romanos . as de deus, afirma tomás, podem nos deus, à · 2) a não-evidência da existência de...

35
A Refutação do Argumento Ontológico e a Demonstração da Existência de Deus em Santo Tomás de Aquino Autor: Sávio Laet de Barros Campos. Licenciado e Bacharel em Filosofia Pela Universidade Federal de Mato Grosso. 1) A Cognoscibilidade da Existência de Deus Para a Filosofia 1.1) A Cognoscibilidade da Existência de Deus Todo pensamento cristão, cresceu sobre a égide de uma verdade basilar: Deus existe. Esta verdade, digamos desde já, é natural. Ser uma verdade naturalmente cognoscível significa, por sua vez, que podemos conhecê-la, unicamente pelas forças da nossa razão. Portanto, os pagãos que não têm , podem saber que Deus existe. Já São Paulo nos atesta certo conhecimento de Deus por parte dos gentios. Podem descobri-lo, na atenta observação das realidades sensíveis. São, pois, por isso mesmo, inescusáveis, porque tendo-O conhecido, não O adoraram e se voltaram para vãs idolatrias. A sabedoria cristã, por toda a Idade Média, não se cansará de voltar a este texto paulino. Na verdade, nele se inspirarão todas as provas da existência de Deus, máxime as que partirem da realidade sensível:

Upload: truongcong

Post on 28-Nov-2018

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

A Refutação do Argumento Ontológico

e a Demonstração da Existência de

Deus em Santo Tomás de Aquino

Autor: Sávio Laet de Barros Campos.

Licenciado e Bacharel em Filosofia Pela

Universidade Federal de Mato Grosso.

1) A Cognoscibilidade da Existência de

Deus Para a Filosofia

1.1) A Cognoscibilidade da Existência de Deus

Todo pensamento cristão, cresceu sobre a égide de uma verdade

basilar: Deus existe. Esta verdade, digamos desde já, é natural. Ser uma verdade

naturalmente cognoscível significa, por sua vez, que podemos conhecê-la,

unicamente pelas forças da nossa razão. Portanto, os pagãos que não têm fé,

podem saber que Deus existe. Já São Paulo nos atesta certo conhecimento de

Deus por parte dos gentios. Podem descobri-lo, na atenta observação das

realidades sensíveis. São, pois, por isso mesmo, inescusáveis, porque tendo-O

conhecido, não O adoraram e se voltaram para vãs idolatrias. A sabedoria

cristã, por toda a Idade Média, não se cansará de voltar a este texto paulino. Na

verdade, nele se inspirarão todas as provas da existência de Deus, máxime as que

partirem da realidade sensível:

Page 2: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

Num texto clássico, que se tornou rica fonte de especulação para

a Idade Média, S. Paulo ensina que também os pagãos têm

acesso a certos conhecimentos de Deus: “Pois, o que de Deus se

pode conhecer, o que nele há de invisível, contempla-o a

inteligência em suas obras desde a criação do mundo; o seu

poder sempiterno e a sua divindade” (Rm 1, 19-2). De sorte que

os gentios possuem certo conhecimento de Deus,

independentemente de qualquer revelação especial. Entretanto,

por não Lhe haverem tributado a devida reverência, o seu

entendimento se obscureceu e tombaram na mais absurda

idolatria. Por isso são inescusáveis (1, 23). (...) Todos os

argumentos da existência de Deus baseados na investigação do

mundo sensível partem do referido texto paulino.1

Santo Tomás, também se volta para o texto de Romanos, e nele se

justifica para encadear as provas da existência de Deus, tomando por base as

realidades sensíveis. As obras de Deus, afirma Tomás, podem nos conduzir a

Deus, à certeza da sua existência:

(...) o Apóstolo diz na Carta aos Romanos: “As perfeições

invisíveis de Deus se tornaram visíveis à inteligência, por suas

obras”. Mas isso não aconteceria se, por suas obras, não se

pudesse demonstrar a existência de Deus, pois o que primeiro se

deve conhecer é se ele existe.2

1.2) O Conhecimento da Existência de Deus Pode Prescindir da Fé

Como verdade naturalmente cognoscível, a existência de Deus

dispensa a fé, pois o que é suscetível de demonstração racional, para quem

1 Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 21. 2 Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 2, 2, SC.

Page 3: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

apreende tal demonstração, torna-se desnecessário crer.3 A fé, como lembra

Agostinho, é essencialmente um conhecimento infuso e inatingível pela razão.4

De sorte que, todo conhecimento que seja atingível pela razão e que de alguma

forma derive de seus primeiros princípios, exatamente por isso, difere, por

definição, do conhecimento pela fé. Ora, a existência de Deus é um conhecimento

naturalmente cognoscível.5 Logo, por ser uma verdade clara e distinta, deixa,

ipso facto, de pertencer à domínio da fé: “(...) uma verdade clara e distinta e

certamente conhecida deixa, ipso facto, de pertencer ao domínio da fé (...)”6.

É certo, no entanto, que Deus revelou-nos a sua existência, Tomás

alude a isso também. Com efeito, ao provar a existência de Deus, cita a

passagem do Êxodo em que Deus se revela como existente: “(...) Em sentido

contrário, está escrito o que se diz no livro do Êxodo: ‘Eu sou Aquele que sou’”.7

Mas, essa verdade, embora revelada, quanto ao modo, é, de per si, natural.

1.3) A Necessidade da Revelação de Verdades Naturais

De fato, é necessário, até mesmo no que toca às verdades sobre Deus

naturalmente conhecidas, que fossem reveladas ao homem. Se à ciência cabe

provar que Deus existe, tem-se que frisar que ela só chega a esse conhecimento

depois de muitos anos de investigação e tendo em conta muitos pressupostos:

3 MARIE, Joseph Nicolas. Introdução à Suma Teológica. Trad. Henrique Lima Vaz et al. São

Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 36: “Sto. Tomás esclarece que aquilo que chega a ser

demonstrado pela razão e para quem chega a apreender essa demonstração em seu rigor; a

adesão intelectual não é a da fé, mas da razão (...)”. 4 Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 451: “Como lembra Agostinho, a fé visa

precisamente àquilo que não está presente à razão, isto é, ao que lhe é inatingível.” 5 Idem. Ibidem: “Por conseguinte, todo conhecimento racional, deduzido dos primeiros

princípios, foge ao domínio da fé, porquanto se trata de objetos presentes ao entendimento, e

por isso mesmo insuscetíveis de fé.” 6 Idem. Ibidem. 7 Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 2, 3, SC.

Page 4: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

É necessario que o homem receba pela fé, não só aquilo que

supera a razão, mas também o que pode ser conhecido pela

razão. E isso por três motivos: 1. Com efeito, à ciência cabe

provar que Deus existe e outras coisas a Ele referentes, mas ela

é o último objeto a cujo conhecimento chega o homem por

pressupor muitos outros conhecimentos anteriores. Assim, só

depois de muitos anos de vida, o homem chegaria ao

conhecimento de Deus.8

Ora, muitos homens são ineficazes no seu raciocínio, outros têm a sua

vida toda preenchida pelas atividades temporais, há ainda aqueles, que nem

sequer o desejo de se instruir possuem.9 Assim, os poucos que chegariam,

unicamente pela razão, a saber que Deus existe e a conhecer outras verdades

desta ordem, só chegariam depois de longos anos e titubeando por muitos

erros.10 Agora bem, essa e outras verdades relacionadas a Deus, são vitais para a

salvação do homem. Logo, para que a salvação chegasse a todos os homens, e

para que estas verdades atinentes à nossa salvação, fossem conhecidas sem

mescla de erros e com mais facilidade, foi necessário que Deus nos instruísse

sobre elas, também por Revelação:

No entanto, do conhecimento desta verdade depende a salvação

do homem, que se encontra em Deus. Assim, para que a

salvação chegasse aos homens, com mais facilidade e maior

garantia, era necessário fossem eles instruídos a respeito de

Deus por uma revelação divina.11

8 Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 2, 4, C 9 Idem. Ibidem: “-2. Para que o conhecimento de Deus seja mais generalizado. De fato, muitos

não podem avançar no estudo das ciências ou por incapacidade mental ou porque estão

envolvidos por outras ocupações e pelas necessidades da vida temporal ou ainda porque não têm

o desejo de se instruir.” 10 Idem. Ibidem. I, 1, 1, C: “Com efeito, a verdade sobre Deus pesquisada pela razão humana

chegaria apenas a um pequeno número, depois de muito tempo e cheia de erros.” 11 Idem. Ibidem.

Page 5: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

2) A Não-Evidência da Existência de

Deus

No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela

razão e da necessidade de revelação desta mesma verdade, há outra questão que,

embora mais discreta, está muito presente no pensamento de Tomás. Se, por um

lado, é patente que a existência de Deus é uma verdade natural, por outro, ela

não é certamente uma verdade evidente para nós. Se não é evidente para nós,

precisa necessariamente ser provada.12 Por conseguinte, ou aceitamos que Deus

exista pela fé ou temos que demonstrar pela razão que Ele existe.

Neste sentido, Tomás não aceita um conhecimento a priori de Deus

pela via da razão, bem como um conhecimento que provenha diretamente da

alma, como se fosse inato.13 Esta impossibilidade provém, não somente da teoria

do conhecimento aristotélica que o Aquinate assume, mas ainda por motivos

religiosos. Pois, se a existência de Deus fosse um conhecimento inato a todos os

homens, não haveria necessidade de ser revelada, tal revelação seria

inteiramente dispensável. Se Deus revela a sua existência, é precisamente pelo

fato de que nem todos os homens podem apreender a demonstração dela.

Porquanto, nem todos podem naturalmente saber que ele existe.14 Entretanto, se

seu conhecimento fosse inato a todos, e não requeresse qualquer raciocínio

ulterior, o que restaria de utilidade à Revelação?

12 Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 658: “A demonstração de sua existência é

necessária e possível. É necessária porque a existência de Deus não é evidente (...); logo, temos

que concluir pelo raciocínio essa existência que não podemos constatar.” 13 Philotheus Boehner. História da Filosofia Cristã. p. 453: “S. Tomás terá que repudiar toda

argumentação apriorística, como também a que se baseia em dados anímicos, para reter apenas a

que parte da realidade externa.” 14 Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 2, 2, ad 1: “No entanto, nada impede que aquilo que,

por si, é demonstrável e compreensível, seja recebido como objeto de fé por aquele que não

consegue apreender a demonstração.”

Page 6: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

Trataremos em seguida de expor com pormenores, a concepção do

Aquinate a respeito da não-evidência da existência de Deus, bem como a

refutação daqueles que afirmavam tal coisa.

2.1) Argumentos Aduzidos a Favor da Evidência Imediata da Existência

de Deus

2.1.1) Impossibilidade de Pensá-lo como Não-Existente.

Com efeito, para alguns pareceu desnecessário provar que Deus existe.

A existência de Deus para estes, seria por si mesma evidente. Ora, o que é por si

mesmo evidente, não precisa ser demonstrado. Logo, não é necessário

demonstrar que Deus existe exatamente por ser impossível pensá-lO como não

existente:

Pareceu como supérfluo – para alguns que afirmam que é

evidente por si mesmo que Deus existe – o estudo dos que

procuram demonstrar que Deus é de modo a não se poder pensar

o contrário.15

2.1.2) O Ser Acima do Qual nada se Pode Pensar

E é impossível pensá-lo como não existente, porque o nome Deus,

todos o entendem como significando uma realidade acima da qual nada se pode

pensar. Quem ouve este nome, compreende-lhe o significado. Ora, se

compreendemos o conceito de Deus, é porque o ser acima do qual nada se pode

pensar de maior, existe ao menos no nosso intelecto. Entretanto, Deus não pode

existir somente no intelecto. De fato, o que existe no intelecto e na realidade é

maior do que aquilo que existe apenas no intelecto. Ora, Deus é o ser acima do

qual nada se pode pensar de maior. Logo, se Ele existisse somente no intelecto,

15 Idem. Suma Contra os Gentios. I, X, 1 (59).

Page 7: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

não seria o ser acima do qual nada se pode pensar de maior, o que contrariaria a

própria significação do Seu nome. Donde, é evidente que Deus existe no intelecto

e na realidade. E esta evidência se constata, logo que compreendemos o

significado deste nome:

Ora, designamos pelo nome deus uma realidade acima da qual

nada se pode pensar de maior. É certo que essa noção forma-se

no intelecto de quem ouve e compreende o nome deus. Assim

sendo, deve-se afirmar que ao menos no intelecto Deus é.

Todavia, não pode Deus existir apenas no intelecto. Isto porque

aquilo que é no intelecto e também na realidade é maior do que

aquilo que é só no intelecto. Com efeito, o próprio significado

deste nome está a dizer que nenhuma coisa é maior do que

Deus. Donde concluir-se que é evidente por si mesmo que Deus

existe, o que já está de certo modo manifestado pela própria

significação do nome.16

O Ser (esse), entendido aqui como ato de existir, é uma perfeição.

Portanto, seria contraditório pensar, que o ser acima do qual nada se pode

pensar de maior – ser perfeitíssimo, ao qual não falta nenhuma perfeição – possa

não-ser (non esse), pois se isto fosse possível, faltar-lhe-ia uma perfeição, a

saber, a do existir (esse) e disto resultaria que tal ser não seria o ser acima do

qual nada se pode pensar de maior, pois um ser que não pudesse não-ser seria

maior do que ele. Ora, Deus é o ser acima do qual nada se pode pensar de maior.

Logo, pensá-lO como não-sendo (non esse), seria contrariar o próprio

significado do seu. Daí ser patente, pelo próprio nome de Deus, que Deus existe:

Ora, se se pudesse pensar em Deus sem o ser, poder-se-ia

também pensar em algo maior do que Deus. Mas isso vai contra

16 Idem. Ibidem. I, X, 2 (60).

Page 8: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

o significado do nome deus. Logo, é evidente por si mesmo que

Deus existe.17

2.1.3) A Identidade Entre Essência e Existência em Deus

São evidentes por si mesmas, as proposições em que o predicado está

contido no sujeito. São evidentíssimas ainda por si mesmas, as proposições em

que o predicado é idêntico ao sujeito. Ora, na proposição “Deus existe”, ocorre

que o predicado “existir” é idêntico ao sujeito “Deus”, visto que o nome Deus,

possui como propriedade sine qua non, o existir. Por conseguinte, a essência

divina é idêntica à sua existência. Logo, a proposição Deus existe, é

evidentíssima por si mesma:

Além disso, devem ser evidentíssimas por si mesmas as

proposições nas quais algo se predica de si mesmo, por

exemplo, homem é homem, ou se o predicado está incluído na

definição do sujeito, como, por exemplo, homem é animal. Ora,

antes de tudo, conhece-se em Deus que o seu ser identifica-se

com sua essência (...) Assim, quando se diz que Deus é, o

predicado ou é idêntico ao sujeito, ou, pelo menos, está incluído

na definição do sujeito. Logo, será por si mesmo evidente que

Deus existe.18

2.1.4) Deus enquanto Fim Último do Homem

O homem tem a Deus como o seu fim último, busca-O naturalmente, e

isso é notório em todas as ações humanas. Ora, o homem não poderia buscar a

Deus naturalmente, se naturalmente não o conhecesse. Entenda-se ainda por

conhecimento natural de Deus, aquele conhecimento evidente por si mesmo e

17 Idem. Ibidem. I, X, 3 (61). 18 Idem. Ibidem. I, X, 4 (62).

Page 9: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

que dispensa qualquer raciocínio demonstrativo, para comprová-la. Tal

conhecimento, é idêntico ao conhecimento daquelas verdades que, uma vez

conhecidos os seus termos, imediatamente apreende-se o seu significado. Donde,

ser evidente por si mesmo que Deus exista, precisamente pelo fato do homem

naturalmente desejá-lo:

Além disso, as verdades naturalmente evidentes são conhecidas

por si mesmas, e para conhecê-las não é mister um esforço de

investigação. Ora, é naturalmente evidente que Deus é, dado que

o desejo do homem se dirige naturalmente para Deus, como para

seu último fim (...). Logo, é por si mesmo evidente que Deus

existe.19

2.1.5) Deus Como Causa de Todo Conhecimento

É evidente por si mesmo, também aquilo mediante o qual conhecemos

todas as outras coisas. Ora, tal como a luz do sol nos faz ver todas as coisas,

assim também a luz divina é o princípio de toda conhecimento intelectivo. Ora,

Deus é a luz intelectiva primeira, pela qual todas as outras coisas são conhecidas.

Infere-se então, que é por essa luz inteligível – cujo princípio é o próprio Deus –

que conhecemos todas as coisas. Logo, é necessário ser evidente por si mesmo

que Deus existe:

Além disso, deve ser evidente por si mesmo aquilo pelo qual

todas as outras coisas são conhecidas. Ora, isto se dá com Deus.

Com efeito, assim como a luz do sol é o princípio de toda

percepção visual, também a luz divina é o princípio de toda

percepção intelectiva, visto que em Deus encontra-se em grau

supremo a primeira luz inteligível. Logo, é necessário que seja

evidente por si mesmo que Deus existe.20

19 Idem. Ibidem. I, X, 5 (63). 20 Idem. Ibidem. I, X, 6 (64).

Page 10: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

Por todos estes argumentos, muitos concluíram que a existência de

Deus seja de tamanha evidência, que seria impossível pensar o contrário:

Com esses e semelhantes argumentos, alguns afirmaram que

Deus é um ser de tal modo evidente por si mesmo que nem se

pode pensar o contrário.21

2.2) A Refutação dos Argumentos Consignados a Favor da Evidência

Imediata

2.2.1) A Força do Costume

O fato de para alguns, ser impossível pensar que Deus não exista,

procede, em parte, do fato de estes serem homens piedosos, que desde a infância

foram educados na fé e a invocar a Majestade Divina pelo seu nome. O costume,

sobretudo aquele que se adquire desde a mais tenra infância, se arraiga tão

fortemente em nosso espírito, que pensamos serem estas verdades, naturalmente

evidentes por si mesmas:

A opinião acima consignada origina-se, em parte, do costume

segundo o qual muitos, desde pequenos, habituaram-se a ouvir o

nome de Deus e a invocá-lo. Ora, sabe-se que o costume,

principalmente o que se radicou no homem desde a infância,

adquire força de natureza. Daí acontecer que as verdades

recebidas pelo espírito na infância, tão firmes ele as possui,

como se de fato fossem naturalmente evidentes por si mesmas.22

21 Idem. Ibidem. I, X, 67(65). 22 Idem. Ibidem. I, XI, 1(66).

Page 11: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

2.2.2) A Diferença entre o que é Simplesmente Evidente Por Si daquilo

que é Evidente Para Nós

Outrossim, a opinião dos que pensam ser a existência de Deus evidente

por si mesma, provém ainda de uma confusão do que seja simplesmente evidente

por si mesmo e do que seja evidente por si mesmo e para nós. Que Deus existe,

não resta dúvida, é uma proposição evidente por si mesma, pelo fato mesmo de

Deus ser aquilo que Ele é. No entanto, Sua existência não é evidente por si e

para nós, dado que desconhecemos o que Deus seja, e por isso mesmo, não

sabemos, a priori, que na sua essência esteja incluída a sua existência:

Aquela opinião, em parte, também se origina de não se fazer a

distinção entre o que é simplesmente evidente por si mesmo e o

que é evidente quanto a nós. Deus ser, com efeito, é

simplesmente por si mesmo evidente, pois que aquilo mesmo

que Deus é, também é o seu ser. Mas porque não podemos

mentalmente conceber aquilo mesmo que Deus é, ele permanece

desconhecido para nós.23

2.2.3) A Impossibilidade de Sabermos Qual Seja a Essência Divina

De fato, para que uma proposição seja evidente por si mesma, basta-

lhe que o predicado esteja contido no sujeito. Também é verdadeiro, que na

proposição “Deus Existe”, o predicado é nada menos do que idêntico ao sujeito.

Assim sendo, é certo que tal proposição é por si mesma evidentíssima.

Entretanto, é evidentíssima somente para aqueles que vêem a essência divina,

pois somente eles sabem que Sua essência é o Seu ser, isto é, que o predicado

existir é idêntico ao sujeito. Portanto, esta verdade, evidentíssima por si mesma,

não o é para nós, pois desconhecemos a essência divina. No entanto, importa

23 Idem. Ibidem.

Page 12: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

ressaltar, que se não podemos conhecer a Deus nEle mesmo, dado

desconhecermos a sua essência, podemos conhecê-lo mediante os seus efeitos:

Pois assim como, para nós, é evidente que o todo é maior que a

sua parte, também aos que vêem a essência divina é

evidentíssimo por si mesmo que Deus é, dado que a sua essência

é o seu ser. Mas como não lhe podemos ver a essência,

chegamos ao conhecimento do seu ser não por meio dele, mas

por meio dos seus efeitos.24

Com efeito, diante de verdades evidentíssimas por si, acontece com o

nosso intelecto tal qual com os olhos da coruja em relação ao sol: “Com efeito,

acontece ao nosso intelecto estar em relação às verdades evidentíssimas como a

coruja, em relação ao sol (...).”25

2.2.4) A Significação do Nome não Dispensa de Prova

Além disso, não há necessidade alguma, de que conhecida a

significação do nome Deus, torne-se concomitantemente evidente a sua

existência: “Também não é necessário que, conhecida a significação do nome de

Deus, imediatamente se saiba que Deus é, como pretendia o primeiro

argumento.”26 Primeiro, porque nem todos, mesmo os que admitem que Deus é,

O consideram como o ser acima do qual nada se possa pensar, exemplo disto é

que muitos pensaram que o mundo é Deus: “Em primeiro lugar não é evidente a

todos, mesmo aos que admitem que Deus é, visto que muitos dos antigos,

afirmaram que o mundo é Deus.”27 Segundo é que, ainda que todos admitam que

Deus seja o ser acima do qual nada se possa pensar, nem mesmo assim se

poderia concluir, necessariamente, que Ele exista na realidade:

24 Idem. Ibidem. I, XI, 4(69). 25 Idem. Ibidem. I, XI, 1(66). 26 Idem. Ibidem. I, XI, 2(67). 27 Idem. Ibidem.

Page 13: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

Em segundo lugar, mesmo que todos entendam pelo nome deus

algo acima do qual nada de maior se possa conceber, não é

necessário que exista na realidade este algo acima do qual nada

se possa conceber.28

Deve haver, de fato, uma correspondência necessária entre a coisa e o

nome que a define. Contudo, nada há que impeça, de não corresponder com a

realidade, aquilo que o espírito concebe, independentemente da mesma

realidade.29 A verdade lógica, é a adequação do intelecto à coisa e não da coisa

ao intelecto.30 Daí que, do fato de o nosso espírito conceber que Deus seja o ser

acima do qual nada se pode pensar de maior infere-se, apenas que Deus existe

na nossa mente.31 De fato, a menos que o ser acima do qual nada se possa pensar

de maior, exista na natureza, não há impedimento algum em se conceber que

exista na mente ou na realidade, qualquer coisa que seja maior que Ele:

(...) E, assim, não haveria inconveniente algum para os que

negam que Deus é. Isto porque não há inconveniente em se

pensar em qualquer coisa superior a alguma outra existente na

realidade ou na mente, se não para aquele que concebe haver na

natureza algo acima do qual nada de maior se possa conceber.32

28 Idem. Ibidem. 29 Idem. Ibidem: “De fato, deve haver correspondência entre a coisa e o nome que a define.” 30 Tomás de Aquino. De Veritate. Q 1, a 1, C. in: Luiz Jean Laund. Verdade e Conhecimento.

São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 149: “A primeira condição quanto a ente e intelecto é pois

que o ente concorde com o intelecto: esta concordância diz-se adequação do intelecto e da coisa,

e nela formalmente realiza-se a noção de verdadeiro. 31 Idem. Suma Contra os Gentios. I, XI, 2 (67): “Contudo, daquele que o espírito concebe

quanto ao nome deus, só se pode concluir que deus existe apenas na nossa mente.” 32 Idem. Ibidem.

Page 14: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

2.2.5) A Possibilidade de Pensá-lo Como Não Existente

Segundo aqueles que se apóiam na tese de que a existência de Deus é

evidente por si mesma, pensar em algo maior que Deus, é pensar que Ele não

existe. Sendo Deus o ser maior acima do qual nada se pode pensar de maior,

poder pensar em algo maior do que Deus é pensar que Ele não é o que Ele é, ou

seja, o ser acima do qual nada se pode pensar de maior. Mas isso não procede.

Com efeito, se se pensa que Ele não seja o ser maior acima do qual nada se pode

pensar de maior, isto se deve, não à imperfeição do ser divino – tampouco ao

fato de Deus não ser o ser acima do qual nada se possa pensar de maior – mas

tão-somente, à debilidade de nosso intelecto, que não pode apreendê-lo como Ele

é em si mesmo, mas somente pelos os seus efeitos e através do raciocínio:

(...) Isto porque poder pensar nele como não sendo provém não

de imperfeição no seu ser, mas da debilidade do nosso intelecto

que não o pode ver em si mesmo, e sim nos seus efeitos, e assim

vem a conhecer que ele é por meio de raciocínio.33

2.2.6) O Desejo Natural da Bem-Aventurança

De fato, é verdade que o homem deseja naturalmente a Deus, como

alguns aduziram. Concedamos ainda aos opositores, que só se deseja o que se

conhece. No entanto, o homem não deseja Deus enquanto Deus, mas deseja-o

enquanto busca a bem-aventurança. Ora, a bem-aventurança é uma semelhança

da bondade divina. Deveras, o homem não conhece a Deus Nele mesmo, mas

conhece certa semelhança de Deus, qual seja, a bondade finita que encontra nas

criaturas. Cumpre então, que o homem, pelos efeitos de Deus – onde se encontra

a semelhança divina – busque e chegue, raciocinando, ao conhecimento de Deus,

como bondade suprema e causa primeira de toda bondade:

33 Idem. Ibidem. I, XI, 3 (68).

Page 15: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

O homem conhece Deus naturalmente e naturalmente o deseja.

Ora, naturalmente o deseja enquanto naturalmente deseja a bem-

aventurança, que é uma certa semelhança na bondade divina.

Assim, pois, não é necessário que Deus, considerado em si

mesmo, seja conhecido pelo homem, mas sim a semelhança de

Deus. Donde ser necessário que, pelas suas semelhanças,

encontradas nos efeitos, chegue o homem, raciocinando, ao

conhecimento de Deus.34

Ademais, se o conhecimento da bem-aventurança e a sua aspiração,

proporcionassem um conhecimento direto de Deus, como se explicaria que

alguns pensam consistir na riqueza ou nos prazeres, a felicidade do homem?35

2.2.7) Deus Como Causa do Nosso Conhecimento

Importa dizer, que Deus não é o meio pelo qual todas as coisas são

conhecidas, nem é correto afirmar, que todo o conhecimento tenha por

pressuposto o conhecimento de Deus. O que é certo é que, todo conhecimento é

causado em nós por Deus, pelo seu influxo. Cabe, pois, que raciocinando,

admitamos que este efeito, que causa em nós o conhecimento, nos refere a Deus

como à sua causa:

Efetivamente, Deus não é aquilo pelo qual todas as coisas são

conhecidas, nem é certo que todas as coisas sejam conhecidas a

menos que ele seja conhecido, mas porque é por seu influxo que

é causado em nós todo conhecimento.36

34 Idem. Ibidem. I, XI, 5 (70). 35 Idem. Suma Teológica. I, 2, 1, ad 1: “Muitos pensam que a felicidade, este bem perfeito do

homem, consiste nas riquezas, outros a colocam nos prazeres ou em qualquer outra coisa.” 36 Idem. Ibidem. I, XI, 6 (71).

Page 16: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

3) A Possibilidade e a Necessidade

da Demonstração Racional da

Existência de Deus

Se a existência de Deus não é uma verdade evidente por si mesma,

torna-se necessário fazê-la evidente por outra verdade. E é, pois, precisamente

nisto, que consiste uma demonstração, segundo a célebre definição do Padre

Leonel Franca: “(...) esclarecer uma verdade com outra é demonstrar.”37

Tomás de Aquino é moderado: se por um lado rejeita ser a existência

de Deus evidente por si mesma, por outro, também não perfilha a opinião

daqueles que admitem que somente pela fé, se possa reconhecer que Deus existe.

3.1) Os Argumentos Aduzidos por Aqueles que Defendem que Apenas

Pela Fé se Pode Saber que Deus Existe

Ora, alguns pensaram que uma demonstração da existência de Deus,

pela razão, é impossível. Segundo estes, somente a fé e a revelação podem nos

dar a certeza da existência de Deus:

Há, além da opinião aclarada, a de alguns que têm uma oposta,

segundo a qual é baldado o esforço para se provar que Deus é.

Com efeito, dizem que não se pode descobrir pela razão que

Deus existe, mas isto somente é possível mediante a fé e a

revelação.38

37 Leonel Franca. Por Que Existem Homens que não Crêem em Deus. p. 25. 38 Tomás de Aquino. Suma Contra os Gentios. I, XII, 1 (72).

Page 17: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

3.1.1) A Ineficácia dos Argumentos dos Filósofos e a Identidade Entre

Essência e Existência em Deus

Pensaram assim, pondera Tomás, por causa da ineficácia de muitos

argumentos aduzidos para se provar que Deus é.39 Talvez esta opinião se deva

também ao fato, de que alguns filósofos perceberam que, em Deus, a pergunta

“se é” é inseparável da pergunta “o que é”. Pois, se “o que Deus é”, nos é

desconhecido pela via racional, ser-nos-á também “se Ele é”, dado que nEle

existe identidade entre essência e existência:

Talvez esse erro possa encontrar algum fundamento nas

afirmações dos filósofos que provam haver em Deus identidade

entre sua essência e o seu ser, isto é, entre aquilo que

corresponde a o que é e aquilo que responde à pergunta se é. É

certo que por via racional não se pode chegar a saber de Deus o

que é. Donde concluírem que também não se pode demonstrar

de Deus se é .40

3.1.2) A Incognoscibilidade Para Nós do Nome “Deus”

Além disso, é o próprio Aristóteles, quem atesta que a demonstração

da existência de algo, pressupõe a compreensão do nome. Ora, a compreensão do

nome divino, é a compreensão da sua essência, e isso nos é vedado. Logo, como

39 Idem. Ibidem. I, XII, 2 (73): “Muitos foram levados a essa conclusão devido à fraqueza dos

argumentos apresentados por outros para se provar que Deus é.” É interessante a “audácia” de

Tomás aqui, que sempre se manteve fiel à uma postura de veneração ante a tradição que o

precedeu, ao acentuar com ousadia, a ineficiência desta, no que ao respeito ao rigor quanto

formulação das provas da existência de Deus. Podemos esperar assim, nesta surpreendente

declaração de “insuficiência” da tradição neste aspecto, uma nota de originalidade ou

renovação, no desenvolvimento das provas da existência de Deus, por Tomás. 40 Idem. Ibidem.

Page 18: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

não podemos conhecer a qüididade divina, não podemos demonstrar que Deus

existe:

Além disso, se o princípio da demonstração do se é, conforme

estabelece o Filósofo (...), deve supor a demonstração do nome,

visto que o conceito expresso pelo nome é a definição, segundo

afirma o mesmo (...), então nenhuma via estará aberta para

demonstrar-se que Deus é, estando excluído o conhecimento da

sua essência ou qüididade.41

3.1.3) A Transcendência Divina

Devemos levar em contra, que todo conhecimento humano tem origem

nos sentidos. De fato, é nos sentidos que encontra a base, de todas as nossas

demonstrações. Ora, se a demonstração de algo deve partir dos sentidos, as

coisas que transcendem os sentidos, tornam-se indemonstráveis. Agora bem,

Deus transcende os sentidos. Logo, a existência de Deus é indemonstrável:

Além disso, se os princípios da demonstração recebem dos

sentidos a origem do conhecimento, (...) tudo aquilo que

transcende os sentidos e as coisas sensíveis torna-se

indemonstrável. Com efeito, que Deus é pertence às coisas que

transcendem os sentidos e, conseqüentemente, é

indemonstrável.42

3.2) A Refutação dos Argumentos Acima e a Defesa da Prova Filosófica

da Existência de Deus

A falsidade das sentenças acima consignadas torna-se manifesta por

quatro razões. A primeira, é que a norma de demonstração prevê que se pode

41 Idem. Ibidem. I, XII, 3 (75). 42 Idem. Ibidem. I, XII, 4 (76).

Page 19: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

provar a existência da causa, tomando por base os seus efeitos. A segunda é que,

se não fosse possível nenhum conhecimento supra-sensível, não deveria haver

nenhuma ciência além da natural, como é o caso da metafísica. A terceira, é que

muitos filósofos chegaram a ter, pela especulação racional, algum conhecimento

certo e verdadeiro sobre Deus. Por fim, a quarta razão funda-se na autoridade

apostólica, que afirma ser possível certo conhecimento de Deus pelas coisas

criadas:

A falsidade desta sentença evidencia-se quer pela norma da

demonstração, que estabelece poder-se chegar às causas por

meio dos efeitos; quer pela própria classificação das ciências,

visto que, se não houver uma substância cognoscível acima da

substância sensível, também não haverá uma ciência acima da

ciência natural, (...); quer, ainda, pelo esforço especulativo dos

filósofos e, finalmente, pela verdade apostólica, que afirma: As

coisas invisíveis de Deus são vistas pelo conhecimento que

temos das coisas criadas (Rm, 1,20).43

3.2.1) A Possibilidade de Saber que Deus É Sem Saber o Que Ele É

De fato, ignoramos qual seja a essência divina, e não podemos

conhecer Deus nEle mesmo. Com efeito, admitimos também, que na

simplicidade divina é impossível subsistir qualquer composição. No entanto, o

nosso intelecto – que procede compondo – pode formar uma proposição que

exprima que Deus é, sem contudo apreender o que Ele é em si mesmo:

Essa identificação se entende do ser de Deus pelo qual ele

subsiste em si mesmo, o que nós ignoramos, bem como

ignoramos que seja a sua essência. Não se entende, porém, do

ser que significa a composição feira pela inteligência. Assim

sendo, torna-se demonstrável que Deus é, enquanto por meio de

43 Idem. Ibidem. I, XII, 5(77).

Page 20: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

razões demonstrativas nossa mente é induzida a formar uma

proposição referente a Deus, a qual exprime que Deus é.44

Esta composição, em nada expugna a simplicidade divina. Trata-se,

antes, de uma composição do nosso intelecto – que inclusive reconhece que tal

composição não subsiste em Deus, considerado em si mesmo – cuja da fraqueza

é incapaz de apreender a Deus na sua simplicidade.

3.2.2) A Demonstração da Existência de Deus Será Pelos Efeitos

(Propter Quia).

Segundo o princípio de que se pode chegar à causa pelos os seus

efeitos, não nos é necessário ainda, assumir a essência divina, para demonstrar

que proposição “Deus existe”, se justifica para nos fornecer a certeza da sua

existência. Ser-nos-á legítimo, de fato, antes substituir a essência divina que

desconhecemos, pelos efeitos de Deus que podemos captar. Serão eles que nos

dirão, de certo modo, o que Deus é, o que este nome significa. Não obstante seja

um saber muito imperfeito e inadequado, pois não nos dá um conhecimento

direto do que Deus é, ele bastará ao menos, para provar que Deus é. Esta é a

demonstração quia:

Nos argumentos que demonstram que Deus é, não é necessário

assumir a essência ou qüididade divina como termo médio da

demonstração (...). Em lugar da qüididade, deve-se tomar o

efeito como termo médio da demonstração, o que acontece nas

demonstrações quia e, assim, recebe-se do efeito o significado

deste nome deus.45

44 Idem. Ibidem. I, XII, 6(78). 45 Idem. Ibidem. I, XII, 7(79).

Page 21: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

3.2.3) O Conhecimento da Existência de Deus Parte dos Sentidos

Portanto, se Deus transcende os nossos sentidos, são sensíveis,

entretanto, os seus efeitos, que tomaremos como termos médios, quando da

demonstração da sua existência. Destarte, todo o conhecimento humano, mesmo

o das coisas que se subtraem aos sentidos, tem origem nos sentidos:

Donde também ficar evidenciado que, embora Deus transcenda

as coisas sensíveis e os sentidos, contudo os seus efeitos, dos

quais é assumida a demonstração para provar que Deus é, são

sensíveis. E, assim, a origem do nosso conhecimento, até

mesmo das coisas que transcendem os sentidos, está nos

sentidos.46

3.2) O Procedimento da Prova Racional

Provado que a existência de Deus não é evidente por si mesma e que

precisa ser demonstrada; demonstrado também que é possível provar que Deus é

pela razão; resta-nos, por fim, provar que Deus é. E Tomás o fará por

argumentos tirados dos filósofos e dos doutos católicos:

Tendo em vista que não é vão o esforço dispendido na

demonstração de que Deus é, vamos agora apresentar as razões

segundo as quais os filósofos e os doutores católicos provaram

que Deus é.47

46 Idem. Ibidem. I, XII, 8(80). 47 Idem. Ibidem. I, XIII, 1 (81).

Page 22: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

4) A Exposição das Cinco Vias para se

Provar a Existência de Deus

Para Tomás, a razão pode, sem recorrer à fé e à revelação, provar que

Deus é. Ele julga exeqüível que, por meio de argumentos convergentes e

convincentes, a filosofia possa chegar a um conhecimento certo da existência de

Deus. Tomás de Aquino pensa poder demonstrar a existência de tal ente

metafísico, por meio de cinco vias: “Pode-se provar a existência de Deus, por

meio de cinco vias”.48

4.1) A Via do Movimento

A primeira via, é também a mais clara. Nela parte-se de um dado certo

e evidente aos nossos sentidos: “nossos sentidos nos atestam, com toda certeza,

que neste mundo, algumas coisas se movem”49. Com efeito, o mundo possui

certa entidade, ele é uno e indivisível: “Ora, o mundo no seu conjunto constitui

uma certa entidade e deve, portanto, ter uma certa unidade: o mundo é um todo

em si, uno e indiviso. (...).”50 Portanto, nesta unidade e indivisibilidade do

mundo, o que se diz da parte, deve-se dizer do todo. Logo, se certas coisas se

movem no mundo, deve-se afirmar que o mundo está em movimento.

Ora, nada se move a si mesmo, pois enquanto é movido, por outro é

movido: “Tudo que se move é movido por outro”.51 Ademais, mover algo é levá-

lo da potência ao ato: “Mover nada mais é, portanto, do que levar algo da

potência ao ato (...)”.52 Agora bem, nada pode ser levado a ato senão por um ente

48 Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 2, 3, C. 49 Idem. Idem. 50 Felippo Selvaggi. Filosofia do Mundo. p. 432. 51 Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 2, 3, C. 52 Idem. Idem.

Page 23: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

que já esteja em ato: “(...) e nada pode ser levado ao ato senão por um ente em

ato”.53

Recordemos – uma vez mais – que para o Aquinate, a expressão

“mundo” corresponde a cosmos e cosmos, por sua vez, significa e engloba todas

as coisas que são. Importa, portanto, dizer que, se certas coisas no mundo se

movem, o mundo está em movimento. E se o mundo está em movimento, ele

precisa ser necessariamente movido. Deve-se também acentuar, que é necessário

que exista um ente em ato que mova o mundo e o leve a ato, pois nada move a si

mesmo e nem é levado a ato, senão por outro ente que já esteja em ato.

Ora, este ente em ato que move o mundo, pode ou não estar em

movimento. Caso esteja, será também movido e ainda o ente que o move será

movido e assim percorreríamos o infinito neste trajeto de causa e efeito, o que é

impossível:

É preciso que tudo o que se move seja movido por outro. Assim,

se o que se move é também movido, o é necessariamente por

outro, e este por outro ainda. Ora, neste caso não haveria o

primeiro motor, por conseguinte, também tampouco, outros

motores, pois os motores segundos só se movem pela moção do

primeiro motor, como o bastão que só se move movido pela

mão.54

Cumpre, pois, atestar, que não havendo um primeiro motor, não

haveria tampouco os outros motores. Isto se dá pelo fato de que, na filosofia

tomista, é vigente o princípio de causalidade, ou seja, em não havendo uma

primeira causa, não haveria um efeito propriamente dito desta. De fato, se não

houvesse causa, não haveria efeito, porque supressa a causa, ficaria também

supresso o efeito. “Por outro lado, supressa a causa, suprime-se o efeito”.55 Mas

como verificamos, com toda certeza pelos nossos sentidos a existência do efeito

53 Idem. Idem. 54 Idem. Idem 55 Idem. Idem. I, 2, 1, C.

Page 24: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

– que é o cosmos – e que este não possui em si mesmo razão de ser, fica

preestabelecida a existência da causa:

Ora, por qualquer efeito podemos demonstrar a existência de sua

causa, se pelo menos os efeitos desta causa são mais conhecidos

para nós, porque como os efeitos dependem da causa,

estabelecida a existência do efeito, segue-se necessariamente a

preexistência de sua causa.56

Donde que, provando-se a existência do efeito, segue-se à existência

da causa. Tenha-se presente ainda, que não se pode ir ao infinito na série das

causas e efeitos. É mister então, que haja uma causa primeira. Até porque, em

não havendo uma causa primeira, tampouco haveria efeito algum. Mas como o

movimento do mundo, é um efeito evidente aos nossos sentidos, segue-se como

uma exigência da razão, a existência de uma causa e, conseqüentemente, de um

primeiro motor. Primeiro motor porque estamos aqui no âmbito do movimento.

Mas de qualquer forma, trata-se de uma primeira causa, daquilo que seria o

fundamento de todas as coisas que são.

Este primeiro motor deve ser imóvel, pois não o sendo, seria

certamente movido – haja vista que nada move-se a si mesmo – e já não seria o

primeiro motor. Deve ser também ato puro, pois se nele houvesse potência, já

estaria em movimento e seria movido por outro, pois a potência é princípio de

movimento. Este ser é tal, que é ato puro e motor imóvel, nós o chamamos Deus:

“É necessário chegar a um primeiro motor, não movido por nenhum outro, e um

tal ser, todos entendem: é Deus”.57

56 Idem. Idem I, 2, 2, C. 57 Idem. Idem. I, 2, 3, C.

Page 25: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

4.2) A Via das Causas Ordenadas Eficientes

A segunda via, procede das causas eficientes ordenadas. Novamente

Tomás parte do dado empírico, para provar a existência do meta-empírico.

“Encontramos nas realidades sensíveis a existência de uma certa ordem entre as

causas eficientes (...)”.58

Causa eficiente, são os princípios externos que dão origem ao

movimento, pela qual a coisa é ou passa a ser: “Os princípios externos são a

causa eficiente, pela ação da qual tem início o movimento e a coisa é ou muda

(...)”.59

Ora, daí se pode ver, que se a causa eficiente é causa porque coloca as

coisas no ser, é impossível que algo seja causa eficiente de si mesmo, pois no

caso, seria anterior a si próprio, o que é um absurdo: “(...) mas não se encontra,

nem é possível, algo que seja causa eficiente de si próprio, porque desse modo

seria anterior a si próprio: o que é impossível.”60

Tampouco na ordem das causas eficientes, se poderia progredir até o infinito,

pois no que é essencialmente ordenado, uma coisa sucede a outra num contínuo

movimento de causas. Dá-se que a causa primeira é a causa eficiente da causa

segunda e esta a da intermediária que, por sua vez, produz o efeito último:

Ora, tampouco é possível, entre as causas eficientes, continuar até

o infinito, porque entre todas as causas eficientes ordenadas, a

primeira é causa da intermediária e as intermediárias são da

última, sejam elas numerosas ou apenas uma.61

Por conseguinte, se não houver a causa eficiente primeira, não haverá,

logicamente, nem a intermediária nem as demais. Entretanto, como é evidente

aos nossos sentidos, que existe uma ordem entre as causas eficientes, será

58 Idem. Idem 59 Felippo Selvaggi. Op. Cit.. p. 304. 60 Tomás de Aquino. Suma Teológica. I, 2, 3, C. 61 Idem. Op. Cit.

Page 26: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

evidentemente falso negá-la. Se o efeito último é evidente a nossos sentidos,

torna-se clara a existência da causa intermediária, já que o efeito último só

poderia ser produzido por uma causa intermediária. Outrossim, em existindo a

causa intermediária, torna-se inegável a existência de uma causa primeira, pois a

causa intermediária reduz-se à causa primeira. Logo, é necessário que haja uma

causa eficiente primeira. Portanto, entre as causas eficientes ordenadas, deverá

haver também uma causa eficiente primeira. Negá-la, seria negar a própria

realidade sensível, inegável aos nossos sentidos:

Por outro lado supressa a causa, suprime-se também o efeito.

Portanto, se não existisse a primeira causa entre as causas

eficientes, não haveria a última e nem a intermediária. Mas se

tivéssemos de continuar até o infinito na série das causas

eficientes, não haveria causa primeira; assim sendo, não haveria

efeito último, o que evidentemente é falso.62

Tal causa eficiente – causa das causas e princípio de todas as coisas –

só pode ser Deus: “Logo, é necessário afirmar uma causa eficiente primeira, a

que todos chamam Deus.”.63

4.3) A Via do Contingente e do Necessário

A terceira via é tomada do contingente64 e do necessário. Novamente,

o fundamento da argumentação de Tomás é a dimensão sensível. De fato,

verificamos entre as coisas, aquelas que podem ser ou não ser, pois nascendo

passam a ser e perecendo deixam de ser: “Encontramos, entre as coisas, as que

podem ser ou não ser, uma vez que algumas se encontram que nascem e

62 Idem. Op. Cit. 63 Idem. Op. Cit. 64 Felippo Selvaggi. Op. Cit.. p. 449: “Contingente é, por sua vez, o que não é necessário, o que

pela sua natureza é tal que existe, mas pode também não existir: que, embora existindo de fato,

pode não existir em linha de princípio”.

Page 27: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

perecem. Conseqüentemente podem ser e não ser.”65 Eis no que consiste o

contingente: aquilo que não tem em si, a razão suficiente da sua existência.

Ora, o que do mundo se diz da parte, com mais propriedade deve-se

dizer do todo, pois o todo precede as partes. Assim, se existem coisas no mundo

que são contingentes, deve-se dizer que o mundo mesmo é contingente.66

Destarte, se o mundo é contingente, é porque veio a ser e pode deixar de ser.

Sendo assim, houve um momento em que o mundo não era, “pois o que pode não

ser não é em algum momento.”67 Ora bem, seguindo esta linha de raciocínio,

ainda hoje nada existiria, pois o ser só do ser pode provir e o contingente só

procede necessário:

Se tudo pode não ser, houve um momento em que nada havia.

Ora, se isso é verdadeiro, ainda agora nada existiria, pois o que

não é só passa a ser por intermédio de algo que já é. Por

conseguinte, se não houve ente algum, foi impossível que algo

começasse a ser; logo, hoje, nada existiria: o que é falso.68

É falso, no entanto, porque palpável aos nossos sentidos, dizer que o

mundo não existe. E se o mundo existe, sendo ele contingente, deve existir

também uma hierarquia de seres necessários. Pelo menos deve haver um ente,

65 Tomás de Aquino. Idem. I, 2, 3, C. 66 F. Copleston, formula da seguinte forma este mesmo o argumento, na sua célebre polêmica

contra o ateísmo de Russell: B. Russell. Perché non sono cristiano. Milão: Longanesi, 1972. p.

138. In: MONDIN, Battista. Quem é Deus? Elementos de Teologia Filosófica. Trad. José

Maria de Almeida. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2005. p. 229: “Em segundo lugar, o mundo é

simplesmente um conjunto real ou imaginário de objetos individuais que não têm

exclusivamente em si mesmos a razão da própria existência. Não existe um mundo distinto dos

objetos que o formam, assim como a raça humana não é algo separado dos indivíduos que

compõem. Por isso, dado que os objetos ou eventos existem, e dado que nenhum objeto da

experiência contém em si mesmo a razão da própria existência, a totalidade dos objetos deve

ter uma razão externa a si mesma.”(O itálico é nosso). 67 Idem. Idem. 68 Idem. Idem.

Page 28: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

que fosse antes do mundo e que tenha colocado o mundo no ser: “Assim, nem

todos os entes são possíveis, mas é preciso que algo seja necessário entre as

coisas”.69 O mundo não se explica a si mesmo, está sempre a exigir uma razão

externa a ele, que torne possível a sua existência. Daí dizer Wittgentein, que para

provar a existência de Deus, basta “tomar consciência de que o mundo não é

tudo.”70

Ademais – este ser necessário para que o mundo passe a ser – pode

ou não retirar a sua necessidade de outrem. Ora, entre os entes necessários,

também não se pode proceder indefinidamente, posto que, em não havendo um

primeiro ente necessário, não existiriam tampouco outros entes necessários. De

fato, necessário é, falando estrita e propriamente, somente aquilo que existe por

si (a se) e que, por conseguinte, encontre em si a razão da sua existência.

Agora bem, sendo o necessário a razão de ser do contingente, isto é,

daquilo que não existe por si (a se), toda contingência forçosamente tem a sua

origem no necessário. Destarte, a maior prova da existência de um ente

necessário, é a existência de seres contingentes.

Portanto, deve-se dizer que existe um ente que seja necessário e que

não encontre, alhures, a causa de sua necessidade, mas que, ao contrário, seja

causa da necessidade de todos os demais entes necessários. Ora, tal ser só pode

ser Deus:

Portanto, é necessário afirmar a existência de algo necessário por

si mesmo, que não encontra alhures a causa de sua necessidade,

mas que é causa da necessidade para os outros: o que todos

chamam Deus.71

69 Idem. Idem. 70 Wittingenstein. Tracatatus. 6, 45. In: MONDIN, Battista. Quem é Deus? Elementos de

Teologia Filosófica. Trad. José Maria de Almeida. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2005. p. 229. 71 Idem. Idem.

Page 29: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

4.4) A Via dos Graus de Perfeição

A quarta via examina os graus de perfeições presentes nas coisas.72

A noção de ser é muito rica, podemos desdobrá-la em várias noções.

Este desdobramento da noção de ser busca privilegiar um aspecto a preferência

de outros. Chamamos esses desdobramentos de transcendentais. Podemos dizer

que o ser é uno, que tudo, na medida em que é, é verdadeiro; que tudo, na medida

que é, é bom e belo, e assim por diante. Na verdade, todas essas noções são

desdobramentos de uma única noção, a noção de ser. 73

Existem coisas mais ou menos verdadeiras, boas e nobres do que

outras.74 Ora, mais ou menos se emprega a coisas na medida em que elas se

aproximam daquilo que é máximo.75 Assim, diz-se que o mais quente é o que

mais se aproxima daquilo que é sumamente quente.76 Por conseguinte — essas

noções de coisas mais ou menos verdadeiras, boas e nobres — nos evidenciam a

existência de um grau supremo.77 Além disso, já que noções como verdadeiro,

72Idem. Ibidem: “A quarta via se toma dos graus que se encontram nas coisas.” 73Manuel Correia de Barros. Lições de Filosofia Tomista. Disponível em:

<http://www.microbookstudio.com/mcbarros.htm>. Acesso em: 23/01/2005: “A noção de ser,

que abrange tudo, é muito rica, e excede a capacidade da nossa inteligência. Desdobramo-la por

isso em várias, considerando no ser um aspecto de preferência aos outros, encarando-o só por

um certo lado. As noções assim obtidas, idênticas no fundo, dizem-se, como o próprio ser,

transcendentais. As principais são a unidade, a verdade, o bem, a beleza; unidade

transcendental, beleza transcendental, etc., para se distinguirem de noções habituais a que se dão

os mesmos nomes.” 74Tomás de Aquino. Suma Teológica I, 2, 3, C: “Encontra-se nas coisas algo mais ou menos

bom, mais ou menos verdadeiro, mais ou menos nobre etc.” 75Idem. Ibidem: “Ora, mais ou menos se dizem de coisas diversas conforme se aproximam

diferentemente daquilo que é em si mesmo o máximo.” 76Idem. Ibidem: “Assim, mais quente é o que mais se aproxima do que é sumamente quente.” 77Idem. Ibidem: “Existe em grau supremo algo verdadeiro, bom, nobre e conseqüentemente ente

em grau supremo (...)”.

Page 30: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

bom e nobre correspondem à noção de ser, devemos concluir que o ente que

possui essas noções em grau máximo possui também o ser em máximo grau.78

Outrossim, o que é máximo num determinado gênero é causa de tudo o

que é desse gênero.79 Pois bem, aquele ser que possui o grau máximo da verdade,

da bondade, e de toda a perfeição, é causa dessas perfeições nos outros seres.

Este Ser, fonte do ser e de todo grau de perfeição das coisas, é

transcendente à ordem dos seres naturais. O que os demais seres possuem, mais

ou menos, este ser possui em grau máximo. E não é só. Tudo o que os diversos

seres possuem de perfeição, só a possuem enquanto participam da Suma

Perfeição. Este Ser – Suma Perfeição – nós o chamamos Deus.80

4.5) A Via do Governo do Mundo

A quinta e última via é tirada do governo das coisas. É verificável

pelos nossos sentidos, que coisas que carecem de conhecimento agem sempre ou

quase sempre da mesma forma. Elas como que obedecem a uma lei, a uma regra,

que encaminha para o que é ótimo. Ora, coisas que carecem de conhecimento não

podem atingir e nem buscar um fim, senão pela intervenção de um princípio

intelectivo: “Ora, aquilo que não tem conhecimento não tende a um fim, a não

ser dirigido por algo que conhece e que é inteligente, como a flecha pelo

arqueiro.”81

Destarte, assim como o movimento da flecha para o alvo, não se

explica senão pela intervenção do arqueiro, também o movimento dos corpos

físicos que carecem de conhecimento, mas que, no entanto, buscam um fim, não

se explica a não ser pela intervenção de um princípio intelectivo.

78Idem. Ibidem: “(...), pois, como se mostra no livro II da Metafísica, o que é em sumo grau

verdadeiro, é ente em sumo grau.” 79Idem. Ibidem: “Por outro lado, o que se encontra no mais alto grau em determinado gênero é

causa de tudo o que é deste gênero (...)”. 80Idem. Ibidem: “Existe então algo que é, para todos os outros entes, causa de ser, de bondade, e

de toda a perfeição: nós o chamamos Deus.” 81 Idem. Idem.

Page 31: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

Ao ente a quem cabe governar, pela sua providência, todas as coisas

naturais destituídas de conhecimento, chamamos Deus. “Logo, existe algo

inteligente pelo qual todas as coisas naturais são ordenadas ao fim, e a isso

chamamos Deus”. 82

4.6) Conclusão

Assim provamos que Deus existe. Entretanto, este Deus cuja existência

agora admitimos, não nos permite saber o que Ele é. Ele é infinito, enquanto nós

somos espíritos finitos. Somos capazes apenas de admitir o fato certo da sua

existência, sem jamais, no entanto, sermos capazes conseguir esgotar o seu

mistério:

Esse Deus cuja existência afirmamos não nos deixa penetrar o

que Ele é. É infinito e nossos espíritos são finitos, portanto

devemos contemplá-lo, sem jamais pretendermos esgotar seu

conteúdo.83

Mais do que a relevância e a originalidade, Gilson destaca a eficácia

das provas tomistas.84 Se nem todos as recomendam, Tomás de Aquino as

recomenda e a Igreja as prefere.85 Ser antitomista, acentua Reale quando expõe o

pensamento de Gilson, é para ele ser antiintelectualista:

82 Idem. Idem. 83 Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 661. 84 Idem. O Ateísmo Difícil. In: ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. História da Filosofia

Vol. 3: Do Romantismo até nossos dias. 5º Edição. (Coleção Filosofia). São Paulo: Paulus,

1991. p. 777: “Pouco antes de morrer, Gilson escreveu um famoso opúsculo, intitulado O

ateísmo difícil (publicado postumamente, 1979), onde ele reconhecesse que se pode chegar a

Deus por muitos caminhos, inclusive não metafísicos. (...) E conclui que, de sua parte, ele

considera eficazes os caminhos metafísicos de santo Tomás.” (O itálico é nosso). 85 Idem. Ibidem: “Hoje, o meu ponto de vista é este: enquanto o tomista deixa que cada qual

chegue a Deus como melhor puder, alguns não nos querem permitir ir a Deus segundo o

caminho que santo Tomás recomenda e que a Igreja propõe.”

Page 32: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

Gilson vê nas posições antitomistas um perigoso

antiintelectualismo, que pode ser útil para a paz de alguns

espíritos, mas que não faz as pazes com a própria sabedoria.86

Não poderíamos terminar a exposição destas premissas, sem dispensar

uma passagem, extremamente elucidativa do próprio Gilson, onde ele diz, com

todas as letras, ao comentar a teodicéia do aquinatense, que o tomismo supera

não só o aristotelismo, mas todos os sistemas que o precederam. Gilson pensa

que a filosofia de Santo Tomás, não é agostiniana, nem aristotélica, porque é

tomista87 e sempre aberta para o futuro:

Superando assim o aristotelismo, santo Tomás introduzia na

história uma filosofia que, por seu fundo mais íntimo, era

irredutível a qualquer um dos sistemas do passado e, por seus

princípios, permanece perpetuamente aberta para o futuro.88

86 Giovanni Reale. História da Filosofia: Do Romantismo aos Nossos Dias. P. 777-778. (O

itálico é nosso). 87 É bom lembrar, que na nossa boca, a expressão “tomismo”, quer significar, tão-somente, uma

doutrina que pensamos remeter a Tomás. 88 Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 671.

Page 33: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

BIBLIOGRAFIA

BARROS, Manuel Correia de. Lições de Filosofia Tomista. Disponível em:

<http://www.microbookstudio.com/mcbarros.htm>. Acesso em: 23/01/2005.

FRANCA, Leonel. Porque Existem Homens que não Crêem em Deus. São

Paulo: Mundo Cultural, 1979.

GILSON, Etienne. A Filosofia Na Idade Média. Trad. Eduardo Brandão. São

Paulo: MARTINS FONTES, 1995.

_____. O Ateísmo Difícil. In: ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. História

da Filosofia Vol. 3: Do Romantismo até nossos dias. 5º Edição. (Coleção

Filosofia). São Paulo: Paulus, 1991.

MARIE, Joseph Nicolas. Introdução À Suma Teológica. Trad. Henrique Lima

Vaz et al. São Paulo: Edições Loyola, 2001.

PHILOTHEUS BOEHNER, Etienne Gilson. História da Filosofia Cristã,

Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 7ºed. Trad. Raimundo Vier. Rio de

Janeiro: VOZES, 2000.

RUSSELL, B. Perché non sono cristiano. Milão: Longanesi, 1972. In:

MONDIN, Battista. Quem é Deus? Elementos de Teologia Filosófica. Trad.

José Maria de Almeida. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2005.

TOMÁS DE AQUINO. De Veritate. In: LAUAND, Luiz Jean. Cronologia de

Verdade e Conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

_____. Suma Contra os Gentios. Trad. D. Odilão Moura e Ludgero Jaspers.

Rev Luis A. De Boni. Porto Alegre: EDPUCRS, 1996. 2 v.

Page 34: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

_____. Suma Teológica. Trad. Aimom - Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola,

2001. v. I e III.

WITTINGENSTEIN, L. Tracatatus. In: MONDIN, Battista. Quem é Deus?

Elementos de Teologia Filosófica. Trad. José Maria de Almeida. 2ª ed. São

Paulo: Paulus, 2005.

Page 35: Romanos . As de Deus, afirma Tomás, podem nos Deus, à · 2) A Não-Evidência da Existência de Deus No bojo da questão da cognoscibilidade da existência de Deus pela razão e

This document was created with Win2PDF available at http://www.win2pdf.com.The unregistered version of Win2PDF is for evaluation or non-commercial use only.This page will not be added after purchasing Win2PDF.