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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom. Rui Jorge Moraes Martins Júnior .MODA E GÊNERO NA AMAZÔNIA: ESTILOS DE VESTUÁRIO, SOCIABILIDADE E PAPÉIS FEMININOS “COSTURANDO” AS RELAÇÕES DE GÊNERO AS MARGENS DO GUAJARÁ “São as roupas que nos usam e não o contrário” Virgínia Woolf “As saias e os laços dos vestidos de tafetá changeant misturavam-se por entre as pesadas jaquetas e os frades dos figurões da política local, feito ligas que uniam os cúmplices, nas lutas pelo poder.” 1 Maria Luzia Álvares No passar do século XX, as noções fixas de identidade de gênero e intolerância à ambigüidade gênero foram se esfumaçando. Diana Crane mencionando Michel Foucault nos diz que de fato as percepções de gênero não são fixas e sim efeitos de discursos 2 . No rastro das grandes mutações político, econômico e sociais que se aceleraram no século XX, as relações homem-mulher foram profundamente alteradas e, conseqüentemente, se alterou o sistema familiar: a mulher transpõe os limites do lar, onde há séculos cumprira o papel de “rainha do lar” que o sistema patriarcal lhe destinara, e ingressa no mercado de trabalho, no espaço público. Agora passa cumprir o novo papel que o sistema moderno lhe exigia. Ingresso que, como sabemos, teve profundas conseqüências, não apenas no âmbito familiar, mas também no plano social, para não falarmos do ético. A visão de Claude Lévi-Strauss, “troca de bens, troca de 1 ÁLVARES, Maria Luzia Miranda. Memórias e Imagens do feminismo e das ligas partidárias no Pará: 1910 a 1937. In: ÁLVARES, Maria Luzia Miranda (Org.), D’INCAO, Maria Ângela (Org.) A Mulher Existe? Uma contribuição ao estudo da mulher e gênero na Amazônia. Belém: GEPEM, 1995, p. 152. 2 FOUCAULT, Michel Apud CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. São Paulo: Editora SENAC SP, 2006, p. 50.

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

Rui Jorge Moraes Martins Júnior .MODA E GÊNERO NA AMAZÔNIA: ESTILOS

DE VESTUÁRIO, SOCIABILIDADE E PAPÉIS FEMININOS “COSTURANDO”

AS RELAÇÕES DE GÊNERO AS MARGENS DO GUAJARÁ

“São as roupas que nos usam e não o contrário”

Virgínia Woolf

“As saias e os laços dos vestidos de tafetá changeant

misturavam-se por entre as pesadas jaquetas e os frades dos

figurões da política local, feito ligas que uniam os cúmplices,

nas lutas pelo poder.” 1 Maria Luzia Álvares

No passar do século XX, as noções fixas de identidade de gênero e intolerância à

ambigüidade gênero foram se esfumaçando. Diana Crane mencionando Michel Foucault

nos diz que de fato as percepções de gênero não são fixas e sim efeitos de discursos2.

No rastro das grandes mutações político, econômico e sociais que se aceleraram no

século XX, as relações homem-mulher foram profundamente alteradas e,

conseqüentemente, se alterou o sistema familiar: a mulher transpõe os limites do lar,

onde há séculos cumprira o papel de “rainha do lar” que o sistema patriarcal lhe

destinara, e ingressa no mercado de trabalho, no espaço público. Agora passa cumprir o

novo papel que o sistema moderno lhe exigia. Ingresso que, como sabemos, teve

profundas conseqüências, não apenas no âmbito familiar, mas também no plano social,

para não falarmos do ético. A visão de Claude Lévi-Strauss, “troca de bens, troca de

1 ÁLVARES, Maria Luzia Miranda. Memórias e Imagens do feminismo e das ligas partidárias no Pará: 1910 a 1937. In: ÁLVARES, Maria Luzia Miranda (Org.), D’INCAO, Maria Ângela (Org.) A Mulher Existe? Uma contribuição ao estudo da mulher e gênero na Amazônia. Belém: GEPEM, 1995, p. 152. 2 FOUCAULT, Michel Apud CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. São Paulo: Editora SENAC SP, 2006, p. 50.

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mulheres” já poderia ser pensada em desuso. A mulher poderia agora inclusive escolher

com quem vai casar. “É do século”, como confessa Mister Kodak. Segundo Michelle

Perrot “o casamento arranjado pelas famílias e atendendo a seus interesses, pretende ser

aliança antes de ser amor – desejável, mas não indispensável. Os pais desconfiavam da

paixão” e contariam “as uniões duráveis que fundam as famílias estáveis” 3 para

explicar as uniões encomendadas comuns até as primeiras décadas do século XX.

Para Perrot “não é a mesma coisa ser uma moça, ou um rapaz, na Idade Média

ou no século XXI” 4. Tal afirmativa nos impulsiona a pesquisar a relação

homem/mulher como um problema sócio-histórico também ambientado no Pará no

limiar do século XX. Complementando tal pensamento aponto a conclusão de Georges

Vigarello:

“Pode-se dizer que as mudanças de cultura afetam o próprio gênero da

beleza. O ideal há muito valorizado por uma mulher-aparato, de acolhimento

ou de inatividade, não pode mais ser o mesmo, por exemplo, quando se altera

o estatuto do feminino e que se afirmam as belezas ativas, da iniciativa, do

trabalho. Abalam-se as velhas dependências do feminino. O gênero não

precisa mais codificar a beleza num mundo que projeta divisão de atividade e

estatutos.” 5

O impulso da modernidade na Amazônia durante o século XIX foi patrocinado

pela economia gomífera. A cidade de Belém do Pará sentiu profundamente o fenômeno

da mudança estética e isso perdurou nas primeiras décadas do século XX. Existia a idéia

de conduzir o Brasil ao grupo seleto de paises civilizados e modernos. Os idealistas

queriam construir nossa identidade tendo por base a cultura européia, uma filiação com

3 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007, p. 46. 4 Idem, Ibidem, p. 42. 5 VIGARELLO, Georges. História da beleza: o corpo e a arte de se embelezar, do renascimento aos dias atuais. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 195.

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a civilidade. Foram anos de intensas transformações, um tempo “dourado”, era a Belle

Époque. Segundo Nazaré Sarges na cidade de Belém do século XIX:

“Mulheres das classes abastadas tinham um zelo especial pela indumentária,

tanto que mandavam buscar seus vestidos em Londres e/ou Paris. Para

atender essa questão, estabelecimentos comerciais se instalaram para atender

o requinte das damas e cavalheiros. Entre essas casas destacamos a Paris

N’América, o Bom Marche e casas exclusivamente de modas e chapéus,

como a Maison Française, de Mme. Russo, entre tantas outras, além de lojas

ambulantes que vendiam, em carros e tabuleiros, fazendas francesas, inglesas

e diversas miudezas.6

Indubitavelmente, foi um período de intenso glamour e excentricidade. O lazer

era outra possibilidade de distinção social. Segundo Sarges:

“A elite, ao menos no discurso procurava seguir o modelo parisiense. As

atrações eram os cafés, as conferências, os bailes, as óperas e peças teatrais

que se exibiam no majestoso Theatro da Paz. Os periódicos são fartos em

anúncios das peças que eram encenadas nesta casa de espetáculo, aliás,

anunciavam e julgavam o desempenho dos artistas, além de registrarem a

presença de pessoas importantes que lá se encontravam e como estavam

vestidas”7

Nesse tempo, mesmo com todas as vantagens que a fina flor da aristocracia

paraense usufruía, contribuiu para uma parcial acomodação da mulher belemita, que

vivia em seu lar, sendo um ser para contemplação e romantização daqueles que

ministravam a sociedade: os homens. Esta ingerência do homem nos negócios de

mulher, se reproduzia nos mais diversos campos, inclusive nos hábitos e nas modas

usada por elas. A própria gramática ecoava esse domínio entre os gêneros. “Quando há

6 SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle-Époque (1870-1912). Belém: Paka-Tatu, 2002, p. 29.

7 Idem. Memórias do Velho Intendente. Belém: Paka-Tatu, 2002, p. 134.

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mistura de gêneros, usa-se o masculino plural: eles dissimula elas”8 acrescenta Perrot.

Joan Scott em seus estudos sobre a história da mulher e seus desdobramentos nos

elucida que:

“a maior parte da história das mulheres tem buscado de alguma forma incluir

as mulheres como objetos de estudos, sujeitos da história. Tem tomado como

axiomática a idéia de que o ser humano universal poderia incluir as mulheres

e proporcionar evidência e interpretações sobre as várias ações e experiências

das mulheres no passado.9

Nos anos 20 a capital paraense já sentia o triste veredicto de descapitalização,

devido à crise do comércio da borracha. Tínhamos degustado a riqueza e as

contradições do ciclo da borracha, o que provocou um enriquecimento artificial das

metrópoles do ocidente e do oriente amazônico: no caso a urbe Belém, capital do Pará.

Vale ressaltar que o saldo social desse enriquecimento não se manifestou para a maioria

da população:

“A Belle-Époque imprimia, desse modo, a redefinição do espaço urbano (...)

o que tornava bastante visível a distinção entre a área central da cidade,

destinada aos ricos burgueses “desodorizados” e “higienizados” e as áreas

“periféricas” destinadas à população trabalhadora pobre. ”10

Esse estudo, temporariamente, não irá comentar o papel da moda e gênero entre

a classe empobrecida, o que não dispensa grau de atenção por parte dos historiadores,

dada à complexidade dessas relações. A imagem dessa mulher tinha que se adaptar aos

8 PERROT, Michelle, Op Cit., p. 21. 9 SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A Escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 77.

10 SARGES, Maria de Nazaré, Op Cit., p. 155.

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novos tempos, pois já sentido o “aburguesamento” da urbe Belém, elas teriam que

manifestar e materializar suas “modernas” idéias.

“(...) Minha amiga sorri, soprando longos espirais de fumo azul e perfumado,

de uma cigarrilha “Elite”. Vestia um traje de interior, que lhe deixava os

braços desnudos, o colo visível até a raiz dos seios (...) era ultra moderna esta

flor da moda, produto de uma sociedade elegante e frívola. (...) Falamos

sobre a beleza da mulher chic, moderna, tudo sacrificando pela moda. Dizia-

lhe eu:

_Pelo menos você, minha deliciosa amiga, que outro horizonte deves

descortinar na vida senão ser sempre original, vestindo trajes caros,

modelados pelo último figurino dos “boulevards” parisienses? A sua

preocupação é ser bela sempre, ter fama de gastar tudo para adquirir um

chapéu invulgar, uma jóia soberba!

_Talvez assim seja, meu amigo. E não acha você que a mulher deste século

só vence pela beleza exterior das carnes e das roupas? Não acha que nós, as

demoiselles de hoje devemos ajudar ou corrigir a natureza? Os homens do

nosso tempo só amam a plástica. ”11

Observando as revistas aqui analisadas Belém Nova e A Semana, notei a

quantidade de anúncios direcionados aos anseios femininos. Comungo com a análise de

Maria Claudia Bonádio, quando diz que a publicidade por sua vez desconstruirá a

mulher mãe-esposa, para criar à consumidora. Antes associada ao ócio do lar, ela agora

ganha uma imagem dinâmica, associada à cidade através do comércio. É a mulher quem

sai às compras e é a ela que a publicidade se dirige. A indústria publicitária coloca a

mulher mais perto da modernidade, anuncia os novos modelos de roupas, móveis e

eletrodomésticos indispensáveis à mulher moderna, dinâmica e sociável. Antes restrita

ao lar, a consumidora ainda tem as tarefas de mãe e esposa, mas de forma “reformada”.

A dona-de-casa burguesa descrita por Perrot “tem a responsabilidade de zelar pela

11 B. M. A Semana. Quando a Mulher é Bela, 15 de abril de 1922.

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família e manter a casa em ordem: arrumação e limpeza da casa ou do apartamento” 12

além da “organização das soirées familiares, recepções para a sociedade”.13 O papel

desempenhado pela mulher burguesa em Belém se diferenciava da dona-de-casa nos

meios operários, sobretudo no ambiente das atividades, visto que as madames não

estavam experimentando integralmente o espaço público, que dirá as fábricas.

Para Bonadio, as mulheres na década de 20 estavam se apropriando de

elementos do visual e do vestuário masculino, isto acaba por alterar a relação

significante/significado. Transformam-se também as relações homem/mulher, borrando

as fronteiras de gênero e esfumaçando os contornos. Gera-se assim uma nova imagem

de feminilidade.14O que é mais interessante é prática dos itens de vestuário masculino

invariavelmente serem combinados com os do vestuário feminino. Crane mencionando

Xavier Chaumette nos traz uma reflexão não menos importante: “somente no século

XX, particularmente na década de 1920, é que o paletó adquiriu conotação de

lesbianismo quando usado por mulheres.” 15

A sociedade tradicional via nascer um novo tempo. Aquela antiga divisão de

tarefas, de atribuições de gênero daria espaço a um contexto unilateral, onde as funções

do homem se confundiam com as da mulher. A Folha do Norte registrava os resultados

desse movimento “interessa-nos, do ponto de vista do problema, a mulher, a quem certas

modas, imprudentes causam, muitas vezes, prejuízos, que se refletem no seu futuro.” 16

12 PERROT, Michelle, Op Cit., p. 116. 13 Idem, Ibidem.

14 BONADIO, Maria Claudia. Publicidade de moda e tecnologias de gênero, Mappin Stores (1914-1930). Disponível no http://www3.unip.br/servicos/aluno/suporte/nidem/artigos/pub_de_moda.asp

15 Apud CRANE, Diana, Op Cit., p. 216. 16 Folha do Norte, 28 de abril de 1916.

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No século XIX as atribuições eram bem divididas: ao feminino o mundo do

sentimento, da intuição, da domesticidade, da inaptidão, do particular; ao masculino a

racionalidade, a praticidade, a gerência do universo e do universal,17 anota Tânia

Navarro Swain. A mudança social na virada do século do século XIX para o XX

repercute no âmbito da vida privada levando a crise do casal e do próprio movimento

familiar em Belém. Para Carlos Castilla Del Pino, a mulher apresentava uma condição

nessa relação barba-cabelo:

“Qual a condição da mulher enquanto tal? Tratar disso nos leva

imediatamente à relação home-mulher, porque a mulher, como o homem, não

é um grupo isolado dentro da espécie, mas um grupo que coexiste com - o

outro grupo - na sociedade. A relação homem – mulher é tão radical que

constitui o substrato sobre o qual se baseia nossa organização familiar, apesar

desta estar, por sua vez, sujeita a estruturação econômica, isto é, determinada

pela chamada infra-estrutura de nossa sociedade”. 18

Com as mudanças trazidas no bojo da modernidade torna-se possível afirmar que

a imagem feminina estava em construção, uma nova representação do discurso vigente

na sociedade, que o costureiro ou a modista pode rescindir, assimilar ou representar.

Livres dos espartilhos, usados até o final do século XIX, a mulher começava a ter mais

liberdade e já se permitia mostrar as pernas, o colo e usar maquilagem. A boca era

carmim, pintada para parecer um arco de cupido ou um coração; os olhos eram bem

pintados, as sobrancelhas tiradas e delineadas a lápis; a pele era pálida, o que acentuava

os tons escuros da maquilagem.

17 SWAIN, Tânia Navarro. Feminismo e Representações Sociais: A Invenção das Mulheres nas Revistas “Femininas”. História: Questões & Debates. Curitiba: Editora da UFPR, Nº. 34, 2001, p. 17.

18 DEL PINO, Carlos Castilla. A “função” de mulher. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 14.

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O certo é que no momento em que os homens estavam ocupados com o trabalho,

com a administração de seus negócios, as melindrosas transformam-se em

consumidoras em potencial, especialmente cidades dinâmicas como Belém, onde era

necessário oferecer a mulher uma nova "função", um novo atributo, uma nova imagem.

A mulher ociosa, corpulenta e entregue exclusivamente às tarefas do lar perdia espaço.

A moda como expressão de emergência coletiva acaba sendo um canal de emancipação

para mulher em Belém. Del Pino enfatiza que “a inferioridade da mulher como sexo

frágil é esquecida nos momentos de emergência coletiva. Porque há muito se sabe que,

quando as condições obrigam, a mulher vem realizando trabalhos de categoria idêntica

aos do sexo forte (...)”,19 interpreta o autor.

A Revolução Tecnológica, a passagem do século, o pós Primeira-Guerra, junto

aos arranha céus que não paravam de crescer, celebravam a modernidade. O moderno,

naquele contexto, era nada menos que o novo absoluto, o futuro, a ação, o movimento.

Para Maria Luiza Marcílio durante o século XX a mulher, lentamente, passou a ocupar

lugar na sociedade, “conquistando direitos e posições que até então lhe vinham sendo

negados”, logo “a entrada da mulher no mercado de trabalho mudou o perfil na

sociedade”.20

É possível afirmar que a mulher, com suas roupas e seus espaços criados pelo

consumo, era um símbolo emergente dessa modernidade, ainda que isso fosse mais uma

representação. Registro isto me apoiando nas idéias, sem me comprometer com um

anacronismo, de Boris Fausto citado por Carlos Martins Junior: “ainda que essas noções

devessem ser corporificadas pela mulher, não se tratava, precipuamente, de proteger a

honra como um atributo individual feminino e sim como um apanágio do marido e da

19 Idem, Ibidem, p. 31. 20 MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Heucitec, 1998.

Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

família”.21 A mulher não escapava à regra, vestindo o figurino moderno, mas cuidando

da família e do marido. Veja como eram anunciadas as elegantes senhoras “retratadas”

para as capas d’A Semana:

“A Nossa Capa. Figura na capa de hoje a gentilíssima

senhorinha Silah Bayma de Moraes, distinta irmã do Sr. Carlos

Bayma de Moraes e um dos formosos ornamentos de nosso

escol.”22

“A Capa d’A SEMANA. O retrato de hoje, que imprime

encanto a capa d’A SEMANA, e da graciosa Altair, tão meiga

e boa que o nosso afetuoso camarada Oscar Chaves, seu

prezado pai, nela experimenta uma doce ventura no seu lar.”23

“A nossa capa de hoje ornada com o retrato da graciosa

senhorinha Inah Simões, filha do extinto desembargador Eloy

Simões e muito apreciada no nosso set, pelos seus dotes de

formosura e encantos de espírito.”24

“A Semana de hoje é ornada, em sua capa, com o retrato da

gentilíssima senhora Maria Christina Figueiredo, esposa do

nosso distinto amigo capitão de coverta dr. Bonifácio

Figueiredo.”25

“Orna a nossa capa de hoje o retrato da formosa senhorinha

Beatriz Lindsay, filha do Sr. Frederico Lindsay, figura de

destaque no Rio de Janeiro e noiva do Sr. Francisco Sampaio,

que há poço esteve em excursão pelos estados do Norte.” 26

21 Apud MARTINS JUNIOR, Carlos. Normas sexuais e exclusão social: o direito penal e os padrões de honra e honestidade feminina no Brasil da Belle – Époque. In: PERARO, Maria Adenir, BORGES, Fernando Tadeu de Miranda. Mulheres e Famílias no Brasil. Cuiabá, MT: Carlini ε Caniano, 2005, p. 53. 22 A Semana, 29 de abril de 1922.

23 A Semana, 01 de novembro de 1922.

24 A Semana, 22 de novembro de 1924.

25 A Semana, 10 de janeiro de 1925.

26 A Semana, 28 de agosto de 1926.

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Nota-se que a imagem feminina ainda era regulada pela presença masculina. As

protagonistas das capas nos magazines eram, na maioria das vezes, tuteladas pela figura

do pai, do noivo, do esposo; o que demonstra a existência de relações patriarcais. A

identidade dessa mulher era definida pelo sobrenome paterno ou do cônjuge. Numa

análise relacional, era como se o homem desse o aval e concedesse a sua identidade para

mulher, permitindo assim, que esta fosse retratada. A partir deste ambiente de

dependência da mulher em relação ao homem, Del Pino observa que:

“Nesse sentido podemos dizer que a relação homem-mulher, em nossa

estrutura capitalista, é de dependência desta em relação aquela. Essa

dependência imprime seu caráter específico em toda vida da mulher. As

mesmas leis que determinam as relações de produção entre nós, a simples

existência de uma classe dirigente e explorada e de outra dirigida e

explorada, também se projetam na relação homem-mulher, na forma de

explorador-explorado”. 27

Esse atraso da emancipação feminina no Pará não pode ser analisado de forma

isolada. Na segunda metade dos anos de 1920, o Rio de Janeiro, capital da república e

cidade-estrela do Brasil, já tinha ganhado ares de metrópole. O país estava com 37

milhões de habitantes. Estava instituída uma sociedade aberta, o feminismo se

infiltrava, o corpo da mulher ia se libertando, por toda parte se viam anúncios do

regulador A Saúde da Mulher, de sutiãs, de tônicos para tingir cabelos, de produtos para

higiene em geral. Havia também publicações de enorme sucesso como, por exemplo, a

Revista Feminina, Fon-Fon e O Malho. Assim, entrava em cena outro modelo feminino,

mais livre.28

Assim, a intolerância masculina em relação aos “avanços” femininos, estaria por

mostrar sinais de fraqueza. Para Ingrid Agrassar Morais apresentar a mulher como 27 DEL PINO, Carlos Castilla, Op Cit., p. 14-15. 28 BRANDÃO, Ignácio de Loyola, Op Cit. p. 25.

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“rainha do lar” é no mínimo, tentar abafar o grito de denuncia proclamado por muitas

contra as iniqüidades sofridas.29 O Pará iria apresentar um movimento sufragista

feminino durante a década de 20. Além do consumismo, o hábito de ir ao cinema,

freqüentar eventos sociais, interessar-se por automóveis, a mulher também almejava

uma imagem política legitimada: “(...) Hoje, a gente não se pertence mais: é

inteiramente dos chás, das venerações, dos bailes, dos cinemas, dos automóveis, das

confeitarias, das recepções (...).” 30 Segundo Álvares “denuncia-se um processo de

invasão nesses espaços concorridos e, algumas vezes, liderados pelas mulheres que

passam a tomar de assalto o quartel masculino.” 31

Entretanto, faz-se necessário se ater à questão do feminismo32. Segundo Álvares,

é preciso entender que naquele momento, este termo era extremante pesado para

determinar uma característica feminina. Era sinônimo de ruptura com os valores

femininos e de família. O feminismo, e este deve ser o interpretado neste trabalho, era o

sufragista, ou seja, aquele que estava na rua exigindo a emancipação política da mulher,

o seu direito de votar, até então negado pelos cartolas. Falar de feminismo, então, era

acidificar as relações com a tal “avançada” vista também como “mulher pública”,

encerra.

29 MORAIS, Ingrid Agrassar. Sobra a Arte de Agradar os Maridos: modernismo e condição feminina em Belém do Pará nas primeiras décadas do século XX. Belém: UFPA, 2003.

30 S. L. A Semana. A Vida Fútil. Um pouco de Modernismo, 28 de agosto de 1926.

31 ÁLVARES, Maria Luzia Miranda, Op Cit., p. 134.

32 Segundo Branca Moreira Alves e Jacqueline Pitanguy é difícil estabelecer uma definição precisa do que seja feminismo, pois este termo traduz todo um processo que tem raízes no passado, que se constrói no cotidiano, e que não tem um ponto predeterminado de chegada. Como todo processo de transformação, contém contradições, avanços, recuos, medos e alegrias. Vide ALVES, Branca Moreira, PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 2003, p. 7, grifo das autoras.

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Para Maria Amélia de Almeida Teles a década de vinte trazia o momento que a

“república dos coronéis não dava mais conta da ebulição social e política do país” 33 e

no bojo dessas mudanças os papéis de gênero começavam a se fragmentar ou a se

misturar, estabelecendo um hibridismo de gênero. O avanço feminista era inevitável,

pois são se tratava de uma questão isolada, local, era um fenômeno mundial. Em 21 de

novembro de 1925, meses após o pronunciamento de Maria do Céu, a “Folha da

Manhã” publicava em São Paulo o texto intitulado “Cabelos Curtos... Idéias Grandes”

que tratava do convite para o décimo congresso feminista que se realizaria em Paris. A

pauta do congresso era “A Aliança Internacional pelo Sufrágio Universal Feminino”:

“PARIS, Outubro - A Aliança Internacional pelo Sufrágio Feminino acaba de

convidar as 36 Sociedades Internacionais que lhe são filiadas, bem como as 7

Sociedade provisoriamente filiadas ou que requerem filiação, a enviar

delegações ao Décimo Congresso Internacional, que requerem filiação, a

enviar delegações ao Décimo Congresso Internacional, que se reunirá em

Paris, de 23 a 30 de Maio do corrente ano entrante. Todas as Sociedades

Feministas, tanto nacionais como internacionais, cujos fins sejam idênticos ás

da Aliança, foram igualmente convidadas a enviar as suas representações ao

Congresso; não satisfeita, ainda, a Aliança declara que receberá fraterna e

hospitaleiramente as feministas que quiserem tomar parte nos trabalhos, bem

como os partidários do grande movimento pela mulher.E... força na maquina,

que o feminismo vai marchando, com um passo firme, ganhando terreno,

impondo-se, triunfando...Um dos grandes passos dados ultimamente pela

causa do sexo... fraco (!) foi o reconhecimento do sufrágio municipal na Itália

e na Grécia, já sendo um fato consumado na Espanha. Em nosso país está em

discussão um projeto de lei que permitirá, dentro em breve, contar mais um

triunfo para a Grande Idéia. Por toda à parte, a pouco e pouco, as mulheres

avançam, desassombradamente; aqui, fixando os seus salários em diversas

profissões; ali, reformando leis que, durante séculos e séculos, vinham

perpetuando injustiças desumanas contra elas, criadas e mantidas pelos

legisladores... bárbaros; mais adiante, proclamando, ‘coram populo’, o direito

da mulher á igualdade econômica; de outro lado, ‘contando’ como fatores de 33 TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. Coleção tudo é história. São Paulo: Brasiliense, 2003, p. 44.

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peso na vida política de sua terra, pelo acréscimo de responsabilidades que

lhes aprove lançar aos próprios ombros.”34

O registro da Folha nos mostra que o movimento sufragista ganhava muita força

no Brasil. O grande passo mundial do movimento foi à aprovação do direito de voto

municipal na Itália, na Grécia e na Espanha. Segundo Álvares o debate sufragista no

Pará foi estipulado desde a década de 1920. Em 1923, Orminda Ribeiro Bastos,

advogada e Jornalista, se sobressai, nesse debate, ao publicar artigos na imprensa local

desenvolvendo os pontos positivos e negativos que ela considera essenciais nas

reivindicações do sufragismo organizado no sul do país, com o aval da Federação

Brasileira pelo progresso feminino (FBPF), presidida por Berta Lutz. A “ignorância

cultural” da mulher era uma versão recorrente para desvalorizar as aptidões dela e

reconduzi-la ao espaço doméstico – o lugar onde era, supostamente, melhor para ‘mexer

panelas e mingau’35, conclui a autora.

No século XIX a idealização burguesa de valorização da família, da mulher

dedicada ao lar, “sustentada pelo marido e preservada dos males da rua” 36 teria que

ceder lugar as mulheres que procuravam cada vez mais o mercado de trabalho e sua

individualização. Tais eventos, incrementados pelos “modos das mulheres nas modas

dos vestidos” provocaria o redimensionamento dos papéis de gênero na sociedade

belenense.

Em 30 de setembro de 1923, Bruno de Menezes, usando o pseudônimo Berilo

Marques, publica na Belém Nova o poema “Bataclan”, já evidenciando uma mudança

substancial no comportamento feminino e sua atenção a cultura material, no que tange a

34 Cabelos Curtos... Idéias Grandes. O décimo congresso feminista a realizar-se em Paris - Convite da "Aliança Internacional pelo Sufrágio Feminino". Publicado na Folha da Manhã, sábado, 21 de novembro de 1925.

35 ÁLVARES, Maria Luzia Miranda, Op Cit., p. 137.

36 Cf. artigo de Eni Mesquita Samara intitulado “Sexo forte”. In: Revista Nossa História, ano 2, Nº. 17, março de 2005, p. 18.

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moda e o querer ser “moderna”. As mulheres passaram a usar roupas ousadas, leves, em

consonância com a própria idéia de emancipação feminina vivenciada na época. A

mesma mulher, mas com uma nova embalagem.

“Chique

Mais corpo que vestido.

Seda, cremes, peliças.

Tangueia, fox-trota, quando anda

E lança olhares fulminantes

Aos cinturinhas (...)”37

Mesmo em 1922, A Semana, já trazia inúmeras passagens que elucidavam essas

transformações no universo feminino. Os discursos masculinos e femininos do inicio do

século já declaravam idéias diferenciadas como “mulher política” e sufragismo. Para a

pesquisadora, Maria Lucia Miranda Álvares “não é notada nenhuma atitude mais

arrojada de rompimentos com a imagem de mulher, que se estabelecera

tradicionalmente (mães zelosas, filhas obedientes).” 38 Álvares arremata seu pensamento

dizendo:

“Não se pode dizer que houve uma aceitação sumária do feitio imposto, visto

que algumas dessas mulheres intentam novas conquistas, quer através do

acesso às escolas superiores, quer através dos empregos fora de casa, dos

modos, das modas adversas e pequenas conquistas às vezes quase

despercebidas.” 39

37 MARQUES, Berilo. Belém Nova. “Bataclan”, 30 de setembro de 1923.

38 ÁLVARES, Maria Luzia Miranda. Memórias e Imagens do feminismo e das ligas partidárias no Pará: 1910 a 1937. In: ÁLVARES, Maria Luzia Miranda (Org.) D’INCAO, Maria Ângela (Org.). A Mulher Existe? Uma contribuição ao estudo da mulher e gênero na Amazônia. Belém: GEPEM, 1995, p. 134.

39 Idem, Ibidem.

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As páginas do jornal Folha do Norte também não estavam indiferentes aos

temas elucidados. Os colaboradores dos dois porta-vozes já citados também registravam

suas impressões para este importante canal de democratização em Belém. Nas consultas

feitas no acervo do jornal, chamou-me atenção um registro de 27 de abril de 1916,

intitulado “O problema do vestuário nos climas quentes”. Aliás, não foi de se estranhar

tal atenção para os problemas de saúde causados pelo excesso de tecidos e texturas num

clima excessivamente quente e úmido.

“Na sessão de ontem, à noite, realizada na Sociedade Médico - Cirúrgica,

nosso distinto colaborador e amigo J. A. de Magalhães apresentou o seguinte

voto sobre o problema do vestuário nos climas quentes (...). O problema do

vestuário nos climas quentes fornece-nos doloroso ensejo para medir quanto

divorciados andamos dos ensinamentos da ciência que professamos e quanto

somos submissos aos exemplos importados de zonas e países, cujo clima e

cujas condições econômicas nada tem de comum com a zona que habitamos

nem com os produtos dos quais depende a nossa vida autônoma e livre (...). O

vestuário destina-se a envolver o homem de maneira a manter uma camada

de ar denominada clima do corpo à temperatura constante de 28º, impedindo

que, seja por irradiação, por contato ou por evaporação, o meio exterior lhe

subtraia quantidade superior de calorias ou lhe aumento aquele temperatura.

Para estabelecermos, pois, a natureza do tecido que devemos adaptar na

confecção de vestuário, bem como a cor que deveremos preferir, dado o

clima em que vivemos cumpre-nos estudar a condutibilidade dos vários

tecidos, bem como o seu poder absorvente do calor e da umidade. Devemos

ainda registrar que os tecidos enxugam de maneira diferente; os de lã secam

de dentro para fora, evaporando, apenas pela face exterior, ao contrário do

linho e do algodão que evaporam pelas duas faces igualmente (...)” 40

Nesta primeira parte do documento podemos identificar algumas questões

levantadas pelo crítico cientista J. A. de Magalhães e que foram apresentadas a sociedade

médico - cirúrgica do Pará: primeiramente a falta de coerência da sociedade paraense em

usar tecidos quentes e escuros, totalmente adversos ao nosso princípio climático. Em 40 Folha do Norte. “O problema do vestuário em climas quentes”, 27 de abril de 1916.

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seguida o registro propõe a mudança de tecidos a serem usados para nossa região. No

lugar da lã, que segundo o proponente “secam de dentro para fora, evaporando, apenas pela

face exterior” dever-se-ia adotar o linho e o algodão “que evaporam pelas duas faces

igualmente”, arremata. É bem verdade que este problema inserisse numa cena mais

complexa, requerendo mais interrogatórios para com as fontes, perpassando o econômico

e o simbólico das roupas. Uma abreviatura desta problemática se revelaria basicamente

em três vértices: lócus, status social e imaginário coletivo.

“Consideremos, agora a natureza do nosso clima – úmido e quente – sem

grandes oscilações de temperatura que se mantém na zona que o professor

Afrânio Peixoto limita da vizinhança do equador ao paralelo 40º, nas

proximidades de 30º, obrigando-nos a constante e forte transpiração, veremos

que, em contato com o tórax, precisamos ter um tecido que absorva a nossa

abundante transpiração sem nos produzir os resfriamentos que,

freqüentemente, nos assaltam independente de fortes oscilações de

temperatura que os justifiquem (...). Do exposto se infere que o nosso

vestuário, se quisermos ser lógicos, prezar a nossa saúde e servir aos

interesses econômicos do país deverá ser constituído por uma camisa de

flanela, o mais frio possível, camisa e ceroula de algodão branco, cinzento ou

castanho, sendo que o branco será sempre o menos quente, embora menos

econômico também, mas em compensação muitíssimo mais usado e as

demais cores defender-nos-ão as ação dos raios (...) do sol.”41

Na justificativa do proponente está implícito um discurso protecionista, para não

dizer claramente nacionalista. Na medida em que este autor nos sinaliza da necessidade

“de servir aos interesses econômicos do país”, deixa vestígios de um pensamento

recorrente na época em questão, que não era exclusivo de literatos, mas de grande parte da

sociedade belenense, inclusive dos profissionais da saúde: tratava-se de valorizar o

nacional. O próprio J. A. de Magalhães, apoiando-se num fato histórico trata de enfatizar

sua posição:

41 Ibidem.

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“Invoquemos a figura máscula do Marquez do Pombal, que, para sanar, como

sanou, as dificuldades financeiras produzidas pelo ouro que emigrava para o

estrangeiro, em troca dos artigos de luxo com que o estrangeiro, em troca dos

artigos de luxo com que, o estrangeiro viciava a sociedade portuguesa,

ordenou que a corte se vestisse somente de tecidos nacionais. E o exemplo,

partindo de cima, salvando Portugal da crise que ameaçava o evoluir

brilhante, que o grande estadista soube imprimir à pátria, que ele, com o seu

único esforço conseguiu engrandecer e felicitar.” 42

Esta passagem invocando nosso passado colonial na figura de Marquês de Pombal

não é à toa. André Botelho empregando Octávio Ianni nos informa que “em cada época

marcante da sua história, a sociedade brasileira tem sido levada a pensar-se novamente. É

como se ela debruça-se sobre si mesma: curiosa, inquieta, atônita, imaginosa.” 43 O texto

do periódico segue dizendo que:

“O chapéu de palha deverá merecer também a nossa preferência, a não ser

que façamos empenho em cultivar a calvície para o que decisivamente

concorrem os chapéus de feltro quentes e pesados a ponto de dificultarem a

circulação superficial do couro cabeludo (...)” 44

Nesta parte o autor sugere a substituição dos chapéus de feltro “quentes e

pesados a ponto de dificultarem a circulação superficial do couro cabeludo”, por

chapéus de palha, mais adequados ao clima equatorial e que evitam a calvície. Neste

caso o alerta estava direcionado para os homens, o que nos faz pensar que as

preocupações com a moda, mesmo com o álibi “para ter uma vida saudável”,

freqüentavam o imaginário masculino. Um indício desta última cogitação pode ser

percebido na difusão de itens da moda típicos da classe mais abastada durante o século

42 Ibidem. 43 BOTELHO, André, Op Cit., p. 7. 44 Folha do Norte, 27 de abril de 1916.

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XIX e início do XX, “como cartolas, luvas, bengalas e relógios, o que pode ser

interpretado como prova de que se buscava cruzar as fronteiras de classe.” 45 Maiores

observações sobre este entrelaçamento de gênero estará disponível no segundo capítulo

deste trabalho.

“A esta importante sessão, além da classe médica luzidamente representada

compareceram entre outras pessoas, os senhores cônsul de Portugal no Pará,

Dr. Veiga Simões e Exmª esposa, cônsul e consulesa de Portugal em Manaus;

Drs. Eladic Lima, Barroso Rebelo, Luiz Barreiros, os senhores Borges de

Lima, Abenico Lima e muitas outras pessoas que enchiam o vasto salão

Gaspar Vianna em que se realizou a sessão (...). A pedido do Dr. Ophyr de

Loyola foi a discussão da proposta Magalhães adiada para a próxima sessão,

a realizar-se no dia 10 de maio próximo (...). Ao encerrar a sessão o Sr.

Presidente agradeceu a todos os presentes a honra de sua presença.” 46

A sessão na sociedade médico – cirúrgica no seu encerramento, contou com a

presença de ilustres figurões da aristocracia paraense e de outras partes do país. Isto nos

leva a pensar que o tema moda, por mais próximo que estivesse dos princípios –

elegância, charme, futilidade, estava na pauta daqueles que responsabilizavam pelo

modus vivendi de Belém. Direta ou indiretamente, se é que se pode conceber tal

fenômeno desligado do social, a moda e seus resíduos freqüentavam as linhas, as idéias,

as percepções da classe intelectual moderna. O espaço é a cidade de Belém e o evento

histórico é “a participação dos intelectuais e das idéias no processo de construção do

moderno Estado - nação” 47 e as “diferentes perspectivas teóricas” que estes adotavam.

Portanto a moda naturalmente se acomoda no imaginário do coletivo intelectual nos

45 CRANE, Diana, Op Cit., p. 82.

46 Folha do Norte, 27 de abril de 1916. 47 BOTELHO, André, Op Cit., 50.

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anos de 1920 e é mais um, entre tantos outros, “sentimento da cidade” 48, mencionando

Giulio Carlo Argan.

Entretanto a moda parisiense também iria sofrer as já elucidadas mudanças.

Algumas mulheres assim como alguns homens da alta sociedade paraense

permaneceriam atrelados ao efeito Paris n’América. Acompanhe a riqueza de detalhes

desta crônica d’A Semana em 1923:

“As nossas elegantes já não são aquelas preciosas escravas da moda

parisiense, que recebiam os últimos figurinos da Cidade-Luz, como se fossem

as vozes de um oráculo. Ora, a moda das saias curtas e dos braços desnudos

veio com o alvorecer da grande guerra, que teve o seu início ao declinar de

1914. Durante oito anos os Tailleurs parisienses quase não alteraram o

comprimento das saias, deixando a descoberto o belo torneado das pernas,

obra maravilhosa do artista-Deus. Em setembro de 1922 chegaram a Belém

os figurinos que legislavam a moda para inverno de 1923. Muitos pensaram

que na ‘season’ Nazarena do ultimo ano, os novos vestidos predominassem,

atestando o gosto da ‘rafiné’, da elegância belenense. Entretanto, um ou dois

trajes apenas, dos que hoje deviam estar no ‘galarim’, surgiram naquela feira

da vaidade. Certamente, dizia-se, sendo costumes do inverno, e atravessado à

festa Nazarena a quadra do verão, não queriam as sacerdotisas da moda

contrariar os princípios instituídos pelos mestres da tesoura. A estação

‘libernal’, porém, surgiu intensa, em dezembro e os trajes determinados pelos

novos figurinos não predominavam. O inverno chega ao seu término e

pouquíssimos foram os vestidos, cujas saias chegavam quase aos artelhos; as

mangas encurtaram tanto que revelavam as axilas. Raríssimas foram às

senhoras que se apresentavam com vestes de mangas amplas, sendo que

muitas exibiam as mesmas mangas de gaze, ‘pongée’ e outros tecidos leves e

esvoaçantes. Entretanto, tudo isso porque? Ao que parece tudo isso porque há

necessidade da exibição de beleza de braços impecáveis, braços alvos que

seduzem e que se amorenam as ardências do sol. Quanto às saias, temos de

convir que, curtas como são, dão a mulher um tom de mocidade que a

aproxima das adolescentes de quinze anos.”49

48 Giulio Carlo Argan em seus estudos sobre o valor estético da cidade nos coloca que o espaço citadino deve ser tratado como espaço visual, que carrega muito mais que o visível ou o concreto. Tal espaço está impregnado de valores e níveis culturais. Vide ARGAN, Giulio. História da Arte como história da cidade. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 49 Mlle. Fleur. A Semana. A Semana Elegante “A Moda”, 09 de junho de 1923.

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De fato, tudo leva crer que o autor deste escrito acima é uma mulher. E isso

ainda se confirma quando lemos a assinatura: Mlle. Fleur. Porém, não seriam incomuns

os literatos homens se utilizarem de pseudônimos para assinar crônicas e versos. Poucas

eram as senhoras com mangas compridas e saias arrastando no chão. Muitos eram com

os braços sedutores de fora e as saias curtas que davam leveza aos movimentos, além de

promoverem uma mocidade a quem usava, festeja a autora. A mulher “moderna” é

sedutora. Elas são belas sereias, tal como perfumes e produtos de beleza são destaques

nos anúncios, como diziam os literatos.

O vestuário apresentado pelas elegantes belenenses estava diferentemente da

cultura escrita, expressando tensões. Os códigos de vestuário intrínsecos nas próprias

relações de gênero continuavam a proliferar significações no interior daqueles grupos

sociais. Isto indica que as damas paraenses, mesmo distantes da realidade das fábricas

ou do pleno convívio no espaço público, como no caso das mulheres operárias e de

classes menos favorecidas, dirigiam respostas conflitantes para a classe hegemônica.

Assim manifestavam subversões não-verbais. Crane se ajustando as idéias de Erving

Goffman nos diz que “aqueles que mandam mensagens subversivas” sabem de seu

papel social ou no mínimo pleiteiam, no caso de não estarem “inteiramente conscientes

delas.” 50 No caso das mulheres de Belém, de acordo com os significativos nas fontes

consultadas, elas estavam mais compreendidas num grupo consciente da vanguarda

emancipacionistas, no qual também, assim como as mulheres do campo ou das

periferias, estavam embutidas. As damas paraenses estavam freqüentando mais o

ambiente público, fossem em bailes nos grandes salões como Grêmio Português ou em

passeios triviais pelas ruas de Belém. Aliás, vale suscitar as idéias de Guillaume Erner

50 Apud CRANE, Diana, Op Cit., p. 228.

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sobre a relação espaço público – rua com a moda: “a rua é laboratório da moda”.51

Quando as mulheres extrapolam seus novos ideários, suas novas indumentárias e

predileções para além do privado, na verdade estão fomentando uma revolução no

campo das mentalidades, muito complexo para ser sobrepujado. Eis um vértice do

fenômeno moda. Um viva as sua elegantes saias curtas!

51 ERNER, Guillaume. Vítimas da moda? Como a criamos, por que a seguimos. São Paulo: Editora Senac SP, 2005, p. 114.

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