rui costa santos - a teoria em questão - fredric jameson e stanley fish - 2006

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  • 8/6/2019 Rui Costa Santos - A Teoria em Questo - Fredric Jameson e Stanley Fish - 2006

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    UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    PROGRAMA EM TEORIA DA LITERATURA

    A Teoria em Questo

    Stanley Fish e Fredric Jameson

    Rui Costa Santos

    Dissertao Orientada pelo Professor Doutor Antnio Feij

    MESTRADO EM TEORIA DA LITERATURA

    2006

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    Resumo

    Esta tese tem como objectivo inicial mostrar como Fredric Jameson e Stanley Fish, apesar

    de partirem de diferentes (e sob certos, talvez mesmo antagnicas) tradies terico-filosficas,

    acabam ainda assim por partilhar alguns princpios gerais em teoria literria.

    Partindo de uma convico relativa impossibilidade de uma teoria da literatura que

    pretenda dispor de critrios de objectividade, de justificao e de metodologias de trabalho

    universalmente aceites como vlidas, Jameson e Fish (a partir de um determinado momento das suas

    obras) acabam por centrar a sua ateno em questes, no j de ndole terica, mas meta-terica. Este

    movimento , a meu ver, particularmente significativo.

    Com efeito, o pensamento dialctico de Jameson (o pensar sobre o pensar) e a sua defesa

    de uma certa teoria da ps-modernidade acabam por determinar o modo como so determinadas ascondies de (im)possibilidade da crtica literria. Esta passar a ficar limitada a uma identificao de

    sintomas de contradies sociais. Por outro lado, e de modo anlogo, a teoria da crena de Stanley

    Fish, bem como o seu antifundacionalismo essencial, situando-se igualmente a um nvel meta-terico,

    acabam em ltima anlise por se tornar meios de avaliao crtica das condies de (im)possibilidade

    da teoria da literatura.

    Com a minha explcita referncia a diferentes leituras de Hegel procurei revelar que os

    modos pelos quais se opta ler o autor da Fenomenologiatanto pode permitir a defesa de um argumento

    antifundacionalista (Rorty estabelece a ponte entre Hegel e a crtica ideia de verdade como

    representao), como a integrao da epistemologia numa filosofia da Histria (Lukacs e Sartre

    exibem duas tendncias diferentes de perceber a relao de Hegel com Marx).

    Sucede, porm, quer relativamente teoria da crena e ao antifundacionalismo de Stanley

    Fish, por um lado, quer relativamente ideia de uma contradio social existente como sustento de

    uma hermenutica do inconsciente poltico, defendido por Jameson, por outro, podem ser levantadas

    as dvidas sobre critrios e fundamentos que anteriormente j tinham posto em causa a possibilidade

    da teoria e mais particularmente da teoria literria. Em suma, a minha tese geral, que a passagem do

    discurso terico para o dicurso meta-terico (que corresponde grosso modo, substituio de um

    discurso ontolgico por um discurso sobre as condies de possibilidade do conhecimento)

    passagem essa, que Jameson e Fish protagonizaram, acaba por no conseguir evitar os problemas que

    esses mesmos autores haviam atribudo ao discurso terico e teoria.

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    Abstract

    This thesis pretends to show how Fredric Jameson and Stanley Fish, although coming from

    different theoretical traditions, share some common general principles on literary theory.

    They both believe with universal criteria of objectivity, justification and methodology is

    impossible. This notion explains why they developed a kind of meta-theoretical inquiry, rather than a

    theoretical one. This move was made in order to avoid problems and doubts raised against theory, or

    at least, against the classical conception of theory.

    I try to show, however, that this transition from theory to meta-theory seems to fail as an attempt to

    avoid the so-called problems of literary theory. Those problems reappear, although sometimes

    dressed in new garments.

    Palavras-Chave:Teoria, Jameson, Fish, Hegel, Filosofia.

    Keywords:Theory, Jameson, Fish, Hegel, Philosophy.

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    PREFCIO

    A presente dissertao de mestrado foi desenvolvida no quadro do Programa em Teoria da

    Literatura da Faculdade de Letras de Lisboa. Quero expressar aqui o meu reconhecimento ao

    Professor Miguel Tamen e, em especial, ao Professor Antnio Feij, orientador cientfico do meu

    trabalho, por tudo quanto pude aprender com eles.

    Por fim, muito obrigado Slvia, minha Me e ao Gil, por tudo e mais alguma coisa.

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    ndice

    Introduo 2

    I. Totalidade, histria e cepticismo em trs leituras de Hegel 4

    II. O Deus de Milton e a Crena em Fish 45

    III. Da Teoria Crtica de Sintomas em Jameson 71

    IV. As possibilidades da Teoria em Fish e Jameson 93

    V. Concluso 109

    VI. Bibliografia

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    Introduo

    Esta tese partiu da vontade inicial de explicitar a afinidade problemtica subjacente s ideias e

    argumentos de dois tericos literrios contemporneos, Stanley Fish e Fredric Jameson, que

    tradicionalmente, em histrias da crtica e teoria literria, surgem sistematicamente integrados em

    captulos distintos. Fish normalmente inserido na tendncia que enfatiza o papel do leitor (por sua

    vez dividida entre a escola da esttica da recepo, a do reader-response criticism, etc.). Jameson

    associado (se no mesmo reduzido) crtica poltica e cultural, ou ainda inserido numa seco

    dedicada crtica e esttica marxista. Para esse propsito partimos para a anlise do pensamento dos

    dois autores, isolando uma nica questo: como consideram eles a possibilidade de uma teoria da

    Literatura que ao contrrio do sentido mais deflacionrio de Crtica literria, supe a possibilidade de

    uma Epistemologia da interpretao literria.O captulo I reflecte sobre a interpretao do pensamento de Hegel por trs filsofos do

    sculo XX: Georg Lukacs, Jean-Paul Sartre e Richard Rorty. De formas diferentes os trs autores

    reflectem sobre a possibilidade da Epistemologia, nos textos que aqui sero considerados: Histria e

    Conscincia de Classede Lukacs, Le Question Mthodede Jean-Paul Sartre e Consequncias do Pragmatismo de

    Richard Rorty (A Filosofia e o Espelho da Naturezacomo obra fundamental de Rorty igualmente lida

    por ser essencial para perceber Consequncias do Pragmatismo ). Hegel , em todos estes textos, uma

    referncia importante. Trs temas estruturam estas leituras de Hegel que se relacionam com os

    captulos II e III: todo (totalidade), histria (historicismo) e cepticismo. O captulo I relaciona-se com

    os captulos II e II de dois modos. Por um lado, ajudam a descrever o modo como, quer o marxismo

    de Lukacs e Sartre, quer o neopragmatismo de Rorty interpretam Hegel e reflectem sobre a

    possibilidade da Epistemologia, antecipando-se assim uma posterior comparao entre o marxismo

    hegelianizante de Jameson e o antifundacionalismo de Fish - se bem que no seja um neopragmatista

    rortyano, Fish partilha com Rorty a tese bsica do antifundacionalismo). Por outro lado a leitura de

    Hegel encontra-se na descrio que proponho de Fish e de Jameson como autores que negam a

    possibilidade de uma Teoria da Literatura, atitude a que no captulo IV procurarei descreverei comops-kantiana.

    Os captulos II e III apresentam uma interpretao do pensamento de Fish e Jameson. A

    metodologia destes dois estudos orienta-se por dois princpios. O primeiro princpio o da

    independncia estrutural de cada um destes estudos face ao que foi dito no captulo I cada um

    destes captulos foi escrito de modo a poder ser inteligvel (pelo menos at a um certo ponto)

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    independentemente da leitura do primeiro captulo. O segundo princpio diz respeito temtica

    central que orienta a leitura destes dois ensaios as respostas de Stanley Fish e Fredric Jameson

    questo da possibilidade ou no de uma teoria da literatura.

    O captulo IV procura comparar as respostas que Stanley Fish e Fredric Jameson do

    problemtica geral da tese ou no possvel uma Teoria da Literatura a que os dois autores

    respondem negativamente, embora recorrendo a argumentos diferentes e partindo de pressupostos

    distintos. Procura-se caracterizar o marxismo de Jameson face ao marxismo de Lukacs e Sartre, e o

    antifundacionalismo de Fish face ao neopragmatismo de Rorty, assim como descrever estes dois

    autores como ps-Kantianos (recuperam-se aqui os temas tratados no captulo I): contra a

    possibilidade da Teoria, Stanley Fish e Fredric Jameson, levantam o problema da Histria e da

    contingencialidadecontra o edifcio transcendental proposto pelo Estruturalismo, do Sujeito-J-Situado

    (em crenas ou ideologias de classe); contra as teorias dos leitores informados, ideais, ou a ausnciade qualquer sujeito, erguem o problema da significao dos textos e das evidncias empricasdos textos

    individuais. Em concluso, reflecte-se sobre as descries meta-tericas que Stanley Fish e Fredric

    Jameson desenvolveram quando deixaram de acreditar na possibilidade de uma teoria da literatura.

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    Captulo I - Totalidade, histria e cepticismo em trs leituras de Hegel

    A interpretao do pensamento de Hegel, e a sua apropriao ao longo do sculo XX,

    estende-se de Benedetto Croce ou Wilhelm Dilthey, nos primeiros anos desse sculo, at Richard

    Rorty ou Robert Brandom, passando pela sua influncia em toda a tradio marxista (e especialmente

    no que comum denominar de marxismo ocidental) e no existencialismo, nomeadamente em

    Frana, pela importncia da sua recepo nos anos vinte por Jean Hyppolite e Alexandre Kojve. A

    leitura de Georg Lukacs, Jean-Paul Sartre e Richard Rorty, que em seguida apresentarei, incidir

    especificamente sobre algumas questes epistemolgicas que os autores discutem e para as quais

    convocam o pensamento de Hegel. As obras que sero objecto de ateno so: Histria e conscincia declasse de Lukacs, Question de mthodede Sartre e de Rorty, A Filosofia e o Espelho da Naturezae o

    conjunto de ensaios reunidos em Consequncias do Pragmatismo.

    A presena de Hegel nos textos dos trs filsofos aqui em estudo, raras vezes consiste na

    interpretao directa do pensamento de Hegel, isto poucas vezes se assiste a referncias textos de

    Hegel. Na generalidade os trs autores assumemmas no demontramuma determinada compreenso do

    pensamento de Hegel, sendo a excepo Lukacs que, por diversas vezes, remete o leitor para

    contextos especficos das obras de Hegel1. Fixemos assim algumas referncias bsicas subjacentes

    interpretao de Hegel pelos trs autores. Quanto ao Lukacs de Histriaeconscinciadeclasse, Hegel

    compreendido por duas fontes: (1) os textos de Marx2 e Engels (sendo particularmente citado o

    ensaio de Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clssica Alem, em que Hegel compreendido

    como apresentando uma ciso entre o seu mtodo, a dialctica, e o seu sistema); (2) as descries

    de Emil Lask e de tendncias neo-kantianas (Windelband, Rickert) da histria da filosofia do

    1 Dos trs autores apenas de Lukacs se encontra um estudo especfico da obra de Hegel, o JovemHegel- sobre as

    relaes da dialctica e da economia, que termina o estudo do pensamento deste filsofo exactamente no momento da escritada FenomenologiadoEsprito, em 1807. Justifica-se contudo, no quadro deste trabalho a leitura de Histriae conscincia de classe

    porque esta obra, publicada em 1923, ir ter um impacto muito maior e ir simbolizar, nas palavras de Merleau Ponty em

    Aventuras da Dialctica, o incio do marxismo ocidental.

    2 Excluem se obviamente de referncia as obras filosficas de juventude de Marx s conhecidas e publicadas

    no final dos anos 20 e na dcada de 30 do sculo XX, como A Ideologia Alem, os Manuscritos Econmico-Filosficose o

    comentrio extenso aos Princpios da Filosofia do Direito Pblico de Hegel.

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    idealismo alemo que Lukacs absorveu no meio acadmico universitrio alemo3. No caso do Sartre

    de Question de mthode, onde o autor francs procura estabelecer uma epistemologia marxista que

    aproprie o contributo do existencialismo, Hegel mediado por Kierkegaard, por um lado, e Marx

    por outro, sendo a questo principal em debate, a relao entre o universal e o singular, assim como a

    possibilidade de uma epistemologia que permita articular a noo de totalidade (ou totalizao)

    com o conhecimento dos singulares. No caso de Rorty, Hegel dividido entre os contributos dados

    para o projecto de dissoluo da epistemologia e os momentos em que Hegel quis construir um

    sistema (isto , ser filsofo no sentido tradicional que Rorty rejeita). O Hegel de Rorty o que o

    mesmo autor insere numa tradio projectada no sculo XX em nomes como Wittgenstein,

    Heidegger, Quine, Sellars e Dewey. A leitura paralela de dois livros de Rorty justifica-se exactamente

    porque, enquanto emA Filosofia e o EspelhodaNatureza, Hegel apenas surge marginalmente sob pano

    de fundo de uma discusso centrada em autores da filosofia analtica, nos ensaios recolhidos emConsequnciasdoPragmatismo Hegel sucessivamente reivindicado em contraposio a Kant.

    De modo a poder articular, sincrnica e tematicamente, textos escritos em contextos culturais

    e momentos histricos to diversos, articularei a minha reflexo em trs ncleos temticos

    (totalidade, historicidade e cepticismo) que constituiro deste modo as trs partes deste ensaio.

    A primeira parte, sob o conceito genrico de totalidade, reflectir sobre duas teses do

    pensamento hegeliano em epistemologia que se encontram em Lukacs e Sartre e de certa forma em

    Rorty. As duas teses a que me refiro so (1) a.concepo do problema do conhecimento e da cincia

    como parte de uma totalidade da experincia humana, que se pode encontrar na estrutura global da

    FenomenologiadoEsprito, e na articulao entre as trs primeiras seces da Fenomenologiae a quarta

    seco intitulada Verdade e a Certeza de si mesmo (onde Hegel situou a dialctica do senhor e do

    escravo) e (2) a crtica ao conhecimento imediato (que ser verificada na primeira seco da

    FenomenologiadoEsprito, certeza sensvel ou o isto e o acto de opinar) em que Hegel defende que o

    que conhecemos atravs da certeza sensvel - como primeira forma da experincia da conscincia -

    so os universais.

    Assim, em Lukacs ser articulada a concepo de facto e teoria na crtica ao empirismo e

    iluso dos factos nus como uma defesa da segunda tese, e a articulao entre a objectivao e

    3 Tom Rockmore num ensaio a propsito de Histria e Conscincia de Classe procura exactamente demonstrar a

    centralidade da interpretao de Emil Lask do idealismo alemo no modo como Lukacs ir ler Kant, Fichte e o prprio

    Hegel: Tom Rockmore, Lukacs on Classical German Philosophy and Marx in Idealistic Studies vol. X, no. 3, Setembro,

    1980.

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    especializao na cincia e a reificao da mercadoria na sociedade capitalista, pela qual articula a

    noo de coisa-em-si em Kant com a questo do trabalho e das relaes intersubjectivas em

    sociedade, como a apropriao hegeliano-marxista por Lukacs da primeira tese. Sartre, reflecte

    exactamente sobre estas duas mesmas teses mas distancia-se parcialmente de ambas. Em Questo de

    Mtodo, Sartre prope uma totalizao aberta contra um conceito fechado de totalidade e

    epistemologicamente estril, mas nega igualmente a noo de conhecimento imediato. Sartre acolhe o

    mtodo regressivo-progressivo de Henri Lefebvre como um mtodo vlido para articular o

    conhecimento dos singulares e dos universais, permitindo-lhe conciliar o existencialismo e o

    marxismo. Richard Rorty na sua crtica viabilidade da epistemologia acolhe a crtica hegeliana ao

    conhecimento imediato e quando em A Filosofia e o Espelho da Naturezaaceita a crtica ao mito do

    dado em Wilfrid Sellars sublinha a auto-descrio que Sellars apresenta da sua reflexo como

    migalhas hegelianas.De igual modo, quanto segunda tese, Rorty descreve a Fenomenologiacomo obra crtica-da-

    cultura e que, no contexto do legado mais genrico do Idealismo metafsico contribuiu para o

    prprio projecto de Rorty, pelo menos na interpretao do autor, ao acentuar a preponderncia da

    cultura literria face cincia; contudo, quanto a esta primeira tese, h que contudo reconhecer que,

    enquanto em Hegel, Lukacs ou Sartre, esta tese tem um sentido ontolgico, mesmo que diversas nos

    trs autores, em Rorty, esta segunda tese visa simplesmente diluir a prpria concepo de

    epistemologia e s ter possivelmente sentido positivo nas reflexes de Rorty sobre filosofia poltica

    e a actividade geral dos intelectuais em comunidade.

    Na segunda parte, o termo historicidade permite pensar diversas questes: em Lukacs a

    noo de um devir histrico, com leis prprias internas independentes da conscincia humana

    individual, garante a no contingencialidade absoluta de todo o conhecimento, permite ainda a

    Lukacs distinguir entre correcta e falsa conscincia; ora, em completa oposio se encontra neste

    sentido Rorty para quem a contingncia histrica no seno outra face da contingncia epistmica e

    exactamente pela diferena de atitudes entre Lukacs e Rorty face viso da Histria que os dois

    autores encontram em Hegel que Lukacs reabilita a noo de astcia da razo hegeliana enquanto

    Rorty contrape o Hegel que pensa a historicidade ao Hegel Filsofo no sentido depreciativo de

    filsofo sistemtico. Sartre procurando uma noo da Histria que seja imanente aco humana,

    mas que execute a passagem entre a existncia individual e o colectivo social, desenvolve em Questo

    de Mtodo a noo de projecto, onde constatvel que a relao singular / universal reflexo em Sartre

    , simultaneamente, epistmica, ontolgica e tico-poltica. Entre esta segunda parte, centrada na

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    reflexo sobre a historicidade e a terceira parte que tem como tema a questo do cepticismo como

    uma reflexo sobre a possibilidade da epistemologia, irei ainda ler o ensaio de Engels Ludwig

    Feuerbach e o Fim da Filosofia Clssica Alem. Este ensaio de Engels adquire aqui relevncia

    porque por um lado apresenta a interpretao clssica (no interior do marxismo) de Hegel como

    apresentando uma contradio entre o seu mtodo e o seu sistema filosfico, em que essa

    contradio no pensamento de Hegel, no entender de Engels, permite compreender a desagregao

    da escola hegeliana e a ciso entre hegelianos de esquerda e de direita. A segunda parte do ensaio

    onde Engels, aps terminar a sua interpretao do pensamento de Hegel e da desegregao da escola

    hegeliana, reflecte sobre o que considera ser a grande questo da filosofia moderna a relao entre

    pensar e ser suscita a rejeio por Lukacs pelo modo como Engels resolve em poucas palavras a

    noo de coisa-em-si em Kant e constri uma teoria do reflexo para garantir a possibilidade do

    conhecimento. Com esta reflexo sobre o texto de Engels e a sua rejeio por Lukacs transito dasegunda parte para a ltima parte do ensaio.

    Na ltima parte desta reflexo sobre Lukacs, Sartre e Rorty, o tpico do cepticismo situa-se

    a um nvel diferente dos dois anteriores: enquanto na primeira e segunda parte, sob os tpicos

    totalidade e historicidade se procurava interpretar como os trs autores traavam os quadros gerais

    em que possvel edificar uma epistemologia, nesta ltima parte o que sob o termo cepticismo se

    questiona a prpria viabilidade da epistemologia. Em Lukacs, os conceitos de dialctica e de prxis,

    como um modo de unificar a teoria e a prtica, fornecem a soluo da aporia epistmica. Em

    linguagem hegeliana, a ciso que ao nvel do entendimento sempre se encontra entre o sujeito e o

    objecto s resolvel para Lukacs atravs de um sujeito inserido na histria e na totalidade da vida

    social. O conhecimento que Lukacs pensa ser possvel, concordando a com Engels, exactamente o

    conhecimento dos processos, a histria das formas, em que a realidade captada como um devir, em

    oposio noo do conhecimento de essncias das coisas como imutveis e anistricas. Sartre

    defende explicitamente uma perspectiva realista em epistemologia como consequncia da crtica de

    Marx ao idealismo em Hegel, cr na irredutibilidade do facto humano ao conhecimento motivo pelo

    qual props a substituio do termo totalidade pelo de totalizao aberta. Richard Rorty nega a

    viabilidade do projecto epistemolgico moderno que o autor descreve como alicerado na trade

    Descartes-Locke-Kant, para quem o cepticismo moderno o cepticismo cartesiano baseado no

    solipsismo metodolgico. Rorty l Hegel como um autor que rompeu exactamente com duas destas

    teses fundamentais: criticou o solipsismo cartesiano ao colocar o indivduo envolvido no processo de

    conhecimento na Histria e em sociedade, e criticou a noo de coisa-em-si kantiana baseada numa

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    separao entre o dado e o interpretado; contudo, para Rorty, Hegel lamentavelmente mantm a

    noo de cincia e de conhecimento, enquanto Rorty quer simplesmente mudar de assunto.

    I

    Duas Ideias sobre Hegel

    As duas teses hegelianas a que primeiramente me referi a compreenso do problema do

    conhecimento como parte da totalidade da experincia humana, e a tese contida na crtica ao

    conhecimento imediato e na afirmao de que a verdade da primeira forma de experincia da

    conscincia (a certeza sensvel) se encontra nos universais, sero aqui descritas tendo como referncia

    em Hegel a Fenomenologia do Esprito. Estando consciente de diferentes teses de investigadores da obrade Hegel que se posicionam por uma continuidade ou por uma descontinuidade entre a

    epistemologia apresentada na Fenomenologiade Hegel e a contida na sua obra posterior 4 (a Cincia da

    Lgica e a Enciclopdia das Cincias Filosficas ), o pressuposto de que parto para esta tematizao da

    Fenomenologia do Esprito como passvel de propr uma epistemologia, a viso de que a esta obra se

    insere numa progressiva viragem de preocupaes essencialmente do domnio da tica e da filosofia

    da religio, da obra juvenil de Hegel, para a preocupao com a cincia onde, na procura de

    edificao de um sistema, adquirem maior relevncia as questes epistemolgicas5.

    1. A primeira tese hegeliana acima indicada como possuindo significado epistmico, a tese

    em que Hegel apreende o problema do conhecimento como parte de uma totalidade da experincia

    humana, encontra-se reflectida na prpria estrutura da FenomenologiadoEsprito. Tal como descrita por

    4 Se possvel perceber na Fenomenologia do Esprito uma epistemologia baseada na experincia da conscincia,

    dessa leitura no possvel inferir daqui que se apresenta por isso uma epistemologia geral do pensamento de Hegel,

    visto que polmico se na Enciclopdia das Cincias Filosficas79 a 82 e no final da Cincia da Lgica, as consideraes

    metodolgicas so assimilveis s subjacentes na Fenomenologia. Assim a ateno, dada neste ensaio, Fenomenologia,

    verifica-se exactamente porque creio ter sido esta obra a que mais influenciou teoricamente a Histria e Conscincia de Classede Lukacs onde o autor elabora uma fenomenologia da conscincia, assim como a nica obra de Hegel referida em

    Questo de Mtodo por Sartre e a obra que Rorty tem especialmente em conta quando a Hegel se refere.

    5 De acordo com M. Carmo Ferreira, S em Iena ser anunciado explicitamente que a positividade do kantismo

    no apenas, nem principalmente, o esprito da sua moral, a formalizao desse esprito na filosofia da religio e na

    filosofia prtica, mas o mago do seu pensar e o princpio absoluto do seu sistema. in Hegel e a Justificao da Filosofia,

    INCM, 1989, p.56.

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    Giuseppe Bedeschi, a conscincia, nesta obra, compreende trs fases estritamente gnoseolgicas(a

    certeza sensvel, a percepo, fora e intelecto); a autoconscincia compreende uma figura

    antropolgica (a clebre dialctica do senhor e do servo), e duas figuras ideolgicas (estoicismo e

    cepticismo) e uma figura histrico-religiosa(conscincia infeliz).6 . O que se encontra subjacente a estas

    passagens sucessivas do plano lgico-epistemolgico para os planos histrico, antropolgico e social

    , na interpretao de Cassirer, o ponto de partida do mundo do pensamento de Hegel e a medula

    da sua atitude histrica ante Kant: Hegel desloca o problema da sntese e da unidade sinttica do

    campo do conhecimento puro para o campo da vida espiritual concreta, na totalidade das suas

    manifestaes7.

    A ideia, claramente presente em Histria e Conscincia de Classe, do Proletrio como Sujeito da

    Histria, assim como a equivalncia, por Lukacs, entre a mercadoria (na sociedade capitalista) e a

    coisa-em-si kantiana, tem como pressuposto subjacente a reconfigurao do processo doconhecimento em Hegel, que atinge simultaneamente o conceito de objectividade (no entender de

    Cassirer) e do conceito de individualidade (como o afirma M. Carmo Ferreira). Cassirer quando

    procura interpretar o pensamento de Hegel face ao de Kant, entende que Hegel parte de uma nova

    formulao do conceito de objectividade e do problema da objectividade. Para ele, o alcance deste

    problema no se circunscreve, de forma alguma, ao campo do conhecimento lgico e cientfico.

    Manifesta-se, pelo contrrio, onde quer que a conscincia individual se saiba determinada e vinculada

    por uma qualquer forma por algo geral, ali onde uma vida particular tem a conscincia de ser

    simplesmente a parte de um todo que a abarca e que a domina.8. O conceito de individualidade, tal

    como descrito em Hegel, na interpretao de M. Carmo Ferreira, permite igualmente perceber

    como que a perspectiva hegeliana do processo do conhecimento atinge tanto o sujeito, como o

    objecto, como ainda a prpria noo do que se considera conhecimento. Se com a Crtica da Razo

    Purao verdadeiro fim da metafsica, diz Cassirer, reside, a partir daqui, no conceito completo da

    organizao do prprio esprito9, contudo, pela ciso entre fenmeno e nmeno a sntese a priori

    perde aqui a fora do supremo princpio unificador por antonomasia, que abarca todas as antteses

    6 Giuseppe Bedeschi, Conscincia/Autoconscincia in Enciclopdia Einaudi, vol. 5- Anthropos-Homem, INCM,

    p.205.

    7 Ernest Cassirer, Hegel, El Problema del Conocimiento en la Filosofia y la Ciencia Moderna, III Los Sistemas

    Postkantianos, Cap. IV, Fondo de Cultura Econmica, Mxico-Buenos Aires, 1957, p.353.

    8 E. Cassirer, op. cit., p.355.

    9 E. Cassirer, op. cit., p.246.

    13

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    concretas, e o dualismo do mundo fenomenal e do mundo numenal parece apresentar-se de novo

    como resultado ltimo e insupervel10. O conceito de individualidade apresenta-se assim em Hegel

    como uma forma de formular a estrutura do todo (...). Efectivamente, no mbito de uma teoria da

    individualidade que Hegel formula o princpio da soluo e o traado das implicaes, tanto lgicas

    como prticas da sntese procurada (...) Hegel esclarece logo a que indivduo se refere: o homem, a

    vida individual, que entrev na razo o meio eficaz de superar todas as determinaes abstractas da

    reflexo11.

    Um aspecto cumpre ainda acrescentar, quanto a esta concepo do conhecimento que Hegel

    apresenta na Fenomenologia, presente no conceito de individualidade ou de sujeito (se se quiser dar o

    foque epistmico). Hegel no plano da Fenomenologia do Esprito faz suceder conscincia a auto-

    conscincia o que traduz exactamente a ideia de que comeando com Fichte (...) o idealismo alemo

    rapidamente abandonou a perspectiva transcendental de Kant face ao conhecimento em favor deuma perspectiva cada vez mais psicologista e mesmo antropolgica. Para Fichte a plena auto-

    conscincia requer uma relao com outra pessoa. Hegel expande de modo brilhante este ponto na

    sua descrio da relao mestre-escravo12, que por demais conhecida pela repercusso que teve na

    tradio marxista, e que em Lukacs permite compreender o nexo lgico entre a relao sujeito-

    objecto em epistemologia e a relao homem (trabalhador)-mercadoria (produto do trabalho) no

    interior da totalidade social.

    2. A questo da totalidade foi, at agora, descrita no seu primeiro aspecto: a percepo

    hegeliana que a ciso entre sujeito e objecto e a aporia cognitiva resultante da impossibilidade de

    aceder cognitivamente coisa-em-si ao nvel do entendimento (o modo como Hegel lia Kant) s

    podiam ser ultrapassados mediante uma nova concepo do processo de conhecimento que por sua

    vez redefinia a concepo de sujeito e objecto cognitivo. A ideia de que a verdade o todo

    compreende-se assim neste primeiro plano na concepo do conhecimento e da cincia como parte

    de uma totalidade da experincia humana , mas est presente igualmente na segunda tese que

    10

    E. Cassirer, op.cit., p. 348.11 M. Carmo Ferreira, op.cit., p.69

    12 M. Carmo Ferreira, op.cit., p.63. Tambm Tom Rockmore, que recentemente interpretou a Fenomenologiacomo

    um projecto epistemolgico, defende que a noo do sujeito epistemolgico adoptada nesta obra por Hegel, est em

    continuidade com Fichte, quando baseia uma teoria do conhecimento em seres humanos individuais como sendo o

    sujeito cognitivo Tom Rockmore, Cognition - An Introduction to Hegels Phenomenology of Spirit, University of California Press,

    1997, http://ark.cdlib.org/ark:/13030/ft7d5nb4r8/, p.4.

    14

    http://ark.cdlib.org/ark:/13030/ft7d5nb4r8/http://ark.cdlib.org/ark:/13030/ft7d5nb4r8/
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    anteriormente avancei: na crtica ao conhecimento imediato e na ideia da verdade da certeza sensvel,

    primeira forma de experincia da conscincia, se encontrar nos universais.

    Hegel, desde o incio da primeira seco da Fenomenologia13, distingue duas noes: (1) a

    experincia sensvel, forma imediata ou receptiva; (2) a certeza obtida dessa mesma experincia.

    O contedo concreto da certeza faz aparecer essa certeza como o conhecimento mais rico, ela

    aparece para alm disso como a maisverdadeira; porque do objecto ela no deixou ainda cair nada, mas

    ela tem-no perante si em toda a sua integralidade.14. Por outras palavras, a presena fsica, material

    do objecto diante de ns d-nos a iluso de o conhecermos, quando o que temos do objecto apenas

    a sua existncia. Hegel, distingue agora: (1) a existncia material, fsica do objecto, independente do

    conhecimento pelo sujeito da experincia (2), o conhecimento do objecto, isto , o seu contedo,

    atributos, qualidades. esta distino entre objecto no plano ontolgico e objecto enquanto objecto

    no plano epistemolgico, que lhe permite dizer que na certeza sensvel, do ponto de vistaepistmico, o sujeito puro este e o objecto puro isto.

    A certeza sensvel constituda, aqui, por trs elementos: a relao imediata da recepo do

    objecto, o objecto como este, e um Eu como outro este. Mediada pela experincia sensvel, temos a

    certeza da coisa e do Eu. O que quer dizer que no temos acesso imediato ao Eu e coisa (objecto)

    seno atravs da certeza sensvel imediata, que condio de possibilidade da noo da certeza do

    isto coisa e do isto eu. Eu tenho a certeza por meio de um outro, a saber: da Coisa; e essa,

    igualmente, est na certeza pormeiodeum outro, a saber, por meio do Eu15, diz Hegel, contudo o

    objecto o verdadeiro e a essncia; ele , indiferente ao facto de ser conhecido ou no; ele permanece

    mesmo no sendo conhecido; o saber no quando no objecto16.

    Hegel considera assim a distino entre o plano ontolgico, onde o objecto o que torna

    possvel a certeza sensvel, e o plano epistemolgico, onde o objecto enquanto isto mediado pela

    certeza da experincia sensvel, mas centra a sua ateno no segundo plano: Ns no temos no fim

    13

    A edio da Fenomenologia do Esprito que aqui ser usada a seguinte: G. W. F. Hegel, Phnomnologie de lEsprit,traduction et notes par Gwendoline Jarczyk et Pierre-Jean Labarrire, Folio-Essays, dtions Gallimard, 1993. Para o

    Prefcio da Fenomenologia do Esprito ser usada igualmente a traduo disponvel em G.W.F. Hegel, Prefcios, traduo,

    introduo e notas de M. J. Carmo Ferreira, INCM, 1990 (pp.27-93).

    14 G.W.F. Hegel, Phnomnologie de lEsprit, op.cit., p.107.

    15 G.W.F. Hegel, Phnomnologie de lEsprit, op.cit., p.109.

    16 G.W.F. Hegel, Phnomnologie de lEsprit, op.cit., p.109.

    15

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    de contas de reflectir nem de indagar sobre ele [para saber] o que em verdade ele possa ser, mas

    apenas de consider-lo como a certeza sensvel o tem nela.17.

    Neste momento Hegel esclarece: trata-se de considerar o objecto tal como a certeza sensvel

    o contm nela e no de como ele possa ser em verdade (isto , para alm disso). Hegel desenvolver

    o resto da sua argumentao quanto ao que respeita certeza sensvel a partir desta clarificao: trata-

    se de esclarecer o objecto no enquanto ele possa ser em verdade sabendo que no sentido

    ontolgico ele indiferente ao facto de ser conhecido; ele permanece mesmo no sendo

    conhecido- , mas somente tal como a certeza sensvel o tem nela, quer isto dizer, tal como ele

    conhecido.

    O isto do objecto na experincia sensvel, na sua irrepetibilidade e singularidade, descrito

    por Hegel numa dupla figura: agora e aqui. Uma proposio como agora noite que

    represente a verdade da forma mais rica e verdadeira como uma certeza sensvel num aquiagora concreto, v-se em ltima instncia constituda por universais,

    pergunta: que o agora? Ns respondemos, por exemplo: o agora a noite. Para examinar a

    verdade desta certeza sensvel, basta uma simples prova. Anotamos por escrito esta verdade; uma

    verdade no se perde por ser escrita, nem h desvantagem em que a conservemos. Vejamos de novo

    agora, este meio-diaa verdade escrita: deveremos dizer que se tornou vazia.

    O agora que noite foi conservado, o que quer dizer [que] ele foi tratado tal como se ofereceu,

    como um ente; mas mostra-se antes como um no-ente. O prprio agora mantm-se, mas como

    qualquer coisa que no noite; paralelamente, mantm-se face ao dia que agora , como qualquer

    coisa que tambm no mais dia; ou como um negativo em geral. Esse agora que se mantm no por

    consequncia um imediato, mas um mediatizado, porque ele determinado como qualquer coisa que

    permanece e se mantmporquea outra, a saber o dia e a noite, no . Com isso, o agora to simples

    ainda como antes: agora; e, nesta simplicidade, indiferente face ao que ainda se joga em torno dele.

    To pouco o dia e a noite so o seu ser, tambm ele no o dia e a noite; ele no de forma alguma

    afectado por esse seu outro-ser.

    Um tal simples que por negao, nem isto nem aquilo, um no isto, e paralelamente

    indiferente tambm a ser isto ou aquilo, ns nomeamo-lo um universal; o universal, portanto, de

    facto o verdadeiro da certeza sensvel.18

    17 G.W.F. Hegel, Phnomnologie de lEsprit, op.cit., p.109.

    18 G.W.F. Hegel, Phnomnologie de lEsprit, op.cit., p.110.

    16

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    A diferena entre a verdade da experincia e a verdade da proposio, ou a verdade da

    relao imediata sensvel e a verdade mediatizada exprimida por Hegel na diferena entre a verdade

    que opinamos19 (na certeza sensvel) e a verdade representada (na proposio, na linguagem).

    Assim, e de acordo com a distino que anteriormente fizmos entre a verdade do objecto e

    o modo como a certeza sensvel apreende o objecto, a certeza sensvel constitui a primeira forma de

    conhecimento do objecto. Na certeza sensvel, a certeza ou verdade da experincia enunciada

    como (porque mediada por) universal, no nos representamos, de certo, o isto universal ou o ser em

    geral, mas enunciamoso universal; ou, ns no falamos pura e simplesmente tal como ns opinamosna

    certeza sensvel20.

    Comparemos ns a relao, em que o saber e o objecto surgiram inicialmente, com a relao

    que estabelecem uma vez chegados a esse resultado, ela inverteu-se. O objecto que devia ser o

    essencial, agora o inessencial da certeza sensvel; isso porque o universal em que o objecto setornou, no mais aquele que deveria ser essencialmente para ela, mas ela agora encontra-se no

    oposto, isto , no saber que antes era o inessencial. Sua verdade est no objecto como meuobjecto,

    ou seja, no acto de opinar21. Por outras palavras, existem duas verdades: a verdade do objecto,

    existente anteriormente e indiferentemente a qualquer conhecimento dele no plano ontolgico, a

    existncia de um objecto condio necessria para que uma relao imediata sensvel (o

    conhecimento na sua primeira forma) possa surgir; a verdade no processo de conhecimento de um

    objecto por um sujeito no plano epistemolgico, a certeza do conhecimento sensvel dada

    atravs de universais.

    Lukacs

    Em ateno ordem de apresentao dos argumentos em Histria e Conscincia de Classe, as

    duas teses hegelianas apresentadas sero desenvolvidas na ordem inversa, uma vez que o primeiro

    ensaio do livro de Lukacs, O que o Marxismo Ortodoxo?, na sua essncia uma defesa da

    segunda tese, e A Reificao e a Conscincia do Proletariado implica uma defesa da primeira tese:

    1. a concepo de facto e teoria na crtica ao empirismo e iluso dos factos nscomo uma defesa da segunda tese;

    19 Opinar ou Supor: na traduo francesa utilizada encontra-se opiner como traduo de meinen, na traduo

    portuguesa do Prefcio da Fenomenologiao mesmo verbo alemo surge traduzido por supor.

    20 G.W.F. Hegel, Phnomnologie de lEsprit, op.cit., p.111.

    21 G.W.F. Hegel, Phnomnologie de lEsprit, op.cit., p.112.

    17

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    2. a articulao entre a objectivao e especializao na cincia e a reificao damercadoria na sociedade capitalista, pela qual articula a noo de coisa-em-si em Kant

    com a questo do trabalho e das relaes intersubjectivas em sociedade, como a

    apropriao hegeliano-marxista por Lukacs daprimeira tese.

    1. A iluso dos factos ns no consiste numa concepo dos factos como mundo das

    aparncias, mas de um modo anlogo ao de Hegel, a certeza da verdade dos factos, enquanto

    objectos no processo de conhecimento no se pode encontrar nesses factos (como objectos externos

    e indiferentes ao ao processo de conhecimento) porque a conscincia no conhece imediatamenteesses

    mesmos factos. Assim, no ensaio O que o Marxismo Ortodoxo? que se afirma logo de incio

    como um ensaio metodolgico ao afirmar que o essencial do marxismo o seu mtodo, a

    dialctica, e onde o resto do ensaio procura exp-lo - Lukacs, distanciando-se do empirismo, afirma:a justaposio mais despida de comentrio j uma interpretao, a este nvel j os factos

    so captados a partir de uma teoria, de um mtodo, eles so abstrados do contexto da vida em que

    eles se encontraram originalmente e introduzidos no contexto de uma teoria. 22

    Assim, de acordo com Lukacs, os factos, a aparncia fenomenal a aparncia no tem neste

    contexto um sentido negativo mas simplesmente designa o aparecer ou surgir na conscincia

    devem ser integrados na totalidade da vida social, enquanto elementos do devir histrico, s assim

    sendo possvel o conhecimento da realidade. Este conhecimento parte das determinaes simples,

    puras, imediatas e naturais (no modo capitalista) (...) para avanar a partir delas para o conhecimento

    da totalidade concreta enquanto reproduo no pensamento da realidade 23.

    Acontece, contudo, desde o incio que, em termos de conhecimento, a relao com as

    determinaes simples, puras, imediatas e naturais sempre feita de modo mediatizado e, do ponto

    de vista da relao saber / absoluto, esta relao no conhecimento tem como consequncia a

    verdade no se encontrar no objecto, isto , nestas determinaes simples, puras e imediatas, mas

    antes na totalidade. De acordo com Lukacs, a totalidade determina igualmente o objecto e o sujeito

    do conhecimento. Em termos de conhecimento o Eu igualmente um universal, e nesse sentido

    hegeliano, nada conserva da experincia sensvel imediata.

    22 G. Lukacs, Histoire et Conscience de Classe Essais de Dialectique Marxiste, trad. Kostas Axelos e Jacqueline Bois,

    Paris, Les ditions de Minuit, 1960, p.22.

    23 G. Lukacs, Histoire et conscience declasse, op.cit., p.26.

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    A dialctica, para Lukacs, que parece fundamentar a sua noo de dialctica exactamente na

    fenomenologia da conscincia de Hegel, no um princpio ontolgico de toda a realidade (como

    uma concepo dialctica da natureza), antes [e]sta dupla determinao, este reconhecimento e este

    ultrapassar simultneo do ser imediato, justamente a relao dialctica 24, este ser imediato no ,

    nem em Hegel, nem em Lukacs, o objecto que condio para a existncia de uma relao imediata,

    mas antes o objecto tal como na certeza sensvel, isto , o objecto de conhecimento na sua

    primeira forma.

    Procurei, neste primeiro momento, mostrar simplesmente como surge em Lukacs o conceito

    de totalidade, pelo mesmo motivo que surgira, em Hegel, a concepo de que a certeza sensvel tem a

    sua verdade no universal. Num e noutro, o facto do objecto (o facto como o dado) ter uma

    existncia e realidade anterior ao seu conhecimento por um sujeito, no tem como consequncia que

    a verdade do objecto do conhecimento, tal como aparece na primeira forma de conhecimento (acerteza sensvel), se encontre neste objecto, simplesmente porque toda a relao de conhecimento

    que com eles podemos ter (objectos e factos) sempre mediatizada.

    2. O prximo passo que a ser dado para compreender a noo de totalidade em Lukacs

    implica perceber como que o autor de Histria e Conscincia de Classe compreende a relao entre

    Hegel e Marx, no que a esta questo diz respeito.

    O ponto de vista da totalidade, tal como concebido por Lukacs - relendo Marx luz de Hegel

    - implica uma reconfigurao de todo o processo do conhecimento: no sujeito de conhecimento, no

    conceito de conhecimento e de cincia. No sujeito de conhecimento, o proletariado surge como o

    sujeito da Histria. A totalidade, no entender de Lukacs, designa o conjunto das relaes inter-

    subjectivas no interior das sociedades humanas atravs da Histria: a categoria da totalidade, e a

    dominao, determinante e em todas os domnios, do todo sobre as partes, constitui a essncia do

    mtodo que Marx recolheu de Hegel e que ele transformou de modo original.25.

    A aco humana em toda a sua amplitude (na produo cientfica, artstica, cultural,

    econmica, poltica e social) e atravs da Histria, concebida como uma totalidade. no interior

    desta totalidade em devir, que conceptualizado o conceito de dialctica em Lukacs que, em ltima

    instncia, tem o seu fundamento terico na ideia de que no h conhecimento imediato, e que todo o

    conhecimento, como mediao, implica um devir lgico-racional de negao e superao.

    24 G. Lukacs, Histoire et conscience declasse, op.cit., p.26.

    25 G. Lukacs, Histoire et conscience declasse, op.cit., p.47.

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    Lukacs considera explicitamente que o mtodo filosfico de Hegel, que foi sempre e com

    uma fora particular na Fenomenologia do Esprito histria da filosofia e filosofia da histria ao mesmo

    tempo, nunca foi abandonado por Marx neste ponto essencial. Porque a unificao hegeliana

    dialctica do pensamento e do ser, a concepo da sua unidade como unidade e totalidade de um

    processo, formam tambm a essncia da filosofia da histria do materialismo histrico.26.

    A reconfigurao da problemtica epistmica no marxismo-hegeliano de Lukacs passa no

    tanto por uma resposta diferente questo da objectividade, da validade das proposies e dos

    modos de conceber a relao sujeito objecto nos quadros da epistemologia moderna (posterior a

    Descartes e Kant) mas essencialmente por uam insero (e numa parcial dissoluo) dos problemas

    da epistemologia num ponto de vista da totalidade, em que o sujeito de conhecimento o ser

    humano individual, do qual o filsofo da cincia ou qualquer outro especialista numa determinada

    rea, apenas uma abstraco e uma objectivao, em que os problemas especficos de uma rea deinvestigao ou de um dado domnio cientfico so em ltima instncia uma abstraco igualmente da

    problemtica geral da reificao e da mercadoria na totalidade social.

    A consequncia desta perspectiva da totalidade para Lukacs no a anulao de todo o

    particular no universal, no sentido de uma indiferenciao (se bem que esta crtica se encontre quer

    em Kierkegaard e Marx e em Sartre) mas, pelo contrrio, a dialctica procura antes a possibilidade de,

    na experincia da imanncia e do particular, captar o universal e a totalidade, sabendo igualmente que

    a integrao na totalidade (...) no muda somente de forma decisiva o nosso juzo do fenmeno

    particular, mas exerce no contedo do fenmeno particular enquanto fenmeno particular uma

    mudana fundamental27 .

    no ensaio A Reificao e a Conscincia do Proletariado que Lukacs fundamenta o ponto

    de vista da totalidade. Na perspectiva da histria da filosofia alem entre Kant e Hegel, tal como ela

    vista por Lukacs, Hegel procurara resolver a impossibilidade em Kant de conhecer o nmeno, a

    coisa-em-si kantiana, assim como procurara compreender de forma unitria a razo pura e a razo

    prtica, o conhecimento da natureza e a vida tica e social. Na anlise de Marx, Hegel no alcanara

    esse objectivo plenamente por se ter mantido num plano puramente especulativo que se devia ao seu

    idealismo. De acordo com Lukacs, a superao da resoluo puramente especulativa da ciso sujeito-

    objecto s possvel atravs de um sujeito que seja agente na totalidade da vida social. Este sujeito

    o proletariado, simultaneamente com uma existncia social e histrica determinada, e que por

    26 G. Lukacs, Histoire et conscience declasse, op.cit., p.55.

    27 G. Lukacs, Histoire et conscience declasse, op.cit., p.192.

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    analogia com a estrutura da Fenomenologiade Hegel, pode ser a conscincia hegeliana que se descobre

    como autoconscincia, e a classe social que atravs do seu processo de devir racional e histrico

    unifica a teoria e a praxis, o conhecimento enquanto processo contemplativo e o agir social que pode

    no entender de Lukacs e no de Hegel tal como ele o interpreta em ltima instncia ser

    inconsciente.

    O mtodo dialctico, tal como Lukacs o compreende logo no incio de Histria e Conscincia de

    Classecomo dialctica revolucionria que procura desenvolver a essncia prtica da teoria, a teoria

    que torna possvel a tomada de conscincia no processo histrico. O conhecimento exacto da

    sociedade torna-se, para uma classe, a condio imediata para a sua auto-afirmao na luta, e esta

    classe sujeito e objecto do conhecimento, sendo desse modo assegurada a unidade da teoria

    (conhecimento exacto de toda a sociedade) e da prtica (realizao do processo histrico).

    Ao contrrio da viso do marxismo enquanto organizando o todo social numa infra-estruturae numa super-estrutura, em que a primeira fundamento epistemolgico que permite compreender o

    nvel superior (as formas ideolgicas, o Estado e instituies, arte, etc.), o ponto de vista da totalidade

    tal como concebido por Lukacs no livro em estudo tem como implicao a unidade do

    conhecimento e da cultura h somente uma cincia, histrica e dialctica, nica e unitria, do

    desenvolvimento da sociedade como totalidade28 onde a tematizao da mercadoria como conceito

    operatrio no significa a prioridade do factor econmico no interior da totalidade, e determinante

    como causa dos restantes elementos, mas antes, para Lukacs, todas as objectividades reificadas da

    vida econmica e social so dissolvidas por Marx em relaes interhumanas e o capital no , para

    Marx, uma coisa, mas uma relao social entre pessoas, mediatizadas pelas coisas. 29. O fundamento

    da teoria de Lukacs consiste exactamente nessas relaes interhumanas que so constitutivas da

    prpria noo de indivduo, tal como condio necessria para a auto-conscincia (em Hegel) a

    existncia de outras conscincias e o processo de mtuo reconhecimento.

    A dialctica do senhor e do servo na Fenomenologia medeia, de acordo com Giuseppe

    Bedeschi, o processo lgico-fenomenolgico e o processo histrico-antropolgico, isto , a anlise da

    relao sujeito-objecto no conhecimento e o tratamento do estoicismo, cepticismo e cristianismo:

    No primeiro, temo-nos a haver com um determinado estdio da oposio (que dever ser superada

    28 G. Lukacs, Histoire et conscience declasse, op.cit., p.48.

    29 G. Lukacs, Histoire et conscience declasse, op.cit., p.71.

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    e resolvida) entre sujeito e objecto; e no segundo, com um estdio da histria humana (exactamente a

    relao entre o senhor, ou dono, e o servo) 30.

    Assim como a dialctica sujeito-objecto (em epistemologia) se converte na dialctica

    senhor/servo e no proletariado como sujeito da Histria em Marx e Lukacs, igualmente o objecto no

    processo de conhecimento representado na relao do servo com o trabalho e se torna em Lukacs

    na mercadoria (simultaneamente objecto de conhecimento e smbolo do trabalho alienado) 31. Se em

    O Capital Lukacs reconhece a alienao e a anlise hegeliana da objectivao no tratamento do

    fetichismo, Lukacs ao dar ateno a esta conexo entre objecto e mercadoria desenvolve

    essencialmente uma crtica do formalismo na cincia.

    O erro da cincia burguesa, considera Lukacs, reside em que esta cr encontrar no indivduo

    histrico emprico e no dado empiricamente conscincia o que s pode ser compreendido pela

    relao sociedade como totalidade. Lukacs pensa deste modo que o erro da cincia quandoformaliza e torna esttica e intemporal a relao sujeito-objecto na epistemologia pode ser

    representado enquanto prottipo (mais como uma metfora de um todo do que como um

    fundamento) pela mercadoria. A mercadoria definido como o prottipo de todas as formas de

    subjectividade na sociedade burguesa que toma o carcter de uma coisa, de uma objectividade

    ilusria quando dissimula o vestgio da sua essncia fundamental: a relao entre homens 32. O

    fenmeno estrutural fundamental da reificao faz opr ao homem a sua prpria actividade, o seu

    prprio trabalho como algo objectivo, independente dele e que o domina por leis prprias, estranhas

    ao homem. Ao longo da evoluo do capitalismo, a estrutura da reificao afunda-se cada vez mais

    profundamente, fatalmente, constitutivamente, na conscincia dos homens33.

    A ideia da estrutura da reificao como fatalmente afundada na conscincia dos homens que

    d a Lukacs o instrumento para criticar o formalismo e objectivismo da cincia:

    Quanto mais uma cincia moderna evoluiu, mais ela se deu uma viso metodolgica (...) de

    si mesma, e mais ela deve virar as costas aos problemas ontolgicos da sua esfera e elimin-los

    decididamente do domnio de conceptualizao que ela forjou. Ela torna-se e tanto mais quanto

    30 G. Lukacs, Histoire et conscience declasse, op.cit., p.267.

    31 O captulo do Capital sobre o carcter fetichista da mercadoria [recle] em si todo o materialismo histrico,

    todo o conhecimento em si do proletariado como conhecimento da sociedade capitalista G. Lukacs, Histoire et conscience

    declasse, op. cit., p.212.

    32 G. Lukacs, Histoire et conscience declasse, op.cit., p.110.

    33 G. Lukacs, Histoire et conscience declasse, op.cit., p.122.

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    mais mais evoluda e mais cientfica um sistema formalmente fechado de leis parciais

    especializadas para a qual o mundo se encontra fora do seu domnio, e com isto, no primeiro nvel, a

    matria que ele tem por funo conhecer, o seu prprio substracto concreto de realidade, passa

    metodolgica e fundamentalmente por incaptvel34.

    Do ponto de vista da filosofia contempornea da sua poca, o neo-kantismo que mais

    amplamente mencionado por Lukacs, sendo a crtica a Kant e ao neo-Kantismo paralela crtica ao

    desenvolvimento da cincia. Voltar-se- a esta questo na ltima seco deste captulo, dado que a

    relao que Lukacs estabelece entre forma - contedo e a questo do irracional convoca, na leitura de

    Tom Rockmore, a histria da filosofia do idealismo alemo vista pelo filsofo E. Lask. Na medida

    em que esta questo em ltima instncia a do cepticismo ou da possibilidade da epistemologia,

    poder igualmente ser articulada com outros dois problemas: a crtica de Lukacs a Engels no

    tratamento da coisa-em-si Kantiana e por ltimo a possibilidade ou no ltima do conhecimento.

    Sartre

    Face s duas teses hegelianas inicialmente consideradas, aQuesto de Mtodo de Sartre pode ser

    assim descrita:

    1. A reconfigurao do problema do conhecimento em Hegel, tal como perspectivada na

    primeira tese, assumida logo no incio da Questo de Mtodo, fundindo-se com a prpria concepo

    existencial (de Sartre) da filosofia.

    2. O conceito de totalidade na relao entre o universal e o singular (que implicava em Lukacs

    uma mudana fundamental no particular) no aceite por Sartre, que adopta uma perspectiva

    realista, e afirma a irredutibilidade do facto humano face ao conhecimento. Contudo ao propr a

    noo de uma totalizao aberta Sartre reconhece a importncia da dvida marxista a Hegel.

    1. O modo mais claro de perceber a concepo de filosofia de Sartre presente em Questo de

    Mtodo exactamente atender ao seu incio e ao modo como a questo metodolgica a emerge. O

    ensaio comea com uma tomada de posio de Sartre sobre o que considera ser a filosofia,

    criticando a perspectiva que v a filosofia como uma sombra da cincia pela qual ela no , para

    Sartre, seno uma abstraco hipostasiada. A filosofia, diz, Sartre, antes de tudo o modo

    particular em que a classe em ascenso se torna consciente de si, concepo de filosofia que parece

    34 G. Lukacs, Histoire et conscience declasse, op.cit., pp.133-134.

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    obviamente devedor da leitura hegeliana da Histria que Lukacs apresenta em Histria e Conscincia de

    Classee onde a substituio da noo de sujeito pela noo de classe como sujeito da Histria e da

    tomada de conscincia de si traduz a procura inscrio do pensamento marxista na filosofia da

    Histria (e na Fenomenologia) de Hegel.

    A filosofia, a que opor ideologia, a totalizao da saber contemporneo em que o filsofo

    opera a unificao de todos os conhecimentos orientando-se em certos esquemas directores que

    traduzem as atitudes e as tcnicas da classe em ascenso perante a sua poca e perante o mundo 35.

    No sentido amplo a que Sartre conduz a noo de filosofia, esta visa dar expresso ao movimento

    geral da sociedade e o humus de todo o pensamento particular e horizonte de toda a cultura 36,

    identificando Sartre entre o sculo XVII e o sculo XX trs grandes momentos filosficos: um

    primeiro, de Descartes e Locke, o segundo, de Kant e Hegel, o terceiro de Marx. no quadro deste

    ltimo grande momento filosfico que Sartre compreende o existencialismo como uma ideologia,isto , um sistema parasitrio () margem do Saber e que se lhe ops primeiro e que, hoje, tenta

    integrar-se nele37. Esta descrio do existencialismo coloca de um lado Hegel e Marx como filsofos

    e do outro Kierkegaard e Sartre como idelogos. Esta figura do idelogo, no quadro aqui traado,

    figura ante o Saber, reproduzindo o dualismo entre o particular e o Universal. Assim como o singular

    (e a existncia individual) reivindica onto-epistemicamente o seu lugar face ao universal (e

    sociedade como um todo), assim tambm o o existencialismo (como ideologia) reivindica o seu

    espao terico face ao marxismo (como Saber).

    No reconhecimento filosfico do concreto, Sartre efectua, tal como o Lukacs da Histria e

    Conscincia de Classeuma reduo questo do homem concreto, da aco e da produo humana,

    deixando de lado uma perspectiva epistmica e ontolgica mais ampla que se encontra subjacente

    crtica inicial de Marx ao idealismo de Hegel. Esta reduo traduz-se essencialmente em duas

    questes, a saber: (1) como entender o materialismo e a crtica do idealismo por Marx a Hegel? (2)

    Que amplitude epistemolgica tem a dialctica tal como Marx a concebe e reformula a partir de

    Hegel? Esta ltima questo suscita ainda uma outra interrogao: (3) o termo dialctica em Hegel

    designa uma lei da realidade, do seu devir e historicidade (ao nvel ontolgico), designa somente um

    35 Jean Paul-Sartre, Question de Methodein Critique de la Raison Dialectique (prcd de Questiondemthode), tome I,

    Thorie des ensembles pratiques, Gallimard, Paris, 1960, p. 15.

    36 Jean-Paul Sartre,Question de mthode,op.cit., p. 17.

    37 Jean-Paul Sartre,Question de mthode, op.cit., pp.17-18.

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    mtodo de apreenso e percepo da realidade pela conscincia (ao nvel epistmico) ou

    simultaneamente uma ontologia e uma epistemologia?

    Nas epistemologias de Lukacs e de Sartre presentes nestes dois livros, pode-se compreender

    que a dialctica de Lukacs tem a sua matriz hegeliana na fenomenologia da conscincia presente na

    FenomenologiadoEsprito e onde recusa a sua extenso posterior (na Enciclopdia das Cincias Filosficas)

    Natureza; da mesma forma o mtodo regressivo-progressivo de Sartre circunscreve-se aco

    humana em sociedade, bem como se articula decisivamente como uma questo tica e poltica,

    procurando articular a autonomia ontolgica e epistmica do singular e da existncia individual com a

    liberdade individual face ao colectivo social bem como a indeterminao da aco humana na

    Histria.

    O anti-essencialismo de Rorty, nesta perspectiva, adopta uma estratgia prxima da estratgia

    marxista e hegeliana, que at agora se viu, exactamente quando este autor prope uma mudana de vocabulrio. exactamente isto que, de um modo certamente diferente (que se deve ao

    nominalismo e viragem lingustica a que adere Rorty) Sartre se prope aqui quando no primeiro

    pargrafo da Questo deMtodo afirma que [a]os nossos olhos, a filosofia no 38. Alis essa

    aproximao pode-se encontrar na aproximao ao existencialismo que Rorty fez no ltimo captulo

    de A Filosofia e o Espelho da Naturezae numa breve nota onde o mesmo autor refere o exemplo de

    Marcuse e o Homem Unidimensionalcomo um exemplo que Rorty considera positivo de crtica

    objectividade nas cincias39.

    2. A reivindicao do singular, da sua existncia prvia e irredutibilidade ao conhecimento,

    feita em Questo de Mtodo por Sartre atravs da reivindicao de uma epistemologia realista que

    concilie marxismo e existencialismo, isto , mais concretamente que concilie o sentido epistmico do

    conceito hegeliano-marxista de totalidade com a ateno existncia do individual (importncia

    ontolgica prvia ao seu conhecimento), contributo do existencialismo ps-hegeliano de Kierkegaard

    e igualmente reconhecvel na crtica ao idealismo hegeliano por Marx. A principal crtica de Marx a

    Hegel logo nos seus primeiros textos, incide exactamente no que ele chamar de mistificao da

    realidade, pela qual o mundo externo se torna numa instncia do conceito, isto , a natureza e o

    homem uma alienao da Ideia. Em Lukacs, o assumir da crtica hegeliana oposio sujeito e

    objecto na epistemologia kantiana e como propiciadora da coisa-em-si traduziam-se numa crtica ao

    materialismo porque incidindo no mesmo dualismo sujeito-objecto: Rickert chama uma vez ao

    38 Jean-Paul Sartre,Question de mthode, op.cit., p. 15.

    39 Cf. R. Rorty,A Filosofia e o Espelho da Natureza, Ed. D. Quixote, 2004, p. 293, nota 1.

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    materialismo um platonismo de signos invertidos. Ele tinha razo; porque, enquanto o pensamento e

    o ser conservarem a sua antiga oposio rgida, enquanto eles permanecerem imutveis na sua

    prpria estrutura e na estrutura nas suas relaes um com o outro, a concepo segundo a qual o

    pensamento um produto do crebro e est de acordo com os objectos da experincia tanto

    mitolgica quanto a concepo da reminiscncia e do mundo das ideias40.

    Esta crtica ao materialismo por Lukacs compatvel com a crtica de Marx ao materialismo

    observvel na IdeologiaAlemou nas TesessobreFeuerbachonde Marx reconhece igualmente um aspecto

    positivo ao idealismo desprezado pelos materialismos anteriores. Habermas considera em

    Conhecimento e Interesse que a importncia que nestas mesmas Teses Marx atribui ao idealismo se

    encontra exactamente pela importncia epistemolgica que este atribui (principalmente na sua forma

    ps-kantiana) ao sujeito no processo do conhecimento, leia-se assim na 1 tese: A principal

    insuficincia de todo o materialismo at aos nossos dias o de Feuerbach includo que as coisas,a realidade, o mundo sensvel so tomados apenas sob a forma do objecto ou da contemplao, mas

    no como actividade sensvel humana, prxis, no subjectivamente. Por isso aconteceu que o lado activo

    foi desenvolvido, em oposio ao materialismo, pelo idealismo mas apenas abstractamente, pois

    que o idealismo naturalmente no conhece a actividade sensvel, real, como tal.41.

    A crtica de Sartre anulao dos factos no interior do universal e da totalidade, f-lo afirmar

    que embora embora Marx subordine os factos totalidade atravs destes que ele quer descobri-

    la42. De modo a garantir a capacidade eurstica do marxismo como epistemologia, em relao sua

    investigao concreta, os seus princpios e o seu saber anterior aparecem como reguladores e cada

    facto, uma vez estabelecido, interrogado e decifrado como parte de um todo. 43 , no estudo das

    suas lacunas e as sobre-significaes, que se determina, a ttulo de hiptese, a totalidade no seio do

    qual encontra a sua verdade44. A convergncia entre as epistemologias propostas por Sartre e

    Lukacs d-se na recusa da teoria do reflexo de Engels e Lenine (e, desde os anos 30, j adoptada por

    Lukacs).

    40 G. Lukacs, Histoire et conscience de classe, op. cit., pp.247-248.

    41 K. Marx, Teses sobre Feuerbach in Marx e Engels, ObrasEscolhidasemTrsTomos, tomo I, Edies Avante

    Lisboa, Edies Progresso Moscovo, 1982, p 1.

    42 J. P. Sartre,Question de mthode, op.cit., p.27.

    43 J.P. Sartre, Question de mthode, op.cit , p. 27.

    44 J.P. Sartre, Question de mthode, op.cit, p. 27.

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    A supresso do facto singular no universal, efectuado pelo marxismo ortodoxo segundo

    Sartre, traduz uma concepo da existncia individual como uma aparncia, no como fenmeno ou

    modo como a realidade surge conscincia no seu processo de conhecimento; antes, o marxismo

    ortodoxo concebe os factos singulares como essencialmente ilusrios e cpias falsas de uma qualquer

    essncia ou ideia: O marxismo assim conduzido a ter por uma aparncia o contedo real de uma

    conduta ou de um pensamento e, quando ele dissolve o particular no universal, ele tem a satisfao

    em acreditar que reduziu a aparncia verdade45.

    A perspectiva simultaneamente realista e, em continuidade com Lukacs e, em continuidade

    com Lukacs, hegelianizante na importncia conferida conscincia e totalidade, conduz Sartre a

    substituir o conceito de totalidade pela noo de totalizao aberta, nunca terminada a totalidade

    no existe, na melhor das hipteses, seno como totalidade destotalizada 46. Sartre exemplifica este

    seu conceito de totalizao o que a totalizao deve ento descobrir a unidade pluridimensionaldo acto47 atravs da considerao da aco individual de um pirata do ar:

    ... este homem no queria fazer uma manifestao poltica, ele preocupava-se com o seu

    destino individual. Mas ns sabemos que o que ele fazia (a reivindicao colectiva, o escndalo

    emancipatrio) no podia estar implicitamente contido no que ele acreditava fazer (e que de qualquer

    forma ele tambm fazia, porque tinha roubado o avio, pilotou-o e matou-se em Frana). Impossvel

    deste modo separar estas duas significaes nem reduzir uma outra: elas so duas faces inseparveis

    do mesmo objecto48.

    O mtodo ou teoria do conhecimento que Sartre prope aqui e que encontrara originalmente

    em Henri Lefebvre um mtodo regressivo-progressivo e analtico-sinttico: ao mesmo tempo

    um vai-vem enriquecedor entre o objecto (que contm toda a poca como significaes

    hierarquizadas) e a poca (que contm o objecto na sua totalizao); com efeito, logo que o objecto

    na sua profundidade e na sua singularidade, em vez de ficar exterior totalizao (como ele estava at

    a, o que os marxistas tomam como a sua integrao na histria) ele entra imediatamente em

    contradio com ela: numa palavra a simples justaposio inerte da poca e do objecto d lugar

    bruscamente a um conflito vivo49.

    45 J.P. Sartre, Question de mthode, op.cit, p. 40.

    46 J.P. Sartre, Question de mthode, op.cit., p. 56.

    47 J.P. Sartre Question de mthode, op.cit., p. 74.

    48 J.P. Sartre, Question de mthode, op.cit., p. 73.

    49 J.P. Sartre,Question de mthode, op.cit., p. 94.

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    Rorty

    O neo-pragmatismo de Rorty que em A Filosofia e o Espelho da Naturezacompreende a

    filosofia analtica como uma continuao do projecto kantiano, entende Hegel como rompendo com

    determinadas heranas da epistemologia construda por Descartes-Locke-Kant. Face s duas ideias

    hegelianas em apreo nesta primeira parte, observa-se em Rorty:

    1. Rorty diz sucessivas vezes, a propsito de epistemologia, querer mudar de assunto,

    mudar de vocabulrio e de conversa, e nesta tentativa que em Consequncias do Pragmatismo, Hegel

    quase ausente de A Filosofia e o Espelho da Natureza - adquire um papel relevante. Essencialmente,

    Rorty refere-se ao Hegel da Fenomenologiae j no ao da Cincia da Lgica, mas por razes diferentes

    dos marxistas que desejavam separar o mtodo do sistema

    50

    .2. Na posio anti-fundacionalista e descrente da viabilidade da epistemologia, Rorty

    aproxima a crtica de Wilfrid Sellars ao mito do Dado crtica hegeliana da oposio dado/

    interpretado, como uma defesa da segunda tese.

    1. nos ensaios que compem Consequncias do Pragmatismo e por contraposio com Kant

    que Rorty apresenta o seu neopragmatismo como afim do hegelianismo naturalizado de Dewey. E

    se Rorty considera que a temporalizao da racionalidade que sugeriu foi o mais importante passo

    isolado para chegar desconfiana da Filosofia que o pragmatista tem 51 h ainda outro aspecto que

    Rorty recupera de Hegel e que se pode relacionar com o outro sentido de totalidade que mencionei

    ao incio, a saber: a concepo do problema do conhecimento e da cincia como parte de uma

    totalidade da experincia humana, que se pode encontrar na estrutura global da Fenomenologia do

    Esprito. Significativamente este aspecto, j acima referido, que aproxima Rorty do existencialismo

    (como se pode ver no ltimo captulo de A Filosofia e o Espelho da Natureza), e dos crticos literrios

    que emergiram nos fins dos anos 60 nos EUA e na Europa ps-estruturalista (no caso francs, de

    Foucault ou Derrida).

    O modo como Rorty constri nestes ensaios de Consequncias do Pragmatismo a histria da

    filosofia contempornea exemplifica-se nas duas maneiras de olhar para a filosofia que Rorty extrai

    do confronto Kant / Hegel: com Kant desde o comeo, a filosofia preocupou-se com a relao

    50 Ou mais correctamente, separar o mtodo e depois invert-lo por este estar colado ao sistema, imagem da

    folha de papel de Saussure com de um lado o significado e do outro o significante, que rasgando um rasgava o outro.

    51 R. Rorty, Consequncias do Pragmatismo (ensaios: 1972-1980), Instituto Piaget Lisboa 1999, p.43.

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    entre o pensamento e o seu objecto, a representao e o representado52; com Hegel e a sua

    Fenomenologiaa filosofia comeou como uma confusa combinao do amor da sabedoria e do amor

    de argumentao.53. Na continuao de Hegel, mas ao mesmo tempo rompendo com o idealismo e

    com o que dele restara da filosofia de Kant, Dewey justamente o filsofo que poderemos reler se

    nos voltarmos de Kant para Hegel, de uma metafsica da experincia para um estudo do

    desenvolvimento cultural.54.

    De facto, Consequncias do Pragmatismo exemplar como forma de aceder ao modo como Rorty

    concebe, de um modo pessoal e que visa a construo da sua prpria perspectiva filosfica, a histria

    da filosofia moderna, de Kant a Dewey, passando por Hegel. Aqui, comparando Dewey e Marx face

    a Hegel, Rorty diz que Dewey, tal como Marx, quer Hegel sem o Esprito Absoluto. Quer o homem

    e a histria assentes nos seus prprios ps, e que a histria do homem seja apenas isso, nem a auto-

    realizao do Esprito nem os fatais movimentos elefantinos da Matria ou das classes sociais.

    55

    . Areconduo do sujeito do conhecimento a totalidade da sua vida social e cultural no que antes

    referimos atravs de uma meno procura ps-Kantiana (em Fichte, e em Hegel) de fundir a razo

    terica com a razo prtica (separadas em Kant) tem para Rorty o efeito positivo de eliminar

    problemas epistemolgicos eliminando a premissa que a justificao tem de repousar em qualquer

    coisa diferente das prticas sociais e das necessidades humanas.56

    A insero dos problemas do conhecimento (da relao sujeito-objecto, dos nveis da

    conscincia) na Histria, assim como a dissoluo do problema da coisa-em-si atravs da dissoluo

    da oposio entre o dado e o interpretado, so, para Rorty, os principais legados do pensamento de

    Hegel.

    A insero da justificao e dos problemas epistemolgicos em geral no campo das prticas

    sociais por parte de Hegel d-se, no totalmente, mas apenas de forma parcial:

    Hegel manteve o nome de cincia sem a marca distintiva da cincia boa vontade em

    relao adopo de um vocabulrio neutro para enunciar os problemas, e consequentemente tornar

    possvel a argumentao. Debaixo da capa de inveno de Kant, uma nova supercincia chamada

    filosofia, Hegel inventou um gnero literrio a que faltava qualquer prestgio de argumentao, mas

    52 R. Rorty, Consequncias do Pragmatismo, p.152.

    53 R. Rorty, Consequncias do Pragmatismo, op.cit., p.152.

    54 R. Rorty, Consequncias do Pragmatismo, p.136.

    55 R. Rorty, Consequncias do Pragmatismo, p.104.

    56 R. Rorty, Consequncias do Pragmatismo, pp. 141-142.

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    que obsessivamente se intitulava Systemder Wissenschaftou Wissenschaft der Logik ou Envyklopdie der

    philosophischen Wissenschaften.57.

    2.A noo de totalidade, tal como concebida por Lukacs - baseando-se em Hegel e Marx, e

    discutida criticamente por Sartre em Question de mthode58 - diferente, desde as suas origens da

    concepo de holismo epistmico perfilhada por Rorty. Contudo, devido s convices anti-

    fundacionalistas e anti-empiristas de Rorty, totalidade e holismo evidenciam face a Hegel uma

    semelhana observvel na crtica no incio da Fenomenologia do Esprito, que o marxismo lukacsiano de

    tendncia hegeliana (em contraposio com tendncias mais afins do positivismo) preserva na crtica

    aos factos brutos, tal como o neopragmatismo de Rorty na adopo da crtica de Sellars ao mito do

    dado59.

    Lukacs considera a totalidade no conhecimento como um conceito que permite construir

    uma epistemologia anti-empirista, contudo esta acepo de totalidade tem igualmente um significadoontolgico, referindo uma totalidade social e uma Histria com existncia objectiva e independente

    da conscincia e percepo humanas este carcter objectivo da Histria permite recuperar a astcia

    da razo (de origem hegeliana) onde a Histria tem um movimento e autonomia prprias que

    determina em ltima instncia a falsidade ou correco da conscincia de classe.

    A aproximao holstica ao conhecimento por Rorty enquadra-se numa desconfiana face

    epistemologia como projecto da filosofia moderna fundado por Descartes, Locke e Kant e do qual,

    57 R. Rorty, Consequncias do Pragmatismo, op.cit., p.216.58 Sartre no se refere especificamente no seu texto a nenhum autor em particular mas ao modo como o

    marxismo ortodoxo contemporneo (Question mthodefoi publicada no incio da dcada de 60) utiliza do ponto de vista

    epistmico esse conceito, contudo por vrias vezes menciona o nome de Lukacs, no podendo ser esquecido que anos

    antes Lukacs tinha escrito um livro Existencialismo ou Marxismo?onde visava de modo crtico Sartre.

    59 O modo como, para Rorty, a adopo do holismo em epistemologia tem uma funo semelhante da crtica ao

    conhecimento imediato nos idealistas ps-Kantianos: O holismo e coerentismo de Davidson mostram como fica a

    linguagem depois de nos livrarmos do pressuposto central da Filosofia: que as frases verdadeiras se dividem numa parte

    superior e noutra inferior as frases que correspondem a alguma coisa e aquelas que so verdadeiras apenas por

    cortesia ou conveno. Esta maneira de olhar para a linguagem permite-nos evitar a hipostasiao da Linguagem domodo como a tradio epistemolgica cartesiana, e em particular a tradio idealista que se edificou sobre Kant,

    hipostasiaram o Pensamento. Porque nos permite ver a Linguagem no como um tertium quidentre Sujeito e Objecto,

    nem como um mediumno qual tentamos formar representaes da realidade, mas como parte do comportamento dos

    seres humanos. Richard Rorty, Consequncias do Pragmatismo, op.cit., p. 19. Recentemente, alis, Robert Brandom

    aproxima o idealismo de Hegel ao holismo que partilha com Sellars o que suscitou uma vez mais o debate sobre

    diferenas entre a filosofia analtica e a filosofia continental.

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    aos olhos de Rorty, a filosofia analtica e a sua viragem lingustica no deixa de ser uma variante. Se

    o holismo tem consequncias epistmicas afins ao conceito de totalidade, a relao entre os dois

    conceitos conduz-nos questo da diferena entre o pragmatismo de Rorty e o modo como este

    autor v o idealismo hegeliano, dado o holismo inscrever-se na histria da filosofia analtica em

    autores como Quine, Sellars ou Davidson e ser lido em primeira instncia como a questo dos

    significados dos termos de uma proposio.

    A epistemologia moderna construda sob a base de uma ruptura entre mundo interno e

    mundo externo, sendo que o cepticismo cartesiano, no entender de Rorty, - enquanto cepticismo

    face ao mundo externo - um solipsismo metodolgico que isola a mente e se centra no problema do

    vu das ideias: Como sabemos ns se aquilo que o Olho da Mente v um espelho (ainda que

    distorcido um vidro encantado) ou um vu? 60. O conhecimento, desde Descartes, centrou-se no

    problema de sabermos se as nossas representaes internas eram exactas, o que requeria um campode estudos chamado mente humana. Locke, por sua vez, confundiu uma descrio mecanista das

    operaes da nossa mente e o fundamento das nossas pretenses ao conhecimento 61. A confuso

    que Rorty atribui a Locke entre descrever as operaes da mente e fundamentar as nossas pretenses

    ao conhecimento atribuda ao facto de Locke ter como concepo do conhecimento a relao entre

    pessoas e objectos e no a relao entre pessoas e proposies, isto , a crtica de Rorty a Locke a

    crtica ao empirismo e crena na possibilidade de conhecimento imediato em que, no caso de

    Locke, a faculdade de entendimento se assemelha a um pedao de cera sobre o qual os objectos

    produzem impresses, e se pensarmos que ter uma impresso , em si mesmo, mais um

    conhecimento do que um antecedente causal do conhecimento.62.

    Em sntese, aquilo que Rorty rejeita em Locke a crena na possibilidade de conhecimento

    imediato, sendo tambm este motivo que o leva a adoptar o holismo por oposio ao atomismo na

    anlise das proposies. O holismo assim, na anlise das proposies, significa em ltima instncia,

    uma crtica ideia de que temos um contacto directo, um conhecimento imediato dos constituintes

    da proposio. A maior confuso de Locke, diz Rorty, a que se verifica entre o conhecimento

    como algo que consistindo na merapossede uma ideia pode ter lugar sem juzo, e o conhecimento

    enquanto resultado da formao de juzos justificados63 e que, descrita como a confuso entre a

    60 Richard Rorty,A Filosofia e o Espelho da Natureza, Ed. D. Quixote, 2004, pp.51-52.

    61 R. Rorty,A Filosofia e o Espelho da Natureza, op.cit., p.131.

    62 R. Rorty,A Filosofia e o Espelho da Natureza, op.cit., p.132.

    63 R. Rorty,A Filosofia e o Espelho da Natureza, op.cit., pp.135-6.

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    descrio causal do modo como se adquire uma convico e a indicao da justificao para uma

    convico, parece fazer uso do mesmo tipo de argumento de Hegel quando distinguia o facto da

    experincia sensvel ter como sua causa imediata o objecto e a verdade da certeza sensvel se

    encontrar noutro stio, isto , nos universais.

    Kant, na interpretao de Rorty, mantm-se dentro do quadro de referncias cartesianas

    procurando explicar como se pode passar do espao interno para o espao externo 64 ao mesmo

    tempo que acolhe a convico de que a multiplicidade dada e a unidade produzida65,

    pressuposto este que para Rorty provm de Locke e Hume, e que o autor da CrticadaRazoPura

    no questiona: mas caso no tenhamos lido Locke e Hume, como sabemos ns que a mente

    presenteada com uma diversidade?66. Os termos intuio e conceito em Kant, assim como a

    concepo da faculdade do entendimento como sintetizador, atravs dos conceitos, da multiplicidade

    original recebida, so inteiramente devedores do empirismo de Locke e Hume e da ruptura cartesianaentre mundo interno e mundo externo que criara o problema do vu das ideias dentro da concepo

    do conhecimento como representao do mundo na mente humana.

    O Holismo contrape, nas palavras de Rorty, a acepo do conhecimento como uma relao

    entre as proposies em questo e outras proposies a partir das quais as anteriores possam ser

    inferidas acepo do conhecimento como relaes provilegiadas para com os objectos a que

    aquelas proposies se referem 67.A perspectiva de Rorty rejeita que se possa pensar no

    conhecimento na segunda maneira, isto , passando das razes para as causas, para alm do

    argumento para o constrangimento do objecto conhecido 68 onde o constrangimento do objecto

    seria o fundamento do conhecimento.

    II

    Diferentemente do mtodo empregue na primeira parte deste ensaio, ser agora usado o

    ensaio de Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clssica Alem (que em parte consiste

    numa histria breve da desagregao da escola hegeliana e da filosofia ps-hegeliana atravs de

    Feuerbach at Marx) como meio para problematizar a relao entre Histria e Epistemologia

    64 R. Rorty,A Filosofia e o Espelho da Natureza, op.cit., p.137.

    65 R. Rorty,A Filosofia e o Espelho da Natureza, op.cit., p.141.

    66 R. Rorty,A Filosofia e o Espelho da Natureza, op.cit., p.142.

    67 R. Rorty,A Filosofia e o Espelho da Natureza, op.cit., p.142.

    68 R. Rorty,A Filosofia e o Espelho da Natureza, op.cit., p.147.

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    (contigencialidade histrica vs. relativismo epistmico), nos trs autores em estudo. A interpretao

    marxista clssica de Hegel parte do pressuposto de uma ciso entre mtodo e sistema na filosofia de

    Hegel, o que parecia ter como efeito deixar Rorty de lado, nesta anlise. Contudo - certo que de um

    modo diverso, visto Rorty no ter inteno alguma de recuperar a dialctica69 Rorty traa tambm

    uma ciso entre dois Hegel, o Hegel sistemtico e o Hegel historicista:

    [1 Hegel]: Hegel como estando a fazer, e falhando, o tipo de coisa que Locke, Leibniz,

    Hume e Kant queriam fazer nomeadamente, compreender a natureza, possibilidade e extenso das

    realizaes das cincias naturais (...)

    [2 Hegel]: O que interessava eram precisamente aquelas partes que voltavam costas ao

    conhecimento da natureza, ao fenmeno da Nova Cincia, autocompreenso e autodeterminao

    historicistas dos seres humanos: a Fenomenologia, a Filosofia do Direito e a Filosofia da Histria. Com estas

    obras Hegel comeou uma sequncia de narrativas sobrepostas acerca do curso da histria humana,uma sequncia que inclui Marx, Nietzsche, o ltimo Heidegger e Foucault. Essas narrativas no so

    sistemas filosficos. No intentam providenciar solues para problemas acerca do sujeito e do

    objecto, nem a nenhum dos problemas que Reichenbach pensava que a cincia do sculo XIX tinha

    resolvido.70

    Em Hegel, a Histria contribuiu para dissolver os problemas tradicionais do conhecimento

    (como algo dado e imutvel) e assim tambm a barreira esttica e formalista colocada na

    epistemologia Kantiana entre o sujeito e o objecto. Mas enquanto para Rorty este foi um passo

    necessrio (mas ainda no suficiente) para o abandono puro e simples da epistemologia 71, o

    marxismo procura manter uma epistemologia em que o seu vector fundamental a Histria.

    A dialctica em Hegel conhecida na sua essncia ser simultaneamente um mtodo e uma lei

    ou estrutura da realidade. Enquanto uma fenomenologia, como uma dialctica da conscincia,

    descreve os nveis sucessivos que atravessa a conscincia na relao sujeito-objecto - desde a sua

    primeira e mais bsica recepo como objecto sensvel at auto-conscincia e necessidade do seu

    reconhecimento por outra auto-conscincia. Esclarea-se que a dialctica enquanto uma estrutura da

    realidade, independentemente da aco humana (no processo de conhecimento, na Histria ou na

    69 Ou, mais correctamente, de transformar a dialctica idealista e mistificada numa dialctica materialista.

    70 Richard Rorty, Consequncias do Pragmatismo, op. cit., p. 303.

    71 Jurgen Habermas, em Conhecimento e Interesse, conclui, igualmente, que com a crtica que Hegel faz

    epistemologia Kantiana, Hegel termina, de facto, por dissolver a epistemologia, o que teria consequncias igualmente em

    Marx.

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    sociedade), isto , enquanto dialctica da natureza, tal como descrita na histria do marxismo

    inicialmente por Engels, no aceite por Lukacs (na Histria e Conscincia deClasse) nem por Sartre. A

    dialctica em Lukacs implica sempre um processo (constitudo por momentos que se sucedem num

    devir, em que a palavra momento tem um sentido duplo, histrico e lgico-racional) de tomada de

    conscincia (que em Lukacs, como forma de articular a fenomenologia da conscincia - de Hegel -

    com a teoria social de Marx - colectivo, por uma classe social), a dialctica implica a mediao por

    uma conscincia, razo pela qual na natureza ela est ausente. Assim a Histria, tal como est

    implcito na tomada de ateno noo de momento, consiste num devir (num processo de

    transformao) simultaneamente temporal e lgico e racional, ao nvel do indivduo como ao nvel da

    classe social e da sociedade.

    O ensaio de Engels divide-se em quatro seces, onde, num primeiro momento, a partir da

    interpretao de uma proposio de Hegel, comea por descrever a tenso entre o mtodo e osistema do pensamento de Hegel como explicao para a desagregao da escola hegeliana e a sua

    diviso entre hegelianos de esquerda e hegelianos de direita. A segunda seco do ensaio tem j um

    propsito sistemtico, de expr a posio de Marx e Engels em epistemologia, onde Engels

    comear por afirmar que a grande questo fundamental de toda a filosofia, especialmente da

    moderna, a relao de pensar e ser 72.

    Como estratgia a prosseguir na segunda parte deste ensaio dedicado recepo de Hegel por

    Lukacs, Sartre e Rorty, nos prximos pargrafos centrarei ateno na primeira seco do ensaio de

    Engels; a segunda seco particularmente importante para compreender as crticas de Lukacs a

    Engels, e permitir articular a passagem entre esta segunda seco e a terceira e ltima seco

    dedicada ao cepticismo.

    Engels comea citar a proposio de Hegel do Prefcio de Princpios da Filosofia do Direito,

    Tudo o que real, racional, e tudo o que racional, real distingue o estatuto de existncia e o

    de realidade e explica que a diviso entre as interpretaes conservadores ou progressistas do

    pensamento de Hegel consistiu entre quem enfatizava a primeira parte da proposio e quem

    sublinhava a segunda parte da frase, o que o mesmo que dizer que enquanto aqueles que

    concordavam com a interpretao tudo o que racional, real davam a princi