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RUÍNAS VERDES: tradição e decadência nos imaginários sociais RESUMO Wagner Cabral da Costa' Análise dos processos de construção da identidade cultural e de instituição dos imaginários sociais sobre o Maranhão. Discute-se a relevância das noções de decadência e de tradição na produção dos intelectuais timbiras, em sua abordagem de temas variados, tais como, a fundação da Academia Maranhense de Letras (com a institucionalização do mito da Atenas Brasileira); a constituição de uma história e de urna geografia regionais; as diversas leituras do "texto" urbano de Alcântara, a cidade morta. Palavras-chave: decadência; tradição; imaginários sociais; identidade regional; Maranhão. ABSTRACT Analysis of the processes of cultural identity construction and of social imaginaries institution about the state ofMaranbão. It discusses the relevancy of the notions of decadence and tradition in the intelectual production of the timbiras, when they write about several themes, as the foundation of the Letters' Academy of Maranhão (with the institutionalization of the Atenas Brasileira's myth); or the history and the geography of the state; or about the readings of the urban "text" of Alcântara, the dead city. Key-words: decadence; tradition; social imaginaries; regional identity; Maranhão (Brazil). 1 INTRODUÇÃO Uma fantasmagoria preside as dis- cussões sobre o Maranhão, ocupando uma posição estratégica quando se pre- tende pensar o complexo e multifacetado processo de instituição dos imaginários sociais acerca da iden- tidade regional. Há quase dois séculos, a decadência local tem sido tematizada pelos discursos politico, econômico e científico, bem como transfigurada es- teticamente em verso e prosa, em sons e imagens plásticas. De longe, revemo-Ia éom amor, num crepúsculo de emoções que suaviza os contornos da reali- dade dolorosa; e através da meditação, que é o caminho da sabedoria, e através da sauda- • Professor do Departamento de História da UFMA e Mestre em História Social pela UNICAMP 79 Cad. Pesq., São Luís, v. 12, n.l/2, p. 79-105,jan./dez. 2001.

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  • RUNAS VERDES: tradio e decadncianos imaginrios sociais

    RESUMO

    Wagner Cabral da Costa'

    Anlise dos processos de construo da identidade cultural e deinstituio dos imaginrios sociais sobre o Maranho. Discute-se arelevncia das noes de decadncia e de tradio na produo dosintelectuais timbiras, em sua abordagem de temas variados, tais como,a fundao da Academia Maranhense de Letras (com ainstitucionalizao do mito da Atenas Brasileira); a constituio deuma histria e de urna geografia regionais; as diversas leituras do"texto" urbano de Alcntara, a cidade morta.

    Palavras-chave: decadncia; tradio; imaginrios sociais; identidaderegional; Maranho.

    ABSTRACT

    Analysis of the processes of cultural identity construction and ofsocial imaginaries institution about the state ofMaranbo. It discussesthe relevancy of the notions of decadence and tradition in theintelectual production of the timbiras, when they write about severalthemes, as the foundation of the Letters' Academy of Maranho(with the institutionalization of the Atenas Brasileira's myth); or thehistory and the geography of the state; or about the readings of theurban "text" of Alcntara, the dead city.

    Key-words: decadence; tradition; social imaginaries; regional identity;Maranho (Brazil).

    1 INTRODUO

    Uma fantasmagoria preside as dis-cusses sobre o Maranho, ocupandouma posio estratgica quando se pre-tende pensar o complexo emultifacetado processo de instituiodos imaginrios sociais acerca da iden-tidade regional. H quase dois sculos,a decadncia local tem sido tematizada

    pelos discursos politico, econmico ecientfico, bem como transfigurada es-teticamente em verso e prosa, em sonse imagens plsticas.

    De longe, revemo-Ia om amor,num crepsculo de emoes quesuaviza os contornos da reali-dade dolorosa; e atravs dameditao, que o caminho dasabedoria, e atravs da sauda-

    Professor do Departamento de Histria da UFMA e Mestre em Histria Social pela UNICAMP

    79Cad. Pesq., So Lus, v. 12, n.l/2, p. 79-105,jan./dez. 2001.

  • de, que ame da emoo maisduradoura e espiritualizada,transportamo-nos s ruas e srunas verdes de Alcntara(LOPES),1970.

    Casares, becos, telbados e mi-rantes. Runas verdes, s vezes lricas,s vezes mordazes, s vezes cruis, es-condendo e preservando medos e sau-dades, lendas e frustraes, mortes,desejos e mistrios. Os significados dadecadncia, embora remetam a umncleo mais ou menos definido estosempre em disputa, em aberto, inde-terminados, sendo constantemente(re)apropriados e (re)inventados segun-do os mais diversos fins e interessesdesde o sculo XIX. Um historiadord'alm-mar j assinalou que a noo

    infinitamentemanipulvelparafins ideolgicos...A filologiad-se conta desta ligao essencialdo conceito de decadncia comumjuzo de valor negativo (LEGOFF,1996,p.413).

    A decadncia e sua contrapartenecessria (o mito da Atenas Brasilei-ra) se conjugam para fornecer oreferencial imagtico e discursivo apartir do qual se fala e se escreve so-bre o Maranho; constituindo esedimentando vrias camadas de idi-as-imagens e representaes, presen-tes no trabalho de historiadores,gegrafos, literatos, produtores cultu-rais, cientistas sociais, polticos (de es-querda e de direita), dentre outros. Odebate sobre a identidade regional, comvariaes mltiplas e contribuies di-versas, tem preponderantemente seorganizado em torno destes temas, con-formando uma teia discursiva ampla que

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    sustentou (e ainda sustenta) prticaspolticas, econmicas e culturais dosmais diversos atores sociais.

    Tradio e decadncia comoelementos instituintes e institudos dosimaginrios sociais (BACZKO, 1984;CASTORIADIS, 1986) - um magmade significaes, sempre a revolver-sepela modificao dos ngulos de anli-se, pela construo de novos sentidos,pela introduo de novas temticas re-lacionadas de forma complexa com asanteriores, pela apropriao ereinveno de antigas significaes.Processo catico, que somente aposteriori pode ser interpretado comoum processo ordenado e linear.

    Assim, ao problematizar a noode decadncia, procuramos perceb-Iaa partir de um duplo enfoque: em suahistoricidade e em sua presena recor-rente nos imaginrios sociais. Nossoesforo, nas pginas que seguem, con-sistir, portanto, numa explorao des-se conjunto de questes, umaexplorao fragmentria e lacunar, namedida em que recolher indciosdispersos no tempo, tendo como refe-rente comum uma categoria suposta-mente "espacial", o Maranho.

    A nvel acadmico, dois trabalhosiniciam a tarefa de questionamento danoo de decadncia, embora sob ti-cas diferenciadas: "A ideologia dadecadncia" do antroplogo AlfredoWagner Berno de Almeida e "Frma-o social do Maranho", do soci-logo Rossini Corra. Enquanto a nfasedo primeiro recai na discusso prprianoo, o segundo se atm mitologiatimbira da Atenas Brasileira (o mitoda "prodigalidade terra-gente" ou

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  • "teologia maranhense", segundo fr-mulas do autor).

    Almeida (1982) centra o seu es-tudo na anlise da historiografia eco-nmica do Maranho, desde oscronistas do incio do sculo XIX(Gayoso, Pereira do Lago e outros),passando pela documentao oficial(relatrios, falas e mensagens de Pre-sidentes de provncia), at os historia-dores do final do sculo XIX e do sculoXX. Constituindo-se num lugar estra-tgico s anlises, a categoria da "de-cadncia da lavoura", utilizada nessasfontes para descrever e explicar o qua-dro econmico conjuntural da provn-cia (especialmente do setoragro-exportador), sendo manuseadapelas diferentes faces polticas aolongo do tempo. Dessa forma, a cate-goria se cristalizou tanto no pensamen-to poltico oficial, quanto na produoerudita enquanto um padroexplicativo aceito sem maiores con-testaes, o que lhe conferiu um fortecarter de consenso (o que, por suavez, amplifica a eficcia do discurso).

    As origens da "decadncia dalavoura" residiriam em seu oposto, a"prosperidade", forma de idealizaode uma suposta "idade de ouro dalavoura da provncia" (fins do sculoxvrn e primeiras dcadas do sculoXIX). Estabeleceu-se assim uma visocclica da histria econmica do Mara-nho, que carrega consigo uma certaperiodizao: a um perodo inicial de"barbrie" (princpios da colonizaoportuguesa), seguiu-se a poca da"prosperidade" (com a implantao dosistema da grande lavoura escravista,como resultado das polticas de fomen-

    to pombalinas), e depois teve incio a"decadncia" (cujo marco terminalseria a abolio da escravatura, porprovocar a runa dos grandes proprie-trios). Nestes termos, a ao oficialobteria legitimidade na medida em queapontasse caminhos para o resta-belecimento da "prosperidade" perdi-da.

    O autor conclui sua anlise afir-mando ser a "decadncia da lavou-ra" a categoria central do discurso daselites regionais, esboando sua viso doconjunto dos problemas econmicos esociais da provncia. (ALMEIDA,1982). A eficcia da "ideologia dadecadncia" se traduz em sua repro-duo acrtica pela historiografia regi-onal, passando por Viveiros (1954/64);Meirele (1980); Tribuzi (1981), dentreoutros. Somente com a safra de traba-lhos acadmicos produzidos a partir dosanos 80, a noo de decadncia eco-nmica comeou a ser questionada erelativizada em maior profundidade.

    J Corra (1993) manifesta a pre-ocupao de proceder crtica do mitoda Atenas Brasileira em sua mate-rializao mais recente, o projeto do"Maranho Novo" (organizado porJos Sarney), bem como das relaesde fidelidade e compromisso desse gru-po poltico com a ditadura militar. Pro-pondo-se fazer uma anlise da categoria"Maranho", com carter ensastico epanormico (sua investigao abrangedo perodo colonial aos anos 1970), apartir do referencial terico do materi-alismo histrico e de um compromissopoltico com a redemocratizao do pase com a cidadania, o socilogo apre-senta como tese central a idia de que a

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  • permanente sobrevivncia dofantasma do passado na socie-dade maranhense ... foi umespectro legitimador de interes-ses econmicos, culturais epolticos",complementandoque"a expectativa do retomo ida-de ureadoparasoperdido, semfundamento na realidade objeti-va, protegeu-se na mtica emgica apologia do renasci-mento(CORRA,1993,p.310-1).

    Sua "arqueologia" rica em su-gestes e imagens sobre as relaesentre intelectuais e poder poltico, e,especialmente, sobre a mitologia timbi-ra, enquanto instituidora de uma identi-dade regional poca do Imprio,identidade permanentemente reconstru-da e reinventada desde ento. Em suaspalavras, as elites provinciais fabrica-ram uma "excepciona-lidade", consagrando o Maranhocomo participe da unidade nacional pro-movida pelo Estado imperial, mas,simultaneamente, "distinguindo-se doconjunto em elaborao, pelo ma-nuseio de uma superioridade espiri-tual, ao definir-se como Atenas".Numa frmula estilstica de impacto,assim resume sua tese:

    Atenas Brasileira - provin-cianismomais refinadodo que onacionalismo[...] Maranhenses,nascidos na Atenas Brasileira.Atenas Brasileira, nascida dosmaranhenses (CORRA, 1995,p.102-104).

    Essa sugesto importante, por-que fornece hipteses para pensar oprocesso de reao e compromissodeste "provincianismo maranhense"

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    (e seus atores, intelectuais e polticos)com outros processos mais abrangentesde formao de identidades no Brasil,no somente a "identidade nacional"(nos diferentes termos em que estaquesto foi colocada desde o sculoXIX), como tambm "identidades regi-onais", no caso, os processos de inven-o do "Nordeste" e da "Amaznia".A situao intermdia do estado entreessas duas macro-regies brasileiras(conforme os critrios geogrficos doIBGE) foi objeto de discusso por par-te dos setores polticos e intelectuaislocais. Mas no somente isto, pois aconstituio do Maranho em "Meio-Norte" (ao lado do Piau), bem comosua incluso na "Amaznia Legal" (nacondio de "pr-Amaznia" duranteo regime militar), possibilitou, apenas attulo de exemplo, a captao de incen-tivos fiscais tanto da SUDENE quantoda SUDAM. Processos de construode identidades culturais regionais e in-teresses polticos e econmicos, esto,sempre, profundamente imbricados ...

    Rossini Corra ainda ressalta o"problema" da "exportao da inte-ligncia maranhense", dadas as con-dies precrias da vida intelectual nadistante provncia, intelectualidade quebusca especialmente no Rio de Janeiroo "reconhecimento nacional", emcontraposio ao "anonimato" e ao"esprito de ressentimento deca-dentista" dos que permanecem na ter-ra-natal. "Problema" cultural esentimental que perpassa a produoliterria e historiogrfica local, assimapontado pelo ateniense Coelho Netoem sua fico autobiogrfica ("A Con-quista", 1898):

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  • Sentaram-se os dois e Anselmo[alter-ego do romancista] pz-sea falar saudosamente da terraamada e longnqua, bero de am-bos, provncia farta que umcelleiro e um Parnaso onde, coma mesma exuberncia, pullulamo arroz e o genio: terra de algo-do e de odes donde, comingrata indifferena, emigram osfardos para os teares da Amri-ca e os vates para a Rua doOuvidor; terra das lyricas, terradas palmas verdes, terra dossabis canoros (COELHONETO, 1921,p.7-8).

    2 A INVENO DATRADIO

    No ano seguinte criao da Aca-demia Maranhense de Letras (AML),Antnio Lbo publicou um livro semi-nal: "Os Novos Atenienses" (1909), noqual o poeta e romancista - considera-do por Moraes (1977, p.206) a "princi-pal figura" da vida literria maranhensenos primrdios do sculo XX - buscafazer um balano das atividades e daproduo de sua gerao intelectual. ensaio foi composto em duaspartes, "os fatos" e "as individualida-des" (divididas entre "poetas" e "pro-sadores"). Precedendo ambas, umarpida introduo, em que o fundadorda cadeira n 14 da AML afirma suafiliao terica a Adolphe Coste("Principes dune SociologieObjective") e aos postulados docientificismo. (LBO, 1970, p.3-10). Ainteno manifesta das "preliminares" refutar as proposies do filsofo ehistoriador Hippolyte Taine sobre a li-

    teratura, especialmente sua tese de queesta seria subordinada " trplice in-fluncia do meio, da raa e do mo-mento". Antnio Lbo apia-se nadistino proposta por Coste entre as"duas ordens de fatos sociais" (inde-pendentes entre si) analisados pelas ci-ncias humanas: a primeira ordem,ligada ao estudo da produo, popula-o, poltica, culto - objetos da Socio-logia; e a segunda, dedicada ao estudodas belas artes, das belas letras, da ci-ncia, da filosofia - objetos de "outracincia, a Ideologia".

    Tal incurso doutrinria teve porobjetivo demonstrar que a histria doMaranho, no advento do sculo XX,confirmaria as teses de Coste. Pois,segundo Antnio Lbo, " inferiorida-de manifesta da nossa vida sociol-gica", cujas "causas gerais" estariamligadas "decadncia econmico-fi-nanceira ... alia-se uma grande exu-berncia de vida ideolgica". Segue-seuma passagem bastante expressiva:

    Aos anos de apatia e marasmo,que se seguiram brilhante efecunda agitao literria, de quefoi teatro a capital dste Estado,nos meados do sculo findo, eque ficar marcando, para honrae glria nossa, uma das pocasmais fulgente da vida intelec-tual brasileira, substituiu-se, afi-nal, uma fase franca derevivncia intelectual, que, des-de o seu incio, vem progressi-vamente caminhando, cada vezmais acentuada e vigorosa, des-tinando-se a reatar asriqussimas tradies das nos-sas letras, que a muitos se afi-guravam j totalmente perdidas(LBO,1970,p.4-5).

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  • Dessa forma, o livro dedicadoao estudo da "ressurreio espiritu-al", ao "atual rejuvenescimento lite-rrio do Maranho", buscando "fazerobra imparcial e justa, como devemser todas aquelas que se destinam atransmitir ao futuro a memria dopresente". A primeira parte ("os fa-tos", dotados da aura mgica de porta-dores da "verdade", segundo oscnones positivistas e cientificistas)dedica-se construo da histria (etambm da memria) da gerao doautor - os "Novos Atenienses", paisfundadores da Academia Maranhensede Letras.

    Contudo, sua exposio vai alm,ao instituir uma periodizao da vida li-terria local em torno da idia de trsgeraes consecutivas: a primeira, deinspirao romntica (contando comGonalves Dias, Odorico Mendes,Sotero dos Reis, entre outros), geraoapenas debelada pela morte, cujo "can-to de cisne" foi a publicao do jornalSemanrio Maranhense (1867-68); asegunda, aquela dos que "emigraramda Provncia, indo levar a outrasmais afortunadas o concurso preci-oso dos seus talentos e da sua ativi-dade", migrao forada pela"barreira inexorvel da indiferenapblica", cujo caso extremo foi a rea-o adversa da sociedade ludovicenseao romance "O Mulato", de AlusioAzevedo; a terceira, a gerao do pr-prio autor, responsvel pelo "rejuvenes-cimento literrio" da poca.(AZEVEDO, 1981, p.13-5).

    Apesar da distncia geogrfica, oscomponentes da 2 gerao (os "emi-grados"), eram

    os depositrios fiis das nossastraclies, "os herdeiros diretosdo nosso nome literrio", osnicos que nos asseguravamainda incontestado direito aorealante cognome de AtenasBrasileira (AZEVEDO, 1981,p.l5-6).

    Enquanto esses literatos se envol-viam ativamente na vida cultural dacapital federal, a provncia se encon-trava assombrada:

    Comeou ento para o Mara-nho essa tristssima ecaliginosa noite, em que, por tolongo tempo, viveram imersas assuas letras, noite cortada, porvezes, pelo claro fugidio de al-gum astro errante, que para logose ia eclipsar na morte, ou per-der-se na distncia a que eraimpelido pelas inelutveis fata-lidades da sua trajetria(AZEVEDO,1981,p.l4).

    Decadncia - noo instituda eao mesmo tempo instituinte dos imagi-nrios sociais, cuja vitalidade pode serdimensionada por sua reproduo e re-criao posterior. historiador MrioMeireles, ao analisar o panorama cul-tural dos prirnrdios da Repblica, pos-tula a idia de uma "isocronia entreas fases da evoluo de nossa vidaeconmica e de nossa vida cultural"(posio que o colocaria ao lado deTaine, no debate com Adolphe Coste).Ao "ciclo econmico do algodo",corresponderia o "ciclo literrio dochamado Grupo Maranhense (1832/1868), dominado pelo espritohumanstico dos doutores e bacha-ris de Coimbra e Olinda " , dos ''fi-lhos dos nossos grandes senhores

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  • rurais"; ao "ciclo da cana de a-car", o "segundo ciclo literrio(1868/1894)", momento em que "aprovncia no mais se satisfez com oter, em sua capital, um 'grupo'romantista" e passou a exportar "osseus valores intelectuais, aindaincipientes, para que, na Corte, sefaam e se firmem como nomes naci-onais, apenas nascidos no Mara-nho" .

    Com a abolio e a Repblica (eo "desequilbrio e decadncia eco-nmica"), sobreveio o "ciclodecadentista (1894/1932)" que vive-ria "das glrias daquele passado",momento em que o Estado

    apenas procura lutar por que seno apague a chama daqueleideal e se no perca a tradioque deu as glria de Atenas doBrasil (MEIRELES, 1980,p.353-4).

    Mesma periodizao, velhas e no-vas significaes, compartilhando a pre-ocupao de preservao da identidadee tradio do Maranho. Apesar dereconhecer os mritos da gerao dos"novos atenienses", em sua luta "pelorestabelecimento dos foros de gran-deza intelectual da terra", em seu tra-balho de fundao da AML (1908), daFaculdade de Direito (1918) e do Insti-tuto Histrico e Geogrfico do Mara-nho (IHGM, 1926), Mrio Meirelesconsidera-a "decadentista" porque "seno pode negar, [essa fase] foi inferiors dos ciclos anteriores" (IHGM, 1926,p.355).

    A manipulao discursiva das ima-gens da decadncia e da tradio en-contra-se, portanto, articulada a

    estratgias de legitirnao (ou no) depersonagens e grupos intelectuais nocenrio estadual; determinao dos"lugares a ocupar" na histria da lite-ratura maranhense.

    Moraes (1977, p.201-205), apesarde incluir em seu texto alguma pesqui-sa nova com jornais da poca("Filomatia" e "A Alvorada"), prati-camente reproduz o essencial do argu-mento de Antnio Lbo, especialmenteno tocante fundao da Academia deLetras, "rgo cultural a que, por seucarter de permanncia, estaria reser-vado relevante papel na histria de nos-sa cultura"

    Novas imagens e representaescombinam-se a novas prticas, associ-adas s instituies culturais fundadasnas primeiras dcadas do sculo XX.Estamos diante de um processo de "in-veno da tradio", com a forma-lizao de:

    um conjuntodeprticas,normal-mentereguladaspor regrastcitaou abertamenteaceitas; tais pr-ticas, de natureza ritual ousimblica,visam inculcar certosvalores e normas de comporta-mento atravs da repetio, oque implica, automaticamente,uma continuidadeem relao aopassado (HOBSBAWM,1997,p.9).

    o "carter de permanncia"dessas instituies no contexto regio-nal constitui uma tentativa de supera-o do tempo, unificando passado epresente, e projetando para o futuro apossibilidade e a esperana de retomo Idade de Ouro. Em funo das pr-prias condies de eficcia do discur-

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  • so, acaba-se por delimitar um deversimblico a cada nova gerao (cate-goria artificial que, no mesmo proces-so, se "naturaliza", criando uma supostacontinuidade e homogeneidade biolgi-ca e temporal, que se reproduz social-mente enquanto continuidade horizontal,da "gerao", da "mocidade"), qualseja, o dever de deixar o seu quinhode contribuio s "glrias" da terra-bero, atribuindo aos intelectuais umpapel de interveno demirgica nasociedade local.

    Simultaneamente, houve um des-locamento dos processos de "consagra-o literria" a nvel estadual, quepassaram a ser mediados por essas ins-tituies, as quais detm o poder deconferir um status diferenciado a seusmembros no interior da sociedade ma-ranhense. De certa forma, o mesmoocorre com os "emigrados", pois, aolado do reconhecimento adquirido na"metrpole", muitos deles, mesmo distncia, passam a fazer parte dessasinstituies, na medida em que as mes-mas acabam funcionando comoincentivadoras do "sentido coletivo desuperioridade das elites"(HOBSBAWM 1997, p.18).

    3 MAPEANDO A TERRA DASPALMEIRAS

    Alm da histria, da literatura edo discurso poltico, um outro campode produo de saberes se insere nodebate sobre a identidade e a tradiodo Maranho, a geografia, que, ao pro-duzir conhecimentos sobre a regio,tambm se movimenta no universo dateia discursiva constitutiva dos imagi-

    nrios sociais, significando e re-signifi-cando, abordando velhos temas e pro-pondo novos.

    Lembrando o carter exploratriodeste texto, iremos tratar neste tpicode um dos livros fundantes da geogra-fia do Maranho, "Uma regio tropi-cal" de Raimundo Lopes (publicado em1 edio com o ttulo de "O torromaranhense", 1916).

    No "Prlogo", o autor anunciaseu intento de aplicar os princpios e osmtodos da "moderna geografia" aoestudo do caso particular do Maranho(LOPES, 1970, p.l-4). Esta geografiacientfica tem por objetivo de produziruma "sntese total dos fenmenos doplaneta" (uma "geografia do todo"),articulando aspectos inter -relacionados:o "meio fsico" (geografia fsica), a"vida" (biogeografia: fauna, flora), a"formao humana", e a geografia"no tempo" (histrica). Por conta dis-so, o carter sistemtico e abrangenteda obra, que envereda por campos taiscomo a economia, a etnologia indgena,a questo racial, a histria. Na percep-o do conjunto, o leitor vaidescortinando aos poucos o estabele-cimento de "problemas", apontadoscom o ntido propsito de intervenona realidade com vistas construode um "Maranho renovado".

    O debate, que, como vimos apon-tando, girava em tomo da definio daidentidade regional em termos da "ex-cepcionalidade maranhense" no con-texto do pertencimento nacionalidadebrasileira, sofreu uma inflexo signifi-cativa com a introduo do saber cien-tfico. Inflexo que acompanhou amudana de paradigmas operada no

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  • debate sobre a identidade nacional; de-bate no qual, sob influncia das corren-tes cientificistas e positivistas, diversosgrupos intelectuais se envolveram ati-vamente visando construo de umsaber prprio sobre o Brasil que possi-bilitasse sua transformao e moderni-zao.

    Foi imbudo desses princpios eidias que Raimundo Lopes se predis-ps a pensar o Maranho. O primeiroponto a destacar a discusso da ques-to racial. Preso a fortes preconceitossobre a superioridade "civilizatoria" da"raa branca", e com um particulardesprezo pelo "mulato" (mestio bran-co/negro), em contraposio ao "cabo-clo" (mestio branco/ndio - por quemnutre alguma "simpatia", na linha daambigidade de Euclides da Cunha), ocientista acompanha em linhas geraisos parmetros do debate existente nopas no incio do sculo XX acerca dostemas correlatos da raa, damestiagem, do carter e da culturanacionais. (LOPES, 1970, p.62-3, 67-73). Segundo Albuquerque Jnior(1994, p.55), a interpretao naturalis-ta e evolucionista do Brasil

    considerava o pas como estan-do preso a um estgio culturalinferior, ainda no tendo atingi-doacivilizao.OBrasileravistocomo atrasado em relao a umprocesso cujo desenvolvimen-to paradigmtico se dava naEuropa.

    Dessa forma, diversos discursosvo mapear o pas, dividindo-o em "re-gies raciais", discursos que, no mes-mo procedimento, "procurarojustificar a superioridade de um es-

    pao sobre outros" e serviro de su-porte imagtico da produo dos "es-teretipos e preconceitos regionais".Alm disso, houve a emergncia do"saber biotipol gico", que colocavana ordem do dia "a definio do queseria o 'tipo nacional"', a partir da"construo de tipos raciais e cultu-rais", os quais aliam

    caractersticassomticascom asmanifestaesexteriores da psi-cologia dos indivduos ougrupos, procurando determinaro que os individualizava no ni-vel comportamental (ALBU-QUERQUE JNIOR, 1994, p.62,66).

    A investigao de RaimundoLopes, acerca das "raas" e do "car-ter psicotnico" do "maranhense", seconstri numa relao que pensa tantoas "raas" e o "carter" do "brasilei-ro", quanto a especificidade "maranhen-se" nesse conjunto. Vejamos oargumento. Ao analisar a "formaohumana", inclui o Maranho na "zonado caboclo", segundo classificaoelaborada por Roquette-Pinto, porque"realmente, o mestio de sangue ind-gena, descendente na 'baixada' doscatecmenos das misses, forma osubstratum da populao maranhense".Apesar de, no "litoral", haver uma"zona de influncia preponderantedo branco", isto no impede que, emseu conjunto, o estado seja predominan-temente "mestio" (LOPES, 1970,p.62,77).

    Ao tecer comentrios sobre as"raas puras" (baseado em seus co-nhecimentos de etnologia indgena) afir-ma que "a atitude dos nossos ndios

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  • tem sido mais subterrnea que aber-tamente hostil, e quase apenas de-fensiva". Os conflitos seriamresultantes das "prprias necessida-des [de terras] da civilizao e dospreconceitos, tanto do civilizadocomo do selvagem", assim, "o qua-dro que se nos apresenta o de doismundos, tendo evoludo distintamen-te e que esto em graus muito diver-sos de cultura". J em relao "raanegra", a apreciao no to positi-va.

    Desde os tempos coloniais cadavez mais se afirma o predomnio,social e tnico, da raa branca ...[vitria proveitosa, porque]malgrado o horror do regimeescravista e a marca, porventuraindelvel, que ele deixou no sermoral do brasileiro, a raa negrapouco a pouco se elevou, aocontacto do branco, e o descen-dente do fetichista antropfagodo Congo converteu-se, pelocruzamento ou pela educao,num civilizado (LOPES, 1970,p.68-70).

    Apesar do marcado preconceitoem relao a negros e mulatos, o autorfaz rpidas consideraes sobre a exis-tncia de quilombos no Maranho, con-siderando-o "uma das provncias ondemais se desenvolveram osquilombos", alguns "notveis" comoos de Viana (possivelmente uma refe-rncia insurreio de 1867) e de Cod,este ltimo dos tempos da Balaiada,comandado "pelo lendrio efunambulesco senhor Dom CosmeBento das Chagas, 'tutor e impera-dor das liberdades bem-te-vis:",Menciona ainda "as confrarias feti-

    chistas das 'Pretas Minas', que seexplicam pela conservao dos cos-tumes e supersties africanas", con-sideradas uma "curiosa associao,com as suas estranhas prticas, emque o catolicismo romano se misturas usanas e crendices do Continen-te Negro". Elementos que constituema "tradio racial da nossa terra"(LOPES, 1970, p.69,73).

    Chamamos a ateno sobre esteponto, porque ele sinaliza no sentido deuma outra mudana fundamental nasrepresentaes sobre o Maranho,aquela que se deu com a introduo datemtica da cultura popular no deba-te acerca da definio da identidadenacional. Vrios intelectuais passarama se ocupar desta temtica, a exemplode Antnio Lopes e Domingos VieiraFilho. J apontamos em artigo sobre obumba-meu-boi, sua transformao emsmbolo maior da identidade cultural doMaranho, em virtude da atuao deintelectuais e rgos oficiais de cultura(como tambm dos prpriosbrincantes); transformao que pro-duziu um "silenciamento" da histriaanterior de conflitos entre osbrincantes de bumba-meu-boi e as eli-tes locais. (COSTA, 1999). No caso dacultura negra, a mais acabada expres-so literria da apropriao e reinvenodessa temtica pelos intelectuaistimbiras o romance "Os tambores deSo Lus" de Josu Montello, que tomacomo referente de construo estticaa religio afro-brasileira da "Casa dasMinas".

    A anlise das "raas" complementada pela definio do "tipo"e do "carter" regional. Afirmando que

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  • no Maranho haveria "um tipo maisvago e mais complexo" do que aqueledo ''jaguno'' (definido por Euclides daCunha), o autor aponta "vrios tiposmaranhenses" (relacionados s "zo-nas geogrficas" do estado): "o pes-cador ribeirinho, indolente, reflexoquase fiel do selvagem; o vaqueiro doscampos baixos, mais empreendedor,aventuroso; o lavrador rude, sbrio; osertanejo do Chapado, ambicioso erude". E o homem da capital,

    o sanluisense, tipo burgus,avesso a violncias, grave, comum pouco de atividademole domulato, encarcerado na rotinafuncionalista e comercial(LOPES, 1970, p.195).

    Destes tipos sub-regionais resul-taria "um tipo mdio, atravs da his-tria e do povoamento", o"maranhense". Vale a pena acompa-nhar a descrio desse personagem:

    omaranhense tem em alta esca-la um vcio quase geral danacionalidade:confundir inicia-tiva e anarquia, ordem emarasmo.A ao no lhe falta, esim a continuidade dela; tbiopor vezes e desanima s dificul-dades. A audcia dosaventureiros-lhe tanto oumaissuspeita que o emperramento...As suas mais belas qualidades,a "tolerncia" e a "ordem", oumelhor, adaptabilidade,chegama degeneraremdefeitos.Intelec-tualmente, nota-se a facilidadede idealizar e aprender. incon-testvel que estes "atenienses"- permita-seo tradicionalepteto- tm, como os defeitos dosseus prottipos clssicos, uma

    tradiode cultura literria rela-tivamente notvel, e cabe-lhesum lugar de destaque na forma-o intelectivanacional.H umaqualidade suprema que nuncafaltar ao clamomaranhense: ocolorido,a graae o valordadic-o. Sob o ponto de vista dacriao esttica e cientfica, temdado exemplo de esprito crticoclaro e seguro, e de foraconceptiva e associativa. Umavaidade de raa exagerou o va-lor desses dotes, conferindo "terra das palmeiras" uma pree-minncia que no se traduz emplena realidade.Moral e religio-samente, o filho do Maranhotem bastante senso para no serfantico; entre os nossos pr-prios sertanejos no sedesenvolveram tendncias ms-ticas [do "beato-cangaceiro"](LOPES,1970,p.196).

    Este o "maranhense" na pena deRairnundo Lopes, "tolerante", "ordei-ro", "adaptvel", "inteligente", excelen-te "falar", "esprito crtico", "religioso",e no "fantico" (como os sertanejosde Canudos); mas portador de "gran-des defeitos", tais como, "tbio", "roti-neiro", "acomodado", e com uma"vaidade de raa" que o levou a exa-gerar na construo da tradio da Ate-nas. Se o senso crtico do autor no lhepermite aceitar sem reservas as repre-sentaes construdas, por outro lado,seu campo de significaes est cir-cunscrito questo fundamental em de-bate: a busca e determinao daespecificidade maranhense, acres-cida em seu trabalho da pesquisa sobreos tipos regionais.

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  • Nestes termos, avana na propo-sio de uma outra especificidade daterra enquanto uma "zona de transi-o". Em suas palavras:

    no conjunto das grandes regi-es brasileiras, o Maranho fazparte da complexa 'transio'entre o Extremo-Norte (a Ama-znia) e o Nordeste, entre abaixada e o planalto, sob o pon-to de vista do relevo, como entrea grande mata e o serto, sob oponto de vista da flora (LOPES,1970, p.1l5).

    Singular e complexo geografica-mente, com caractersticas tanto doserto, quanto da hilia amaznica("peri -hilico", pr- Amaznia), comdestacada presena da palmeira debabau, dominante na chamada "zonados cocais".

    Contudo, o gegrafo revela-seconsciente do carter arbitrrio da ca-tegoria "Maranho", cuja existnciaseria devida unicamente a critrios po-ltico-administrativos. Sendo assim, anica rea genuinamente "mara-nhense" seria a bacia do golfo (forma-da pela ilha de So Luiz e pelos riosinteriores, o Munim, o Itapecuru, oMearim, e seus dois afluentes, Pindare Graja), pois unida geogrfica,demo grfica, econmica e historica-mente. Tal concluso leva formula-o de um "problema" maranhense, oda "integrao" das reas "isoladas"ao resto do estado e conseqentemen-te ao pas, visando sua "unificao reale definitiva" (LOPES, 1970, p.197).

    O "problema da integrao"apresentaria duas dimenses: o "pro-blema da mata" (a regio oeste do

    estado, de floresta amaznica) e o "pro-blema sertanejo" (o "alto serto",regio sul maranhense). Tanto o "de-serto florestal", potencialmente ricoem produtos extrativos (a imagem de"deserto humano" para designar ahilia foi tomada de emprstimo aEuclides da Cunha), quanto o sulpecuarista necessitariam ser integrados,"seno continuar metade do Mara-nho como que esquecida da outrametade, num mundo parte" (LOPES,1970, p.176).

    bvios os interesses econmicose polticos (as citaes, por exemplo,s "desordens" freqentes no serto)envolvidos na tese da "integrao re-gional" sob a gide do "litoral", a qualprojeta, implicitamente, a idia de darconcretude econmica e histrica auma categoria predominantemente po-ltica, o "Maranho".

    A equao se completa com aabordagem do "problema" econmicomaranhense, com uma economia imersana rotina e no atraso, contraposta ao"progresso" do sul do pas. Por isso, aexortao por um "Maranho reno-vado", construdo a partir da adoode medidas reformistas, amparadas emcritrios cientficos. As imagens e re-presentaes da "ideologia da deca-dncia" so acionadas pelo discursogeogrfico, (rejproduzindo o desejo deum mtico "renascimento", umflorescimento da

    nossa cultura material e mental,mais coesa, mais forte e mais bri-lhante, numa cidade nova, que,resultante do novo estado decoisas, pompeie, como a prince-sa dos campos, na convergncia

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  • dos grandes rios, no centro daplanciefecunda (LaPES, 1970,p.197).

    Entretanto, num ponto fundamen-tal, a anlise econmica do autor di-vergente do senso comum sobre a"decadncia da lavoura". O que sepode observar uma disputa entre asrepresentaes que devem norte ar apercepo da realidade, processo noqual a "vitria" de determinada concep-o, implica no "apagamento" de ou-tras, em seu "silenciamento". O pontode discrdia reside na anlise da criseps-abolio, a qual marcada na mai-oria dos intrpretes pelas imagens da"catstrofe" e da "hecatombe".

    Analisando a estrutura agrria,aponta como a "grande doao", a"sesmaria", foi "o defeito da parti-lha de terras no Brasil", e como, nocaso maranhense, o problema da con-centrao fundiria seria menos acen-tuado, pois,

    aAbolio facilitou o evoluir dapartilha das terras, pela substi-tuio "efetiva" mas aindaincompletamente"estabilizada"das fazendas senhoriais pelasfamlias de lavradores (LaPES,1970,p.82).

    Essa concepo crtica da ques-to agrria lhe permite concluir, ao fi-nal da anlise, que a vitria doabolicionismo:

    [...] foiumacriseeconmicapro-funda, mas trouxe -'maverdadeira renovao social, al-tamente benfica em seuconjunto. Suas conseqncias

    se desenrolam no perodo repu-blicano. A importncia daaristocraciaagrcola se desfaz: pujana dos orgulhososauriocratas [sic] da faixa vizi-nha dos campos baixos sucedea prosperidade dos pequenoslavradores, e da cultura algodo-eira.A estaltimaseprendeumatentativa industrialista, umaquase mania das fbricas; aomesmo tempo tenta-se, sem re-sultados definitivos, regenerar aindstria do acar. Apesar detudo o trabalho dos pequenoslavradores, aindahoje, a base davida econmica do Maranho(LaPES, 1970,p.194).

    Com todas as ressalvas que pos-sam ser feitas, a anlise de RaimundoLopes se encontra prxima da recentereviso da questo promovida ao nvelda pesquisa universitria. "decadn-cia da aristocracia" sucederia a"prosperidade dos pequenos lavra-dores", pensada enquanto uma "reno-vao social" . Novos ngulos deabordagem: a determinao da "deca-dncia" como afetando uma classesocial especfica (expressando o pontode vista das elites locais) e a viso po-sitiva do processo de transformaesna estrutura agrria. Contudo, o autorno se estende na avaliao do "pe-queno lavrador" nomeado (fora rpi-das passagens sobre ser "rude e sbrio"e sua cultura "rotineira" e destrutiva),pois suas pginas mais emocionadas eplenas de imagens foram dedicadas "decadncia da aristocracia", atra-vs da descrio de um (no) lugar -Santo Antnio d' Alcntara.

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  • 4 AS CIDADES COMO"TEXTO"

    "Alcntara, a morta". Conside-rado durante o Imprio o ncleo urba-no "mais polido", "mais faustoso" emais "aristocrtico" da provncia, tor-nara-se uma fantasmagoria, um vilarejode sofridas lembranas aps o abando-no de seus casares pelas elites derro-cadas. A partir do ltimo quartel dosculo XVIII, a conjugao da agricul-tura escravista e do alto comrcio pos-sibilitou antiga aldeia de Tapuitaperarivalizar em prestgio com So Lus (oautor chega mesmo a comparar tal con-traste com o conhecido conflito entre aaristocrtica Olinda e a burguesa Re-cife). A "prosperidade" foi sendo aba-lada ao longo do sculo XIX por umaconjuno de fatores: a comunicaodireta de suas reas-satlites na baixa-da com a capital; a lei abolicionista; odeslocamento da atividade econmicapara o baixo serto. Entretanto, no nosdeteremos em anlises econmicas,mas sim na imagtica construda sobresua decadncia e morte.

    [...] cidade meio abandonada,A1cntaraguarda ainda as rel-quias do fausto extinto ...Edificou-se num plano largo,quasemonumental,ruas amplas,casas slidas, numerosos sobra-dos, muitos dos quais soverdadeiros palacetes ... E a ve-lha cidade morta, com os seustemplos derrudos e casaresdestelhados, tem a poesia dopassado, da grandeza perdida,das relquias venerveis[ ... ](LOPES, 1970, p.103-4).

    ...essas fazendas, que foramcol-mias do trabalho a1cantarense,e so hoje taperas, reveladasapenas pelas mangueiras secu-lares e pelos alicerces dosassentamentos dos engenhos...e, finalmente, essa rua daAmar-gura, cujo nome lhe profetizouodestino, hoje runas de ponta aponta, onde outrora se erguiamas principescas residncias dosMendes, dos Sousas, dosGuterres, dos Vales e tantos ou-tros potentados (VIVEIROS,1975, p.54-5).

    Decomposio, runa, relquia,morte, fel, poesia. Representao dadecadncia em termos de imagens ale-gricas, que orientam o olhar e a per-cepo. "Metforas de longo alcance",que "no reproduzem os eventos quedescrevem", mas sim "nos dizem a di-reo em que devemos pensar acercados acontecimentos e carregam o nos-so pensamento sobre os eventos devalncias emocionais diferentes"(WHITE, 1994b, p.107-8). Decadn-cia cujo substrato material o sobradoem runas, a fazenda regredindo emtapera. A "poesia das ruas" - triste,como vente - das velhas cidades colo-niais se transformou, assim, em temarecorrente dos discursos locais, em es-pecial daqueles dedicados s principaiscidades da Idade de Ouro: So Luiz eAlcntara, cidades-runa. Espaos dasaudade. Sentimentos despertados nosimples ato de visit-Ias.

    Basta percorrer algumas ruas deSo Lus para se sentir que opassado ainda ali est presente.So os velhos sobrados senho-rrais.i. So os casares

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  • apalaados... So igrejasvenerandas ... So as ruelas es-treitas, onde ainda se vemalguns 'passos' das procissesde antanho, que nos transpor-tam insensivelmente para ossculos coloniais (AZEVEDO eMAlTOS, 1951,p.72-4).

    Transportar, trazer para outro lu-gar, metfora (meta-phorein). Vencera distncia temporal, esta a sensaodo gegrafo Aroldo de Azevedo (pro-fessor catedrtico da USP), a de estarcaminhando por uma cidade que o "tem-po esqueceu", contraposta sua per-cepo de habitante de uma metrpole,onde o "tempo corre depressa". A ci-dade como um "texto" do passado, deuma poca de glrias perdidas nas bru-mas do tempo, mas reencontradas atodo o momento ao dobrar-se uma es-quina, no sobrado, nas pedras de can-taria, nos azulejos e mirantes. Esta aleitura potica da urbe colonial, que oturista registrou com sua mquina fo-togrfica, direcionando o "olhar", como intuito de preservar mecanicamenteeste "instantneo" do passado. A mes-ma sensao aguardava-o no outro ladoda baa de So Marcos.

    No tardou que nela se concen-trasse a aristocracia maranhen-se, vivendo uma existnciafaustosa, orgulhosa de seus ca-sares apalaados e olhandocom certo desprezo para SoLus, centro da burguesia dapoca, considerada uma cidadede mercadores ... Desse modo,foi Alcntara posta fora de com-bate; hoje, nada mais que umespectro do passado, uma cida-de "morta" (que o governo fe-

    dera! j considerou "monumen-to nacional"), com suas ruasdesertas e cobertas de capim,seus venerandos sobrados quepodem ser alugados por 50 ou100 cruzeiros mensais, suas tris-tes runas, invadidas pelo mato(como as que se encontram nachamada Rua da Amargura)(AZEVEDO e MATOS, 1861,p.76-7).

    "Derrotada", a "Olinda mara-nhense" transformou-se em cidade-fantasma, a natureza reivindicando seusdespojos atravs do capim e do mato.Contudo, sua rival "burguesa" conquis-tou uma "vitria de Pirro", pois, mes-mo que seus casares ainda persistamem manter-se de p, conservaria, comosua antiga rival, uma relao especfi-ca com o tempo, a ausncia. Assim, orepertrio alegrico da decadncia ex-pande-se em nova erupo.

    So Luiz e Alcntara, cidades-tex-to da decadncia, cantadas em verso eprosa na literatura regional, escriturasde um passado desaparecido em seufausto e esplendor, cidades-histria quenos transportam alegoricamente do pre-sente ao passado e vice-versa, monu-mentos, runas, patrimnios dahumanidade. Segundo Fletchre (1990)por um efeito de "condensao", seestabelecem "pontos de fixao" nasimagens da decadncia, pontos que, emnosso caso, so melhor visualizados pormeio da produo literria.

    Selecionamos para anlise o ro-mance "A noite sobre Alcntara" deJosu Montello, narrativa de "con-densao" dos imaginrios sociaismaranhenses. Romance histrico de

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  • "fixao", mas tambm de "institui-o", que

    sempre significa mais do que li-teralmentediz, diz algodiferentedo que parece significar, e srevela algumas coisas sobre omundo ao preo de esconderoutras tantas (WHITE, 1994a,p.28).

    Romance epitfio, recheado desaudade, decadncia e "expresso davida", constitutivo da saga maranben-se do autor. [Tal saga - concretizaodo projeto literrio de (re)construo da

    , identidade regional - compreende v-rios romances, dos quais destacamos"A dcima noite" (1959), "Os degrausdo paraso" (1965), "Cais daSagrao" (1971), "Os tambores deSo Lus" (1975), "A noite sobreAlcntara" (1978). Este ltimo foiapresentado como a "saga da aristo-cracia maranhense", contraposta (ecomplementar) "saga do negro" (em"Os tambores")].

    Um ponto de partida possvelpara a nossa investigao so as pa-lavras de outro intelectual regionalistae tradicionalista, Gilberto Freyre, que,em comentrio ao romance "A dci-ma noite", se perguntou: "qual o atra-tivo principal do novo livro do escritormaranhense?". A resposta evidenciaum critrio de juzo esttico funda-mental ao escritor pernambucano - aliteratura enquanto "arte de expres-so", "expresso da vida" - crit-rio pelo qual combate em defesa daliteratura regionalista. Vejamos, en-to, a resposta:

    [...] (o atrativo ) a evocao deum Maranho que j quase no

    existe, por um maranhense que tambm um raro artista liter-rio; e que guarda daqueleMaranho quase desfeito ima-gens de uma rica sugestopotica. So essas imagens queenchemADcimaNoitede umasrie de ressurreies de temposmortos, que vm atum homemde hoje com alguma coisa denostlgico, de saudoso, s ve-zes at de sentimental, que sfaz aumentar o seu encanto(FREYRE, 1962,p.23).

    O poder de "evocao", podermgico de invocar almas, espritos edemnios, de chamar memria, dereproduzir na imaginao e no esprito.Poder divino de ressurreio, de(re)criar o mundo, poder irnagtico doromancista de "tocar a sensibilidade"do "homem de hoje", atravs do des-pertar de "sugestes poticas". Po-der conjugado "virtude denarrado r" , que constri sua trama emuma dupla temporalidade, em que pas-sado e presente [dos personagens] seinterpenetram (FREYRE, 1964, p.21-25). Esse juzo de valor esttico, cujospressupostos residem na filosofia idea-lista alem, pensa o ato de "compreen-so" como "interpretao dasmanifestaes da vida", da "expres-so" de seus "sentimentos" e suas"emoes". O poder de "evocao"tem a capacidade de superar a distn-cia (temporal e geogrfica) entre oshomens, a partir do postulado de umaidentidade fundamental entre todo equalquer homem. Movimento de supe-rao, que, por sua vez, transforma oregional, o maranhense, em universal,atravs da "empatia" e da "identifi-

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  • cao" (RICOEUR, 1990; SZONDI,1989).

    Visto por esse ngulo, o projetoliterrio de Josu Montello adquire con-tornos mais precisos. No depoimentopessoal com que se inicia o romance, oescritor relata uma "travessia" paraA1cntara, visita que lhe forneceu oleitmotiv do livro, comentando que "tar-de da noite, muitos destes imponen-tes sobrados senhoriais, h tantotempo fechados, misteriosamente sedescerram. Como outrora, refulgemas luzes de seus sales no retngulodas janelas sobre a rua". Ao queacrescenta:

    [...] fiquei a pensar nessas res-surreies noturnas. Lenda?Realidade? E aos poucos come-cei a ver que, luz do sol,Alcntara retrocedia no tempo,com o retinir das ferraduras naspedras de seu calamento, orolar das carruagens de porti-nholas brasonadas, as janelasque se escancaravam sobre opasseio, e gente que vinha, egente que ia, grave colorida, nassuas roupas fora de moda, e quepassava por mim sem me olhar(MONTELLO, 1978, p.7).

    Atravs da reflexo (imaginao),efetuada " luz do sol", o romancistavence o tempo e se transporta ao pas-sado "vivo" de A1cntara, passado queressurgia (na "lenda" ou na "realida-de") somente "tarde da noite", en-quanto a "claridade do novo dia" nochegava. O jogo de palavras com ossignificados metafricos de "dia" e"noite" no inocente, o autor os re-veste de tal ambigidade que a "noite",usualmente associada s idias de morte

    e decadncia, tambm pode ser "ex-presso de vida" e "ressurreio" (amesma ambivalncia vale para o "dia").Em passagem marcada pela morbideze pela melancolia (com pitadas de gro-tesco alegrico), confrontando a sensi-bilidade e os sentidos do leitor, o mesmojogo de ambivalncias reaparece a con-figurar a idia de "cidade morta".

    De repente, j longe, teve a sen-sao ntida de que ia andandopela alameda de um cemitrio. Ascasas fechadas eram sepulcros,e ali jaziam condes, bares, vis-condes, senadores do Imprio,deputados, comendadores,sinhs-donas, sinhs-moas,soldados, mucamas, juzes, ve-readores, sacerdotes. Somenteele, assim desperto dentro danoite, estaria vivo na cidade demortos. E uma impresso instan-tnea de frio gelou-lhe as mose os ps, com a idia de que, tam-bm ele, ia permanecer emAlcntara para sempre, encena-do no mausolu de seu sobrado(MONTELLO, 1978, p.245).

    Alegoria comemorativa de umacidade-fantasma, que noite domi-nada por pesadelos, alucinaes e as-sombraes (de escravos annimos ede pessoas "importantes", a exemplodo Baro de Pindar), "A noite sobreAlcntara" oferecido leitura sob osigno da ambigidade e da ambiva-lncia. O romance proporciona ao lei-tor a possibilidade de uma volta aopassado que apaga a passagem des-truidora e corrosiva do tempo sobre acidade, e, simultaneamente, coloca parao presente a necessidade de preserva-o das runas verdes de A1cntara

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  • (patrimnio histrico). Num nvel maisabstrato, projeta-se para o futuro o de-sejo de que efetivamente os "imponen-tes sobrados senhoriais" descerremsuas "janelas sobre a rua", num tem-po cclico de volta Idade de Ouro doMaranho. Santo Antnio d' Alcntara- cidade-texto da decadncia, "cidademorta" renascida na literatura.

    A estrutura narrativa cumpre umpapel importante na concretizao doprojeto literrio do romancista, encon-trando-se dividida em duas partes - "Atravessia" (depoimento do autor) e"Enquanto a noite no vem" (o ro-mance propriamente, subdividido em 5partes). A ambigidade caractersticado romance pode ser observada na fun-o das sete epgrafes que cor-respondem a esta diviso. Estascumprem o papel de epitfios deAlcntara, e, na medida em que se api-am em diversas representaes sobrea cidade-runa (de poetas, gegrafos ehistoriadores), tm o efeito de "con-densar" os imaginrios sociais, ao mes-mo tempo em que fornecem diretrizespara pensar tanto a histria da cidadequanto a estria do romance, evidenci-ando a duplicidade de intenes do g-nero romance histrico. Vejamosalgumas das epgrafes-epitfios:

    Eu careo de amar, viver care-oNos montes do Brasil, no Mara-nhoDormir aos berros da arenosapraiaDa ruinosa Alcntara(Souzndrade, Harpas selva-gens)Rainha da opulncia destrona-da,

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    Tu tens por fausto - o mar;por trono - O nada:Grandezas que te restam do pas-sado(Agostinho Reis, Alcntara)

    Adeus, Alcntara, com a tuagua fresca e leve da Miritiua,os teus cravos cheirosos, astuas praias alvinitentes, a bele-za dos teus luares, a singelezada tua vida, o teu povo amo-rvel, as tuas moas esbeltas, tri-gueiras, de olhos lquidos, floresentre runas, o esplendor e alti-vez do teu passado em contras-te com o apagado e a humildadedo teu presente.(Antnio Lopes, Alcntara).

    Numa linha de interpretao psi-colgica (vertente na qual JosuMontello classificado pela histria daliteratura), o romance conta a estriado desencontro amoroso entre dois per-sonagens, o Major Natalino e MariaOlvia, ambos filhos da aristocraciaalcantarense. Ele, "neto de Baro, fi-lho de Visconde", "voluntrio e he-ri da Guerra do Paraguai", republicanoe abolicionista (motivo de freqentesconflitos com o pai, liberal do partidobem-te-vi). Ela, ''filha de Baro","educada num Internato em Paris",poetisa ("Violeta de Alcntara"), "in-dependente" (entrando em choquecom o conservadorismo social local),professora quando a famlia vai fa-lncia.

    O desencontro motivado pelacerteza de Natalino de que estril, dasua recusa a casar-se por no poderter filhos, cumprindo a "funo social"da farru1ia. Somente ao final, aparece

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  • um filho bastardo de Natalino com umaplebia, acontecimento que leva-o arepensar toda sua vida. A decadnciade Alcntara projeta-se em todas asesferas, inscrevendo-se mesmo noscorpos de seus habitantes/personagens:a esterilidade do Major corresponde si-metricamente queda de cavalo sofri-da por Maria Olvia, acidentetraumtico no qual ficou aleijada, reti-rando-se dos convvios sociais e toman-do-se a solitria "prisioneira dosobrado". Assim, por vias diferentes,ambos so dominados pelo dolorososentimento de ausncia da maternida-de/paternidade. Numa "cidade morta" impossvel gerar-se qualquer fruto.

    A estrutura temporal da sagaaristocrtica divide-se em dois planos,movendo-se entre o presente decadentee o passado de fausto, mas tambm deinconseqncia (simbolizada pelo epi-sdio verdico da construo dos dois"palcios do Imperador", pelos parti-dos liberal e conservador, esperandouma visita que Pedro II jamais reali-zou ...). O presente transcorre entre oNatal e o Ano Novo de 1900, pocaem que a vila j est "morta", mas vs-peras do novo sculo, com todo o ima-ginrio de renovao e progressocorrespondente. J o passado englobao perodo entre a dcada de 1860 e aproclamao da Repblica (1889), po-ca do auge e posterior dec1nio da cida-de. Os dois planos so ligados por algunsartifcios narrativos: a "memria" deNatalino (seu fluxo de recordaes en-quanto se prepara para ir embora) e o"dirio ntimo" de Maria Olvia (apre-sentado como "real" e em parte guar-dado no Instituto Histrico, o que lhe

    confere um sabor de "fonte histrica").Alm disso, a narrativa constri situa-es em que personagens de ficocontracenam com personagens da his-tria local, o que d oportunidade aorelato dos "acontecimentos histricos"da cidade.

    Assim, no romance esto comple-xamente interligadas a fico, a mem-ria e a histria. Essa unio defundamental importncia no tocante aos"efeitos-conhecimento" e aos significa-dos que a saga de Josu Montello visaproduzir. Esta uma de suas contribui-es particulares ao "dever simblico"de preservao, difuso e(re)construo da tradio e da identi-dade do Maranho: a formao de lu-gares da saudade, "lugares dememria" (NORA, 1983). O texto ur-bano se expande, se desdobra e se in-dividualiza na narrativa montelliana,compondo uma "cartografia sentimen-tal" da cidade colonial, atravs da as-sociao ntima dos cenrios "experincia de vida" dos persona-gens.

    Alcntara resplandecia na clari-dade crepuscular. Por toda parte,a algazarra dos pssaros. Opesado arfar das ondas esbo-roando-se na nesga da praia. Euma virao constante a correras ruas, as praas, os caminhos,com uma poeira leve etranslcida danando no ar. Porali tinham passado as cadeiri-nhas de pau-santo, forradas deseda, com brases bordados nassanefas de veludo, levadas pe-los ombros dos negros. Depois,as carruagens de luxo, com ar-reios de prata nas parelhas.

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  • Agora era aquele deserto e aque-le silncio, aguardando o tangerdos sinos pelas ave-marias. En-tretanto, assim despovoada equieta, nunca a cidade parecerato bela aos olhos de Natalino.Alcntara contemplava o marpelas janelas de seus mirantes,enquanto a mata densa, que dooutro lado a circundava, pareciavir avanando, a empunhar openacho de guerra de suas pal-meiras. Na orla da praia, elesentou no mesmo banco ondese havia refugiado noite, de-pois do encontro com o filho. Eali ficou de pernas cruzadas, abengala sobre os joelhos, ven-do a luz se decompor sobre ostelhados (MONTELLO, 1983,p.307).

    Esta cena do ltimo captulo, pou-co antes do Major Natalino partir (parasempre?) de Alcntara, marcada peladescrio plstica do crepsculo a des-cer sobre a cidade, pela aura de en-canto e beleza a envolver opersonagem, contm, entretanto, umaoutra chave de interpretao: o temado confronto entre natureza e civiliza-o. A reconquista da cidade pelas for-as naturais. O mar e a floresta aospoucos encurralando a cidade, entoan-do seus gritos de guerra, enviando seusprimeiros batedores, enquantoAlcntara, tendo cumprido seu ciclo decivilizao (das "cadeirinhas" s "car-ruagens"), resiste com suas ltimasforas. A imagem do "penacho deguerra das palmeiras" parece mes-mo evocar um esprito invisvel que es-tivera adormecido - o esprito dos ndiostupinarnbs, que ressurge para reivin-dicar sua antiga Tapuitapera.

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    Impotente em meio ao conflito dedimenses titnicas, nada mais resta afazer ao velho aristocrata seno sen-tar-se e embevecer-se com to fabulo-so espetculo, enquanto interiormenteencontra-se dilacerado por sentimen-tos contraditrios de beleza e medo,contemplao e temor. Poder-se-ia atafirmar que o melanclico final sinalizapara o total fracasso das tentativas deconstituio de uma civilizao a doisgraus do Equador. As elites escravistasmaranhenses (por sua incapacidade)demonstraram o avesso da conhecidafrmula de Euclides da Cunha: "Esta-mos condenados civilizao. Ouprogredimos ou desaparecemos".Agora, desse ponto de vista, s restaprantear em verso e prosa a Idade deOuro perdida, criando alegorias da sau-dade. Num "crepsculo de emoes","enquanto a noite no vem", eviden-cia-se o jogo de oposies que pontuatodo o romance da decadncia: a si-multaneidade dos contrastes entre o"dia" e a "noite"; a vida e a morte; oburburinho e o silncio; o movimento eo deserto (humano); a fertilidade e aesterilidade. Mltiplas significaes quepodem ser condensadas numa idia-imagem nuclear - as runas verdes deAlcntara.

    Desse modo, no romance-epit-fio da "aristocracia maranhense",representaes se envolvem e se cru-zam, construindo um percurso que com-preende o conflito entre os homens(aristocratas vs. escravos), o conflitoentre cidades (So Luiz vs. Alcntara)e o conflito natureza vs. cultura. Fic-o, histria e memria se entrelaam

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  • no projeto literrio de Josu Montellopara constituir camadas sobrepostas designificao sobre a cidade, cujo textopode ser lido em vrias direes. Atra-vs da "evocao da vida", o intelec-tual regionalista constri um suporte demediao (o romance) no qual poss-vel (re)criar todo um mundo de "glri-as" e "tradies" passadas,possibilitando ao leitor viajar no pelotempo e reencontrar-se com sua iden-tidade, enquanto "maranhense","castiamente maranhense".

    5 ALMINTA: O subconsciente dadecadncia

    o tema da vingana da naturezacontra o homem, todavia, pode ser ex-plorado em outras direes que noaquela tradicionalista e saudosista deJosu Montello. Um caso atpico dedesconstruo crtica da "ideologia dadecadncia" na cena cultural estadu-al consiste no conto Alminta de Ferrei-ra Gullar - um pequeno exercciosatrico e irnico com imagens e repre-sentaes j consagradas sobre a ci-dade morta.

    Sendo uma "cidade inventada"pela histria e pela literatura (que ado-tam o ponto de vista da antiga aristo-cracia escravista), Santo Antniod' Alcntara foi reconstruda pelo con-tista estreante a partir de outros luga-res e atores (recalcados pela Histriaoficial): os ratos e os morcegos. Perso-nagens obscuros dos quais sabe-se pou-co, pois, como os negros, somente somencionados nos poucos momentos emque "riscam como estrelas cadentes"a histria dos brancos. Assim,

    filha do trabalho escravo,[Alminta] cresceu e progrediucom o suor dos negros at queum dia, entregue unicamentequeles que se diziam seus se-nhores, comeou a morrer. E estmorta agora (GULLAR, 1997,p.13).

    O "golpe fatal" da abolio anun-ciou a debandada geral.

    Na mesma noite em que os ne-gros, bbados de alegria e delcool, festejavam a liberdadenas ruas de Alminta, os senho-res brancos, carregando elesmesmos, trpegos, seus pesa-dos bas cheios de roupas finas,pratarias e cristais, tomaram osbarcos a vela e atravessaram abaa. Pela madrugada, os negrossaquearam as residncias e vio-lentaram mulheres brancas,retardatrias; puseram fogo nacadeia pblica, destruram opelourinho e internaram-se nomato. Ningum mais soube de-les. Assim foi que, na mesmanoite, Alminta foi abandonadapelos senhores de escravos epelos escravos. A histria dosratos comea a, onde acaba ados homens (GULLAR, 1997,p.lS-16).

    O conto retoma as teses tradicio-nais apenas para desmont-Ias no mo-mento seguinte, evidenciando os seuslimites e contradies. Na cidade, ain-da viveriam dois dementes (um brancoe um negro) e famlias de pescadores.Viveriam realmente em Alrninta? o,porque "os pescadores, de fato, nomoram em Alminta, mas na beira dapraia ... como se ignorassem a de-funta cidade, hoje ptria de bichos

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  • imundos, povoada de fantasmas".No, pois estes personagens infames"vivem voltados para o mar, para opresente, com seu peso real de sal esol. Eles ignoram Alminta, mesmocomo passado". A cidade s existiria,dessa forma, num (quase) no-lugar,"no papel das monografias, que jningum pega para ler". Uma exis-tncia precria a partir de falas semsentido, mal decoradas para respondera estranhos homens, "com mquina fo-togrfica a tiracolo", que aparecem"perguntando coisas estranhas"(GULLAR, 1997, p.14). Um lugar dememria, tecido nos adeuses e epitfi-os da literatura e da histria, com seustextos bolorentos, insossos e glidos,imersos em vs tentativas de revivnciada Idade de Ouro. Cidade-constructode tradicionalistas, de olhos voltadospara a contemplao (e no para o hor-ror) do passado, sempre a lamentar adecadncia.

    Nas igrejas vazias, "as imagenssujas de excremento de morcego"remontam ao tempo do esplendor pro-vinciano. Pois, "Alminta viveu um dia",com suas jovens brancas passeando osltimos vestidos de Paris, o sino cha-mando para a missa, o rolar das carru-agens de portinholas brasonadas, floresperfumando as ruas, e gente que vinha,e gente que ia, grave colorida, nas suasroupas fora de moda. Contudo, inter-rompendo o tom alegre e idlico da nar-rativa, "sob o assoalho, no forro dascasas, nos pores onde os negros dor-miam, os ratos e morcegos espreita-vam". Da escurido surgem os perigose ameaas civilizao branca. Dastrevas emerge o "subconsciente das

    cidades", os seus no-personagens: omato, os parasitas, o penacho de guer-ra das palmeiras, os dementes, os ne-gros, os pescadores (GULLAR, 1997,p.13-14).

    Ferreira Gullar elabora uma ale-goria s avessas do suposto conflitonatureza vs. cultura, produzindo umapardia do poder mgico de "evoca-o" e de "ressurreio" de mundosperdidos. Utilizando-se de estratgiasnarrativas consagradas na produointelectual local, o autor as desloca,corrompendo por dentro (atravs da iro-nia) a presumida seriedade e relevn-cia desses discursos. Assim, as"controvrsias" e "polmicas" entreos historiadores (um rol formado porAmaldo Ti-bi, Gyl Berta, El Man,O T Lar, Gon D e Burro) envol-vendo o nome, a fundao e a origemdos povoadores da cidade: "Vieram donorte? do sul? do centro? do oeste? doleste? do centro-oeste?" (GULLAR,1997, p.13).

    Num rodap, convoca-se o ops-culo "Fundamentos geogrficos ehistricos da Provncia de Alminta"do general Carlos Studart Filho, lana-do pela "Editora Xaxado" (na verda-de, "Fundamentos geogrficos ehistricos do Estado do Maranhoe Gro-Par", da Biblioteca do Exr-cito), um "livro proibido" que "conta-va as intimidades" e a "riquezapassional" da elite branca (e no a tra-dicional histria poltica e administrati-va!): lutas de famlias, homicdios porquesto de terras, traies por heran-a, adultrios, desfalques, trapaas po-lticas, amores srdidos, paixesdelirantes. O submundo recalcado da

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  • histria oficial e comemorativa vem tona nas estrias da virtuosa esposa dogovernador-geral e seu viril amanteescravo ou da

    linda menina branca, que tinhatara por negros e que foi vriasvezes surpreendida em plenafelao, ou em suaprpria camadeixando-se possuir das manei-ras mais extravagantes. Morreuestrangulada por um escravo dafazenda, no transporte do gozo(GULLAR,1997,p.l4-15).

    Momentos em que a pardia as-sume o tom do escracho e da chalaapara representar as virtualidades deoutros textos e leituras da cidade.

    O ncleo urbano "mais polido","mais faustoso" e "mais aristocrti-co" da distante provncia transfigura-se em "miniatura da capital doImprio", com uma elite escravocratavida por medalhas e ttulos de nobre-za, ciosa de sua vaidade e orgulho(como no episdio da construo dopalcio para a no-visita de D. Pedroli). Uma cultura teatralmente sofisti-cada, representada por uma elite queparlava le franais nas recepes, fes-tas e jantares; educava suas filhas eminternatos na Europa (e os filhos den-tre as pernas das escravas); epesquisava rvores genealgicas embusca de brases, escudos e armas, vi-sando uma nobilitao forjada. Por meiodo riso, evidencia-se o fundo falso e aimpostura do processo de "civilizaodos costumes" que caracterizaria a Ida-de de Ouro tropical, processo reduzi-do metonirnicamente pelo contista auma imagem-smbolo:

    A preocupao com a origemnobre alcanava mesmo os de-talhes mais ntimos da vidacotidiana, haja vista o urinol deloua, conservado no MuseuImperial, a nica relquiasubsistente de Alminta. Trata-se de um objeto finamentetrabalhado por mos de artistaeuropeu, comas armasdo Imp-rio em relevo e o escudo dafamlia em lpis-lazli e ouro.Apropsito dele, escreveu GylBerta, o clebrehistoriador:" aprpria alma de Alminta - a suahistria, os seus sonhos, o seurequinte - que neste objeto seconcretizou" (Cidades e ho-mens, Editora Anil, Alcntara,1930)(GULLAR,1997,p.l6).

    Rico, ftido e podre urinol de lou-a - inusitada associao de obra dearte e depsito de dejetos, artefato-sn-tese da "aristocracia" alcantarense/alrnintense. Urinol que, por sua vez,"evoca" outra estria do anedotrioestadual, envolvendo a controversa fi-gura de Ana Jansen e os penicos comsua efgie no fundo, mandados fazer emPortugal por um seu adversrio polti-co. Nada mais "maranhense","castiamente maranhense", Adesconstruo pardica do discurso dadecadncia desestabiliza e confundeos "pontos de fixao" dos imaginri-os sociais sobre o Maranho, os quaisentram em curto-circuito com o aflorarde seu "subconsciente", com o desfilede infames e repulsivos personagens desal e sol, com o narrar de srdidas(des )venturas pessoais - processorecalcado por uma cultura do simula-cro, onde as fantasmagorias da tradi-

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  • o e da decadncia no podem serlevadas demasiadamente a srio ...

    6 CONCLUSO

    Em publicao recente, a histori-adora Maria de Lourdes LauandeLacroix, ao questionar a ilusria funda-o gaulesa da capital timbira, analisaesta frmula mtica em sua relao coma emergncia (em fins do sculo XIX)da "ideologia da singularidade", for-jada pelas elites locais durante a crisedo sistema agro-exportador escravista.Tal "ideologia do orgulho" apoiar-se-ia na [falsa] "conscincia de que o ho-mem maranhense gozava da virtude dasabedoria, da excelncia e quase ex-clusividade no panorama cultural bra-sileiro", qualidades expressassobremaneira na "cultura vemacular",que primaria pela "pureza, correo eelegncia da linguagem" (LACROIX,2000, p.61).

    A "idia de singularidade daprovncia" (pedra angular dos proces-sos de constituio dos imaginrios so-ciais sobre a identidade regional) teriasurgido, portanto, na ''fase do maras-mo", quando:

    um sentimento saudosista dosbons tempos resultou na cons-truo de uma aura grega nohomeme, em especial, em tornodos intelectuais que viveramnaquela sociedade, consideradatambm ilustrada e requintada.Essa elaboraoserviucomoumalento, mecanismo esse queminimizou a postura paralisanteda decadncia, passando-se aviver das lembranas de um"glorioso" passado.Ainda hoje,

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    diz-se que o Maranho se tor-nou "a terra do j teve" e do "jfoi"... Para acentuar esse supos-to atributo [intelectual], asociedade aponta a breve e fr-gil passagem francesa pornossas plagas como o fatordiferenador de uma identidadesingular, apesar da evidentelusitanidade de nossas origense tradies (LACROIX, 2000,p.74-S).

    So Luiz, cidade do Senhor deLa Ravardire - cidade-texto da opu-lncia perdida dos casares coloniais,com suas salas "sofisticadamente de-coradas numa imitao aos sales danobreza francesa", seus aparadoresvergados "ao peso das iguarias, dos vi-nhos, dos cristais e porcelanas."(LACROIX, 2000, p.54). Sobrados queabrigariam uma aristocracia letrada eafinada com a ltima moda de Paris,quer nos costumes, vesturio e alimen-tao, quer na literatura e nas artes, Otout le monde parlava le franais,aussi.

    Urbe ausente e distante dos flu-xos temporais e dos processos damodernidade. Cidade-runa, mitica-mente greco-gaulesa, em cujo percur-so o visitante v-se "transportadoinsensivelmente para os sculos co-loniais". Patrimnio da humanidade,distinta, a priori, porque "a nica capi-tal brasileira que no nasceu lusita-na". Cidade que j foi, por isso, tambm,uma cidade morta (cujo subconsci-ente pode, contudo, aflorar, sombrio, dastrevas ou dos guetos e palafitas daJamaica brasileira ...).

    A anlise das diferentes escritu-ras urbanas permite evidenciar, por con-

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  • seguinte, a transformao das noesde tradio e de decadncia em pa-radigmas, representaes instituintes [einstitudas] dos imaginrios sociais so-bre o Maranho. Enfim, um magma designificaes, repertrio de temas e idi-as, a fornecer o referencial imagticoe discursivo a partir do qual se fala, seescreve e se visualiza a "terra daspalmeiras onde canta o sabi". Idi-as-imagem instrumentalizadas no cam-po poltico, nas cincias e nas artessegundo os mais variados interesses:quer tecendo a "excepcionalidade" oua "singularidade" do maranhense,quer reivindicando uma fundao fran-cesa d'Athenas, quer fabricando luga-res de memria, ou seja, conformandouma rede discursiva que sustenta e sus-cita as mais diversas e contraditriasprticas sociais.

    Relquias, urinis e fragmentosreunidos e manipulados para comportoadas e stiras; para (re)compor overso e a prosa citadina (evocandoseus fantasmas, seu no-ser); paracanalizar sonhos e esperanas em tor-no de [vazios] projetos de ressurreioou renascimento do Maranho, em de-lrios e frenesis de modernizao; ouainda, para (re)escrever identidadespolticas, a exemplo das evanescenteslutas da Campanha de Libertao (agreve de 1951), que forjou em sangue

    e fogo a imagtica da Ilha Rebelde:

    o entusiasmo da massa popularrepetiu durante os 15 dias emque se manteve em greve, na'Praa da Liberdade', os com-cios cvicos ... na mais plenademonstrao de que o Mara-nho mesmoaAtenasdoBrasil,pelos seus talentos e pelo esp-rito espartano dos seus bravosfilhos(OCOIv1BATE,1951,p.1).

    Fronteiras helnicas sempremutveis, porque dessa instabilidade evolubilidade das palavras e representa-es se alimentaram sempre as(re)construes da identidade do Ma-ranho, com suas cidades mortas, as-sombradas e sangradas porindestrutveis e inefveis runas ver-des.

    "E quemelhor se v uma cidade/ quando - como Alcntara - /todos os habitantes se foram / enada resta deles (sequer / umespelhode aparadornumdaque-les / aposentos sem teto) - seno / entre as runas / a persis-tente certeza de que / naquelecho / onde agora crescemcarrapichos / eles efetivamentedanaram / (e quase se ouvemvozes / e gargalhadas / que seacendem e apagam nas dobrasda brisa)".(poemaSujo,FerreiraGullar)

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