rui borges o alfaiate do som - hificlube.net · moda. rui borges recupera gira-dis-cos com a...

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SONS > JOSÉ VICTOR HENRIQUES H á lojas onde nos sentimos bem, onde nos fazem sentir bem. Na velha Rua da Ma- dalena, o dono da taberna, da far- mácia, da ervanária não se limitam a «aviar» o cliente, conversam com ele. É assim também na Delmax. Hoje abrem-se lojas amplas, modernas e polivalentes, tão cheias de nada quanto vazias de tudo. Porque uma loja não são as coisas que lá se vendem, são as pessoas que as vendem. E quando quem vende não compreende quem compra, comprar e vender passam à categoria de mera tran- sação comercial. A situação é ainda pior quando quem vende não compreende se- quer o que está a vender. E não me refiro apenas aos aspectos técni- cos, refiro-me à filosofia do projec- to em si. Hoje discutem-se os pre- ços, não os conceitos. Neste con- texto, um sistema de som ganha o significado pejorativo de «electro- doméstico sonoro» – um objecto que se compra para mais tarde es- quecer na voragem consumista do tempo. Mas ainda há pessoas para quem o áudio é uma paixão, um projecto de vida – para toda a vida; pessoas que não toleram que a expressão sincera dos seus gostos íntimos seja recebida com a indiferença, por vezes a roçar o sarcasmo, de quem não tem tem- po a perder porque precisa deses- peradamente de facturar. Rui Borges é um audiófilo pra- ticante: « it takes one to know one», dizem os americanos. Quan- do alguém angustiado sobe as ve- lhas escadas de madeira com um gira-discos ferido na asa, é recebi- do com a compreensão de quem conhece a dor de perder um objec- to amado. E tudo fará para o sal- var. Outro diria logo: «Isso já não se usa...», como se as emoções fos- sem descartáveis ou passassem de moda. Rui Borges recupera gira-dis- cos com a religiosidade de quem restaura obras de arte sacra. E apresenta como exemplo um ilus- tre Thorens D124: «Faltava-lhe esta peça aqui, que regula a velocidade de rotação, es- tava condenado, e eu fiz uma no torno, depois afinei-o, pintei-o, vai tocar melhor que novo...», garante com aquele sorriso misto de hu- mildade e competência que distin- gue os eleitos. Rui Borges conhece todos os segredos dos gira-discos, porque ele próprio também concebe, de- senha e constrói de raiz, peça a peça, gira-discos analógicos de ele- vada performance. Gira-dicos fei- tos por medida para clientes espe- ciais e personalizados com o nome do proprietário na lapela: um caso raro em Portugal, onde quase tudo é importado. Eis o lu- xo raro do som feito por medida à sua medida: «São obras únicas feitas para conhecedores...», explica a Carla, olhando embevecida para o mari- do, que passa entretanto a exibir com evidente entusiasmo alguns dos instrumentos utilizados na medição e corte das chumaceiras, dos eixos, dos pratos e subpratos com a precisão das centésimas: «O aço inox do eixo e a liga de bronzalumínio das chumaceiras têm exactamente o mesmo índice de dilatação. Há gira-discos famo- sos que utilizam revestimentos de Teflon e outros materiais muito sensíveis à temperatura. E depois as pessoas queixam-se que a quali- dade do som varia com a estação do ano – e não me refiro às Esta- ções do Vivaldi...», ironiza Rui Borges, feliz por poder partilhar a sua paixão com alguém que a compreende bem. A admiração é mútua e de lon- ga data: Rui exibe uma fotografia desbotada pelo tempo da minha apresentação das colunas « full- ribbon» Apogee Diva, no decorrer do Festival de Música da Póvoa de Varzim. De facto, lá estou eu, com RUI BORGES O alfaiate do som A Delmax, na Rua da Madalena, é um lugar de peregrinação que reabriu ao cul- to e onde na era do laser ainda se fazem gira-discos por medida... mais cabelo e menos peso, a escla- recer as massas sobre as virtudes das colunas-de-fita. Se bem me lembro, já passava da meia-noite e ninguém arredava pé. E não havia vídeo nem filmes de acção: só mú- sica. Ou talvez por isso... «Eu estive lá...», confessou o Rui orgulhoso, como se o aconte- cimento tivesse tido na sua vida a importância de Woodstock... «The taste of the pudding is in the eating», dizem também os an- glosaxões, mestres na arte do áu- dio. Rui Borges fez questão em que eu ouvisse tocar o «seu» gira- discos. Montou umas maravilho- sas colunas Sonus Faber Guarneri no elegante pedestal de longas cordas de violoncelo, ligou-as sem intenção de me impressionar a um modesto e surpreendente am- plificador Myryad-Z, por meio de cabos Nordost Valkyria, colocou no prato um LP de jazz: Soular Energy, do Ray Brown Trio, e a sala encheu-se de música. Eu dis- se: MÚSICA. Ao olhar para uma garrafa de cristal com Vinho do Porto, que o Rui serve aos convidados que o de- sejem para os fazer sentir mais à vontade, ocorreu-me que também o LP quanto mais velho melhor... Mas na Delmax o jovem inicia- do (e pouco abonado) pode per- correr todas as etapas do conheci- mento audiófilo até chegar ao Nir- vana: também há amplificadores e colunas acessíveis de várias mar- cas conhecidas, cabos, acessórios e até kits para AV, «plasmas» e projectores. Porque hoje em dia ninguém dispensa ver um filme em DVD com som surround. Mais raro já é ser atendido por um espe- cialista que se esforça por encon- trar a solução adequada a cada ca- so, mesmo que essa solução seja digital e ponha em causa os seus dogmas analógicos. ‘Rui Borges Turntable’, um gira-discos feito por medida Rui Borges, o próprio: a paixão do áudio Rui Borges conhece todos os segredos dos gira-discos, porque ele próprio também concebe, desenha e constrói de raiz, peça a peça, gira-discos analógicos de elevada performance. SEXTA-FEIRA | dn | ? DNMAIS | 16 JANEIRO 2004 | dn | ?

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SONS

> JOSÉ VICTOR HENRIQUES

Há lojas onde nos sentimosbem, onde nos fazem sentirbem. Na velha Rua da Ma-

dalena, o dono da taberna, da far-mácia, da ervanária não se limitama «aviar» o cliente, conversam comele. É assim também na Delmax.

Hoje abrem-se lojas amplas,modernas e polivalentes, tãocheias de nada quanto vazias detudo. Porque uma loja não são ascoisas que lá se vendem, são aspessoas que as vendem. E quandoquem vende não compreendequem compra, comprar e venderpassam à categoria de mera tran-sação comercial.

A situação é ainda pior quandoquem vende não compreende se-quer o que está a vender. E não merefiro apenas aos aspectos técni-cos, refiro-me à filosofia do projec-to em si. Hoje discutem-se os pre-ços, não os conceitos. Neste con-texto, um sistema de som ganha osignificado pejorativo de «electro-doméstico sonoro» – um objectoque se compra para mais tarde es-quecer na voragem consumistado tempo.

Mas ainda há pessoas paraquem o áudio é uma paixão, umprojecto de vida – para toda avida; pessoas que não toleramque a expressão sincera dos seusgostos íntimos seja recebida coma indiferença, por vezes a roçar osarcasmo, de quem não tem tem-po a perder porque precisa deses-

peradamente de facturar. Rui Borges é um audiófilo pra-

ticante: «it takes one to knowone», dizem os americanos. Quan-do alguém angustiado sobe as ve-lhas escadas de madeira com umgira-discos ferido na asa, é recebi-do com a compreensão de quemconhece a dor de perder um objec-to amado. E tudo fará para o sal-var. Outro diria logo: «Isso já nãose usa...», como se as emoções fos-sem descartáveis ou passassem demoda.

Rui Borges recupera gira-dis-cos com a religiosidade de quemrestaura obras de arte sacra. E

apresenta como exemplo um ilus-tre Thorens D124:

«Faltava-lhe esta peça aqui, queregula a velocidade de rotação, es-tava condenado, e eu fiz uma notorno, depois afinei-o, pintei-o, vaitocar melhor que novo...», garantecom aquele sorriso misto de hu-mildade e competência que distin-gue os eleitos.

Rui Borges conhece todos ossegredos dos gira-discos, porqueele próprio também concebe, de-senha e constrói de raiz, peça apeça, gira-discos analógicos de ele-vada performance. Gira-dicos fei-tos por medida para clientes espe-ciais e personalizados com o

nome do proprietário na lapela:um caso raro em Portugal, ondequase tudo é importado. Eis o lu-xo raro do som feito por medida àsua medida:

«São obras únicas feitas paraconhecedores...», explica a Carla,olhando embevecida para o mari-do, que passa entretanto a exibircom evidente entusiasmo algunsdos instrumentos utilizados namedição e corte das chumaceiras,dos eixos, dos pratos e subpratoscom a precisão das centésimas:

«O aço inox do eixo e a liga debronzalumínio das chumaceirastêm exactamente o mesmo índice

de dilatação. Há gira-discos famo-sos que utilizam revestimentos deTeflon e outros materiais muitosensíveis à temperatura. E depoisas pessoas queixam-se que a quali-dade do som varia com a estaçãodo ano – e não me refiro às Esta-ções do Vivaldi...», ironiza RuiBorges, feliz por poder partilhar asua paixão com alguém que acompreende bem.

A admiração é mútua e de lon-ga data: Rui exibe uma fotografiadesbotada pelo tempo da minhaapresentação das colunas «full-ribbon» Apogee Diva, no decorrerdo Festival de Música da Póvoa deVarzim. De facto, lá estou eu, com

RUI BORGES

O alfaiate do somA Delmax, na Rua da Madalena, é um lugar de peregrinação que reabriu ao cul-to e onde na era do laser ainda se fazem gira-discos por medida...

mais cabelo e menos peso, a escla-recer as massas sobre as virtudesdas colunas-de-fita. Se bem melembro, já passava da meia-noite eninguém arredava pé. E não haviavídeo nem filmes de acção: só mú-sica. Ou talvez por isso...

«Eu estive lá...», confessou oRui orgulhoso, como se o aconte-cimento tivesse tido na sua vida aimportância de Woodstock...

«The taste of the pudding is inthe eating», dizem também os an-glosaxões, mestres na arte do áu-dio. Rui Borges fez questão emque eu ouvisse tocar o «seu» gira-discos. Montou umas maravilho-sas colunas Sonus Faber Guarnerino elegante pedestal de longascordas de violoncelo, ligou-as semintenção de me impressionar aum modesto e surpreendente am-plificador Myryad-Z, por meio decabos Nordost Valkyria, colocouno prato um LP de jazz: SoularEnergy, do Ray Brown Trio, e asala encheu-se de música. Eu dis-se: MÚSICA.

Ao olhar para uma garrafa decristal com Vinho do Porto, que oRui serve aos convidados que o de-sejem para os fazer sentir mais àvontade, ocorreu-me que também

o LP quanto mais velho melhor...Mas na Delmax o jovem inicia-

do (e pouco abonado) pode per-correr todas as etapas do conheci-mento audiófilo até chegar ao Nir-vana: também há amplificadorese colunas acessíveis de várias mar-cas conhecidas, cabos, acessóriose até kits para AV, «plasmas» eprojectores. Porque hoje em dianinguém dispensa ver um filmeem DVD com som surround. Maisraro já é ser atendido por um espe-cialista que se esforça por encon-trar a solução adequada a cada ca-so, mesmo que essa solução sejadigital e ponha em causa os seusdogmas analógicos.

‘Rui Borges Turntable’, um gira-discos feito por medida

Rui Borges, o próprio:

a paixão do áudio

Rui Borges conhece todos os segredos dos gira-discos, porque ele próprio também concebe, desenha e constrói de raiz, peça a peça, gira-discos analógicos de elevada performance.

SEXTA-FEIRA | dn | ?DNMAIS | 16 JANEIRO 2004 | dn | ?