Santa Catarina, Secretaria De Estado Da Saúde. Diretoria Vigilância Epidemiológica . - Abc Redução De Danos. – Florianópolis: Ses, 2003. ) Nesse sentido, uma pessoa em situação de rua está exposta a um risco ampliado (....)Os fatores que levam uma pessoa a habitar as ruas são diversos. Por mais que existam casos parecidos, as pessoas em sua diversidade sentem e vivenciam isso de formas distintas e, uma vez nesta situação, é importante considerar a forma como cada pessoa lida com ela e se estabelece nessa realidade.A rua se apresenta como o “chão possível” frente a situações de vulnerabilidade que se dão em outros espaços, como junto à família, na comunidade, a relação com trabalho, escola etc.Uma vez na rua, e frente aos riscos descritos, algumas situações necessitam de um tipo de disposição que não está ao acesso de todos e todas. Resiliência ao frio e à fome, por exemplo, requer um pouco mais que força de vontade. As frustrações decorrentes da falta de acesso aos equipamentos públicos de saúde e assistência social dificilmente são superadas por esforço próprio. Estes são apenas alguns poucos fatores que aproximam um cidadão ou uma cidadã ao uso de drogas. Em geral, o álcool é a opção que se apresenta e que dá conta da fome, da sede, do frio, do sono, das dores da vida. Nesse sentido, as drogas, ao invés de serem a raiz dos problemas, geralmente se mostram como o remédio possível, dado o contexto de rua: ao mesmo tempo que ameniza a vivência de algumas vulnerabilidades, expõe a outras. Por isso é tão importante conversar com as pessoas sobre suas substâncias de uso.

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Direitos Humanos, drogas e proibicionismo

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” - CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

Direitos Humanos é um termo bastante estigmatizado. Muitas pessoas atacam o conceito sem saber exatamente do se trata, ou até mesmo sem se entender como detentor dos mesmos direitos, marginalizando-o a direitos de pessoas presas.

Quando se fala, por exemplo, sobre o crescimento da população carcerária e, ao mesmo tempo, do número alarmante de homicídios que continuam acontecendo, é importante pensar sobre quais são as causas de toda essa violência e quais são as respostas dadas a ela.

Um ponto de partida para essa reflexão é pensar que a violência no Brasil não aumentou por causa dos direitos humanos, mas justamente pela falta de aplicação deles. Se são os Direitos Humanos que garantem a todas as pessoas o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, todas as pessoas, independente da sua relação com a droga, por exemplo, merecem ter acesso a tais direitos. E se hoje a juventude negra e pobre cada vez mais lota os presídios e os cemitérios, é porque nossa sociedade não está sendo capaz de oferecer outras possibilidades para ela.

Um dos maiores motivos pelos quais pessoas estão presas no país são os crimes relacionados a drogas. A chamada guerra às drogas, que criminaliza uma série de condutas, na prática, serve para criminalizar apenas determinadas parcelas da população e, por isso, também a chamamos de guerra às pessoas.

Entender as complexidades que construíram a proibição das drogas, nos ajuda a pensar quem são as pessoas usuárias criminalizadas pelo uso, e quais substâncias entram em jogo. Desta forma, quando pensamos na promoção à saúde e prevenção de doenças em populações que fazem o uso de drogas determinadas como ilícitas, se faz de extrema importância nos atentarmos a estas complexidades que afetam, até hoje, a maneira como essas pessoas se relacionam com o mundo, com os seus direitos e também com as substâncias.

As consequências dessa guerra têm a ver com Redução de Danos, porque, apesar do uso de drogas não ser passível de pena de prisão no Brasil, as políticas estatais sobre esse assunto se materializam no cotidiano principalmente por meio da segurança pública, deixando mulheres e homens (cis e transgênero), majoritariamente pessoas negras e pobres, em situações de vulnerabilidade, seja nas regiões periféricas, nos centros urbanos, nas cenas de uso ou nas prisões.

Entendemos a Redução de Danos enquanto um princípio de defesa da vida: a RD, num aprofundamento de sua perspectiva libertadora e humanizadora, é também os Direitos Humanos.

Saúde MentalAo longo da história, as pessoas portadoras de transtorno mental/em sofrimento psíquico sempre sofreram com marginalização e descaso. Tidas como loucas, insensatas

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Prevenção ao HIV/AIDS e às ISTs

e irracionais, o “tratamento” visava a reclusão e o isolamento delas da sociedade. Sem qualquer preocupação com o cuidado, acolhimento e singularidades, os manicômios se tornaram lugares de depósito, violações de direitos humanos e adoecimento.

Os movimentos de reforma psiquiátrica ao redor do mundo e no Brasil, colocaram em xeque a primazia do tratamento asilar, questionando as bases dos saberes que alicerçam uma determinada visão de loucura. Ao mesmo tempo, questionavam o isolamento como forma de tratamento. A lei 10.216/2001, conhecida como lei da Reforma Psiquiátrica, reconhece os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e prevê que o cuidado destas seja feito em serviços de base comunitária, como os CAPSs, Residências Terapêuticas, Centros de Convivência e Unidades Básicas de Saúde, sendo a internação um recurso que só deve ser acessado quando todos os outros forem esgotados.

Quando falamos em Saúde Mental, nos referimos a muito mais que o sofrimento psíquico. Afirmamos o direito da vida em liberdade e questionamos encarceramentos produzidos há séculos.

No início da década de 1990, as pessoas usuárias de drogas injetáveis protagonizavam a principal categoria de exposição nos casos de HIV/AIDS acima dos 13 anos. Nos dias de hoje, os dados do Boletim Epidemiológico de AIDS, HIV e DST do Município de São Paulo de 2018 mostram que 2,6% destas pessoas acabam se infectando, o que não representa

um risco epidemiológico para a transmissão do vírus. Contudo, usuários e usuárias de drogas permanecem em destaque entre os grupos de vulnerabilidades, sendo uma população exposta a um risco ampliado em relação a agravos de natureza infecciosa dado aos hábitos e padrões de consumo e os contextos adversos em que estão inseridos.

Muitas pessoas se encontram em situação de rua vivendo em condições de grande vulnerabilidade social em contextos marcados pela violência e carência de infra estrutura mínima. Estar em situação de rua é um fator agravante, e muitas vezes até determinante, ao risco de contrair doenças infecciosas transmissíveis, que pode ser observado com o alto índice de contração de tuberculose, por exemplo. Segundo o Programa Nacional de Tuberculose, uma pessoa em situação de rua tem 37 vezes mais chances de contrair Tuberculose se comparada à população geral.

Segundo a Pesquisa Nacional sobre o Uso de Crack realizada pela Fiocruz (2014) a prevalência da infecção pelo HIV evidenciada entre usuários de crack e/ou similares no Brasil foi de aproximadamente oito vezes a prevalência de HIV estimada para a população geral brasileira, constituindo o conceito de “epidemia concentrada” da UNAIDS (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS), em que há taxas elevadas de infecção em populações específicas coexistindo com taxas mais baixas na população em geral. Vale também ressaltar que a prevalência pelo vírus da hepatite C é igualmente mais elevada do que estimada para a população geral segundo o Boletim Epidemiológico Hepatites Virais (Brasil, 2012).

As pessoas usuárias de crack também apresentam elevado risco para sífilis, devido aos múltiplos comportamentos de risco, como uso inconsistente do preservativo, troca de sexo por dinheiro e/ou drogas e múltiplas parcerias sexuais.

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AMARANTE P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.

ASSEMBLEIA GERAL DA ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nações Unidas, 1948.

BASTOS, F.I.P.M; BERTONI, N (Org). Pesquisa Nacional Sobre o Uso de Crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: ICICT, 2014. Disponível: <https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/10019>. Acesso em: 14 maio. 2019.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Organização de Alexandre de Moraes. 16.ed. São Paulo: Atlas, 2000.

_____. Lei n° 10.216. 06 de abril de 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>. Acesso: 14 maio.2019.

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Referências

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