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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES – ECA/USP DEPARTAMENTO DE RELAÇÕES PÚBLICAS, PUBLICIDADE E PROPAGANDA E TURISMO Mariana de Toledo Marchesi RUMO À SOCIEDADE TRANSPARENTE Transformações da Esfera Pública e da Democracia na Era da Rede São Paulo 2008

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES – ECA/USP

DEPARTAMENTO DE RELAÇÕES PÚBLICAS, PUBLICIDADE E PROPAGANDA E TURISMO

Mariana de Toledo Marchesi

RUMO À SOCIEDADE TRANSPARENTE Transformações da Esfera Pública e da Democracia na Era da Rede

São Paulo 2008

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Mariana de Toledo Marchesi

RUMO À SOCIEDADE TRANSPARENTE Transformações da Esfera Pública e da Democracia na Era da Rede

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Comunicações e Artes

como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Comunicação

Social com habilitação em Publicidade e Propaganda.

Orientador: Prof. Dr. Massimo Di Felice

São Paulo 2008

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RUMO À SOCIEDADE TRANSPARENTE Transformações da Esfera Pública e da Democracia na Era das Redes

Mariana de Toledo Marchesi

Resumo: Este trabalho investiga as relações entre as tecnologias comunicativas e as transformações sociais, com especial interesse pelas mudanças pelas quais passam a esfera pública e, conseqüentemente, a democracia, com a introdução da tecnologia comunicativa digital, e com a formação de uma sociedade em rede. Ao final do percurso teórico, será feito um estudo de caso do blog de Beppe Grillo, um comediante e ativista italiano que está desencadeando um fenômeno de opinião pública na Itália e fomentando as bases para o nascimento de uma ciberdemocracia. Palavras-chave: Rede. Esfera Pública. Democracia. Digital. Tecnologia. Comunicação.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

JUSTIFICATIVA ......................................................................................................................5

OBJETIVO GERAL ..................................................................................................................7

OBJETIVOS ESPECÍFICOS............................................................................................................................7

METODOLOGIA...............................................................................................................................................8

QUADRO TEÓRICO DE REFERÊNCIA...........................................................................................................8

COLETA DE DADOS.......................................................................................................................................10

1. MÍDIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

1.1. DA ORALIDADE À TIPOGRAFIA........................................................................................................11

1.2. A ELETRICIDADE..................................................................................................................................18

2. A SOCIEDADE EM REDE

2.1. BREVE RELATO DE UMA HISTÓRIA BREVE.................................................................................25

2.2. A TECNOLOGIA DIGITAL ..................................................................................................................31

2.2.1. A LINGUAGEM ....................................................................................................................................32

2.2.2. A MENSAGEM.......................................................................................................................................34

2.2.3. INTERAÇÕES.........................................................................................................................................38

2.3. TRANSFORMAÇÕES..............................................................................................................................45

3. MÍDIA E ESFERA PÚBLICA

3.1. DA TRIBO À NAÇÃO..............................................................................................................................54

3.2. OPINIÃO PÚBLICA E DEMOCRACIA................................................................................................63

3.3. TRANSFORMAÇÕES DA OPINIÃO PÚBLICA E DEMOCRACIA NA REDE.............................73

4. BASTA! LIVRE INFORMAÇÃO EM LIVRE ESTADO.

4.1. CONTEXTUALIZAÇÕES ......................................................................................................................89

4.1.1. ÉTICA HACKER E CIBERATIVISMO ................................................................................................89

4.1.2 O BLOG E A BLOGOSFERA: FENÔMENOS DE OPINIÃO EM REDE.............................................92

4.2. O BLOG DE BEPPE GRILLO .............................................................................................................101

4.2.1.QUEM É BEPPE GRILLO ....................................................................................................................101

4.2.2. CONJUNTURA ITALIANA ................................................................................................................102

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4.2.3. O BLOG ................................................................................................................................................104

4.2.4. FENÔMENOS DE OPINIÃO ...............................................................................................................109

4.2.5. HIBRIDISMOS E CONFLITOS ...........................................................................................................116

4.2.6. PELA LIBERDADE DE INFORMAÇÃO ...........................................................................................123

4.2.7. BEPPE GRILLO: DEMAGOGIA? .......................................................................................................130

4.2.8. SEMENTES CIBERDEMOCRÁTICAS ..............................................................................................134

4.3. ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES ............................................................................................................141

CONCLUSÃO ..........................................................................................................................................143

REFERÊNCIAS

BIBLIOGRAFIA ...........................................................................................................................................148

SITES ..............................................................................................................................................................149

BLOGS ...........................................................................................................................................................149

VIDEOS ..........................................................................................................................................................150

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Introdução

Justificativa

Vivemos hoje um momento de transição como só ocorreu três vezes em toda a

história humana: uma revolução comunicativa. A humanidade, esta jovem espécie de cerca

de 100.000 anos, viveu até apenas 5000 anos atrás no tempo cíclico, no espaço da tribo,

habitando a palavra-sopro que se dissolve no ar. Então, o sinal visual, escrito, separou a

palavra do sopro e a fez sobreviver ao seu criador humano. Estava inaugurado o tempo

histórico, na palavra perene que testemunha a existência breve. Muitos séculos se passaram

e o sinal escrito virou código, traduzindo a palavra falada e fazendo-a viajar no tempo e no

espaço. Quase um milênio depois, a escrita se desvinculou do gesto, foi produzida em série

e ganhou o território dos falantes de uma mesma língua, consolidado em Estado Nacional.

Cinco séculos depois, a palavra é convertida em ondas eletromagnéticas, e viaja, leve e

invisível, por todo o globo, carregando consigo imagens, velocidades, mundos e

eletricidade.

Menos de um século mais tarde, a palavra, codificada em uma linguagem composta

de apenas dois elementos, não conhece mais fronteiras, nem mesmo aquelas impostas pelo

poder.

Esta história da circulação da palavra é também uma história da comunicação e da

humanidade. As sociedades se organizam em torno dos fluxos da linguagem, cuja

morfologia se confunde com a morfologia das relações de poder. Cada tecnologia da

comunicação propõe uma nova configuração destes fluxos e, consequentemente, uma nova

organização social. A introdução da tecnologia digital, há algumas décadas, desencadeia

um processo de profundas transformações na sociedade, e de ruptura não só com o

paradigma imediatamente anterior, mas com todos os paradigmas anteriores. O novo

espaço comunicativo que se instaura modifica as nossas formas de pensar e de sentir, de

perceber o mundo, de significar, de nos relacionarmos, e de nos organizarmos

politicamente.

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Os sinais da mudança são cada vez mais abundantes e surpreendentes. Os recentes

conflitos na Birmânia, entre a população e o governo militar totalitário, tiveram como

protagonistas homens-máquina: a parceria entre cidadãos, tecnologias digitais e rede tornou

possível denunciar ao mundo todo as atrocidades cometidas pela ditadura do país. No

Brasil, as populações indígenas utilizam as tecnologias digitais e a Internet para tomarem a

palavra e romperem a barreira imposta pelos discursos paternalistas “sobre o outro”, seja do

Estado, seja das Ciências Sociais. Através da rede, eles se interconectam, dialogam,

produzem e publicam as próprias narrativas sobre suas culturas. Na Itália, o blog de um

comediante desencadeou um grande movimento social, capaz de mobilizar milhares de

pessoas em nível local e nacional. Todas essas iniciativas brotam da rede e se chocam

contra o poder instituído, que lhes reage com a repressão ou com o silêncio.

Como estudante de comunicação, devo e quero acompanhar e entender estas

transformações, que dizem respeito não só às práticas da comunicação mas, principalmente,

aos rumos do mundo em que vivemos. O nexo fascinante entre as tecnologias

comunicativas e a organização das nossas sociedades, as relações de poder das quais

fazemos parte, me motiva a investigar, deste ponto de vista, o momento pelo qual estamos

passando. Trata-se de conhecer o novo ambiente simbólico e comunicativo que estamos

passando a “habitar”.

Dessa forma, este trabalho se concentrará na análise da relação entre as tecnologias

comunicativas, as transformações sociais e a constituição da esfera pública e da

democracia, passando à análise das transformações operadas pelo digital em todos esses

âmbitos.

Além do percurso teórico, faremos também um estudo de caso, para o qual escolhi o

blog de Beppe Grillo, na Itália. Os motivos desta escolha são, em primeiro lugar, a

relevância do caso para o tema estudado e as dimensões do fenômeno: o blog de Beppe

Grillo é um dos mais lidos na Europa e no mundo, e tem sido o cerne de um movimento

sociais de enormes proporções na Itália. Em segundo lugar, há uma motivação pessoal da

autora em função da proximidade com esse país, de onde vêm as minhas origens e onde

morei durante um semestre por ocasião de um intercâmbio, entrando em contato com a sua

cultura e realidade sócio-econômica e política.

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Objetivo Geral

O objetivo deste trabalho é construir, com base em autores de grande relevância no

campo da Comunicação e Ciências Sociais, um sólido quadro teórico de referência sobre as

revoluções comunicativas, a partir do qual será possível analisar e interpretar a Revolução

Digital e suas expressões empíricas no mundo de hoje. Há a preocupação de construir este

quadro a partir de um paradigma adequado e coerente com os fenômenos estudados.

Objetivos Específicos

Para que possamos atingir o objetivo geral, o trabalho será dividido em quatro

capítulos: 1. Mídia e Transformação Social; 2. A Sociedade em Rede; 3. Mídia e

Democracia; 4. Estudo de Caso.

No primeiro capítulo, pretendemos recuperar a história das revoluções

comunicativas, explorando cada modalidade de comunicação, a organização social por ela

condicionada e as transformações sociais ensejadas pela introdução de cada tecnologia

comunicativa. Dessa maneira, poderemos construir um conhecimento sobre a relação entre

mídia e sociedade e sobre a própria história das tecnologias da comunicação, formando um

background indispensável à compreensão da Revolução Digital.

No segundo capítulo, procuraremos explorar a tecnologia digital e as respectivas

transformações sociais que estão sendo provocadas pelo novo ambiente comunicativo, em

função das características inerentes ao meio. Situaremos também a Revolução Digital em

relação às revoluções precedentes, para compreender o que faz dela uma revolução

comunicativa.

No terceiro capítulo, nos dedicaremos ao estudo da relação entre cada uma das

tecnologias comunicativas e o processo de formação da esfera pública, incluindo os

fenômenos de opinião pública sobre a qual se baseia a democracia moderna. Em seguida,

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tentaremos compreender as atuais e potenciais transformações da esfera pública – e

portanto, da democracia – no novo contexto digital.

No quarto capítulo, analisaremos um caso real com base no percurso e nos conceitos

construídos nos capítulos anteriores. Dessa forma, poderemos checar a adequação e a

pertinência da teoria à experiência empírica, ao mesmo tempo em que elaboramos sobre ela

uma interpretação baseada no quadro teórico de referência. Neste capítulo, pretende-se

atingir o objetivo de compreender, ao menos em parte, o período de transição que vivemos

e as transformações pela qual o mundo está passando com a Revolução Digital.

Metodologia

Este trabalho será realizado a partir de uma pesquisa bibliográfica e um estudo de

caso de caráter exploratório.

Quadro Teórico de Referência

O quadro teórico de referência é composto por autores ligados às seguintes

temáticas, exploradas ao longo do trabalho: Revoluções Comunicativas; Revolução Digital

e Redes; Opinião Pública; e Democracia/Ciberdemocracia.

Trata-se de autores que pertencem à tradição heideggeriana de pensamento sobre a

técnica e às teorias comunicativas geradas a partir de Mcluhan. Logo, não possuem uma

visão meramente instrumental da tecnologia e, partindo do pressuposto básico de que “o

meio é a mensagem”, pensam a comunicação fora do paradigma funcional-estruturalista,

elaborando a noção dos fluxos comunicativos como habitat simbólico do ser humano e

elemento organizador da sociedade.

No primeiro capítulo, onde falaremos sobre as revoluções comunicativas e as

transformações sociais por elas condicionadas, utilizaremos as idéias de Marshall Mcluhan

(La Galaxia Gutenberg, 1969), Pierre Lèvy (O que é o Virtual, 1996; Cibercultura, 1999;

Ciberdemocracia, 2002), Alberto Abruzzese (Dopo La Democrazia, 2006), Derrick De

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Kerckhove (Dopo La Democrazia, 2006), Lucia Santaella (Cultura e Artes do Pós-Humano,

2004), e Gianni Vattimo (A Sociedade Transparente, 1992).

O segundo capítulo, sobre a tecnologia digital, suas características, potencialidades

e a transformação sócio-cultural em curso, será baseado, principalmente, nos conceitos de

Pierre Lèvy, Lucia Santaella, Manuel Castells (A Sociedade em Rede, vol.1, 1999) e Gianni

Vattimo, não excluindo os demais autores supra-citados.

O terceiro capítulo abordará o desenvolvimento da esfera pública, a relação entre

opinião pública e a democracia moderna, as transformações destas instâncias na era das

redes e a ciberdemocracia. Os autores que nos servirão de base são: Marshall Mcluhan,

Massimo Di Felice (As Formas Digitais do Social; A Origem do Conceito Moderno de

Opinião Pública), Derrick de Kerckhove, Manuel Castells, Gianni Vattimo, Giorgio Grossi

(L’Opinione Pubblica, 2004), Vincent Price (L’Opinione Pubblica, 2004), Norberto Bobbio

(O Futuro da Democracia, 2000) e Pierre Lèvy.

O quarto capítulo procurará aplicar os conceitos desenvolvidos nos anteriores para o

estudo de um caso.

Alguns conceitos serão muito utilizados em todo o percurso e merecem um

esclarecimento a priori. Em primeiro lugar, o conceito de virtualização, proposto por Lèvy.

O virtual, segundo Pierre Lèvy (1996), é uma instância que, ao contrário do que propõem

alguns autores, não se opõe ao real, embora não exista como presença. “A palavra virtual

vem do latim medieval virtualis, derivado por sua vez de virtus, força, potência. Na

filosofia escolástica, é virtual o que existe em potência, e não em ato”. (LÈVY, 1996, p.15)

Logo, a virtualização não é uma desrealização; é a desconexão de uma presença, a elevação

à potência e a um complexo problemático dinâmico que pode se resolver em infinitas

atualizações. “A atualização aparece então como a solução de um problema, uma solução

que não estava contida previamente no enunciado. A atualização é criação, é invenção de

uma forma a partir de uma configuração dinâmica de possibilidades”. (Ibid, p.16)

O segundo conceito que devemos situar é aquele de analógico. Chamaremos de analógico

ao paradigma construído sobre as tecnologias comunicativas anteriores ao digital.

A sociedade, na versão funcionalista, resultava, portanto, uma estrutura dividida

em funções, sistemas e subsistemas cujo pressuposto para a própria existência

estava na forma de interação entre as distintas partes, isto é, num sistema

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comunicativo analógico, num repasse de informações de uma estrutura para

outra, de um sistema “emissor” para um outro, “receptor”, separado por funções

e identidade. (DI FELICE, 2007).

Coleta de dados

Para a coleta, agregação e re-elaboração de dados de natureza variada e multi-modal

(textos, links, blogs, vídeos, imagens), utilizamos um blog

(http://desventurasdeumtcc.blogspot.com), criado especialmente com a finalidade de se

tornar um lugar virtual de reunião dos dados coletados e de construção do trabalho.

Quanto ao estudo de caso, trata-se de um estudo exploratório do blog de Beppe

Grillo, feito a partir de observação participante (uma vez que também interagi com a

comunidade do blog) e análise de conteúdo coletado no período de fevereiro a junho de

2008. O acompanhamento do blog foi feito através de um agregador RSS, do recebimento

de newsletters enviadas pelo próprio blog com as suas atualizações, e de visitas diretas. O

acompanhamento do blog acontece desde setembro de 2007, esporadicamente, tornando-se

diário a partir de março de 2008.

Os textos publicados pelo autor e os comentários dos leitores, bem como os vídeos e

fotos, e os episódios vivenciados através do blog durante este período foram considerados

dados relevantes para a pesquisa. O estudo destes dados se baseará principalmente na

análise do conteúdo textual do blog, na análise de sua estrutura e funcionamento, e na

narração dos episódios observados de acordo com o referencial teórico construído nos

capítulos anteriores.

Os vídeos considerados relevantes e significativos para a pesquisa serão reunidos

em http://desventurasdeumtcc.blogspot.com.

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1. Mídia e Transformação Social

1.1. Da Oralidade à Tipografia

A história do gênero humano é uma história da linguagem. Não é possível imaginar

o homem fora de uma concepção puramente animalesca sem levar em consideração a

linguagem. Acima de tudo, sem a linguagem não seria possível nem mesmo imaginar, nem

mesmo fazer esta auto-projeção, ou outra projeção qualquer, operações que supõem um

espaço ausente, virtual. “A partir da invenção da linguagem, nós, humanos, passamos a

habitar um espaço virtual, o fluxo temporal tomado como um todo, que o imediato presente

atualiza apenas parcialmente, fugazmente. Nós existimos”. (LÈVY, 1996, p.71)

Essa constatação, embora seja de uma desconcertante obviedade, é a premissa que

nos permite escolher o fio condutor deste trabalho. Sendo a linguagem imprescindível ao

homem, é perfeitamente aceitável contar uma história do homem através daquilo que

organiza os fluxos da sua linguagem. Isto significa analisar as sociedades a partir das suas

tecnologias da comunicação.

“As mídias não são meios”, diz Abruzzese (2006, p.43), ao parafrasear aquilo que já

há tanto tempo enunciou Mcluhan, embora seu paradigma ainda pareça demasiado estranho

à academia de Ciências Sociais e Comunicação. As mídias certamente não são meios, se

estes são concebidos como instrumentos. Mas, se ao invés disso, entendemos meios como

habitats, neste sentido, a enunciação se inverte. As mídias são os meios. São os meios que

habitamos. São o nosso meio-ambiente, o modo como se organiza toda uma paisagem de

signos, símbolos, afetos e informações. Para Abruzzese (Idem, p.42), as mídias são uma

“forma de vida territorial, e não só um veículo de mensagens”.

O meio é a mensagem. A frase diz: o meio é o conteúdo da comunicação porque

é a prótese de quem comunica; portanto, as mídias são os sujeitos sociais no ato

de dar forma relacional a si mesmas; e esta forma exprime a natureza social,

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política, da dimensão territorial onde se exprime e é reconhecida.

(ABRUZZESE, 2006, p.43)

Poderíamos dizer que a mídia, meio-ambiente, habitat, determina. Mas isso seria

repetir os enganos tantas vezes cometidos já desmistificados dos determinismos que, ao

deslocarem o ponto de vista para fora do ser humano, acabam por apagar a dimensão

humana. Cabe aqui uma importante distinção conceitual pontuada por Pierre Lèvy: a mídia

não determina, mas condiciona.

Importa no entanto sublinhar que o aparecimento ou a extensão de tecnologias

intelectuais não determinam automaticamente este ou aquele modo de

conhecimento ou de organização social. Distingamos portanto cuidadosamente

as ações de causar ou de determinar, de um lado, e as de condicionar ou tornar

possível, de outro. As técnicas não determinam, elas condicionam. Abrem um

largo leque de novas possibilidades das quais somente um pequeno número é

selecionado ou percebido pelos atores sociais. (LÈVY, 1996, p.101)

As tecnologias intelectuais, da comunicação ou da informação condicionam certos

usos e fluxos de linguagem, e portanto certas configurações sociais, psicológicas,

cognitivas, culturais, econômicas e políticas. Ao longo da História, diversas tecnologias da

informação foram sempre acompanhadas de correspondentes formas de organização social,

assim como as suas transformações são sempre acompanhadas por transformações sociais.

Dessa maneira, procuraremos analisar estas configurações à luz das suas respectivas

modalidades comunicativas, a saber: a comunicação oral, a escrita, o alfabeto, a imprensa,

os meios eletrônicos de massa e, por fim, o digital, revolução contemporânea em cujo

turbilhão nos encontramos agora.

A linguagem, segundo Lèvy (1996, p.71), inventa o Tempo. Ela “virtualiza um

‘tempo real’ que mantém aquilo que está vivo prisioneiro do aqui e agora. Com isso, ela

inaugura o passado, o futuro e, no geral, o Tempo como um reino em si, uma extensão

provida de sua própria consciência”.

As culturas orais vivem um tempo cíclico. Seu passado, presente e futuro são

constituídos no tempo longínquo do Mito, e depende da memória “encarnada”,

territorializada, dos indivíduos que estão presentes e funcionam, eles mesmos, como

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suportes para a transmissão da bagagem simbólica da comunidade. A questão do poder

nestas sociedades também é estritamente ligada ao domínio da palavra. “As culturas orais

oferecem o poder àquele que possui o controle do verbo”. (DE KERCKHOVE, 2006, p. 58)

Na cultura oral, o senso de coletividade é prevalente, como se pode observar nesta

afirmação de De Kerckhove: “De fato, ainda que tal poder seja gerido pelo orador,

enquanto linguagem exteriorizada, oral, é em todo caso plenamente condividido e portanto

inclui – possui – de modo unitário, tanto o orador quanto o seu auditório”. (Idem) Aqui, o

contexto que permeia a comunicação e a circulação das informações no interior da

comunidade é presente e partilhado por todos os interlocutores.

Nas sociedades orais, o elemento mais relevante para a comunicação entre os

membros é a palavra falada. Logo, a audição desempenha um papel fundamental neste

processo. Os membros de uma cultura oral vivem “no mundo implícito e mágico da

ressonante palavra falada, [...] um mundo carregado de significado direto e pessoal para

quem ouve”. (MCLUHAN, 1969, p.36) Essa característica influencia diretamente a

percepção do tempo nestas sociedades: o som é concomitante ao tempo real, é um evento

com uma duração muito precisa – ele começa e termina no presente, depois se esvanesce. A

palavra falada só existe no momento de sua enunciação, e sua transmissão só pode se

efetuar através da repetição. Logo, o tempo relevante é o presente, e a sua percepção é

cíclica.

A invenção da escrita opera um grande salto rumo à virtualização e à

desterritorialização. A escrita é a desterritorialização da mensagem, e antes de tudo, é a

“desencarnação” da mesma. Ela separa, no tempo e no espaço, a mensagem do seu suporte

vivo, o homem, desvinculando-a não só do seu corpo e da sua existência mortal, mas

também do contexto à qual pertence. “Virtualizante, a escrita dessincroniza e deslocaliza.

Ela fez surgir um mecanismo de comunicação no qual as mensagens freqüentemente estão

separadas no tempo e no espaço de sua fonte de emissão, e portanto são recebidas fora de

contexto”. (LÈVY, 1996, p.38) A escrita inaugura o tempo histórico, a marcação, a

numeração, a quantificação do tempo. Permite uma acumulação mais eficiente de

conhecimento e uma ampliação da memória para além dos limites mnemônicos dos

indivíduos da comunidade.

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O espírito humano pôde então olhar para o passado de outra maneira que não

pela imaginação, pelos mitos e pelos vestígios materiais. A nova abundância de

testemunhos lingüísticos em proveniência do antigamente ou de mundos

culturais longínquos permitiu colocar em perspectiva as percepções presentes e

os projetos para o futuro. (LÈVY, 2002, p.33)

O surgimento da escrita, porém, não é imediatamente acompanhado pela sua

popularização enquanto tecnologia da comunicação. Por muito tempo, o domínio da escrita

significou o domínio do conhecimento e da informação – e portanto do poder – e foi

mantido como um oligopólio restrito a escribas, sacerdotes, monges. Antes da invenção das

técnicas de impressão, a escrita era uma arte dominada por poucas figuras, geralmente

associadas ao poder religioso e político. “Muito antes de se apresentar como uma relação de

força entre os indivíduos, o poder deriva de uma relação entre a pessoa e a palavra”. (Ibid,

p.57)

Verifica-se aqui, assim como veremos ainda muitas vezes, não só a relação entre o

domínio da informação e o poder, mas também a estreita relação entre poder e opacidade.

Aqueles que podem ver, conhecer, tomar ciência, exercem o domínio sobre aqueles que não

podem fazê-lo. É o que Bobbio (2000) e outros autores chamam de “assimetria”. O poder

tudo vê, os súditos nada vêem.

“O nascimento da escrita está ligado aos primeiros Estados de hierarquia piramidal

e às primeiras formas de administração econômica centralizada (imposto, gestão de grandes

domínios agrícolas)”. (LÈVY, 1996, p.100) “Os escribas, os primeiros empregados estatais,

eram os únicos capazes de ler as leis, redigir os documentos e controlar as contas”. (Idem,

2006, p.5)

Se o domínio da escrita e o monopólio da leitura deram origem a Estados

autocráticos, opacos e fortemente hierarquizados, a difusão das mesmas através do alfabeto

dá origem aos primeiros respiros da democracia. O alfabeto, padronizando os caracteres e,

conseqüentemente, criando um mínimo de regras para a reprodução da palavra na forma

escrita, torna a escrita – e a leitura – uma prática acessível a todos que condividam aquele

sistema alfabético. O nascimento do alfabeto diz respeito à gramática, que para Lèvy é o

fundamento da virtualização:

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As operações de gramatização recortam um continuum fortemente ligado a

presenças aqui e agora, a corpos, a relações ou situações particulares, para obter

afinal elementos convencionais ou padrão. Esses átomos são destacáveis,

transferíveis, independentes de contextos vivos. Já formam o grau mínimo do

virtual na medida em que cada um pode ser atualizado numa variedade

indefinida de ocorrências, todas qualitativamente diferentes, mas no entanto

reconhecíveis como exemplares de um mesmo elemento virtual (...) O destino da

escrita ilustra particularmente bem a gramatização; o que a etimologia confirma:

gramma, em grego antigo, é a letra. (LÈVY, 1996, p.88)

“A democracia é a grande história de amor entre a linguagem e a cultura da leitura e da

escrita”. (ABRUZZESE, 2006, p.7) O fato é que, transformando a escrita num código

padronizado, inteligível e socialmente partilhado, o alfabeto promoveu a disseminação da

leitura. Esta é a própria semente da democracia: aqueles que conhecem o alfabeto podem

ler, conhecer, analisar e discutir as leis, bem como participar do seu processo de produção.

“Com a chegada do alfabeto, a leitura torna-se acessível à maioria. Redigida em caracteres

alfabéticos a partir do século VI a.C., a lei das cidades gregas torna-se legível por todos,

donde o surgimento do conceito e da prática de cidadania”. (LÈVY, 2002, p.34)

A democracia grega tinha como pressuposto não o fato de que o poder fosse

exercido pelo povo, mas sim que o poder pudesse ser exercido por qualquer um. Claro,

devemos pontuar que esta afirmação se estende àqueles que eram considerados cidadãos, e

isso excluía mulheres, escravos e estrangeiros. Porém, é notável como não só a idéia de

cidadania é intrinsecamente ligada ao acesso à informação, como também a idéia de

horizontalidade na participação política. Estas nos são conceitos caros que nos convém

retomar mais tarde.

A prática da leitura opera no interlocutor um processo interessante. A leitura exige

um esforço maior de interpretação, mobilizando a polifonia interna do leitor na associação,

construção e desconstrução de um significado para aquele discurso cheio de lacunas. “Tal é

o trabalho da leitura: a partir de uma linearidade ou de uma platitude inicial, esse ato de

rasgar, de amarrotar, de torcer, de recosturar o texto para abrir um meio vivo no qual se

possa desdobrar o sentido”. (Idem, 1996, p.36) A interpretação, embora resultado da

polifonia social em que o indivíduo se insere, é uma elaboração individual, assim como o

próprio ato da leitura também o é. A leitura inicia um processo de individualização do

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interlocutor, que recebe a mensagem não mais coletivamente como na tradição oral, mas

individualmente. “A grande revolução renascentista é representada pela passagem da

coletividade à individualidade”. (DE KERCKHOVE, 2006, p.66)

Segundo Mcluhan (1969), a transformação da palavra falada em palavra escrita

“destribaliza” o homem. A palavra falada é carregada de tons, matizes, performances,

sentimentos, modulações, e é indissociável tanto de seu enunciador quanto da dinâmica

social da comunidade. A palavra falada é “quente”, pertence ao presente e ao contexto. O

alfabeto permite que a palavra falada seja escrita, ou seja, a transporta para uma tecnologia

não mais auditiva, mas visual. Desta maneira, a palavra se descontextualiza, se

impersonaliza.

A noção das palavras como fortes, ressonantes, vivas, ativas e naturais é

substituída pela noção das palavras como portadoras de ‘sentido’ e ‘significado’.

[...] Perdem muito do elemento pessoal no sentido em que a palavra escutada nos

foi dirigida, geralmente, enquanto a palavra vista não o foi, e a lemos ou não,

conforme quisermos. (MCLUHAN, 1969, p.38 )

O alfabeto, ao permitir a transcrição da fala em um código visual, “esfria” a palavra.

Não apenas a construção do sentido deixa de ser preponderantemente coletiva (nunca o

deixará de ser, porém, na leitura, torna-se um esforço individual), como também a própria

existência da palavra torna-se indiferente, exterior a quem a recebe. A palavra desatrelou-se

do suporte humano, e sua existência prolonga-se para além do presente, estendendo-se ao

passado e projetando-se até o futuro. “As palavras, ao se tornarem visíveis, passam a fazer

parte de um mundo de relativa indiferença para com aquele que as vê”. (Ibid, p.38)

Isto provoca alterações qualitativas no senso de coletividade, introduzindo a noção

de individualidade e diminuindo o potencial coercivo da comunidade. Nas culturas orais, a

verbalização interna – o pensamento – é entendido igualmente como conduta social. O

alfabeto fonético, separando a idéia do ato de falar, permitiu pela primeira vez a idealização

livre, separando o “pensar” do “agir”. “Em uma sociedade altamente civilizada1, a

adequação da conduta ao visível deixa o indivíduo livre para desviar-se interiormente”.

(Ibid, p.41)

1 O autor se refere às sociedades alfabetizadas.

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O próximo passo na aventura da linguagem rumo à virtualização foi dado pela

imprensa.Com a Revolução de Gutenberg e a invenção das técnicas de impressão, a escrita

e conseqüentemente a produção do livro desvinculam-se da capacidade humana de

produção e reprodução do caractere.

A escrita (a gramatização da fala) separa a linguagem de um corpo vivo e de

uma situação particular. A impressão leva adiante esse processo ao padronizar a

grafia, separando o texto lido do traço direto de uma performance muscular. O

aspecto virtualizante da impressão é o caractere móvel. (LÈVY, 1996, p.88)

Antes, o monge empenhava toda a sua vida na cuidadosa tarefa de copiar livros que

não ultrapassariam nunca as muralhas do mosteiro. Agora, livros inteiros são impressos

antes que a mão humana possa copiar algumas páginas. A imprensa acelera, espalha e

intensifica o fluxo de informação. Ela facilita não só o acesso ao livro – antes mantido sob a

custódia dos eclesiásticos – difundindo a leitura e a alfabetização, como também permite

posteriormente o surgimento de meios de comunicação de massa impressos, como os

jornais.

É muito significativo observar como o fim do monopólio do livro pela Igreja foi

acompanhado por profundas transformações sócio-políticas. Uma vez que o próprio fiel

pudesse ter acesso à Bíblia, diretamente, e não por meio da palavra do padre, estava aberto

o campo da polissemia e das interpretações, que eventualmente poderiam não coincidir com

aquelas desejadas pela própria Igreja. Este foi um passo decisivo para as Reformas

Religiosas e para o início da separação entre Igreja e Estado.

A grande difusão da prática da leitura, proporcionada pela imprensa, terminou por

completar a passagem, sobre a qual falamos anteriormente, da coletividade para a

individualidade. A imprensa opera dois processos aparentemente antagônicos que marcam

a modernidade: o surgimento de uma esfera pública, comum – e logo, da opinião pública –

e o desenvolvimento de uma esfera privada, ligada à individualidade que, como já vimos, é

fomentada pela própria natureza da prática da leitura. Entendendo o espaço público como

uma condição de diálogo entre membros de uma determinada comunidade sobre temas que

sejam do interesse de todos – ou, como prefere Lèvy, “um espaço partilhado de visibilidade

e comunicação coletiva” (LÈVY, 2006, p.36) – podemos inferir que a imprensa provocou

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um alargamento do espaço público. Este, primeiramente, circunscrevia-se às vizinhanças,

ou no máximo às pequenas cidades, e era muito difícil de distingui-lo da vida privada dos

membros da comunidade. A partir da imprensa, que permitia a circulação de informações

de proveniência distante, a condição de pertencimento ao espaço público deixou de ser a

proximidade geográfica e passou a ser a língua.

Em sociedades que usam sobretudo a comunicação oral, a ‘esfera pública’ é

confinada à comunidade daqueles a quem podemos falar diretamente (clã, tribo,

vilarejo) e é portanto difícil distinguí-la da esfera privada. A esfera pública

moderna, por contraste, é baseada na informação publicada nos jornais, revistas

ou nos livros, e por isso é claramente separada da esfera privada. Nos séculos

sucessivos à invenção da imprensa, os jornais criaram um espaço público que

podia unir milhões de pessoas que falavam a mesma língua dentro de uma vasta

área. (Ibid, p.5)

O desenvolvimento da imprensa, que eleva a natureza do “nós” do local e imediato

ao nacional e mediado (midiatizado), foi condição sine qua non do desenvolvimento dos

Estados Nacionais. “A forma política do Estado Nação, como as modernas democracias e o

conceito de direitos humanos é extremamente ligada à esfera pública moderna, baseada na

imprensa”. (Ibid, p.5)

Até aqui, percorremos um percurso de crescente virtualização da mensagem, de

aceleração e generalização do fluxo de informação. Com a invenção da escrita, a mensagem

se desvincula do corpo e da presença viva; com o alfabeto torna-se acessível a todos que

partilham deste código; e com a tipografia, desvincula-se o caractere do gesto humano,

acelera-se a sua reprodução, promove-se a sua padronização; com a imprensa, a mensagem

se liberta da contingência geográfica, percorrendo vastas distâncias num suporte leve e

descartável – o papel.

1.2. A Eletricidade

A próxima tecnologia viria a transformar para sempre o tempo e o ritmo das

transformações culturais da humanidade, que conheceu, a partir de sua introdução,

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velocidades nunca antes vistas e exponencialmente crescentes. Ela impactou direta e

definitivamente sobre as tecnologias da comunicação precedentes. Trata-se da eletricidade.

“Creio que o título de grande transformador da cultura mundial deva atribuir-se à

eletricidade. [...] A corrente elétrica penetra as nossas vidas, os nossos pensamentos e os

nossos corpos e, em um certo sentido, os torna permeáveis”. (DE KERCKHOVE, 2006,

p.60)

A eletricidade, o magnetismo e suas relações vêm sendo estudados desde o século

XVI. 2 Mas foi apenas no século XIX que estes estudos conheceram grande progresso e

puderam ser transformados em tecnologias efetivas. Maxwell prevê a existência de ondas

eletromagnéticas, confirmada mais tarde por Hertz; Thomas Edison instala em Manhatan o

primeiro sistema de distribuição de energia elétrica; anos depois, Guglielmo Marconi

realiza a primeira transmissão telegráfica da História, inventando o telégrafo e,

conseqüentemente, o rádio.

A invenção do telégrafo dá um passo decisivo em direção à desterritorialização: a

mensagem agora não depende mais de um suporte físico para chegar ao seu destino. Ela

viaja pelo ar, torna-se imaterial, e só depende do suporte – o aparelho – no momento de sua

produção e no de sua recepção. A mensagem percorre toda a distância entre um ponto e

outro pelo ar, é invisível, propaga-se na forma de ondas eletromagnéticas. O telégrafo

representa a primeira manifestação de uma grande Revolução Comunicativa: a dos meios

eletrônicos de massa, os Mass Media.

A história dos meios de comunicação de massa pertence inteiramente ao século XX

e provocou, em cerca de 50 anos, mudanças bruscas e definitivas na cultura das sociedades

que os incorporaram. O início do século, marcado pelo nascimento de diversas novas

tecnologias, viu o surgimento daquilo que se convencionou chamar de cultura de massas.

“A cultura de massas originou-se no jornal com seus coadjuvantes, o telégrafo e a

fotografia. Acentuou-se com o surgimento do cinema, uma mídia feita para a recepção

coletiva”. (SANTAELLA, 2004, p.79)

2 WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. História da Eletricidade. [S.I.]:[s.n.], 2008. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_da_electricidade>. Acesso em: 4 abr. 2008.

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O rádio, cuja primeira transmissão data de 19063, popularizou-se já nas três

primeiras décadas do século. Já representava uma das formas principais de entretenimento e

informação, tornando-se um aparelho indispensável à maioria das casas. O rádio representa

um forte retorno da primazia da audição no processo de comunicação, à medida que

transmitia para milhares de pessoas narrativas orais e sonoras.

Algumas décadas depois, assistir-se-ia à também rápida popularização da televisão,

meio de comunicação chave para entender a cultura de massas. O primeiro televisor foi

inventado em 19254, e a primeira grande transmissão data de 1936. Porém, só nos anos

seguintes à Segunda Guerra é que a televisão conheceu uma rápida difusão. Segundo Lúcia

Santaella, “foi só com a TV que se solidificou a idéia do homem de massa junto com a

idéia de mass media” (Ibid, p.79). Isto porque a televisão contém todas as características do

processo de comunicação na era das mídias de massa. Na cultura massificada, a

comunicação é piramidal e unidirecional – o conteúdo provém de alguns poucos emissores,

detentores dos meios de comunicação, e pressupõe uma recepção massiva e passiva.

A lógica da televisão é a de uma audiência recebendo informação sem

responder. O único feedback possível se dá através de medições, padrões de

compra e estudos de mercado. Disso decorre a natureza fundamental de um meio

de difusão: o padrão de energia viaja num só sentido, na direção do receptor,

para ser consumido com uma resistência mínima”. (Ibid, p.79)

Nesta época dominada pelas “indústrias da consciência” (Ibid), vemos surgir, não por

acaso, diversos paradigmas e teorias da comunicação, da teoria hipodérmica à Escola de

Frankfurt, passando pelos funcionalistas e os diversos esquemas simplificados do caminho

da mensagem no sistema emissão-recepção. É um período caracterizado por uma visão

fortemente apocalíptica dos meios de comunicação, a exemplo do Grande Irmão, de George

Orwell5, e das duras críticas de Theodor Adorno à cultura de massa, considerada um

empobrecimento em relação à cultura erudita.

3 WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Rádio (comunicação). [S.I.]:[s.n.], 2008. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%A1dio_(comunica%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 4 abr. 2008. 4 WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. História da Televisão. [S.I.]:[s.n.], 2008. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Televis%C3%A3o>. Acesso em: 4 abr. 2008. 5 “1984”, de George Orwell.

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A televisão, com seu apetite voraz, devoradora de quaisquer formas e gêneros de

cultura, tende a diluir e neutralizar todas as distinções geográficas e históricas,

adaptando-as a padrões médios de compreensão e absorção. [...] Tanto a

televisão quanto os demais meios de massa (rádio, jornal, revista), moventes e

voláteis, se esquivam à divisão dos estratos culturais de acordo com as classes

sociais: elite ou povo. (Ibid, p.79)

Antes que se pareçam demasiado exageradas, devemos lembrar que as preocupações

destes autores são concomitantes ao florescimento dos grandes regimes totalitários do

século XX. O nazismo, fascismo e stalinismo fizeram amplo uso dos meios de

comunicação de massa para propagar suas ideologia, e grande parte da hegemonia que

exerceram se deve à hábil manipulação das massas através destes meios, notoriamente o

cinema e o rádio.

Contudo, ao invés de levar a cabo uma temida homologação total das massas por

um poder e uma ideologia dominantes, os meios de comunicação de massa acabaram por

colaborar em outro sentido. Na mesma intensidade com que foram úteis à propagação do

totalitarismo, os mass media foram indispensáveis à constituição das democracias

contemporâneas, continuando e intensificando o processo de ampliação da opinião pública

e de fortalecimento das unidades nacionais, por meio da unificação lingüística e da grande

afluência de imagens e informações de todos os cantos do país. Da mesma maneira,

contribuíram para o enfraquecimento desta mesma unidade e para a expansão do espaço

perceptivo para além das fronteiras da nação.

Quando apareceram pela primeira vez, as mídias audiovisuais (rádio, cinema e

televisão) intensificaram o poder da esfera pública nacional. Mas em seguida, de

1960 em diante, as mídias eletrônicas geraram gradualmente um espaço público

mais vasto, mais complexo e muito menos restrito aos confins geográficos dos

Estados-Nação”. (LÈVY, 2006, p.5)

Segundo o filósofo Gianni Vattimo, ao invés de reforçarem um ponto de vista

dominante, os meios de comunicação de massa foram possibilitaram, ao contrário, a própria

dissolução dos pontos de vista centrais, introduzindo imagens, histórias e pontos de vista

outros, de outras culturas e sociedades que até então haviam permanecido à margem e

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submetidas a uma suposta verdade universal emanada pelo centro. Heidegger descreve a

modernidade como a época das imagens de mundo, e a multiplicação destas imagens é o

que determinaria o fim da própria modernidade, segundo Vattimo. “A rádio, a televisão, os

jornais se tornaram elementos de uma grande explosão e multiplicação de

Weltanschauungen, de imagens de mundo”. (VATTIMO, 1992, p.11) A modernidade, que

se caracteriza por um ideal de auto-transparência que tem como pressuposto uma História

de sentido único, vê-se fragmentada pela pluralização introduzida pelos mass media, por

diversos centros emanadores de sua própria história, sua própria narrativa, seu próprio

ponto de vista.

Talvez um dos primeiros exemplos mais expressivos deste efeito “inverso” dos

mass media e de um autêntico fenômeno de opinião pública, seja a reação da população

americana à guerra do Vietnã, que foi a primeira guerra televisionada da história. Era a

primeira vez que o povo americano podia entrar em contato com as imagens de uma guerra

empreendida pelo seu Estado contra outro do outro lado do globo. A comoção causada

pelas imagens, vistas pela primeira vez, de violência e morte dos soldados americanos e

vietnamitas provocou uma violenta reação da opinião pública e a explosão de diversos

movimentos de oposição à política bélica americana.

A pluralização dos pontos de vista possibilitada pelos meios eletrônicos de massa

provoca o fim do sentido unitário da História e a queda das grandes narrativas, o que

significa também uma crise da idéia de verdade.

A intensificação das possibilidades de informação sobre a realidade nos seus

mais variados aspectos torna cada vez menos concebível a própria idéia de

realidade. Realiza-se talvez, no mundo dos mass media, a profecia de Nietsche:

no fim, o mundo verdadeiro transforma-se em fábula”. (Ibid, p.13)

Vattimo enxerga no abandono da verdade e do ideal de auto-transparência a real chance de

emancipação.

“O que pretendo propor é que na sociedade dos media, em vez de um ideal de

emancipação modelado pela autoconsciência completamente definida, conforme

o perfeito conhecimento de quem sabe as coisas (seja ele o Espírito Absoluto de

Hegel ou o homem não mais escravo da ideologia como o pensa Marx), abre

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caminho a um ideal de emancipação que tem antes na sua base a oscilação, a

pluralidade, e por fim o desgaste do próprio ‘princípio de realidade’”. (Ibid,

p.13)

A tão almejada transparência termina por revelar-se múltipla, inapreensível na sua

totalidade, e descobrimos, olhando através, que não há nada por trás, não há uma verdade a

ser descoberta. A emancipação consiste em assumir e reconhecer a pluralidade do mundo, e

reconhecer-se nela; “Viver neste mundo múltiplo significa fazer experiência da liberdade

como oscilação contínua entre pertença e desenraizamento”. (Ibid, p.16)

“Continuar a sonhar sabendo que se sonha” (Ibid), como propõe Nietsche. Nisto

consiste a verdadeira liberdade.

Além de modificar gradativamente o plano ontológico na sociedade de massas, os

mass media sofreram transformações em sua própria natureza, no plano prático e até

mesmo mercadológico, modificando a dinâmica de relações com seus usuários. Lúcia

Santaella (SANTAELLA, 2004) localiza um período tardio na era da cultura de massas, ao

qual chama de cultura das mídias. Por volta dos anos 70 e 80, a introdução de novas

tecnologias tais quais as máquinas de xérox, fax, videocassete, gravador, câmeras

filmadoras portáteis, videogames permitiram ao usuário/ receptor/ consumidor uma relação

menos passiva com os meios de comunicação de massa. Afinal, torna-se possível copiar,

editar, gravar, criar, interagir, reproduzir e produzir, ainda que os custos, em termos de

tempo e dinheiro, não fossem insignificantes. Além disso, novas formas de consumo da

televisão, como a TV a cabo e o narrowcasting possibilitaram o surgimento de uma

produção cultural mais segmentada e específica, dando ao consumidor maior liberdade de

escolha e desmassificando a recepção.

O fato de que nem todos assistem à mesma coisa simultaneamente e que cada

cultura e grupo social tem um relacionamento específico com o sistema da mídia

faz uma diferença fundamental vis-à-vis o velho sistema de mídia de massa

padronizado. Além disso, a prática do surfing (assistir a vários programas ao

mesmo tempo) pela audiência introduz a criação do próprio mosaico visual.

(Ibid, p.81)

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Vale ressaltar que tal fenômeno não ocorreu apenas com a televisão, mas de certo

modo perpassou todos os meios de comunicação de massa; a multiplicação de revistas,

jornais e rádios cada vez mais especializados e direcionados a um público definido,

reconhecendo, na massa, segmentos diversos, e fomentando uma crescente diferenciação. É

já impossível enxergar a massa como um todo homogêneo e impessoal. Já não estamos

mais na cultura massificada, de produção padronizada e indiferente às particularidades.

Entramos, no plano econômico e mercadológico, filosófico e ontológico, num mundo de

crescente pluralismo e descentralização, onde a passividade já não predomina nos fluxos

comunicativos. Um mundo cada vez mais acelerado e perpassado pela eletricidade. Estão

lançadas as bases para a cultura digital.

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2. A Sociedade em Rede

2.1. Breve Relato de uma História Breve

As revoluções das tecnologias comunicativas que descrevemos no capítulo anterior

se sucederam ao longo dos séculos de forma gradativamente acelerada, quebrando

paradigmas e incitando profundas transformações sociais. A oralidade predominou durante

“95% do tempo que a nossa espécie passou neste planeta”. (LÈVY, 2002, p.33) A escrita

surgiu na Mesopotâmia há cerca de 5000 anos6, e o alfabeto tornou-se uma realidade

amplamente difundida na Antiguidade grega, por volta de 700 a.C.7 (CASTELLS, 1999)

Apenas a partir do séc. XV pudemos assistir a uma intensificação e generalização dos

efeitos da cultura alfabética, através da invenção de Gutenberg e a conseqüente difusão da

leitura. Nada menos que cinco séculos se passaram para que tivéssemos novamente alguma

grande alteração nas tecnologias da comunicação. Dessa forma, entramos no século XX

que, num período inferior a cem anos, engendrou não apenas uma, mas duas grandes

revoluções comunicativas: a dos meios eletrônicos de massa e aquela que estamos vivendo

agora, a Revolução Digital.

Castells define sua visão da história como “uma série de situações estáveis,

pontuadas em intervalos raros por eventos importantes que ocorrem com grande rapidez e

ajudam a estabelecer a próxima era estável” (CASTELLS, 1999, p.67) Pois bem, se antes

tanto as eras estáveis quanto os intervalos históricos eram da ordem do século, a partir do

séc. XX passaram a ser da ordem da década, e não se pode dizer com certeza se no último

século chegamos a viver uma era estável entre os períodos de mudança. Como vimos no

capítulo precedente, a invenção do telégrafo nos últimos anos do séc. XIX frutificou-se

rapidamente na invenção do rádio, em 1906, e este já se viu amplamente difundido em duas

6 LÈVY, Pierre. Ciberdemocracia. Tradução de Alexandre Emílio. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. p. 33 7 CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. Volume I - A era da informação: economia, sociedade e cultura. Trad. de Roneide Venâncio Majer. 10ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p.413

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ou três décadas. A televisão, nascida na década de 20, popularizou-se rapidamente após a

Segunda Guerra e, no ínterim de duas décadas, tornou-se a mídia central da cultura de

massas. Em meados dos anos 70, quando a própria televisão estava ainda em pleno

florescimento, certas inovações tecnológicas lançaram o embrião da tecnologia digital, que

viraria o mundo de pernas para o ar mais uma vez.

O cerne de toda a tecnologia digital consiste na invenção de uma linguagem

extremamente simples, versátil e potencialmente universal – o código binário. Esta

linguagem é inteiramente baseada em nada mais que dois elementos, os algarismos 0 e 1.

Qualquer tipo de dado de qualquer natureza pode ser codificado nesta linguagem, em

seqüências de 0 e 1, e decodificado por outra máquina que “fale a mesma língua”. Por esta

razão, Lúcia Santaella (SANTAELLA, 2004, p.82) define o digital como o “esperanto das

máquinas”.

[...] Depois de terem sido colocados em formato digital, quaisquer desses dados

híbridos, podem ser sintetizados em qualquer lugar e em qualquer tempo, para

gerar produtos com idênticas cores e sons. Desse modo, os dados independem do

lugar e tempo de sua emissão original ou de uma destinação determinada, pois

são realizáveis em qualquer tempo e espaço. São telegrafáveis”. (Ibid, p.84)

As inúmeras implicações deste fato exploraremos com atenção mais adiante.

Primeiramente, façamos uma breve recapitulação da história do desenvolvimento da

tecnologia digital e de seus principais frutos, como a Internet.

Se a base do digital é a linguagem binária, podemos então concluir que tudo começa

com a invenção do transistor. Criado em 1951, o transistor “possibilitou o processamento

de impulsos elétricos em velocidade rápida e em modo binário de interrupção e

amplificação, permitindo a codificação da lógica e da comunicação com e entre as

máquinas”. (CASTELLS, 1999, p. 76) O agora tão familiar chip surgiu também nessa

época, constituído por milhares de transistores.

A história da microeletrônica é, como afirma Castells, cheia de “revoluções dentro

da revolução”. (Ibid, p.79) Os primeiros computadores eram máquinas gigantescas,

desajeitadas e difíceis de operar, que ocupavam salas inteiras e exigiam grandes

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investimentos para obter uma reduzida capacidade de processamento. A invenção do

microprocessador permitiu colocar um computador num único chip, criando assim o

microcomputador. A primeira máquina deste tipo foi o Altair, criado em 1975, e seguido

pelo Apple I e o Apple II (primeiro microcomputador de sucesso comercial). Em meados

da década de 80, o conceito de Personal Computer já existia.

A Internet desenvolveu-se mais ou menos paralelamente nesta mesma cronologia. Seu

primeiro embrião foi criado com objetivos muito diversos daquilo que ela se tornou e seus

criadores provavelmente nem mesmo vislumbravam os efeitos que ela viria a ter no futuro.

Trata-se de uma rede desenvolvida em âmbito militar, no contexto da Guerra Fria, com

objetivos estritos no início. Projetada pela Agência de Projetos de Pesquisa Avançada

(ARPA) do Departamento de Defesa dos EUA, a rede batizada de ARPANET foi

idealizada para ser

um sistema de comunicação invulnerável a ataques nucleares. Com base na

tecnologia de comunicação da troca de pacotes, o sistema tornava a rede

independente de centros de comando e controle, para que a mensagem

procurasse suas próprias rotas ao longo da rede, sendo remontada para voltar a

ter sentido em qualquer ponto da rede. (Ibid, p.82)

Verificam-se já aqui algumas das características inerentes à própria natureza da

rede, e que permaneceram, não obstante as suas transformações e mudanças de escopo, até

os dias de hoje. A ARPANET, inaugurada em 1969, incluía não só o Depto. de Defesa

norte-americano, mas também diversas universidades e centros de pesquisa. A despeito dos

fins militares para o qual tinha sido criada, a rede começou a ser usada pelos cientistas para

conversas pessoais ou para trocas de informações sobre suas próprias pesquisas.

Em 1983, tamanho era o volume das comunicações entre os cientistas que a rede

separou-se em duas: aquela que herdou o nome de ARPANET passou a ser dedicada a fins

científicos, e a MILNET compreendia os fins estritamente militares. Desde então, diversas

redes foram sendo criadas tendo sempre como espinha dorsal a ARPANET, que, no

entanto, encerrou suas atividades em 1990. O que restou foi um conjunto de redes privadas

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em coexistência colaborativa. Era a base do que conhecemos hoje como Internet. “Uma vez

privatizada, a Internet não contava com nenhuma autoridade supervisora”. (Ibid, p.83)

A Internet, originalmente criada num ambiente hierárquico e com objetivos bem

definidos, continha em si, desde seu surgimento, a natureza horizontal, descentralizada e

rizomática que a possibilitou expandir-se de forma espontânea, desordenada, caótica e viral.

Para Rosnay (1997: 107) o desenvolvimento autocatalítico da internet é a

ilustração perfeita de um processo co-evolutivo de emergência de ordem a partir

do caos. Milhões de agentes agindo paralelamente a partir de regras simples

criam um multiprocessador gigantesco, capaz de se adaptar à evolução de seu

ecossistema informacional. Comentário semelhante é o de Negroponte (ibid),

quando afirma que a internet é interessante porque se desenvolveu sem a

existência de um plano centralizador. (SANTAELLA, 2004, p.90)

Convém destacar, porém, que a emergência e consolidação da Internet como rede

mundial não se deveu, somente, à universalidade da linguagem digital. “Era preciso que os

computadores estivessem capacitados a conversar uns com os outros. O primeiro passo

nessa direção foi a criação de um protocolo de comunicação que todos os tipos de redes

pudessem usar”. (CASTELLS, 1999, p.84) Dessa forma, surgiram os protocolos universais

de comunicação, que permitiriam que qualquer máquina, em qualquer lugar, se

comunicasse com outra em qualquer outro ponto da rede. Assim, em 1978 criou-se o

TCP/IP, protocolo sobre o qual se baseia toda a comunicação da rede até hoje.

O TCP/IP (Transmission Control Protocol/ Internet Protocol) é o idioma dos

computadores na rede internet. Ele permite a divisão, endereçamento e re-

direcionamento dos pacotes. É a linguagem de comunicação de base da rede.

Graças a essa linguagem, todos os computadores – pequenos ou grandes – falam

entre si e se compreendem, seja qual for o ponto do planeta”. (SANTAELLA,

2004, p.87)

Algumas das principais contribuições para a consolidação da Internet a partir da

década de 80 não vieram das grandes empresas de tecnologia que foram responsáveis pelas

grandes inovações na microeletrônica e telecomunicações; tais contribuições foram

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desenvolvidas e distribuídas gratuitamente e, freqüentemente, por usuários, como os

estudantes que desenvolveram, em 1979, o modem, que possibilitava a transferência de

dados via telefone diretamente de um computador a outro, sem passar por um sistema

central. Castells (1999) e Lèvy (1999) falam do movimento social ou de contracultura dos

jovens hackers metropolitanos que foram fundamentais para o crescimento da rede:

O crescimento da comunicação baseada na informática foi iniciado por um

movimento de jovens metropolitanos cultos que veio à tona no final dos anos 80.

Os atores deste movimento construíram um espaço de encontro, de

compartilhamento e de invenção coletiva. [...] Aqueles que fizeram crescer o

ciberespaço são em sua maioria anônimos, amadores dedicados a melhorar

constantemente as ferramentas de software de comunicação”. (LÈVY, 1999,

p.125-126)

Destacaremos brevemente algumas destas contribuições decisivas para a

popularização da Internet na década de 90.

Por volta de 1990 os não iniciados tinham dificuldades para usar a Internet. A

capacidade de transmissão de gráficos era muito limitada, e era dificílimo

localizar e receber informações. Um novo salto tecnológico permitiu a difusão

da Internet na sociedade em geral: a criação de um novo aplicativo, a teia

mundial (world wide web – WWW), que organizava o teor dos sítios da Internet

por informação, e não por localização, oferecendo aos usuários um sistema fácil

de pesquisa para procurar as informações desejadas. (CASTELLS, 1999, p.87-

88)

O www foi difundido gratuitamente e hoje é parte integrante da maioria dos

endereços eletrônicos. Depois disso vieram a linguagem HTML (Hypertext Markup

Language), o HTTP (Hypertext Transfer Protocol), e o URL (Uniform Resource Locator).

Com a adição destas novas linguagens, aplicativos e protocolos, a Internet tornou-se mais

“amigável”, mais acessível e mais próxima do que conhecemos hoje.

Em 1992, o estudante universitário Marc Andreessen elaborou, espontânea e

gratuitamente, um aplicativo que viria a ser fundamental para que uma verdadeira

popularização da Internet acontecesse. Ele criou e distribuiu na rede o Mosaic, primeira

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interface gráfica da web, um aplicativo que se convencionou chamar de “navegador”. Logo

em seguida, em parceria com o empresário Jim Clarck, criou o primeiro navegador

comercial da Internet, o Netscape. Era o impulso que faltava para a rede. Rapidamente,

começaram a surgir outros navegadores, aplicativos, motores de pesquisa, que tornaram a

navegação cada vez mais acessível a qualquer pessoa que não possuísse mais do que

conhecimentos rasos de informática. “O mundo inteiro abraçou a Internet, criando uma

verdadeira teia mundial”. (Ibid, p.89)

Como podemos ver, embora tenha nascido em meados da década de 70, a Internet

como a conhecemos hoje, grosso modo, remete à década de 90. Sua história recente faz

parte da nossa história recente.

A Internet tem tido um índice de penetração mais veloz do que qualquer meio na

história: nos Estados Unidos, o rádio levou trinta anos para chegar a sessenta

milhões de pessoas. A TV alcançou esse nível de difusão em três anos. A

Internet o fez em apenas três anos após a criação da teia mundial. (Ibid, p.439)

No Brasil, ela começou a se popularizar por volta de 1996/ 97, o que já faz pouco

mais de 10 anos. Os avanços que acompanhamos desde a época em que foram escritos a

maioria dos livros utilizados neste trabalho são gigantescos, assim como eram já

impressionantes naquele momento. Em 1997, a conexão era telefônica e instável, tinha uma

reduzida capacidade de transferência de dados e demandava uma enorme dose de paciência.

As salas de bate-papo ainda eram uma sensação, os motores de pesquisa não eram muito

eficientes, e a Internet era constituída por uma infinidade de sites e páginas que mais

pareciam vitrines. A potencial interatividade da rede tinha ainda muito a ser descoberta. Em

meados de 2000/01, quando das publicações de Santaella, Lèvy e Castells, a conexão

telefônica começava a ceder lugar para a banda larga e as tantas novas possibilidades que se

abriam com a nova capacidade de transmissão. Alguns dados colhidos no site Internet

World Stats8 nos mostram a dimensão dos avanços da rede em número de usuários: se em

2003 a Internet contava com pouco mais de 600 milhões de pessoas conectadas,9 em 2008

8 INTERNET WORLD STATS. Disponível em: <http://www.internetworldstats.com>. Acesso em: 16 abr. 2008 9 WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. História da Internet. [S.I.]:[s.n.], 2008. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Historia_da_Internet>. Acesso em: 16 abr. 2008.

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temos, no mundo, 1.355.110.631 usuários. Se o número de usuários é maior na Ásia,

Europa e América do Norte, o índice de crescimento da rede é maior no Oriente Médio,

África e América Latina, o que indica que a Internet continua superando fronteiras, sócio-

econônimas inclusive. Em 1998, apenas 2,4% da população mundial tinha acesso à Internet,

a maioria proveniente de países ricos (CASTELLS, 1999, p.433). Em 2008, 20,3% da

população mundial está conectada, número que continua crescendo com rapidez,

principalmente nos países pobres. No plano do hardware, o computador pessoal tornou-se

uma realidade em grande parte das casas ou acessível a qualquer pessoa em Lan Houses. O

telefone celular rapidamente deixou de ser um símbolo de status para cair na mão de

praticamente todas as classes sociais. Mesmo o computador portátil está gradativamente

deixando de ser um artigo de luxo para se tornar cada vez mais comum no cotidiano das

pessoas. Porém, a despeito das grandes mudanças num período inferior a uma década, já no

início estes autores souberam captar e analisar o fenômeno, fazendo com que seus livros

permaneçam atuais e possam ser utilizados na análise da rede tal qual ela é, hoje, em 2008.

2.2. A Tecnologia Digital

Além do argumento quantitativo baseado na velocidade de penetração, nunca vista

antes em relação a nenhuma outra mídia, o advento do digital pode ser considerado uma

revolução comunicativa em função de numerosos aspectos qualitativos.

Como vimos no capítulo anterior, cada tecnologia da informação condicionou ao ser

humano uma forma de ser no mundo, de percebê-lo e significá-lo, e de relacionar-se com os

outros seres humanos. A linguagem aventurou-se pelos fonemas do sopro humano, pôde

viajar além dele através da escrita, traduziu-se em código visual com o alfabeto, tornou-se

nacional com a imprensa, viajou pelo ar e transpôs fronteiras com os mass media. Cada vez

mais a linguagem desterritorializou-se e virtualizou-se, tornando-se independente da

presença e da geografia, do aqui e agora. Cada vez mais tornou-se descontextualizada,

sendo sempre maior, no tempo e no espaço, a distância entre emissor e receptor . E cada

nova tecnologia da linguagem provocou um rearranjo integral do mundo, no plano social,

econômico, político, cultural.

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Não é preciso tecer grandes argumentações para sustentar que as tecnologias digitais

estão mudando profundamente a nossa sociedade, em todos os seus níveis. Isso faz parte da

experiência cotidiana: vivemos neste mundo onde de repente todas as coisas começam a ser

de um jeito que não eram antes, e não se deixam mais ser compreendidas nem feitas como

eram antes. O digital constitui uma revolução porque quebra os paradigmas do mundo, ou

seja, nos introduz a uma série de fenômenos que já não são mais apreensíveis a partir da

lógica anterior.

E o que há de novo? Devido à multiplicidade de aspectos que devem ser discutidos,

dividiremos nossa análise em três partes que representam ângulos do mesmo fenômeno,

mas observadas individualmente nos garantirão uma maior clareza. Dessa forma, há muito

de novo com relação à natureza da linguagem do digital, à natureza de sua mensagem e à

natureza da interação que ele possibilita.

2.2.1. A linguagem

Primeiramente, há uma grande novidade no que diz respeito à própria linguagem da

tecnologia digital, tecnicamente falando. Como vimos anteriormente, toda essa tecnologia é

baseada em uma linguagem muito simples, formada por dois elementos (0 e 1) que,

combinados em cadeias (os bits) conseguem codificar qualquer tipo de dado. Esta

universalidade da linguagem digital, não significa apenas, como já descrevemos, que duas

máquinas possam se comunicar e trocar dados, codificando e decodificando à velocidade de

cálculo computadorizada, mas tem uma implicação inédita.

Antes da digitalização, os suportes eram incompatíveis: papel para o texto,

película química para a fotografia ou filme, fita magnética para o som ou vídeo.

[...] Via digitalização, todas as fontes de informação, incluindo fenômenos

materiais e processos naturais, incluindo também nossas simulações sensoriais,

como ocorre, por exemplo, no sistema de realidade virtual, estão

homogeneizados em cadeias seqüenciais de 0 e 1. Os bits sempre foram a

partícula subjacente à computação digital, mas, ao longo das últimas décadas, o

vocabulário binário se expandiu. Absorvendo muito mais que apenas números,

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pode-se digitalizar diferentes tipos de informação, como áudio e vídeo,

reduzindo-os também a uns e zeros. (SANTAELLA, 2004, p.83)

Desta forma, o digital consegue traduzir – digitalizar – todas as outras mídias,

colocando juntos texto, imagem, som e vídeo, que antes eram separados pelos respectivos

suportes. A este fenômeno, Santaella nomeia convergência das mídias.

Um dos aspectos mais significativos da evolução digital foi o rápido

desenvolvimento da multimídia que produziu a convergência de vários campos

midiáticos tradicionais. Foram assim fundidas, em um único setor do todo

digital, as quatro formas principais da comunicação humana: o documento

escrito (imprensa, magazine, livro); o áudio-visual (televisão, vídeo, cinema), as

telecomunicações (telefone, satélites, cabo) e a informática (computadores,

programas informáticos). É este processo que tem sido referido pela expressão

‘convergência de mídias’. (Ibid, p.84)

Pierre Lèvy, por sua vez, distingue multimídia de unimídia:

O termo ‘multimídia’ é corretamente empregado quando, por exemplo, o

lançamento de um filme dá lugar, simultaneamente, ao lançamento de um

videogame, exibição de uma série de televisão, camisetas, brinquedos, etc. [...]

Mas se desejamos designar de maneira clara a confluência de mídias separadas

em direção à mesma rede digital integrada, deveríamos usar de preferência a

palavra ‘unimídia’. (LÈVY, 1999, p.65)

Convergência de mídias ou unimídia, este fenômeno diz respeito à capacidade da

linguagem digital de traduzir e incorporar as demais linguagens. Mas, mais do que

traduzir, é possível produzir a informação, seja ela de qualquer natureza, diretamente em

linguagem digital, que deixa sua marca na linguagem transcrita em bits, modificando-a.

Assim, a fotografia digital ou o vídeo digital são substancialmente diferentes da fotografia e

vídeo tradicionais. O texto digital, o som digital, possuem claras especificidades que não se

encontram em seus predecessores.

Com a universalidade e a versatilidade da linguagem digital, somos introduzidos

num mundo integralmente manipulável. Todo dado, toda informação é passível de ser

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modificada por qualquer pessoa, a partir de um computador que saiba lê-la e traduzi-la.

Mais do que isso: qualquer indivíduo que disponha de um dispositivo digital pode produzir

a informação. Se antes a geração de conteúdo passava por complexas cadeias de produção e

processos custosos e complicados, a linguagem digital diminui os custos e simplifica o

processo de produção da informação. Basta ter uma câmera para produzir imagens e vídeos,

um computador para manipulá-los, e acesso à Internet para publicá-los. Todo e qualquer

indivíduo pode ser um produtor de informação. “É porque as informações estão codificadas

como números que podemos manipulá-las com tamanha facilidade: os números estão

sujeitos a cálculos, e os computadores calculam rápido”. (Ibid, p.53)

Os aspectos acima apresentados têm relação intrínseca tanto com a natureza da

mensagem quanto com a interatividade e o fluxo informativo no âmbito da rede.

Analisemos as implicações da linguagem digital na natureza da mensagem.

2.2.2. A mensagem

Vimos que a linguagem digital permite a tradução e incorporação das demais

mídias, que digitalizadas libertam-se de seus suportes tradicionais e passam a conviver

integradas no mesmo espaço. Desta maneira, a partir da convergência das mídias, passamos

a ter “informações ou mensagens multimodais, pois colocam em jogo diversas modalidades

sensoriais”. (Ibid, p.63) De fato, a mensagem digital não é homogênea, é híbrida; ela se

utiliza de diversas linguagens, o texto, a imagem, o vídeo, o som. Mobiliza

simultaneamente diversos sentidos para a sua captação e compreensão. Aquilo que

Santaella define como hipermídia vai bem ao encontro desta natureza inédita da mensagem

na tecnologia digital.

[...] A hipermídia é, na realidade, uma nova linguagem em busca de si mesma.

Essa busca depende, antes de tudo, da criação de hipersintaxes que sejam

capazes de refuncionalizar linguagens que antes só muito canhestramente

podiam estar juntas, combinando-as e retecendo-as em uma mesma malha

multidimensional. Assim sendo, o primeiro fator de definição da hipermídia

como rede está na hibridização de linguagens, processos sígnicos, códigos,

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mídias que ela aciona e, conseqüentemente, na mistura de sentidos receptores, na

sensorialidade global, sinestesia reverberante que ela é capaz de produzir.

(SANTAELLA, 2004, p.94)

O processo de digitalização também permite a integral manipulação da informação a

qualquer momento, assim como a sua integral reprodutibilidade. A mensagem no suporte

digital é algo muito distante daquilo do que possa ter sido em qualquer outro suporte, fosse

ele pedra, pergaminho ou papel. É distante mesmo da volátil mensagem televisiva ou

radiofônica. A informação digital é naturalmente mutante; é a informação em fluxo. E não

só porque pode ser alterada em si, mas pela sua própria disposição e organização no espaço

comunicativo. A informação, no ambiente digital, não existe como unidade separada,

desconexa, mas sim como continuidade a ser explorada em infinitos percursos.

A informação em fluxo designa dados em contínuo estado de modificação,

dispersos entre memórias e canais interconectados que podem ser percorridos,

filtrados e apresentados ao cibernauta de acordo com suas instruções, graças a

programas, sistemas de cartografia dinâmica de dados ou outras ferramentas de

auxílio à navegação. (LÈVY, 1999, p. 62)

Logo, está posto também um caráter não-linear da mensagem digital. No suporte

físico, o texto escrito tem em geral um percurso definido a ser seguido; “o leitor de um livro

ou artigo no papel se confronta com um objeto físico sobre o qual uma certa versão do texto

está integralmente manifesta”. (LÈVY, 1996, p.39) O texto digital, por sua vez, contém em

si uma infinidade de percursos possíveis, e imprevisíveis, executados de acordo com cada

leitor. Para que possamos definitivamente entender o caráter multidimensional e não-linear

da mensagem digital, devemos nos demorar um bocado naquilo que constitui a sua base: o

hipertexto.

Tecnicamente, o hipertexto foi imaginado por Ted Nelson, nos anos 70, “como um

novo sistema de organizar as informações, [...] baseado em remissões horizontais”.

(CASTELLS, 1999, p.88) O hipertexto é entrecortado por hiperlinks (hiperligações), que

ligam um texto a outros textos e assim indefinidamente. Dessa maneira, o hipertexto

aparece como uma organização mais intuitiva das informações, diferente dos sistemas

arbitrários de categorizações e hierarquias. Enquanto conceito, o hipertexto pertence,

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segundo Lèvy (1996), à própria prática da leitura. Quando lemos, não só relacionamos as

passagens do texto umas às outras, “dobrando-o sobre si mesmo”, como também

[...] relacionamos o texto a outros textos, a outros discursos, a imagens, a afetos,

a toda a imensa reserva flutuante de desejos e de signos que nos constitui. (...)

Com efeito, hierarquizar e selecionar áreas de sentido, tecer ligações entre essas

zonas, conectar o texto a outros documentos, arrimá-lo a toda uma memória que

forma como que o fundo sobre o qual ele se destaca e ao qual remete, são outras

tantas funções do texto informático. (LÈVY, 1996, p.36-37)

Do ponto de vista de Lèvy, o hipertexto informático externaliza e artificializa o

processo que já ocorria em nossa subjetividade durante a leitura de um texto.

Se ler consiste em selecionar, em esquematizar, em construir uma rede de

emissões internas ao texto, em associar a outros dados, em integrar as palavras e

as imagens a uma memória pessoal em reconstrução permanente, então os

dispositivos hipertextuais constituem de fato uma espécie de objetivação, de

esteriorização, de virtualização dos processos de leitura. (Ibid, p.43)

Além disso, mesmo antes da tecnologia digital, o hipertexto já se insinuava: “A

leitura de uma enciclopédia clássica já é de tipo hipertextual, uma vez que utiliza as

ferramentas de orientação que são os dicionários, léxicos, índices, thesaurus, atlas, quadros

de sinais, sumários e remissões ao final dos artigos”. (Ibid, p.44) O salto proporcionado ao

hipertexto pela tecnologia digital é a própria aceleração da eletricidade: as ligações entre

uma parte e outra, entre um texto e outro, entre uma informação e outra, tornam-se leves,

fáceis, instantâneas. Não custam mais que o gesto mínimo de um clique. Além do mais,

essas ligações, por causa da integração digital, passam a envolver não apenas textos, mas

outras mídias, colocando no mesmo plano também imagens, vídeos, sons.

O suporte digital apresenta uma diferença considerável em relação aos

hipertextos anteriores à informática: a pesquisa nos índices, o uso de

instrumentos de orientação, de passagem de um nó a outro, fazem-se nele com

grande rapidez, da ordem de segundos. Por outro lado, a digitalização permite

associar na mesma mídia e mixar finamente os sons, imagens animadas e os

textos. Segundo essa primeira abordagem, o hipertexto digital seria definido

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como uma coleção de informações multimodais disposta em rede para a

navegação rápida e ‘intuitiva’. (Ibid, p.44)

Informático ou não, o hipertexto está fortemente associado a uma leitura não-linear. O

hipertexto digital estende essa não-linearidade desde o percurso de leitura até as diversas

linguagens utilizadas e modalidades sensoriais envolvidas. “A não linearidade é uma

propriedade do mundo digital. Nele não há começo, meio ou fim. [...] A chave-mestra para

essas sintaxes da descontinuidade se chama hiperlink, a conexão entre dois pontos no

espaço digital”. (SANTAELLA, 2004, p.94) O hipertexto digital é um texto mutante e

“estruturado em rede”. (LÈVY, 1996, p. 44)

Por fim, a mensagem no contexto digital atinge o auge da virtualização e da

desterritorialização. Este movimento, que corresponde ao próprio movimento da

linguagem, em gradações diversas, pôde ser observado desde a invenção da escrita; a

linguagem virtualizou o Tempo, e a escrita virtualizou a linguagem. Isso significa que a

linguagem, ao longo das revoluções comunicativas, vem gradativamente se desvinculando

da presença e do contexto. Mas só pudemos conferir sua libertação de um suporte físico

com as ondas eletromagnéticas dos mass media, que, ainda assim, não era capaz de abarcar

as outras linguagens, os outros suportes. Antes era papel para o texto, película para o filme.

A linguagem digital liberta todas as linguagens de seus respectivos suportes físicos,

integrando-as num único “texto”. A mensagem digital viaja em pacotes disformes de bits;

ela não permanece íntegra no trajeto, é desmontada e remontada pelos terminais. Seu

suporte agora é a linguagem binária.

O texto continua subsistindo, mas a página furtou-se. A página, isto é, o pagus

latino, esse campo, esse território cercado pelo branco das margens, lavrado de

linhas e semeado de letras e de caracteres pelo autor; a página, ainda carregada

de argila mesopotâmica, aderindo sempre à terra do neolítico, essa página muito

antiga se apaga lentamente sob a inundação informacional, seus signos soltos

vão juntar-se à torrente digital. (Ibid, p.49)

Essa fluidez, essa leveza da mensagem virtualizada permite que ela esteja ausente,

virtual, constituída como potência, e que por conseqüência esteja presente onde quer que

haja um terminal informático. Esse é o caráter ubíquo da mensagem. Além disso, a

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mensagem no meio digital não existe como ente isolado, mas se constitui como uma

contigüidade e torna-se acessível por meio das suas interconexões e através dos “mapas” de

navegação característicos do hipertexto. “Não há mais um texto, discernível e

individualizável, mas apenas texto, assim como não há uma água e uma areia, mas apenas

água e areia”. (Ibid, p.48) A mensagem, livre de suporte físico, está em qualquer lugar,

simultaneamente, a qualquer tempo. Por fim, o caráter sempre mutante tanto dos conteúdos

quanto da organização entre eles, faz com que a mensagem atinja um altíssimo nível de

virtualização, pois assume a forma de um complexo problemático de forças e dinâmicas, e

só se concretiza, só “acontece”, só se atualiza quando da interação entre a máquina e o ser

humano, o qual construirá um percurso único dentro do hipertexto, uma mensagem única.

“Assim como o rio de Heráclito, o hipertexto jamais é duas vezes o mesmo”. (Ibid, p.48)

Todos os aspectos acima mencionados, ligados à natureza da linguagem digital e,

portanto, constituintes da natureza da sua mensagem, condicionam também as interações

estabelecidas entre os elementos que habitam esse meio, sejam eles humanos ou máquinas.

Dessa forma, procedemos à análise do ambiente, do habitat digital.

2.2.3. Interações

A versatilidade e manipulabilidade da linguagem digital dá origem a uma

mensagem fluida e mutante, passível de ser alterada e construída por qualquer indivíduo da

rede. O grande feito do hipertexto digital não foi apenas acelerar e artificializar a não-

linearidade da leitura; ele une dois processos realizados, historicamente, tanto em

momentos diferentes quanto por sujeitos diferentes. “A tendência contemporânea à

hipertextualização dos documentos pode ser definida como uma tendência à indistinção, à

mistura das funções de leitura e de escrita”. (Ibid, p.45) Isso se deve, em primeiro lugar, ao

fato de que o hipertexto digital não pressupõe apenas uma possibilidade de percurso de

leitura, mas uma miríade deles. Estes percursos não estão nem mesmo predeterminados; são

virtuais, são um conjunto imprevisível de possibilidades. É o leitor quem decide, através de

suas escolhas de navegação feitas no ato, o percurso que deseja seguir. O leitor, lendo, cria

o percurso, ou seja, cria o texto. “Se definirmos um hipertexto como um espaço de

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percursos de leitura possíveis, um texto apresenta-se como uma leitura particular de um

hipertexto”. (Ibid, p. 45) Um texto é uma atualização do hipertexto, apenas uma dentre

tantas possíveis. Desta maneira, o processo ativo que ocorre em nossa mente quando lemos

externaliza-se, intensifica-se, pois se torna condição sine qua non para a leitura do

hipertexto. Segundo esse ponto de vista, “a partir do hipertexto, toda leitura tornou-se um

ato de escrita”. (Ibid, p.46)

Em segundo lugar, o leitor pode efetivamente participar da construção do hipertexto

cujas leituras atualiza. Ele pode acrescentar comentários, adicionar hiperlinks, mexer na sua

própria estrutura reticular, alterar a sua potência virtual, multiplicar as possibilidades de

percursos. “O navegador pode ser fazer autor de maneira mais profunda do que percorrendo

uma rede pré-estabelecida: participando da estruturação do hipertexto, criando novas

ligações”. (Ibid, p.45) Em outras palavras, cada leitor, cada navegador, torna-se um

“construtor” da rede, um autor do seu grande hipertexto contínuo, fluido e ubíquo.

Esta forma de interação historicamente inédita entre o ser humano e a mensagem

traduz-se diretamente em algumas das mais importantes inovações que o novo espaço

comunicativo aporta. Primeiramente, a recepção de caráter passivo torna-se definitivamente

ultrapassada, e não se encaixa a este novo ambiente. A começar da própria interação com a

máquina, através da qual é possível ter acesso ao mundo virtual: o computador,

diferentemente da televisão, por exemplo, precisa que o usuário diga a ele o que fazer,

demande, escolha, clique, digite. Sem a interação com o ser humano, a máquina, por si só,

torna-se inerte. Esta atitude, por assim dizer, quase física diante do novo espaço, ao qual só

é possível aceder a partir de uma atividade deliberada, é reforçada e consolidada pelo

caráter hipertextual da mensagem. A escrita-leitura coletiva, sobre a qual se baseia a

dinâmica do hipertexto digital, põe um fim à dicotomia leitor/autor ou, ulteriormente,

emissor/receptor que nasceu, como propõe Mcluhan (1969), com o “espírito tipográfico”.

Se Maquiavel pôde dizer no século XVI que ‘existe uma lei para os negócios e

outra para a vida privada’, na realidade estava registrando o efeito e significado

da palavra impressa na separação entre o escritor e o leitor, produtor e

consumidor, legislador e legislado, em categorias perfeitamente definidas.

(MCLUHAN, 1969, p. 289-290)

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Desde Gutenberg, passando pelos meios de comunicação de massa, sempre houve

uma separação clara entre aqueles que possuíam as tecnologias de construção, edição e

publicação da informação, e aqueles que apenas a consumiam, e embora isso nunca tenha

significado que a recepção fosse 100% passiva, não existia nenhuma possibilidade de

participar da construção da mensagem. A informação partia de um emissor aos seus

receptores, em fluxos unidirecionais, piramidais e centralizados. Com o digital, o acesso às

máquinas de construir, editar e publicar a informação multiplica-se, e o custo de fazê-lo

diminui. A escrita-produção contínua e pulverizada é característica inseparável da

mensagem digital. Logo, as claras distinções entre autor e leitor, emissor e receptor,

produtor e consumidor se despedaçam. No ambiente digital, todo leitor é também autor;

todo receptor pode ser um emissor e todo consumidor é produtor. O fluxo da informação

torna-se multidirecional, transversal e descentralizado. Os centros são substituídos por nós,

que se multiplicam constantemente, e não mantêm uma hierarquia rígida entre si –

horizontalizam-se. A natureza destes fluxos condicionam o novo espaço de comunicação e

o novo habitat simbólico da sociedade.

A mensagem digital é estruturada em rede, como vimos com o hipertexto; portanto,

o meio digital é estruturado dessa maneira. Devemos esclarecer que estruturas reticulares

não são um privilégio do meio digital, mas o digital encontra na estrutura reticular a sua

base. Castells (1999, p. 566) define o conceito de Rede como “um conjunto de nós

interconectados. Nó é o ponto no qual uma curva se entrecorta”. A rede se expande tal qual

o hipertexto, aleatoriamente, imprevisivelmente, fruto da contínua contribuição dos seus

milhares de leitores-escritores. Dessa forma, “redes são estruturas abertas capazes de

expandir de forma ilimitada, integrando novos nós desde que consigam comunicar-se

dentro da rede, ou seja, desde que compartilhem os mesmos códigos de comunicação”.

(Ibid, p. 566) E, por fim, sendo o hipertexto ubíquo para qualquer ponto conectado à rede,

acrescentemos a reflexão de Castells sobre os fluxos entre esses pontos, entre os nós da

rede:

Dentro de determinada rede os fluxos não têm nenhuma distância, entre os nós.

Portanto, a distância (física, social, econômica, política, cultural) para um

determinado ponto ou posição varia entre zero (para qualquer nó da mesma rede)

e infinito (para qualquer ponto externo à rede). (Ibid, p. 566)

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O conceito de rede não deixa de vir à mente, pelo próprio apela visual que evoca,

como a imagem de um tecido, formado por muitos nós interligados. Este tecido, porém, é

fluido e caótico, e se expande à maneira de um vírus, absorvendo a todo momento novos

nós e criando novas interligações, transformando nossa organizada imagem de tecido em

um denso emaranhado. De fato, Lèvy (1999) aponta essa capacidade nas tecnologias

comunicativas digitais. Seu dispositivo comunicacional (a relação entre os participantes da

comunicação; dentro da nossa metáfora, as formas de tecer o tecido) é baseado numa

comunicação todos-todos, ao contrário das tecnologias anteriores.

A imprensa, o rádio e a televisão são estruturados de acordo com o princípio um-

todos: um centro emissor envia suas mensagens a um grande número de

receptores passivos e dispersos. O correio ou o telefone organizam relações

recíprocas entre interlocutores, mas apenas para contatos de indivíduo a

indivíduo ou ponto a ponto. O ciberespaço torna possível um dispositivo

comunicacional original, já que ele permite que comunidades construam de

forma progressiva e de maneira cooperativa um contexto comum (dispositivo

todos-todos). (LÈVY, 1999, p. 63)

A este novo espaço, possibilitado pelas tecnologias digitais, em que seres humanos

e máquinas estão interligados em rede, tecendo de fluxos uma mensagem contígua, mutante

e ubíqua, Pierre Lèvy chama de ciberespaço. O ciberespaço, conforme definição do autor, é

“o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das

memórias dos computadores”. (Ibid, p.92) Em última instância, o ciberespaço é a

virtualização do computador.

Todas as funções da informática (captura, digitalização, memória, tratamento,

apresentação) são distribuíveis e, cada vez mais, distribuídas. O computador não

é um centro, mas um pedaço (...) No limite, só há hoje um único computador,

um único suporte para texto, mas tornou-se impossível traçar seus limites, fixar

seus contornos. É um computador cujo centro está em toda parte e a

circunferência em nenhuma. (LÈVY, 1996, p.47)

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O ciberespaço é, então, este novo espaço comunicativo, este novo ambiente

formado por computadores interligados em rede.

O conceito de ciberespaço, assim como o vocabulário corrente relacionado às

tecnologias comunicativas digitais, guarda uma estreita relação com a imagem de um

oceano. Isso remonta à própria etimologia da palavra: o termo ciberespaço, cunhado por

William Gibson em seu romance Neuromancer (1984), deriva de um termo anterior, criado

para designar uma nova ciência da interação entre humanos e máquinas, a cibernética.

Cunhado por Norbert Wiener, pai da cibernética, o termo se inspira na palavra grega

kubernétès, que significa “piloto”, ou “homem do leme”.10 Este esclarecimento torna a

metáfora ainda mais pertinente. O ciberespaço, tal qual um oceano, é um espaço contíguo,

fluido, infinito, imprevisível, profundo e imersivo. Para desbravar o ciberespaço, é preciso

navegá-lo, coisa que em si pressupõe uma postura ativa de quem navega, pois é preciso

direcionar o leme, é preciso decidir para onde ir. Para melhor navegar, há necessidade de

construir e consultar mapas de navegação, assim como observar os sinais do meio

ambiente, como os fluxos de vento e de correntes.

Vale a pena observar também que o oceano, historicamente, é uma forma de

mobilidade, um meio por onde deslocar-se para chegar a lugares e culturas outras e ali

estabelecer relações. No imaginário, o oceano e o ato de navegar são carregados da idéia de

liberdade total e possibilidade de traçar as próprias rotas e destinos (muitas destas

características se condensam no imaginário sobre os piratas). Além disso, a exploração em

larga escala dos oceanos provocou profundas e irreversíveis mudanças mundiais, com o

advento do colonialismo e o desenvolvimento do capitalismo. Dessa forma, a metáfora do

ciberespaço como oceano mostra-se em muitos aspectos adequada e reveladora. Contudo,

uma crítica deve ser feita: o oceano preexiste aos seus navegadores e lhes é indiferente. O

ciberespaço, ao contrário, não preexiste aos seus “navegadores”, cujas interligações o

constituem. O espaço aqui é aquele de Einstein, um espaço relativo, que se “deforma” em

função dos elementos nele presentes. O ciberespaço, ao contrário do oceano, não é hostil

aos barcos que o navegam, pois são eles que dão forma a este tipo particular de oceano.

Os “barcos” do ciberespaço têm um nome: são as interfaces. Como vimos no

desenvolvimento histórico da Internet, apenas a partir da invenção de interfaces que

10 LÈVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999. p.28

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tornassem o complexo fluxo de informações mais inteligível e “navegável” (a World Wide

Web e os navegadores com face gráfica, cujo pioneiro foi o Mosaic), o crescimento do

ciberespaço explodiu e a Internet popularizou-se em poucos anos. Segundo Santaella (2004,

p.91), “uma interface ocorre quando duas ou mais fontes de informação se encontram face-

a-face, mesmo que seja o encontro de face de uma pessoa com a face de uma tela”. Em

outras palavras, uma interface pode ocorrer entre dois humanos, ou entre um humano e uma

máquina. No primeiro caso, a interface praticamente desaparece, pois dois seres humanos,

muito embora não falem necessariamente a mesma língua, falam a mesma linguagem. Já no

segundo caso, a interface se torna imprescindível à comunicação, pois os dois entes que se

encontram falam linguagens completamente diversas. É o caso da interação humano-

computador. Pierre Lèvy (1999, p.37) restringe mais o termo interface a este contexto,

referindo-se a “todos os aparatos materiais que permitem a interação entre o universo da

informação digital e o mundo ordinário”.

A idéia de interface aproxima-se à de uma tradução bidirecional: não só a máquina

precisa traduzir o código numérico para uma linguagem humanamente inteligível (gráficos,

imagens, textos, sons, ações, movimentos), como também o ser humano precisa traduzir

seus comandos para a linguagem binária. Dessa maneira, pegando como exemplo a

interação entre o computador pessoal e o usuário, o principal ponto de interface da máquina

com o humano (interfaces de saída da informação11) é a tela, um mecanismo visual, e os

principais pontos de interface do humano com a máquina (interfaces de entrada) são o

mouse e o teclado, mecanismos táteis. Com a evolução das tecnologias digitais, podemos

acrescentar às interfaces largamente utilizadas câmeras, scanners, fones e microfones,

touchscreen (telas sensíveis ao toque), controles de videogames, etc. Estamos falando das

interfaces físicas, aquilo que se chama comumente de hardware, que dizem respeito muito

mais à relação entre o computador e o usuário. Além destas, existem as interfaces dentro da

interface, as interfaces “dentro” da tela, que compreendem desde os softwares (sistemas

operacionais, programas, navegadores) até as interfaces do ciberespaço (páginas, sites,

blogs, links, etc).

O conceito de interface evoca a idéia de uma membrana, em especial a membrana

celular, permeável e seletiva. “Para Poster (1995:20-21), uma interface está entre o humano

11 LÈVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999.

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e o maquínico, uma espécie de membrana, dividindo e ao mesmo tempo conectando dois

mundos que estão alheios, mas também dependentes um do outro”. (SANTAELLA, 2004,

p.91) A interface informática e digital é a responsável pela troca de informações entre dois

ambientes totalmente diversos, o ciberespaço e o mundo físico. A existência, consistência e

comportamento desta membrana altera ambos os mundos: não só a máquina se adapta para

melhor se comunicar com o ser humano (e isso se dá através do progressivo

desenvolvimento e seleção das interfaces ao longo do tempo, num verdadeiro mecanismo

evolutivo em que prospera a interface melhor adaptada), como também o ser humano se

adapta à dinâmica da máquina. E isto não é um privilégio apenas das tecnologias digitais; é

um fenômeno tão antigo quanto a própria técnica. “Mais que uma extensão do corpo, uma

ferramenta é uma virtualização da ação. O martelo pode dar a ilusão de um prolongamento

do braço; a roda, em troca, evidentemente não é um prolongamento da perna, mas sim a

virtualização do andar”. (LÈVY, 1996, p. 75) O martelo virtualiza e desterritorializa um

gesto, e ao mesmo tempo condiciona o gesto de quem o utiliza.

A fim de utilizar uma ferramenta, deve-se aprender gestos, adquirir reflexos,

recompor uma identidade mental e física. O ferreiro, o esquiador, o motorista de

automóvel, a ceifeira, a tricotadora ou a ciclista modificaram seus músculos e

seus sistemas nervosos para integrar os instrumentos em uma espécie de corpo

ampliado, modificado, virtualizado. (Ibid, p. 74)

O mesmo podemos dizer da interface digital. Ao mesmo tempo em que ela procura

simular alguns dos nossos padrões cognitivos para se tornar inteligível e “intuitiva”,

também nós aprendemos, utilizando-a, padrões de comportamento e de resposta, caminhos,

lógicas. A interface externaliza nossa cognição, e nós internalizamos a interface.

As interfaces são um ponto central na interação humano-máquina, que é a condição

primeira para a eclosão do virtual-digital. “Interfaces são as zonas fronteiriças sensíveis de

negociação entre o humano e o maquínico, assim como o pivô de um novo conjunto

emergente de relações homem-máquina”. (SANTAELLA, 2004, p.92) Sendo os “barcos”

com que navegamos o ciberespaço, as interfaces não condicionam apenas a nossa relação

com o computador, mas também os fluxos e a mobilidade do interior do ciberespaço e,

conseqüentemente, também a relação entre os seus navegadores. Além disso, a interface

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modifica nossos cérebros e padrões cognitivos para além do ciberespaço – nós

transportamos estas novas experiências para o mundo físico.

2.3. Transformações

As tecnologias comunicativas estão no cerne da organização das nossas sociedades.

“Como representa o tecido simbólico de nossa vida, a mídia tende a afetar o consciente e o

comportamento como a experiência real afeta os sonhos, fornecendo a matéria-prima para o

funcionamento de nosso cérebro”. (CASTELLS, 1999, p.422) Desta maneira, a tecnologia

digital está transformando profundamente a forma como olhamos, sentimos e entendemos o

mundo, as formas de estar junto, as formas de ser.

Em primeiro lugar, a integração das linguagens das outras mídias permitida pelo

digital – a convergência de mídias – provocam uma mudança substancial nos sentidos

envolvidos na comunicação. Mcluhan (1969) fala da predominância da audição, nas

culturas orais e do primado da visão, um sentido mais “frio”, nas culturas alfabéticas. O

retorno forte do audiovisual no século XX sobre a cultura tipográfica deixou marcas

indeléveis. “O que a TV representou, antes de tudo, foi o fim da Galáxia de Gutenberg, ou

seja, de um sistema de comunicação essencialmente dominado pela mente tipográfica e

pela ordem do alfabeto fonético”. (CASTELLS, 1999, p.417) A uma cultura tipográfica,

acostumada a uma tecnologia comunicativa fria, estática e indiferente, primeiramente o

rádio traz de volta a primazia da audição, seguido pelo cinema e pela TV que trazem

consigo o poder da performance – palavra, imagem e velocidade.

A tecnologia digital traz uma inovação sem precedentes: “a integração de vários modos de

comunicação em uma rede interativa. Ou, em outras palavras, a formação de um hipertexto

e uma metalinguagem que, pela primeira vez na história, integra no mesmo sistema as

modalidades escrita, oral e audiovisual da comunicação humana”. (Ibid, p.414) Já não se

pode mais dizer que existe a primazia de um sentido, uma vez que a mensagem digital

mobiliza todos eles na sua decodificação. Mas a convergência das mídias não se trata de

uma simples junção das diversas modalidades comunicativas tais como são em seu próprio

contexto; a digitalização imprime a elas o próprio caráter da nova tecnologia. Dessa

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maneira, o texto no ambiente digital deixa de ser um código visual frio e indiferente ao

receptor, uma vez que depende da interação com ele para existir, para ser lido e para ser

escrito. O audiovisual torna-se facilmente editável, armazenável e publicável, o que

significa que sua produção e difusão não são mais prerrogativas de um oligopólio, mas de

todo e qualquer usuário. A própria presença pode ser virtualizada: é possível interagir, em

tempo real, com um interlocutor, por meio de sua imagem e voz digitalizadas. Mesmo a

dimensão tátil, negligenciada pela desterritorialização, encontra-se presente na interação

com as interfaces de nossos computadores. O contato com o teclado e com o mouse dão

uma nova importância ao tato, e mesmo as interfaces visuais procuram simular este sentido:

a um clique do mouse, o “botão” que se vê na tela é apertado pelo cursor como se o fosse

pelo próprio dedo.

O espírito humano reúne suas dimensões em uma nova interação entre os dois

lados do cérebro, máquinas e contextos sociais. [...] A integração potencial de

texto, imagens e sons no mesmo sistema – interagindo a partir de pontos

múltiplos, no tempo escolhido (real ou atrasado) em uma rede global, em

condições de acesso aberto e preço acessível – muda de forma fundamental o

caráter da comunicação. (Ibid, p.414)

Além disso, vimos que o hipertexto e as interfaces externalizam uma série de

processos cognitivos e mentais. “O hipertexto permite fazer fora da mente aquilo que fomos

ensinados a fazer dentro dela”.(informação verbal12) E isso inclui completar as lacunas que

uma mensagem desterritorializada deixa; se antes era preciso recorrer inteiramente à nossa

subjetividade para fazê-lo, hoje é possível se aproximar cada vez mais do contexto de

produção da mensagem, interagir diretamente com seu emissor, navegar o universo de

referências no qual ela se apóia. A tecnologia textual da cultura impressa possuía todo um

arsenal de ferramentas universalizantes, para que a mensagem pudesse ser compreendida

apesar das lacunas.

É difícil compreender uma mensagem fora de seu contexto vivo de produção. É

este o motivo pelo qual, do lado da recepção, foram inventadas as artes da

12 Trecho retirado de uma palestra de Derrick De Kerkchove, na ECA-USP, em outubro de 2007

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interpretação, da tradução, toda uma tecnologia lingüística (gramáticas,

dicionários, etc). Do lado da emissão, foi feito um esforço para compor

mensagens que pudessem circular em toda parte, independentemente de suas

condições de produção e que, na medida do possível,contêm em si mesmas as

suas chaves de interpretação, ou sua ‘razão’. (LÈVY, 1999, p.114)

O contexto vivo de produção do hipertexto, porém, é o ciberespaço.

O texto contemporâneo, alimentando correspondências online e conferências

eletrônicas, correndo em redes, fluido, desterritorializado, mergulhado no meio

oceânico do ciberespaço, esse texto dinâmico se reconstitui, mas de outro modo

e numa escala infinitamente superior, a co-presença da mensagem e de seu

contexto vivo que caracteriza a comunicação oral. De novo, os critérios mudam.

Reaproximam-se daqueles do diálogo ou da conversação: pertinência em função

do momento, dos leitores e dos lugares virtuais; brevidade, graças à

possibilidade de apontar imediatamente as referências; eficiência, pois prestar

serviço ao leitor (e em particular ajuda-lo a navegar) é o melhor meio de ser

reconhecido sob o dilúvio informacional. (LÈVY, 1996, p.39)

Eis, portanto, o paradoxo da mensagem e do meio digitais, o hipertexto: embora

encontre-se em no auge de sua desterritorialização e virtualização, estando presente em

qualquer ponto da rede e ao mesmo tempo em nenhum, o hipertexto aproxima-se da forma

de comunicação mais territorializada, contextual e dependente da presença viva: a

comunicação oral.

A natureza da mensagem e dos fluxos de informação no ambiente digital

condicionam um outro ponto de virada desta tecnologia em relação às precedentes. Durante

toda a história da comunicação, falou-se em emissores, aqueles que produziam e

transmitiam a informação, e receptores, aqueles que a consumiam. Como os meios e os

saberes de produção da informação concentravam-se nas mãos de poucos, dos escribas às

editoras, o fluxo de informação era piramidal e unidirecional, e esta dicotomia entre os

atores do processo comunicativo era adequada. Com o advento dos mass media, muitos

pensadores foram aterrorizados com a idéia de uma recepção totalmente passiva e seres

humanos integralmente manipuláveis. Esta idéia, porém, não se sustentou por muito tempo.

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A questão principal é que enquanto a grande mídia é um sistema de

comunicação de mão-única, o processo real de comunicação não o é, mas

depende da interação entre o emissor e o receptor na interpretação da mensagem.

Os pesquisadores encontraram indícios da importância do que chamam de

“platéia ativa. (CASTELLS, 1999, p. 419-420)

No contexto digital, a condição para participar do ambiente comunicativo é uma

postura ativa. Em primeiro lugar, não se pode simplesmente sentar na frente do computador

e esperar que ele faça alguma coisa; em segundo lugar, a navegação no ciberespaço envolve

constantemente uma série de decisões. Porém, talvez não seja possível falar de uma platéia,

uma recepção ativa no meio digital, porque na verdade as distinções entre emissor e

receptor se despedaçam completamente. O “navegante” não apenas seleciona e decide,

como já faziam os indivíduos da chamada cultura das mídias, descrita por Santaella (2004).

Ele produz. Todo indivíduo é, potencialmente, um consumidor e um produtor de

informação, um nó na rede onde se entrecruzam os fluxos multidirecionais.

Desta maneira, o meio digital traz uma tão comentada novidade: a interatividade.

Esta, contudo, não é uma exclusividade das tecnologias digitais, estando presente em

diferentes graus em outras mídias, como o telefone.

O termo ‘interatividade’ em geral ressalta a participação ativa do beneficiário de

uma transação de informação. [...] A possibilidade de reapropriação e de

recombinação material da mensagem por seu receptor é um parâmetro

fundamental para avaliar o grau de interatividade do produto. (LÈVY, 1999,

p.79)

Com efeito, Lèvy coloca alguns pontos principais para a avaliação do grau de

interatividade de um meio de comunicação: a possibilidade de interagir com a presença do

interlocutor (por meio da voz, imagem ou avatar); a possibilidade de modificar a

mensagem; e a possibilidade de modificar o próprio meio, o próprio ambiente da

comunicação. As duas primeiras possibilidades já eram presentes no telefone ou no

videocassete, por exemplo. Mas a único meio capaz de unir os 3 fatores é o digital. Além de

permitir a interação com uma presença quase integral do interlocutor, por meio da

telepresença, e de possibilitar a total manipulabilidade da mensagem, o meio digital é

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constantemente construído por seus “habitantes”, que a todo momento redeterminam sua

forma fluida através dos fluxos e interconexões que estabelecem.

A interconexão, segundo Pierre Lèvy (1999, p.127), é o princípio motor do

ciberespaço. “Para a cibercultura, a conexão é sempre preferível ao isolamento. A conexão

é um bem em si.” Este princípio modifica radicalmente a nossa percepção do tempo, no

ciberespaço e fora dele. “A sincronização substitui a unidade de lugar, e a interconexão, a

unidade de tempo”. (LÈVY, 1996, p. 21) Dessa maneira, temos uma

unidade de tempo sem unidade de lugar (graças às interações em tempo real por

redes eletrônicas, às transmissões ao vivo, aos sistemas de telepresença),

continuidade de ação apesar de uma duração descontínua (como na comunicação

por secretária eletrônica ou por correio eletrônico). (Ibid, p. 21)

O ciberespaço recorta e fragmenta o tempo contínuo, o tempo cronológico e

clássico, e inaugura a comunicação em tempo real e a comunicação assíncrona. Essas duas

modalidades têm em comum um só tempo, o tempo da interconexão, da interligação, que

pode ser resumir à instantaneidade de um clique. O tempo no ciberespaço, real ou

assíncrono, é sempre instantâneo.

Essa subversão das unidades de espaço e tempo abre novas possibilidades àqueles

que habitam o meio digital. “O ciberespaço encoraja um estilo de relacionamento quase

independente dos lugares geográficos (telecomunicação, telepresença) e da coincidência de

tempos (comunicação assíncrona)”. (LÈVY, 1999, p.49) Distância espaciais ou temporais

não são mais uma barreira para a comunicação entre os indivíduos. “A interconexão

constitui a humanidade em um contínuo sem fronteiras”. (Ibid, p.127) Mas antes que venha

à nossa mente a imagem de uma humanidade contínua e homogênea, devemos observar que

a interconexão e suas conseqüências sobre o tempo e o espaço provocam um dos

fenômenos mais interessantes observados hoje no ciberespaço, com intensidade cada vez

maior: a formação das comunidades virtuais – nós e agregações na rede, transformando seu

tecido numa malha de densidades diferentes. As comunidades virtuais abrem aos indivíduos

um horizonte de relacionamentos de base não necessariamente territorial. “Uma

comunidade virtual é construída sobre as afinidades de interesses, de conhecimentos, sobre

projetos mútuos, em um processo de cooperação ou de troca, tudo isso independentemente

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das proximidades geográficas e das filiações institucionais”. (Ibid, p. 127) Além dos

interesses em comum, as comunidades virtuais também se agregam de acordo com as

proximidades lingüísticas e semânticas, o que mais uma vez não tem nada a ver com o

território ou com a nacionalidade, uma vez que uma língua pode ser falada em mais de um

país e um indivíduo pode falar mais de uma língua.

As comunidades virtuais, ao contrário de muitos dos temores que provocam, não

substituem nem se opõem aos relacionamentos “reais”, ou por assim dizer, presenciais. As

comunidades virtuais, ao contrário, costumam acelerar e intensificar os contatos offline,

assim como a mobilidade virtual não se opõe, mas em geral intensifica a mobilidade física.

“É raro que a comunicação por meio de redes de computadores substitua pura e

simplesmente os encontros físicos: na maior parte do tempo, é um complemento ou um

adicional.” (Ibid, p.128) “Os vínculos cibernéticos oferecem a oportunidade de vínculos

sociais para pessoas que, ao contrário, viveriam vidas sociais mais limitadas, pois seus

vínculos estão cada vez mais espacialmente dispersos”. (CASTELLS, 1999, p. 446)

As comunidades virtuais estão emergindo como uma nova forma de sociabilidade

que complementa e incrementa a sociabilidade inclusive no mundo físico.

Uma distinção fundamental na análise da sociabilidade é entre os laços fracos e

os laços fortes. A Rede é especialmente apropriada para a geração de laços

fracos múltiplos. Os laços fracos são úteis no fornecimento de informações e na

abertura de novas oportunidades a baixo custo. A vantagem da Rede é que ela

permite a criação de laços fracos com desconhecidos, num modelo igualitário de

interação, no qual as características sociais são menos influentes na estruturação,

ou mesmo no bloqueio, da comunicação”. (Ibid, p.445)

As comunidades virtuais, portanto, apresentam uma estrutura horizontal que não

leva e conta, na sua formação, as coerções sociais presentes no mundo offline. E, sendo

não-hierárquicas e normalmente independentes de um controle exterior e assimétrico, elas

se auto-regulam. “Os participantes das comunidades virtuais desenvolveram uma forte

moral social, um conjunto de leis consuetudinárias – não escritas – que regulam suas

relações”. (LÈVY, 1999, p. 128)

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Essas comunidades representam um modo totalmente inédito de existir em grupo.

Elas não correspondem à estrutura fechada e coercitiva da tribo, nem à atomização da

massa. A sociabilidade no meio digital é uma espécie de individualidade conectiva, em que

o grupo não se impõe ao indivíduo, mas o reconhece como tal, e este, por sua vez pode

pertencer a ilimitados grupos, construindo uma identidade múltipla e não conflituosa.

A grande revolução do Renascimento é representada pela passagem da

coletividade à individualidade. O que acontece hoje é um tipo de processo

inverso. Se move propriamente não da individualidade à coletividade, mas sim

em direção daquilo que defino como conectividade: indivíduos que se conectam

entre si e formam grupos, os quais se interconectam por sua vez. (DE

KERCKHOVE, 2006, p.66)

O fenômeno das comunidades virtuais têm intrínseca relação com a construção de

uma inteligência coletiva. “A internet é, na realidade, um cérebro, um cérebro coletivo,

vivo, que dá estalidos quando o estamos a utilizar. É um cérebro que nunca pára de

trabalhar, de pensar, de produzir informação, de analisar e combinar”. (SANTAELLA,

2004, p.106) As comunidades virtuais organizam este “cérebro” em áreas de interesse e

afinidades, e trabalham espontaneamente sobre eles.

O estabelecimento de uma sinergia entre competências, recursos e projetos, a

constituição e manutenção dinâmicas de memórias em comum, a ativação dos

modos de cooperação flexíveis e transversais, a distribuição coordenada dos

centros de decisão, opõem-se à separação estanque entre as atividades, às

compartimentalizações, à opacidade da organização social. (LÈVY, 1999, p. 28-

29)

A inteligência coletiva, através do ciberespaço e das comunidades virtuais,

mobiliza-se por uma variedade infinita de assuntos e problemas, coopera na criação de

informação e conteúdo, e na discussão dos mais variados temas. A inteligência coletiva, no

meio digital, não depende de nenhuma distribuição hierárquica de recursos nem do

agendamento de temas por poderes e interesses específicos. Ela é espontânea e abrange um

quinhão cada vez maior da população mundial.

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Todas estas transformações provocam mudanças também no plano filosófico e

ontológico. Na verdade, essas mudanças representam uma continuidade, segundo a

proposição de Vattimo (1992), que expusemos no capítulo anterior. Os mass media

ocasionaram uma multiplicação das vozes e das imagens de mundo, em outras palavras, dos

pontos de vista. Com isso, acarretaram o fim da idéia de sentido único da história, a queda

do conceito de verdade e também da pretensão de atingir um ideal de auto-transparência e

auto-conhecimento que emanciparia toda a humanidade. Para Vattimo, a real possibilidade

de emancipação consiste na mesma queda deste ideal, e no reconhecimento da

multiplicidade. Vattimo (1992, p.74) descreve a passagem da utopia, projeto unificador e

portanto autoritário, à heterotopia: “Na constatação de que a universalidade em que pensava

Kant se realiza para nós na forma de multiplicidade, podemos assumir legitimamente como

critério normativo a pluralidade explicitamente vivida como tal”.

Não é outra coisa o que vem ocorrendo com a Revolução Digital. Trata-se de uma

intensificação do processo iniciado pelas mídias de massa. A natureza ativa da navegação

na rede, o acesso cada vez mais disseminado e facilitado ao ciberespaço e a possibilidade

de produzir a informação está gerando uma multiplicação de vozes sem precedentes na

História da humanidade. Culturas diversas e por vezes silenciadas durante séculos por

poderes alheios, tomam realmente a palavra – não indiretamente, por meio da tela da

televisão ou do relato de antropólogos e historiadores, mas fazendo, elas mesmas, seu

próprio relato sobre si. Além disso, diante da evidente manipulabilidade integral do digital,

o conceito de verdade perde definitivamente valor, deixando-se substituir pelo de ponto de

vista. Nesse sentido, a heterotopia de Vattimo guarda estreita relação com o universal não-

totalizante de Lèvy (1999). A escrita proporcionou o surgimento da idéia de universalidade,

um universal que se impõe às particularidades.

A escrita não determina automaticamente o universal, ela o condiciona (não há

universalidade sem escrita). [...] O significado da mensagem deve ser o mesmo

em toda parte, hoje e no passado. Este universal é indissociável de uma visada de

fechamento semântico. Seu esforço de totalização luta contra a pluralidade

aberta dos contextos atravessados pelas mensagens, contra a diversidade das

comunidades que os fazem circular. (Ibid, p.118)

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O digital, ao contrário, permitindo a multiplicação de vozes diversas (em primeira

pessoa) e o retorno do contexto à mensagem, propõe um universal aberto, não totalizante,

não impositivo.

A interconexão em tempo real das memórias on-line tornam novamente possível,

para os parceiros da comunicação, compartilhar o mesmo contexto, o mesmo

hipertexto vivo. [...] A interconexão generalizada, utopia mínima e motor

primário do crescimento da Internet, emerge como uma nova forma de universal.

[...] Esse universal não totaliza mais pelo sentido, ele conecta pelo contato, pela

interação geral. (Ibid, p.118-119)

Parece que rumamos a um estado de transparência generalizada da sociedade, mas

não a transparência achatante que se esgota em si mesma, como deseja a utopia, e sim uma

idéia de transparência que envolve a aceitação da impossibilidade de apreender o mundo

segundo um único critério. Esta transparência está intimamente ligada à aceitação do outro.

A experiência estética torna-se inautêntica quando, nas condições atuais de

pluralismo vertiginoso dos modelos, o reconhecimento que um grupo realiza de

si mesmo nos próprios modelos se vive e apresenta ainda na forma da

identificação da comunidade com a própria humanidade. (VATTIMO, 1992,

p.75)

A idéia de transparência de Lèvy e Vattimo é inseparável da idéia de alteridade,

heterogeneidade e de simetria, no sentido em que o reconhecimento do outro se realiza no

mesmo plano que o reconhecimento de si mesmo.

Quanto mais o novo universal se concretiza ou se atualiza, menos ele é

totalizável. Ficamos tentados a dizer que se trata finalmente do verdadeiro

universal, porque não se confunde mais com uma dilatação do local nem com a

exportação forçada dos produtos de uma cultura em particular. Anarquia?

Desordem? Não. Essas palavras apenas refletem a nostalgia do fechamento.

Aceitar a perda de uma determinada forma de domínio significa criar uma

chance para reencontrar o real. O ciberespaço não desordenado exprime a

diversidade do humano. (LÈVY, 1999, p.118)

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3. Mídia e Esfera Pública 3.1. Da tribo à nação

As tecnologias da comunicação estão no cerne da configuração e organização da

esfera pública, na medida em que esta pode ser entendida como o espaço simbólico

partilhado entre os indivíduos de um determinado grupo humano e depende, desta maneira,

das condições de comunicação e discutibilidade. O espaço público, como menciona Lèvy

(2002, p.211), é uma “comunidade de interlocutores”, cujas interações são condicionadas

pelas tecnologias comunicativas.

Assim como a linguagem, a esfera pública passou, ao longo da história humana, por

um processo de alargamento e desterritorialização. Como vimos no primeiro capítulo, na

comunidade oral não havia distinção entre o público e o privado; a este respeito, Mcluhan

(1969) observa a extensão das regras e da coerção social até o pensamento dos membros da

comunidade, domínio que estamos acostumados a considerar privado, individual e exterior.

Assim, em uma sociedade tão profundamente oral como a russa, em que se espia

com o ouvido e não com o olho, (...) os ocidentais expressaram seu desconcerto

diante do fato de que muitos se reconheceram totalmente culpados não pelo que

haviam feito, mas sim pelo que haviam pensado. Em uma sociedade altamente

civilizada, ao contrário, a adequação da conduta ao visível deixa o indivíduo

livre para desviar-se interiormente. Não é assim em uma sociedade oral, onde a

verbalização interna é a conduta social efetiva: nestas circunstâncias, fica

implícito que a coerção da conduta deva incluir a coerção do pensamento.

(MCLUHAN, 1969, p. 38-39)

Nesta situação de “coletividade não-pessoal”, a dimensão individual era irrelevante,

e a esfera privada era inexistente. A esfera pública correspondia à dimensão total da vida

dos membros da comunidade.

A passagem de uma tecnologia comunicativa centrada na audição para outra

centrada na visão, como foi a passagem da cultura oral para a alfabética, cria pela primeira

vez uma separação ente aquilo que é próprio e exclusivo do indivíduo e aquilo que pertence

à comunidade. Nasce a “ideação livre” – o pensamento verbal, livre do alcance da coerção

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social – e com ela a possibilidade de ocultar. Surge, portanto, uma esfera privada, a

possibilidade do segredo, e segundo Mcluhan (1969, p.41), também a “esquizofrenia

dualista”, uma possibilidade de dissonância entre pensamento e conduta, entre indivíduo e

comunidade. “A escrita fonética separou o pensamento da ação, até considerar todos os

homens responsáveis por seus pensamentos como por seus atos”.

O alfabeto fonético fez com que a esfera pública deixasse de ser totalizante,

introduzindo o conceito de indivíduo e reservando-lhe um espaço próprio, um domínio

privado. Por outro lado, permitiu um primeiro alargamento da comunidade de

interlocutores, do espaço compartilhado. Esta nova tecnologia da comunicação operou uma

desterritorialização da mensagem, separando-a no tempo e no espaço de seu emissor,

permitiu uma acumulação e transmissão do conhecimento superiores à capacidade

mnemônica. Além disso, a escrita alfabética pôde ampliar o espaço de discussão, colocando

a uma comunidade maior um objeto comum de debate. O alfabeto funda de uma só vez a

lei, a pólis grega, e o conceito de cidadania. Está, portanto, nas raízes da democracia, desde

a Antiguidade Clássica. “A democracia é filha da grande história de amor entre a

linguagem e a cultura de ler e escrever”. (DE KERCKHOVE, 2006a, p VII). Os cidadãos,

dotados da capacidade de ler e, portanto, discutir as leis e os demais assuntos relativos à

polis, fundavam o debate público, elemento indissociável da democracia, seja antiga ou

moderna.

Embora inaugurasse uma esfera pública muito mais ampla – e diversa – daquela da

tribo ou da comunidade oral, a escrita permaneceu ainda muitos séculos subordinada ao

gesto de escrever, e portanto aos limites humanos de produção e reprodução. O espaço

público estava confinado às cidades-estado da antiguidade. Após a queda do Império

Romano, a população enclausurou-se dentro dos muros medievais, onde voltou, em grande

parte, a constituir pequenas comunidades orais, enquanto o domínio da escrita e do

conhecimento era monopolizado por um “clericalismo organizado”.13 A sociedade

medieval caracterizava-se por uma rígida divisão em castas e mobilidade social

praticamente ausente. “A tradição e um tipo de conhecimento abstrato, baseados numa

indagação de valores metafísicos, constituíam os pressupostos de uma sociedade

13 MCLUHAN, Marshall. La Galaxia Gutenberg. Génesis del "Homo Typographicus". Tradução de Juan Novella. Madrid: Aguilar, 1969. p.47

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rigidamente hierárquica e sem transformação”14. Apenas no século XV, a introdução de

uma tecnologia radicalmente inovadora colocaria a sociedade novamente em uma

avalanche de transformações em todos os planos: a imprensa de Gutenberg. A nova

tecnologia de reprodução da página escrita tornou-se um vetor de desterritorialização que

rompeu os muros dos mosteiros e dos burgos e difundiu a prática da leitura. O livro tornou-

se a primeira mercadoria produzida em série.

O livro impresso pela tecnologia de Gutenberg alargou o espaço público para além

dos burgos, estendendo seu alcance a toda a comunidade de proximidade lingüística/

semântica. Com a imprensa, a esfera pública torna-se definitivamente maior do que a

comunidade de vizinhança, e passa a ser compartilhada por indivíduos que não

necessariamente condividem a mesma cidade, que não se conhecem, e não pertencem a um

mesmo contexto. Com a página impressa, o espaço público deixa o domínio da convivência

e alarga-se pelo território, onde quer que o alfabeto fonético e a língua possam ser

entendidos. A própria padronização do código alfabético, promovida pela imprensa,

contribuiu para a padronização das línguas, que se tornaram importantes elementos de

unificação entre as comunidades de falantes.

A imprensa lançou a estática sociedade medieval em uma sucessão de revoluções

que acabariam por construir as bases da Era Moderna. Primeiro, tirou os autores remotos da

clausura e os fez chegar às mãos do crescente público leitor. “Os autores antigos, tanto

teólogos como humanistas, tanto tempo ouvidos nas bibliotecas, começaram, em geral, a

ser lidos e folheados. Em conseqüência, surgiu a necessidade de conhecer e escrever

melhor as línguas em que esses autores escreveram originalmente”. (MCLUHAN, 1969,

p.267) O retorno e difusão dos autores clássicos trouxe consigo línguas antigas e

estrangeiras, ampliando o saber para além do latim escolástico. A própria riqueza

expressiva destes autores em contraste com o rigor formal da escrita escolástica provocou a

ascensão dos primeiros e o declínio da leitura dos segundos e, conseqüentemente, o retorno

forte dos temas e valores clássicos. Desencadeava-se o Renascimento, e com ele as bases de

um novo saber que começava a predominar sobre o saber religioso. “O surgimento de uma

lógica racionalista-experimental modifica a maneira de se pôr na frente da realidade

substituindo a racionalidade transcendental pelo princípio da observação da realidade com

14 DI FELICE, Massimo. A Origem do Conceito Moderno de Opinião Pública. (inédito).

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os olhos da razão”.15 Também o individualismo se arraigava na sociedade renascentista,

como conseqüência da própria natureza da experiência da leitura e do novo acesso às

informações propiciado pela nova tecnologia comunicativa. “A imprensa leva o poder

individualizador do alfabeto fonético muito mais além do que a cultura do manuscrito pode

jamais fazê-lo. A imprensa é a tecnologia do individualismo”. (MCLUHAN, 1969, p.224)

O alfabeto fonético, potencializado pela tecnologia gutenberguiana, opera, como

defende Mcluhan (1969), a destribalização do homem. De fato, apenas com a imprensa a

esfera pública pode ultrapassar os limites da vizinhança e da convivência. A constituição de

um espaço público mais amplo, mais desterritorializado e transcendente à comunidade

define, em contrapartida, uma esfera privada dominada pelo indivíduo. Configura-se com a

imprensa, uma clara divisão entre o público e o privado.

O século XVIII [...] é também o século da difusão da leitura e, portanto, da

criação de um novo tipo de subjetividade, instrospectiva e silenciosa, que ao

mesmo tempo em que constituem-se em privado, na leitura e no recolhimento,

adverte a necessidade de momentos e espaços públicos, lugares de encontro e

discussão, públicos e sem censura.16

Da mesma forma que a separação entre público e privado, o espírito tipográfico

consolida outras tantas dicotomias, como razão e paixões, governantes e governados,

produtores e consumidores.

A própria formação do Estado moderno e laico é profundamente enraizada na

revolução tipográfica. A Bíblia, um dos principais instrumentos de dominação da Igreja

Católica na época medieval, deixou de ser um item exclusivo das clausuras dos mosteiros e

dos altares das igrejas, passando a ser impressa nas línguas “vulgares” e diretamente

acessível aos fiéis. A leitura e interpretação da Bíblia já não é mais um monopólio do clero.

O sentido de parábolas altamente polissêmicas não é mais direcionado segundo os

interesses da Igreja, e muitas vezes tornava-se evidente que a conduta da mesma estava em

desacordo com os ensinamentos do livro sagrado. Surge a Reforma Religiosa de Lutero, e

com ela a religião protestante, cuja ética viria a se adequar melhor ao capitalismo. Inicia-se

15 DI FELICE, Massimo. A Origem do Conceito Moderno de Opinião Pública. (inédito). 16 Ibid.

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a separação entre Igreja e Estado, a primeira relegada ao domínio da esfera privada do

indivíduo, e o segundo encarnando a esfera pública. Também o nacionalismo finca suas

raízes na tecnologia da imprensa: primeiro, a padronização, consolidação e divulgação das

línguas populares; depois, a formação e expansão das literaturas nacionais, que criaram um

imaginário comum às comunidades de falantes da língua, e mantiveram sua coesão através

de um sentimento de identidade enquanto povo.

A tecnologia da impressão permitiu o primeiro fenômeno de multiplicação de vozes

e de pontos de vista em larga escala. Destituiu a Igreja do posto de enunciador único,

introduziu autores de outros tempos e lugares, deu voz às línguas e histórias do “vulgo”. A

revolução de Gutenberg marca a formação de um amplo público de leitores, mas também

de uma vasta gama de autores. Tudo isso era concomitante e relacionado a uma revolução

econômica – a ascensão e consolidação do capitalismo como sistema de produção – e social

– o crescimento e estabelecimento da classe burguesa como eixo central do sistema. A

figura do mercador, existente desde a época dos burgos medievais, representa neste

contexto um elemento de mudança.

O destino social do mercador não é herdado, nem natural, mas produzido por ele através das operações matemáticas ligadas aos atos de compra e venda por meio de um princípio de razão e da forma simbólica do dinheiro. Ele passa assim a substituir o sistema baseado na renda fundiária por um sistema totalmente abstrato, baseado no valor de troca, no dinheiro e na propriedade privada.17

Pierre Lèvy vê na moeda um grande vetor da virtualização e da desterritorialização.

Enquanto objeto virtual, a moeda é evidentemente mais fácil de trocar, de

partilhar e de existir em comum que entidades mais concretas como terras ou

serviços. Reencontramos na invenção e no desenvolvimento da moeda (e dos

instrumentos financeiros mais complexos) os traços distintivos da virtualização,

que não são apenas o arrancar-se ao aqui e agora ou a desterritorialização, mas

igualmente a passagem ao público, ao anônimo, a possibilidade de partilha e de

troca. (LÈVY, 1996, p.52)

17 DI FELICE, Massimo. A Origem do Conceito Moderno de Opinião Pública. (inédito).

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A nascente classe burguesa chocou-se contra os governos, resquícios medievais

resistentes à desterritorialização crescente operada pela moeda e pelo capitalismo, e que

negavam à nova e poderosa classe o acesso ao poder, mantendo ali uma casta improdutiva e

sustentada apenas pela tradição, mas não pela força econômica. Logo a grande maioria das

vozes emitidas pela imprensa eram vozes burguesas, que passaram a difundir suas idéias

através das novas tecnologias. O processo culminou nas Revoluções Burguesas, a

destituição da nobreza do poder, e a instauração de Estados burgueses, parlamentares, nos

quais a instala-se a dinâmica do conflito de interesses em substituição a uma lei divina.

Será tal nova força social que substituirá o princípio de autoridade do Estado e da Igreja com uma forma de organização social baseada num contrato, expressão do conflito e do temporário acordo entre as distintas classes sociais. [...] Uma vez que os fazedores das leis são os sujeitos históricos, defensores de seus interesses particulares, a sociedade deixará para sempre de ser a expressão de uma ordem universal e natural, inquestionável, para se tornar algo imperfeito, necessitante de reformas e mudanças.18

Está consolidada a modernidade – o espaço público nacional e o tempo das

revoluções.

A modernidade traz duas novidades muito importantes: a separação entre esfera

pública e esfera privada, e entre Estado e sociedade civil, como instâncias distintas que

constituem juntas a esfera pública moderna. A imprensa, que teve um papel fundamental na

unificação nacional e no estabelecimento de poderes governamentais centralizados, abriu

também, pela primeira vez, a possibilidade de oposição ao poder.

Se a imprensa converteu as línguas vulgares em meios de comunicação de massa, também foram estas meios de governo centralizado da sociedade, de muito maior alcance do que os romanos haviam conhecido com o papiro, o alfabeto e as estradas pavimentadas. Mas a mesma natureza da imprensa cria dois interesses em conflito, como os do produtor e os do consumidor, entre os governantes e os governados. [...] À medida que o mercado do livro foi se ampliando, até finais do século19, foi se extendendo amplamente o hábito de ler muito, se fez mais forte a rebelião do consumidor contra o controle central. (MCLUHAN, 1969, p. 327-329)

Esta foi a semente da sociedade civil, que se tornou autônoma do Estado, podendo

inclusive se opor a ele. “Para Habermas, a esfera pública burguesa é concebida como a

18 DI FELICE, Massimo. A Origem do Conceito Moderno de Opinião Pública. (inédito). 19 Século XVI.

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esfera dos privados reunidos contra o público”.20 (DI FELICE) Torna-se uma esfera pública

dúplice, formada pelo poder público por excelência, o Estado, e pela expressão pública dos

privados, ou seja, os indivíduos, que constituem a sociedade civil. A dinâmica da esfera

pública burguesa – “um novo âmbito ou dimensão da vida coletiva que se coloca entre o

poder político (a corte, o Estado, o governo) e a sociedade civil” (GROSSI, 2004, p.29) –

passa a ser a do conflito, da negociação.

Nessa nova esfera pública, que não coincide mais apenas com o poder público,

emanado do alto, o caráter de “publicidade” como acessibilidade coletiva (Ibid, p.34) ou,

em outras palavras, a transparência/opacidade torna-se fator decisivo e fundamental nos

processos de negociação. Uma mínima transparência da esfera pública é imprescindível ao

governo democrático, como os que nasceram alguns séculos pós-Gutenberg. Uma esfera

pública opaca não caracteriza uma situação de democracia, mas sim de autoritarismo, ou

pseudo-democracia. (Ibid, 22)

A imprensa, plenamente consolidada nos séculos XVIII e XIX, tornou-se a primeira

mídia de massa, e forjou tanto a subjetividade do “homem tipográfico”, quanto a

configuração da esfera pública moderna. No século XX, com a eletricidade e a tecnologia

hertziana, juntaram-se à imprensa os meios eletrônicos de comunicação de massa – em

especial a televisão – que provocariam uma forte ruptura com o espírito tipográfico e com o

próprio espírito da modernidade, ocasionando, obviamente, grandes transformações tanto

na esfera privada quanto na esfera pública. Em primeiro lugar, os meios eletrônicos de

massa implicam uma sinestesia de sentidos – a audição, negligenciada pela cultura

tipográfica, e a visão, porém não a mesma visão utilizada para decodificar o alfabeto

fonético (fria e analítica), mas uma visão de mosaico: não só o mosaico de imagens, da

montagem cinematográfica, da narrativa recortada, mas o próprio mosaico dos pontos

luminosos na tela. “Devido à baixa definição da TV, afirma Mcluhan, os telespectadores

têm de preencher os espaços das imagens e por isso aumentam seu envolvimento emocional

com o ato de assistir”. (CASTELLS, 1999, p.417)

Em relação à esfera pública, as mídias de massa produzem efeitos ambíguos.

Primeiramente, produzem fluxos piramidais de informação, ou seja, constituem-se de

poucos emissores que elaboram e transmitem a mensagem para muitos receptores – para

20 DI FELICE, Massimo. A Origem do Conceito Moderno de Opinião Pública. (inédito).

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um público receptor certamente não homogêneo, mas considerado assim do ponto de vista

do emissor – o que nos elucida que o conceito de “massa” não deriva do ponto de vista da

audiência, e sim do ponto de vista dos centros de emissão.

Circulando em um espaço privado de interação, a mensagem midiática não pode

explorar o contexto particular no qual o destinatário evolui, e negligencia sua

singularidade, seus links sociais, sua microcultura, sua situação específica num

momento dado. É este dispositivo ao mesmo tempo muito redutor e conquistador

que fabrica o ‘público’ indiferenciado das mídias de ‘massa’. (LÈVY, 1999,

p.116)

As mídias de massa, em especial as eletrônicas, provocam uma redução,

simplificação e homogeneização da esfera pública. Além disso, potencializam a capacidade

de unificação da comunidade de interlocutores através do componente emocional, muito

mais arrebatador nesta nova tecnologia que na cultura tipográfica.

A descontextualização que acabo de citar instaura, paradoxalmente, um outro contexto, holístico, quase tribal, mas em maior escala do que nas sociedades orais. A televisão, interagindo com as outras mídias, faz surgir um plano de existência emocional que reúne os membros da sociedade em uma espécie de macro-contexto flutuante, sem memória, em rápida evolução. [...] A principal diferença entre o contexto midiático e o contexto oral, é que os telespectadores, quando estão implicados emocionalmente na esfera do espetáculo, nunca podem estar implicados praticamente. Por construção, no plano da existência midiática, jamais são atores. (Ibid, p.116-117)

Dessa maneira, a mídia de massa promove uma unificação nacional ainda mais

profunda, pois é elemento chave na construção de uma identidade e do um sentimento

coletivo. Além do mais, assim como a imprensa, a televisão também é vetor de

padronização e unificação lingüística, com a diferença de que não depende da alfabetização

dos receptores para ser compreendida.

De acordo com essas considerações, a esfera pública configurada pelos mass media

é constituída por poucos centros emissores e muitos receptores atomizados, caracterizando

um fluxo de informação concêntrico e unidirecional. É homogênea e homogeneizante, tanto

pela simplificação da mensagem quanto pelo alto poder de envolvimento emocional.

Veicula um macro-contexto sobre o qual o indivíduo não tem poder de ação direta, dando

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como única opção de envolvimento a recepção passiva. O entretenimento, e não a crítica,

torna-se o benefício máximo da nova comunicação. Cria-se a chamada sociedade do

espetáculo:

[...] A difusão da televisão ocorreu em um ambiente televisivo, ou seja, a cultura

na qual objetos e símbolos se voltam para a televisão, desde as formas dos

móveis domésticos até modos de agir e temas de conversas. O poder real da

televisão, como Eco e Postman já afirmaram, é que ela arma o palco para todos

os processos que se pretendem comunicar à sociedade em geral, de política a

negócios, inclusive esportes e arte. (CASTELLS, 1999, p.421)

De acordo com essa afirmação, toda a esfera pública converge para a televisão, que

tem o poder de definir o que “existe”, e o que não existe, o que aconteceu ou não

aconteceu, o que é relevante e o que não é.

O impacto social da televisão funciona no modo binário: estar ou não estar. Desde que a mensagem esteja na televisão, ela poderá ser modificada, transformada ou mesmo subvertida. Mas em uma sociedade organizada em torno da grande mídia, a existência de mensagens fora da mídia fica restrita a redes interpessoais, portanto desaparece do inconsciente coletivo. (Ibid, p.421)

Este cenário causou rebuliço em grande parte dos críticos dos meios de massa, que

previram os mais apocalípticos futuros. Porém, aqui entra a ambigüidade dos efeitos das

mídias de massa sobre a esfera pública: embora possuam enorme poder totalizante, os mass

media fazem parte do mesmo movimento de desterritorialização da linguagem e de

multiplicação de vozes, como nos lembra Vattimo. A mesma lógica do espetáculo permitiu

que imagens e vozes distantes e diversas fossem introduzidas à esfera pública, tendo como

efeitos não certamente a simples manutenção do espetáculo. Da mesma maneira que a

imprensa de Gutenberg rompeu os muros medievais com autores de outros tempos e

lugares, também as ondas eletromagnéticas das mídias de massa ultrapassaram as fronteiras

nacionais, iniciando um processo de globalização da esfera pública. O próprio conceito de

verdade e o mito do sentido unitário da história, construídos durante séculos pelas culturas

alfabéticas, começam a ter suas bases minadas pela explosão de alteridades e evidenciação

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da diversidade propiciada pelos meios de massa. Vattimo considera este fenômeno a

própria superação da modernidade, em sua essência.

A impossibilidade de pensar na história como um curso unitário, impossibilidade que, segundo a tese sustentada, dá lugar ao fim da modernidade, não surge apenas da crise do colonialismo e do imperialismo europeu; é também, e talvez mais, o resultado do nascimento dos meios de comunicação de massa. Estes meios – jornais, rádio, televisão, em geral o que se chama hoje em dia telemática – foram determinantes no processo de dissolução dos pontos de vista centrais, daqueles que um filósofo francês, Jean François Lyotard, designa como as grandes narrativas. (...) A rádio, a televisão, os jornais se tornaram elementos de uma grande explosão de Weltanschauungen, de visões de mundo. (VATTIMO, 1992, p.11)

Dessa maneira, a esfera pública se alarga além do âmbito do Estado-Nação, e

incorpora questões de nível cada vez mais planetário. Passa também por transformações

qualitativas que culminarão na gênese do espaço público digital, que discutiremos mais

adiante.

3.2. Opinião Pública e Democracia

A Opinião Pública e a democracia moderna são fenômenos indissociáveis, não só porque

têm em comum os mesmos elementos em sua gênese e em suas bases, mas também porque

suas existências são reciprocamente condicionadas. A opinião pública, entendida como

debate público, é um fenômeno cuja dinâmica se desenvolve entre as esferas pública e

privada, cuja consolidação, enquanto esferas separadas, se dá no contexto da imprensa, das

revoluções burguesas e do surgimento de Estados liberais-democráticos. Assim sendo, a

opinião pública e a democracia moderna são conceitos irmãos apoiados sobre as mesmas

bases: o individualismo, ou a autonomia do privado; o conceito de liberdade e o direito da

livre expressão da própria opinião; a soberania do povo, fonte de legitimação do poder, não

mais fundado sobre leis divinas e imutáveis.

Encontramos algumas aproximações com o conceito de opinião pública muito antes

da instalação do Estado burguês e da imprensa. A ágora grega era uma forma de debate

entre os indivíduos, os cidadãos, sobre assuntos em comum e de interesse coletivo,

configurando, grosso modo, uma dinâmica de opinião pública. Maquiavel também fez

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importantes considerações a respeito do gerenciamento da opinião pública pelo príncipe,

enfatizando a importância das aparições públicas do governante, e da gestão cuidadosa

daqueles que tivessem poder de influência sobre o que os súditos pensam e dizem dele. No

caso do principado de Maquiavel, porém, os súditos não são a fonte da legitimação do

poder do príncipe, e a gestão de sua opinião serve apenas como recurso que economiza o

uso da força.

O caso da democracia grega também se afasta bastante da democracia e opinião

pública modernas. A democracia nasceu na pólis grega, como organização do poder e do

governo possibilitada pela tecnologia alfabética. O termo democracia, formado pelas

palavras gregas demos (povo) e cratos (poder), significa, mais do que “poder do povo” ou

“poder de todos”, o poder de qualquer um. “Foi uma idéia revolucionária aquela de que

cada um devesse ter o direito de participar das decisões relativas a qualquer um”. (DE

KERCKHOVE, 2006a, p.VIII) A democracia antiga, contudo, desenvolve-se no espaço da

pólis, que era, de toda maneira, uma comunidade pequena (devemos lembrar que, além

disso, nem todos tinham o direito de participar: mulheres, escravos e estrangeiros não eram

considerados cidadãos). Dessa maneira, os cidadãos podiam deliberar e tomar as decisões

diretamente, sem intermediários. A separação entre os cidadãos e o Estado, na pólis grega,

era inexistente. A democracia moderna e o conceito de opinião pública pressupõem uma

coletividade muito maior, organizada na forma de povo, reunindo todos os indivíduos

habitantes do espaço geográfico de um Estado Nacional. Assim, não só a democracia direta

se torna inviável, fazendo-se necessário um mecanismo de representação, como também o

debate se desterritorializa, e só pode ser realizado através da mediação dos meios de

comunicação. Surge a sociedade civil, entidade separada e distinta do Estado, mas que

integra, junto com o mesmo, a esfera pública.

Esta duplicidade intrínseca à natureza da esfera pública burguesa determina a

natureza ambígua do próprio fenômeno da opinião pública. A esfera pública é o espaço de

negociação entre a sociedade civil e o Estado, e o controle ou influência da opinião pública

torna-se imprescindível para ambas as instâncias. Na esfera pública realiza-se a negociação

do consenso, fundamento do poder e das decisões e, portanto, torna-se “um lugar no qual a

opinião pública é o resultado de tendências dúplices (do alto ou de baixo) e finalidades

dúplices (de controle e de emancipação)”. (PRICE, 2004, p.32) A opinião pública revela-se

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um fenômeno de natureza ambivalente. “Opinião pública manipulada do alto ou

autoproduzida de baixo, opinião pública como mediação entre Estado e cidadãos ou como

watchdog do poder político, opinião pública como entidade ilusória (ou meramente

simbólica) ou como realidade cognitiva que nasce da discussão coletiva”, (Ibid, p.18) ou

ainda, “auto-direção da opinião pública (formação de baixo) e hetero-direção da opinião

pública (formação do alto)”. (Ibid, p.24)

A negociação da opinião pública entre Estado e sociedade civil, cerne do jogo

democrático moderno, tem como eixo principal a transparência, ou a “publicidade”, ou seja,

a acessibilidade à esfera pública. Norberto Bobbio (2000, p.98) define a democracia como

“o governo do poder público em público”. A visibilidade do poder, em todos os sentidos, é

fundamental para o regime democrático, seja como critério de liceidade dos atos do poder,

como efetividade do mecanismo de representação, ou como possibilidade de controle do

governo por parte dos cidadãos, da sociedade civil que, no regime democrático, deve ser

fonte de legitimação e de orientação do poder.

A exigência de publicidade dos atos de governo é importante não apenas, como

se costuma dizer, para permitir aos cidadãos conhecer os atos de quem detém o

poder e assim controlá-los, mas também porque a publicidade é por si mesma

uma forma de controle, um expediente que permite distinguir o que é lícito do

que não é. (Ibid, p.42)

A questão transparência/opacidade e simetria/assimetria da visibilidade da esfera

pública condiciona diretamente a relação de poder entre as duas instâncias da esfera pública

moderna, Estado e sociedade civil. A visibilidade relaciona-se, de acordo com Bobbio, com

o poder de controle que um tem sobre o outro. Numa relação de visibilidade assimétrica,

como por exemplo, de total transparência dos cidadãos em relação ao Estado, mas

opacidade do Estado em relação aos cidadãos, temos uma situação de autoritarismo, em que

o poder do Estado é total e o dos cidadãos nenhum.

Este supremo ideal, no qual se inspira um poder que pretende ser ao mesmo

tempo onividente e invisível, foi recentemente redescoberto e admiravelmente

descrito por Foucault na análise do Panopticom de Bentham. Um conjunto de

celas separadas, cada uma das quais recolhendo um detento, dispostas num

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círculo de raios e terminando numa torre, do alto da qual o vigilante, símbolo do

poder, pode acompanhar a todo momento até os mínimos atos dos vigiados.

Importante não é que os presos vejam quem os vê: importante é que saibam que

existe alguém que os vê, ou melhor, que os pode ver. [...] A estrutura

arquitetônica do Panopticom instaura uma relação assimétrica entre dois sujeitos

da relação de poder com respeito ao ato de ver e ser visto. (Ibid, p.111)

Obviamente, uma situação como esta não configura uma democracia, pois o poder

anula os cidadãos e os controla totalmente, não dependendo de sua legitimação. Tal relação

de poder caracteriza Estados totalitários ou despóticos. “O poder autoritário define-se pela

assimetria da visibilidade: os dominados são transparentes, ao passo que o centro do poder

permanece opaco”. (LÈVY, 2002, p.39)

O Estado democrático ideal, ao contrário, é aquele que instaura uma relação

simétrica de poder e visibilidade, ou seja, aquele onde a esfera pública é totalmente

acessível a Estado e sociedade civil. Do ponto de vista da última, isto significa a

possibilidade de controlar e regular o poder, o que mantém a saúde do sistema democrático

e coloca a questão da opinião pública no centro de seu funcionamento.

Entende-se que a maior ou menor relevância da opinião pública como opinião

relativa aos atos públicos, isto é, aos atos próprios do poder público que é por

excelência o poder exercido pelos supremos órgãos decisórios do Estado, da ‘res

publica’, depende da maior ou menor oferta ao público, entendida como

visibilidade, cognoscibilidade, acessibilidade e, portanto, controlabilidade dos

atos de quem detém o supremo poder. (BOBBIO, 2000, p.103)

Na era moderna, a acessibilidade à esfera pública – bem como, não nos esqueçamos,

a sua própria constituição – é dada pelos meios de comunicação de massa. A imprensa,

primeiro mass media, possibilitou a desterritorialização e o alargamento da esfera pública

para além da comunidade geográfica, expandindo-se para todas as comunidades de leitores/

falantes de uma mesma língua, que acabaram por agrupar-se politicamente na forma de

Estados Nacionais.

O papel das mídias – sobretudo na segunda metade do século XIX – se

caracteriza por duas novas funções: a possibilidade de generalização da esfera

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pública (e portanto da opinião pública) para além da condivisão de um mesmo

lugar, formando assim um público dos leitores freqüentemente mais amplo que

(e distinto do) público de falantes, e a criação de uma publicidade mediada, ou

seja, de um tipo de esfera pública e de opinião pública sempre menos produto de

interações face-a-face localizadas e sempre mais a conseqüência de relações

interativas através das mídias e da comunicação midiática. (GROSSI, 2004,

p.38)

Desta maneira, apenas analisando a natureza das mídias envolvidas, entenderemos

as dinâmicas de opinião pública nos regimes democráticos.

A opinião pública está situada, na história das tecnologias da comunicação, como

um fenômeno pertencente aos meios de comunicação de massa, da imprensa à televisão.

Ela se ancora, tal qual a democracia, numa concepção individualista e atomística da

sociedade, e na clara distinção entre produtores e consumidores da informação, autores e

leitores, emissores e receptores. De fato, vimos já anteriormente que a mídia de massa

impressa ou eletrônica organiza fluxos de informação piramidais e unidirecionais, baseada

no fato de que uns escrevem e outros lêem, uns produzem e outros consomem, poucos

centros emitem para uma “massa” de receptores. Portanto, toda a acessibilidade da esfera

pública passa por poucos centros de mediação, que filtram e decidem – sob critérios

próprios e nem sempre, eles mesmos, públicos – aquilo que deve ser publicado.

A importância das mídias em relação aos processos de formação e de ativação da

opinião pública não é porém ligada ao seu impacto tecnológico de trâmite

comunicativo e simbólico – generalizar as opiniões, ampliar a publicidade,

favorecer o acesso, promover a atenção, mediar o discurso público, diferenciar

os produtores dos fruidores de opinião – mas é também ligada à tendência,

desenvolvida sobretudo na segunda metade do século XX, dos próprios meios

assumirem um papel ativo, de se tornarem verdadeiros protagonistas no processo

demoscópico. (GROSSI, 2004, p.38)

Em relação à esfera pública burguesa e seus processos de opinião pública,

Habermas possui uma concepção baseada na racionalidade e na crítica, uma concepção

coerente com o espírito tipográfico, a cultura literária e os ideais iluministas. Para

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Habermas, a opinião pública é um processo de entendimento mútuo, por meio de um debate

racional.

A opinião pública é a opinião de todos os cidadãos privados, que fazem uso

público da razão em lugares públicos – os cafés, os salões – através de suportes

acessíveis publicamente (os meios de comunicação impressos) e que discutem

enquanto ‘homens’ segundo uma ótica ‘universalística’. (Ibid, p.30)

Sobre estas mesmas idéias se assentam as bases da moderna democracia

representativa:

Desta primeira articulação da esfera pública burguesa – que Habermas chama de

esfera pública literária para sublinhar sua origem culta, discursiva e textual – se

desenvolve então a esfera pública política, aquela que se torna o fundamento da

própria idéia de democracia, entendida como nova concepção do governo

fundado sobre a igualdade dos direitos individuais e sobre a representação da

soberania popular. (GROSSI, 2004, p.30-31)

De fato, a democracia moderna encontra, como saída para viabilizar a governabilidade

numa comunidade numerosa, atomizada e dispersa geograficamente, o mecanismo da

representação. “A expressão ‘democracia representativa’ significa genericamente que as

deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira, são

tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem parte mas por pessoas eleitas para esta

finalidade”. (BOBBIO, 2000, p.56) A representação na moderna democracia, como nos

explica Bobbio, é uma relação fiduciária (não imperativa), na qual o representante, após

eleito, não é mais vinculado pelos seus eleitores e por isso não pode ter seu mandato

revogado por eles.

Por representante entende-se uma pessoa que tem duas características bem

estabelecidas: a) na medida em que goza da confiança do corpo eleitoral, uma

vez eleito não é mais responsável perante os próprios eleitores e seu mandato,

portanto, não é revogável; b) não é responsável diretamente perante seus

eleitores porque convocado a tutelar os interesses gerais da sociedade civil e não

os interesses particulares desta ou daquela categoria. (Ibid, p.59-60)

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Ambos os pontos de vista, porém, parecem apoiar-se na idéia de uma esfera pública

totalmente transparente e acessível, de uma opinião pública completamente racional e da

existência de uma universalidade capaz de suplantar os interesses particulares. Com efeito,

a concepção habermasiana da opinião pública começa a ser questionada, a exemplo de

Pizzorno21:

Segundo Pizzorno, de fato, podemos dizer, invertendo a conclusão de Habermas

– que a esfera pública não é o lugar do mútuo entendimento, da veritas e da

ratio, mas muito mais o terreno da retórica discursiva, da negociação, do

confronto identitário. A opinião púbica, portanto, não nasce tanto da verdade

quanto dos juízos de valor. Isto implica não só o abandono da idéia teleológica

de uma discursividade racional, iluminada, portanto emancipadora porque

universalística (a famosa ‘vontade geral’ que será criticada por muitos autores),

mas também o conseqüente reconhecimento da natureza não só racional, mas

também emotiva, projetiva, simbólica e identitária das dinâmicas de opinião.

(GROSSI, 2004, p. 33)

Esta dimensão emotiva e não-racional da opinião pública evidenciou-se fortemente

nos fenômenos políticos e de opinião pública do século XX, em que, pode-se dizer, o

argumento racional era aquele que menos contava.

Tanto a esfera pública de Habermas quanto o funcionamento da representação

clássica de certa forma ignoram o papel central das mídias na opinião pública, suas

inerentes opacidades, sua “capacidade de ‘refração’ da realidade social [...], ou seja, a sua

não neutralidade como instrumentos de mediação simbólica no fornecer-nos uma

representação da esfera pública, do debate político, das dinâmicas coletivas”. (Ibid, p.39)

Os meios não são apenas o ambiente onde se desenrolam as dinâmicas de opinião

pública, são também atores deste processo, e possuem poder de decisão sobre o que se

tornará público. São, portanto, verdadeiros gatekeepers da esfera pública, condicionando a

sua acessibilidade. “A opinião pública está, por definição, dividida entre os ‘pró’ e os

‘contra’, os partidários e os oponentes. A sua dinâmica conflitual é que faz dela uma

21 Sociólogo italiano.

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opinião pública viva. Não são nem as idéias nem as posições políticas que a unificam, são

seus objetos de atenção”. (LÈVY, 2002, p.136) De fato, um público é “uma coletividade

dinâmica que se organiza ao redor de um tema através da discussão no tempo”. (PRICE,

2004, p.96) Os meios de comunicação de massa têm o poder de definir os objetos de

atenção da opinião pública, agendando, assim, os debates coletivos.

A decisão do que colocar em atenção, ou à ordem do dia, é uma competência

não exclusiva mas certamente específica da mídia, com a conseqüência não só

de ativar as dinâmicas de opinião a partir dos temas postos em agenda, mas

também de fornecer aos atores políticos uma oportunidade de participar da

discussão pública e influenciar as orientações coletivas. (GROSSI, 2004, p.39)

Esta propriedade e fenômeno da mídia de massa foi batizada na década de 70, por

Maxwell McCombs e Donald Shaw, como agenda setting, termo que se tornou largamente

utilizado nos estudos midiáticos mundo afora.

Os objetos e os temas agendados pelos mass media tornam-se públicos, mas o

mesmo não acontece com os critérios de sua seleção e filtragem, e ainda menos com

relação às condições de produção da mensagem, às relações de poder e aos interesses

envolvidos.

Com efeito, nos meios de comunicação de massa da democracia moderna, quem

decidia, consoante os seus interesses ou necessidades, aquilo que iria transpor a

fronteira entre o privado e o público? Não quem tinha a mensagem a transmitir,

mas sim o jornalista que controlava o meio de comunicação ou os que estavam

por trás dele. Ora, o jornalista, mesmo que trabalhe num país livre e faça seu

trabalho de boa fé, exerce necessariamente uma censura, nem que seja por razões

de espaço disponível. (LÈVY, 2002, p.57)

Por causa de seu papel decisivo na ativação e influência da opinião pública, os

meios de comunicação de massa se tornaram estratégicos para os governos, e é igualmente

verdade que a maioria deles é uma empresa com interesses próprios. No século XX,

pudemos assistir à instrumentalização dos meios de comunicação de massa por parte do

poder, não só em casos extremos, como no fascismo, nazismo e stalinismo, mas também

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em regimes declaradamente democráticos. Não é incomum que num país democrático as

principais redes de televisão e os jornais mantenham relações subterrâneas com o governo,

e assim elaborem a agenda do debate público de acordo com certas conveniências.

Desta maneira, instaura-se na esfera pública uma relação assimétrica de visibilidade

e de poder entre o Estado e a sociedade civil, em que a segunda, obviamente, tem menos

acesso que o primeiro, o qual ocupa ainda uma posição privilegiada na sondagem e no

direcionamento da opinião pública a partir do controle dos meios de massa. Esta assimetria

é possibilitada pela própria natureza do fluxo da informação na mídia de massa, em que o

controle de poucos centros emissores torna viável a influência de milhões de receptores. As

democracias televisionadas do século XX distanciam-se do ideal de democracia moderna.

[...] Por todo o século XX, sobretudo por parte dos pensadores, políticos e

cientistas sociais, o nexo entre democracia e opinião pública de virtuoso se

transforma em vicioso, de transparente se torna opaco, porque são colocados em

dúvida os fundamentos sobre os quais, historicamente, essa ligação tinha sido

proclamada: a opinião pública como âmbito do debate público, livre e racional, e

o processo de formação das opiniões como processo auto-direto, que se

desenrola no interno da sociedade civil para influir sobre o governo e sobre o

Estado (e eventualmente controlá-lo). (GROSSI, 2004, p.28)

Também a racionalidade se vê destituída de sua centralidade nos processos de opinião

pública. A espetacularização da mensagem, fenômeno generalizado pelos mass media,

demonstra a predominância dos fatores emocionais e inconscientes na influência da opinião

pública. Não se trata aqui de depreciar esta dimensão em favor da nostalgia de uma

racionalidade suprema que provavelmente nunca existiu; mas sim de reconhecer que

qualquer tipo de conteúdo veiculado pelos meios de massa está sujeito não só à

pasteurização da informação, como também à transformação em espetáculo e

entretenimento, encobrindo, muitas vezes, os interesses envolvidos na produção da

mensagem e privilegiando uma retórica persuasiva pouco explícita. “Para a televisão, ‘o

entretenimento é a supra-ideologia de todo o discurso. Não importa o que seja representado

nem seu ponto de vista, a presunção abrangente é que a TV está lá para a nossa diversão e

lazer”. (CASTELLS, 1999, p.418) Com efeito, o carisma retorna com força como elemento

relevante na escolha de líderes políticos. Os debates políticos e campanhas eleitorais

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televisionados freqüentemente privilegiam outros aspectos do candidato que não sua

proposta política.

A espetacularização e simplificação da mensagem intensifica-se ao aliar-se a um

outro fenômeno típico das democracias do vigésimo século: a sua tecnocratização. A

crescente complexidade das sociedades a governar faz com que a mesma tarefa governar

apele cada vez mais a especialistas e especialidades, inacessíveis e incompreensíveis pelo

“vulgo”. Nem os detentores do poder nem as mídias de massa interessam-se por transmitir

a mensagem com um nível maior de complexidade e aprofundamento, aumentando a

opacidade da esfera pública e criando uma “casta” de especialistas e autoridades que

assumem o papel de formadores de opinião. A sociedade civil em geral permanece relegada

à superficialidade no debate público.

A esfera pública moderna, aparentemente, caminhou para se tornar um monólogo

dos meios de comunicação de massa a uma grande platéia passiva, ao invés de um debate

público. A opinião pública, aqui, seria totalmente heterodirecionada pelos mass media, e

pouco sobraria para a sua construção “de baixo”.

Com o desenvolvimento dos novos meios de comunicação – iniciando pela

imprensa mas levando em consideração também as formas mais recentes de

comunicação eletrônica – a notoriedade ou publicidade se separou da idéia de

conversação dialógica em um lugar condividido. Perdeu a sua base no espaço e

se tornou não-dialógica, ligando-se em uma medida sempre maior ao tipo de

visibilidade produzido por, e acessível graças à mídia (em particular a televisão).

(GROSSI, 2004, p.37)

Porém, antes que se desenho um cenário demasiado catastrófico, lembremo-nos dos, por

assim dizer, efeitos colaterais das mídias de massa, que já exploramos nos capítulos

anteriores. Em primeiro lugar, devemos ter em vista que a “massa”, termo utilizado para

designar uma platéia homogênea e atomizada e totalmente influenciável e condutível, é

pertinente apenas do ponto de vista da emissão da mensagem, padronizada e homogênea,

mas não é verdadeiro do ponto de vista da própria platéia. No público massificado existem

grupos humanos diversos e heterogeneidades que a mídia de massa desconsidera. A

recepção não é nem homogênea, nem passiva, mas sim seletiva e influenciada pelo micro-

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contexto no qual se insere o receptor. Assim, mesmo diante de um quadro de controle

estatal velado das mídias de massa, as dinâmicas de opinião pública não serão nunca

homogêneos e totais, mas múltiplos, e manterão um certo coeficiente de imprevisibilidade.

Além do mais, como já nos demonstraram Vattimo (1992) e Santaella (2004), o fenômeno

da multiplicação das vozes e pontos de vista predominou sobre a massificação, seja por

motivos ontológicos ou mercadológicos. O público, heterogêneo, demandou maior

variedade de opções, e o mercado obedeceu. Multiplicaram-se canais de TV, rádios,

periódicos, revistas, jornais, pequenos centros emissores atendendo a pequenos nichos e,

conseqüentemente, diversificando o conteúdo e os temas ao redor do qual se mobiliza a

opinião pública. Tudo isso aliado a novas tecnologias de reprodução e edição (vídeo-

cassetes, câmeras, fotocopiadoras, etc) que tiraram o indivíduo da “passividade” na

produção da informação.

Os meios de comunicação de massa, ao invés de homogeneizar, acabaram por

complexificar os processos de opinião pública. A tecnologia digital eleva ao ápice essas

transformações, com importantes conseqüências sobre a própria esfera pública e a

democracia. As transformações da opinião pública e da democracia no contexto da

sociedade em rede é o que analisaremos a seguir.

3.3. Transformações da Opinião Pública e Democracia na Rede

Como vimos no segundo capítulo, a tecnologia digital desencadeia amplas

transformações no ambiente comunicativo da sociedade e, portanto na própria sociedade

em todas as suas dimensões. Também a esfera pública e as dinâmicas de opinião que

acontecem em seu âmbito, dimensões diretamente condicionadas e organizadas pelas

tecnologias comunicativas, passam por profundas mutações de caráter qualitativo.

Tentando encontrar um denominador comum para todas as revoluções provocadas

pela tecnologia digital, fui assaltada pela seguinte imagem: o digital rompe fronteiras.

Embora pareça uma vazia obviedade ou uma simples frase de impacto, esta afirmação me

parece um bom fio condutor para nossa análise – o digital estilhaça definitivamente todas as

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fronteiras construídas e fixadas nitidamente pela modernidade, as quais já vinham sendo

embaçadas e estremecidas durante todo o século XX, pelos meios de massa.

Essa dissolução de fronteiras típica das transformações advindas do digital vai ao

encontro daquilo que Lèvy chamou de “Efeito Moebius”, uma passagem constante do

exterior ao interior e vice-e-versa – “circuitos de reversão entre exterioridade e

interioridade”. (LÈVY, 1996, p.25) Encontraremos este fenômeno em muitas dimensões

que analisaremos a partir de agora.

A primeira ruptura da qual falaremos é, na verdade, não só a continuidade, mas a

exacerbação de um processo iniciado um século antes pelas mídias de massa – a expansão

da esfera pública para além do território nacional. Já os mass media haviam inserido no

debate público temas internacionais, pautas distantes no globo. O digital, por sua vez,

extravasa definitivamente as fronteiras do Estado Nacional. Conectado ao ciberespaço,

qualquer ponto em qualquer localização geográfica torna-se diretamente acessível a

qualquer outro. A esfera pública torna-se ainda mais desterritorializada: o espaço físico,

seja o da vizinhança, seja o da nação, deixa de ser relevante para a sua existência. A

comunidade de interlocutores, que são potencialmente tantos quantos partilhem da mesma

tecnologia, virtualiza-se, alarga-se pelo ciberespaço, e torna-se não somente global: passa a

ser ubíqua.

A segunda fronteira liquefeita pelo digital é a típica dicotomia gestada durante

séculos pela cultura alfabética e tipográfica: a separação entre autor e leitor, entre produtor

e consumidor da informação, entre emissor e receptor. Vimos que a tecnologia digital torna

não só o conteúdo integralmente manipulável, como também o torna facilmente produtível,

publicável e reprodutível. O indivíduo não necessita mais de intermediários para produzir a

informação, não precisa galgar as hierarquias de centros pré-determinados de emissão;

basta que ele disponha de acesso à tecnologia digital e informática, bem como è rede. Todo

indivíduo se torna simultaneamente consumidor e produtor de informação, leitor e escritor

do hipertexto vivo. Isto modifica fundamentalmente a forma como se dá o contato com o

diverso, com a alteridade: o intermediário, a narrativa sobre o outro, não são mais

necessários, pois ele pode falar por si só. Multiplicam-se as vozes, mas desta vez numa

maneira diversa daquela que havia descrito Vattimo (1992): essas vozes falam não em

terceira, mas em primeira pessoa, não são enquadradas por nenhuma tela alheia; elas

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mesmas falam, editam-se, enquadram-se, se auto-produzem e interagem com seus

interlocutores.

Esta tomada da palavra substitui o habitual monólogo das mídias de massa – sobre

tudo e sobre todos – por uma polifonia social que não respeita o poder cristalizado nas

hierarquias de produção da informação. Como conseqüência, temos uma efervescência de

opiniões e pontos de vista, que resultam na ampliação do dissenso na sociedade. Antes que

isto pareça uma conseqüência negativa, devemos pontuar que o consenso, em cuja

negociação reside a base das dinâmicas de opinião pública numa democracia, não faz

sentido se não houver dissenso.

Quero dizer que, num regime que se apóia no consenso não imposto a partir do

alto, alguma forma de dissenso é inevitável e que apenas onde o dissenso é livre

para se manifestar o consenso é real, e que apenas onde o consenso é real o

sistema pode proclamar-se com justeza democrático. (BOBBIO, 2000, p.75)

O dissenso é um fenômeno totalmente natural em sociedades pluralista como são,

em maior ou menor grau e inevitavelmente, as sociedades agrupadas sob um Estado-Nação.

O dissenso, ou como afirma ainda Bobbio, a sua liberdade e a liceidade, é condição para a

democracia e para uma opinião pública viva. Quanto maior é o dissenso, mais se anima o

debate público.

A tecnologia comunicativa digital permite ao indivíduo tomar a palavra, expressar

seu ponto de vista qualquer que seja, e torná-lo público a outros indivíduos,

independentemente de sua localização geográfica, com os quais pode interagir em tempo

real ou assíncrono. A conseqüência que advém destas possibilidades abertas pelo digital

acena para o ponto de virada da opinião pública na rede – o fim do monopólio do agenda

setting pelos meios de massa. Numa lógica piramidal de produção da informação,

controlada por dispositivos comunicacionais um-todos22, o agendamento do debate público

era feito de acordo com a pauta colocada pelos centros emissores à miríade de receptores,

que realizavam a discussão no ambiente informal do cotidiano, dos seus círculos sociais e

relacionamentos interpessoais, mas raramente no ambiente midiático oficial. Os fenômenos

de opinião pública eram influenciados/mensurados pelos mesmos agentes que os haviam

22 LÈVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999. p. 63

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agendado, e o papel do cidadão comum neste processo parecia relegado à passividade. Nas

redes digitais, cada indivíduo é um produtor potencial de informação conectado a outros, e

pode portanto desencadear, ele próprio, um debate público sobre qualquer tema, debate este

que se desenrola no próprio habitat midiático. No ciberespaço, qualquer pessoa, em

qualquer lugar, pode agendar um tema e debatê-lo com interessados de quaisquer outros

lugares, desde que conectados à rede. Em outras palavras, a opinião pública pode agregar-

se em torno de um tema de qualquer lugar (ou mesmo “sem lugar”), proposto por qualquer

pessoa, de maneira praticamente espontânea. O critério para o surgimento de um debate

público, para a agregação de um público em torno de um tema, não é mais a proximidade

geográfica ou a pertinência local, mas sim os interesses e afinidades.

As interfaces desempenham um papel fundamental neste processo. Há alguns anos,

assistimos ao desenvolvimento exponencial de tecnologias que facilitam não apenas a

produção e edição de conteúdo digital, mas principalmente a publicação deste conteúdo e a

interação com outros usuários da rede, bem como a navegação por esse interminável

oceano informacional. Surgem canais de comunicação completamente desterritorializados e

existentes somente no ciberespaço. “Alguns meios de comunicação (webzines, webTV,

rádios online) só emitem na rede, sem, de todo, utilizar o canal hertziano ou impresso”.

(LÈVY, 2002, p.47) Além disso, a “função midiática”, por assim dizer, produção, edição e

emissão, passa, segundo Lèvy, por um processo de distribuição.

Nestas circunstâncias, todas as instituições, todos os grupos humanos e, em

breve, toda a gente [...], terão de exercer uma função ‘mediática’ de recolha,

formação e difusão de informações. A distribuição da função mediática é um dos

fenômenos mais notáveis do período contemporâneo. (Ibid, p.52)

A esta distribuição midiática corresponde o surgimento e crescente difusão daquilo

que Lèvy chama de “automídias”, referindo-se às webpages pessoais que se transformaram,

num segundo momento, no fenômeno dos blogs, sobre o qual discutiremos com mais

detalhamento posteriormente. A evolução das interfaces e aplicativos, cada vez mais

amigáveis, fomentou a proliferação das “automídias”, cuja criação, utilização e gestão

deixou de ter como prerrogativa um conhecimento avançado de linguagens de

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programação. Através de provedores de plataformas, tornou-se possível criar blogs, fóruns

e grupos de discussão em geral quase instantaneamente por qualquer um.

O surgimento das automídias marca a superação de mais uma fronteira: aquela entre

o público e o privado. Uma vez que se pode publicar qualquer coisa diretamente, a

filtragem intermediária que definia o que merece tornar-se público já não existe mais.

Aquilo que normalmente seria considerado como domínio privado do indivíduo, mesmo

detalhes de sua vida particular, é publicado na rede sem maiores problemas.

Compreende-se então, ao assistir à explosão da diversidade das mensagens, que

a maior parte do que era ‘privado’ não era senão algo público, mas recalcado:

uma palavra que não tinha saída. As pessoas têm muita coisa a dizer, muitas

imagens e músicas a difundir. Têm injustiças a denunciar, sofrimentos a

expressar, histórias a contar, opiniões a dar, perguntas a fazer, poesias a cantar,

testemunhos a partilhar, fotos a mostrar, músicas a dar e ouvir. Este soltar na

palavra, este ‘poder finalmente dizer’, este ‘mostrar’ e ‘mostrar-se’

generalizados é uma das primeiras dimensões da revolução ciberdemocrática.

(Ibid, p.57)

A libertação da palavra, a distribuição/democratização do agendamento de temas e da

função midiática, e a agregação espontânea em torno de interesses e afinidades estão na

base da proliferação das comunidades virtuais na rede. Segundo Lèvy, as comunidades

virtuais são o principal pivô dos fenômenos de inteligência coletiva – sendo um deles a

opinião pública – catalisados por aquilo que o autor chama de “objeto”. “Reconhece-se o

objeto através de seu poder de catálise das relações sociais e de indução da inteligência

coletiva”. (LÈVY, 1996, p.125) Utilizando-se habilmente da metáfora da bola num jogo de

futebol, Lèvy situa a importância do objeto para a inteligência coletiva. Assim como a bola,

o objeto constitui o centro dinâmico e intercambiável do “jogo”, além de ser transcendente

ao próprio grupo que joga, virtual, desterritorializado.

O objeto marca ou traça as relações mantidas pelos indivíduos uns frente aos

outros. Ele circula, física ou metaforicamente, entre os membros do grupo.

Encontra-se, simultânea ou alternadamente, nas mãos de todos. Por esse motivo,

cada um pode inscrever nele sua ação, sua contribuição, seu impulso e sua

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energia. O objeto permite não apenas levar o todo até o indivíduo mas também

implicar o indivíduo no todo. (Ibid, p.130)

Os fenômenos de opinião pública sempre giraram em torno de objetos

transcendentes, os temas agendados pela mídia de massa segundo seus próprios interesses,

em detrimento de outros tantos. A tecnologia digital permite a criação de objetos sem o

intermédio da grande mídia, e a formação de comunidades de interlocutores ao seu redor.

“Ao acolher nas ligações circulantes coletivos inteligentes, a Net é uma acelerador de

objetos, um virtualizador de virtuais”. (Ibid, p.129) Multiplicam-se, assim, os objetos, e

com eles multiplicam-se também os públicos, agregados não mais pelo simples

pertencimento a um mesmo território, mas sim pela afinidade e, fundamentalmente, pela

proximidade semântica.

A maioria das comunidades virtuais são, por natureza, desterritorializadas e

reúnem pessoas que se interessam pelos mesmos assuntos, paixões, projetos,

objetos, sentimentos, idéias, etc., independentemente das fronteiras geográficas e

institucionais. [...] No ciberespaço, as proximidades geográficas não

desapareceram, são redefinidas como uma categoria importante de proximidades

semânticas, como a língua, a disciplina, a orientação política, sexual, etc.

(LÈVY, 2002, p.69)

O território, no ciberespaço, não é mais um limitante da esfera pública por si só;

mais importante que a condivisão de uma mesma paisagem física ou da mesma audiência, é

a condivisão da mesma paisagem de sentido e da mesma língua (que também, vale

ressaltar, limita-se cada vez menos à língua pátria).

Dessa maneira, as comunidades virtuais, simultaneamente produtoras e

consumidoras dos próprios objetos, são os motores da opinião pública no ciberespaço, a

qual se afirma, cada vez mais, como um autêntico processo de inteligência coletiva, e cada

vez menos um fenômeno uno. Talvez se torne cada vez mais difícil falar em “opinião

pública”, diante da multiplicação tanto das opiniões quanto dos públicos. Já não se trata da

opinião pública pretensamente homogênea que é acionada e mensurada pelas mídias de

massa, num processo hierárquico e piramidal – passa de hetero-produzida a auto-produzida.

Trata-se de “uma esfera pública fractal, rizomática, que se refrata em milhões de ângulos

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diferentes nos sítios e nas comunidades virtuais do ciberespaço”. (LÈVY, 2002, p.52) O

próprio conceito de público enquanto categoria delimitada e mais ou menos estanque, não

parece adequado ao novo contexto comunicativo; os públicos tomam a forma de rizomas,

de nós dinâmicos, fugazes e dificilmente apreensíveis. A transformação qualitativa da

esfera pública na era digital assemelha-se às transformações do mercado descritas por Chris

Anderson como “a cauda longa”23: os objetos do debate público multiplicam-se muito além

dos grandes temas propostos pela mídia/mercado tradicional a um público enorme; eles são

variados, tendem ao infinito e contam com fatias de público muito menores, mas nada

inexpressivas quando vistas de perto, estendendo no gráfico uma longa cauda que sobrevoa

o zero, mas não o toca. Como veremos mais adiante, a rede pode às vezes inverter a cauda

longa, trazendo a um público muito vasto debates que não foram agendados ou sequer

mencionados pela mídia tradicional de massa.

Prosseguindo na análise das fronteiras dissolvidas pelo digital, encontramos a

dicotomia entre desterritorialização e contexto. As revoluções comunicativas operaram, ao

longo da história, um destacamento da mensagem do seu contexto de produção, tanto mais

desterritorializada ela fosse. Este divórcio aumenta ainda mais na cultura tipográfica, e faz

com que a mensagem seja construída a partir de um certo princípio de universalidade

pretensamente capaz de suprir as lacunas do contexto não-compartilhado entre autor e

leitor. Com a mídia de massa, especialmente a eletrônica, à recepção da mensagem,

elaborada segundo um conceito homogêneo de público (a massa) e de acordo com

interesses particulares dos emissores, escapam ainda mais as condições e o contexto de sua

produção; não obstante, a maioria dos meios de comunicação de massa baseia-se numa

pretensão de imparcialidade e veridicidade que oculta o inevitável recorte da “realidade” e

seus critérios. Com isso, instaura-se na esfera pública uma opacidade inerente à lógica de

produção dos mass media.

O ciberespaço, por sua vez, representa o ápice da desterritorialização da esfera

pública, tornada ubíqua a qualquer ponto conectado à rede. Entretanto, pela primeira vez, é

possível remontar ao contexto da mensagem, pois instaura-se uma verdadeira relação

23 ANDERSON, Chris. A Cauda Longa: do mercado de massa para o mercado de nicho. Trad. de Afonso Celso da Cunha Serra. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.

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dialógica entre emissores e receptores, escritores e leitores, cujos papéis se misturam e

colaboram mutuamente para a produção da mensagem.

Virtualizante, a escrita dessincroniza e deslocaliza. Ela fez surgir um dispositivo

de comunicação em que as mensagens muito freqüentemente estão separadas no

tempo e no espaço da sua fonte de emissão, e portanto são recebidas fora de

contexto. (...) O texto contemporâneo (...) reconstitui, mas de outro modo e

numa escala infinitamente superior, a co-presença da mensagem e do contexto

vivo que caracteriza a comunicação oral. (LÈVY, 1996, p.38-39)

Não é preciso, ao contrário da cultura oral, conhecer pessoalmente o seu

interlocutor, mas é possível conhecê-lo através do diálogo e das suas referências

hipertextuais. Além disso, o caráter pessoal inerente, por exemplo, às automídias, impede

qualquer pretensão de imparcialidade. Na rede, o conteúdo produzido são assumidamente

opiniões, pontos de vista, não se propõe como “verdade”. O conceito verdade na rede, ao

contrário, não corresponde a um determinado ponto de vista, mas sim a um processo de

reflexão a partir de múltiplos pontos de vista. “Os crédulos e preguiçosos que me

desculpem, mas a verdade não é logo dada (por quem?), é a constante aposta de processos

abertos de coletivos, de investigação, de construção e crítica”. (LÈVY, 2002, p.61) Os

critérios de seleção, edição e produção de conteúdo já não são ocultos – tornam-se, quando

não declarados, mais ou menos explícitos. Assim, muito embora o caráter multifacetado e

fractal das dinâmicas de opinião na rede resultem difíceis de decifrar, a esfera pública

digital é um espaço muito mais transparente do que a esfera pública organizada a partir dos

meios de massa.

Todas essas mutações da esfera pública e da opinião pública condicionam

diretamente profundas transformações na própria democracia, não só porque reside em sua

base, mas também porque o digital transforma qualitativa e profundamente todos os pilares

sobre os quais de apóia o regime democrático. Para Bobbio (2000, p.22), a democracia é

“um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas”. No cerne

dos processos de decisão coletiva, porém, estão os fenômenos de opinião pública, que,

modificando-se, pressionará as estruturas procedimentais democráticas herdadas da era

moderna.

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Em primeiro lugar, a democracia tem um fundamento territorial. Se na Grécia dizia

respeito à pólis, nas democracias modernas a unidade territorial máxima é o Estado-Nação.

Este fundamento local já vinha sendo complexificado pela expansão da infra-estrutura de

transporte e pelos movimentos de migração, bem como pelos mass media, que iniciaram a

globalização da esfera pública. A rede, porém, ultrapassa definitivamente as fronteiras

nacionais e torna ínfimas as distâncias entre o local e o global. As conseqüências que

advêm deste fato são duas, aparentemente antagônicas mas na verdade complementares:

primeiramente, a distância e as fronteiras não significam absolutamente nada para

comunidades, virtuais ou não, que queiram articular-se e cooperar, unidas por motivações,

interesses ou afinidades em comum. A política torna-se global, planetária. “A novidade

trazida pela Internet à mundialização da política reside enormemente na possibilidade, para

os movimentos de oposição ou as organizações ativistas, de se organizarem e se

coordenarem em tempo real à escala planetária”. (LÈVY, 2002, p. 136)

Em contraste, também a política local pode ser revitalizada através da imersão da

comunidade no meio virtual. A comunidade virtual de base local articula-se numa dinâmica

de inteligência coletiva que se reverte em benefícios e desenvolvimento para o próprio

território. Em outras palavras, a comunidade local torna-se um “coletivo inteligente”

(LEVY, 2002, pg 81). “Quanto mais fecundos e criativos estes processos de inteligência

coletiva são, mais a prosperidade e a qualidade de vida da comunidade territorial cresce”.

(Ibid, p.85)

Em segundo lugar, tanto a democracia quanto o moderno conceito de “público”

estão baseados numa concepção individualista e atomística da sociedade.

A doutrina democrática repousa sobre uma concepção individualista da

sociedade. [...] Como é evidente, nenhuma concepção individualista da

sociedade, seja a do individualismo ontológico, seja a do individualismo

metodológico, prescinde do fato de que o homem é um ser social e não pode

viver, nem realmente vive, isolado. Mas as relações do indivíduo com a

sociedade são vistas pelo liberalismo e pela democracia em modo diverso: o

primeiro separa o indivíduo do corpo orgânico da sociedade e o faz viver, ao

menos durante uma parte de sua vida, fora do ventre materno, colocando-o num

mundo desconhecido e repleto de perigos da luta pela sobrevivência; a segunda o

reúne aos outros homens singulares, semelhantes a ele, para que da união

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artificial entre eles a sociedade venha recomposta não mais como um todo

orgânico mas como uma associação de livre indivíduos. (BOBBIO, 2000, p.24)

A idéia de indivíduos artificialmente associados encaixa-se perfeitamente com a

formação dos Estados Nacionais, que ultrapassaram a comunidade, e com o alargamento da

esfera pública, que só foi possível graças à mediação da imprensa, primeira mídia de massa.

O digital, entretanto, rompe as fronteiras entre os indivíduos, ainda que

geograficamente separados, e transforma rapidamente os indivíduos atomizados em

indivíduos interconectados; eles já não são simplesmente reunidos de maneira artificial em

estruturas bem definidas dentro de um Estado que os transcende, mas agrupam-se

organicamente à revelia mesmo de qualquer fronteira. Passamos do individualismo

atomístico para a conectividade, o que provoca grandes mudanças na natureza mesma do

“social”. “O advento da sociedade em rede baseada em forma de comunicações interativas

e, portanto, pós-analógica, nos obriga a pensar a um social pós-estruturalista, onde os

distintos setores, os diversos grupos, as instituições, as empresas passam a se sobrepor e a

reinventar-se através da continua interação e do contínuo acesso aos fluxos informativos.

Um social dinâmico e em contínuo devir, algo diferente de um organismo fechado e

delimitado feito de um conjunto de órgão separados e interagentes, um social hibrido,

perante o qual é necessário repensar o significado da estrutura e da ação social”.24 A

interconexão, segundo Lèvy (1999) o princípio básico da cibercultura, transforma a

homogeneidade da massa numa topologia social irregular e rizomática, em constante

mutação, que não respeita a separação estanque em categorias, estruturas, instituições ou

públicos. Na interconexão dissolvem-se mesmo as fronteiras entre o público e o privado,

entre o que pertence à esfera do indivíduo e aquilo que é de domínio público, exposto e

visível, bem como desaparece o gatekeeping dos mass media entre estas duas esferas.

A democracia moderna, erguida sobre o social atomístico, a noção de público e a

clara distinção entre Estado e sociedade civil, constrói-se a partir de uma lógica piramidal

do poder, da informação e das tomadas coletivas de decisão. Sobre essa mesma lógica,

apóia-se o princípio da representação. Os fluxos de poder e de informação são normalmente

descendentes e unidirecionais, e ao poder ascendente fundador e legitimante do povo são

24 DI FELICE, Massimo. As Formas Digitais do Social. In: Relações Públicas Comunitárias. A comunicação em uma perspectiva dialógica e transformadora. São Paulo: Summus, 2007.

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reservadas poucas oportunidades: a escolha de seus representantes que, uma vez eleitos,

passarão a tomar as decisões indiretamente pela coletividade. Os representantes são aqueles

que dão voz ao coletivo disperso, atomizado e desarticulado, muito embora não sejam

vinculados pelos seus eleitores, pois não devem representar interesses particulares mas sim,

pretensamente, os interesses gerais da nação. Em outras palavras, o objeto – a política – fica

restrito aos representantes, e à coletividade de representados resta como único espaço de

decisão o momento do voto que definirá quem são os “jogadores”.

A representação, ao mesmo tempo em que viabiliza a tomada de decisão pela

coletividade pulverizada, restringe à mesma coletividade os espaços de decisão. Bobbio

fala da quantidade destes espaços como um indicador de democracia, e faz uma importante

distinção entre democratização do Estado (operada pela democracia moderna) e

democratização da sociedade.

Percebemos que uma coisa é a democratização do Estado (ocorrida com a

instituição dos parlamentos), outra coisa é a democratização da sociedade, donde

ser perfeitamente possível existir um Estado democrático numa sociedade em

que a maior parte das instituições – da família à escola, da empresa à gestão dos

serviços públicos – não são governadas democraticamente [...] Hoje, se se deseja

apontar um indicador do desenvolvimento democrático, este não pode ser mais o

número de pessoas que têm o direito de votar, mas o número de locais,

diferentes dos locais políticos, nos quais se exerce o direito de voto; (...) aqui

entendo o ‘votar’ como a forma mais comum do participar, mas não pretendo de

forma alguma limitar a participação ao voto. (BOBBIO, 2000, p.68)

A democratização generalizada da sociedade encontra no digital uma estupenda

aceleração, alavancada pela própria natureza democrática do meio: a rede, antes de tudo,

pressupõe de seu usuário uma postura de participação ativa, fazendo da tomada de decisão

um processo inerente à própria navegação do ciberespaço. Em segundo lugar, promove a

transparência e alarga as possibilidades de informação, interação e discussão. Por último,

possibilita a expressão e organização do dissenso, através da tomada de palavra – em

primeira pessoa – e da democratização da função de agendamento do debate público.

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Quando, em geral, a democracia eletrônica faz pensar em voto eletrônico,

defendo aqui a idéia de que o essencial da renovação democrática da cibercultura

se deve a um aumento de transparência dos governos (e da vida social em geral),

assim como à emergência de novos espaços (virtuais) de deliberação e de

diálogo político. (LÈVY, 2002, p.114)

“Todo problema que interessa à esfera da política pode ser examiado ex parte principis e ex

parte populi”. (BOBBIO, 2000, p.115-116) O recente debate sobre a democracia eletrônica

ou ciberdemocracia, divide-se, normalmente, em dois pólos: e-government e e-governance

O primeiro diz respeito à utilização da tecnologia digital por parte dos governantes para

facilitar ao cidadão a participação, o acesso à informação e aos serviços. Inclui-se aí o voto

eletrônico, por exemplo. O segundo tem a ver com o controle e a monitoração deste mesmo

governo pelos cidadãos, que exigem cada vez mais transparência e participam cada vez

mais ativamente por meio das tecnologias digitais. As duas modalidades de democracia

eletrônica se complementam na relação entre governo e cidadãos, e representam os

primeiros passos da ciberdemocracia. Porém, não encaram ainda as transformações mais

profundas em gestação, e correspondem, grosso modo, mais a uma instrumentalização da

tecnologia digital na otimização das relações entre os dois principais atores do jogo político

do que a uma verdadeira transformação social que alterará esta mesma relação em seu

cerne.

[...] Não se trata de fazer votar instantaneamente uma massa de pessoas

separadas quanto a proposições simples que lhes seriam submetidas por algum

demagogo telegênico, mas sim incitar a colaboração coletiva e contínua dos

problemas e sua solução cooperativa, concreta, o mais próxima possível dos

grupos envolvidos. (LÈVY, 1999, p.195)

Revertendo o movimento proposto por Bobbio (2000) – da democratização do

Estado à democratização da sociedade – a explosiva difusão do ciberespaço iniciou um

processo de democratização social sem precedentes, que não pôde ainda ser acompanhada

pela esfera política, ainda muito presa à lógica analógica e tradicional dos fluxos de poder e

da informação. A sociedade civil, já em grande parte imersa na lógica das redes, começa a

chocar-se contra a esfera política e suas opacidades, questionando-a nas suas bases. “Uma

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vez habituados à eficácia, à simplicidade e à transparência do crescente universo da

economia da informação, a opacidade, o emparedamento e a ineficiência das

administrações públicas torna-se chocante”. (LÈVY, 1999, p.102)

“De qualquer ponto da web se pode encontrar e mostrar praticamente qualquer coisa

que possa ser registrada digitalmente”. (LÈVY, 2006, p.8) O ciberespaço é

indiscutivelmente um grande vetor de transparência, transparência esta que foi colocada por

Bobbio como um dos elementos distintivos da própria democracia: sendo o governo do

público em público, em maior ou menor nível, a democracia encontra na transparência da

esfera pública e na liberdade do dissenso as chaves para o combate às suas próprias

opacidades. “O que distingue o poder democrático do poder autocrático é que apenas o

primeiro, por meio da crítica livre e da liceidade de expressão dos diversos pontos de vista,

pode desenvolver em si mesmo os anticorpos e permitir formas de desocultamento”.

(BOBBIO, 2000, p.116) Este processo se intensifica com a rede, pela sua própria natureza

fractal e transparente. “Estamos a passar de um sistema midiático dominado pela televisão

para uma rede de comunicação que permite a omnivisão”. (LÈVY, 2002, p.37)

A transparência é o elemento-chave da ciberdemocracia, pois transforma

qualitativamente as relações de visibilidade – e, portanto, de poder. Como vimos com

Bobbio, o poder como o conhecemos, assimétrico, piramidal e cristalizado, tem uma

estreita relação com a assimetria da visibilidade, ou seja, a capacidade de ver sem ser visto.

A transparência, por sua vez, liga-se não ao poder, mas à potência, entendida como o poder

que emana de baixo. “A potência está associada à transparência, como o poder o está à

opacidade. [...] A corrida à potência também o é à transparência”. (Ibid, p.40) Esta potência

significa a devolução ao cidadão de uma verdadeira função de controle do seu governo,

função essa distorcida pelos meios de comunicação de massa. O acesso ubíquo e a

“omnivisibilidade” da informação derruba até mesmo os argumento da tecnocracia, pois

através da rede é possível informar-se e aprender sobre praticamente qualquer coisa,

esfumaçando-se as fronteiras entre o especialista e o cidadão comum. “A rede [...] propõe

informações mais abundantes e melhor organizadas sobre a vida política, assim como

instrumentos práticos e quase gratuitos de deliberação, controle dos representantes e ação

política”. (Ibid, p.113)

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A transparência implica não só o aumento da visibilidade, mas a sua simetria,

perturbando as bases de um poder instalado sobre um princípio assimétrico. As opacidades

remanescentes na esfera pública e no Estado tendem a ser cada vez mais questionadas pela

nova lógica da sociedade em rede, que começa não a se impor, mas a reorganizar a

sociedade em todos os seus âmbitos como tecnologia comunicativa que condiciona os

fluxos de informação. “O espaço virtual da rede comanda todos os outros”. (Ibid, p.196) A

generalização da transparência, e portanto o aumento da potência, entra em conflito com a

invisibilidade e a assimetria.

A omnivisão difere da televisão em virtude do fato de que permite a cada um

não só ‘ver de longe’, mas também de escolher por si mesmo a direção na qual

olhar. Difere de uma visão panóptica porque não é assimétrica, não oferece, isto

é, uma visão total, a partir de um ponto central, de uma periferia incapaz de

visão, mas simétrica, enquanto permite ao observador ver tudo de qualquer

ponto. (LÈVY, 2006, p.9)

A simetria, horizontalidade e transversalidade das relações é uma característica

intrínseca ao meio digital, e começa a “contaminar” toda a sociedade, modificando,

inclusive, as tradicionais relações de poder. “O poder dos fluxos é mais importante que os

fluxos de poder”. (CASTELLS, 1999, p.565) Durante toda a história das tecnologias

comunicativas, os fluxos de informação eram centralizados, piramidais e unidirecionais,

condicionando formas de poder que também assumiram a mesma característica. Agora,

porém, a tecnologia que se torna, rapidamente e cada vez mais, o coração pulsante da

sociedade, apresenta características muito diferentes.

“A morfologia da rede também é uma fonte drástica de reorganização das relações

de poder”. (Ibid, p.566) Desta maneira, se a rede re-organiza a sociedade em todos os seus

âmbitos, devemos esperar que os fluxos de poder em rede (se é que podemos chamá-los

assim) sejam transversais, e não mais verticais, multidirecionais, simétricos, e

transparentes. Mantendo-nos fiéis à distinção entre poder e potência feita por Lèvy, talvez

possamos falar de fluxos de potência, e não mais de poder. “Assim se prenuncia o fim de

uma certa razão monológica e o amadurecimento de uma razão política dialogante”.

(LÈVY, 2002, p.123)

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Essa passagem para uma política do diálogo é talvez uma das inovações mais

relevantes trazidas pelo meio digital. A esfera pública, múltipla, fractal, global e

transparente, tende a se transformar num constante conversação coletiva entre os

indivíduos, comunidades e, finalmente, os representantes políticos. Não é mais só no

momento do voto que a opinião pública deve ser escutada; na rede, os governantes devem

ter uma postura constantemente aberta ao diálogo, devem estar acessíveis. Em suma, devem

horizontalizar-se. No meio digital não há espaço para rígidas hierarquias. A rede fluidifica

as hierarquias, a ponto de levar-nos a pensar que romperá, inevitavelmente, mais uma

fronteira, já não tão nítida quanto o era na época moderna: a fronteira entre o Estado e a

sociedade civil. Isto acarretaria uma transformação total da democracia como a conhecemos

hoje. Para começar, recuperemos a metáfora do estádio numa partida de futebol, de Michel

Serres, comentada por Pierre Lèvy. (1996, p.122)

Os espectadores não podem agir sobre o espetáculo que os reúne, todos têm a

mesma função face ao ponto alto, ou ao ponto baixo, de qualquer maneira fora

de alcance, que é o campo. O elo (o espetáculo do jogo) é transcendente em

relação às pessoas que compõem o coletivo. Nas arquibancadas, fazer sociedade

é ser a favor ou contra, torcer por um time, aplaudir os seus, vaiar os outros.

(LÈVY, 1996, p. 122)

A sociedade em rede, contudo, supera a relação entre o espetáculo e a massa de

espectadores. Os limites entre campo e arquibancada se dissolvem. Todos, jogadores e

torcida, governo e cidadãos, podem participar igualitariamente das dinâmicas de

inteligência coletiva que subsidiam as tomadas de decisão e, portanto, a democracia.

Porém, certamente não nos encontramos ainda neste estágio. O poder, ligado

verticalidade e à opacidade, resiste às demandas de horizontalização e transparência.Um

bom exemplo desta resistência ou até, do uso instrumental da rede, é o do atual prefeito do

Rio de Janeiro, César Maia: depois de manter, durante algum tempo, um blog (ou seja, um

meio dialógico de comunicação), o prefeito optou por transformá-lo numa newsletter

enviada por e-mail, (uma lógica unidirecional da comunicação), intitulada, pitorescamente,

de “Ex-blog do César Maia”.

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Vivemos um período de transição, em que coexistem dois tipos de lógica: a

analógica, ligada aos meios de comunicação tradicionais, e a digital. O conflito entre as

duas linguagens – opostas – é tanto inevitável quanto abundante. Por todo o globo, os

cidadãos balançam o alambrado, descontentes da sua posição de espectadores. O que

faremos a seguir é a análise de um dos casos mais interessantes observados da segunda

metade de 2007 até agora: o fenômeno Beppe Grillo, na Itália.

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4. Basta! Livre informação em livre Estado.

4.1. Contextualizações

4.1.1. Ética hacker e ciberativismo

Segundo Pierre Lèvy (1999, p.25), a técnica condiciona, não determina. Isso

significa que cada tecnologia abre uma série de possibilidades, mas não decide, sozinha e à

revelia do ser humano, a configuração social que se produzirá a partir da sua introdução.

“Uma técnica é produzida dentro de uma cultura, e uma sociedade encontra-se

condicionada por suas técnicas. E digo condicionada, não determinada. (...) Dizer que a

técnica condiciona significa dizer que abre algumas possibilidades, que algumas opções

culturais ou sociais não poderiam ser pensadas a sério sem a sua presença”.

O mesmo se aplica ao surgimento da Internet e da sociedade em rede. A tecnologia

digital, como já mencionamos, contém em si possibilidades e características inerentes à sua

natureza. Mas as transformações sociais que ela provoca não podem ser entendidas em sua

complexidade sem levar em conta uma certa predisposição cultural; o campo de

virtualidade e potencialidades gerado pela introdução de uma nova tecnologia só se atualiza

a partir da interação homem-máquina, do relacionamento entre esta tecnologia e o contexto

sócio-cultural em que ela nasce e que a absorve. “A emergência do ciberespaço acompanha,

traduz e favorece uma evolução geral da civilização”. (Ibid, p.25) Também a emergência da

sociedade em rede é inseparável de uma certa cultura e filosofia difusas entre os grupos

humanos que guiaram o seu desenvolvimento. “Estas tecnologias, todas impregnadas de

seus primeiros usos e dos projetos dos seus criadores, nascidas no espírito de visionários,

transmitidas pela efervescência de movimentos sociais e práticas de base, vieram de lugares

inesperados para qualquer ‘tomador de decisões’”. (Ibid, p.27)

Como vimos no capítulo 2, a Internet se desenvolveu de uma forma bastante

imprevisível e espontânea. A sua verdadeira popularização é inseparável das contribuições

voluntárias de alguns usuários, como ocorreu com a criação do modem e do primeiro

navegador com interface gráfica para a web, o Mosaic. Estas contribuições, das quais

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demos apenas um pequeno exemplo, não são fenômenos isolados; estão inscritos no

contexto de um amplo e intenso movimento que foi fundamental para o desenvolvimento

das tecnologias e das redes digitais: o hacker. “A Internet não tem nenhuma direção central

que guie o seu desenvolvimento; ao contrário, a sua tecnologia é desenvolvida por uma

comunidade aberta de hackers”. (DI CORINTO, 2002, p.174)

O movimento hacker surge nos anos 60 entre os estudantes do MIT, e tem um

significado muito diferente daquele que o termo adquire nos anos 80, depois dos esforços

das corporações aliadas à mídia de massa para a criminalização do movimento.

“Originalmente, o termo hacker era utilizado para definir uma solução brilhante a um

problema informático. Mas ao mesmo tempo indicava a cooperação e a liberdade de re-

elaborar e melhorar os produtos intelectuais de outrem, e em primeiro lugar o software”.

(Ibid, p.173) Os estudantes do MIT colaboravam e trocavam informações livremente para

criar e melhorar computadores e softwares. De seus grupos de discussão e trabalho, dentre

os quais destaca-se o Homebrew Computer Club (que contava com a participação de Bill

Gates e S. Wozniac, por exemplo), nasceram muitas das empresas do Silicon Valley. Os

hackers do MIT instituíram um modo de trabalho cooperativo e horizontal, potencializando

a criatividade por meio da livre troca de informações e compartilhamento de saberes.

Formaram verdadeiros coletivos inteligentes, que foram agentes e responsáveis pelo

desenvolvimento e difusão das tecnologias de comunicação em rede. Cria-se a partir daí

uma ética hacker, que atravessaria as décadas e escreveria a história das redes como a

conhecemos. “A ética hacker é fortemente anti-autoritária, se opõe à burocracia e a cada

obstáculo entre o indivíduo e a sua possibilidade de crescer usando um computador”. (Ibid,

p.170)

O fenômeno hacker não se ocupou apenas do desenvolvimento técnico das redes

das tecnologias digitais. No seu interior nasceram diversos movimentos sociais que se

baseavam na ética hacker e no uso da tecnologia para engendrar mudanças na sociedade.

Muitos destes movimentos, como o People Computer Company (Pcc), defendiam a

distribuição do poder do computador ao povo. Outros, como o cyberpunk (movimento

social e literário, ao qual pertence a obra de William Gibson, Neuromancer), geraram ao

seu interno importantes reflexões críticas sobre a mídia e as novas tecnologias da

comunicação, colocando em primeiro plano a questão da informação e da comunicação

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como um direito do indivíduo, e não como um privilégio. A informação livre torna-se uma

reivindicação. “O desenvolvimento das tecnologias da informação criou novas necessidades

para um fundamental direito humano que é aquele da livre, ilimitada e não controlada troca

de informações”. (DI CORINTO, 2002, p.199) Tanto a hackeragem social quanto o

cyberpunk derivam do mito de Prometeu: seja o fogo, o computador ou a informação,

devem pertencer ao povo, e não aos deuses.

A batalha pela livre produção e circulação de informação continua, até hoje, a

motivar a formação de redes no ciberespaço. Nas décadas precedentes, antes mesmo de

existir uma única rede das redes – a Internet – este propósito alimentou a criação, a

multiplicação e a interligação de redes que, entre outras coisas, foram responsáveis por uma

grande quantidade de reflexões e publicações alternativas sobre o assunto, como zines,

revistas e manifestos. Os movimentos antagonizavam com a mídia de massa tradicional,

cuja lógica de produção da informação sempre esteve longe de ser livre e democrática.

Destacam-se movimentos como o Indymedia, cujo lema era “Don’t hate the media, become

the media” (Não odeie a mídia, torne-se a mídia), filosofia que se coloca na base da auto-

produção midiática, ou do fenômeno da “distribuição da função midiática” (LÈVY,

Cibercultura). O Indymedia inspiraria a criação do Media Center de Bologna, na Itália, um

centro hacker de produção, edição e transmissão de informação alternativa à mídia de

massa. A chamada jamming culture também defenderia o uso da contra-informação para

“restituir a consciência ao indivíduo e liberá-la”. (Ibid, p.262)

No plano da hackeragem social, destaca-se a formação da rede Isole nella Rete

(Ilhas na Rede). “O projeto ‘Ilhas na Rede’ nasce da vontade de construir um espaço de

visibilidade na Internet que coloque em relação, entre si e com todo o povo da rede, os

sujeitos ativos no mundo da auto-gestão”. (Ibid, p.227) Mais tarde, cria-se na Itália, a

Freenet e as Redes Cívicas, comunidade virtuais de base territorial (municipais).

A multiplicação e interligação de movimentos como este garantiram uma ampla

atmosfera de apoio ao célebre Movimento Zapatista: as populações do Chiapas, no México,

utilizaram a rede para conectarem-se entre si e com o restante do mundo, tornando pública

e conhecida a sua luta e escapando às arbitrariedades do governo mexicano. O Zapatismo

foi pioneiro e bem sucedido em demonstrar o potencial da rede como vetor de

transformação social e de inversão das relações de poder. E evidenciou, ainda, o caráter

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radicalmente democrático das novas tecnologias: embora estas tenham surgido e

primeiramente se espalhado em países ricos e hegemônicos, tornam-se um vetor poderoso

do fenômeno da multiplicação das vozes, possibilitando a tomada da palavra por uma

população historicamente oprimida. Analogamente, no Brasil, também é notável a

utilização das tecnologias e redes digitais pelas populações indígenas, mergulhadas, deste o

nascimento do país, no silêncio, na opressão e na marginalização promovida pelo Estado

colonizador/paternalista. Essas culturas, assim, ganham voz e fazem-se ouvir, a despeito de

qualquer plano ou vontade política emanada do poder.

A filosofia hacker floresceu e perdurou mesmo com as dificuldades técnicas do

início, com a multiplicidade de redes que nem sempre compatíveis entre si. Estas mesmas

dificuldades foram pouco a pouco superadas a partir da própria ação dos hackers, tanto na

criação de softwares e interfaces, quanto nos esforços para a criação de redes e a sua

interconexão, em nome do bem máximo da livre troca de informações. Os hackers foram

fundamentais para a construção da Internet como ela é hoje, e foram os primeiros a intuir –

ou talvez imprimir – o caráter horizontal, colaborativo e democrático do meio.

Algumas décadas depois, o fenômeno dos blogs, que analisaremos a seguir,

inscreve-se na ética hacker e cyberpunk não sempre com uma dimensão de luta, mas como

a plena realização dos seus ideais. A livre produção e circulação da informação, à revelia

dos meios de comunicação de massa, pode nem sempre ser uma bandeira dos blogs, mas

certamente é uma de suas características inerentes. O blog é um dos melhores exemplos de

automídia disponíveis hoje na rede. No estudo de caso que se segue, em específico,

verificaremos muitos ecos da cultura hacker/ cyberpunk.

4.1.2. O Blog e a Blogosfera: fenômenos de opinião em rede

O blog é um dos fenômenos mais recentes da web e de mais explosiva expansão. Toda a

sua história, dos primórdios até hoje, conta pouco mais que 10 anos. O termo “blog” deriva

do termo “weblog”, criado, em 1997, por Jorn Barger25, ao se referir a uma página onde o

25 Jorn Barger é um blogueiro americano, autor do blog Robot Wisdom, um dos primeiros weblogs. Barger cunhou o termo weblog para descrever o processo de “desbravar a web” (logging the web). Fonte:

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internauta “linka”, comenta e recomenda páginas que tenha achado interessantes. A palavra

weblog deu lugar ao diminutivo blog, modalidade que, em 1999, já contava com uma

pequena comunidade, baseada na “linkagem” mútua. “Os blogueiros referenciavam

entradas interessantes em outros blogs, normalmente adicionando suas opiniões. Créditos

eram concedidos a um blogueiro individual quando outros reproduziam os links que este

havia encontrado. Devido à freqüente interligação entre os blogs existentes na época, os

críticos chamaram os blogueiros de incestuosos, que por sua vez sabiam que amplificavam

as vozes uns dos outros quando criavam links entre si”. 26

No mesmo ano, surgiram plataformas para a criação automática de blogs, como o

LiveJournal e o Blogger. Este foi um momento decisivo para a história dos blogs, pois

permitiu o acesso a esta mídia mesmo a quem não tivesse conhecimentos de HTML. “Tal

tecnologia tornou-se disponível a um público muito vasto (em teoria ao público todo da

rede) graças à difusão, a partir de 1999, dos blog server provider”. (DI FRAIA, 2007, p.23)

Com apenas alguns cliques, qualquer pessoa pode criar o seu próprio blog, cujo sistema e

interface gráfica são oferecidos pelo servidor, em geral gratuitamente. É claro que o

domínio da linguagem de programação influencia no nível de personalização do blog, mas

via de regra este conhecimento deixou de ser um requisito; mesmo sem saber programar, é

possível criar um blog e até mesmo aprender com ele. As plataformas para a criação de

blogs também alteraram substancialmente o seu conteúdo: ao invés de conter apenas links

comentados, os blogs passaram a conter textos livres. Isto ocasionou uma explosão de

diversidade das mensagens, pois era possível publicar então qualquer coisa, a exemplo dos

blogs diaristas, onde o autor narra a sua vida pessoal e cotidiana.

Atualmente, os maiores blog server providers são o Blogger e o WordPress.

Os primeiros blogueiros temeram que as plataformas automáticas de blogs

matassem aquilo que consideravam a essência da linguagem do blog: a rede de links, ou,

em outras palavras, a linguagem hipertextual. Já em 2000, porém, este recurso foi

incorporado ao Blogger, assim como aplicativos, desenvolvido por hackers, que permitiam

aos leitores comentar aquilo que o autor havia publicado.

WIKIPEDIA, the free enciclopedia. [S.I.]:[s.n.], 2008. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Jorn_Barger> . Acesso em 7 jun. 2008.

26 WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Blog. [S.I.]:[s.n.], 2008. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Blog>. Acesso em: 20 mai. 2008

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Dessa maneira, o blog começava a tomar uma forma parecida com a que tem hoje.

A introdução dos sistemas de publicação de blogs, automáticos e gratuitos, somada às

interfaces gráficas que eles forneciam, provocou uma expansão sem precedentes do

fenômeno blog e de uma comunidade cada vez maior que se convencionou chamar de

Blogosfera. “Em 1999 o número de blogs era estimado em menos de cinqüenta; no final de

2000, a estimativa era de poucos milhares. Menos de três anos depois, os números saltaram

para algo em torno de 2,5 a 4 milhões. Atualmente existem cerca de 70 milhões de blogs e

cerca de 120 mil são criados diariamente, de acordo com o estudo State of Blogosphere. 27”28

O blog, hoje, é uma “automídia” plenamente consolidada, dotada de um sistema

para a gestão e publicação de conteúdo – hoje, multimodal – bem como para a interação

com os visitantes. Seu conteúdo é estruturado de maneira cronologicamente inversa, através

27 TECHNORATI. Disponível em: <http://www.technorati.com> 28 WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Blog. [S.I.]:[s.n.], 2008. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Blog>. Acesso em: 20 mai. 2008

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de posts ou postagens, que são publicações datadas mostradas na ordem da mais recente

para a mais antiga. Dessa maneira, cada post do blog representa a cristalização de um

momento, assincronamente acessível, e, de certa forma, documenta a própria história e

evolução do blog desde a sua criação. “Os blogs são feitos de tempo. São tempo

cristalizado em um suceder-se de posts que na cronologia temporal inversa encontram a

própria forma de apresentação e a própria ordem conceitual”. (DI FRAIA, 2007, p.87)

O blog reside exatamente no difuso limiar entre público e privado na rede.

Altamente personalizável, seu formato pressupõe a existência de um ou mais autores que

produzam conteúdo e gerenciem o blog. Não apenas escrever no blog, mas também

organizá-lo – definir sua interface gráfica, suas imagens, o perfil do autor, os links

favoritos, vídeos e músicas – significa, do ponto de vista do autor, expor-se, tornar pública

uma dimensão privada de si, num efeito Moebius: “a passagem o interior ao exterior e do

exterior ao interior”. (LÈVY, 1996, p.24) A própria natureza da mensagem é em si uma

publicação de algo privado: escrever num blog, sozinho ou em grupo, significa

necessariamente expressar uma opinião pessoal. Mesmo quando se trata de uma seleção de

outros conteúdos, trata-se de uma seleção por critérios pessoais. E isso não só é o esperado

de um meio diretamente gerido por um ou alguns indivíduos, como também tornou-se uma

das características distintivas deste meio de comunicação. Ao contrário da mídia tradicional

(e da própria tradição racional-universalística moderna), que privilegia a imparcialidade e

neutralidade – camuflando, quase sempre, interesses privados no vulto impessoal do

“público” – a credibilidade do blog reside exatamente no assumir a parcialidade, a

pessoalidade, a não-neutralidade da produção da mensagem. O blog não é o lugar da

verdade, como se propuseram tantas vezes os meios de comunicação de massa. O blog é o

domínio da opinião, por excelência.

Cada post possui duas áreas definidas: aquela do texto publicado pelo autor, e

aquela dos comentários dos leitores, mais ou menos moderados pelo próprio autor – ou

pelos próprios leitores. Ambas são fundamentais à construção do conteúdo e se

condicionam mutuamente.

A abertura como traço substancial da textualidade do blog encontra ulterior

confirmação objetivando-se na possibilidade oferecida aos leitores de deixar os

próprios comentários aos posts lidos. Tal possibilidade – que o blogueiro pode

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decidir ativar ou não no próprio blog – é, em certo sentido, o coração mesmo do

formato; o dispositivo através do qual se gera a energia motivacional que

caracteriza o blogging e captura o blogueiro. [...] O blog tem, por isso, uma

natureza intrinsecamente multi-autorial. (DI FRAIA, 2007, p.86)

Sendo o espaço personalizado e administrado pelo autor, o blog define de forma

aparentemente clara as posições do autor e do leitor. Mas ele na verdade instaura entre os

dois uma verdadeira relação de leitura-escrita, caráter distintivo do conteúdo hipertextual.

Os comentários fazem parte do post tanto quanto o texto do autor, guiam-lhe o sentido,

exploram-lhe caminhos, questionam-lhe, acrescentam-lhe links. No fim, aquilo que resulta

um post é a atualização de uma grande interação coletiva, entre autores e leitores, mas

também dos leitores entre si.

Por isso, o blog acaba se configurando não como o espaço do autor que difunde a

sua mensagem para uma audiência, mas sim como uma verdadeira comunidade virtual, que

se agrega em torno de objetos de discussão de toda natureza, agendados pelos próprios

blogs. A comunidade virtual do blog é formada, de maneira geral, por pessoas que

compartilham o mesmo universo lingüístico/ semântico, mas que não necessariamente

condividem o mesmo espaço geográfico ou se conhecem. É composta pelos autores,

leitores-escritores assíduos, leitores eventuais, além de outros blogs que a ele se linkam e o

comentam, seja por afinidade ou por oposição. Seu grau de estabilidade varia de acordo

com a idade do blog e a periodicidade de seus posts. A interação entre seus membros é de

natureza assíncrona, uma vez que não interagem em tempo real, como num chat, mas sim

deixam registrados os seus textos, cada um a seu tempo, como num fórum de discussão; o

tempo do post é o que desencadeia as reações da comunidade. Fraia (2007, p.98) nos fala

da Blogosfera como a “parte realmente habitada da Internet”, pois cada blog corresponde a

uma identidade, em uma dinâmica contínua e mútua de heterogênese junto às outras

identidades que ali circulam e que a ela se ligam. O blog se torna um nó na rede, e a

blogosfera uma rede dentro da rede. Talvez nessa rede, formada por milhões de nós – cada

um deles contendo uma comunidade virtual e um universo de discussão diferente – a esfera

pública fractal de Lèvy encontre o seu melhor reflexo. “A Blogosfera, de infra-estrutura dos

conteúdos transformou-se em infra-estrutura da discussão”. (Ibid, p.98)

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Encontrar um modo de explicar os complexos fenômenos de opinião na Blogosfera

é algo realmente complexo. O blog, nó da Blogosfera, agrupa em torno de si uma

comunidade, para a qual se torna o ponto de encontro na rede. As comunidades, por sua

vez, mantêm entre si relações transversais. Cada blog possui a capacidade de agendamento,

podendo propor um tema diferente a cada post (dentro, geralmente, do universo de

afinidades em que ele se insere). Estes temas são debatidos pela comunidade diretamente

ligada ao blog, mas também podem repercutir em áreas diferentes da Blogosfera, ou mesmo

modificar sua topologia, incitando, por exemplo, a criação de novos blogs relacionados ou a

popularização de outros já existentes.

Em meio a este “caos” mutante, surgiram aplicativos e recursos capazes de facilitar

a navegação na Blogosfera. O aumento exponencial do número de blogs e a diversidade das

suas rotinas de postagem tornaram cada vez menos viáveis as visitas a cada um dos blogs

que se quisessem ler. Neste contexto, a tecnologia RSS29 (Really Simple Syndication)

permite receber, de maneira compacta e homogênea, as atualizações de todos os blogs

escolhidos numa única página, o agregador de conteúdo. Dessa maneira, tornou-se possível

acompanhar, sem muito empenho de esforço e tempo, um grande número de blogs.

Alguns sites também se especializaram na tarefa de organizar a blogosfera.

“Technorati, BlogPulse e IceRocket são, no momento em que escrevemos30, as principais

sociedades que se ocupam da indicização dos blogs e fornecem dados quantitativos a

respeito das características e da evolução do fenômeno”. (DI FRAIA, 2007, p.28) Estes

sites organizam os blogs e seus posts, criando entre eles uma hierarquia de visualização na

página, a partir do seguinte critério: a quantidade de links. Quanto mais um post é linkado

por outros blogs, mais o blog se torna relevante e ganha posições no ranking de

visualização.

Eis porque nas lógicas da web os links ‘cessaram de ser simples conectores entre

páginas da web, tornando-se indicadores de valor dos conteúdos aos quais

remontam’ (Granieri, 2005, pg 40). Este princípio, desenvolvido

espontaneamente em rede, foi incorporado e implementado em algoritmos de

cálculo que consentem ao Google de estabelecer o Page Rank de um

29 O RSS é uma ferramenta que permite agregar conteúdos dinâmicos de diversos sites e blogs num só página, o agregador. O conteúdo é, assim, atualizado automaticamente. 30 2006.

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determinado site, mas do mesmo modo operam substancialmente as empresas

que monitoram a Blogosfera indicando, instante por instante, a notoriedade de

cada blog em singular. Quanto mais um site ou um blog é linkado por outros,

mais é visível em rede, mais tem valor. (Ibid, p.103)

Podemos dizer então que estes sites detectam a “densidade” hipertextual dos blogs a

cada post, ou, em outras palavras, que permitem saber não só quais são os blogs mais ativos

como também são capazes de medir os fenômenos de opinião na Blogosfera, tornando-os

mais facilmente navegáveis. É possível saber a quantidade de “reações” (links) dos outros

blogs em relação a um determinado post, e visitá-los um a um. Pode-se inclusive verificar

os assuntos que mais agitaram as discussões na Blogosfera, através do monitoramento das

tags31 – palavras-chave que são associadas a cada post.

Os fenômenos de opinião na Blogosfera assumem o aspecto de uma reverberação

múltipla, simultânea e heterogênea. Cada novo post desencadeia um efeito de ressonância

em determinadas regiões da Blogosfera, de acordo com os links tecidos transversalmente

entre diferentes blogs e comunidades. Estes fenômenos também provocam a reorganização

constante da paisagem hipertextual, ocasionando o estabelecimento de novos links, novas

agregações e nós. Graças ao recurso do RSS, cada leitor torna-se também um pequeno nó

da rede, podendo estar envolvido com diversos blogs e discussões.

Cientes do poder dos fenômenos de opinião da Blogosfera e de seu caráter viral,

alguns blogueiros vêm desenvolvendo ações interessantes de ciberativismo, não só

promovendo as discussões a partir de seus blogs, mas realizando verdadeiras campanhas de

opinião na Blogosfera. Estas campanhas consistem numa espécie de “panfletagem”: a

difusão de algum símbolo visual – um selo, um banner, um link, a cor do fundo, etc –

desenvolvido pelos blogueiros e disponibilizado na forma de código HTML. Facilmente

replicável e aplicável a qualquer blog, o símbolo integra-se à interface gráfica. Outra

estratégia comumente adotada é a postagem simultânea sobre um determinado assunto, com

tags determinadas, em um dia marcado. Esta ação visa a acionar exatamente os sites de

indexação, como o Technorati, aumentando a visibilidade sobre o assunto em questão e

alavancando uma grande discussão na Blogosfera.

31 Tags são palavras-chave associadas a um conteúdo, permitindo um sistema de classificação não formal.

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Um excelente exemplo de campanha ciberativista realizada pelos blogueiros foi a

campanha Free Burma, contra o governo ditatorial na Birmânia e a repressão aos

movimentos dos monges budistas. Toda a questão, aqui, tem seu cerne na Internet: através

de câmeras e celulares, os cidadãos birmaneses começaram a gravar e transmitir via

Internet o que vinha acontecendo no país – a violência e a corrupção do governo militar.

Alguns blogs de birmaneses residentes do exterior, como o do blogueiro Kohtike (http://ko-

htike.blogspot.com/) tornaram-se os centros de difusão destas imagens, que rapidamente se

espalharam pela rede e pelo globo, denunciando abertamente um dos regimes mais

fechados do mundo na atualidade. Mesmo quando a junta militar da Birmânia cortou o

acesso à Internet no país e tirou do ar os blogs mais ativos, a informação já havia se

disseminado e sensibilizado grande parte da Blogosfera. Foi feita, então, uma campanha

entre os blogueiros que, através da replicação de um selo e de postagens massivas,

multiplicaram as informações e o debate sobre o ocorrido na Birmânia.

http://www2.free-burma.org/index.php 1

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100

Selo replicável.

A campanha Free Burma é também um grande exemplo de que os fenômenos de

opinião da Blogosfera já não ficam restritos à mesma. A discussão passou do ciberespaço

ao mundo físico, chegando a atingir mesmo a mídia tradicional. É um sinal de que as

dinâmicas de opinião em rede já começam a afirmar sua força e ultrapassar o espaço virtual

para alastrar-se pelo mundo offline.

Analisaremos a seguir o caso do blog do comediante italiano Beppe Grillo, que se

tornou um fenômeno de força e proporções tanto significativas quanto inesperadas, e

representa um dos melhores exemplos do atual conflito de paradigmas entre a nascente

sociedade em rede e a sociedade analógica, construída sobre as tecnologias comunicativas

tradicionais, cuja lógica impregna ainda a maior parte das instituições, especialmente a

nível político.

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101

4.2. O Blog de Beppe Grillo

4.2.1. Quem é Beppe Grillo

Beppe Grillo, nome artístico de Giuseppe Piero Grillo, nascido em Gênova em

1948, é um famoso comediante italiano, com uma longa trajetória de sucesso. Sua carreira

começa no fim dos anos 70, descoberto por um famoso apresentador italiano, Pippo

Baudo32, e logo se tornam freqüentes as aparições na TV. Os anos 80 são marcados por um

grande número de shows televisivos e filmes, e um crescente sucesso junto ao público.

Porém, já nesta época e com mais intensidade nos anos 90, Beppe Grillo já começava a

revelar o seu gosto pela contundente sátira política e o seu envolvimento com as questões

econômicas e ambientais. Sua crítica dura foi gradualmente afastando-o do ambiente

televisivo. “Substancialmente, os anos 90 de Grillo marcam a sua passagem dos mass

media aos teatros e às praças, onde ele constrói uma relação diversa com o público graças a

espetáculos como Cérebro e Apocalipse Mole33 ”. 34

32 WIKIPEDIA, L’enciclopedia libera. Pippo Baudo. [S.I.]:[s.n.], 2008. Disponível em: < http://it.wikipedia.org/wiki/Pippo_Baudo >. Acesso em: 20 mai. 2008. 33 Em italiano, Cervello e Apocalipse Morbida. 34 WIKIPEDIA, L’enciclopedia libera. Beppe Grillo. [S.I.]:[s.n.], 2008. Disponível em: < http://it.wikipedia.org/wiki/Beppe_Grillo >. Acesso em: 20 mai. 2008.

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102

A partir do ano 2000, Beppe Grillo faz uma série de espetáculos que têm a crítica

social, política e ambiental como elemento integrante e distintivo. Em 2005, decide abrir o

blog http://www.beppegrillo.it, que desde seu nascimento obtém uma grande visitação

(cerca de 160.000 acessos por dia, segundo o próprio blog).

Apenas na segunda metade de 2007, porém, tomei conhecimento da existência do

blog de Beppe Grillo, por ocasião do avassalador fenômeno do V Day, evento promovido

através do blog convocando os cidadãos italianos a irem às praças para protestar contra a

presença, no Parlamento, de deputados condenados pela Justiça, e também para assinar uma

proposta de lei popular (para proibir tanto a candidatura quanto o mandato de pessoas com

“pendências” judiciais, bem como a extensão do mandato por mais de oito anos). O evento

teve um sucesso surpreendente e colocou o blog sob a atenção internacional, bem como

desencadeou um fenômeno inédito de opinião pública e ativismo na Itália.

4.2.2. Conjuntura italiana

A Itália é um dos mais tardios Estados-Nação modernos da Europa. Unificada como

nação apenas em 1861, o país nasce como uma monarquia e se torna uma república apenas

em 1946, tendo sido o regime democrático interrompido pelo fascismo por 20 anos.

Atualmente, seu regime político é a democracia parlamentarista; o Parlamento é composto

pela Câmara dos Deputados e pelo Senado da República. O sistema eleitoral combina

método majoritário e proporcional, sendo 75% dos representantes escolhidos pelo primeiro

e 25% pelo segundo. Todos os cidadãos maiores de 18 anos podem votar para a Câmara,

mas apenas a partir dos 25 anos podem votar para o Senado.

O país, cuja pirâmide demográfica é invertida, apresenta uma série de

peculiaridades e complexidades que devemos apontar. Em primeiro lugar, é fortemente

hierarquizado em praticamente todos os setores da sociedade: escola, mercado de trabalho,

Estado. A burocracia é uma das maiores do mundo. A Itália também enfrenta o problema

dos poderes para-estatais e criminosos, como a máfia, que dilacera a sociedade e desafia o

Estado, chegando a controlar inteiras populações através do medo. No interior da máquina

estatal, a corrupção atinge níveis muito maiores que a média dos países ricos da Europa.

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103

A Itália passa atualmente por uma fase política e economicamente difícil. Tendo

previsões de crescimento praticamente zero em 2008, enfrentou a queda do governo Prodi e

a falência da esquerda, na única chance que teve de subir ao poder, historicamente nas

mãos da direita e até então nas mãos do polêmico Sílvio Berlusconi. Considerado o terceiro

homem mais rico da Itália, o político e empresário italiano é acusado de corrupção e

ligações com a máfia, sendo famoso pela produção de leis ad personam, para beneficiar a

si, seus aliados e seus negócios. Os preços cada vez mais altos, os salários baixos, a

precariedade dos empregos e a dificuldade de ingressar no mercado de trabalho qualificado

geram grande insatisfação na população, especialmente entre os jovens. Nas últimas

eleições, em abril de 2008, sobre novamente Berlusconi ao poder, iniciando um governo de

vocações algo xenófobas e autoritárias, e inaugurando um Parlamento de direita e

praticamente sem oposição.

A situação da mídia de massa italiana também é bastante peculiar. Praticamente a

totalidade dos canais de televisão – divididos entre o duopólio RAI e MediaSet –

encontram-se subordinadas ao poder político. O proprietário da rede MediaSet é o próprio

Berlusconi. A mídia rádio-televisiva é regulada, atualmente, pela Lei Gasparri35, criticada

por reforçar o duopólio e inibir o pluralismo, através do aumento do limite anti-truste. A lei

foi considerada inválida pela União Européia, e se continuar vigente em 2009, o Estado

italiano deverá pagar uma multa de 300 a 400 mil euros por dia.

Os jornais podem receber financiamento do Estado, vinculando-se a partidos. “Com

a Lei 416/1981, que regula o financiamento público a publicações jornalísticas de partido,

criou-se um vínculo de dependência financeira entre os partidos políticos e a informação.

[...] Para ser declarado de partido, a um jornal é suficiente o bem-estar de dois

parlamentares”.36 Os jornalistas, para exercerem a profissão, devem credenciar-se à Ordem

dos Jornalistas, criada em 1925 por Mussolini e também ligada ao poder estatal.

Curiosamente, a mesma Itália de população minoritariamente jovem e muitas vezes

reacionária, do atraso nas telecomunicações e da mídia subserviente, é um país que conhece

um grande desenvolvimento das redes digitais, a exemplo da digitalização das Regiões e da

35 WIKIPEDIA, l’enciclopedia libera. Legge Gasparri. [S.I.]:[s.n.], 2008. Disponível em: <http://it.wikipedia.org/wiki/Legge_Gasparri> . Acesso em: 7 jun. 2008. 36 WIKIPEDIA, l’enciclopedia libera. V2-Day [S.I.]:[s.n.], 2008. Disponível em: <http://it.wikipedia.org/wiki/V2-Day>. Acesso em: 7 jun. 2008

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multiplicação de pontos de acesso wireless gratuito à rede. O movimento hacker italiano

também foi bastante expressivo, destacando-se grupos hacker como o Decoder37 de Milão e

as conferências hacker no Forte Prenestino, em Roma. Também não são poucos os estudos

sobre a comunicação no âmbito digital, a exemplo de muitos dos autores utilizados como

referência neste trabalho.

4.2.3. O Blog

Comecei a observar o blog de Beppe Grillo a partir de setembro de 2007, e mais

intensamente há cerca de 3 meses. Procurarei descrever o observado sobre o blog neste

período.

O blog possui um layout estruturado em duas colunas; na da esquerda, localizam-se

os posts e comentários. Na da direita, há uma grande seqüência de banners-links sobre os

mais variados temas, de publicidade dos livros e DVDs de Grillo a iniciativas apoiadas e 37 Ver mais em Hacktivism, de Arturo Di Corinto.

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difundidas pelo blog, como as Listas Cívicas e os Meet Up. O blog é trilíngue, estando

disponível em italiano, em inglês e em japonês, o que significa que está acessível a pelo

menos três comunidades lingüísticas (embora não esteja, talvez, igualmente acessível

semanticamente, uma vez que se torna de difícil entendimento a quem não partilhe

minimamente da cultura e realidade sócio-político-econômica italiana). Cada post tem uma

quantidade de comentários que supera com facilidade a ordem do milhar, organizados em

páginas com 250 comentários cada uma. Do ponto de vista da navegação, porém, o blog

não é muito eficiente, pois é um tanto difícil encontrar uma informação que não venha

imediatamente disposta nos banners laterais. O blog de Beppe Grillo não se assemelha

muito, graficamente, à grande maioria dos blogs disponibilizados pelos blog server

providers, como Blogger e Wordpress, e recursos como Arquivo ou Nuvens de Tags não

estão imediatamente disponíveis na primeira página ou não estão presentes no blog.

Os posts têm periodicidade diária, ou, no máximo, a cada dois dias. Há diversas

maneiras de acompanhar as atualizações do blog: via RSS, através de um agregador de

conteúdo; visitas diretas, uma vez que a periodicidade dos posts é regular; ou ainda,

inscrevendo o endereço de e-mail para receber uma espécie de resumo (La Rete Del Grillo)

que inclui: o novo post, o melhor comentário ao post anterior, e um e-mail escrito a Beppe

por alguém, e divulgado somente através deste recurso de newsletter, que inclui também

uma foto ou imagem enviada por algum leitor e um vídeo.

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Os posts têm sempre uma linguagem multimodal, ou seja, combinam texto e

imagem ou vídeo.

O sistema de comentários é bastante interessante. Os comentários, como os posts,

são aqui organizados de forma cronologicamente inversa, e a sua posição na página é

definida pela quantidade de votos que os demais leitores dão a cada comentário. Cada leitor

pode votar uma vez em cada comentário. Dessa forma, os comentários passam por uma

espécie de “seleção natural”, promovida de maneira espontânea e colaborativa pelos

próprios leitores. Não é incomum ver, em alguns comentários contendo propostas ou idéias,

apelos aos colegas para que os votem; e, se a idéia acaba sendo abraçada por um punhado

de leitores, estes comentários normalmente conseguem chegar ao topo da página.

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É possível deixar um comentário através do preenchimento de um formulário com a

identificação e o texto, sendo requisito para a publicação a verificação da validade do e-

mail. Uma outra opção, para os leitores mais assíduos, é tornar-se um “comentador

certificado”, ou seja, cadastrar-se e escolher um apelido pelo qual o usuário será

identificado, sempre que entrar no sistema e deixar qualquer comentário. Os comentadores

certificados são distintos por um ícone verde de “visto”, e a eles é reservado o direito de

votar os comentários, bem como de “marcá-lo como inapropriado”.

A possibilidade de o leitor possuir uma identidade constante no blog que

acompanha é bastante significativa para a constituição e a consolidação de uma

comunidade de leitores assíduos que participam e começam a reconhecer-se uns aos outros,

não só pela sua linguagem, assinaturas e expressões distintivas utilizadas em seus textos,

mas também por seus apelidos. A comunidade de leitores é formada por pessoas que não se

conhecem e provêm de lugares e realidades diferentes; pessoas que fora do mundo virtual

muito provavelmente nunca chegariam a se encontrar. No blog, como em outros espaços de

encontro na rede, não existe uma situação, um frame, pré-existente à comunicação; é o

ambiente simbólico criado pelo blogueiro, bem como os próprios fluxos de comunicação no

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seu interior a criarem a situação. “Provavelmente pela primeira vez na história humana, é a

troca comunicativa a constitui-se como ‘lugar do próprio acontecimento’ (Rivoltella, 2003,

p.142)”. (DI FRAIA, 2007, p.100) Por isso, o contato com o outro no ambiente virtual pode

ser considerado igualitário, enquanto liberto dos condicionamentos sociais; além disso, a

identidade dos interagentes se constitui na palavra. “Cada um é considerado não por aquilo

que visivelmente parece ou pelos papéis que personifica abstratamente, mas por aquilo que

efetivamente ‘faz com as palavras’”. (Ibid, p. 101) O apelido faz com que exista um

registro, um histórico da palavra do participante, logo, uma construção identitária. “Nos

fóruns de discussão, que mantêm registros dos interventos, pode ser mais vantajoso manter

constante o próprio perfil identitário de modo a adquirir uma própria visibilidade e um

próprio papel ao interno do grupo”. (Ibid, p.98) O estabelecimento, a partir daí, de uma

comunidade mais ou menos estável, permite a intensificação da interação e discussão entre

seus membros, além de promover o bom funcionamento dos mecanismos competitivos-

coolaborativos de auto-regulação.

Dessa maneira, torna-se bastante viva a interação e a discussão entre os leitores,

ainda que no blog de Grillo, por exemplo, não se veja a participação do autor na discussão

dos próprios posts, fato mais de uma vez criticado pelos próprios leitores. Outro detalhe da

organização dos comentários revela o potencial de multiplicação e multifacetação do

debate: cada post possui uma sessão “Discussão”, um segundo nível que contém as réplicas

ao post em particular, e que fica oculto a menos que se clique no link. Cada post, cada idéia

colocada, pode virar uma discussão independente, entre um certo número de leitores.

4.2.4. Fenômenos de opinião

Em seu blog, Beppe Grillo se ocupa, grosso modo, de discutir a política e a

sociedade italiana, com um forte tom de denúncia, escárnio e, freqüentemente, de ataque à

classe política. Os temas abordados pelos posts, no entanto, são bastante variados,

incluindo, não raramente, assuntos internacionais, como no caso da repressão chinesa ao

Tibet. É comum a publicação de posts baseados em depoimentos, apelos e cartas enviados

através da rede. Há também a publicação periódica dos “Comunicados Políticos”, posts

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mais gerais e conceituais em que Beppe pontua a sua visão sobre a política na sociedade em

rede, em oposição à política institucionalizada feita pela classe de dirigentes, e sobre a

importância da informação livre, em contraste com a informação manipulada pelos mass

media. De maneira geral, nos últimos tempos os posts do blog têm se dividido nos

seguintes assuntos: política italiana; o direito à livre informação; a questão do lixo em

Napoli; a questão energética (incluindo as polêmicas sobre a instalação de usinas nucleares

e incineradores), e a questão da segurança no trabalho (diante das freqüentes mortes de

trabalhadores em acidentes nos locais de trabalho).

Desde 2007, o blog de Beppe Grillo tem ganhado uma relevância cada vez maior na

Blogosfera, batendo recordes de acessos diários e figurando entre os 20 primeiros blogs na

classificação do Technorati (cujo critério, lembremos, é a quantidade de links que se

referem ao blog e suas postagens). Além disso, em abril de 2008, o blog de Beppe ficou em

primeiro lugar numa votação mundial realizada pela Times (Time.com’s First Annual Blog

Index).

Classificação entre os Top 100 Blogs do Technorati em 2/6/2008.

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Time.com’s First Annual Blog Index.

Cada post mostra o número de “blog reactions”, ou seja, o número de blogs que o

linkaram até o momento, segundo o próprio Technorati. Este é um indicador de como o

debate agendado pelo blog tem se espalhado para além da sua própria comunidade direta,

modificando até mesmo a própria topologia da blogosfera – alterando a sua paisagem

hipertextual, ou seja, a rede de links que corresponde à área de repercussão do blog, e

estimulando o surgimento de novos blogs, aliados, como o Generazione V

(http://generazionev.blogspot.com) ou de oposição, como o Antigrillo

(http://antigrillo.wordpress.com/).

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Blog Reactions.

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113

Blog Generazione V.

Blog Antigrillo.

A comunidade virtual do blog desenvolveu-se paralelamente na Blogosfera e no

Youtube, o site mais popular do mundo atualmente para a publicação de vídeos. Uma vez

que os posts do blog quase sempre incluem um vídeo, produzido pelo autor e seu staff ou

por qualquer outra pessoa, estimulou-se a produção e a multiplicação de vídeos sobre as

temáticas discutidas, fazendo surgir uma comunidade de videomakers relacionada ao blog,

pessoas comuns que espontaneamente produzem vídeos e os publicam no Youtube.

Constituiu-se, assim, uma considerável videografia sobre Beppe Grillo e os assuntos

debatidos em seu blog, à qual é possível ter acesso graças à classificação dos vídeos por

tags, que os mantém unidos em um mesmo universo de vídeos relacionados. A utilização de

sites como o Youtube ou o Flickr (para fotos) para a publicação de conteúdo guarda certa

semelhança com a função do Media Center de Bologna, um centro hacker de difusão de

conteúdo e informações alternativas. No Media Center, era possível editar e transmitir o

conteúdo. Com a larga difusão do computador pessoal, cada usuário passa a ter uma

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unidade de edição, e pode utilizar o Youtube como meio de difusão. Podemos dizer que o

Youtube é uma espécie de Media Center virtual, que se desterritorializa e se torna

globalmente acessível.

O blog de Beppe Grillo também faz amplo uso das “panfletagens” e campanhas de

opinião, que já mencionamos anteriormente, através de selos, banners e outros sinais

gráficos elaborados pelo blog e disponibilizados para a difusão em outros blogs. O exemplo

mais atual, no momento em que escrevemos, é a campanha “Nucleare? No, grazie!”

(Nuclear? Não, obrigado!), promovida por meio de um pequeno selo amarelo que se acopla

ao canto da página.

Selo “Nucleare? No, grazie!”

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Banner “Passaparola”.

A vantagem deste tipo de ação é que mantém a atenção sobre o tema mesmo que ele

não esteja presente no post mais atual. No ritmo de produção do blog, a publicação de um

novo post muda o foco do debate, tirando imediatamente a atenção sobre o post anterior,

que se torna obsoleto. O blog é uma mídia à qual a instantaneidade é inerente, e o novo post

faz com que o anterior perca sua atenção e seu dinamismo, e torne-se, por fim, uma

cristalização. Os selos, que se integram diretamente à interface gráfica do blog,

permanecem, e são uma forma de prolongar a atenção sobre um determinado assunto para

além do “prazo de validade” do post.

Beppe Grillo desencadeou na esfera pública italiana um amplo debate, dentro e fora

da Blogosfera. De grande sucesso entre a população jovem (mas não só entre os jovens,

como se pode ver em diversos vídeos), o blog gerou na sociedade civil alguns movimentos,

dos quais tornou-se um elemento de construção identitária: já existem alguns grupos, não

reduzidos, que se autodenominam (e são denominados) “grillini”, ou “amigos de Beppe

Grillo”. Não obstante, há, por parte da mídia tradicional italiana, um sistemático e

alarmante silêncio em relação ao fenômeno, rompido às vezes com tentativas de

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desqualificação. Diante disso, os seus participantes (como veremos de maneira muito clara

mais adiante) indignam-se, mas seguem em frente levando o movimento sem nenhum

prejuízo – como vozes que já não dependem da mídia de massa para serem ouvidas.

4.2.5. Hibridismos e conflitos

O blog de Beppe Grillo tornou-se uma das mais exemplares demonstrações da

potência das novas tecnologias comunicativas. É um fenômeno que nasce e ganha corpo

segundo uma lógica de rede, imprescindivelmente, e que não raro se choca com a lógica

analógica e hierárquica que predomina ainda em muitos setores da sociedade. Mas

podemos identificar neste fenômeno, em diversos momentos, situações limítrofes entre a

sociedade em rede e o espetáculo. A começar pela sua figura central, o autor do blog,

Beppe Grillo, uma personalidade lançada pela cultura do espetáculo, pela televisão, pelo

teatro, em suma, alguém acostumado aos palcos. Ao mesmo tempo, Beppe contém em si a

ambigüidade do comediante: um ser aceito e prestigiado pelo sistema por denegrir as bases

do mesmo sistema, fazendo uso de uma linguagem marginal e imbatível – o lúdico e a

ironia.

Esse hibridismo entre rede e espetáculo pode também ser observado nos dois

principais eventos promovidos pelo blog: o V-Day, em 8 de setembro de 2007, e a sua

segunda edição, o V2-Day, em 25 de abril de 2008.

O V-Day (Vaffanculo Day. A expressão italiana de baixo calão “vaffanculo”

corresponde à nossa “vai tomar no c.”) foi uma manifestação de nível nacional divulgada

através do blog, que convocava os italianos a descerem às praças de toda a Itália para

protestar contra a classe política. O evento tinha também uma tarefa concreta: coletar

assinaturas para um projeto de lei de iniciativa popular intitulada “Parlamento Limpo” que,

diante da constatação de que 25 parlamentares eram réus condenados definitivamente pela

Justiça38 (e um total de 82 tinham pendências judiciais), propunha:

38 Post “I magnifici 82” (Os Magníficos 82), de 17 de julho de 2006. Disponível em: <http://www.beppegrillo.it/2006/07/i_magnifici_ott.html>

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1. Nenhum cidadão italiano pode se candidatar ao Parlamento se condenado

definitivamente, ou em primeiro e segundo grau à espera de juízo final.

2. Nenhum cidadão italiano pode ser eleito no Parlamento por mais de duas

legislaturas (8 anos). A regra é válida retroativamente.

3. Os candidatos ao Parlamento devem ser votados pelos cidadãos com a preferência

direta.

A proposta de lei e todas as informações sobre o evento foram difundidas através de

uma página sobre o V-Day. Não houve grande agitação da mídia de massa a respeito, e o

evento foi divulgado totalmente via web. No dia 8 de setembro de 2007, mais de meio

milhão de pessoas compareceram às praças de toda a Itália, e foram coletadas mais de

300.000 assinaturas. A mídia tradicional permaneceu misteriosamente silenciosa a respeito

do evento, mas milhares de pessoas vivenciaram diretamente a experiência do V-Day em

todo o país, e os vídeos e fotos produzidos na ocasião multiplicaram-se pela web, criando o

próprio conjunto de testemunhos sobre o fato.

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Página do V-Day de 8 de setembro.

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119

O projeto de lei foi entregue ao Senado, juntamente com as assinaturas coletadas,

em dezembro de 2007. Porém, até hoje, não foi discutida pelos legisladores e não se

converteu em resultados concretos. Desde então, o foco do blog começou a se deslocar da

classe política para aqueles que são os seus instrumentos de poder, ou seja, os meios de

comunicação de massa, motores da opinião pública tradicional. Como já vimos

anteriormente, a situação da mídia televisiva e jornalística na Itália é bastante séria, pois a

quase totalidade dos canais de TV e dos jornais são controlados pelo poder político.

Dessa forma, Beppe Grillo organiza o V2-Day, em 25 de abril de 2008 (Dia da

Liberação, data em que tradicionalmente se comemora, na Itália, o fim da ocupação do país

pelas tropas fascistas e nazistas) divulgado e discutido ostensivamente no blog com muitos

meses de antecedência. Desta vez, o mote do evento é “Livre Informação em Livre Estado”

(Libera Informazione in Libero Stato), defendendo o acesso à informação como um direito

do cidadão e denunciando as práticas espúrias de manipulação dos meios de massa,

submetidos a poderes e interesses não-declarados. O evento convocava novamente os

italianos às praças e à assinatura de um novo referendum:

1. A abolição do financiamento público à editoria;

2. A abolição da Ordem dos Jornalistas;

3. A abolição da Lei Gasparri.

O sucesso foi ainda maior do que no primeiro V-Day. Milhares de pessoas

compareceram a cerca de 500 praças, que contavam com bancadas organizadas por

voluntários para a informação dos cidadãos e o recolhimento de assinaturas. Mais de

1.300.000 assinaturas foram coletadas, e durante todo o mês de maio as bancadas

permaneceram montadas e foram divulgadas pelo blog para aqueles que quisessem assinar

o documento. O evento, e toda a Itália, foi divulgado em tempo real, via streaming, através

do site da C6 TV (http://new.c6.tv/), que manteve correspondentes por toda a Itália através

de conexões via Skype.

O V-Day e o V2-Day são eventos marcados por um hibridismo de linguagens,

primeiro pelo fato de representarem a passagem de um movimento criado no ciberespaço

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120

para o mundo físico, e em segundo lugar por serem um misto de rede e espetáculo. Ambos

os eventos contaram com a participação de Grillo, na praça de uma grande cidade italiana

(primeiro em Bologna e depois em Torino), no melhor estilo do espetáculo: palco,

microfones, telões, câmeras. Grillo fala à multidão e convoca ao palco amigos,

especialistas, integrantes do movimento e personalidades nascidas no blog, como pessoas

que tiveram suas histórias ali publicadas. É transmitido às outras praças através de uma

estrutura de telões. Ao mesmo tempo, toda a divulgação antes do evento, bem como a

organização das bancadas de recolhimento das assinaturas, e a divulgação pós-evento

possuem um caráter indubitavelmente reticular.

Gostaríamos também de destacar um outro episódio que trouxe à tona uma situação

limítrofe entre as lógicas analógica e de rede, desta vez não como um hibridismo mas como

um conflito de linguagens, no interior da própria comunidade virtual do blog. Trata-se das

eleições italianas, ocorridas em 13 e 14 de abril, e que tinha como candidatos mais fortes

Sílvio Berlusconi, ex-Primeiro Ministro, e Valter Veltroni, ex-prefeito de Roma. Ambos

eram fortemente desqualificados por Beppe em seu blog, ganhando apelidos pejorativos

como Psiconano (“Psicoanão”), a Berlusconi, e Testa D’Asfalto (Cabeça de Asfalto), a

Veltroni. Grillo, em diversos posts, defendeu o abstencionismo nas eleições, diante da

absoluta falta de opções aos cidadãos.

“As eleições políticas são inconstitucionais. Os lugares na Câmara e no Senado foram já

assinalados pelas secretarias de partido. O não-voto útil é o único útil”. Comunicado

Político n. 6 (31 de março de 2008)

“O italiano escolhe o dentista menos pior, lê o jornal menos pior, vê a transmissão

televisiva menos pior, trabalha pela sociedade menos pior, vota pelo partido menos pior

(...) Porém… há um porém: por que se deve encolher entre o pior e o menos pior? (...) Eu

não quero a vida menos pior. A exijo normal, aliás a quero bela, ótima, excelente. (...) Pior

ou menos pior, sempre pior é”. Post “Il Meno Peggio” (O Menos Pior), de 10 de abril de 2008.

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“Não se pode votar o menos pior. Não se deve perder a esperança de um melhor. Quem

vota o menos pior legitima o pior”. Comunicado Político n. 3, de 27 de fevereiro de

2008.

No dia 14 de abril, divulgaram-se os resultados das eleições: Berlusconi havia

vencido, para grande decepção da comunidade “grillina”. Instaura-se, durante alguns dias,

um clima de total desorientação nos comentários dos leitores, que tentavam encontrar um

culpado sobre quem descarregar a própria frustração. Ora seria Grillo e a sua proposta de

abstencionismo, ora seriam aqueles que não se abstiveram e foram votar. O tom era de

agressividade e a troca de insultos era freqüente. Muitos leitores culpavam Grillo como se

culpa a quem tomou a decisão, outros cobravam dele orientações como quem aguarda

ordens de um superior. Atitudes que trazem implícitas em si resquícios de uma estrutura

hierárquica e paternalista, em que existe a figura do guia e dos seguidores. Coloco abaixo

alguns exemplos de comentários coletados durante este período, no post publicado no dia

15 – “Loro non mollerano mai, noi neppure” (Eles não desistirão nunca, nós muito menos).

Beppe, estamos nas mãos de Berlusconi.

O único que podia nos salvar era justo você: bastava que você se apresentasse às

eleições e ganharia uma montanha de votos.

A partir de hoje estamos em uma ditadura: os novos governantes te tornarão a

vida mais difícil.

Você pensa só no V2, mas no dia seguinte ao V2 tudo será como antes.

Se eu perdi a esperança é também culpa sua.”

Sempr e. Comentador certificado 14.04.08 22:45

Beppe, você me dá quase pena...

Agora quero ver o que você dirá com a Itália de Berlusconi, está contente?

Gosta? Você tinha na mão uma arma e a usou contra os italianos. TOMAR NO

C.”

David L. Comentador certificado 14.04.08 21:59

Beppe Grillo.

Você quis o abstencionismo!

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então fique com o psicoanão.

giorgio g. Comentador certificado 15.04.08 00:12

O banal e infantil Grillo, com a sua incompreensível posição sobre a abstenção,

presenteou a Itália com outros 5 (e talvez mais) anos de Berlusconismo.

Parabéns a todos. Saudações. frantoman menfranto Comentador certificado

15.04.08 16:38

Vale lembrar a recusa de Beppe Grillo a candidatar-se para as eleições e a entrar no

jogo político oficial. Passado um pouco da decepção do primeiro momento, começam a

surgir e tornar-se mais numerosos comentários nos quais é possível entrever o paradigma

da sociedade em rede, e o desprezo pelas lógicas tradicionais do poder e da política

institucionalizada:

Venceu Berlusconi? E quem liga; abolição da ICI, abolição do bollo auto e dos

motores, aumento dos salários e das pensões; redução das taxas; fazer calar os

preços, sobretudo aqueles de primeira necessidade, e um outro milhão de coisas

prometidas, pra mim hoje parece apenas que seja terça-feira.

Comentador não-identificado

No bem e no mal se glorifica sempre um homem como herói, messias, guia e

logo depois afoga-se-lho como traidor, indiferente, incapaz! A história ensina

alguma coisa ou não? Ou a aprendem só no exterior? Beppe, fazendo o seu

interesse, justo que seja, ajuda as pessoas a agirem sozinhas, a unirem-se num

propósito, a organizarem-se para procurar mudar as coisas para melhor. Mas

vocês não podem esperar que, como Moisés, os leve ao outro lado do Mar

Vermelho. Façam todos um exame de consciência e vejam o que fizeram de

concreto pelo seu país.

Comentador não-identificado

Basta esperar sobre a beira do rio.

As listas cívicas do blog crescem. Conselheiros comunais, por enquanto, em

Treviso e em Roma. Sonia Alfano conselheira regional na Sicília.

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É necessário olhar sempre o lado positivo das coisas. Não se pode obter tudo em

um dia como qualquer um gostaria.

Sobre a beira de um rio com um PC a tecer a rede, rede virtual que se torna real.

Os meninos que fizeram as listas cívicas são os exemplos a seguir.

Cada um de nós deve dar o próprio apoio. Cada um deve colocar á disposição

aquilo que tem.

O próprio tempo, as próprias idéias.

Às vezes me escrevem amigos que me dizem: em que posso contribuir?

A resposta é simples, naquilo que sabe fazer.

Cada um é necessário para uma mudança.

Comentador não-identificado

Afinal de contas, o episódio Berlusconi parecia representar a vitória de uma política

da opacidade sobre um movimento crescente que prega pela transparência no Estado e na

informação. Certamente representou, para a comunidade do blog, um momento de crise em

que os limites entre o paradigma analógico (hierárquico, paternalista e passivo), e o da rede

(horizontal, ativo, poder e responsabilidades distribuídos) afloraram, trazendo à tona o

antagonismo entre as duas linguagens. Vivemos um período de transição, e este conflito é a

típica expressão de nossa época.

Porém, a comunidade recuperou rápida e espontaneamente a segurança quanto aos

seus próprios fundamentos no novo paradigma, a despeito dos resquícios do antigo. O

estrondoso sucesso do V2-Day, 10 dias depois das eleições, entre outros posteriores

progressos, é a confirmação.

4.2.6. Pela liberdade de informação

A informação livre e a transparência tornaram-se, sem sombra de dúvida, as

bandeiras maiores do blog de Beppe Grillo, e os valores que permeiam a motivação de sua

inteira comunidade. As discussões que se dão ao interno do blog, seja sobre o lixo, sobre a

energia, sobre a política ou sobre a liberdade de informação, se orientam no sentido do

ataque das opacidades, do questionamento das incoerências, de querer saber mais e saber a

verdade. “Tudo aquilo que vocês não sabem é verdade”, diz Beppe Grillo. Em suma, todas

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as vozes defendem constantemente a ainda escassa transparência no Estado e na mídia.

“Sem livre informação não há democracia”39

Esta exigência pela generalização da transparência vai diretamente de encontro à

lógica de produção da informação da mídia de massa e suas opacidades. A crítica à mídia

tradicional – ainda mais diante do seu evidente silêncio em relação a um movimento de

proporções significativas, mas que vai contra muitos interesses – também se torna uma

constante no blog.

Durante o período de observação cotidiana do blog, Beppe publicou sistemática e

periodicamente posts chamados “Comunicados Políticos” (Comunicati Politici), nos quais

expôs à comunidade do blog as suas idéias sobre a política, a liberdade de informação e a

intrínseca relação entre as suas coisas. Transcreveremos abaixo alguns trechos

significativos, publicados nos 13 Comunicados Políticos coletados durante o período

(originais em italiano disponíveis em http://desventurasdeumtcc.blogspot.com ):

“A democracia pode nascer somente de baixo. O novo Renascimento terá origem nos

municípios. (...) A informação está nas mãos dos grupos econômicos e dos partidos”.

Comunicado Político n. 1 (10 de fevereiro de 2008)

“A mudança deve vir de baixo, dos cidadãos informados. (...) Os meios de desinformação

de massa estão trabalhando para esconder os problemas do país. (...) Imprimam e

difundam ‘A Semana’ para todos aqueles que não possam se conectar à Rede. (...)

Escrevam nos seus blogs as falsidades cotidianas do regime e desmascareiem-nas. (...)

Informem-se e informem. Por um novo Renascimento. V-day 25 de abril”. Comunicado

Político n. 2 (15 de fevereiro de 2008)

“Quem quer saber o que foi dito por oncologistas, peritos ambientais e da energia deve

aprender a língua inglesa ou alemã. Ler o Die Zeit ou The Herald Tribune. O Corriere e la

Repubblica lhe dedicaram um quadradinho da dimensão de um selo. A informação italiana

está sob controle. É propaganda de guerra contra o povo italiano. Tudo aquilo que vocês

39 Beppe Grillo, no post “Loro non molleranno mai, noi neppure” (Eles não desistirão nunca, nós muito menos)

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não sabem é verdade. Não leiam os jornais. Não assistam a televisão. Pensem com a sua

cabeça”. Comunicado Político n. 2 (27 de fevereiro de 2008)

“A difusão do conhecimento é fundamental. A organização das pessoas em comitês e em

listas cívicas é democracia. Conhecimento, organização, listas cívicas locais. É a epidemia

da Rede. (...) O poder sozinho não existe. É criado por nós”. Comunicado Político n. 4 (6

de março de 2008)

“BASTAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!!! Basta com a respiração presa. Basta com a

vida em apnéia. Basta com os suspiros de desilusão. Basta com os bufos de raiva. Basta

com as palavras não-ditas. Basta a profissão do político. Basta com a política dos

malandros e a sociedade dos lerdos.(...) Basta com esta palhaçada midiática. Em 25 de

abril gritemos: ‘Basta!’. Livre informação em livre Estado”. Comunicado Político n. 5

(27 de março de 2008)

“Sem informação livre não há democracia. Se a informação se torna um instrumento de

interesses privados e dos partidos não há democracia.(...) Sem informação livre não é

possível escolher. Os cidadãos têm o direito de ser informados. Sem esse direito não há

democracia. (...) A renovação do país começa nos Municípios e nas Regiões. A renovação

começa nos jovens. A liberdade começa na informação livre”. Comunicado Político n. 7

(8 de abril de 2008)

“Os anos 90 viram o fim das ideologias, hoje assistimos o fim dos partidos. Um de cada

vez nos estão deixando. Caem como folhas de um plátano de outono. (...) As listas cívicas

do blog crescem. Conselheiros comunais, até agora, em Treviso e em Roma. Sonia Alfano

conselheira regional na Sicília. Resultados obtidos sem publicidade, sem fundos públicos,

sem televisão, sem jornais. Mas com a honestidade, com o porta a porta, com a Rede”.

Comunicado Político n. 8 (17 de abril de 2008)

“Em 25 de abril nos libertamos do nazifascismo. 63 anos depois podemos nos libertar do

fascismo da informação. É mais difícil do que naquela ocasião. Não há mais fuzil contra

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fuzil, bomba de mão contra carro armado. A luta é entre as consciências adormecidas e a

liberdade de pensar, entre quem não quer mais voar e quem não pode renunciar ao céu”.

Comunicado Político n. 9 (22 de abril de 2008)

“Não existem jornalistas, existem pessoas que têm a coragem de manifestar a verdade e se

tornam heróis, star, cidadãos sob escolta. Existem pessoas que escrevem, falam,

comunicam. Se chamam homens e mulheres. Existe a ordem natural de quem sabe ler,

escrever, falar e usa estas suas capacidades para descrever o mundo. Ninguém é

jornalista, todos somos jornalistas. Em rede todos somos jornalistas. Os jornais e a

televisão são o passado. O V2 day demonstrou que a informação está em Rede”.

Comunicado Político n. 10 (28 de abril de 2008)

“Todos somos jornalistas. A verdade é um direito, dizer a verdade é um dever social. Na

Rede somos todos portadores sãos de verdade”. Comunicado Político n. 11 (14 de maio

de 2008)

“O país entrou em um novo estado: o delírio. (...) O navio está nas mãos do cozinheiro de

bordo e o capitão está profundamente adormecido debaixo da coberta. Na democracia o

capitão é a vontade popular”. Comunicado Político n. 12 (24 de maio de 2008)

“As eleições deixaram uma sensação de vazio. Vazio de representação. Vazio de

participação. O voto foi somente uma cruz. Um gesto ritual. (...) No passado os italianos

escolheram.(...) No passado foram eleitores,opinião pública, movimentos. Hoje não são

mais nada. Têm a consciência de não ter referências. Nenhuma instituição faz a voz dos

cidadãos. (...) Os partidos estão espoliando a democracia uma folha por vez, como uma

alcachofra.(...) A democracia se torna ditadura,mas ninguém sabe.(...) A política está

morta. Os cidadãos já entenderam,estão interiorizando o luto. O vazio. À palavra futuro se

responde com o vazio das palavras. Incineradores, centrais nuclerares, militarização do

país. (...) Esta política acabará, ou acabará o país. Os italianos o sabem, os partidos,

talvez, não ainda”. Comunicado Político n. 13 (3 de junho de 2008)

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Abaixo, transcrevo alguns comentários que exemplifiquem a luta pela transparência e a

oposição à mídia tradicional.

LA RICERCA DELLA VERITA'

Sou um dos milhões de italianos que levam uma vida normal, um trabalho

normal, que tem gostos normais, que há diversos anos não sai mais de férias (é

preciso pedir um empréstimo aos bancos), que há muitos anos não compra mais

os jornais (O Estado os financia), que há diversos anos não pode mais com a

informação radiotelevisiva (dizem todos a mesma coisa), que há diversos anos se

encheu o saco desta podridão da informação (a exceção de alguns, um por todos

MARCO TRAVAGLIO), dos partidos que trocam continuamente os seus

símbolos, para enganar a gente, e poderia continuar até o infinito.

E bem, em todos estes anos (passaram 62) me esforcei para entender onde

estivesse a verdade. E cheguei a uma conclusão de que che a verdade é

continuamente mistificada e manipulada por quem detenha o poder, seja quem

for.

Portanto, caro senhor, se o Sr. quer fazer informação verdadeira e autentica, deve

empenhar-se a demonstrar com os fatos aquilo que afirma.

Veja, graças ao blog di Beppe Grillo, posso dizer a minha opinião sobre aquilo

que o sr. escreveu sem filtros nem manipulações, tudo aquilo que escrevi no blog

até agora não foi nunca censurado e por isso agradeço muitíssimo todos aqueles

que trabalham por este blog. Comentador não-identificado

O Ministro Renato Brunetta, da Função Pública e a “sua” transparência

O Ministro Brunetta quer colocar “on line” compensações, presenças e doenças

dos estatais. Bem.

Aos estatais não muda muito se o seu salário esteja ou não “on line”..

Mas se falamos de transparência, o Ministro vá até o fundo.

Nós italianos queremos on line e em tempo real o seguinte:

1. As declarações de renda dos nostros honoráveis deputados, senadores e sub-

secretários.

2. As despesas mensais com combustível (reembolsadas pelo Estado).

3. As contas de restaurante (serão pagas com os tickets de Euro 5.16 como os

dependentes estatais?) E quantos bilhetes aéreos mensais são usados pelos

honrados deputados e dos seus familiares (aqueles pagos pelo Estado,

obviamente);

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4. As despesas para os cursos de língua estrangeira para os filhos, previstas entre

as despesas reembolsadas a cada senador e deputado.

5. As suas ausências mensais, quantas vezes participam às votações na Câmara

ou no Senado ou se naquele dia votará por eles “o pianista” de turno.

6. Queremos saber se pagam o ticket sanitário, os remédios e as intervenções de

lipoaspiração e sobretudo onde, em hospitais públicos ou em ricas clínicas

privadas.

7. Por fim queremos saber se os nossos deputados, senadores e representantes

sindicais, que tanto falam de solidariedade, vivem todos em apartamentos dos

entes estatais ou têm casas de propriedade, e sobretudo quantas, onde e como as

obtiveram.

Esta será a transparência.

E os cidadãos italianos agora a exigem.

Vejamos quanto basta para que o honorável Brunetta impeça a sua iniciativa

inovadora, para não incomodar “a privacidade” dos honoráveis...

Gloria Rossi 26.05.08 15:22 – Comentador Certificado

[...] Infelizmente, sobre este caso é difícil saber mais, mesmo porque, nos

jornais,deste assunto se fala muito pouco e de modo marginal e portanto não se

sabe nada mais do que isso! E pensar que existe ainda alguém que pensa em

reabrir centrais nucleares na Italia! Hipótese no mínimo criminosa! Além de

tudo, administradas por quem? Por eles?Mobilizamo-nos todos contra este

segredo de Estado. Exigimos saber!

(trecho de uma carta sobre o solo contaminado pela radiação em Saluggia)

A mídia tradicional é acusada de não informar os cidadãos como deveria, realizando uma

política mais ou menos intencional de desinformação. Porém, através do blog é possível

discutir e questionar esta mesma informação fornecida pela mídia de massa, pesquisar,

trocar informações, consultar especialistas, e aprofundar-se. A tecnocracia não consegue

mais apoiar-se nos alicerces da desinformação dos cidadãos, pois estes passam a dispor de

informações suficientes para questioná-la, muito embora estas informações em geral não

sejam fornecidas pela mídia “oficial”. Desta maneira, está se criando atualmente na Itália

um grande movimento civil contra a instalação de incineradores para o lixo e de centrais

nucleares para a energia (ambos propostos pelo governo), defendendo, ao invés disso, a

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reciclagem e as pesquisas para o aproveitamento de formas limpas de energia, como a solar.

Este movimento certamente não se baseia nas informações divulgadas pela mídia de massa

subserviente ao governo.

Além da crítica, o blog apresenta também algumas propostas de produção midiática

alternativa. Já há muito tempo existe a publicação La Settimana (A Semana), uma espécie

de resumo semanal do conteúdo do blog em formato .pdf, disponível para download e

imprimível. É possível, assim, divulgar o conteúdo e as discussões do blog fora do

ciberespaço, e de forma barata e viral.

Fiz 10 fotocópias de "A semana do grillo" e 10 do intervento de Di Pietro "A

tutela dos economizadores" e mais tarde irei colocá-las nas caixas de correio dos

meus vizinhos (informação peer to peer)

raffaella r. 19.05.08 15:46 – Comentador Certificado.

Desde o dia 19 de maio, o jornalista Marco Travaglio ganhou um espaço semanal no

blog de Beppe Grillo. São transmissões por streaming, que ocorrem toda segunda-feira às

14h (horário da Itália), em que o jornalista discute justamente matérias e informações

divulgadas pelos jornais italianos. A transmissão se chama Passaparola (Boca-a-boca) e é

depois transcrita num post.

Querem dar umas risadas? Leiam Francesco Alberoni – sociólogo do nada,

escalador das descidas, experto do óbvio - no Corriere de hoje. Na primeira

página do Corriere, onde antes escrevia Pasolini; hoje Alberoni. Diz Alberoni:

"Estou convencido de que a Italia se recuperará rapidamente. Antes do que todos

crêem. E se recuperará porque finalmente recobrou o senso da realidade. Hoje

todos pedem segurança, querem os termovalorizadores, acham justo que o chefe

de Governo se encontre com o chefe da oposição, condenam os menores que

estupram e matam as adolescentes - (antes, ao contrário, éramos todos solidários

com os estupradores) - e aceitam que um ministro proponha que os funcionários

que não trabalham possam ser despedidos. Os jornais e a televisão começam a

descrever objetivamente os fatos de crônica negra, de corrupção e de pobreza,

sem embriagar-se com cem pareceres político-ideológicos". - (Bastou que

Berlusconi vencesse as eleições, olhem quantos milagres em duas semanas) -

"A gente pode refletir e julgar com a sua cabeça, usar o bom senso.

Naturalmente há personagens que não entenderam ainda que a sociedade mudou

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e se comportam como aqueles japoneses que, com a guerra terminada,

continuam a combater. Mas desaparecerão." Palavra de Francesco Alberoni. Em

suma, o título é "O país está reconquistando o senso da realidade.40

Esta é uma das coisas mais belas que vocês combinaram aqui no blog... deixo-

lhes imaginar a cena na minha casa: hora do almoço, sentados à mesa, pc

conectado em streaming ligado à tv lcd, na tela, ao invés das mesmas idiotices da

lama televisiva, uma pessoa livre que fala.... por que esperar a segunda-feira?!

Façamos de maneira que isso aconteça todo dia... 10 min di v-day ao dia em

todas as casas italianas onde há uma conexão.... demonstramos que a tv è é coisa

amplamente superada!

Se o problema são os custos, pessoalmente estou pronto para auto-taxar-me!!!

quem pensa como eu levante a mão...

Claudio Amici (cattivi pensieri) – Comentador Certificado

4.2.7. Beppe Grillo: demagogia?

O blog de Beppe Grillo é diferente da maioria dos blogs encontrados na rede, a

começar pela questão do autor, ou seja, de quem publica – e publica-se – no blog. Segundo

Di Fraia, a face pública do autor na rede é objetivada pelo blog, através daquilo que ele

escreve e publica. O autor em si, normalmente, não se pode ver.

O que é ‘objetivo’, e pode ser efetivamente relevado, é o blog, e assim, a

representação em rede de um determinado sujeito. Mas continua totalmente

opaca a correspondência que existe entre tal representação e a realidade do

sujeito a quem ela se refere. Dito em modo mais direto: pode-se ver o blog, o

blogueiro não! (DI FRAIA, 2007, p.30)

Beppe Grillo, ao contrário, é um autor que não só se pode ver, como já possuía,

antes da abertura do blog, uma face pública nacional construída ao longo de décadas de

carreira artística e aparições midiáticas.

40 Trecho tirado do post Balle Spaziale, transcrição do Passaparola de Marco Travaglio.

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Este é um ótimo ponto de partida para o blog, e ao mesmo tempo uma de suas

maiores fragilidades. Di Fraia (2007) aponta a reputação como um elemento central de

criação de valor para um blog, elemento que influencia inclusive as dinâmicas de

“linkagem”, que determinarão a sua visibilidade na blogosfera.

Aquilo que o sujeito escreve, as práticas de uso que ele coloca em ato, o seu

mais geral comportamento, se fixam na memória da rede desdobrando-se no

tempo e tornando-se a história do seu autor. Ou melhor, a história da declinação

da personalidade com a qual ele se apresentou aos outros e que permanece aberta

ao seu juízo”. (Ibid, p.99)

No caso de Grillo, diferentemente de um blog criado por um anônimo, a reputação

precede a criação do blog, embora seja constantemente atualizada por ele, e a própria

reputação do blog começa a depender de fatores que lhe são alheios. “A reputação é um

bem processual que não pode ser considerado adquirido de uma vez por todas, mas que é

muito mais o resultado cotidiano e in progress das ações comunicativas do blogger”. (DI

FRAIA, 2007, p.104) Beppe Grillo, contudo, era já uma personalidade pública mesmo

antes de se tornar blogueiro. Por um lado, isso beneficia a reputação do blog, uma vez que

os temas nele tratados estão em consonância com os temas que sempre interessaram Beppe

Grillo em toda a sua trajetória pessoal anterior. Por outro, a própria história pessoal de

Grillo pode ser invocada para colocar em questão a sua reputação, bem como a

credibilidade e a coerência do blog. “Outras críticas lhe foram feitas pela presumida

demagogia das suas iniciativas, e o fato que ele próprio, condenado definitivamente por

homicídio culposo por causa de um acidente de carro, queria que sejam excluídos do

Parlamento os condenados definitivamente, ou em primeiro e segundo graus à espera de

juízo final”.41

A demagogia é um termo de origem grega (demos = povo, e agos = condução),

utilizado por Aristóteles para designar um tipo de poder considerado uma degeneração da

democracia. O demagogo faz uso de recursos retóricos e da oratória ábil para conduzir o

povo a falsas conclusões. Segundo o dicionário da Wikipédia, demagogia é uma “técnica de 41 WIKIPEDIA, l’enciclopedia libera. Beppe Grillo. [S.I.]:[s.n.], 2008. Disponível em: <http://it.wikipedia.org/Beppe_Grillo> . Acesso em: 25 mai. 2008

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argumentação política que se utiliza da semiótica para fugir à racionalização e à análise

precisa de um determinado tema ou problema social”.42 O demagogo identifica as

necessidades e aspirações do povo, e freqüentemente utiliza seus sentimentos e paixões

para atingir seus próprios objetivos. Ele promete ou propõe coisas que dificilmente se

realizarão na prática.

Certamente são fundamentadas as acusações de demagogia em relação a Grillo. A

identificação das necessidades do povo, das suas paixões, a retórica e a oratória ábil, as

propostas grandiosas, são traços do demagogo que se encontram também no comediante

genovês. Mas o que acontece se Beppe Grillo for realmente um demagogo? Ecos da

sociedade do espetáculo e do grande irmão provavelmente nos sugerem a sua grande

capacidade de manipulação, através de uma mídia através da qual se exprime a milhares de

pessoas que levam em consideração a sua opinião. Entretanto, o ambiente mudou; na

sociedade em rede, tal risco não é mais possível. Para que haja demagogia, é preciso que se

mantenha a tradicional separação entre o orador e o auditório, do teatro grego à televisão,

sendo a voz e a fala um privilégio do orador. Na rede, porém, a palavra é prerrogativa de

qualquer um. Um auditório que questiona não pode ser facilmente guiado. Além disso, a

ampliação e multiplicação dos espaços de discussão e das fontes de informação privilegia a

análise dos temas, e não o contrário. Além do mais, a própria oposição verdadeiro/falso

sobre a qual se constrói a noção de demagogia parece já amplamente superada, uma vez

que a verdade, ao invés de corresponder a um determinado ponto de vista, é o resultado da

análise de múltiplos pontos de vista. A opinião não pode mais ser considerada algo

inverdadeiro, porque parcial, e ilegítimo diante de uma verdade transcendente – torna-se

parte inseparável de uma verdade como processo.

Nem mesmo Grillo escapa dos ataques às suas opacidades e incoerências. Não

raramente, nos encontramos diante de comentários que questionam o autor em seu próprio

blog, principalmente no tocante à não oculta, porém obscura relação com a Casaleggio

Associati, consultoria de marketing e web que administra o blog:

42 WIKIPÉDIA, Dicionário. [S.I.]:[s.n.], 2008. Disponível em: <http://pt.wiktionary.org/wiki/demagogia>. Acesso em: 7 jun. 2008

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A Casal. Assoc., sociedade de web marketing, que gere o blog de Grillo, faz

muito bem a sua função.

Mesmo que seja uma função que nada tenha a ver com conceitos como

democracia e liberdade de opinião.

Os objetivos da Casal. Ass. São bem claros e explícitos:

"A consultoria estratégica tem o objetivo de direcionar as empresas nas escolhas

feitas necessárias pela Rede e de consentir a definição de objetivos mensuráveis

em termos de retorno econômico, de modo a determinar o desenvolvimento do

business da empresa, seja a médio, seja a longo prazo."

É um claro e simples discurso econômico! Mais claro que isso?

gio man. Comentador Certificado.

Mesmo as suas ambiciosas propostas, como os referendos do V2-Day, foram alvos

de críticas e questionamentos, a partir de outras fontes de informação:

Leiam Vanity Fair n°16 de abril de 2008, página 54. Diz que o recolhimento de

assinaturas que se está organizando será inútil. Parece que "uma lei de 1970 que

regula o desenvolvimento dos referendum, imponha que não possa ser

depositada requisição de referendum nos 6 meses sucessivos à data de

convocação dos comícios eleitorais para a eleição de uma das Câmaras. Visto

que os comícios eleitorais foram convocados em 6 de fevereiro, as assinaturas

poderão ser depositadas a partir de 8 de agosto. Mas as assinaturas devem ser

recolhidas nos 90 dias precedentes...portanto de 7 de maio em diante. Em suma,

é verdade? alice postri 20.04.08 21:29

A rede tem como ética máxima a transparência, e a promove a despeito de qualquer

poder instituído, hierarquia ou autoridade. É a passagem da televisão para a omnivisão.

(LÈVY, 2002) E, através desta visibilidade generalizada, potencializa os mecanismos de

desocultamento, de que nos fala Bobbio, colocando-os como uma das características que

distinguem o regime democrático e o regime autocrático. O desocultamento é diretamente

relacionado à multiplicação de vozes, de críticas e de pontos de vista (cuja diversidade

atinge na rede níveis nunca antes observados na história da humanidade), através dos quais

é possível trazer à tona e combater as opacidades. A nova tecnologia não impede a

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opacidade, e em certos aspectos até pode favorecê-la, mas desenvolver ao seu próprio

interno os anticorpos para combatê-la.

Além disso, à parte as discussões sobre as verdadeiras intenções ou as finalidades de

Beppe Grillo, discussão fadada a permanecer no nível das especulações, passemos à análise

dos efeitos do blog e de suas iniciativas. O blog criou um espaço de discussão inédito, que

se seria impossível no ambiente dos meios de comunicação de massa, catalisando

necessidades latentes de pessoas que vivem no limiar entre o paradigma da rede, e a lógica

analógica e vertical das instituições herdeiras da modernidade. A democratização

generalizada da sociedade proporcionada pela Internet contrasta com a falta de democracia

de alguns setores, e cria uma natural pressão por mais democracia. Está se instaurando, na

sociedade italiana e principalmente entre as camadas mais jovens da população, uma

verdadeira cultura da discussão e do questionamento, tendo em vista a possibilidade real de

ação. Tratam-se de fenômenos de opinião realmente auto-direcionados e produzidos de

baixo, diferentemente daqueles criados e manipulados pelos meios de comunicação de

massa e pelo poder invisível a eles associado. Esses novos fenômenos de opinião e a cultura

da discussão que se consolida estão na base de uma nova democracia.

Não queremos dizer que o blog seja o responsável e causador de todos estes

fenômenos, que pertencem a um contexto maior – a revolução digital o nascimento da

sociedade em rede. Porém, ele certamente representa e catalisa a ruptura de paradigmas que

vivemos atualmente, e por isso a discussão sobre a pessoa de Beppe Grillo me parece uma

discussão de menor importância. Já dizia um ditado chinês que, “quando o dedo aponta a

lua, o idiota olha o dedo”. Uma lua diferente resplandece no céu hoje, intrigante e

desconhecida.

4.2.8. Sementes ciberdemocráticas

A nova tecnologia começa a provocar uma modificação profunda das relações de

poder e da democracia. Uma das maiores inovações que traz neste campo é a possibilidade

de articulação local/ global entre os cidadãos. Ou melhor, possibilita a formação de diversas

pequenas redes que passam a articular-se entre si, a despeito de fronteiras geográficas e

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institucionais, multiplicando-lhes mutuamente a potência. Trata-se da construção de uma

“rede de redes”.43 “O ciberespaço surge como a ferramenta de organização de comunidades

de todos os tipos e tamanhos em coletivos inteligentes, mas também como o instrumento

que permite aos coletivos inteligentes articularem-se entre si”.44 A interconexão, segundo

Lèvy a principal “pulsão” do ciberespaço, modifica definitivamente a relação entre

sociedade civil, Estado, e ação política.

Pudemos acompanhar o nascimento de diversos destes coletivos inteligentes

apoiados e incentivados pelo blog de Beppe Grillo. Trata-se de comunidades virtuais de

base territorial, formadas por cidadãos comuns, normalmente ligadas às cidades

(“Comuni”) e às vezes mais especificamente a bairros, a exemplo da comunidade de

Chiaiano, um bairro de Napoli. A primeira proliferação de coletivos inteligentes foram as

listas cívicas: grupos de cidadãos pertencentes a uma mesma cidade se reuniam para definir

colaborativamente uma pauta política a ser seguida pelos governantes. Algumas listas

cívicas até mesmo candidataram os seus próprios candidatos, com a condição de que estes

não fossem filiados a nenhum partido (em clara oposição ao modo clássico de fazer

política). Destaquemos aqui uma inversão muito importante realizada pelas listas, e

representativa do espírito da nova democracia: o cidadão passa a dizer ao seu representante

quais são as pautas que ele deve seguir para um determinado território, e não se limita

somente a comprar/ premiar com o voto o candidato cuja pauta lhe pareça mais adequada.

As listas cívicas foram certificadas por Beppe Grillo, diante de alguns critérios (como, por

exemplo, ser de base municipal) e ganharam uma área própria no interior do blog, um seu

espaço virtual. Listas cívicas nacionais com o nome de Grillo foram denunciadas como

falsas pelo comediante, que defende a articulação política ao nível do município – uma

estrutura reticular, horizontal e viral.

43 Retirado de uma carta do Prof. Dr. Massimo Di Felice ao Prof. Dr. Alberto Abruzzese 44 LÈVY, Pierre. Cibercultura, pg 133

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Página das Listas Cívicas.

Às listas cívicas, sucederam-se os Meet Ups, redes ainda mais complexas uma vez

que permitem a integração de um número maior de pessoas e a formação de um espaço

virtual mais complexo e completo, com fórum, publicação de vídeos, fotos e arquivos, etc.

Destaca-se, neste segundo caso, a importância da interface: o Meet Up, disponibilizado

pelo site http://www.meetup.com e apoiado pelo blog de Beppe, é um sistema de

gerenciamento de comunidade, criando, de forma simples e automática, um espaço virtual

para cada comunidade e dando suporte ao agendamento de encontros no mundo físico.

Atualmente, multiplicam-se os Meet Up, comunidades híbridas (encontram-se tanto

virtualmente quanto fisicamente) que estão revitalizando e re-configurando as relações das

comunidades dos territórios nos quais se baseiam.

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Meet Up “Gli Amici di Beppe Grillo”.

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Página do Meet Up.

O texto abaixo foi retirado da página do Meet Up de Napoli, e consiste na descrição

da comunidade:

Bem-vindo ao Meet Up Napoli

Este lugar foi criado a fim de construir um espaço de verdadeira democracia, de

liberdade, de informação e de agregação. Não se deixe enganar pelo fato de que

se encontre em um lugar virtual, nós somos reais. O Meetup é um instrumento

útil para veicular informações, para trocar opiniões e sobretudo um meio para

organizarmo-nos na vida real. Meetup significa encontremo-nos e o próprio

encontro deve ser um dos nossos fins. Para incidir na sociedade, devemos agir

no território olhando nos olhos das pessoas.

No momento em que você se inscreve ao Meetup se torna parte, junto a todos

nós, da esperança que deverá mover a mudança e portanto te pedimos de não

desiludir esta esperança A responsabilidade reside na participação e a

participação é a única coisa que desejamos de que você se encarregue. Uma

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sociedade muda e se renova só com a participação das pessoas.

O Meetup Napoli foi aberto em 18 de julho de 2005 por mim, Roberto Fico. Mas

sem nenhuma retórica lhes digo que o Meetup foi fundado e construído por

todos os inscritos passados e por todos os inscritos futuros. Este lugar pertence

em igual medida a todas as pessoas que se empenham por uma mudança real.

Il Meetup não é de direita nem de esquerda. Nenhum partido nos representa e o

nosso valor mais alto é a liberdade. Não devemos nada a ninguém, não podemos

sofrer ricatti porque somos livres. E com a nossa total independência e liberdade

nos moveremos para desmascarar a economia, a política, a informação. Sem

nenhuma dúvida, entre as nossas escolhas, há também aquela radical da não-

violência. Sustentamos que a difusão de uma cultura de paz represente o reforço

do respeito dos direitos da pessoa e do planeta. Para nós, nenhuma guerra é

admissível!

Página do Meet Up de Napoli.

A organização da sociedade em rede, aliada à transparência promovida pela Internet

resultam em uma sociedade mais democrática, até porque mais capaz de defender a própria

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liberdade contra os autoritarismos e arbitrariedades do Estado. Um dos episódios mais

tocantes e exemplares de resistência foi o episódio de Chiaiano, um bairro de Napoli. A

cidade enfrenta, atualmente, sérios problemas com a coleta de lixo, devido a um suposto

esgotamento dos depósitos. Além disso, o governo Berlusconi, no poder há algumas

semanas, faz uma forte campanha pela instalação de incineradores e centrais nucleares em

todo o país, soluções já há muito obsoletas, do ponto de vista ambiental, e causadoras de

grandes problemas futuros (produção de partículas de fumaça altamente cancerígenas e de

lixo radioativo). Os governantes pretendem construir um depósito em Chiaiano, cuja

população, naturalmente, se posiciona contra e, com a ajuda do Meet Up, organiza uma

manifestação pacífica.

Durante a manifestação, há um sério confronto com a polícia. No dia seguinte,

estava já publicada no blog uma carta de uma manifestante contando o ocorrido, e muitos

eram os vídeos disponíveis no youtube com cenas do conflito. Diferentemente dos pontos

de vista “distanciados” da imprensa, as câmeras dos vídeos filmam tudo no meio da

multidão, e o que se vê são os manifestantes – homens, mulheres, idosos e crianças – com

as mãos levantadas, serem agredidos com violência pela força policial.

Mais um exemplo da potência da transparência contra os poderes invisíveis – desta

vez a Máfia – é o caso do empresário calabrês Pino Masciari. Pino denunciou a máfia na

Calábria, e, conseqüentemente, ele e sua família tiveram que abandonar o lar e tornaram-se

testemunhas protegidas pelo Estado. Sendo a tutela estatal deficiente, Pino Masciari toma

uma decisão radical: volta à Calábria, sem proteção, para tentar retomar sua vida. A única

coisa que faz pela sua segurança, ao invés de se esconder, é justamente tornar pública a sua

história através de um blog (http://pinomasciari.org/), do qual tomei conhecimento através

do blog de Grillo. Por meio de seu blog, Pino conta sua história, mantém a atenção nacional

sobre si, e forma uma comunidade de apoiadores e parceiros, uma rede de solidariedade.

“Estando a liberdade melhor protegida pela luz do que pela sombra”45, Pino Masciari

garante não só sua liberdade, mas também sua vida, mostrando-se, e não escondendo-se.

45 LÈVY, Pierre. Ciberdemocracia, pg 41

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Blog de Pino Masciari.

4.3. Últimas Considerações

O blog de Beppe Grillo levanta, de maneira não-declarada, muitas bandeiras do

movimento hacker: o direito à informação livre, a denúncia da informação “de regime”, a

libertação das consciências, a auto-produção midiática, a auto-gestão, a democracia de

baixo, e a soberania popular. Coloca em foco a relação intrínseca entre a real liberdade de

informação e a democracia. Exige transparência e denuncia a “democracia do sofá”, e a

democracia a portas fechadas”.46 Choca-se contra os autoritarismos, as arbitrariedades, as

opacidades, as burocracias, as hierarquias, e todas as categorias verticais da política

moderna: a classe política, os partidos, os representantes, que parecem bastante satisfeitos

em fazer seu próprio jogo, mantendo os representados-espectadores nas arquibancadas

resignados a assistir, de preferência em silêncio.

46 Títulos de posts publicados no blog.

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O blog, bem como todo o movimento por ele desencadeado, é um grito, um grito

coletivo. Um grito da sociedade em rede constrangida a viver entre instituições analógicas.

Um grito da horizontalidade contra a verticalidade, da conectividade contra a atomização,

da transparência contra a opacidade, da potência contra o poder. É um grito do paradigma

digital contra o analógico, das redes contra a política de massas. É um grande grito de

“Basta!” de uma sociedade nascente contra aquela que tenta se manter no controle. “Talvez

devêssemos apropriar-nos das palavras ‘lei’ e ‘Estado’ (de que desconfiamos tanto por

terem servido para a opressão) e atirar à cara dos tiranos: ‘O vosso Estado não é mais do

que uma máfia! A vossa pretensa lei só encobre as vossas iniqüidades! Nós alvejamos outra

lei, outro Estado!” (LÈVY, 2002, p.175)

É o mesmo grito das populações dos Chiapas, dos videomakers e blogueiros

birmaneses. A tomada de palavra, depois de tanto tempo de silêncio, assume a forma de um

grito que ecoa mundialmente e não pode mais ser sufocado.

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Conclusão

Atualmente, vivemos um período de transição em que uma tecnologia comunicativa

– o digital e a rede, condensados na Internet – está reorganizando todo o habitat simbólico

da sociedade, provocando profundas transformações em todos as suas dimensões. Esta é a

quarta revolução comunicativa pela qual passa a humanidade, e é também,

comparativamente, a mais radical: a nova tecnologia da comunicação traz em sua natureza

características totalmente inexistentes nas tecnologias anteriores, provocando uma forte

ruptura de paradigma em relação a toda a história precedente, num ritmo exponencial de

transformações.

No novo contexto, as categorias e dicotomias consolidadas pela Modernidade são

superadas, acentuando a inadequação entre a sociedade nascente e as instituições

tradicionais, já em crise mesmo antes da emergência da Internet e do ciberespaço. No plano

político, esta “rachadura” faz-se muito evidente: a democracia e a política modernas,

baseadas nos fluxos de informação verticais e unidirecionais, no individualismo atomístico

e nas tradicionais dicotomias (emissor/receptor; representante/representado;

público/privado; Estado/sociedade civil) – em suma, a política e a democracia analógicas –

vêm sendo cada vez mais questionadas por uma sociedade que se organiza de forma

radicalmente diferente e que não mais encontra correspondência nas instituições

precedentes.

A esfera pública, mediada pelas tecnologias da comunicação, passa por

transformações fundamentais. No paradigma analógico, a esfera pública era condicionada

pelos meios de comunicação de massa, gatekeepers da visibilidade, que decidiam, de

acordo com critérios e interesses não declarados, o que atravessaria a fronteira entre o

privado e o público. A visibilidade da esfera pública era, portanto, condicionada às

opacidades inerentes aos meios de comunicação de massa e ao poder institucionalizado. No

ambiente digital, contudo, o gatekeeping, os filtros impostos pelos mass media

desaparecem, tão logo desaparece a clara fronteira entre emissores e receptores. Qualquer

um pode publicar qualquer coisa. O agendamento do debate deixa de ser uma prerrogativa

dos meios de massa. A esfera pública torna-se mais transparente e simétrica, torna-se

multidimensional e fractal. A transparência desta nova esfera pública assemelha-se muito

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com a transparência proposta por Vattimo (1992) e a universalidade da qual fala Lèvy

(1999) – uma transparência multifacetada, que não esgota a realidade numa verdade

totalizante, mas, ao contrário, a multiplica ao infinito numa miríade de vozes, pontos de

vista e alteridades.

Esta transformação da esfera pública reflete-se diretamente na democracia, com a

qual mantém uma relação intrínseca. As novas relações de visibilidade modificam as

relações de poder, a transparência generalizada e a simetria da visibilidade proporcionadas

pelo digital será a chave de uma democracia baseada no novo paradigma. Pierre Lèvy

(2002) utiliza o termo ciberdemocracia para designar essa nova democracia condicionada

pelo ciberespaço. Façamos uma breve reflexão sobre este termo. Como vimos, o prefixo

ciber deriva de uma palavra grega que sugere uma noção de “controle”. Este controle é

intimamente ligado à idéia de potência, e à tomada de decisão. A nova democracia

caracterizar-se-ia pelo alargamento da visibilidade simétrica, e pela ampliação do controle,

ou seja, dos espaços de decisão, muito além do momento do voto, espaço reservado na

democracia tradicional para a soberania popular. E não nos referimos apenas à fiscalização

do Estado pela sociedade civil; se o digital tem o poder de dissolver as fronteiras, é muito

provável que essas duas categorias já não estejam muito sólidas. A noção de controle evoca

a de auto-gestão, vislumbrando uma integração horizontal do Estado e da sociedade em

coletivos inteligentes que administrem os territórios. É o fim da política do espetáculo, que

cede lugar a uma política do diálogo47. O marketing político, o candidato-mercadoria que se

“compra” com o voto, e a própria representação fiduciária fazem sentido apenas numa

sociedade onde a prerrogativa da palavra é restrita, e à massa sem-voz empresta-se o

discurso daqueles que estão autorizados a falar por todos: a mídia, os representantes

políticos. A política do diálogo, ao contrário, pressupõe uma conversação horizontal com

uma multiplicidade de vozes em primeira pessoa.

Contudo, ainda não nos encontramos nesta realidade. Vivemos um período de

transição, de ruptura entre dois paradigmas, e os conflitos entre eles são freqüentes. Temos

instituições analógicas para uma sociedade em rede, e esta, embora cresça e se estabeleça

em ritmo exasperado, ainda não inclui, por questões econômicas, culturais ou mesmo de

geração, boa parte da humanidade, que continua a viver num mundo analógico. Esta ruptura

47 LÈVY, Pierre. Ciberdemocracia. Tradução de Alexandre Emílio. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

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e a coexistência mais ou menos conflituosa de dois paradigmas, a ainda persistente

exclusão de grandes quinhões da população do ciberespaço, convencionou-se chamar de

digital divide, e é provavelmente uma das questões mais importantes desta conturbada

transição. Uma vez que a rede é um espaço democrático onde são irrelevantes os aspectos

preexistentes à situação comunicativa, a questão-chave é ter ou não acesso. Castells (1999)

já foi citado anteriormente por descrever a rede como um espaço em que as distâncias

(sociais, políticas, culturais) entre dois pontos conectados à rede tendem a zero, mas a

distância entre um ponto pertencente à rede e outro não pertencente tende ao infinito. Com

o digital divide, hoje, a parcela da sociedade que tem acesso ao ciberespaço e se conecta em

rede pode gozar da ubiqüidade do novo meio; porém, está a uma distância cada vez maior

da parcela não-conectada.

No dia 15 de maio de 2008, recebi através da newsletter do blog de Grillo (La Rete

Del Grillo) uma carta a ele enviada por um leitor do blog, sobre o digital divide. O seu

conteúdo está transcrito abaixo.

Bom dia Grillo.

Escrevo-lhe, me desculpe se me permito tratar-lhe por você, porque vi agora

mesmo um vídeo onde lhe vejo empolgadíssimo falando da nova era da

informação, onde diz que a rede fará isso e aquilo a todos. Eu, por função, e

ocupo da rede e hoje estou trabalhando em uma cidadezinha da planície bérgama

onde não existe de fato a possibilidade de acessar de modo simples a rede. Aqui,

se você quer se conectar e baixar um vídeo, participar de um fórum ou qualquer

outra coisa que preveja o carregamento de uma página só um pouco complexa,

deve trabalhar em uma das duas ou três empresas que são conectadas gastando

uma fortuna, ou comprar um pen-drive e vagar pelo campo procurando um

pouco de UMTS no ar. Atenção, não lhe estou falando de uma cidadezinha no

cimo da montanha, estou falando do centro daquele mundo feito por pequenas

empresas e artesãos que são os motores da nação (segundo alguns).

Me pergunto: mas como é possível? Digital Divide? Não-vontade das

instituições de trabalhar para que isto de que estamos falando seja superado ou

outra coisa?

Um projeto da província vê uma série de municípios, mesmo muito pequenos

como Barbata, Fara Olivana e outros, cobertos pela banda larga até o fim do ano.

Cividate al Piano NÃO. Cortado fora do mundo.

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Aqui continuarão a ler Il Corriere e L'eco di Bergamo, caro Beppe; essa é a

realidade; essa é a batalha a se fazer. Até porque, como você seguramente

saberá, se você não vive na cidade, o único modo que tem para alcançar a rede,

onde é possível, é a infra-estrutura de Telecom. Que você escolha Fulano,

Sicrano ou Beltrano ... sempre passa pelas centrais Telecom e quando tem um

problema deve passar por eles obrigatoriamente.... isto não é "regime"?

Gosto das coisas que você diz, mesmo se às vezes grite um pouco demais para o

meu gosto, mas sei que você está usando uma linguagem que atinge mais

facilmente muitos, de resto para acordar um que dorme não pode nem sussurrar.

Eu gostaria que alguém do seu staff se ocupasse disso.... o digital divide.

Se você já o fez, peço-lhe desculpa por ter feito você perder tempo... entenda

como uma longa saudação.

A própria vitória de Berlusconi nas últimas eleições – episódio que causou uma

frustração tamanha à comunidade do blog de Grillo – pode ser interpretada como um

sintoma do Digital Divide (que não é o único fator, obviamente). Embora tenha capacidade

para lotar as praças de todo o país com milhões de pessoas e recolher milhares de

assinaturas em poucos dias para referendos e projetos de lei, o movimento impulsionado

pelo blog de Beppe Grillo é formado, em sua maioria, pela população jovem e urbana. Nas

abundantes áreas rurais, e entre as grossas camadas mais velhas da população, a Internet

ainda não é uma realidade. Essa parcela da população continua a viver numa sociedade

baseada na mídia analógica e a consumir a informação majoritariamente dos meios de

comunicação de massa.

É preciso superar essa barreira, para que a sociedade em rede e a ciberdemocracia

não se tornem um mito, uma realidade da qual apenas alguns tenham o privilégio de

participar. A emergente sociedade em rede grita contra a obsolescência do paradigma

analógico, mas só obterá o seu espaço quanto mais generalizada se tornar.

A boa notícia é que, como procuramos demonstrar pelos conceitos e exemplos

apresentados ao longo do trabalho, a rede é um meio naturalmente democrático e inclusivo,

aberto à participação de qualquer um desde que em condições de se conectar a ela. Mas a

tecnologia, sozinha, condiciona, não determina. É necessário, neste momento, um pouco

mais de ética hacker, uma vontade deliberada da sociedade em rede de distribuir e

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generalizar o acesso à tecnologia, configurando, na dinâmica da interação homem-máquina,

as possibilidades sociais desta nova tecnologia comunicativa.

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A videografia estará disponível em: <http://desventurasdeumtcc.blogspot.com/>.