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4° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016 ITINERÁRIOS CULTURAIS NA POLÍTICA DE PRESERVAÇÃO RUY, ALINE T. (1); ALMEIDA, RENATA H. DE. (2) 1. Laboratório Patrimônio & Desenvolvimento. UFES. Rua Stella Brito Pontes, 25, Solon Borges, Vitória, ES. [email protected] 2. Laboratório Patrimônio & Desenvolvimento. UFES. Rua Doutor Moacyr Gonçalves, 711 - 303, Jardim da Penha, Vitória, ES. [email protected] RESUMO Este artigo analisa os Itinerários Culturais como categoria de preservação do patrimônio mundial, estabelecida pela Unesco, em 2005. Representando uma mudança em relação à dimensão de bens passíveis de salvaguarda, sua importância é reafirmada em 2008, com a publicação da Carta dos Itinerários Culturais. Ao analisar o percurso histórico da preservação de bens materiais, inicialmente focada em monumentos isolados, passando por conjuntos urbanos, cidades e paisagens culturais, identifica-se sua ampliação expressa no reconhecimento de caminhos, estradas, rotas, percursos culturais como bens patrimoniais. Estabelecida no território, em diferentes escalas - municipal, estadual, nacional e internacional, a categoria está representada nesse artigo pelo Caminho de Santiago de Compostela, primeiro itinerário reconhecido mundialmente pela Unesco, em 1993; e pelo Caminho do Ouro, em Paraty RJ, exemplo de itinerário cultural no Brasil e alvo de projetos para seu reconhecimento junto à Unesco. Assim como o Caminho do Ouro, outros caminhos, roteiros, rotas existentes, como, por exemplo, a Estrada Real, não possuem salvaguarda da instituição nacional, o Iphan. Ou seja, não se verifica a adoção da chancela, utilizada pelo órgão internacional. Diante disso, busca-se entender as razões desse posicionamento, formulando algumas questões: O que impede a apropriação da chancela no Brasil? De que forma o país tem solucionado a proteção desses percursos? Não é possível reconhecer caminhos passíveis de salvaguarda a nível nacional? Embora mundialmente a iniciativa de reconhecimento patrimonial dos itinerários culturais esteja se consolidando, e, ainda que a Unesco oriente seus estados membros a trabalhar em prol do estabelecimento de categoria promotora da salvaguarda desses “novos patrimônios”, não se verifica investimento nessa direção. Por outro lado, essa orientação, faz-se urgente frente às transformações ambientais, territorial-paisagísticas, socioeconômicas do território brasileiro na contemporaneidade. Diante desse contexto, em particular da fragilidade do patrimônio na relação permanência e transformação territorial, conclui-se indicando a importância da apropriação da chancela para os itinerários culturais brasileiros. Palavras-chave: Itinerários Culturais; Preservação; Patrimônio.

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4° COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

ITINERÁRIOS CULTURAIS NA POLÍTICA DE PRESERVAÇÃO

RUY, ALINE T. (1); ALMEIDA, RENATA H. DE. (2)

1. Laboratório Patrimônio & Desenvolvimento. UFES. Rua Stella Brito Pontes, 25, Solon Borges, Vitória, ES.

[email protected]

2. Laboratório Patrimônio & Desenvolvimento. UFES. Rua Doutor Moacyr Gonçalves, 711 - 303, Jardim da Penha, Vitória, ES.

[email protected]

RESUMO

Este artigo analisa os Itinerários Culturais como categoria de preservação do patrimônio mundial, estabelecida pela Unesco, em 2005. Representando uma mudança em relação à dimensão de bens passíveis de salvaguarda, sua importância é reafirmada em 2008, com a publicação da Carta dos Itinerários Culturais. Ao analisar o percurso histórico da preservação de bens materiais, inicialmente focada em monumentos isolados, passando por conjuntos urbanos, cidades e paisagens culturais, identifica-se sua ampliação expressa no reconhecimento de caminhos, estradas, rotas, percursos culturais como bens patrimoniais. Estabelecida no território, em diferentes escalas - municipal, estadual, nacional e internacional, a categoria está representada nesse artigo pelo Caminho de Santiago de Compostela, primeiro itinerário reconhecido mundialmente pela Unesco, em 1993; e pelo Caminho do Ouro, em Paraty – RJ, exemplo de itinerário cultural no Brasil e alvo de projetos para seu reconhecimento junto à Unesco. Assim como o Caminho do Ouro, outros caminhos, roteiros, rotas existentes, como, por exemplo, a Estrada Real, não possuem salvaguarda da instituição nacional, o Iphan. Ou seja, não se verifica a adoção da chancela, utilizada pelo órgão internacional. Diante disso, busca-se entender as razões desse posicionamento, formulando algumas questões: O que impede a apropriação da chancela no Brasil? De que forma o país tem solucionado a proteção desses percursos? Não é possível reconhecer caminhos passíveis de salvaguarda a nível nacional? Embora mundialmente a iniciativa de reconhecimento patrimonial dos itinerários culturais esteja se consolidando, e, ainda que a Unesco oriente seus estados membros a trabalhar em prol do estabelecimento de categoria promotora da salvaguarda desses “novos patrimônios”, não se verifica investimento nessa direção. Por outro lado, essa orientação, faz-se urgente frente às transformações ambientais, territorial-paisagísticas, socioeconômicas do território brasileiro na contemporaneidade. Diante desse contexto, em particular da fragilidade do patrimônio na relação permanência e transformação territorial, conclui-se indicando a importância da apropriação da chancela para os itinerários culturais brasileiros.

Palavras-chave: Itinerários Culturais; Preservação; Patrimônio.

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1. INTRODUÇÃO

Reminiscências de estradas, rotas, caminhos, utilizados pelos povos ao longo do tempo estão

presentes por toda a Terra. Entretanto, as atividades contemporâneas da produção

tecnológica têm modificado profundamente os territórios. Dessa forma, esses testemunhos da

ação antrópica, adaptações espaciais humanas, encontram-se ameaçados. No Brasil, desde

os anos 1970, os processos de desenvolvimento econômico, em particular o industrial,

somados à explosão urbana, vem “transformando radicalmente o quadro sócio demográfico e

paisagístico do país” (IPHAN, 2009, p. 17).

As ameaças a esses elementos e a ampliação do conceito de patrimônio cultural

proporcionam o surgimento de mais uma categoria de salvaguarda: os itinerários culturais.

Estes são o objeto deste estudo que integra a pesquisa de mestrado em Arquitetura e

Urbanismo, com tema vinculado à problemática da museificação do território na

contemporaneidade, desenvolvida por meio do Programa de Pós-Graduação da Universidade

Federal do Espírito Santo. A categoria dos Itinerários Culturais, por se tratar de uma

atualização, encontra-se pouco discutida no meio acadêmico, justificando esta pesquisa.

Busca-se, assim, fomentar a discussão a respeito do tema, por meio de uma articulação

conceitual e metodológica, entre instituição, sociedade e universidade.

Em particular, este artigo investiga os Itinerários Culturais, e o instrumento de sua

preservação, instituído pela Unesco, a fim de verificar suas repercussões no órgão

responsável pela preservação de bens patrimoniais no Brasil. Inicialmente, apresenta-se

propostas de preservação de itinerários culturais – a rota Caminho do Ouro em Paraty-RJ e a

proposta do Anteprojeto de Itinerários Culturais do Mercosul. Num segundo momento,

analisa-se a criação da chancela pela Unesco, por meio do estudo do Caminho de Santiago

de Compostela, de forma a entender seus mecanismos para, em seguida, avaliar sua

influência na política brasileira de preservação.

2. ITINERÁRIOS CULTURAIS: UMA NOVA CATEGORIA

A preservação de bens culturais em escala territorial, internacional e nacionalmente, inicia-se

nos anos 1970, com a incorporação do meio ambiente como “uma questão importante para as

políticas públicas” (RIBEIRO, 2007, p. 50). Contudo, o reconhecimento de áreas de paisagens

culturais e associada conservação integrada se instaura com a recomendação do Conselho

da Europa – Comitê de Ministros, de 1995. No Brasil, a cidade do Rio de Janeiro recebe, em

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2012, a chancela “Paisagem Cultural”, pela Organização das Nações Unidas para a

Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), sendo assim a primeira chancela desse caráter,

aplicada em território brasileiro, representando uma mudança de paradigma em relação à

classe de bens até então protegidos pelo órgão no país.

A ampliação dos limites conceituais do patrimônio cultural no Brasil se confirma com a

implementação de outra chancela de dimensão territorial, a do itinerário cultural;

exemplificada na indicação do Caminho do Outro, em Paraty, Rio de Janeiro, como

concorrente ao título de patrimônio mundial e respectiva salvaguarda. Este é definido pelo

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan - como uma rota correspondente

ao caminho inicialmente utilizado por índios, e apropriado por bandeirantes em expedições ao

interior do Brasil na busca de riquezas minerais. No passado, o percurso adquire maior

importância ao se unir à rota do Ouro, servindo de via de escoamento do metal de Minas

Gerais em direção à costa litorânea. Hoje a rota é utilizada para fins turísticos (COSTA, 2008).

Conforme Costa (2008, p. 125),

O Caminho do Ouro de Paraty é o primeiro testemunho de como se processaram as rotas e os caminhos de colonização do interior do território brasileiro. Constituiu uma rota cultural pioneira. É testemunho marcante de como deflagrou-se a grande aventura de ocupação portuguesa do ‘inter-land’ da América do Sul, durante o denominado ‘Ciclo do Ouro’.

Conforme Costa (2008), a proposta, elaborada em 2008 para a inscrição do Caminho do Ouro

na lista do Patrimônio Mundial, compreende o remanescente estabelecido entre o bairro

Penha, distante 8,5 km do sítio histórico, até o limite do município com o estado de São Paulo,

faixa equivalente a 11.700m de extensão. A área para salvaguarda abrange todo o percurso e

se estende 30 m perpendicularmente ao longo de suas margens, com exceção de um largo

correspondente ao patamar do Pouso do Souza (Figura 1).

A primeira tentativa de inscrição do Caminho do Ouro na lista do Patrimônio Mundial, como

Itinerário Cultural, ocorrida em 2008, não é bem-sucedida. A proposta, não aprovada pela

Unesco, e apresentada com o título O Caminho do Ouro em Paraty e sua paisagem, além do

caminho, indica o Centro Histórico e o Forte Defensor Perpétuo como áreas de interesse de

salvaguarda. A partir de então, a Comissão Permanente Pró Sítio do Patrimônio Mundial de

Paraty busca a proteção do itinerário por meio da elaboração de um terceiro dossiê,

formulando uma proposta de tombamento “[...] como sítio misto, isto é, como patrimônio

cultural e natural [...]” (Paes, 2015, p.112). Esta última proposta é apresentada ao Comitê do

Patrimônio Mundial em 2009, tendo, porém, recebido solicitação de revisão, particularmente

voltada à melhoria do saneamento básico da cidade (Paes, 2015).

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Figura 1 – Planta indicativa do Caminho do Ouro e sua Paisagem para inscrição na lista do Patrimônio Mundial Fonte: Costa (2008)

A apreciação desse dossiê pela Unesco pode ser considerada um indicativo da ampliação da

política preservacionista da instituição no Brasil, alcançando, junto com a paisagem, a escala

territorial; até então representada pela proteção de cidades históricas, iniciada em 1980 com o

tombamento de Ouro Preto, Minas Gerais (SANT’ANNA, 2014). Essa condição é reconhecida

pelo Iphan (2009, p. 18):

Os conceitos de territórios e de itinerários fazem parte, juntamente com as paisagens culturais, de um esforço mundial de ampliação do próprio conceito de patrimônio cultural que, há muito tempo deixou de restringir-se apenas aos monumentos e cidades e passou a ser compreendido a partir de uma noção territorial mais ampla.

A categoria Itinerários Culturais ultrapassa os limites da cidade, inserindo-se na escala

territorial, podendo abranger áreas de diferentes municípios, estados e países. É o caso do

“Itinerário Cultural da Região das Missões Jesuítico-Guarani” que, em 2012, tem projeto de

fortalecimento para criação de itinerário, reconhecido em Brasília (Unesco, 2012). Conforme o

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“Anteprojeto de Itinerários Culturais do Mercosul”, o estabelecimento do bem cultural,

caracterizado por percursos originados da produção das missões nos países do Mercosul,

tem o intuito de gerar integração à região e valorizar seu patrimônio (Unesco, 2009).

O anteprojeto conceitua Itinerário Cultural, categoria criada pela Unesco, como um percurso

de grande influência regional, palco de intensas trocas culturais; integrando o caminho,

propriamente dito, outros elementos a ele relacionados - cidades, edificações e paisagens

culturais. Além disso, o anteprojeto revela que a identificação dos Itinerários Culturais

possibilita uma melhor compreensão histórica dos processos culturais de determinada

localidade, em detrimento de uma leitura fragmentada do território. E, mais, a valorização dos

itinerários potencializa o valor de produto dos territórios para a prática do turismo (Unesco,

2009). Conforme Pinheiro (2007), é preciso entender que a categoria Itinerário Cultural não

tem como fim primeiro o turismo. Entretanto, pode vir a dinamiza-lo, beneficiando, com isso, a

comunidade local.

3. A CRIAÇÃO DA CHANCELA ITINERÁRIOS CULTURAIS PELA UNESCO

A Rota de Santiago de Compostela, primeiro Itinerário Cultural reconhecido pela Unesco, em

1993, motiva a criação da categoria e da chancela como instrumento de sua preservação.

Além disso, sua inscrição enseja a ampliação dos limites conceituais do patrimônio cultural até

então estabelecidos.

Conforme Pinheiro (2007), a rota de Santiago de Compostela é constituída de caminhos que

levam à cidade de Compostela, na Espanha, utilizados para peregrinação. Contudo, em sua

maioria, os percursos componentes da rota surgem de estradas preexistentes, percorridas

tempos antes da utilização por peregrinos. O uso dos caminhos faz surgir vilas, mosteiros,

igrejas, e outros elementos, em suas proximidades. Protegida desde 1987 pelo Conselho da

Europa, organização política mais antiga da Europa (constituída em 5 de maio de 1949), a rota

de Santiago é a primeira salvaguardada do continente.

Posteriormente, a mesma é identificada como Patrimônio da Humanidade pelo Comitê do

Patrimônio Mundial, em sua décima sétima sessão em Cartagena, Colômbia (Unesco,

1994a). Criado na conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação,

Ciência e Cultura, de 1972, quando da instituição da Convenção para a Proteção do

Patrimônio Mundial, Cultural e Natural (Unesco, 1972); este comitê, de caráter

intergovernamental, tem a responsabilidade de proteger o patrimônio mundial, cultural e

natural.

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Na seção em que a Rota de Santiago de Compostela é inscrita como Patrimônio da

Humanidade, com o número 669, o comitê a identifica como pertencente à Espanha, sob os

critérios II, IV e VI (Unesco, 1994a). Estes critérios, justificadores da inserção das rotas como

integrantes da lista do patrimônio da humanidade, são estabelecidos pelo Comitê do

Patrimônio Mundial, no documento Diretrizes Operacionis para a implementação da

Convenção do Patrimônio Mundial (Operational Guidelines for the implementation of the

World Heritage Convention), e são revisados à medida que ocorrem alterações nos conceitos

patrimoniais. Os critérios, referentes aos bens selecionados na décima sétima sessão do

comitê, são os instituídos pelas diretrizes operacionais de 1992, modificadas em 1994, ano

posterior ao evento (Unesco, 1992).

O relatório da sessão, além de apresentar intenções de uma posterior proteção conjunta entre

Espanha e França, diante da provável extensão da rota ao território francês, destaca a

importância de considerar como integrantes do patrimônio mundial os corredores históricos de

transporte. Assim, após identificação da rota de Santiago de Compostela como integrante do

patrimônio mundial, a Espanha registra a necessidade de reunir peritos para aprofundar

discussões a respeito dos Itinerários Culturais (Unesco, 1994a). A sugestão é aprovada pelo

Conselho do Comitê do Patrimônio Mundial que, em 1994, reúne especialistas para este fim.

Tal reunião culmina na elaboração de um relatório com conclusões referentes aos Itinerários

Culturais, intitulado Routes as part of our cultural heritage (Unesco, 1994b).

O relatório propõe a criação de categoria que integre as rotas culturais ao patrimônio mundial.

Além disso, destaca que os Itinerários Culturais são representantes das movimentações

populacionais e das trocas realizadas ao longo do espaço e do tempo, e define Itinerários

Culturais como um conceito rico e fértil, dinâmico e aberto, que contribui para a preservação

do patrimônio das sociedades (Unesco, 1994b).

O texto do documento apresenta iniciativas elaboradas para preservação de rotas culturais,

como, por exemplo, a Rota da Seda “[...] via comercial que ligava a China ao Mediterrâneo”

(PISTORELLO, 2013, p. 2). Da mesma maneira, defende a identificação de rotas tendo em

vista o fomento a pesquisas, expedições de estudo e, ainda, o turismo cultural; bem como a

necessidade da gestão especializada, de controle turístico e de participação social, que

auxilie a salvaguarda, diante da complexidade expressa na nova categoria. O texto aponta,

além disso, a recomendação dos especialistas para que o órgão de proteção ao patrimônio

mundial incentive os países membros a implementar este conceito nos três níveis

administrativo-governamental: municipal, estadual e federal. As referências para os critérios

de identificação e delimitação das rotas, como pertencentes ao patrimônio mundial, são

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anexas ao relatório, definindo os limites da tipologia, natureza, método (inventário), os

critérios de delimitação e os procedimentos para apresentação (Unesco, 1994b).

Este é o começo das discussões com relação à nova categoria até a elaboração da Carta de

Itinerários Culturais do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios - ICOMOS, aprovada

em Quebec, Canadá, em 2008.

Conforme Cardoso e Castriota (2012), em 1995, na 19ª Sessão do Comitê do Patrimônio

Mundial, realizada em Berlim, em momento de redefinição das diretrizes operacionais e dos

critérios de identificação dos bens, o Comitê do Patrimônio Mundial dispõe que as rotas

culturais passem a integrar o Patrimônio Cultural. Criado em 1998, constituído de 65 membros

de diversos países, o Comitê Científico dos Itinerários Culturais do Icomos (CCIC-ICOMOS) é

responsável pelas atribuições referentes às rotas culturais. Desde então, diversos seminários

internacionais e conferências são realizadas por meio do comitê. Complementarmente, um

número extenso de publicações, contendo discussões sobre princípios e conceitos é

elaborado. Dentre essas, a publicação O Patrimônio Intangível e outros aspectos dos

Itinerários Culturais (El Património Intangible y otros aspectos de los Itinerários Culturales),

apresentada em Navarra, Espanha (2002), caracteriza-se por ser um documento referencial

no que diz respeito aos Itinerários Culturais (Icomos, 2008). Entretanto, só em fevereiro do

ano de 2005 a Unesco reconhece os Itinerários Culturais como categoria possível para

inclusão de bens como Patrimônio mundial (CARDOSO e CASTRIOTA, 2012).

A Carta dos Itinerários Culturais, desenvolvida pelo CIC-ICOMOS e oficializada em 2008,

define os Itinerários Culturais como fruto do desenvolvimento das ciências da preservação.

Nesse entendimento, a categoria pode ser reconhecida como mais uma expressão da

continuidade das narrativas patrimoniais em acompanhar e fomentar revisões conceituais e

instrumentais. Mas, é importante ressaltar, trata-se de uma novidade: proteção de bens de

grandes proporções e de conteúdos complexos (Icomos, 2008).

Conforme a carta, um itinerário cultural pode ser identificado como uma via de comunicação

com fins diversos e de forte representatividade na história. Estes itinerários são espelhos das

sociedades que os utilizaram e utilizam. Fenômenos de valor singular, condensam bens

patrimoniais amalgamados pela ação antrópica ao longo do tempo. Constituídos a priori ou

não, elaborados ou gerados espontaneamente, originam-se do desenvolvimento das

adaptações espaciais humanas. Sua identificação não pode prescindir de olhares

interdisciplinares e capazes de abordar toda sua complexidade (Icomos, 2008).

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Os Itinerários Culturais representam as movimentações sociais, suas interações e produtos

no território. O conceito reforça a aceitação das diversidades ao reunir elementos

representativos de diversas sociedades. Surge como possibilidade de enriquecimento de

outras chancelas sem, entretanto, suprimi-las. Possibilita uma visão ampla e completa do

patrimônio cultural (Icomos, 2008).

Os objetivos da carta são fundamentar conceitualmente e metodologicamente a categoria

Itinerário Cultural e dispor os meios para seu estabelecimento, conhecimento, valorização,

proteção, conservação e gestão. Também pretende estabelecer os critérios e princípios que

possibilitem um desenvolvimento durável, economicamente e socialmente, além de

possibilitar a cooperação internacional. Busca, também, auxiliar o financiamento de projetos

para salvaguarda ao longo do mundo. Segundo Icomos (2008, p. 3), tem-se por definição que:

Um Itinerário Cultural é uma via de comunicação terrestre, aquática, mista ou outra, determinada materialmente, com uma dinâmica e funções históricas próprias, ao serviço dum objetivo concreto e determinado. O Itinerário Cultural deve também reunir as seguintes condições:

a) ser o resultado e o reflexo de movimentos interativos de pessoas e de trocas pluridimensionais contínuos e recíprocos dos bens, das ideias, dos conhecimentos e dos valores sobre os períodos significativos entre povos, países, regiões ou continentes;

b) ter gerado uma fecundação mútua, no espaço e no tempo, das culturas implicadas, que se manifeste tanto no seu patrimônio tangível como intangível.

c) ter integrado, num sistema dinâmico, as relações históricas e os bens culturais associados à sua existência.

Para identificação, na carta são descritos os elementos definidores que auxiliam na eleição de

um itinerário cultural: O contexto em que está estabelecido - natural e cultural; Seu conteúdo -

elementos tangíveis e intangíveis, que fazem dele um elemento concreto e rico culturalmente;

Seu valor de conjunto partilhado - de força maior que os elementos que o integram; O caráter

dinâmico - de grandes influências culturais de interatividade; Seu meio - onde se insere

territorialmente e socialmente (Icomos, 2008).

Os Itinerários Culturais podem ser classificados conforme sua dimensão territorial ou cultural,

seu objetivo, função e duração temporal, configuração estrutural e enquadramento natural.

Além disso, “Para a inclusão de um bem na categoria Rota Cultural, primeiramente, deve-se

justificar o seu valor universal excepcional, conforme determinam os princípios da UNESCO”

(CARDOSO e CASTRIOTA, 2012, p. 3).

Atualmente, de acordo com Cardoso e Castriota (2012), as rotas culturais estão presentes nas

orientações para a identificação dos bens considerados patrimônio da humanidade. São

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entendidos como uma possível categoria de identificação dos bens, assim como as paisagens

culturais. Confirmando esse entendimento, observa-se referência às rotas culturais nas

orientações operacionais para implementação da convenção do patrimônio mundial, realizada

em 2015, ao analisar o Anexo 3 que traz as orientações de tipos específicos de bens. Este

documento define (Unesco, 2015a, p. 76, tradução nossa):

22. O conceito de itinerários culturais se mostra rico e fértil, oferecendo um quadro privilegiado no qual a compreensão mútua, uma abordagem plural da história e uma cultura de paz podem operar.

23. Um itinerário cultural é composto por elementos tangíveis cujo significado cultural vem de intercâmbios e de um diálogo multidimensional entre países ou regiões, e que ilustram a interação do movimento, ao longo do itinerário, no espaço e no tempo.

Nas estatísticas da Unesco sobre o patrimônio mundial, em tabela que relaciona os bens

inscritos por ano, são encontrados os bens identificados pelo termo rotas (routes) em sua

descrição:

Tabela 1– Itinerários Culturais protegidos pela Unesco.

1993 Rotas de Santiago de Compostela: Caminho Frances e Rotas do Norte da Espanha

1998 Rotas de Santiago de Compostela na França

2004 Sítios Sagrados e Rotas de Peregrinação na Cadeia de Montanhas de Kii

2005 Rota do Incenso - Cidades do Deserto de Negev

2012 Local de nascimento de Jesus: Igreja da Natividade e a Rota de Peregrinação

2014 Rota da Seda: Redes de Rotas no Corredor de Chang'an-Tianshan

Fonte: Disponível em: < http://whc.unesco.org/en/list/stat >. Acesso em: 08 mar. 2016. Tradução nossa.

Para melhor compreensão dos Itinerários culturais, tem-se, abaixo, fragmento de um mapa da

identificação da Rota Santiago de Compostela como patrimônio mundial (Figura 2). A

salvaguarda é realizada a partir de três elementos: a rota – referenciada no mapa como uma

linha; as estruturas associadas à rota – mancha em cor vermelha representando a porção de

área protegida; a zona de amortecimento – nas extremidades da rota, em cor laranja (Unesco,

2014).

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Figura 2 – Mapa parcial da Rota de Santiago de Compostela. Aragón: Huesca y Zaragoza. Asso-Veral

Fonte: Unesco (2014)

O documento de instituição da rota considera, além do percurso, uma faixa de 30 metros em

cada uma de suas laterais a ser protegida. A zona pode se alargar onde houver cidades e/ou

outros elementos culturais importantes (Unesco, 2015b).

Conforme Pistorello (2013), os bens culturais existentes em um caminho são importantes para

identificação, valorização e conservação do Itinerário Cultural. Além dos materiais e

imateriais, outros elementos também são relevantes, como a natureza, que, se

salvaguardada, necessita de ações interdisciplinares e gestão compartilhada. Além disso, a

identificação de uma rota pode ressignificar o território, pois pressupõe uma nova leitura do

local e seus recursos.

Para Cardoso e Castriota (2012), um Itinerário Cultural pode vir a ser utilizado, ou mesmo

concebido, como um produto turístico, mas esta não pode ser sua única finalidade. Para além

disso, os caminhos funcionam como um complemento ao turismo local. Para os autores, um

Itinerário Cultural é “[...] um instrumento com potencial de valorização da diversidade cultural,

dos direitos humanos, que pode ser utilizado como um veículo de promoção e acesso à

cultura” (CARDOSO e CASTRIOTA, 2012, p. 16). Dessa forma, um itinerário cultural é um

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forte mecanismo de salvaguarda, promovendo desenvolvimento político, social, ambiental e

econômico em diversos setores.

Martínez Yáñez (2010) explica que, sem dúvida, os Itinerários Culturais são a mostra do

desenvolvimento mais atual da noção do patrimônio. Eles participam do conjunto de

categorias que vêm formulando conceitualmente o patrimônio cultural de uma forma cada vez

mais complexa. Entretanto, considera que a categoria necessita de mais clareza nos

processos de inscrição na lista do Patrimônio Mundial, tendo em vista conferir maior força ao

conceito e auxiliar sua identificação e reconhecimento.

4. A CHANCELA DOS ITINERÁRIOS CULTURAIS NO BRASIL

Buscando os reflexos da criação da nova categoria Itinerários culturais pela Unesco, no Brasil,

não se observa influência igual à vivenciada no âmbito da paisagem cultural. Porta (2012), ao

estudar a política do Iphan desenvolvida de 2000 a 2010, apresenta, entre as novas áreas de

atuação da instituição, o Patrimônio Cultural Imaterial e a Paisagem Cultural. Ou seja, não há

a identificação de Itinerários Culturais como categoria de salvaguarda. Isso se confirma

quando analisados os tipos de bens sob a proteção do Iphan, desde sua criação, quais sejam:

Objetos e documentos; Bens móveis e integrados, Bens imóveis; Bens arqueológicos;

Patrimônio naval; Bens imateriais e Paisagens.

A categoria Paisagem Cultural é regulamentada no Brasil pela Portaria 187/2009. Para Porta

(2012), este instrumento, de proteção e gestão, tem criação justificada na contenção das

forças perversas da expansão das cidades; forças essas causadoras de impactos nos

territórios, e associada destituição de suas qualidades particulares. Para Ribeiro (2007), a

categoria, presente na especificação dos bens patrimoniais a serem protegidos por

tombamento, nos termos do Decreto-Lei n. 25/1937, apresenta pouca clareza conceitual até

sua instituição como chancela.

Conforme o Iphan (2009), a chancela da paisagem é concebida em um momento de

amadurecimento institucional, em busca de ampliação de sua ação, e de revisão conceitual,

metodológica, instrumental e técnica. Assim, a nova categoria se apresenta como um

instrumento atualizado de proteção, figurando como uma novidade diante dos instrumentos

brasileiros de preservação até então adotados. A chancela se estabelece no intuito de uma

abordagem mais congruente com a dinamicidade das manifestações, envolvendo a natureza

e a cultura, tendo em vista que, na salvaguarda da paisagem, um só instrumento é insuficiente

para um resultado positivo. Isso porque, a proteção da paisagem exige uma ação integrada de

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todos os atores envolvidos no processo de construção de um pacto. Em concordância com

esse raciocínio, para o Iphan:

[...] a chancela da Paisagem Cultural Brasileira deve funcionar muito mais como um instrumento catalisador de um processo planejado e integrado de proteção e gestão territorial do que propriamente de um novo instrumento de proteção. (Iphan, 2009, p. 13)

A identificação de uma Paisagem Cultural ocorre quando há indissociabilidade entre o

patrimônio material, imaterial e natural. Se houver pretensão de se preservar as três

dimensões, concomitantemente, a categoria é estabelecida. Para que isso ocorra, são

necessárias gestão coordenada, leitura global do território, esforços interdisciplinares no

atendimento de suas demandas e gestão compartilhada entre instituições e comunidade

(PORTA, 2012).

A adesão à chancela da paisagem ocorre em um momento em que o Iphan reavalia sua

missão com relação às diretrizes e à gestão para salvaguarda do Patrimônio Cultural do

Brasil, em concordância com a tendência mundial: “um movimento internacional, onde órgãos

como a UNESCO e o ICOMOS já vinham cunhando entendimentos e trabalhando com

conceitos como de paisagem cultural, itinerários e territórios culturais” (Iphan, 2009, p. 18).

Assim, a despeito de uma descontinuidade na implantação de ações de proteção, é possível

reconhecer uma sintonia entre a instituição nacional e a Unesco, no que se refere à

conceituação e à prática de preservação. Essa condição se confirma com a incorporação das

categorias do Patrimônio Ferroviário, do Patrimônio Imaterial e da Paisagem Cultural no

Brasil. Por exemplo, enquanto a ampliação da participação das ferrovias na lista da instituição

internacional pode ser verificada na década de 1990, no Brasil a inscrição de bens ferroviários

como patrimônio nacional data de 2010, quando é divulgada a Portaria nº 407/2010. Com

relação ao Patrimônio Imaterial, instituído pela Unesco em 2003, no Brasil, a chancela é de

2000, com o registro de bens de natureza imaterial estabelecido pelo Decreto nº 3.551, de 4

de agosto. A categoria da Paisagem Cultural, instituída pela Unesco, em 1992 (Ribeiro, 2007)

ganha força no Brasil em 2009.

Já no que se refere aos itinerários culturais, não se reconhece a mesma influência da

instituição internacional, ainda que, conforme a instituição (Iphan, 2009, p. 18),

[...] apesar de não se constituírem em formas institucionalizadas de preservação ou gestão – como a paisagem cultural o foi através da Portaria Iphan 187/2009 – a utilização dos conceitos de território e de itinerário cultural para o estabelecimento de estratégias e ações de preservação do patrimônio cultural brasileiro, deve fazer parte deste processo.

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Isso porque, em substituição aos Itinerários Culturais, o Iphan tem escolhido a chancela da

Paisagem Cultural para preservar narrativas relacionadas a rotas e caminhos, entre os quais

os Caminhos das Tropas, estudados desde 1991, visando à salvaguarda da instituição.

Ligando o Rio Grande do Sul e São Paulo, esses caminhos estruturam reminiscências da

história brasileira decorrentes do movimento dos tropeiros, apresentando diversidade cultural

de grande potencial, reunindo corredores de taipa e pedras, fazendas, cemitérios, entre outros

(PORTA, 2012).

Conforme Cardoso e Castriota (2012), a Unesco diferencia com clareza as categorias

Itinerário Cultural e Paisagem Cultural, considerando que as paisagens culturais podem até

apresentar elementos de significante representação de transporte e comunicação. Entretanto,

não se deve confundir tais elementos com os característicos de um Itinerário Cultural. O

próprio Iphan considera que a chancela Paisagem Cultural não pode ser confundida com o

conceito de Itinerário Cultural (Iphan, 2009).

Com relação a não adesão à chancela dos itinerários culturais por parte do Iphan, percebe-se,

também, outra problemática ao analisar o caso do Caminho do Ouro em Paraty, no Rio de

Janeiro. Como já apresentado, o caminho encontra-se na lista indicativa a patrimônio mundial.

Tudo indica que será inscrito como um itinerário cultural – categoria criada pela Unesco, em

2005 – por possuir as qualidades necessárias para pertencer a tal categoria. O Iphan, em

contrapartida, protege o caminho de outra forma. Conforme Costa (2008, p. 65), o Caminho do

Ouro é classificado como patrimônio nacional em 1º de março de 1974, junto com todo o

Município, por meio do Processo nº 563- T-57 IPHAN, LAEP inscrição 63 e LBA inscrição 510.

O Caminho do Ouro está salvaguardado no Brasil, pelo Iphan, como Monumento Nacional,

em um tombamento que, na verdade, abrange todo o munícipio de Paraty. O Caminho, então,

não apresenta proteção nacional na vertente de itinerário cultural, não possuindo, assim, os

cuidados necessários à salvaguarda de uma rota do patrimônio. Diante disso, questiona-se a

solicitação de salvaguarda mundial para o Caminho do Ouro, já que o mesmo,

aparentemente, não é valorizado nacionalmente como tal. Entretanto, se há esta valorização

por parte do Iphan, o que pode estar impedindo a aplicação/criação da chancela dos

Itinerários Culturais?

É provável que o Iphan não tenha acolhido a chancela por constrangimentos institucionais.

Por exemplo, apenas ao final da primeira década do século XXI todos os estados da

federação possuem superintendências. Ou seja, não é difícil concluir serem muitas as

dificuldades decorrentes do descompasso entre demandas estaduais e limitações das

políticas patrimoniais regionais. É o caso do estado do Espírito Santo, por exemplo, que tem

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superintendência instituída apenas em 2004, a despeito do primeiro tombamento federal datar

de 1940, com a inscrição do Solar Monjardim, residência-sede de fazenda construída no

século XVIII, no Livro do Tombo das Belas Artes (Almeida, 2009, p. 27). Neste contexto,

talvez, em decorrência do fato de sua superintendência ser nova, o Espírito Santo carece de

um sistemático inventário, com vistas à ampliação da herança ambiental,

territorial-paisagística e socioeconômica de sua trajetória econômica, política, social e

urbanística.

Porta (2012), ao avaliar a atuação do Iphan em cada unidade federativa, aponta várias

dificuldades. Problemas em infraestrutura, dificuldades na participação popular e na função

social do patrimônio, entre outros. Sem contar com as problemáticas decorrentes dos conflitos

de interesse, da falta de preparo dos responsáveis pela salvaguarda e do estabelecimento de

ações interdisciplinares. Tais limitações, vivenciadas pelo órgão de proteção do patrimônio

brasileiro, podem explicar a não adesão da chancela Itinerários Culturais. Como exposto, o

reconhecimento de uma rota como bem cultural pressupõe o cumprimento de etapas

operacionais específicas. Por suas dimensões – algumas vezes são caminhos que se

estendem por áreas de escala regional e mesmo nacional, são necessárias ações conjuntas,

de fiscalização, gestão e manutenção para a salvaguarda patrimonial.

Conforme conclusão da Unesco, as rotas culturais integram o patrimônio cultural. Nessa

perspectiva, a instituição solicita aos estados membros, dos quais o Brasil faz parte, a

identificação de caminhos de valor cultural e o fomento à sua proteção nos âmbitos nacionais,

estaduais e municipais. Assim, para o atendimento a essa “convocatória”, afirma-se a

relevância da continuidade de iniciativas em curso no Brasil voltadas ao tratamento integrado

da preservação do patrimônio territorial. Mesmo porque, a trajetória da instituição nacional

tem assegurado competência de técnicos vinculados à ação; impulsionado reflexão

metodológica e conceitual entre pesquisadores; e motivado o envolvimento crítico de

comunidades nessa direção.

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