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1 A Enigmática Questão da Longitude na Navegação e Cartografia da América Portuguesa Quinhentista. Renato Pereira Brandão Doutor em História - UFF Professor Titular da Universidade Estácio de Sá Pesquisador Colaborador do Laboratório de Estudos Sociantropológicos sobre o Conhecimento e a Natureza PPGA / UFF Introdução: A expansão ultramarina portuguesa traz uma série de questões ainda pouco compreendida, ou mesmo em aberto. Até o presente, não temos dados e explicações suficientes que permitem o bom entendimento do processo que possibilitou este pequeno e frágil reino ibérico formar um vasto império ultramarino, o único no período moderno a se estender das Ilhas Atlânticas ao Extremo Oriente. Para a construção e manutenção deste vasto império como também para a necessária defesa do Reino, frequentemente ameaçado em sua independência pela Espanha, Portugal contou sempre com um reduzido contingente populacional, não superior a 1,5 milhões de pessoas na época dos descobrimentos. Levando- se em conta esta realidade demográfica, a nossa historiografia encontra-se ainda frente ao desafio de melhor compreender o processo de expansão territorial da América Portuguesa, que culminou na constituição do Brasil como o mais extenso espaço territorial contínuo unido por uma única língua. Dentre os diversos aspectos enigmáticos expressos neste conjunto temático, abordamos aqui o referente à questão da longitude do meridiano divisório estabelecido pelo Tratado de Tordesilhas, tendo por referências a navegação dos descobrimentos e a representação do referido meridiano em uma obra cartográfica quinhentista. Caravela e Astrolábio na Expansão Ultramarina Portuguesa. Apesar de ter recebido a alcunha de “O Lavrador”, foi no reinado de D. Dinis, de 1279 a 1325, que foram dados os passos iniciais da transformação da economia de Portugal de eminentemente agrária à marítima mercantil. Não só por ter mandado formar os “pinhais de Leria”, que viria abastecer de madeiras a construção náutica portuguesa dos descobrimentos, como também por ter chamado para se estabelecer no Reino experientes navegadores

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A Enigmática Questão da Longitude na Navegação e Cartografia da América Portuguesa Quinhentista. Renato Pereira Brandão Doutor em História - UFF Professor Titular da Universidade Estácio de Sá Pesquisador Colaborador do Laboratório de Estudos Sociantropológicos sobre o Conhecimento e a Natureza – PPGA / UFF

Introdução:

A expansão ultramarina portuguesa traz uma série de questões ainda pouco

compreendida, ou mesmo em aberto. Até o presente, não temos dados e explicações

suficientes que permitem o bom entendimento do processo que possibilitou este pequeno e

frágil reino ibérico formar um vasto império ultramarino, o único no período moderno a se

estender das Ilhas Atlânticas ao Extremo Oriente. Para a construção e manutenção deste vasto

império como também para a necessária defesa do Reino, frequentemente ameaçado em sua

independência pela Espanha, Portugal contou sempre com um reduzido contingente

populacional, não superior a 1,5 milhões de pessoas na época dos descobrimentos. Levando-

se em conta esta realidade demográfica, a nossa historiografia encontra-se ainda frente ao

desafio de melhor compreender o processo de expansão territorial da América Portuguesa,

que culminou na constituição do Brasil como o mais extenso espaço territorial contínuo unido

por uma única língua.

Dentre os diversos aspectos enigmáticos expressos neste conjunto temático,

abordamos aqui o referente à questão da longitude do meridiano divisório estabelecido pelo

Tratado de Tordesilhas, tendo por referências a navegação dos descobrimentos e a

representação do referido meridiano em uma obra cartográfica quinhentista.

Caravela e Astrolábio na Expansão Ultramarina Portuguesa.

Apesar  de   ter   recebido  a  alcunha  de  “O  Lavrador”,   foi  no   reinado  de  D.  Dinis,  de  

1279 a 1325, que foram dados os passos iniciais da transformação da economia de Portugal de

eminentemente agrária à marítima mercantil. Não só por  ter  mandado  formar  os  “pinhais  de  

Leria”,  que  viria  abastecer  de  madeiras  a  construção  náutica  portuguesa  dos  descobrimentos,  

como também por ter chamado para se estabelecer no Reino experientes navegadores

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genoveses,   encabeçados   por   Manuel   Pessagno,   “a quem concedeu o cargo perpétuo e

hereditário  de  almirante”  (Marques,  1975:176).  D.  Dinis  é  também  conhecido por ter acolhido

os templários de Portugal sob o abrigo da Ordem de Cristo, criada, por sua interveniência

junto ao Papa, em 1317.

No reinado de seu filho e sucessor, Afonso IV, “em   ano   anterior   a   1336,   mas  

próximo dele, começam as expedições portuguesas às Canárias” (Cortesão, 1931:349).

Contudo, a consolidação da expansão ultramarina como política de Estado se deu somente

com a ascensão da dinastia de Avis, quando o trono de Portugal passou a ser ocupado pelo

filho bastardo do rei Pedro I e mestre da Ordem de Avis, D. João, em decorrência da crise

sucessória deflagrada com a morte de seu meio-irmão, o rei D. Fernando.

Coroado como D. João I em 1385, dois anos depois casou com Felipa de Lancaster,

neta do rei Eduardo III da Inglaterra e irmã do futuro rei Henrique IV. Em 1394 a rainha

Felipa deu a luz a seu terceiro filho, a quem deu também o nome de Henrique. Foi este Infante

o grande mentor e iniciador deste processo expansionista marítimo. Em 1415, o Infante D.

Henrique participou da conquista de Ceuta, na norte da África. Para a maior parte dos

historiadores, esta conquista representa o efetivo marco inicial da expansão ultramarina.

Consideramos, contudo, que a conquista de Ceuta insere-se mais, ainda que tardiamente, no

espírito da Reconquista do que da expansão ultramarina. A nosso ver, este marco situa-se

pouco tempo depois, em 1420, quando, em decorrência da morte do mestre da Ordem de

Cristo D. Lopo Dias de Sousa, o Infante D. Henrique é posto à frente desta ordem militar

pelo Papa Martinho V.

Personalizando a associação da Ordem de Cristo com a Casa de Avis, o Infante D.

Henrique põe definitivamente em curso o processo de expansão ultramarina portuguesa,

voltado para o descobrimento das Ilhas Atlânticas e exploração da costa africana. “É  em  1421,  

segundo Azurara, que começam as tentativas anuais de descobrimento ao longo da costa da

África, seguidas em 1424 do primeiro ensaio de conquista   das   Canárias”   (Cortesão,   idem:  

361). A primeira ilha a ser descoberta no Arquipélago da Madeira foi Porto Santo, pouco

após de 1420. Na costa africana, o Cabo Não é ultrapassado por Gonçalo Velho em 1426. Em

1431 começa o reconhecimento do Arquipélago dos Açores

No falecimento do Infante D. Henrique, em 1460, as principais Ilhas Atlânticas já

estavam descobertas e a costa africana explorada até Cabo Verde, atingido em 1444 por Dinis

Dias. O Golfo da Guiné, contudo, só veio a ser atingido pelas caravelas portuguesas em 1475,

quinze anos após o falecimento do Infante D. Henrique.

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Neste empreendimento marítimo foi imprescindível o desenvolvimento da afamada

caravela. Embarcação pequena, mas de grande navegabilidade, desenvolvida e apropriada

para a exploração náutica, mas não para o transporte de volumosas cargas. Para este fim era

necessário utilizar grandes e pesadas embarcações, genericamente denominadas naus, cuja

navegabilidade era altamente dependente não só dos regimes de ventos, mas também, e

principalmente, das correntes marinhas. Assim, as caravelas tinham a função maior de

descobrir  os  “caminhos  marítimos”  por  onde  poderiam  trafegar  as  naus.

Caravela Nau

No caso das travessias para as Ilhas Atlânticas, onde o afastamento da costa

impossibilitava a navegação por referenciais litorâneos, foi necessário desenvolver,

paralelamente às caravelas, a navegação astronômica, com a utilização do astrolábio náutico.

Versão simplificada da introduzida pelos árabes e utilizada pelos astrólogos/astrônomos em

terra firme, permitia aos navegadores obter a latitude local da embarcação pela altura de

determinadas estrelas ou da culminação do Sol (Cf. Albuquerque, 1983:51).

A grande adversidade na navegação astronômica dos descobrimentos estava,

contudo, na determinação da longitude. A rigor, esta não estava ao alcance dos navegantes até

a invenção do cronômetro de marinha em 1762, pelo o inglês John Harrison. Até então, os

pilotos só conseguiam calcular a longitude de forma estimada e muito pouco precisa pela

relação velocidade/tempo/rumo, ou seja, por correlação das distâncias percorridas em direções

determinadas. Como eram precários os instrumentos de terminação da velocidade da

embarcação e de tempo, e ser ainda pouco conhecidas as variações magnéticas locais, o

cálculo da longitude por estimativa resultava, na maior parte das vezes, em erros grosseiros.

Em terra firme, não era de todo impossível a determinação da longitude por

observação astronômica no século XVI, porém o método utilizado era dificultoso, pouco

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preciso e restrito ao poucos astrólogos, únicos com conhecimentos astronômicos. Tendo por

base o fato de a Terra levar 24 horas para fazer um giro de 360°, correspondendo assim cada

diferença de hora a 15° de longitude, este cálculo era feito por determinação das diferenças

horárias de observações conjuntas de determinada conjunção astronômica, principalmente

eclipse da Lua. Apesar de aparentemente simples, a aplicação prática deste método esbarrava

em grandes dificuldades decorrentes da inexistência de instrumental para a observação

astronômica e demarcação de tempo, além da necessidade em saber prever a ocorrência do

fenômeno astronômico a ser conjuntamente observado (Cf. Albuquerque, 1987:26).

A Navegação e Comércio Atlântico e o Tratado de Tordesilhas.

No início do século XV acreditava-se que a expansão portuguesa pela costa

ocidental africana teria como limite meridional o Golfo da Guiné, já que seu objetivo

mercantil maior estaria na concorrência com a rota das caravanas berberes. Partindo do

Sudão, atravessavam estas o Saara até a cidade de Tombucto, ou Timbucto, no atual Mali,

principal centro mercantil abastecedor dos entrepostos de especiarias do Norte da África,

dentre eles o de Tanger, de onde os Reinos Ibéricos eram abastecidos de ouro, escravos e

diversos produtos como cera, goma-arábica, incenso, tâmaras, penas de avestruzes, etc...

Tombucto estava ligada também ao litoral atlântico, principalmente aos portos situados na

atual Mauritânia e Senegal.

Logo após a descoberta da ilha de Arguim, na costa da Mauritânia, por Nuno Tristão

em 1443, o Infante D. Henrique mandou aí fazer uma fortaleza, a fim de instalar um

entreposto de onde os produtos trazidos de Tombucto pudessem ser diretamente enviados para

o porto de Lisboa. A fortaleza de Arguim foi concluída pelo rei Afonso V em 1461.

Até então, era crença que o Golfo da Guiné seria a fronteira natural para a expansão

da rede mercantil atlântica de Portugal, já que a partir deste a corrente marítima predominante

é a de Benguela que, a partir do Cabo da Boa Esperança, corre com forte empuxo na direção

norte, impedindo que as pesadas naus navegassem em direção ao sul da África.

Assim acreditando, em 1479 os reis Isabel de Castela e Fernando de Aragão

estabeleceram com Afonso V o Tratado de Alcáçovas-Toledo, onde ficou acordado que

Portugal renunciava a posse das Ilhas Canárias em troca do direito de posse exclusivo das

terras a serem descobertas ao sul deste arquipélago. Em 1481, o papa Sisto IV, pela bula

Aeternis Regis, confirma os termos deste tratado.

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Com a morte de Afonso V, em 1481, seu filho e sucessor D. João II, sendo coerente

com o que seria o projeto de expansão marítimo mercantil na África, cria a feitoria de

Huadem, situada no deserto próximo a Tombucto, a fim de facilitar o abastecimento da

fortaleza de Arguim, fortalecendo assim a rota marítima concorrente com a das caravanas do

Norte da África (Cf. Matos, 1963:43). Avançando até o Golfo da Guiné, D. João II fez

também instalar, em 1482, na atual Costa do Marfim, a fortaleza de São Jorge, conhecida

como São Jorge da Mina, de onde era enviado para Portugal principalmente ouro.

Até o presente momento, o processo de expansão ultramarina portuguesa se

desdobrava de forma lógica e coerente não só em relação às condicionantes conhecidas para a

navegação atlântica como também com a potencialidade demográfica de Portugal. Contudo,

ainda no ano de 1482, Diogo Cão ultrapassou o Golfo da Guiné e, enfrentando com caravela a

força contrária da Corrente de Benguela, conseguindo atingir a região do Congo.

Neste momento, se volta contra D. João II a alta nobreza, que se contrapunha a

continuidade da expansão ultramarina, principalmente por agravar a escassez do braço servil

lavrador. Mesmo a condenação à morte, em 1483, do Duque de Bragança, o nobre mais

poderoso do Reino, não deu fim à sedição da alta nobreza, o que levou D. João II, no ano

seguinte, a pessoalmente matar seu primo e cunhado D. Diogo, Duque de Viseu, irmão do

futuro rei D. Manuel.

Contida a conspiração, D. João II dá continuidade à exploração do litoral ocidental

africano, concluída em 1488, quando Bartolomeu Dias atinge seu ponto extremo meridional, o

Cabo das Tormentas, depois denominado da Boa Esperança.

Pouco após, em 1492, patrocinado pelos reis de Castela e Aragão, ainda não

unificados como Espanha, Colombo descobre a América. É preciso observar que é lendária a

interpretação de que ele, indo contra a concepção da época, procurava demonstrar a

esfericidade da Terra. Na verdade, a obra Almagesto, de autoria do célebre geógrafo

helenístico Claudius Ptolomeu, tinha já chegado ao Ocidente, traduzida do árabe para o latim.

Assim, no final do século XV os sábios e cartógrafos tinham não só conhecimento da

esfericidade da Terra como uma noção muito aproximada de sua dimensão real.

O enigmático nesta viagem descobridora, considerada a primeira travessia

transoceânica, é a maneira correta e segura com que Colombo navegou. Na ida, após deixar as

Canárias, tomou a direção oeste, se internando a uma região do Atlântico, que seria ainda para

ele desconhecida. Fazendo a navegação por latitude, procurou permanecer entre os paralelos

25º e 28º N, o que possibilitou ser impulsionado pela Corrente Norte Equatorial e pelos os

alísios de nordeste até à América. Porém, esta mesma rota não poderia ser tomada na viagem

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de regresso, já que teria ventos e correntes contrárias. Surpreendentemente, Colombo soube

navegar em direção norte, até a altura aproximada do paralelo 40º N, onde a Corrente do

Golfo e ventos de sudoeste o impulsionou até a Ilha de Santa Maria, nos Açores, escala

imprescindível para todas as posteriores embarcações a vela que retornavam da América

Central, já que era impossível atingir diretamente a Europa, sem ali serem reabastecidas. (Cf.

Chaunu, 1980:63).

Assim, tendo todo o ainda desconhecido Atlântico meridional a sua frente, Colombo

teria descoberto não só a América, mas também a rota única e exata que ligava a Europa a esta

porção do Novo Mundo.

Ao retornar, Colombo se dirigiu inicialmente, não a Espanha, mas a Portugal onde

informa   a   D.   João   II   sua   chegada   “ao   Oriente”.   O rei de Portugal, contudo, teria então

discordado de Colombo, por considerar que teria ele chegado não ao Oriente, mais sim a um

arquipélago de ilhas atlânticas ainda desconhecidas. Assim, por estar este arquipélago situado

ao norte das Canárias, por força do Tratado de Alcáçovas-Toledo a descoberta de Colombo

favorecia não a Espanha, mas sim a Portugal..

Considerando que a região das Bahamas estava realmente sob a jurisdição e poder

da Coroa de Portugal, conforme estabelecido no tratado então vigente, a historiografia não

registra como D. João II poderia ter chegado a este preciso acerto baseado unicamente nas

informações fornecidas por Colombo, já que esta reivindicação só poderia ter fundamento se

tivesse sido informado não só da latitude correta das ilhas descobertas, de modo a saber que

estariam ao sul do paralelo das Canárias, como a extensão em longitude da navegação de

Colombo, de modo a saber que este não teria chegado a Cipango, conforme afirmava. ..

A intervenção do acaso, porém, veio a impedir que Portugal fosse o beneficiado

maior do descobrimento de Colombo. Pouco após deste, o papa Inocêncio VIII veio a falecer,

abrindo uma crise em sua sucessão com a disputa do trono pontífice entre dois poderosos

cardeais italianos das famílias Caraffa e Della Rovere. Como nenhum destes conseguia a

maioria dos votos no Colégio de Cardeais, Fernando de Aragão, se aproveitando do impasse,

patrocinou a candidatura de um cardeal espanhol “neutro”, a do valenciano Rodrigo Bórgia.

Eleito como Alexandre VI este novo papa espanhol, que viria ficar afamado como o mais

dissoluto de todo o papado, promulgou duas novas bulas alterando os termos do tratado

estabelecido, impedindo Portugal de tomar posse do descoberto por Colombo.

Denominadas igualmente de Inter Coetera, as bulas são datadas de 3 e 4 de maio de

1493. Nesta segunda, Alexandre VI concede aos Reis Católicos o domínio das terras a serem

descobertas dos Açores e Cabo Verde cem léguas para o ocidente e o meio-dia.

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Ou seja, de forma totalmente incoerente com os saberes da astronomia de posição da

época, a linha divisória anteriormente estabelecida entre Portugal e Espanha tendo como

referência a latitude foi substituída por outra tendo por referência a longitude.

Na recusa de D. João II em aceitar esta determinação papal, os representantes dos reis

de Castela e Aragão e de Portugal se reuniram na cidade de Tordesilhas em 1494, a fim de se

chegar a um consenso. Os representantes de Portugal propuseram que a linha divisória fosse

deslocada para oeste, passando de cem para 370 léguas de Cabo Verde. Como certamente os

representantes espanhóis sabiam que Colombo teria percorrido uma distância maior até a ilha

por ele descoberta, a proposta encaminhada em nome do rei de Portugal foi aceita, resultando

na assinatura do Tratado de Tordesilhas em 7 de junho de 1494.

Assim, este novo tratado não manteve referencial de latitude, conforme adotado no

tratado anterior, mas assim o incoerente referencial de longitude, conforme inicialmente

estabelecido por Alexandre VI em sua bula papal.

Do Atlântico ao Índico pela Corrente do Brasil

O posicionamento exato do meridiano divisório de Tordesilhas tinha como obstáculo

não só a dificuldade na determinação astronômica da longitude como também a não definição

de imprescindíveis referenciais cartográficos nos termos do referido tratado. Neste não se

encontra definida qual das diversas léguas seria a adotada, o posicionamento do ponto exato

do arquipélago onde iniciaria a contagem das 370 léguas, e se estas seriam contadas sobre o

paralelo do ponto tomado como referencial nos Açores ou sobre a linha do Equador (Cf.

Tratado de Tordesilhas. In Cortesão, 1956: 3-21). Assim, o tratado estabelece não uma linha

divisória, mas sim uma faixa onde a linha poderia varia.

Em outubro de 1495, pouco mais de um ano após a assinatura do Tratado de

Tordesilhas, D. João II veio a falecer, sendo sucedido por seu primo D. Manuel, Duque de

Beja. Após o momento inicial de seu reinado, quando havia dúvidas se o irmão do falecido

Duque de Viseu iria dar continuidade, ou abortar, a expansão ultramarina, partiu de Lisboa,

em oito de julho de 1497, uma pequena frota composta de quatro naus sob o comando de

Vasco da Gama. Esta frota conseguiu não só ultrapassar o Cabo da Boa Esperança como

atingir o Índico, proeza que fez de Vasco da Gama o  “descobridor do caminho marítimo para

as Índias”. Em setembro de 1499, duas das quatro naus que partiram sob o comando de Vasco

da Gama conseguiram retornar, abarrotada de especiarias.

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É preciso observar que, ao contrário do que se costuma afirmar, a queda de

Constantinopla não trouxe a interrupção de abastecimento do mercado europeu de especiarias

orientais. Além da rota do Sudão-Combusto-Tanger-Península Ibérica, o Ocidente permanecia

também atendido no consumo de especiarias pelos mercadores de Itália, principalmente

venezianos, que se forneciam nos portos do Egito e Síria, abastecidos pelas respectivas rotas

do Mar Vermelho e Golfo Pérsico. Entende-se assim porque Quintella, (1839:247), ao se

referir à alta nobreza, diz que a partir da volta de Vasco da Gama “mudarão os discursos, que

os homens até alli fazião sobre as vantagens da descoberta, e conquista do Oriente, vendo em

Lisboa especiarias, aljafar, e pedraria, producções daquelles ricos Paizes, que antes olhavão

com admiração quando os Venezianos as trazião a este Reino”

Contudo, o volume das mercadorias orientais chegado ao porto de Lisboa pela rota do

Atlântico Sul era suficiente somente para atender às demandas do Reino, não trazendo ameaça

à rota veneziana, via Mediterrâneo.

Meses após, em março de 1500, partiu de Portugal com destino ao Oriente uma

poderosa frota onde a maioria das embarcações, nove de um total de treze, era de grandes e

pesadas naus, que precisavam ser impulsionadas não só por ventos favoráveis como também

por fortes correntes marítimas. Ao se dirigir ao Índico pelo Atlântico Sul, Cabral teria se

deparado com uma porção continental do Novo Mundo ainda desconhecida.

Cabral, ao trazer de volta a maior parte de sua frota abarrotada de pimenta, gengibre e

canela, além de algumas outras especiarias, demonstrou que os portugueses conseguiam fazer

com que pesadas naus navegassem pelo Atlântico Sul em demanda do Índico. O segredo, só

posteriormente desvendado, estava numa   nova   porção   do   “Novo   Mundo”   por ele

“incidentalmente  descoberta”,  o  Brasil.

O Almirante Gago Coutinho, profundo conhecedor das condicionantes para a

navegação à vela do Atlântico Sul, demonstrou que não só Cabral, como também Vasco da

Gama, por estarem no comando de naus, tiveram que obedecer a imposição do regime de

ventos que os obrigava a navegar junto à costa brasileira, após  “montar  a  terra  saliente  entre

os  actuais  cabos  São  Roque  e  Santo  Agostinho” (Coutinho, 1969:114-5). 1

1 O almirante Carlos Viegas Gago Coutinho (1869-1950) fez, junto com Sacadura Cabral, a primeira travessia área do Atlântico Sul, em 1922. Além de eminente navegador e cartógrafo, se dedicou à história da navegação dos descobrimentos. A obra citada é uma coletânea de artigos, muitos publicados em jornais, e conferência até então dispersos. As questões relativas ao descobrimento do Brasil foram apresentadas em uma conferência proferida em 1943, no Liceu Literário Português do Rio de Janeiro. Nesta,  o  iminente  nauta  descartou  a  possibilidade  de  Cabral  ter  “descoberto”  o  Brasil,  ao  demonstrar  que para se atingir a costa brasileira entre os cabos citados seria preciso ter conhecimentos precisos dos condicionantes da navegação local  e  não  simplesmente  por  querer  “esquivar-se  das  calmarias  da  Guiné”,  conforme registrado pelos cronistas.

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A necessidade de se aproximar da costa a partir do Cabo de Santo Agostinho se dava

não só em função do regime de ventos dominantes no Atlântico Sul, mas também por

imposição do regime de correntes marinhas. Da região equatorial da África parte uma

corrente que se dirige à América do Sul, denominada Corrente Equatorial Sul. Essa corrente,

por sua vez, atinge o litoral brasileiro na altura do Cabo de São Roque, onde se divide em

duas ramificações. Uma delas, a Corrente da Guiana, toma a direção norte, e a outra, a

Corrente do Brasil, toma a direção sul. Esta corrente acompanha o litoral austral americano

até o encontro com a Corrente das Malvinas que, vinda do Pólo Sul, faz com que a Corrente

do Brasil tome a direção da África do Sul (Cf. Cortesão, 1956:567-69:). Deste modo, para que

as naus pudessem chegar ao Índico, fazia-se necessário que seguissem próximas ao litoral

brasileiro “hasta   la   latitud   de   la   desembocadura   del   rio   de   La   Plata   (...)   Sólo   entonce   ,   y  

después de haber alcanzado com seguridad los vientos del Oeste em el hemisferio meridional,

debe el buque mirar al Este” (Ibidem: 574).

Por outro lado, é preciso destacar que a navegação por esta rota do Atlântico Sul,

depois conhecida  como  “volta  do  Brasil”,  exigia  todo  um  conhecimento prévio do calendário

de alterações dos ventos dominantes e do regime de correntes. Levando em conta estes

condicionantes para a navegação no Atlântico Sul, Gago Coutinho (1969:114-5) demonstra

que a partir de uma única viagem seria impossível não só Vasco da Gama “descobrir o

caminho marítimo para as Índias” como Cabral “descobrir o Brasil”, afirmando ainda que

“tanto a Terra (o Brasil) como o vento, já ambos haviam sido estudados, em várias épocas do

ano,  antes  de  1497”.

Apesar do desvio pela costa do Brasil da rota para o Índico ter sido ciosamente oculto

pelos cronistas portugueses quinhentistas, ao divulgarem a versão do descobrimento fortuito

do Brasil, constatamos que este  “segredo”  acabou  vazando  para  a  Espanha  ainda ano século

XVI, onde foi revelado por Alonso de Santa Cruz2 em sua obra Islario general de todas las

islas del mundo, publicada como manuscrito em cerca de 1540. Nesta, informa que para

2Alonso, ou Alonzo, de Santa Cruz (1505-1567) foi um renomado cartógrafo e cosmógrafo das cortes de Carlos I (V do Sacro Império) e Felipe II de Espanha. Fez parte do corpo de cartógrafos do Consejo de Indias e de La Caza e Audiências de Indias, mas conhecida como Casa de Contratación, onde foi responsável por uma das diversas versões do Padron Real, planisfério feito por determinação real em 1508. Esta primeira versão foi constantemente atualizada, a partir das novas informações trazidas pelos pilotos espanhóis, sendo Santa Cruz responsável pela edição de 1542. A obra Islario general de todas las islas del mundo foi produzida durante o reinado de Felipe II, sendo formada por um conjunto de mapas e um texto descritivo.

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chegar a Calicute e  Malaca,  os  portugueses  “procuran  de  venirse  a  meter  sobre  esta  costa  del  

Brasil y ponerse em altura de trynta e cinco a quarenta grados para dispues, com los ayres

frescos  del  pólo  antártico,  poder  a  su  plazer  doblar  el  dicho  cabo  da  Buena  Esperança”  (Santa

Cruz, 1918:545). Ao considerar que a latitude da barra do Rio da Prata é de 35° S,

constatamos o quanto Santa Cruz estava bem informado das condicionantes de navegação no

Atlântico Sul.

Encontramos ainda em uma obra manuscrita quinhentista portuguesa a indicação desta

rota atlântica, única para as naus da Carreira das Índias. Trata-se do Roteiro de Lisboa a Goa,

de autoria do célebre navegador português D. João de Castro3. Ao tratar da “trauessa  que  há  

da  costa  do  Brasil  até  o  cabo  da  bõa  esperança”,  informa  ele  que  “as  nossas  naos  se  poem  em  

altura do cabo frio, e começão por a proa no cabo de boa esperança, fazendo a elle seu

caminho (...)”   (Castro, 1882:241).

A princípio, esta informação estaria em contradição ao exposto por Santa Cruz, que

corretamente indica a latitude 35° S, correspondente ao Rio da Prata, como o ponto de desvio

em direção ao Cabo da Boa Esperança. Consideramos, contudo, que a razão de tal divergência

está no fato da costa brasileira sofrer uma flexão para o oeste exatamente em Cabo Frio.

Assim, ao contrário da quase totalidade desta costa, que corre na direção norte-sul, a maior

parte da costa fluminense corre na direção leste-oeste. Apesar de pouco extenso, este desvio

na direção da linha litorânea é suficiente para fazer com que os navegadores perdessem de

vista a costa partir deste ponto. Assim, apesar das naus permanecerem no bojo da Corrente do

Brasil até a barra do Rio da Prata, a linha costeira ficava fora do alcance de vista dos

navegadores a partir do Cabo Frio que, por esta razão, era um dos pontos de referência mais

importantes na navegação do Atlântico Sul.

Contudo, não bastava chegar com as naus portuguesas na Índia, mas também impedir

que as frotas venezianas mantivessem ativa a rota mediterrânea. Assim, logo após o

“descobrimento”   do   Brasil,   a   Coroa   de   Portugal   deu   início   à   ação   de   conquista   do   Índico

visando bloquear as rota de abastecimento de especiarias ao complexo mercantil

mediterrâneo. Em 1506 é conquistada a ilha de Socotorá, na entrada do Mar Vermelho. Em

3 D. João de Castro (1500-1548) foi discípulo, juntamente com o Infante D. Luís, do matemático Pedro Nunes, considerado um dos mais importantes sábios quinhentistas. Segundo Fontoura da Costa (1939:313) três são os roteiros de sua autoria: de Lisboa a Goa (1538), de Goa a Diu (1538-1539) e do Mar   Roxo   (1541).   “três monumentos da Marinharia dos Descobrimentos, nos quais o nosso capitão evidencia a sua grande cultura e o seu espírito de incomparável observador prático e investigador científico  do  mar”.

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1507 Afonso de Albuquerque ocupa Ormuz, entrada do Golfo Pérsico. Em 1509, a frota do

sultão turco, que em auxílio aos egípcios procurava impedir a consolidação do bloqueio do

Índico, é derrotada na batalha de Diu, pela frota comandada por Francisco de Almeida,

primeiro Vice-Rei das Índias. Esta batalha não só consolidou o domínio português no Índico

como deferiu um profundo e definitivo golpe no eixo mercantil Índico-Mediterrâneo.

Mapa do Curso das Naus. (In Brandão, 2006: 25)

Considerando que o complexo mediterrâneo fora, desde a Antiguidade, o   “coração”

mercantil do Ocidente, acreditamos poder dizer que, do ponto de vista geopolítico, o

“descobrimento” do Brasil é um marco na construção da modernidade ocidental por estar

inserido na complexa estratégica geopolítica que alterou definitivamente o curso da História.

A Longitude de Tordesilhas e o Mapa de Cantino.

A princípio, esta conjuntura nos leva a acreditar que D. João II, já conhecedor da costa

brasileira e da Corrente do Brasil, reivindicou a extensão dos domínios de Portugal de 100

para as 370 léguas de Cabo Verde visando preservar para Portugal o domínio do estratégico

litoral brasileiro, imprescindível para o controle da rota do Oriente via Atlântico Sul. Ao se

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considerar que as longitudes conhecidas da costa brasileira teriam sido determinadas, por

navegadores, pelo pouco preciso método da estima, seríamos levados ainda a acreditar que D.

João II teria sido agraciado pela sorte, ao reivindicar o correto deslocamento do meridiano

divisório.

A mais antiga fonte cartográfica conhecida a representar a costa brasileira traz também

representada a linha divisória de Tordesilhas como delimitador da América Portuguesa.

Denominado Mapa de Cantino, é um belo planisfério medindo 1,05m x 2,20m cujo original

encontra-se na Biblioteca Esteense em Modena, na Itália, havendo uma reprodução em fac-

símile na Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores no Rio de Janeiro.

Sua história foi revelada pelos estudos feitos pelo historiador americano H. Harrisse

das  cartas  de  Hércules  d’Este,  Duque  de  Ferrara  de 1471 a 1505. Assim, sabemos que foi feito

em princípio de 1502 por um cartógrafo ou alto funcionário desconhecido com acesso ao

acervo de mapa da Coroa de Portugal que se deixou corromper pelo representante comercial

de Ferrara em Lisboa, Alberto Cantino. Segundo as cartas, o duque encomendou, a preço de

12 ducados de ouro, o mapa mais completo possível das recentes descobertas ibéricas. Em 19

de novembro do mesmo ano, o mapa chegou às mãos do Duque de Ferrara.

Feito a partir de colagens de mapas diversos, nele a África encontra-se representada,

com grande precisão, em sua dimensão continental. A Índia já apresenta sua verdadeira forma

de península, e a configuração da costa da Índia à China é bastante aproximada da verdadeira.

O   “Novo  Mundo”   é   representado   pelo   perfil das ilhas das Índias Ocidentais, da costa das

Guianas, da Venezuela e do Brasil e por parte da costa oriental da América do Norte,

inclusive a Flórida, apesar desta não ter ser sido ainda oficialmente descoberta, o que só

aconteceria 11 anos depois, por Ponce de Leon.

Este planisfério traz ainda a particularidade de ser o primeiro conhecido a ser feito na

projeção cilíndrica, que tem como característica principal apresentar os meridianos como

linhas paralelas, que se cruzam de forma ortogonal com os paralelos. 4

Deste modo, o meridiano divisório de Tordesilhas está representado no

mapa de Cantino como uma linha reta, que cruza ortogonalmente com o Equador.

Tendo em conta esta característica cartográfica, fizemos a superposição do Mapa

4 Ainda no século XVI a projeção cilíndrica foi aperfeiçoada por Gehard Mercator (1512-1594), matemático, geógrafo flamengo. Devido sua característica de equivalência angular, possibilitando determinar os azimutes das rotas diretamente nas cartas, passou a ser a predominante na confecção das cartas náuticas

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de Cantino sobre um atual, também na projeção cilíndrica, onde traçamos o

meridiano de Tordesilhas posicionado em sua extensão máxima ocidental 5.

A partir desta superposição constata-se que a porção mais oriental da costa

nordeste brasileira, a partir do ponto extremo oriental, encontra-se neste

perfeitamente cartografada, tanto em sua latitude como na longitude (Cf.

Brandão, 1999:100-1). Nota-se ainda, perfeitamente, que a representação da costa

brasileira foi elaborada tendo por base o levantamento cartográfico d e somente

parte da costa do Nordeste. O traçado foi então complementado por informações

sobre a rota de navegação que acompanhava esta costa, fazendo com que a linha

costeira fosse deslocada para o fluxo da Corrente do Brasil , e na parte extrema

meridional, correspondente ao estuário do Rio da Prata, já na Corrente das

Malvinas.

Mapa de Cantino

A constatação de que os cartógrafos responsáveis pelo traçado da costa brasileira

apresentado no Mapa de Cantino conseguiram posicionar corretamente o ponto extremo

oriental desta costa em relação ao meridiano do Tratado de Tordesilhas nos coloca frente a

5 Para o cálculo da extensão linear adotamos a antiga légua terrestre correspondente a 3 000 braças, e não uma das léguas náuticas das utilizadas na época , e como ponto referencial a ponta ocidental da Ilha de Santo Antão, a mais ocidental das de Cabo Verde. A partir destes referenciais e convertendo a distância linear em angular sobre o paralelo da referida ponta da Ilha de Santo Antão, correspondente a 17° 04´ N, chegamos ao resultado de 48° 26´W (Cf. Brandão, 2000:129).

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uma espinhosa questão. Mesmo considerando que, na época, seria possível calcular o

correspondente em grau de longitude a distância de 370 léguas do Açores, seria ainda

impossível determinar a distância do meridiano divisório à costa brasileira, já que, para tal,

seria necessário ter sido feito preliminarmente levantamentos cartográficos e determinações

astronômicas de longitudes de pontos desta costa.

Sabemos ainda que a determinação astronômica da longitude só foi aperfeiçoado no

início do século XVII por obra de Galileu, tanto no aspecto instrumental, ao criar a luneta

astronômica, quanto ao método, ao descobrir a existência dos satélites de Júpiter, cujas

conjunções ocorrem de forma previsível, o que possibilitou a Galileu desenvolver um novo

método do cálculo da longitude, a partir dos eclipses das luas de Júpiter. Porém, somente

depois de este método ter sido aperfeiçoado por Cassini, astrônomo e astrólogo do rei Luis

XIV e fundador do observatório de Paris, ao elaborar as efemérides de eclipses dos satélites

de  Júpiter,  conhecidas  como  “Tábuas  de  Cassini”,  foi  possível redesenhar os mapas da Europa

a partir das novas longitudes assim calculadas, o que acabou por revelar as grandes distorções

nas representações longitudinais dos mapas precedentes.

No Brasil, acredita-se que as primeiras observações voltadas para a determinação da

longitude tenham sido feitas pelo sábio naturalista germânico George Marcgrave em Recife,

onde esteve por convite do Conde de Nassau, de 1638 a 1644. Do observatório construído

por Nassau, o primeiro da América, Marcgrave fez diversas observações astronômicas, como

eclipses do Sol e da Lua e conjunções planetárias, que possibilitariam o cálculo da longitude

local. Porém, como até hoje estão perdidos dois dos três livros que compunham a obra que

reunia os seus trabalhos astronômicos e cartográficos feitos no Brasil por Macgrave, não

temos o registro de sua possível determinação da longitude de Recife (Cf. Lima, 2001:92-3).

Deste modo, datam somente do século XVIII as primeiras determinações de longitudes

comprovadamente feitas em solo brasileiro. Por alvará datado de 18 de novembro de 1729, D.

João V nomeou os padres Diogo Soares e Domingos Capassi da Companhia de Jesus,

identificados como peritos nas Matemáticas, para fazer levantamentos cartográficos no

Brasil. Dentre os diversos mapas feitos pelos jesuítas, Jaime Cortesão (1952: 9-10) destaca o

que tem por título Nova e primeira carta da Terra firme e costa do Brasil, ao meridiano do

Rio de Janeiro, desde o Rio da Prata, até Cabo Frio, com o novo caminho do Certão do Rio

Grande até a cidade de São Paulo, por ser o que abrange maior extensão e por oferecer a

graduação das longitudes. Ao fazer a sobreposição desta carta com uma atual, Cortesão

conclui ”que  a  sua  exatidão,  dada  à vastidão do território abrangido, é quase sempre perfeita.

Não podemos restar a menor dúvida de que os dois Padres observaram um grande número de

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longitudes”. Lembrando que La Condamine, considerado um dos maiores astrônomos e

geógrafos da época, ao calcular a longitude da foz do rio Napo, em 1742, cometeu um erro de

3°, considera que este erro “dá-nos a medida da competência dos dois Padres Matemáticos de

Dom João V e da justeza das suas  observações” (Ibidem: 11).

Assim, em coerência com que atualmente consideramos para extensão do saber da

cartografia quinhentista, seria impraticável que cartógrafos portugueses no início do século

XVI pudessem traçar um mapa onde o ponto extremo ocidental e parte da costa brasileira

estivesse corretamente posicionado em relação ao meridiano divisório de Tordesilhas.

Contudo, a superposição apresentada não nos deixa dúvidas de que foi realmente isto o

ocorrido.

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Superposição, feita pelo autor, da linha costeira do Brasil conforme traçada no Mapa de Cantino com a mesma traçada em um mapa atual na projeção cilíndrica, tomando como referências de superposição a linha do Equador e do meridiano divisório do Tratado de Tordesilhas, traçada no mapa atual em sua extensão ocidental máxima.

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Consideração Final

A partir dos estudos feitos ainda no meado do século passado por Jaime Cortesão e

pelo almirante Gago Coutinho não se teria como questionar o fato da Coroa de Portugal ter

não só conhecimento da porção litorânea brasileira no século XV, mas também dos regimes

de ventos e correntes marítimas predominantes na   costa   meridional   do   “Novo   Mundo”.  

Assim, em obediência ao princípio de que a rota das naus deveriam ser previamente traçadas

por caravelas, exploradoras, não há como duvidar de que diversas delas antecederam as naus

de Cabral na chegada ao Brasil. Como este contexto é demonstrável com muita segurança à

luz dos atuais conhecimentos sobre a náutica quinhentista, o surpreendente, do ponto de vista

historiográfico, é a permanência da infundada discussão  se  o  “descobrimento”  do  Brasil  teria

sido fruto da intencionalidade ou do acaso.

A questão da longitude aqui bordada se insere mais profundamente nesta discussão, já

que se a hipótese de explorações sigilosas dirigidas à costa brasileira ainda no século XV é

plenamente coerente com o nível de desenvolvimento das artes da construção náutica e da

navegação deste século, o mesmo não se pode dizer em relação à longitude.

Apesar da conjuntura factual e documental nos aponta para a consideração de que,

quando das negociações do Tratado de Tordesilhas, D. João II já saberia da existência de um

novo continente a meio caminho da Índia, segundo o atual conhecimento que temos sobre a

cartografia quinhentista não seria possível que este monarca tivesse ainda o conhecimento de

longitudes do nosso litoral de modo a reivindicar o deslocamento do meridiano divisório de

modo a possibilitar o domínio do litoral brasileiro e, consequentemente, o controle da rota das

naus para o Índico.

Contudo, a insistência dos negociadores portugueses em posicionar o meridiano

divisório a exatas 370 léguas de Cabo Verde, e não 350 ou 400 léguas e a precisão do

posicionamento deste meridiano no mapa de Cantino, conforme constatado pela superposição,

nos mostra que foi exatamente este o ocorrido.

Assim, este contexto nos faz considerar como fundamentada a hipótese de que os

nautas que aqui antecederam Cabral no estudo dos regimes de ventos e correntes marinhas

estavam ainda acompanhados de cartógrafos e astrônomos, na época astrólogos, responsáveis

pelas precisas determinações de longitudes de pontos referenciais da costa do Brasil.

Evidente que tal hipótese abre uma série de questionamentos para os quais não temos

ainda respostas, o que nos leva reconhecer a expansão ultramarina portuguesa como um

espaço histórico que tem ainda muito a revelar.

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