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RUY CASTRO E O RETRATO DA MÚSICA POPULAR NO BRASIL:
ASPECTOS E CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRODUÇÃO BIOGRÁFICA E O
PROCESSO FORMATIVO DE IDENTIDADE NACIONAL
Manoel Messias Alves de Oliveira
Mestrando em História – UNESP/Assis
E-mail: [email protected]
Resumo: Este estudo procura discutir os aspectos metodológicos e os resultados obtidos
durante a realização da Iniciação Científica desenvolvida sob a orientação do Prof. Dr.
Wilton Carlos Lima da Silva, entre os anos de 2017 e 2018. Através da abordagem
sobre as estratégias de representação, a construção narrativa e a investigação
documental, as narrativas lítero-musicais e biográficas de Ruy Castro Chega de
Saudade: A história e as histórias da Bossa Nova (1990), Carmen: uma biografia
(2005) e A noite do meu bem: a história e as histórias do Samba-Canção (2015) foram
analisadas enquanto produções de memórias de fenômenos artístico-musicais
canonizados e monumentalizados por meio de uma linhagem da música popular
(Samba-Bossa-MPB), estabelecida entre os anos 1930 e 1960. Diante disso, foi possível
compreender o processo formativo de identidade nacional e fundamentar o estudo sobre
o nacional-popular frente ao que se constituiu como memória oficial e se perpetuou
como brasilidade. Assim, para visualizar este retrato nas obras do autor, foi preciso
analisar a sua trajetória de vida, o significado de cultura brasileira presente em suas
narrativas e a sua reflexão interpretativa sobre o conceito de música popular brasileira.
Palavras-Chave: Biografia; Música Popular Brasileira; Ruy Castro.
INTRODUÇÃO
O estudo apresentado contempla os resultados obtidos com o projeto de
Iniciação Científica Entre biografias e contextos: a construção de personagens,
cenários e costumes nas narrativas musicais de Ruy Castro, desenvolvido entre os anos
de 2017 e 2018 com bolsa PIBIC – Reitoria e sob a orientação do Prof. Dr. Wilton
Carlos Lima da Silva.
Inicialmente, o projeto visava afirmar a existência de uma matriz discursiva no
autor sobre uma linha evolutiva da música popular brasileira, estabelecida entre 1930 e
1960. Para isso, tivemos que traçar semelhanças, diferenças, contradições e rupturas
entre as narrativas lítero-musicais do biógrafo e os discursos de memorialistas,
cronistas, cancionistas, musicólogos e primeiros historiadores, não acadêmicos, da
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Música Popular e delimitar as diferentes dimensões dos cenários, personagens e
costumes presentes em suas obras: o que é enaltecido e o que fica na “sombra”,
silenciado.
Entretanto, no processo de desenvolvimento da pesquisa, algumas questões
acabaram sendo ressignificadas, gerando novas interpretações sobre o conceito de linha
evolutiva, sobre a vertente interpretativa em Castro acerca da modernização da canção e
sobre a produção biográfica do autor no que se refere, principalmente, aos métodos,
fontes e literatura da música popular. Tais reformulações, diante das particularidades da
escrita biográfica do jornalista e das memórias construídas em torno da música popular
no Brasil, foram fundamentais para a compreensão da trajetória de vida do autor e do
processo formativo de identidade nacional.
Nesses moldes, como podemos verificar nas discussões que se seguem, o
projeto de Iniciação Científica foi desenvolvido, ganhou forma e possibilitou
apontarmos as defasagens presentes na elaboração da pesquisa. Assim, como muitas
questões ainda não tinham sido levantadas pelo estudo, montamos o Projeto de
Mestrado Acadêmico Memória, Tradição e Autenticidade: as narrativas lítero-musicais
e biográficas de Ruy Castro, aprovado pelo Programa de Pós-Graduação em História da
Faculdade de Ciências e Letras de Assis – FCL/UNESP/Assis, visando analisar essas
narrativas de modo a contemplar uma abordagem mais incisiva sobre a vida e obra do
autor em relação à apresentada ao final da pesquisa de IC.
Como o estudo biográfico e o estudo da história da música popular ainda são
muito recentes no Brasil, a apresentação dos aspectos metodológicos e dos resultados
obtidos durante a realização da pesquisa compõem um espaço de revisão na maneira de
se pensar historicamente o processo de formação da nação e compreender o conceito de
música popular brasileira: quais gêneros pertencem a essa nomenclatura, quais são os
seus personagens, quais são os fenômenos artístico-musicais que não pertencem a essa
denominação, entre outras questões.
Por isso, os alicerces dessa história deturpada devem ser analisados,
questionados e colocados à prova diante da ideia de tradição e autenticidade e em
contraste com as diversas vozes marginalizadas, silenciadas e consideradas não
representativas do nacional-popular e, portanto, não pertencentes à linhagem Samba-
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Bossa-MPB. É dentro dessa discussão envolvendo a expressão música popular
brasileira que, através de uma reflexão teórico-metodológica e historiográfica,
pretendemos refutar a ideia de tradição e autenticidade nas manifestações artísticas e
valorizar a polifonia e as particularidades dos diversos gêneros musicais.
A MÚSICA POPULAR BRASILEIRA DE RUY CASTRO E SUA PROJEÇÃO
NA MEMÓRIA NACIONAL: ASPECTOS E CONSIDERAÇÕES SOBRE O
PROJETO DE PESQUISA
Com a finalidade de articular e assimilar o debate entre Biografia, Memória e
História da Música Popular e História da escrita biográfica e Ruy Castro,
investigamos a trajetória de vida do autor e o contexto de produção textual das
narrativas e realizamos um levantamento bibliográfico sobre História do Brasil e
História da Música no Brasil entre os anos 1930 e 1960, de tal modo a confirmar o
estabelecimento de uma memória na história da música popular nacional.
Assim, foi possível realizar leitura, síntese e fichamento do material levantado,
como da tese de Silvano Fernandes Baia (2011), que apresenta um estudo
historiográfico dos anos entre 1971 e 1999 de produções acadêmicas dedicadas a
história da música popular no Brasil; do livro Biografismo: reflexões sobre as escritas
da vida (2014), de Vilas-Boas, que reflete sobre narrativas biográficas; dos artigos A
música brasileira na década de 1950 (2010), de Napolitano, sobre a cena musical no
período e seus direcionamentos na historiografia da música; Desde que o samba é
samba: a questão das origens no debate historiográfico sobre a música popular
brasileira (2000), de Napolitano e Wasserman, que discute o debate das origens da
música popular no Brasil; Construindo Biografias... Historiadores e Jornalistas:
Aproximações e Afastamentos (1997), de Benito Schmidt, que reflete e diferencia a
produção biográfica feita por jornalistas e historiadores e Biografias: construção e
reconstrução da memória (2009), de Wilton Silva, que aponta aspectos para a
percepção do biografismo através de questões sobre a construção social da memória
presentes em Maurice Halbwashs, Pierre Nora e Michel Pollak.
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Como o desenvolvimento do projeto possibilitou apontarmos as lacunas
existentes no estudo, foi possível darmos continuidade a essa pesquisa no Mestrado
Acadêmico. Assim, tendo em vista a necessidade de uma análise mais incisiva sobre as
narrativas do jornalista quanto às estratégias de representação, à construção narrativa e à
investigação documental para a produção textual, selecionamos trabalhos que pudessem
nos ajudar a romper com essas limitações e proporcionar uma melhor discussão sobre os
métodos de produção biográfica de Castro, como O pequeno X: da Biografia à História
(2011), de Sabina Loriga, que examina a obra de pensadores que procuraram restituir a
dimensão individual da história; Teoria da Biografia Sem Fim (2004), de Felipe Pena,
que, preocupado com a construção do discurso, aponta as múltiplas identidades de uma
personagem e A prática da História (1991), de Barbara Tuchman, escritora que se
debruça sobre as técnicas de escrita da história e contrasta a perspectiva do historiador e
do jornalista sobre a narrativa dos acontecimentos.
Após a realização de leitura, síntese, análise e fichamento desse material, os
conceitos centrais do campo Biográfico e da área de História da Música Popular no
Brasil foram separados e problematizados do ponto de vista formativo na construção da
identidade nacional. Dentre tais conceitos, cito Vida e Obra, Trajetória de Vida,
Narrativa de Vida, Fato e Ficção, Disputas de Memória, Memória Coletiva e Memória
Individual, Memória Voluntária e Involuntária, Música Popular, Linha Evolutiva da
Música Popular, Invenção de Tradição, Autenticidade, Biombos Culturais, Resistência
Cultural, entre outros.
Entretanto, alguns conceitos que permeavam o andamento da pesquisa
acabaram sendo ressignificados, como o conceito de Linha evolutiva da Música
Popular, presente na tese de Silvano Fernandes Baia. Tal conceito, cunhado por
Caetano Veloso e legitimado pela crítica musical moderna em meados da década de
1960, não está presente nas narrativas de Castro da mesma forma com que foi
estabelecido. Apesar de o biógrafo produzir uma narrativa valorativa à linhagem
referenciada, o mesmo, diferente de Caetano, não situa a Bossa Nova como síntese
moderna, mas sim como sinônimo de uma elite cosmopolita baseada em uma
sofisticação jazzística. Portanto, diante dessa conjuntura, resolvemos substituir o
conceito de Linha Evolutiva da Música Popular por Linhagem da Música Popular.
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Após o levantamento bibliográfico e a apreensão dos conceitos fundamentais
para o desenvolvimento da pesquisa, demos início à análise das fontes levando em conta
o contexto de produção e escrita dos livros e a trajetória de vida do biógrafo.
Assim, constatamos que Castro vivenciou os anos 1960 diante de uma elite
intelectual de jornalistas, cronistas, musicólogos, memorialistas e historiadores não
acadêmicos da música popular, como Paulo Francis, Ivan Lessa, Pixinguinha, Donga,
João da Baiana, Paulo Tapajós, Braguinha e Augusto de Campos que, aliás, defendeu
uma evolução presente na Bossa Nova sobre o cenário da música popular brasileira
(CAMPOS, 1993). Desse modo, o contato com essas narrativas foi fundamental para
que o autor atuasse nas redações do Correio da Manhã, O Pasquim, Manchete, IstoÉ,
Playboy, Status, Veja e O Estado de S. Paulo.
Tendo em vista que as obras de Castro são produções de memórias de
fenômenos artístico-musicais que ocupam o primeiro plano do retrato da música popular
brasileira, tivemos que contrastar as narrativas dessa elite intelectual dos anos 1960 com
o debate existente acerca da linhagem da música popular e do processo formativo de
identidade nacional, tão presente nas produções historiográficas levantadas por esta
pesquisa.
Com isso, foi possível enxergarmos nas entrelinhas o significado de cultura
brasileira perpetuado pelo autor. Afinal, em suas obras estão presentes, principalmente,
trajetórias de personagens de alto poder aquisitivo como intérpretes, musicólogos,
letristas, compositores e pessoas públicas que em sua maioria fizeram parte da vida
urbana do Rio de Janeiro e dos acontecimentos ligados à esfera social e política dos
anos entre 1930 e 1960.
Em Chega de Saudade: a história e as histórias da Bossa Nova, o biógrafo
reconstituiu o cenário boêmio e cultural do Rio de Janeiro dos anos 1950 e 1960 e
protagonizou a ascensão social e econômica de João Gilberto que, após ter saído de
Juazeiro, se inseriu no ambiente musical carioca. Estando envolvido com os poetas
concretos e com os aspectos da modernização, Ruy Castro apresentou essa ascensão da
personagem através do estabelecimento das rádios, dos fã-clubes de Dick Farney e
Frank Sinatra e do apartamento de Nara Leão, mostrando como o Joãozinho da Patu se
tornou João Gilberto.
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Apesar de o músico ser o principal protagonista dessa narrativa, outros nomes
também tiveram posição de destaque no livro, dentre eles: Tom Jobim, Vinícius de
Moraes, Nara Leão, Ronaldo Bôscoli, Maysa, Newton Mendonça, Carlinhos Lyra,
Johnny Alf, Elis Regina e Sylvinha Telles.
Em Carmen: uma biografia, Castro também apresenta sua personagem através
de uma perspectiva de ascensão social e econômica, começando pelo nascimento da
intérprete em Várzea de Ovelha, Portugal, passando pela Lapa, no Rio de Janeiro até
atingir a fama na Broadway e na Hollywood.
A obra, além de estabelecer conexões entre Samba e Carmen Miranda, também
foi fundamental para identificarmos no autor a sua perspectiva a respeito do que se
perpetuou como tradição e autenticidade e de quais personagens (além da família
Miranda) pertencem ao cenário daquilo que ficaria conhecido como a identidade
brasileira. Dentre tais personagens, o autor faz referência a Almirante, Francisco Alves
(gravou composições de Noel Rosa e dos compositores do Estácio), Nestor Amaral,
Josué de Barros, Ary Barroso, Dircinha Batista, Braguinha, Sylvio Caldas, Dorival
Caymmi, João da Baiana, Cesar Ladeira, Aloysio de Oliveira, Assis Valente, José do
Patrocínio Oliveira, entre outros.
Desse modo, a biografia de Carmen Miranda foi responsável por preencher as
lacunas deixadas por Chega de Saudade: a história e as histórias da bossa nova acerca
do cenário da música brasileira estabelecido na memória nacional. Todavia, os anos
1950 e o Samba-Canção, tão conhecidos no campo da historiografia e da produção
musical brasileira como “pré-bossanovismos” por terem ficado no “limbo da história”
com boleros e “sambas amargos” (NAPOLITANO, 2010, p. 59; SEVERIANO e
MELLO, 1997 e 1998), só foram mais bem narrados pelo jornalista após a produção de
A noite do meu bem: a história e as histórias do Samba-Canção.
Nesse último livro, Castro romantiza o gênero através de uma memória social
que estabelecia os anos 1950 como os anos dourados do glamour e do romantismo
(NAPOLITANO, 2010, p. 62), definindo os Sambas-Canção como
sambas, sem dúvida – o ritmo, apesar de mais lento, era inconfundível -, só que românticos, intimistas e confessionais, com frases musicais longas e
licorosas, perfeitos para ser dançados como sambas, mas devagarinho, com o
rosto e o corpo colados. O samba fora para a cama com a canção, numa
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romântica noite de bruma, e resultara neles, os sambas-canção, com suas
letras narrativas, que contavam uma história – e esta, com freqüência (sic), se
referia a um caso de amor desfeito, como de praxe nas músicas românticas
em qualquer língua (CASTRO, 2015, p. 70).
Nesse aspecto, A noite do meu bem rompe com a dicotomia arcaico/moderno e
com os ideais concretistas sobre os anos 1950, apesar de ainda ser possível identificar
um diálogo valorativo em Castro das produções memorialísticas atuantes na Revista de
Música Popular.
A Revista, assumidamente folclorista, foi criada em 1954 sob o comando de
Lúcio Rangel e Pérsio de Moraes, visando intervir no cenário musical e resgatar a
“autêntica” tradição da música brasileira, ou seja, impulsionar a “época de ouro” 1 dos
anos 1930 e 1960. Além de Lúcio Rangel, fizeram parte da produção da Revista
Almirante, Ary Vasconcelos, Jota Efegê e Tinhorão, sendo responsáveis pela
divulgação dos músicos populares urbanos e daquilo que ficaria conhecido como
representante legítimo da cultura brasileira (NAPOLITANO, 2010, p. 62;
NAPOLITANO e WASSERMAN, 2000, p. 174-175 e WASSERMAN, 2002).
Desse modo, a Revista foi significativa para a implantação do I Congresso
Nacional do Samba, de 1962, organizado pela Companhia de Defesa do Folclore
Brasileiro, que tinha como intuito preservar as características do gênero ao mesmo
tempo em que as perspectivas de modernidade e progresso fossem mantidas
(NAPOLITANO e WASSERMAN, 2000, p. 176).
Logo, a narrativa de A noite do meu bem pode ser parte de uma possível
revisão histórica em Castro a respeito do nacional-popular e daquilo que se caracterizou
como tradição. Entretanto, apesar de romper com aspectos da linhagem ao perpetuar
uma memória social do Samba-Canção, Castro se direciona as particularidades
românticas do gênero e não questiona a existência de uma memória nacional que
cunhou o gênero musical e seu período como sinônimos de baixa qualidade e
estagnação criativa, ou seja, como um arcaísmo musical (NAPOLITANO, 2010, p. 59).
1 Para os memorialistas urbanos da música popular brasileira, essa “época de ouro” compreendia aos anos entre 1920 e 1930, conhecidos como um momento de renovação musical que possibilitou a expansão do
samba e da marchinha, do cinema nacional e dos rádios e gravadoras (SEVERIANO e MELLO, 1997 e
1998).
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Para compreendermos essa invenção de tradição2 e o processo formativo de
identidade nacional, tivemos que recorrer ao momento histórico de declínio do
predomínio cultural estabelecido pelos nacionalistas, quando memorialistas,
musicólogos, cronistas e jornalistas romperam com o projeto andradeano cujo objetivo
era a busca e afirmação das raízes culturais brasileiras e se direcionaram para a questão
das origens do popular na música urbana. Esse momento histórico, portanto, deixou
claro que foi nesse cenário que os livros Na Roda do Samba (1978), de Francisco
Guimarães (Vagalume) e Samba: sua história, seus poetas, seus músicos e seus
cantores (1978), de Orestes Barbosa sintetizaram os debates em torno da origem do
Samba3.
Assim, diante dessa conjuntura a respeito da construção e perpetuação da
brasilidade, conseguimos investigar aspectos que possibilitassem identificar a memória
valorizada pelo biógrafo ou o afastamento a essa memória em virtude de mudanças nos
métodos de produção textual. Dentre tais aspectos podemos citar a existência de uma
cançãografia, discografia e filmografia, no qual o autor lista produções artísticas
decisivas para a criação e/ou consolidação dos respectivos gêneros pertencentes à
linhagem da música brasileira; uma bibliografia que se aproxima em maior ou menor
grau, dependendo do livro, de produções acadêmicas e, no qual, identificamos
memorialistas, jornalistas, historiadores e outros escritores ligados à história da música
popular como Paulo César de Araújo, Augusto de Campos, Zuza Homem de Mello,
José Ramos Tinhorão, Jota Efegê, Almirante, Caetano Veloso, Lucio Rangel, Jorge
Ferreira, Ângela de Castro Gomes, Lilia Schwarcz, entre outros e, as coleções de Beira-
Mar, Correio da Manhã, Diário da Noite, O Globo, Tribuna da Imprensa, Última Hora,
2 Eric Hobsbawn define o conceito em seu livro A invenção das tradições (1997, p. 9) como “um
conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de
natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que
possível, tenta‐se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado”. 3 Conforme Napolitano e Wasserman (2000, p. 170-171), “estes dois autores, cujos livros seminais
sintetizavam os debates em torno do lugar social do samba, representam uma sutil clivagem na corrente
de pensamento que aceita a origem como um problema central na valorização sócio-cultural do gênero.
Francisco Guimarães não só defendia o lugar social e as formas musicais que traziam uma marca de
origem (a ‘roda’) como via no processo de incorporação do samba por segmentos culturais mais amplos
uma ameaça a seu núcleo identitário básico, sem a qual perderia sua razão de ser. Orestes Barbosa,
mesmo aceitando a origem sócio-geográfica do samba como um dado, afirmava que o processo de
diluição em outros espaços sociais e culturais do Rio de Janeiro tinham efetivamente consagrado o samba,
como gênero musical ‘nacional’, por excelência".
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Comício, A Noite e acervos da Biblioteca Nacional; as revistas O Cruzeiro, Manchete,
Álbum do Rádio, Carioca, Cinearte, entre outras e as consultas ao acervo da família de
Carmen, a Funarj/ Museu Carmen Miranda, além de diversas fontes norte-americanas e
entrevistas que foram concedidas ao biógrafo.
Com esse levantamento sobre os elementos paratextuais dos livros, ficou claro
a qual memória Ruy Castro está enaltecendo e a qual memória está “deixando na
sombra”. O resultado dessa disputa de memórias está presente nas narrativas do autor e
evidenciam uma relação mais próxima com os aspectos da linhagem da música popular
e com o processo formativo de identidade nacional, sobretudo pela aproximação do
jornalista com os discursos de memorialistas urbanos.
Entretanto, diante dos elementos paratextuais e das ressalvas apresentadas no
andamento da pesquisa quanto à percepção do autor sobre o significado de cultura
brasileira, tivemos que realizar uma análise a respeito de possíveis mudanças de
paradigmas na produção textual do biógrafo.
A percepção obtida diante dessa nova fase da pesquisa foi a de que as
narrativas lítero-musicais do jornalista tornam-se cada vez menos estéticas/literárias e
cada vez mais informativas conforme o ano de publicação dos livros. Desse modo, a
narrativa do autor passa a ter um caráter mais jornalístico e informacional, conforme
verificamos nas crônicas históricas presentes no prólogo de Carmen e A noite do meu
bem. Além disso, nessas narrativas Castro se sobrepõe aos descaminhos das versões e
seus distanciamentos da cena primária efetiva, optando por utilizar as expressões “não
se sabe”, “não há notícia”, “não se pode afirmar” ou “possivelmente” diante de uma
informação imprecisa (BRUCK, 2008).
Essa mudança de paradigma evidencia uma aproximação do jornalista quanto
aos métodos e fontes do historiador ao levantar entrevistas, documentos e questionar
lacunas ou contradições referentes a um acontecimento histórico. Entretanto, tais
mudanças também podem indicar uma revisão à história perpetuada pelos memorialistas
da música popular brasileira ou ter relação com o processo judicial desencadeado pela
produção biográfica não autorizada de Garrincha (1995) (BRUCK, 2008).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Diante dessas implicações resultantes da produção biográfica de Ruy Castro,
ficou claro como as narrativas do jornalista se articulam com a percepção do significado
de cultura brasileira e moldam um retrato da música popular no Brasil. Essas narrativas,
escritas muitas vezes sob o contraste de uma visão elitista sobre o nacional-popular,
remetem a uma memória estabelecida como oficial ou nacional em detrimento das
memórias subterrâneas4 de expressão daqueles que foram marginalizados e silenciados
na história (POLLAK, 1989).
Isto tudo nos remete à reflexão acerca dos silêncios da História.
Jacques Le Goff, historiador francês, afirma que é preciso interrogar‐se sobre
os esquecimentos, os hiatos, os espaços em branco. "Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos documentos
e das ausências de documentos." E esta análise é de fundamental importância
porque o espaço da memória constitui permanente campo de batalha, e o ato
de esquecer pode ser resultado de manipulação exercida por grupos
dominantes sobre dominados, ou de vencedores frente a vencidos (ARAÚJO,
2003, p. 23).
Desse modo, as narrativas lítero-musicais e biográficas de Castro foram
fundamentais para a consolidação de uma inscrição na memória coletiva brasileira. Por
isso, o interesse desta pesquisa está na “forma como a memória, quer como notoriedade
quer como esquecimento, é construída ao longo do tempo e no interior de diferentes
grupos” (SILVA, 2009, p. 154). Assim, a relevância social deste estudo está na
valorização das memórias refugiadas, marginalizadas e colocadas como impopulares,
não tradicionais e não autênticas daquilo que se estabeleceu por música popular
brasileira.
Portanto, como diria Leonor Arfuch em O Espaço Biográfico: Dilemas da
Subjetividade Contemporânea (2010, p. 73),
não é tanto o ‘conteúdo’ do relato por si mesmo – a coleção de
acontecimentos, momentos, atitudes -, mas precisamente as estratégias –
ficcionais – de autorrepresentação o que importa. Não tanto a ‘verdade’ do
ocorrido, mas sua construção narrativa, os modos de (se) nomear no relato, o vaivém da vivência ou da lembrança, o ponto do olhar, o que se deixa na
4 O termo está presente na obra Memória, esquecimento, silêncio (1989), de Michael Pollak, e se opõe à
sobreposição de uma memória dita oficial àquelas que foram silenciadas e marginalizadas por grupos
dominadores.
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sombra; em última instância, que história (qual delas) alguém conta de si
mesmo ou de outro eu. E é essa qualidade autorreflexiva, esse caminho da
narração, que será, afinal de contas, significante.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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militar. 4ª ed. Editora Record, 2003.
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