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Ameríndios eram siberianos GENÉTICA ROSA GAUDITANO/STÚDIO R CIÊNCIA Estudo da UFMG desvenda por meio da genética uma história não-escrita dos povos pré-colombianos

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Page 1: ROSA GAUDITANO/STÚDIO R Ameríndios GENÉTICA eram …€¦ · uma história não-escrita dos povos pré-colombianos . PESQUISA FAPESP • JANEIRO DE 2002 • 43 evolução genética

Ameríndios eram siberianos

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CIÊNCIA

Estudo da UFMG desvenda por meio da genética uma história não-escrita dos povos pré-colombianos

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PESQUISA FAPESP • JANEIRO DE 2002 • 43

evolução genética dos indí-genas sul-americanos ao

longo de milênios é des-vendada no modelo queos geneticistas Eduardo

Tarazona, Sérgio Pena e Fabrício San-tos, da Universidade Federal de MinasGerais (UFMG), começaram a elabo-rar em 1999. Segundo o modelo suge-re, as populações indígenas do oeste edo leste da América do Sul se distin-guem por terem seguido padrõesopostos em sua história genética. Ospesquisadores também concluíram queos indígenas das três Américas têm amesma e bem demarcada ori-gem:dois povos siberianos cu-ja linhagem ainda sobrevive.Confirmaram ainda a teoriacorrente, de que os antepassa-dos dos ameríndios chegaramda Ásia pelo estreito de Bering,quando havia ali uma faixade solo firme. E demonstra-ram que todos os ameríndiostêm grande similaridade ge-nética: por isso acreditam quevieram juntos, numa grandeonda migratória.

Uma constatação básicainspirou o estudo: popula-ções geneticamente isoladaspreservam as identidades ge-néticas que tinham antes dosgrandes movimentos migra-tórios ocorridos no mundodepois das grandes navega-ções do século 16. Por isso osgeneticistas se interessam poressas populações isoladas –como os esquimós, os Yano-mami do Brasil e da Vene-zuela, e mesmo os berberes do Saara eos finlandeses – e tentam traçar suasorigens e rotas de migração, que emgeral a história não pôde registrar.

O estudo mostra que as contribui-ções do Projeto Genoma Humanopodem servir não só à área médica,mas para descobrir aspectos do nossopassado: “É o primeiro estudo mais

Homem do povo Xavante: um dos gruposincluídos na pesquisa genética que rastreou a origem remota dos ameríndios

Adetalhado do ponto de vista genômico,de populações nativas da América doSul, a sugerir um modelo coerentecom questões históricas, arqueológi-cas, lingüísticas e climatológicas”, afir-ma Fabrício Santos, do Instituto deCiências Biológicas da UFMG, queorienta o doutorado de Tarazona.

Para chegar ao modelo evolutivoproposto, os pesquisadores optaram porestudar a variabilidade molecular docromossomo Y em sul-ameríndios.Essecromossomo é de linhagem paterna:transmitido apenas pelo pai para os fi-lhos do sexo masculino, passa inalte-

rado ao longo das gerações, até queocorra uma mutação (variação no DNA,o ácido desoxirribonucléico, portadordo código genético). Com isso, quise-ram descobrir o que aconteceu desdeo início do povoamento.“Fazemos umaespécie de arqueologia molecular”, dizTarazona, “e isso é possível porque asvicissitudes demográficas pelas quaisuma população passa deixam umamarca na distribuição de seus genes.Por meio da análise do DNA, conse-guimos identificar essas marcas, quenos dizem o que aconteceu”.

Fabrício Santos explica que, ini-cialmente, buscavam uma respostagenética para a relação entre os povosdos Andes e os de outras regiões sul-americanas. Até então, a maior partedos estudos sobre variabilidade mole-cular em populações nativas eraorientada de modo a responder apenasquando e como os primeiros povoschegaram ao continente americano. Des-ta vez, os pesquisadores procurarammaior profundidade.

Realidades opostas - Para isso, estuda-ram grupos andinos do Peru e do

Equador. E, aos dados dessesgrupos, somaram os de indí-genas brasileiros – gruposXavante, Wai-Wai, Karitiana,Ticuna, Gavião, Zoró e Suruí– previamente estudados porDenise Carvalho Silva (domesmo grupo da UFMG),bem como de tribos argenti-nas e paraguaias já estudadaspelo grupo de Nestor Bian-chi, de Buenos Aires.

Pela análise das amostrasdo DNA de 192 indivíduos,em 18 grupos indígenas desete países, concluíram queas populações do leste e dooeste seguiram padrões decomportamento demográfi-co opostos, o que se refletiuna diferenciação genética.

Assim, na região andina,os grupos indígenas têm po-pulações grandes e experi-mentaram entre si maioresníveis de fluxo gênico – tro-cas de material genético

nos cruzamentos. Isso implica, de umlado, uma tendência à homogeneiza-ção no plano geral, e, de outro, maiordiferenciação genética entre indíví-duos da mesma população.

O contrário ocorreu no leste, entreos grupos da Amazônia, do PlanaltoCentral Brasileiro e do Chaco. Essestêm populações menores e níveis bai-xos de fluxo gênico de um grupo paraoutro. Disso resultam tendências amuitos grupos isolados e genetica-mente diferenciados, bem como à ho-mogeneidade dentro de cada grupo.

Indígena siberiano: ancestrais em comum com nossos ameríndios

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Desse modo, as populações andi-nas, ainda que numerosas e geografi-camente distantes entre si, experi-mentaram um intenso fluxo gênico emantiveram uma identidade culturalcomum, compartilhando costumes elíngua, o quéchua – outras línguas daregião, como aimara e araucano, sãomuito parecidas com o quéchua do-minante e pertencem à mesma famí-lia lingüística. Dentro de cada tribo hámuita diferenciação genética e, noglobal, muitas semelhanças entre gru-pos que vivem a até mais de 3 mil qui-lômetros de distância um do outro, doPeru ao norte da Argentina.

Já as tribos das regiõesbrasileiras e do Chaco mos-tram características opostasàs andinas. Estão fisicamen-te mais próximas do que,por exemplo, os andinos donorte e os do sul. Dado oseu isolamento mútuo, con-tudo, apesar da maior pro-ximidade, estão longe de umnível de similaridade cultu-ral, falam línguas bem di-versas e revelam pouca dife-renciação genética entre osindivíduos de cada tribo.

Geleiras e florestas - Dadospaleoecológicos, lingüísticose históricos se combinambem para fundamentar omodelo proposto. Por exem-plo, no último período gla-cial – que durou de 60 mil a 13 milanos atrás –, a altitude das geleiras nosAndes era muito menor e o frio bemmais intenso, o que limitava o povoa-mento. Já a leste, predominava umambiente aberto de savana, pratica-mente sem matas fechadas, o que poralgum tempo favoreceu a comunica-ção e o fluxo gênico.

Há 12 mil anos, entretanto, ocor-reu a transição Pleistoceno-Holocenoe isso mudou radicalmente. Nos An-des, o nível das geleiras subiu bastan-te, permitindo a colonização humanaem ampla escala, o que favoreceu o de-senvolvimento cultural homogêneo,evidente até hoje. “As geleiras”, diz Ta-razona, “liberaram os Andes, permi-

de Silvia Fuselli e Davide Pettener, daUniversidade de Bolonha, Itália, ondeTarazona fez um doutorado em antro-pologia. Os resultados, segundo Tara-zona, estão sendo altamente consis-tentes com o modelo.

Na verdade, o modelo de variabili-dade do cromossomo Y é a terceiraetapa do estudo que Fabrício Santosiniciou em 1993, quando se doutoravana UFMG, orientado por Sérgio Pena.Santos relata que o grupo tem feitoimportantes contribuições por meiodo estudo das linhagens paternas:“Nossas primeiras publicações, em

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tindo que as populações humanas seassentassem e desenvolvessem em co-mum um complexo cultural – e bio-lógico, segundo este estudo –, o quefacilitou as migrações”.

á no leste, as mudanças climáticascausaram a expansão dos refúgiosisolados de floresta tropical, queforam ocupando e fechando os es-

paços da savana, até formar a imensaFloresta Amazônica – mata fechada que,ao contrário da savana, passou a limi-tar o fluxo gênico. Disso resultou frag-mentação populacional e isolamento

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cultural.Assim, a transição Pleistoceno-Holoceno seria uma espécie de inter-ruptor evolutivo,determinando padrõesdivergentes de variabilidade genética.É por isso que povos andinos de áreasbem distantes se parecem mais do que,por exemplo, os Ticuna do Amazonase os Suruí de Rondônia.

Pela Beríngia - O grupo está amplian-do os estudos e testando seu modelo,baseado nas variações do cromosso-mo Y. O passo seguinte será confron-tar esses dados com os do DNA mi-tocondrial, que é transmitido porlinhagem materna, da mãe para os fi-lhos de ambos os sexos. Os estudos doDNA mitocondrial têm a colaboração

Indígenas andinos: grupos distantes mais parecidos entre si que os do leste da América do Sul

1995 e 1996, revelaram uma identi-dade genética entre os povos nativosdas três Américas, como se todosdescendessem de um único pai – oAdão americano –, que vivera entre12 e 25 mil anos atrás. Em 1999, ou-tra publicação revelou o retrato ge-nético de ancestrais dos nativos ame-ricanos, que habitavam a Ásia entre20 mil e 30 mil anos atrás. É como sefizéssemos uma série de exames depaternidade envolvendo milhares degerações passadas”.

Os estudos iniciais confirmaram ateoria corrente, de que os antepassa-dos dos nativos americanos chegaramao continente entre 40 mil e 13 milanos atrás – há muita divergência em

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AMÉRICA DO NORTE

AMÉRICA DO SUL

Povos do Oeste

Povos do Leste

Linhacosteirada glaciação

À direita, as forçasevolutivas que moldama estrutura genética de povos da América do Sul.O tamanho dos círculosindica as proporções das populações.As setas representamos níveis do fluxo gênico.Cayapa

TicunaWai Wai

Xavante

Gavião, Zoró e SuruíKaritianaTayacaja

Arequipa

Susque e Huamahuaqueño

Lengua e Ayoreo

Toba, Chorotee Wichi

Tehuelche

Fonte: UFMG

torno das datas. Mas limitaram a datade chegada numa faixa mais restrita,entre 15 mil e 30 mil anos atrás. Tam-bém confirmaram que os ameríndiosvieram pela Beríngia, faixa de solo fir-me que na época das glaciações ligavaa Ásia ao Alasca, onde está hoje o Es-treito de Bering (daí o nome Beríngia).Mas foram mais longe: demonstraramque os nativos das três Américas têmgrande similaridade genética, a des-peito da alta diversidade lingüística ecultural, o que sugere que todos vie-ram juntos da Ásia numa onda mi-gratória principal.

Indo mais além, em 1999 concluí-ram que os ancestrais dos nativos ame-ricanos foram povos siberianos dosgrupos lingüísticos keti e altai. Os al-tais são do grande grupo das línguas

túrquicas, o mesmo dos povos daMongólia e do Japão. Já os ketiscompõem um grupo lingüísticoisolado, sem similar no mundo, ecuja língua original está pratica-mente extinta.Em algumas etapas, o grupo pesqui-

sou com equipes de outras universida-des do Brasil (especialmente o grupode Francisco Salzano, da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul), de ou-tros países sul-americanos, da Mongó-lia e da Inglaterra. Já em 1995, Santose Sérgio Pena publicavam em NatureGenetics o trabalho Principal EfeitoFundador nas Populações IndígenasAmericanas. No ano seguinte, umgrupo da Universidade de Stanford(EUA) confirmou as conclusões dosbrasileiros e usou uma nova variaçãode DNA, o DYS199, com duas basesdiferentes: o alelo C, presente em to-dos os europeus, asiáticos e africanos,e o T, característico dos ameríndios.

Depois, outros americanos da Uni-versidade de Tucson também confir-maram os dados dos brasileiros, que em

1999 apontaram os ketis e os altais, en-tre vários grupos siberianos examina-dos, como aqueles de maior grau deparentesco com o principal cromosso-mo Y dos nativos americanos.

O Modelo de Evolução para as Po-pulações Nativas da América do Sul, ela-borado por Tarazona e Fabrício Santos,foi apresentado em abril de 2001 noevento Portugalia Genetica, em setem-bro no 10º Congresso Internacionalde Genética em Viena e em outubrono Congresso Brasileiro de Genéticaem Águas de Lindóia. Também ren-deu artigo publicado em junho últi-mo no American Journal of HumanGenetics. Agora, os geneticistas minei-ros pretendem pesquisar outros mis-térios, como a origem específica dospovos tupis que povoavam a costa naépoca do Descobrimento e tiveraminfluência decisiva na formação dopovo brasileiro. Também queremconfrontar, com os dados genéticosreunidos, outras teorias sobre a ori-gem dos povos da Amazônia e do Pla-nalto Central brasileiro. •

Distribuição dos povos daAmérica do Sulincluídos no estudo genético

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