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“Lições de bichos e coisas” Rubem Alves

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Page 1: Rubem alves licoes_de_bichos_e_coisas

“Lições de bichos e coisas”

Rubem Alves

Page 2: Rubem alves licoes_de_bichos_e_coisas

Tenho inveja das plantas e dos animais.

Parecem-me tão tranquilos, possuidores de uma sabedoria que nós não temos.

Como se desfrutassem da felicidade do Paraíso.

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Sofrem, pois não existe vida sem sofrimento.

Mas sofrem sempre como se deve, quando o sofrimento vem, na hora certa, e não por antecipação.

Saber sofrer é uma lição difícil de aprender.

Se o terrível nos golpeia e não sofremos, algo

está errado.

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Pois como não chorar, se o destino nos faz sangrar?

Se não choramos é porque o coração está doente, perdeu a capacidade de sentir.

Mas sofrer fora de hora é doença também, permitir-se ser cortado por golpes que ainda não aconteceram e que só

existem como fantasmas da imaginação.

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Os animais sabem sofrer. Nós não.

Somos prisioneiros da ansiedade.

Pois ansiedade é isto:

sofrer fora de hora, por um golpe que,

por enquanto, só existe no futuro que imaginamos.

Talvez os animais sejam sadios de alma e nós, doentes.

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Jesus, sofrendo com a nossa dor

pelos sofrimentos que a

ansiedade coloca no futuro, nos

aconselhou a aprender da

sabedoria das aves dos céus e

dos lírios dos campos,

reconciliados com a vida, vivendo

as dores e felicidades do

presente, e livres dos fantasmas

da imaginação ansiosa.

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Sofremos pelo futuro e, por isso, não podemos colher as modestas mas reais alegrias que o presente nos oferece.

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Acho que todo mundo sabe, intuitivamente, que existe uma loucura na maneira de ser dos homens.

E é por isso que a nostalgia por um sítio ou por uma casa na praia aparece como um dos nossos sonhos mais persistentes.

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Para longe do falatório dos homens, quando todos falam e ninguém escuta.

De volta para a natureza, onde nada se diz e, no silêncio,

se ouve uma sabedoria esquecida.

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Pois só pregam sermões aqueles que se julgam portadores de uma sabedoria que

os outros não têm.

Prega-se para convencer os outros a reconhecerem os seus erros.E para que, pela palavra ouvida, eles se tornem melhores.

Dizem que São Francisco pregava sermões aos animais. Não acredito.

Page 11: Rubem alves licoes_de_bichos_e_coisas

Mas, de que erro convenceremos as plantas e os animais?

Pois são perfeitos em tudo que fazem.

Todos eles se movem harmônicos ao som da melodia que toca dentro dos seus corpos.

Page 12: Rubem alves licoes_de_bichos_e_coisas

Acredito que o santo conversava com os animais, escutava o seu silêncio, e, se ele falava alguma coisa, era como o aluno que repete

em voz alta aquilo que aprendeu dos seus mestres.

Não era o santo que pregava aos animais; eram os animais que lhe ensinavam a sua sabedoria.

Page 13: Rubem alves licoes_de_bichos_e_coisas

Me dirão que plantas e animais não falam.

Engano.

É verdade que estão mergulhados no silêncio.

Mas é neste silêncio que interrompe o vozerio dos homens que uma voz é ouvida, vinda das

profundezas do nosso ser.

Pois é aí que mora a sabedoria que perdemos.

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Você tem dificuldade em ouvir a voz das plantas e dos animais?

Pois que leia os poetas, profetas do seu saber sem palavras.

A ‘Sugestão’ de felicidade de Cecília Meireles.

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ao camelo que mastiga sua longa solidão,

o pássaro que procura o fim do mundo,

o boi que vai com inocência para a morte.

E conclui: “Sede assim qualquer coisa serena, isenta, fiel. Não como os demais homens”.

Ela diz que deveríamos ser como a flor que se cumpre sem pergunta, a cigarra, queimando-se em música,

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Com o que concorda Alberto Caeiro, discípulo dos mesmos mestres:

Sejamos simples e calmos,Como os regatos e as

árvores,E Deus amar-nos-á fazendo

de nósBelos como as árvores e os

regatos,E dar-nos-á verdor na sua

primavera,E um rio aonde ir ter quando

acabemos!...

Rubem Alves

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Formatação Christina Meirelles Neves