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LEI ROUANET PERCURSO E RELATOS

Mecenas: Patrocinador generoso, protetor das Letras, Cincias e Artes, dos artistas e sbios. Mecenato: Condio, ttulo ou papel de mecenas.Novo Dicionrio Aurlio

SUMRIO

textos introdutrios entrevistasAlexandre Machado Alvaro Razuk Dagmar Garroux Danilo Miranda Eliane Costa Fbio Cesnik Leonardo Brant Mara Mouro Mequita Andrade Yacoff Sarkovas 28 32 18 21 24 15

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Helosa Buarque de Hollanda 40 44 47 50

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artigos relacionadosPolticas culturais no Brasil: trajetria e contemporaneidade [Antonio Albino Canelas Rubim] Minc libera R$ 9,4 mi para Cirque du Soleil no Brasil [Silvana Arantes] MEC cria Lei Rouanet da pesquisa [Renata Cafardo e Herton Escoba] Uma Lei Rouanet da pesquisa [Claudia Izique] 92 95 98 100 117 Ministrio no tem vocao para Irm Dulce [Marcio Aith] Museu Nacional volta a ser como no tempo do Imprio Nem tanto ao cu, nem tanto terra [Marcelo Gruman] Artistas famosos e o incentivo fiscal [Antoine Kolokathis] 88 90 65

leis relacionadasLei 7505 de 2 de julho de 1986 Lei 8685 de 20 de julho de 1993 123 129 141 157 133 Lei 10923 de 30 de dezembro de 1990 Programa Nacional de Apoio Cultura Edital do Proac (exemplo) Projeto de Lei 6722/2010 O que muda na Lei Rouanet 161 176 202

Projeto de Medida Provisria no aprovada

anexos

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BIBLIOGRAFIA SELECIONADA

A Atitude Brasil, empresa que atua nas reas cultural, ambiental e de comunicao social, idealizou e publicou este livro para retratar os diversos aspectos histricos, tericos e prticos dos incentivos cultura no Brasil especialmente os da Lei Rouanet. Nossa inteno informar os vrios setores da sociedade quanto ao uso da legislao em vigor, s reformas e aos futuros implementos legais que contemplem as mudanas necessrias para uma poltica cultural mais respeitosa e eficiente no uso dos recursos disponibilizados. Reunir as opinies das diferentes pessoas e entidades que utilizam ou oferecem apoio produo cultural no Brasil o objetivo central deste trabalho. Nossa pesquisa foi importante para identificar a existncia de pensamentos convergentes entre os diversos setores, todos eles desejosos de que as mudanas na legislao resultem em maior democratizao do acesso s mais variadas expresses Artsticas: cinema, msica, dana, teatro, literatura, Artes visuais e preservao e restaurao de patrimnios materiais e imateriais. Percebemos, tambm, a importncia do alinhamento da riqueza e diversidade cultural brasileiras com as novas tecnologias, que permitem acesso cultura em larga escala. Expressamos nosso especial agradecimento Companhia Vale do Rio Doce, patrocinadora nica, que viabilizou este projeto por tambm acreditar no futuro promissor da produo Artstico-cultural brasileira.7

lei rouanet Percurso e relatosantonio carlos abdalla [Organizador]

Este livro informativo e reflexivo trabalho de referncia sobre os resultados, expectativas, dvidas, problemas e possveis solues concernentes Lei Rouanet desde sua ltima reformulao. Evidentemente o livro no exaustivo, mas rene dados suficientes para pesquisa, estudo e compreenso dessa lei e de sua aplicao. Esse instrumento legal nos seus moldes atuais , at onde se sabe, nico na legislao mundial. A Lei Rouanet foi criada em 1991 (no Governo Fernando Collor de Mello, sendo Secretrio da Cultura Srgio Paulo Rouanet) e reformulada em 1995 (no Governo Fernando Henrique Cardoso, sendo Ministro da Cultura Francisco Weffort). Como poltica pblica do Brasil para a rea da Cultura, essa lei produziu amplo espectro de resultados e um no menor volume de dvidas, opinies e crticas. Tenham sido positivos ou duvidosos, os resultados obtidos so dignos de uma anlise para assimilao de novas expectativas e adaptaes. No h dvida de que a Lei Rouanet j deu mostras de que chegado o momento de ampla discusso, reviso e regulamentao para suprir um elenco de novas perspectivas e necessidades das atividades culturais contemporneas. Doze entrevistados figuras atuantes nos vrios setores culturais e agentes da legislao atual emitem aqui opinies recentes sobre a aplicao presente da citada lei, alm de ex-

Vanderlei Almeida/AFP/Getty Images

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ternarem esperanas e comportamentos possveis e desejados para uma reforma ainda apenas proposta. Foram entrevistados Alexandre Machado, lvaro Razuk, Dagmar Garroux (Tia Dag), Danilo Santos de Miranda, Eliane Costa, Fbio Cesnik, Helosa Buarque de Hollanda, Leonardo Brant, Mara Mouro, Mequita Andrade e Yacoff Sarkovas. Alm das entrevistas, do texto integral da lei em vigor e do projeto de reforma, esto includos neste volume uma coletnea de textos e pequenos ensaios, a reproduo de documentos oficiais, tabelas, grficos, uma bibliografia e alguns estudos comparativos que revelam o percurso e os resultados alcanados pela aplicao da Lei Rouanet nos ltimos dezesseis anos. So mltiplos os objetivos principais da Lei Rouanet: garantir livre acesso a todas as fontes de cultura e ao pleno exerccio dos direitos culturais; promover e estimular a regionalizao da produo cultural e Artstica brasileira, com a valorizao dos recursos humanos e contedos locais; apoiar, valorizar e disseminar o conjunto das manifestaes culturais e seus respectivos criadores; proteger a expresso cultural dos grupos formadores da sociedade brasileira, responsveis pelo pluralismo da cultura nacional; salvaguardar a sobrevivncia e o continuado florescimento dos modos de criar, fazer e viver da sociedade; preservar os bens materiais e imateriais do patrimnio cultural

e histrico; estimular a produo e difuso dos bens culturais de valor universal, formadores de conhecimento, cultura e memria; priorizar o produto cultural originrio do Brasil. No uma empreitada simples e os resultados demandam capacidade, coragem, percia e ousadia. A pesquisa e anlise do tema e objeto desta proposta dever oferecer subsdios importantes para debates e estudos mais aprofundados, que verifiquem se os objetivos almejados pela aplicao da Lei Rouanet esto sendo ou no alcanados, em parte ou no todo, e proponham comportamentos e providncias para que tais objetivos sejam resgatados e convenientemente observados e controlados pela sociedade. De que modo o Governo e a iniciativa privada podem atuar na construo, formulao e promoo de direitos culturais e de polticas pblicas efetivas? Que espaos, fruns e instncias especficas podem promover essa interao e Articulao? De que modo tal Articulao pode combinar controle, eficincia, justia e equidade social na distribuio e no acesso aos recursos pblicos (renncia fiscal) e aos bens culturais, materiais e imateriais de valor universal? So indagaes e desafios como esses que justificam a pertinncia e a relevncia dos objetos deste trabalho. Para este livro tomar forma h um desafio na identificao, seleo, deciso e abrangncia do material a ser tratado e ex-

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plorado, pois as questes e possibilidades do tema so extensas. Alm disso, no h como fazer escolhas ou traar caminhos sem levar em conta o contexto, os fatores, os aspectos e os interesses locais pblicos e privados que moldam e interferem fortemente nas definies e decises sobre as formas, prioridades, usos e distribuio dos recursos pblicos para a promoo e pleno exerccio dos direitos culturais. parte da legislao vigente e de toda a discusso sobre sua utilizao, suas alteraes e perspectivas, oportuno lembrarmo-nos de uma figura em geral negligenciada mas fundamental no patrocnio cultura: o mecenas. Afinal, a Lei Rouanet foi originalmente proposta para incentivar o mecenato. Parece justo resgatarmos essa figura, muito importante contemplada na implantao da lei. Que a Lei Rouanet atenda s expectativas e demandas para as quais foi criada fato incontestvel to incontestvel quanto a premncia de se corrigirem as distores existentes. Que os patrocinadores se convenam dos benefcios de apoiar a cultura e utilizem de forma prudente e justa os benefcios criados pela legislao um desejo. Que esses fatores se unam para promover cultura em todas as suas manifestaes uma obrigao pois essa, afinal, uma das poucas sadas para redimir o ser humano da mediocridade.

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ENTREvISTAS

alexandre Machado

A primeira vez que se tentou incentivar a cultura por meio da iseno fiscal foi com a Lei Sarney, embrio da Lei Rouanet. At ento, no esprito da lei, as empresas no investiam em cultura porque no tinham conhecimento da importncia dessa indstria. A ideia era que, com o tempo, os investimentos na rea fossem realizados pela sua prpria excelncia e que, aos poucos, as empresas deixassem de receber incentivos governamentais. Essa situao durou at o governo Fernando Henrique Cardoso. Na mesma poca, os cineastas brasileiros pleiteavam incentivos baseados na renncia fiscal para investimentos em audiovisual. A produo enfrentava dificuldades aps a extino da Embrafilme e do Concine, rgos governamentais de financiamento e fiscalizao, se houvesse investimento na rea. Mostravam ao Presidente da Repblica que os grandes movimentos do cinema no produzidos em Hollywood tiveram apoio substantivo dos governos, sem que, praticamente, estes investissem um tosto. Tal proposta, embora discutvel, acabou estimulando outras reas que foram conquistando o mesmo benefcio o que era justo. O benefcio trouxe deformaes: as empresas tinham poder de deciso sobre onde e quanto investir. Assim nasceu uma indstria de empreendimentos culturais baseada em falsa documentao e prestao de contas, notas frias e troca de facilidades. Havia outro problema: as aes eram esparsas e denotavam

[p. 13] Mauricio Lima/AFP/Getty Images Rodrigo Baleia/LatinContent/Getty Images

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a falta de uma linha de conduta consistente. Praticamente no existiam o incentivo cultura e a percepo de que formar ou enriquecer determinada empresa poderia depender de sua vinculao com posturas culturais. Dizem que, apesar dessas deformaes, a injeo de recursos financeiros movimentou a indstria da cultura. Para alguns especialistas, houve dinheiro lanado no mercado, sim, mas sem nenhum tipo de Articulao ou seja, ao acaso; era como atirar dinheiro de cima de um edifcio para quem quisesse us-lo. preciso separar da opinio que se tem da Lei Rouanet o uso que dessa lei se faz. O fato que, antes da Lei Rouanet, a indstria brasileira de cultura vivia traumatizada, seja por falta de recursos, seja por gestes como a do presidente Fernando Collor de Mello (19901992), que destruiu tudo o que at ento existia. A discusso Estado/Cultura, prejudicada pelas prticas anteriores, que favoreceram interesses paroquiais em detrimento das polticas pblicas, est de volta. Uma das ideias por exemplo, a de como aumentar a participao de Estados que no tm tido acesso aos recursos incentivados parece simptica quando se pensa na estrutura de um pas como o Brasil, mas colide com a essncia da lei, que permite empresa privada destinar os recursos de acordo com seus prprios interesses. Para uma empresa

sediada em So Paulo, a atuao ser preferencialmente em So Paulo. claro que pode haver interesse em investir em regies distantes mas, para isso, dever haver planejamento de longo prazo e as polticas pblicas de investimentos estimulados no podero ser cortadas de uma hora para a outra, acarretando dificuldades para as empresas. Tem de existir algum tipo de transio, como fundos pblicos aptos a assumir gradativamente os investimentos previstos. As empresas estatais e empresas de capital misto, que tm acionistas e interesses prprios como a Petrobras, por exemplo devero ter suas polticas de investimento em cultura. Essa uma questo relacionada com a boa ou a m gesto e no com o fato de o capital ser pblico, misto ou privado. A leitura que fao que os recursos tm de estar a servio da publicidade e do marketing (incluindo a formao e a consolidao de uma marca) e levar a empresa a avanar e ter bom proveito no que estiver fazendo. A Petrobras, que atua na rea cultural, um exemplo. Monopolista no mercado domstico de combustveis at a aprovao de uma emenda constitucional em 1995, a companhia teve de se preparar para enfrentar a concorrncia (que praticamente no a arranhou, mas que ainda pode tentar constituir um mercado). Por isso, at mesmo uma empresa como essa precisa

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estar preocupada com o fortalecimento de sua marca. O que discutvel se a empresa pode, para tal fim, utilizar recursos de iseno fiscal. Investir na rea da cultura depende de uma poltica interna bem traada poltica que dever ser de to boa qualidade quanto os prprios produtos, respeitar a histria da empresa e ser compatvel com sua atuao na atividade pblica. Para esse fim foram criadas regras relativas aos patrocnios: os incentivos deveriam ser utilizados para determinadas finalidades e no para qualquer projeto, como era feito anteriormente, quando no se tinha nenhuma responsabilidade pblica. Criou-se um edital para cada rea, com informaes sobre o valor a ser investido e os critrios de julgamento. Esse edital tornou-se modelo. Na rea de cinema, por exemplo, detectamos que, no Brasil, um dos problemas era a criao de uma nova gerao de realizadores. Lembramo-nos de que, em outra poca, antes dos filmes havia a exibio de curtas-metragens. Montamos ento um programa, o Curta Petrobras s Seis, programao gratuita de filmes para estudantes iniciada em 1999. Foi esse um trabalho que propiciou o aparecimento de novos realizadores e exps a marca Petrobras a um pblico jovem e interessado em cultura. Investir norteado pelos interesses da prpria empresa, mista ou privada por mais honrados que sejam tais interesses no significa que se

est investindo em projetos bons ou ruins mas, sim, em projetos no necessariamente identificados com o interesse pblico. Os valores advindos da renncia fiscal no pertencem mais empresa que os recolheu. Por isso, acredito que o direito de definir sobre o uso desse dinheiro cabe ao Estado ou a um fundo pblico direcionado cultura. preciso, porm, muito cuidado para que essa instncia no fique atrelada aos governos.

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alvaro razuk

Sou arquiteto especializado em projetos e montagem de exposies de Artes visuais desde 1996. Convivo diariamente com a Lei Rouanet porque a maior parte dos meus trabalhos sustentada pelos mecanismos de renncia fiscal. O mercado da cultura cresceu muito desde que comecei a trabalhar nessa rea. No havia muitos profissionais especializados eu mesmo no sabia que existiam tantas possibilidades quando um amigo me convidou para montar uma exposio de jovens Artistas no local onde atualmente o Museu AfroBrasil, em So Paulo. Para comear, reformamos o edifcio. Em seguida, a Antrtica Artes com a Folha, exposio patrocinada pelas duas empresas, concebida por cinco curadores que haviam viajado por todo o pas para selecionar novos talentos e montada por um cenotcnico que trabalhava com teatro, foi inaugurada em 1998. Hoje, temos no Brasil mo-de-obra especializada para projetar exposies de Artes visuais, segmento que cresceu com a maior afluncia do pblico e sua exigncia com relao qualidade. Alm do Artista bomio e romntico, que sempre vai existir, j existem profissionais preocupados com detalhes tcnicos muito precisos, como o ar condicionado ou o gs menos prejudicial obra de Arte. E at o Arteso, que tem o conhecimento do trabalho a ser feito e andou to marginalizado, est comeando a ver valorizado seu trabalho.

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O mercado das Artes plsticas est maior e muitas empresas fazem trabalho corporativo, pensando em como melhorar o contedo. Nos ltimos anos, formaram-se profissionais aptos a tratar das diversas facetas envolvidas na montagem de mostras, tais como o emprstimo de obras de Arte entre museus e galerias locais e internacionais, o desenho de embalagens para o transporte, assim como iluminadores, tcnicos de projeo, conservadores e curadores. A conservao de uma obra de Arte trabalho intenso e preciso a obra tem que chegar reserva tcnica muito bem embalada, ficar um dia esperando at se aclimatar, para depois ser aberta por um conservador que prepara o laudo correspondente. O relatrio repetido quando a obra sai. Esse profissional pode vir de vrias reas. O conservador vem em geral da rea da histria ou das Artes plsticas e acaba trabalhando em uma instituio, onde formado por um mestre. Se houver algum problema, o restaurador chamado. Restauradores de pintura, escultura ou papel podem frequentar cursos especficos para esse mtier, inclusive no Brasil. So profissionais razoavelmente bem remunerados e h para eles um mercado de trabalho crescente em funo do aumento no nmero de museus. Nesse processo, tambm o conservador, o produtor, os montadores (o cenotcnico que vai construir e

pintar os painis, o marceneiro especializado e os montadores de obras pessoais) tm noo de esttica e geralmente vm das Artes plsticas. As bienais de Arte tm tido importante papel na formao dos profissionais: ex-assistentes de Artistas do mundo todo, estudantes de Artes plsticas ou at mesmo Artistas formados acabam se encaminhando para essas carreiras. Antes, os trabalhos sofriam muitos estragos durante o transporte e a exposio; hoje, isso melhorou muito, porque as exigncias tcnicas para a montagem de uma mostra so maiores e mais complexas. H alguns anos, trabalhei na exposio dos pergaminhos do Mar Morto, feitos de material orgnico um grande achado arqueolgico. Estavam esticados com fita adesiva! Um absurdo! Atualmente, so conservados adequadamente, com controle de temperatura e umidade, alm de rigorosamente protegidos contra a ao dos raios ultravioleta. Nosso maior problema atual tirar a cola da fita adesiva. Sei que existem documentos que datam do Brasil pr-colombiano, feitos com um tipo de tinta que reagiu com o prprio papel, danificando-os. Antes no se dava ateno a esse tipo de detalhe, mas hoje h preocupao at com o papel colocado atrs de uma obra no pode ser de qualquer tipo; tem de ser neutro.

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Lembro-me de que, quando montei uma exposio do Artista e designer Geraldo de Barros, o curador fez exigncias: tratava-se de trabalho feito com um tipo de frmica durvel, mas sujeito ao acmulo de umidade por ser de madeira aglomerada; era preciso levar isso em especial considerao. De h 10 anos para c, estamos aprendendo a trazer e levar obras de Arte e, para tanto, existem transportadoras especializadas. claro que a Lei Rouanet, que viabilizou financeiramente muitas exposies, foi indiretamente responsvel pelo avano do nosso segmento. A lei muito importante e movimentou nosso universo do trabalho, embora no seja ideal e apresente algumas distores tais como, por exemplo, a concentrao de projetos culturais no Sudeste do pas, reflexo da concentrao das empresas que optam pela renncia fiscal. Sei que esse um problema complicado, mas de qualquer forma perfeitamente possvel encontrar profissionais qualificados fora do eixo RioSo Paulo, se houver demanda.

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dagmar garroux

Fundada em 1994 na regio do Capo Redondo, sul da cidade de So Paulo, a ONG Casa do Zezinho atende cerca de 1000 crianas e jovens de baixa renda, dando a todos eles a oportunidade de frequentar oficinas e atelis de Arte, praticar esportes e receber atendimento mdico e odontolgico. Em um pas como o Brasil, todos os segmentos da sociedade, inclusive o poder pblico, tm de se conscientizar quanto ao fato de que vivemos a realidade social da diferena. Diferena nas escolas, nas moradias. O que ser um Zezinho? Qual a vivncia de um Zezinho? Quais so os sonhos de um Zezinho? Quais so as expectativas da famlia de um Zezinho? Editamos um livro de fotos e desenhos, Santo Antnio das Artes Zezinhos, de Saulo Garroux e Levi Mendes Jr., um retrato da periferia a partir do ponto de vista das pessoas que fazem parte da Casa do Zezinho. Tiramos fotos da casa, da famlia mas no s isso; tambm pedimos s crianas que reproduzissem as fotos em desenhos de seu prprio punho, para assim termos um comparativo entre a viso do fotgrafo e a viso do Zezinho. A cultura familiar, o bairro, o ambiente social e os sonhos do Zezinho estaro presentes nas pginas do livro. necessrio descobrir o que significa para esses meninos no ter formao,

Tia Dag educadora e fundadora da Casa do Zezinho

informao, moradia, saneamento bsico e escola democrtica.

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Tambm necessrio que entendamos como treinar e capacitar, em apenas seis meses, pessoas que pularam todas as etapas do desenvolvimento humano brincar, alfabetizar-se, passear, instruir-se. Enfim, por que motivo os pobres tm de se capacitar apenas para telemarketing, limpeza ou portaria? No que essas profisses sejam menos dignas, mas esses jovens sequer tiveram a chance de dizer o que querem ser! Retratar o Zezinho em todos os espaos que ele percorre faz parte da pedagogia do arco-ris, que criei ao longo destes anos de trabalho: se os pilares da educao formal so ser, saber e fazer Arte, na pedagogia do arco-ris foram transformados em filosofia, cincia, conhecimento e Arte. Os sinais da educao so os cinco sentidos, que tm de estar muito mais aguados. Para se conhecer o Zezinho, so imprescindveis olhar e ouvido apurados. So tambm indispensveis o tato que representa, na realidade, o afeto: o abraar, o beijar e o olfato. Os participantes da Casa do Zezinho vivem em lugares que cheiram mal; colocamos na Casa, ento, incenso e perfume para tornar o ambiente agradvel, de modo a penetrar na alma e utilizamos tambm a msica para aguar a audio. Atrair, encantar o jovem na cadeia do conhecimento um dos papis da Casa do Zezinho. Nesse tipo informal de educao, o produto cultural absolutamente imprescindvel.

Temos um banco de dados dos Zezinhos que passaram pela Casa e suas respectivas histrias. Perdemos vinte deles: foram para o trfico e morreram, esto presos ou se prostituram. Mas tambm temos exemplos como o do Agenor, hoje educador de Artes plsticas da Casa, que entrou aqui aos 12 anos, cresceu, fez faculdade. A pessoa sobe de patamar na vida. Sentimos tanto isso que pretendemos todos os funcionrios da Casa tenham um dia sido Zezinhos. No necessrio possuir mente evoluda para investir em cultura. Investe-se em cultura quando se percebe que possvel criar uma identidade. Santo Antonio das Artes Zezinhos foi um projeto editorial que recebeu recursos incentivados por meio da Lei Rouanet. Eu no entendia a lei. Ficava confusa quanto ao que podia e que no podia ser entendido como cultura portanto, o que podia e que no podia ser financiado. difcil fazermos uso de algo que no entendemos por completo. S comecei a recorrer Lei Rouanet em 2009, com a ajuda de produtores culturais. O livro, que no didtico, chega como produto cultural e educacional. Ser distribudo a empresas, fornecedores, ONGs parceiras e algumas faculdades. um projeto realizado com o patrocnio do banco Socit Gnrale, francs. Levantamos R$180 mil graas ao apoio da Lei Rouanet. O banco j nosso

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parceiro h dois anos no projeto chamado Comunicao e Educao para o Sculo 21, destinado a jovens de 15 a 21 anos. Eu conhecia uma funcionria do banco que tinha informaes sobre a Casa do Zezinho. Ela me levou ao Instituto Socit Gnrale, onde apresentei o projeto do livro e mostrei por que era inovador. Era um mundo que o diretor da empresa no conhecia. O que empresrios e executivos notam quando vm Casa do Zezinho so crianas pobres em um bairro de classe mdia no alto da montanha. Mas a primeira coisa que fao lev-los at a favela de onde realmente vem o Zezinho. De uns anos para c, tenho recorrido a outras leis como, por exemplo, a Lei Municipal de Incentivo Cultura (Lei Mendona), que permite a pessoas fsicas ou jurdicas patrocinar um projeto cultural e deduzir do seu Imposto Sobre Servios (ISS), ou do seu Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), uma parte do valor investido. Quando chegamos ao Capo Redondo, o local era zona de guerra. Observamos que as poucas palavras de que esses meninos dispunham para se expressar a precariedade de seu vocabulrio gerava violncia; eles entravam em conflito em qualquer tipo de negociao, o que acarretava agresso fsica e at mesmo mo armada.

Hoje tudo isso mudou completamente. Os moradores aprenderam a se organizar nos prprios bairros, criaram associaes e at mesmo negcios prprios. s vezes difcil reconhecer a importncia da cultura na formao do indivduo, mas o maior potencial dos moradores da periferia , sem dvida alguma, a capacidade de Articulao que eles adquirem por meio das Artes visuais, da msica e da dana. A princpio, a influncia que a criana mostra no bem aceita pela prpria famlia. Aos poucos, porm, conseguimos alterar esse estado de coisas. No ltimo inverno, uma de nossas educadoras presenteou um Zezinho com um cachecol. Os demais tambm quiseram ter cachecol... A educadora trouxe agulhas e novelos para quem quisesse aprender a fazer cachecis. Meninos e meninas se candidataram. Tricotaram e levaram seus trabalhos para casa. Foi com isso que a maioria das mes se lembrou do dia em que elas aprenderam a fazer tric. Houve dilogo. Tric tambm cultura. Temos outros projetos que queremos apresentar Lei Rouanet: a orquestra de tambores e um grupo de dana.

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danilo Miranda

cultura toda e qualquer produo do ser humano da pedra que virou machado na pr-histria fibra tica e engloba o domnio da matria e o processo de criao. o que torna a vida melhor e mais bonita, em todos os sentidos, incluindo a questo do simblico: a obra de Arte, a mais nobre de todas as manifestaes. Faz parte desse universo o processo que o homem desenvolveu para tornar-se capaz de conviver com a natureza, com o outro e consigo mesmo ao descobrir sua condio. Nesse sentido, a cultura tem grande abrangncia. Temos um imaginrio poderoso ainda em grande parte importado, mas adaptado nossa realidade o que o torna diferente do dos pases onde fomos busc-lo. Temos uma fuso de imaginrios. Nunca fomos to globais e nunca fomos to locais procuramos o equilbrio entre as duas tendncias e vivemos um momento em que se percebeu a importncia dessa realidade. Mas ainda h mais discurso do que prtica. Nosso Ministrio da Cultura conta com uma parcela nfima do Oramento da Unio. Alguns pases nem isso tm, o que torna nossa situao mediana; mas sabemos que, em outros, a cultura tudo. A Frana um exemplo: para ser o que , valoriza sua tradio cultural fortssima. H anos, quando Mitterrand ainda estava no poder, Jacques Lang, ministro da Cultura e herdeiro de grandes nomes como o de Andr Malraux, criou a ideia da administrao da cultura:

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ele no tratava do assunto Cultura dentro do seu ministrio, do ponto de vista administrativo, mas tratava de qualquer assunto que envolvesse cultura em qualquer ministrio. justamente o que tem de acontecer. Quando se deseja melhorar o sistema penitencirio, por exemplo, a cultura tem um papel a desempenhar; quando h necessidade de mudana de paradigmas comportamentais, a cultura tem um papel a desempenhar; quando a comunicao necessita de alteraes, a cultura tem um papel a desempenhar. Essa importncia da cultura ainda no chegou ao ponto de ser entendida como parte de um processo, mas alguns pases j chegaram a esse nvel de desenvolvimento. O Brasil j avanou bastante, mas ainda tem um longo caminho a percorrer. Quando dispunha da estrutura administrativa do Ministrio da Educao (que at hoje se chama Ministrio da Educao e Cultura MEC mas, na realidade, apenas Ministrio da Educao), a rea cultural era contemplada com recursos, uma vez que a reserva constitucional para a educao lhe garantia uma parte. Com a criao do Ministrio da Cultura, a reserva acabou questo tcnica, mas de peso. Ou seja, houve valorizao da cultura, que chegou ao nvel ministerial; mas, por outro lado, houve tambm desvalorizao, porque foram retirados recursos antes garantidos. Infelizmente, isso no foi resta-

belecido at hoje. Existe um discurso de valorizao da cultura, de transformar o Ministrio da Cultura em fora expressiva no pas mas, na prtica, o dinheiro previsto no oramento no chega a 1% do mesmo. O ex-ministro Gilberto Gil pretendia chegar a 1%. O ministro Juca Ferreira tambm. Em pases que seguem a cartilha da UNESCO fala-se no mnimo de 2% do oramento. O Estado tem de se envolver em duas reas: primeiro, a que eu chamaria de infraestrutura dando condies para que a cultura acontea em salas, museus, locais histricos, velhas igrejas, velhos centros espritas, velhas sinagogas antes de criar qualquer coisa nova, precisamos garantir o que est em precrio estado de conservao. A Lei Rouanet de alguma forma tem de contribuir para isso. Em segundo lugar viria o fomento: dar condies e dispor de aes efetivas para que aconteam concursos, cursos, bolsas, acesso para aqueles que iro criar e consumir. Ao Ministrio da Cultura no cabe realizar msica, teatro, etc. mas, sim, abrir caminhos para que estes aconteam. A Lei Sarney, que tinha aspectos prticos complicados, teve funo didtica porque criou um modelo. A Lei Rouanet gerou uma mentalidade por parte do empresariado e da sociedade brasileira. Cumpriu e cumpre essa misso e aqui reside a dvida a respeito da poltica de tbula rasa que a reforma pretende fazer.

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Esquecer e comear de novo seria errado. preciso ver o que est errado e tentar corrigir os erros. Est errada, por exemplo, a vinculao do marketing ao incentivo. A soluo o poder pblico exigir o que a lei j estabelece: o interesse pblico como critrio para a aprovao de projetos. No mercado de empresas privadas existem fenmenos curiosos que trazem benefcios principalmente para os bancos. Tais empresas criaram suas prprias estruturas ligadas cultura isso tem sido positivo para sua imagem mas deveria haver uma definio mais clara desses investimentos, patrimnio realizado com dinheiro pblico. No acho que isso seja totalmente negativo, mas tem de ser regulamentado. A Petrobras, por exemplo, empresa de capital misto, tem parte dos seus recursos vinculada a uma verba publicitria e de marketing. O que ela no pode fazer utilizar os recursos da Lei Rouanet, resultantes de renncia fiscal, como parte dessa verba de marketing. No pode ser o mesmo dinheiro. Essa mistura o grande defeito da lei, que tem de ser corrigido. Um Artista como o Roberto Carlos no precisa da lei, mas nada o impede de us-la, embora possa no haver interesse pblico em suas apresentaes. Quando falo em interesse publico, falo da expresso Artstica, de seu contedo e da possibilidade de permitir acesso

populao. Quem recebe recursos da Lei Rouanet no deveria vender o espetculo a preo de mercado. O Vale Cultura uma boa sada: vai trazer recursos para a cultura que iro estimular o acesso mesma. O eixo RioSo Paulo a regio do pas que produz informaes e forma opinies. Com o Vale Cultura, trabalhadores de todo o pas tero acesso a esses bens e podero consumi-los. Na virada do milnio, o SESC fez um levantamento para determinar o que estava acontecendo no pas na rea cultural. Era uma espcie de radiografia sem interveno nem de rgos governamentais, nem da imprensa, e nem mesmo dos SESC locais. Conseguimos localizar cerca de 150 produtores. Para que a populao brasileira conhea o trabalho nascido fora do referido eixo, preciso traar uma poltica que d condies para a realizao desse trabalho. No SESC, temos alguns programas como, por exemplo, o Palco Giratrio, que leva uma pea teatral do Amap para a Bahia; da Bahia para o Rio Grande do Sul; do Rio Grande do Sul para o Mato Grosso... Fazemos um giro de maneira objetiva. Trata-se de um grande festival nacional que lota as salas de espetculos. Temos de avanar. At o final desta dcada teremos um PIB de pelo menos US$ 3 trilhes e certamente mais de 200 milhes de habitantes uma realidade que nos vai colocar entre as cinco ou seis principais naes. Copa do Mundo, Olimpadas... tudo isso

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no passa de mero sinal; o mais importante descobrir nossa vocao em termos de cultura, de educao mas ainda no temos infraestrutura para tanto. Ainda existe espao para as leis de incentivo cultura, como a Lei Rouanet. O fator determinante deve necessariamente ser o interesse pblico. A lei clara nesse particular, que no obedecido. E o mecanismo de controle, de verificao e de acompanhamento ainda muito frgil.

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eliane costa

A Lei Rouanet foi criada em um determinado contexto. Hoje, a cultura tem nova conceituao e novos usos para o desenvolvimento, para a mediao de conflitos, para a questo da preservao patrimonial e, finalmente, como foco em algumas reas por exemplo, a das grandes exposies. Em um ambiente globalizado, onde so muitas as variveis, a cultura um vetor de desenvolvimento. Estamos no Rio de Janeiro, onde a periferia est no centro desafiando a prpria geometria. A cultura a ponte entre esses mundos partidos. O ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil, disse que a cultura possui trs dimenses: a simblica, a cidad e a econmica. Quando discutimos a Lei Rouanet, falamos de questes que jamais poderiam ter sido pensadas na poca em que foi elaborada. A cultura digital, as comunidades virtuais, os portais para a literatura, por exemplo, ainda no se enquadram na lei, embora estejam alinhados com a proposta do Ministrio da Cultura (MinC) de apoiar no s a criao cultural, mas tambm sua difuso. So diretrizes amplas e positivas. Sou admiradora da poltica pblica para a cultura elaborada pelos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira. Quando o ministro Gil tomou posse, lembro-me de que um jor-

Formada em fsica, Eliane Costa ingressou na rea de informtica da Petrobras em 1975. Atuou como produtora cultural independente. gerente de patrocnio da Petrobras

nalista lhe perguntou: Ministro, qual ser a caracterstica de sua gesto? Ao que ele respondeu: Abrangncia. Essa tnica vem subsidiando toda a ao do MinC se entendermos abrangncia

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como acessibilidade aos bens culturais e ao financiamento via editais, com melhor equilbrio regional da distribuio dos recursos. a democratizao do acesso nas duas pontas: para o produtor cultural financiar um projeto por meio de seleo pblica; e para o cidado poder assistir a um espetculo. Seria ideal que projetos em sintonia com a poltica pblica para a cultura conseguissem o patrocnio incentivado de 100%. Estou aqui me referindo cultura digital, mas no precisamos ir to longe: enquanto os projetos de msica popular podem receber 30% do patrocnio (Artigo 26), a lei permite um incentivo de 100% para a msica erudita (Artigo 18). Um projeto de msica popular da Paraba, por exemplo, que tem muitssimo menos oportunidades de acesso s fontes de financiamento, vai ter menos seduo para o empresariado interessado em investir em cultura do que outro, de msica erudita, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro ou de So Paulo. So distores. A legislao no permite hoje a abrangncia da proposta do MinC. A acessibilidade por exemplo, das pessoas que tm deficincias visuais, auditivas ou dificuldade de locomoo no recebe a ateno da Lei Rouanet. Acabamos de lanar um projeto, escolhido mediante edital de seleo pblica, chamado Musibraile, software que permite imprimir partituras em braile anteriormente s existia um mtodo vendido na Frana

por R$ 800 mil. O Musibraile destina-se a msicos com deficincias visuais que podero imprimir partituras em qualquer impressora e no apenas nas impressoras braile, que custam R$27 mil reais. No meu entender, tal programa deveria ter incentivo de 100%, mas a Lei Rouanet no prev isso: esse programa se enquadra na categoria msica, mas pressupe interveno da informtica, item imprevisvel em 1991. Deveramos tentar fazer com que os festivais de cinema se adequassem a essas pessoas: filmes com legendas para deficientes auditivos e udio-descrio para deficientes visuais. O incio da gesto do ministro Gilberto Gil marcou uma era na questo da poltica pblica para a cultura. Novos patamares para a construo da poltica pblica foram colocados de forma participativa, com fruns municipais, estaduais, nacionais e virtuais. Legislar de cima para baixo, de forma centralizada, bem mais rpido do que trabalhar de forma democrtica. Democracia d trabalho e leva tempo, mas os resultados tm mais validade e repercusso. Como cidad, sou entusiasta do contedo da poltica pblica e do seu modelo participativo de construo. Direitos autorais ou acesso ao conhecimento, por exemplo, constituem questes que so discutidas em um frum de cultura digital. essa uma nova forma de construir polticas pblicas para a cultura.

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O MinC conseguiu grandes avanos nos ltimos seis anos. Hoje, muitas empresas, privadas ou mistas, que no trabalhavam com editais de seleo dos projetos, aderiram a essa poltica e os selecionados mencionam solues de acessibilidade, preos de ingressos, apresentao em espaos alternativos mais disponveis populao como um todo. O estmulo aos editais de seleo pblica so um avano fundamental. At mesmo as organizaes que atuam no mercado privado como, por exemplo, a Votorantim e a Natura aderiram aos editais. Essa poltica fundamental para o acesso do produtor. A Petrobras tem um projeto o registro das canes de acalanto de mes indgenas de tribos do sul do Par, que dificilmente conseguiria patrocnio (at mesmo de uma empresa como a Petrobras, preocupada com a questo do registro de patrimnio material) se ele no tivesse chegado via edital de seleo pblica mesmo porque muitas empresas no tm acesso aos gabinetes ou esto mais preocupadas com a questo da visibilidade da sua marca. No nenhum demrito as empresas se preocuparem com sua prpria promoo. Acho que cada empresa tem sua poltica de patrocnio associada a um planejamento estratgico e a um posicionamento no mercado. A utilizao abusiva dos incentivos oferecidos pela Lei Rouanet, como a promoo de produtos ou a promoo da prpria empresa, existe cada vez menos. Claro que

no podemos generalizar, mas havia muito disso no mercado. O incentivo da Lei Rouanet a renncia fiscal; portanto, trata-se de recurso pblico. Acho bastante justo e os proponentes de projetos patrocinados entendem isso de forma natural que determinado projeto retorne para a sociedade de alguma forma: seja pelo seu produto final, seja pela contratao de estagirios, seja pelo intercmbio do conhecimento criado. Todos os festivais de cinema, teatro e msica que a Petrobras promove tm exibies gratuitas em escolas e praas e resultam em oficinas para a comunidade de Artistas locais. Essa uma atuao da Petrobras, no exigncia da lei; mas segue a poltica pblica de cultura iniciada pelo ministro Gilberto Gil e mantida pelo ministro Juca Ferreira. A Petrobras patrocina vrios projetos que trabalham com o fortalecimento da cidadania, construo do sentimento de pertencimento e recuperao de renda. a maior empresa patrocinadora da cultura brasileira h at mesmo pessoas no exterior que pensavam ser Petrobras uma produtora de audiovisual, uma vez que todos os filmes que l chegam so por ela patrocinados! Temos projetos dentro das reas discriminadas pelos editais e outros que chamamos de escolha direta projetos convidados pela empresa ou por ela apresentados e julgados aptos. So projetos de oportunidade. Alm disso, temos os projetos associados s polticas pblicas encaminhados pelo MinC, o que amplia

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nossa seleo pblica de editais externos. H basicamente trs frentes: projetos selecionados por editais, projetos da escolha direta e projetos da seleo pblica. De 2001 at hoje, recebemos 20 mil e poucos projetos ao longo de um ano. Temos mais de mil projetos escolhidos em processo de seleo pblica. A comisso selecionadora formada por pessoas externas companhia e soberana. Essa uma inovao que passou a ser seguida por outras empresas e constitui referncia no MinC, tanto na rea privada quanto na estatal. Neste momento, por exemplo, uma comisso de msica trabalha sob a coordenao de um funcionrio da Petrobras que no tem direito a voto. Quem vota so pessoas da rea de msica, tais como realizadores e crticos. Mais de 250 pessoas da rea acadmica, da imprensa e do mercado j atuaram nessas comisses. Para uma empresa como a Petrobras, que trabalha com o patrocnio de projetos culturais para agregar visibilidade e reputao sua marca, isso muito importante. Por outro lado, nem todo projeto projeto de mercado: os projetos so aes que o Ministrio da Cultura tem de empreender e que no podem disputar recursos com os proponentes que pleiteiam incentivos. preciso, porm, ficar muito atento ao problema de que um dos grandes usurios dos recursos disponibilizados pela Lei Rouanet o prprio poder pblico federal, estadual e municipal.

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Fbio cesnik

Na cultura, h uma avalanche de recursos sendo investidos em diversos segmentos. A Lei Rouanet possibilitou enormes avanos: no s permitiu a realizao de projetos, mas tambm profissionalizou o setor. Hoje h mais Artistas e mais produtores, mas existem tambm mais tcnicos, contadores, auditores e advogados especializados. Eu mesmo sou advogado especializado em direito administrativo e trabalho com cultura, esporte e terceiro setor. Existem trs formas de o produtor cultural buscar recursos incentivados por meio da Lei Rouanet: 1. ir atrs do dinheiro do Estado. Recorre-se ao Fundo Nacional de Cultura, mas 20% saem do bolso de quem deseja realizar o projeto (com exceo das emendas parlamentares e doaes vinculadas ao Fundo); 2. optar pelo modelo privado. O produtor cultural procura uma empresa e esta oferece todo o patrocnio; e 3. escolher o mecenato. O produtor submete um projeto ao Ministrio da Cultura ou a outro mecanismo de incentivo em outra esfera do governo. Se o projeto preencher os quesitos e for aprovado, recebe uma chancela. De posse da chancela, o produ-

Advogado, scio da Cesnik, Quintino e Salinas Advogados, Fbio Cesnik autor do livro Guia do Incentivo Cultura e co-autor dos livros Projetos Culturais e Globalizao da Cultura

tor ento procura uma empresa disposta a transferir o dinheiro para o projeto. Esta opo dar ao financiador o direito de abater entre 64 e 100% de seu Imposto de Renda devido.

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O mecenato como indutor de poltica no pode acabar, pois excelente. Os incentivos so instrumentos tticos que tm de se perpetuar e ser aperfeioados. O Estado, quando regulamentou a Lei Rouanet em 1995, vendeu a ideia do investimento em cultura como estratgia de comunicao. Criou uma cartilha chamada Cultur , Bom Negcio. Havia textos do Ministrio dizendo que os empresrios poderiam abater parte do Imposto de Renda e fazer marketing com o dinheiro do incentivo fiscal. Os empresrios entenderam que poderiam ser agentes ativos do processo. O Estado vendeu o modelo e, ato contnuo, endeusou o investimento em comunicao. No momento seguinte, porm, demonizou quem havia optado por isso. O processo ficou muito do lado do marketing, por conta do que foi vendido pelo prprio Estado. Mas isso nada tem de ilegal. Em matria de renncia fiscal da Unio, os incentivos cultura representam uma parcela muito pequena dos incentivos concedidos a outros segmentos. Para entender a razo de ser das leis de incentivo, preciso entender que elas so criadas para atender algum tipo de poltica pblica. A reduo do IPI na venda de automveis, por exemplo, tem em vista a manuteno da gerao de emprego e de renda dentro do setor automobilstico. O incentivo ao papel jornal que permite os jornais chegarem s nossas casas com

o preo de costume fruto do compromisso do Estado com a renncia de impostos (esses de natureza constitucional). No caso da cultura, a poltica pblica que est por trs da criao das leis de incentivo ainda se acha mal resolvida. Se imaginarmos que haver desenvolvimento social e econmico, as leis tm cumprido o seu papel mas isso est ocorrendo de maneira pouco ordenada e, s vezes, desequilibrada. A Lei Rouanet tem de permanecer em vigor. Mas o que precisa ser mais bem desenvolvido questo nada grave em relao ao mecanismo pensar, do ponto de vista das polticas pblicas, como e onde queremos e podemos chegar. No futuro, tal como agora, a Lei Rouanet ser criticada do ponto de vista da distribuio regional dos investimentos. Desde o momento em que foi concebida, sabia-se que as regies com maior nmero de empresas com lucro real e maior possibilidade de investir na cultura seriam as do Sudeste. Hoje a crtica no apresenta nenhuma novidade. No caso do Vale Cultura, o modelo est sendo pensado da mesma forma: quem pode destinar dinheiro ao Vale Cultura a empresa tributada no lucro real, e somente ela. (O Vale Cultura, na verdade, no faz parte da Lei Rouanet, mas pertence a outra lei autnoma, nova). A Lei de Incentivo ao Esporte d 100% de incentivo em todas as atividades esportivas financiadas, na atividade do desporto

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educacional, na de participao e na do desporto de rendimento. Com relao ao desporto educacional, metade dos que atuam nas aes educacionais realizadas por meio da lei tem de ser proveniente da rede pblica de ensino um critrio social da lei. As atividades de lazer e participao tm de ser realizadas prioritariamente em reas de vulnerabilidade social, item que leva construo de quadras em favela, por exemplo. J o desporto de rendimento estimula a formao de atletas para competies. O foco justamente esse e no tem, a priori, a preocupao de desenvolvimento social mas, sim, a de formao de atletas. esse o olhar que ainda no temos quando trabalhamos com a Lei Rouanet. Quando perguntaram ao ministro do esporte se ele achou injusto que o treinamento de jogadores que, no futuro, seriam vendidos por milhes ao exterior fosse realizado com o dinheiro do Estado, ele respondeu que isso significava que o projeto dera certo. Se o desenvolvimento de projetos de rendimento gera bons jogadores e estes representam lucro aos clubes, sinal de que o projeto foi vitorioso. Na rea da Rouanet, criou-se o mito de que tudo deve ser social. Toda vez que o projeto de um Artista famoso aprovado, essa perspectiva social teria de estar presente? Como podemos olhar para um projeto dessa natureza sob um ponto de vista social? Desenvolver um projeto de mercado como, por exemplo,

possibilitar a vinda do Cirque du Soleil para o Brasil significa gerar emprego e renda. O debate, porm, tem muita hipocrisia em relao ao valor dos ingressos, por exemplo. Antes de definir onde a lei tem de verter suas prioridades, preciso traar polticas diferentes para coisas que so diferentes. Existe preocupao com as prioridades tanto por parte do governo quanto do setor privado, o que mostra que as pessoas j esto bem conscientizadas. O debate em torno da Lei Rouanet tem dois pontos: primeiro, precisamos definir aonde queremos chegar em termos sociais e econmicos; segundo, lembrar-nos de que esse mecanismo convive com outros. Mexer nos instrumentos de financiamento da cultura significa trazer todos os mecanismos para o mesmo debate na medida em que disputam a mesma rea. Em tempo: hoje, poucas pessoas fsicas investem em cultura parte de seu Imposto de Renda devido. So as empresas que fazem esse tipo de investimento, esperando retorno para suas marcas. Para as pessoas fsicas que tm 6% de seu IR disponveis, h mais de uma opo: investir em cultura (Lei Rouanet), cinema (Lei do Audiovisual), esporte (Lei do Esporte) ou infncia (Estatuto da Criana e do Adolescente).

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Heloisa Buarque de Hollanda

Trabalho em duas frentes: numa empresa onde se editam livros e se realizam eventos, seminrios e exposies; e na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde coordeno o Programa Avanado de Cultura Contempornea. A Universidade tem seus prprios canais de financiamento, tais como o CNPQ mas na primeira atividade que, desde o comeo, tenho viabilizado todos os meus projetos com o apoio da Lei Rouanet. Desenvolvo projetos culturais ligados literatura: o Portal Literal site oficial de cinco grandes autores (Lygia Fagundes Telles, Ferreira Gullar, Rubem Fonseca, Luis Fernando Verssimo e Zuenir Ventura) de uma revista online chamada Idiossincrasia, de resenhas e Artigos, nasceu em 2002. Desde 2008, o Portal Literal passou a ser 2.0, ou seja, abriu-se a um formato colaborativo no qual, a partir da votao de seus pares, qualquer interessado pode ver seu trabalho nele publicado. O Portal, desde o comeo, tem o patrocnio da Petrobras. Sua insero dele na Lei foi extremamente problemtica porque a Lei no estava preparada para absorver projetos da rea digital. Onde colocar o Portal no mbito das categorias da Lei? A Lei do Audiovisual, opo aparentemente possvel, mostrou-se invivel, porque no admitia incluir literatura, ainda que em mdia digital. Todas as renovaes deste patrocnio trouxeram problemas por conta do despreparo da Lei para lidar com novas linguagens. necessria

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uma reviso da Lei Rouanet. Ela deveria, alm disso, reconhecer que estamos numa era digital. No nosso caso, queramos apenas divulgar literatura em grande escala, sem qualquer inteno comercial ou de venda de livros. Mas para a lei literatura livro e s reconhecida no formato impresso... Outro srio problema da Lei Rouanet o tempo exigido para a formatao e aprovao do projeto e obteno do patrocnio. No h mecanismo pr-determinado. Quando, porm, surge algum problema a como, por exemplo, a mudana de um funcionrio o processo acaba ficando travado. Em consequncia disso, pode acontecer de se perder um patrocnio por decurso de prazo. Passa o ano e todo o processo tem de ser reiniciado. Quando se tem o patrocnio assegurado, inclusive mediante a apresentao de uma carta de inteno, no certo que o tempo de aprovao na Lei vai conseguir ser sincronizado com o tempo de garantia daquele patrocnio. No existem na Lei mecanismos prprios para esses casos de patrocnio j assegurado. Eu mesma j perdi dois patrocnios grandes porque o projeto no foi aprovado a tempo. Para se conseguir uma aprovao a tempo, importante preverem-se idas a Braslia, pois existe aqui [no Rio de Janeiro] uma auditoria que no tem poder decisrio. A existncia de uma ouvidoria local com maiores poderes facilitaria bastante. Tem-se de investir em passagem e estadia para

ir a Braslia e verificar o andamento do projeto. Isso deveria ser feito regionalmente. Quanto mentalidade reinante, tive um projeto, por exemplo, do fotgrafo brasileiro Alair Gomes, j falecido, que estava expondo na Frana. Eu tinha todo o material em mos para produzir um livro e uma exposio; planejava um grande evento, pois o fotgrafo era muito bom. Ao procurar patrocnio, disseram-me que ele no era bom para a imagem da empresa porque gostava muito de fotografar rapazes na praia. A obra dele, porm, no agressiva nem pornogrfica; simplesmente uma questo geomtrica, de luz e sombra. Ento, na verdade, tanto a pessoa dele quanto o tema por ele escolhido estavam sendo alvos de crtica injustamente negativa. Depois de algum tempo, organizei um guia gay chamado Rio Diferente, muito legal, falando do Rio de Janeiro, comentando fatos observados na cidade agora eleita paraso gay. Apresentei o projeto Johnson & Johnson; mas no consegui o patrocnio, porque no guia eu mencionava at mesmo camisinha e AIDS. No consegui patrocnio de nenhuma empresa, pois a temtica era homossexual. Existe muito disso o af de no associar imagem da empresa noes tidas por algumas pessoas como negativas. Mas a Johnson & Johnson no fabricante, entre outras coisas, de camisinhas? Tenho um filho que cineasta e

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est fazendo uma coisa chamada Arte Pornogrfica, com grandes nomes das Artes plsticas como, por exemplo, Cildo Meirelles. Meu filho tem encontrado muita dificuldade para fazer o que eu chamaria de obra pornogrfica, e a respeitabilidade de alguns dos autores questionvel. Isso at d para entender um pouco; eu gostaria de agregar minha imagem figura do Meirelles, mas no sei o que isso significa em termos de uma empresa vincular-se a um patrocnio desses. As empresas agora gostam do social, com cultura de periferia e marketing social. O verde tambm; no trabalho nessa rea, mas podemos dizer que existem dois polos hoje o social e o verde ou, ento, grandes obras da humanidade que no se encontram em nenhuma dessas duas vertentes. Ideias novas so de difcil aceitao. Essa noo de verde um lance de marketing das empresas. As empresas gostam do social porque agregam uma imagem. No sei se isso veio por conquista das periferias; acho que o marketing social tem hoje um valor profundo e, claro, traz benefcios comunidade. Podemos dizer que as pessoas, de alguma forma, esto chegando s questes culturais. E a Lei Rouanet tem a papel muito importante. O aspecto de maior valor da Lei Rouanet tem at agora sido a Arte, a literatura e a msica. Considero Gilberto Gil um gnio, pois foi o primeiro Ministro da Cultura que estendeu esse patrocnio para o Brasil inteiro. Meta-

de dos Pontos de Cultura no funciona mas isso pouco importa, pois h um conceito para a poltica cultural. No era possvel continuar tudo nas mos s do Carlos Barreto ficar nas mos de muito pouca gente. Foi do Gil a ideia de que criar cultura muito mais ampla do que fazer cinema. A partir disso ele criou os Pontos de Cultura, que valem mais como conceito. Isso ampliou a maneira de olhar para o Brasil e para a cultura. Cultura passou a ser uma coisa mais vasta. H muito material, uma economia criativa. Tecer tapetes, por exemplo, passou a ser considerado cultura. Constataram-se outras formas de reconhecimento de cultura, de patrimnio cultural, e a segunda coisa que Gil fez foi abrir espao para a era digital, que ainda no foi metabolizada pela lei. De qualquer forma, foi ele que possibilitou isso. A fulminante gesto dele marcou um avano na perspectiva. Estou lendo um livro chamado Free, do Chris Anderson, onde h um captulo sobre o Brasil e a gesto Gilberto Gil. um best-seller americano sobre direito autoral compartilhado, um livro top de linha. As possibilidades vislumbradas j transpem um pouco o eixo RioSo PauloBraslia. Estou elaborando, por exemplo, a coleo Tramas Urbanas. Ao todo sero vinte livros. Foi muito difcil encontrar material fora desse eixo, mas eu sabia que era preciso encontrar. Fui procurando e achando e, se no fosse pela presso que senti, isso no teria ocorrido. Tramas Urbanas so movimentos

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culturais da periferia, contados por seus protagonistas. No eixo RioSo Paulo mais fcil, por ser evidente. Neste momento vou lanar um guia do Recife, a respeito de Arte eletrnica na favela. Dentro desse movimento h um personagem no Par que se chama Pablo Capil inventor de um sistema financeiro chamado CuboCard. Ele inventou um carto de crdito de trocas e fez uma relao de preos de servios. Dessa forma, tantas horas de estdio de gravao valem tantos pontos no CuboCard. A impresso de discos vale outros tantos. tudo eletrnico. Por exemplo, um grupo do Rio Grande do Sul que no tem dinheiro para gravar um CD consegue algum que faa a gravao em troca de um servio com o CuboCard. um escambo formal entre vrias reas culturais. Os Pontos de Cultura ajudam muito a descobrir o que h de interessante e inovador sendo feito fora do eixo cultural tradicional, porque do acesso a um catlogo de produtores. H um evento anual de que eu sempre participo e que se chama Teia, realizado cada vez num estado diferente, juntando todos os Pontos de Cultura. Esse encontro fundamental para se conhecer o que h de bom na cultura brasileira. Alem disso, a internet instrumento poderoso par dar acesso a esse tipo de informao a pesquisadores. Trabalhei com literatura desde muito jovem a princpio com literatura de resistncia

ao governo militar, depois com literatura produzida por mulheres e literatura de negros excludos. Cheguei favela mas, pela minha prpria trajetria profissional, sempre trabalhei com literatura off, perifrica. Minha tese de doutorado foi sobre a poesia marginal, uma poesia de contracultura e de resistncia ao governo militar. Do ponto de vista do efeito da internet na literatura, interessante dizer que, ao contrrio do que se imagina, as pessoas, principalmente as das camadas jovens, esto lendo muito mais e escrevendo muito mais. No Japo, a febre da escrita jovem grande e at se cunhou o termo bookaholic. Os jovens japoneses leem livros de celular, escritos em fragmentos e enviados pelo Twitter. So livros mesmo, s vezes grandes, so romances de celular em minicaptulos. H um, por exemplo, que, quando impresso em forma de livro/papel, vendeu imediatamente duzentos mil exemplares para adolescentes daquele pas. a histria de um adolescente com cncer que tem uma namorada pela qual apaixonado. Ele no quer que ela saiba da doena dele. Num folhetim de cem pginas, o autor descreve seu drama. No Brasil, por outro lado, temos o fenmeno novo do mercado infanto-juvenil em franco desenvolvimento. Falo da literatura impressa em papel mas, por exemplo, um outro gnero que os adolescentes gostam muito o que se chama de fanfiction (literatura de fs). Quem f de um livro ou de um autor se d

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o direito de reescrev-lo, inventar novos destinos para os personagens, inserir novas situaes, etc. Machado de Assis, por exemplo, tem vrios de seus romances em verses fanfction. Na periferia, a literatura completamente diferente. A literatura de periferia no sentida apenas como um prazer, no uma expresso individual de sentimentos e experincias apensas. isso tudo e mais um recurso de insero social e educacional. A leitura e a escrita so instrumentos de gerao de renda, de ascenso social e so assim valorizadas. Literatura poder. Ferrez tem um exemplo interessante: antes de falar de literatura, ele diz que para se passar de jardineiro a paisagista, tem-se de estudar e ler muito. E ento menciona a diferena de salrio entre um e outro. Em So Paulo h um sarau de periferia chamado Coperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), com Srgio Vaz, que estimula a formao de leitores. um tipo de encontro hiphop, com rappers e poetas. O encontro se d toda quarta-feira num bar chamado Z do Batido, com quatrocentas pessoas recitando poemas. Paralelamente, na periferia vrias lojas de objetos de consumo como tnis, bons, etc. vendem tambm livro, que assim exibido como objeto de desejo, de consumo. O problema que a Lei Rouanet no prev essa Arte informal, digital, descentralizada da atualidade em suas rubricas. Com isso, muitos projetos ficam emperrados.

As empresas esto aplicando dinheiro contando com o retorno para sua marca. Eventualmente, eu ganho dinheiro com projetos, mas no com a captao. Num projeto de R$200 mil eu ganho R$10 mil. Trabalho seis meses, e no posso cobrar mais que isso; caso contrrio, o projeto no se realiza. At a gastei muito mais, com telefonemas, com a equipe de mais duas pessoas e com a manuteno do escritrio da editora. No d para viver dos projetos, pois a lei no garante captao justa. Um assunto que est sempre em pauta, mas no se concretiza, o da acessibilidade. Os institutos que tratam disso realizam um trabalho louvvel, mas o dinheiro que deveria ser socializado na realidade no o , pois acaba voltando-se para a imagem da empresa. Melhor no ter esse trabalho do que faz-lo para enriquecer as pessoas que esto promovendo o projeto. O patrocnio deveria ser feito com recursos da prpria empresa, e no com as compensaes fiscais previstas pela Lei. Da maneira como vem sendo feito, servio de marketing empresarial. Meus projetos nunca passam dos R$200 mil, e eu consigo no final captar um pouco menos. O Portal mais caro, R$300 mil. O prazo para captao tambm um problema srio. Consegue-se o patrocinador, mas a aprovao na Lei no est finalizada. H dois ou trs anos houve um problema interno, e a aprovao se atrasou por um ano. Acabamos perdendo o patrocnio.

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leonardo Brant

As mudanas no desenvolvimento cultural, se compararmos o Brasil de hoje e o Brasil de h 18 anos, no so estatisticamente calculadas. Pensemos no perodo de abertura poltica, na transio democrtica e no que a poltica cultural diante desse processo. Da chegada da Coroa ao Brasil ao governo Collor houve forte e paternalista relao entre cultura e Estado o que pode ser considerado at mesmo perigoso. O ex-presidente Fernando Collor de Mello (19901992) desmanchou nosso aparato institucional e, particularmente, de poltica cultural. A Lei Rouanet surgiu como novo elemento poltico-cultural quando foi instituda em 1991, durante seu governo. Ficou paralisada por um bom tempo, pois no havia condies para o seu funcionamento, mas desenvolveu-se confirmando predicados e intenes do legislador, ou seja, promoveu uma cultura sustentada basicamente na relao entre economia de mercado e iniciativa privada. Fez da cultura mercadoria. O governo era o regulador dos recursos e foi assim que a iniciativa privada passou a desempenhar um papel importante no processo. O Artista e o produtor cultural ficaram na trincheira entre empresas e Estado. O fortalecimento da indstria do cinema e da msica, no fi-

Leonardo Brant pesquisador de polticas culturais, presidente da Brant Associados, autor do livro O Poder da Cultura, entre outros, e editor do site Cultura e Mercado

nal da dcada de 1990, foi creditado Lei Rouanet e tambm Lei do Audiovisual. Filmes como Carlota Joaquina, por exemplo, foram patrocinados por esses mecanismos. O boom do showbiz

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ligado s Artes cnicas, s grandes festas populares, que no existia h 18 anos, tambm surgiu em decorrncia da Lei Rouanet. Alm disso, um nmero enorme de centros culturais, museus e festivais surgiram no pas. Hoje no se tem um volume de recursos garantidos para o setor cultural. A referida lei poder ser reformulada, ou at mesmo revogada, para dar lugar a outra. H muita desinformao com relao ao papel constitucional do Estado na cultura. Para a demanda de hoje, precisamos buscar outras formas de sustentabilidade. Produtores e Artistas sabem que a fronteira com o setor privado tambm contraditria e conflituosa: oferece benefcios para o processo de criao o mercado cultural, evidente, est formando uma base mas no existem fundamentos para uma relao de mercado. A indstria que se formou foi turbinada porque recebeu muito dinheiro. Houve investimentos, mas a cadeia econmica como um todo no foi atendida. Estaramos fundando uma relao empresarial com o Artista e inserindo em seu universo um tipo de conhecimento e de exigncia que ele no domina? O Artista estaria mesmo perdendo um pouco de sua relao com o pblico, pois no depende deste para sobreviver? Tenho trabalhado na criao de um fundo pblico autnomo, no governamental, para que a prpria sociedade aprenda a ge-

rir o seu imaginrio. Reuniria vrias instncias de representao. Atualmente, nas comisses, existe um representante das Artes visuais e outro de cinema, por exemplo. Tais representantes no esto aptos a definir reas que precisam ser financiadas, pois no tm distanciamento tico para isso. , ento, necessrio que a sociedade se aproprie desses mecanismos. A Arte no seria algo que precisa de sustento mas, sim, o sustento da sociedade. Na Inglaterra, existem recursos das loterias canalizados para conselhos regionais de Artes, geridos pela sociedade, que define a poltica da regio e distribui o dinheiro local. As pessoas que compem tais conselhos so cidados comuns. Os resultados so fantsticos. A viso da diversidade cultural das mais contemporneas: a cultura a que se faz l. No importa de onde o Artista seja originrio, desde que ele crie e se expresse em territrio do Reino Unido, pois isso representa uma vantagem para esse pas. O ingls vai a uma casa lotrica e deposita seu dinheiro para financiar Arte. Para ele, como recompensa, pode haver um prmio (aqui no Brasil, quem vai loteria o faz to somente porque quer ficar rico). A ideia j foi discutida e, inclusive, j existiu um projeto nesse sentido no Brasil, mas houve tambm resistncia da prpria Caixa Econmica, que considerou o modelo ingls invivel. Quem entende de loteria a Caixa e no o Ministrio da Cultura... O assunto pode ser retomado.

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Um dos problemas da cultura a falta de dinheiro, mas esse no o seu maior problema. Problema maior a percepo da nossa sociedade em relao cultura. J somos um pas muito avanado em termos culturais. Cultura compensa nossa fragilidade educacional. O Brasil tem um problema de formao tcnica de base e de acesso ao conhecimento, mas as pessoas esto evoluindo, apesar de no terem bases educacionais. O que fez com que uma pessoa alfabetizada aos 16 anos, que no teve acesso ao aparato educacional, se desenvolvesse diante das questes que afligem a ela e comunidade qual pertence? A partir de relaes culturais estabelecidas por ela e seus iguais, tal pessoa foi capaz de buscar solues para seus problemas. Isso o que eu chamo de dinmica cultural: buscar solues por meio da convivncia, da participao cvica. Existe uma gama enorme de redes socioculturais montadas a partir dessas questes. A questo da sociabilidade uma questo cultural que est muito atrelada ao desenvolvimento de uma nao, da tica e da prpria sobrevivncia. Tem, pois, de ser incentivada. O Estado brasileiro precisa reconhecer melhor essas dinmicas e conseguir recursos para potencializ-las. o que o ministro Gilberto Gil (20032008) chamou de o cultural antropolgico. O pas, porm, no possui mecanismos para ativar essa nossa capacidade.

O incentivo aos gris (regionalismo brasileiro correspondente ao termo francs utilizado para nomear os mestres africanos que transmitem sua cultura por meio da narrao oral), por exemplo, parte integrante do Cultura Viva, programa interessante e inovador que se formou mas, pelo menos por enquanto, se mostrou frgil do ponto de vista institucional. uma pena mas so parcos os recursos para ativar as capacidades culturais, as formas de sociabilizao, de troca, de dilogo, que propiciariam a busca pelas sadas para os nossos prprios problemas. Em Braslia, os funcionrios governamentais, fechados para o mundo, atendendo demandas polticas e miditicas, se desvinculam da realidade. Do nosso dinheiro, 30% vo para a educao. No falta de dinheiro. Se o Estado tiver responsabilidade em relao cultura, vai saber reconhecer as dinmicas culturais, criar uma estrutura de acesso e garantir os direitos de expresso dos cidados. Mas h tambm a percepo da importncia da cultura: quando o Presidente diz que aqueles livros no servem para nada... Lula a sntese do povo brasileiro, que sente orgulho da prpria ignorncia, um dos entraves ao incentivo cultura. Garantir o conhecimento cultural significa possibilitar acesso cultura. Isso s se realiza com investimento: preciso termos um centro, uma biblioteca, uma hemeroteca. preciso termos internet.

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Vivemos em um pas capitalista e a Arte precisa achar um lugar dentro do capitalismo para se manter. necessrio encontrar uma brecha, pois o Estado agora quer ser copatrocinador de cultura. Se as empresas esto patrocinando cultura e ditando seus interesses comerciais, o governo, copatrocinador, tambm visar aos seus interesses. Isso muito perigoso! No por a que o Estado tem de entrar. O ser humano se constitui a partir do imaginrio. Ele cria um referencial para si mesmo e para a organizao social. A Arte, o cinema e a msica so a ponte para isso. Sem imaginrio, a gente no existe: o dinheiro smbolo, papel to simblico quanto a Monalisa, uma escultura ou fotografia. Quem agrega valor a ele o nosso imaginrio coletivo, que se alimenta de Arte. Precisamos beber em todas as fontes e saber processar isso dentro de um ambiente rico e bem potencializado pelo compromisso pblico.

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Mara Mouro

Fiz trs longas-metragens e estou editando o quarto. Meu primeiro trabalho de direo e roteiro foi o longa--metragem Al?!, de 1998, financiado pela Lei Rouanet quando esta era ainda bastante desconhecida. Para esse trabalho, contamos com Myriam Muniz, uma das protagonistas, que por ele recebeu o prmio de melhor atriz. O segundo foi Avassaladoras, produzido em 2002 com o apoio financeiro j no do Ministrio da Cultura (MinC) mas, sim, da Agncia Nacional de Cinema (Ancine); o projeto foi viabilizado pela Lei do Audiovisual, de 1993, destinada a projetos de cinema, e se transformou em seriado de televiso. O terceiro, Doutores da Alegria, e o quarto, sobre empreendedores sociais, so documentrios e tambm foram financiados pela Lei do Audiovisual. Os documentrios nem sempre so curtos. Doutores da Alegria, por exemplo, tem 90 minutos de durao. Mostra os palhaos que visitam crianas internadas em hospitais mas, na verdade, examina tanto a filosofia do palhao atrs do nariz vermelho quanto sua capacidade de observar a vida por um ngulo diferente. As leis de incentivo fiscal possibilitaram o renascimento do cinema brasileiro e so a forma mais utilizada de fazer filmes no

Mara Mouro diretora e roteirista. Dirigiu comerciais, curtase longas-metragens, vdeos e documentrios. Tem vrios trabalhos premiados no Brasil e no exterior

Brasil mas existem distores. Em primeiro lugar, no temos um mercado slido e lucrativo por vrias razes: o Brasil possui poucas salas de exibio por

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habitante (em torno de duas mil, quando deveramos ter no mnimo cinco mil, se compararmos nossos ndices com os de outros pases da Amrica Latina) e a maioria das nossas cidades nem cinema tem. Em segundo lugar, o ingresso carssimo uma famlia de classe mdia, com dois filhos, no consegue ir ao cinema sem gastar pelo menos R$100,00. Isso pesa! Existem vrias razes para os ingressos serem to caros; uma delas a meia-entrada. Dizem que h gente que quer mudar esse quadro, criando um ingresso nico com valor situado entre o da meia-entrada e o da inteira. Outra questo que os projetos viabilizados graas Lei do Audiovisual no precisam necessariamente gerar lucro nas bilheterias, uma vez que as somas aplicadas sero descontadas na hora de pagar os impostos, tenha o filme sido bem sucedido ou no. Outra crtica s leis de incentivo que estas no democratizam o acesso cultura, pois quem est nos grandes centros como So Paulo e Rio de Janeiro tem mais facilidade de chegar s empresas privadas do que quem est fora desse eixo. Outro fator que poucas pessoas tm acesso s empresas privadas. Existe tambm o risco de o produtor ficar na mo de uma cultura pasteurizada pelas leis de incentivo. O que deve ser produzido culturalmente pode vir a ser delineado pelos departamentos de marketing ou de finanas das empresas patrocinadoras. Empre-

endedorismo social, sustentabilidade e ecologia so temas benvindos na atualidade. Filmes experimentais ou mais polmicos tm mais dificuldade de ser aprovados. S se consegue fazer um filme com temticas mais pesadas porque alguns editais da Petrobras e de algumas grandes estatais levam em considerao outros fatores como a carreira e a importncia do ator, do diretor ou do roteirista. Por outro lado, h o mercado consumidor, que pode oscilar de acordo com o parque de exibio ou o preo do ingresso. Apesar dessas dificuldades, o cinema nacional conseguiu chegar a um patamar de bilheteria equivalente a at 20% dos resultados alcanados por filmes americanos, ou cinco milhes de ingressos. A ndia tem Bollywood porque a televiso no dominante. A Nigria, Nollywood DVDS distribudos por camels que movimentam uma enorme indstria do cinema. No nosso pas, a cultura da televiso muito forte e domina o audiovisual brasileiro. No deveria ser concorrente; deveria, sim, ser parceira e poderia representar uma forma de escoar a produo cinematogrfica. Em vrios outros pases, a produo cinematogrfica recebe parte do faturamento da televiso, mas isso no ocorre no Brasil. Antigamente a televiso brasileira no comprava contedo independente. Ela j foi to distante do cinema nacional que, no incio dos anos 1990, os dois eram praticamente inimigos. Essa

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relao est mudando graas estratgia de algumas emissoras e no obrigatoriedade imposta por alguma lei. A tev percebeu que tambm poderia fazer dinheiro com o cinema nacional e passou a investir em produes com temtica prpria que pudessem dar retorno financeiro. Assim, algumas sries se transformaram em filmes. Os Normais e O Auto da Compadecida, por exemplo, que eram seriados da TV Globo, tornaram-se filmes. O processo inverso tambm ocorreu: alguns filmes foram lanados na televiso e depois exibidos em salas de cinema. A partir de certo momento, a Globo Filmes decidiu financiar longas-metragens independentemente de sua grade televisiva e oferece tempo de mdia na poca do lanamento. Existem dois modos de parceria coproduo e apoio, que se verificam em diversos nveis. A TV Cultura de So Paulo j apoiou o cinema promovendo um concurso: o filme ganhava uma verba e, em troca, era veiculado pela emissora. Nos Estados Unidos, onde no h lei de incentivo fiscal, a indstria cinematogrfica levanta emprstimos bancrios ou recorre a outros mecanismos financeiros que possibilitam a produo. Os custos de produo e divulgao tm de ser amortizados. Se no houver possibilidade de retorno via bilheteria, simplesmente no haver filme. Obviamente, os produtores perdem em alguns filmes, mas ganham em outros e, dessa forma, o cinema

se torna rentvel. O produtor independente tambm precisa conseguir um financiador e sofre muito com isso. No Brasil, como o dinheiro da bilheteria dificilmente cobre os investimentos realizados, o prprio sistema financeiro no se dispe a correr o risco de conceder emprstimos. Se o fizesse, talvez pedisse todos os bens do produtor como garantia e quantos produtores tm o dinheiro equivalente a um financiamento? As leis de incentivo fiscal tm data para acabar e ningum sabe o que acontecer com a indstria cinematogrfica brasileira quando isso ocorrer.

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Mequita andrade

A Lei Rouanet entrou em vigor desde sua publicao oficial, em 1992 mas, do governo Collor ao governo Itamar, embora homologada e regulamentada, praticamente s existiu no papel. Foi na primeira gesto de Fernando Henrique Cardoso (1995-1999), com Francisco Weffort no Ministrio da Cultura, que esse benefcio para a cultura brasileira comeou a ser utilizado e, seu uso, aprofundado (Weffort seria o ministro nos dois mandatos do tucano, de 1999 a 2003). O importante que a lei que permite a aplicao de recursos em troca de dedues tributrias foi utilizada principalmente por empresas privadas que investiram em cultura. Fui coordenadora da Lei Rouanet na Secretaria de Livro e Leitura do Ministrio da Cultura (MinC). Tivemos a oportunidade de documentar e registrar a histria cultural do Brasil. Houve investimento e produo na rea editorial vrios livros, principalmente de pesquisa na rea de patrimnio e restaurao que no poderiam ser lanados comercialmente por serem caros, foram editados. Um exemplo a publicao baseada numa pesquisa sobre a msica barroca, que no teria sido vivel sem o auxlio da lei. Alm de dicionrios, editamos obras que registram a rica diversidade cultural do Brasil. Foi um momento difcil e diferente para o pas. Queramos estimular o hbito da leitura, principalmente na poca em que se comeou a falar insistentemente do

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analfabetismo funcional. Mas acredito que em todas as reas da cultura teatro, msica, dana houve acrscimo e estmulo graas Lei Rouanet. Conseguir verbas para financiar projetos culturais era difcil para todos. Acompanhamos exemplos importantes, como o do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN), que ento se deparava com problemas financeiros para realizar uma obra de restauro, mas conseguiu verbas por meio do incentivo fiscal. O investimento realizado por uma empresa patrocinadora podia at favorec-la do ponto de vista mercadolgico, mas uma igreja que estava desmoronando estava sendo restaurada e era isso que importava naquele momento. Fazer com que a lei ficasse conhecida por todos foi nossa prioridade. As dificuldades eram grandes: precisvamos que a Lei Rouanet certificasse os projetos culturais que passavam pela avaliao tcnica: o contedo qualitativo era mais importante que o preo. Outro ponto importante era a prestao de contas, pois ali se estava criando um modelo. Para se ter uma ideia, recebamos mensalmente mais de 300 projetos culturais para avaliao. O problema que, de cada 100 que o MinC aprovava, menos de 20% conseguiam levantar recursos de patrocnio no mercado. Nesse sentido, acho que por parte do ministrio existia um grande trabalho que estava simplesmen-

te sendo desperdiado tnhamos que divulgar a existncia da lei e democratizar o acesso do patrocnio ao produtor. Era uma situao que seria considerada insustentvel em qualquer organizao e em qualquer momento da histria, uma vez que a lei no dispunha de recursos. Mas assim foi nascendo uma nova categoria de profissionais: produtores culturais, analistas de projetos, restauradores e captadores. Os captadores, por exemplo, eram pessoas que tinham entrada nas empresas e que, pela prpria lei, tinham direito a uma remunerao equivalente a 10% dos investimentos. Isso causava certo desconforto, pois existiam projetos milionrios, como os da rea de restauro do patrimnio. Alguns ajustes, ainda na gesto de Weffort, foram feitos, mas o volume era demasiado grande e havia pouco dinheiro para realizar as mudanas de forma rpida e democrtica. Para contornar a questo, estabelecemos um teto de R$100 mil para o captador, por projeto, mas no sei se isso foi a soluo para tudo. Tambm no sei se o ministro Gilberto Gil manteve essa norma em sua gesto, mas acredito que ele tenha adotado vrios dos modelos desde o incio. Voltando ao assunto do estmulo leitura, em 2007, j fora do MinC, idealizei o Ponto Livro Livre, projeto iniciado em Braslia e que se prope a deixar livros numa estante em algum ponto de comrcio. A tese mostrar que o importante ler, no ter livros.

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A iniciativa est funcionando at hoje. Temos cerca de 30 pontos: Alto Paraso, Campos do Jordo. Com frequncia, as pessoas me do livros para que eu abra novos pontos. O interessado leva os livros que quer ler, mas no precisa traz-los de volta. E tambm no precisa colocar nenhum exemplar no lugar. Soubemos at mesmo que alguns exemplares foram parar no exterior. Consegui uma editora que doou os primeiros acervos e promoveu a troca de livros. Esse projeto me deu muito prazer, pois em apenas um ano tivemos a participao de mais de mil pessoas. Iniciativas na rea da cultura que no tm incentivo fiscal tambm podem ser bem sucedidas basta colocar em prtica o que sabemos e dispender uma parte do nosso tempo para isso. Os restaurantes Amrica, de So Paulo, aderiram e implantaram o projeto aos sbados: Ponto Livro Livre para crianas. A ideia ainda no deu certo em outras empresas, mas no desistimos. Por que no poderia haver uma estante de livros em locais de convivncia, como os restaurantes, para onde as pessoas possam lev-los e onde tenham a oportunidade de troc-los? Um dia destes vi essa ao em uma escola de Uberaba com os dizeres: O evento comeou em Braslia. Agora, estamos adotando aqui o Ponto Livro Livre. Troque... Em So Paulo, dei com um exemplar que vinha com a mensagem Troque este livro. Passe este livro para a frente. Isso mostra que est havendo uma movimentao, como o prprio bookcrossing a

troca, nascida em outros pases, onde os livros so colocados nas praas pblicas. O livro pode ser registrado na internet, para que o ex-dono o acompanhe... As escolas at mesmo as particulares fazem da leitura uma obrigao para as crianas. Esse um fator que possivelmente prejudica a noo de leitura como lazer. Volto a dizer que muitas das iniciativas que vo adiante na cultura so aquelas que precisam de boa vontade. Sou muito atenta a aes que a sociedade civil ou o governo faz em prol da leitura e tenho constatado um aumento nas aes desse tipo. O prprio Plano Nacional do Livro e Leitura, do MinC, de alguma forma est se interessando pela ideia da troca, mas a concepo do Livro Livre um pouco anrquica para que o poder pblico possa abra-la. Por isso, importante a sociedade continuar realizando aes individuais. S coletivamente que conseguiremos estimular o hbito da leitura.

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Yacoff sarkovas

o incentivo fiscal cultura no BrasilA cultura e as Artes movimentam parte cada vez mais significativa da economia planetria. As indstrias criativas no param de crescer para alimentar uma demanda, que parece inesgotvel, por esttica, smbolos, lazer, entretenimento e ascendncia. Porm, os recursos gerados por esse vasto mercado de consumo no suprem a diversidade e a complexidade culturais, tornando necessrias outras trs fontes de financiamento, distintas e complementares: o Estado, que tem a responsabilidade de fomentar a criao Artstica e intelectual e a distribuio do conhecimento, bases do progresso humano; o investimento social privado, evoluo histrica do mecenato, meio pelo qual cidados e instituies privadas se tornam agentes do desenvolvimento da sociedade; o patrocnio empresarial, estratgia de construo de marcas e de relacionamento com seus pblicos de interesse, feita por associao com aes de interesse pblico.

No Brasil, um sistema de apoio cultura e s Artes baseado em deduo fiscal emaranhou essas fontes, subvertendo suasYacoff Sarkovas presidente da Articultura Comunicao e consultor de patrocnio empresarial

lgicas, inibindo seus fluxos, retardando suas expanses e, de quebra, confundindo a opinio pblica. Para entender o funcio-

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namento desse Artifcio legal e suas consequncias, necessrio historiar como foi inventado e por que se propagou. Em 1972, num dos perodos mais cruentos da ditadura militar, tramitava pelo Congresso um projeto de lei do senador governista Jos Sarney que instaurava incentivos fiscais cultura no Brasil. Bloqueada pela rea econmica do governo, a iniciativa no prosperou. Treze anos depois, aos 14 de maro de 1985, Sarney apresentou um novo projeto. Era seu ltimo dia no Congresso, antes de assumir a Presidncia da Repblica em decorrncia da morte de Tancredo Neves. No ano seguinte, aos 2 de julho de 1986, a Lei 7.505 foi sancionada e, aos 3 de outubro do mesmo ano, regulamentada. Desde ento, o incentivo fiscal domina a agenda cultural do Brasil. A chamada Lei Sarney apresentava caracterstica nica. Nos pases que dispunham desse tipo de legislao, incentivo fiscal era o direito do contribuinte de abater de sua renda bruta doaes a instituies culturais. A lei brasileira permitia, alm disso, que parte do valor fosse deduzido do imposto a pagar. Em maro de 1990, Fernando Collor de Mello e seu secretrio de cultura, Ipojuca Pontes, extinguiram a Lei Sarney de forma autoritria e sem planejamento, a reboque do desmantelamento que promoveram no frgil e desestruturado sistema pblico de cultura. O vcuo poltico no plano federal gerou o incentivo fiscal

em mbito municipal. Em dezembro de 1990, foi promulgada a Lei Mendona, em So Paulo, permitindo deduo parcial dos patrocnios no ISS e no IPTU. A partir da, outros municpios brasileiros replicaram o instrumento. Posteriormente, Acre, Mato Grosso, Paraba e Rio de Janeiro criaram leis com deduo no ICMS, estabelecendo um modelo adotado depois por outros Estados. Em dezembro de 1991, Collor recua. Seu novo secretrio da cultura, o socilogo Srgio Paulo Rouanet, instaura o Programa Nacional de Apoio Cultura, conhecido como Lei Rouanet, at hoje em vigor. O Programa restabelecia os princpios bsicos da Lei Sarney e criava dois outros instrumentos: o FNC (Fundo Nacional de Cultura) e o FICART (Fundos de Investimento Cultural e Artstico). Rouanet reconhecia que o financiamento pblico cultura no poderia ser regulado exclusivamente pelos interesses mercadolgicos e/ou pessoais inerentes ao patrocnio e doao privada. O FNC estabelecia o princpio do fundo pblico, essencial para fomentar as aes de mrito cultural que no encontram abrigo no mercado. Na ponta oposta, o FICART estimulava as atividades culturais lucrativas, proporcionando vantagens tributrias aos seus investidores. Nenhum dos dois instrumentos vingou. O FICART tornou-se letra morta porque seus benefcios foram largamente superados

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pelos nveis de deduo fiscal obscenos que seriam depois adotados em outros mecanismos. E o FNC jamais foi operado segundo as regras primrias de um fundo pblico: transparncia de critrios, acessibilidade paritria e primazia do mrito pblico. Desde que foi criado, seus recursos so arbitrariamente distribudos segundo predilees e interesses do Ministrio da Cultura. Com o impeachment de Collor, produtores de cinema extraram de Itamar Franco a Lei 8.685, de 20 de julho de 1993, que beneficiava a aquisio de cotas de comercializao de filmes no mercado de capitais. Foi o marco decisivo na cronologia da condenao do financiamento cultural pblico ao inferno do incentivo fiscal. Deslumbrado pelos rapaps de diretores e atrizes, Itamar Franco promulgou um dispositivo que permitia no s abater integralmente o valor investido na aquisio das cotas, mas tambm lan-lo como despesa, reduzindo, indiretamente, mais impostos. O resultado que o Artigo 1 da chamada Lei do Audiovisual tornou-se um instrumento sem precedentes, pelo qual o Estado no s permite a uma empresa privada usar dinheiro pblico, sem nenhuma contrapartida, para se tornar, a seu exclusivo critrio, scia de um empreendimento comercial, mas ainda comissiona com mais dinheiro pblico esse falso investidor, no ato da operao. De quebra, seu Artigo 34 permite que 70% do

imposto sobre a remessa de lucros e dividendos obtidos por filmes estrangeiros, no pas, tambm sejam usados na coproduo de filmes brasileiros, sem que os distribuidores beneficiados, em sua maioria americanos, tenham de investir qualquer centavo de dlar prprio. Inicialmente, a Lei do Audiovisual no decolou por ser ento desconhecida e porque a deduo prevista no seu primeiro Artigo se limitava a 1% do imposto a pagar das empresas. A Lei Rouanet, que permitia 2%, passou a autorizar 5% (hoje 4%) em maio de 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso. Mas, em agosto de 1996, o Ministrio da Cultura de Francisco Weffort ampliou o limite da Lei do Audiovisual de 1% para 3%. A medida provocou um forte aumento na transferncia de recursos fiscais para o cinema, que subiram de R$ 16,8 milhes, em 1995, para R$ 72,1 milhes, em 1997. Boa parte desse crescimento se deu pela canibalizao da Lei Rouanet, pois seu limite de 5%, somado ao da Lei do Audiovisual de 3%, atingia 8%, enquanto a Receita Federal estabelecia, na poca, um mximo de 5% (hoje 4%) de deduo. No mercado de incentivo fiscal que se formava, os produtores culturais que buscavam patrocnio para seus projetos pela Lei Rouanet passaram a encontrar um nmero crescente de empresas que j haviam esgotado a maior parte de seus recursos dedutveis na Lei do Audiovisual.

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Em vez de exigirem a correo das evidentes distores do incentivo fiscal aos filmes, agentes culturais de outras reas passaram a reivindicar equiparao de benefcios. Weffort e sua equipe, que tinham plena conscincia de que a dupla deduo da Lei do Audiovisual fora implantada por ignorncia do MinC de Itamar, que assinou em cruz o texto que recebeu pronto de produtores de cinema, ponderaram no ter fora para enfrentar o conhecido lobby. Em 24 de setembro de 1997, a Medida Provisria 1.589 introduziu na Lei Rouanet a deduo de 100% para projetos de artes cnicas; livros de valor Artstico, literrio ou humanstico; msica erudita ou instrumental; circulao de exposies de Artes plsticas; doaes de acervos para bibliotecas pblicas e para museus. A escolha arbitrria dessas reas obedeceu lgica do mama quem chora. Ao longo de dois anos, o governo FHC reeditou a medida provisria 27 vezes, transformando-a na Lei 9.874 aos 23 de novembro de 1999. Feita a opo de inocular o carcinoma da deduo integral na Lei Rouanet, Weffort se exps ainda mais s presses para alastr-lo a comear pela ao da prpria rea de cinema, que, no satisfeita com os investimentos da Lei do Audiovisual, exigia tambm obter patrocnios pela Lei Rouanet, sem contrapartida privada. Aos 6 de setembro de 2001, Weffort curvou-se ainda mais e estendeu as reas beneficiadas. Escamoteou a iniciativa

num Artigo perdido, o de nmero 53, inserido no final da Medida Provisria 2.228-1, que, no por acaso, estabelecia os novos princpios da poltica para o cinema e criava a ANCINE, entre outros fomentos pblicos ao audiovisual. A deduo de 100% passou para artes cnicas; livros de valor Artstico, literrio ou humanstico; msica erudita ou instrumental; exposies de Artes visuais; doaes de acervos para bibliotecas pblicas, museus, arquivos pblicos e cinematecas, bem como treinamento de pessoal e aquisio de equipamentos para a manuteno desses acervos; produo de obras cinematogrficas e videofonogrficas de curta e mdia metragem e preservao e difuso do acervo audiovisual; e preservao do patrimnio cultural material e imaterial. importante observar que em 2000, um ano antes, o prprio MinC apontava as mazelas do modelo de incentivo fiscal com deduo integral no Diagnstico governamental da cadeia produtiva do audiovisual. O estudo revelava que o sistema de financiamento criado pela Lei do Audiovisual no tem servido ao propsito de estimular a comercializao dos filmes produzidos, nem tampouco capitalizao das empresas produtoras. Prova disso o fato de que, entre 1995 e 1998, apenas 10 dentre 80 filmes concludos e lanados comercialmente tiveram um resultado de bilheteria superior, igual ou pouco inferior aos seus custos de produo. Setenta e cinco por cento desses filmes foram

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malsucedidos comercialmente e, por consequncia, ao invs de viabilizar a capitalizao das empresas produtoras, conduziu, na maior parte dos casos, a simples empate com seus custos ou a um endividamento perigoso. O documento denunciava, ainda, os efeitos colaterais da mamata fiscal, como o leilo promovido pelas empresas, que obrigava os produtores a recomprar os certificados, e as comisses cobradas por intermedirios: Fenmenos de difcil controle por parte do Estado, como o uso de prticas lesivas ao interesse pblico, a recompra de Certificados de Audiovisual e a cobrana de gio tambm contriburam para comprometer o desenvolvimento da cadeia produtiva do setor [...]. Limitados originalmente a 10% da captao, a cobrana de gio che