romance policial: duas faces de um detetive...
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ROMANCE POLICIAL: DUAS FACES DE UM DETETIVE
Abele Marcos Casarotto1
Introdução
O romance policial é um entrecruzamento de várias narrativas, nele cabe a
mitologia, a história, a crítica e o poema. É um espaço propício para o exercício da
crítica literária. O crítico literário utiliza-se dos instrumentos básicos de um detetive,
para fazer saltar da obra múltiplas leituras ou apro(a)funda as já pensadas.
Garimpar o texto com uma lupa é a atividade básica do crítico literário. Bellini,
o detetive do romance Bellini e o demônio, de Tony Bellotto, utiliza a lupa na busca de
uma pista para o assassinato da bela Sílvia Maldini. O computador não só é um
instrumento contemporâneo para o crítico literário, como é para o detetive Bellini, que
ainda não sabe manuseá-lo, mas poderá aprender com o detetive que veio de longe. Para
o crítico, o computador facilita a colagem, o recorte, o destaque, a cópia, procedimentos
tão importantes na arte de seu ofício. A arma, que salva ou mata, matou a bela Sílvia e
salvou Bellini das garras da assassina. A arma do crítico poderá salvar um texto,
apresentando uma proposição ainda não desvendada, ou assassiná-lo, com a arma
mortal da palavra.
Com a utilização da lupa, do computador e da arma, será apresentada uma visão
do romance Bellini e o demônio.
Romance, Romance policial
Bellini e o demônio, de Tony Bellotto, é o segundo romance policial do autor, o
primeiro foi Bellini e a esfinge, também publicado pela Companhia das Letras.
1 Universidade do Oeste de Santa Catarina – Santa Catarina – Brasil.
Mas o que se entende por romance policial? Pensar uma resposta para a questão,
é pensar a história do romance nas múltiplas configurações. O romance pode ser
designado como uma forma literária independente, difícil de estabelecer parâmetros; é
um ser andrógino, nele tudo cabe, tudo é possível. Apresenta-se sob várias formatações
e nelas, é possível encontrar as diversas áreas do conhecimento, transformando-se em
uma espécie de síntese da totalidade.
Alargando continuamente o domínio de sua temática, interessando-se pelapsicologia, pelos conflitos sociais e políticos, ensaiando constantemente novas técnicas narrativas e estilísticas, o romance transformou-se, no decorrer dos últimos séculos, mas sobretudo a partir do século XIX, na mais importante e mais complexa forma de expressão literária dos tempos modernos. De mera narrativa de entretenimento, sem grandes ambições, o romance volveu-se em estudo da alma humana e das relações sociais, em reflexões filosóficas, em reportagem, em testemunho polêmico, etc. O romancista, de autor pouco considerado na república das letras, transformou-se num escritor prestigiado em extremo, dispondo de um público vastíssimo e exercendo uma poderosa influência nos seus leitores. (SILVA, 1994, p. 671).
O romance, em uma forma genérica, está intimamente vinculado com a
“burguesia” e aos cenários urbanos, assim como o romance policial, mas com a
exigência obrigatória de um policial/detetive, no entanto, não é ele que determina a sua
qualificação. De qualquer forma, a denominação romance policial designa a narrativa
longa que apresenta um fato a ser desvendado, um criminoso, uma vítima e um
policial/detetive. O romance policial apresenta-se, por vezes, com outras denominações,
como por exemplo: romance problema, romance suspense, romance noir, entre outras
formas.
Atualmente há outros gêneros dentro do próprio romance policial, como o roman noir, ainda dos franceses, um dos thrillers americanos; o romance psicológico; ainda o chamado romance de suspense.De qualquer forma, a denominação romance policial, certa ou errada, ficou para indicar o gênero literário. E, se bem que a julguemos errada continuaremos a empregá-la na falta de outra melhor. (ALBUQUERQUE, 1979, p. 4).
Perdura na atualidade a denominação romance policial e admite três elementos
fundamentais, o criminoso, a vítima e o policial/detetive. A tríade que compõe o
romance policial pode apresentar-se de diferentes maneiras. O policial não é
necessariamente aquele que está vinculado ao poder do Estado, pode ser um detetive,
elemento autônomo, que procura desvendar um crime. Também poderá ser substituído
pela vítima lesada, que procura desvendar o ato criminoso. O criminoso, aquele que
cometeu o crime, ou o ato ilícito em relação à vítima. A vítima, esta sim, sempre, será a
vítima, o elemento lesado, aquele que sofreu as consequências do ato criminoso.
Entende-se por crime a quebra de uma convenção estabelecida entre os membros
da sociedade; ato ou ação, que não se mostra, tecnicamente, diz-se o fato proibido por
lei, sob a ameaça de uma pena, instituído em benefício da coletividade e segurança
social do Estado; crime é a contravenção, indicando-se a violação da lei ou a falta de
obediência de seus dispositivos. Quando a norma é quebrada ou desrespeitada, dá-se
origem ao ato criminoso. No vocabulário jurídico, crime é toda ação cometida com
dolo, ou infração contrária aos costumes, à moral e à lei, que é legalmente punida, ou
que é reprovada pela consciência.
Conceituar o romance policial de forma satisfatória é uma tarefa árdua. Em
estudo apresentado por Albuquerque alguns conceitos são apresentados:
Podemos definir sumariamente o romance policial, dizendo que é o relato de uma caçada ao homem, mas - isso é essencial - uma caçada em que utilizamos o raciocínio para interpretar fatos aparentemente insignificantes, a fim de chegarmos a uma conclusão. (FOSCA, apud ALBUQUERQUE, 1979, p. 14).O que é um romance policial? É curioso constatar que ninguém sabe nada. Os críticos só estão de acordo em um ponto: o romance policial não é um romance como os outros, porque a lógica tem nele um papel preponderante. (NARCEJAC apud ALBUQUERQUE, 1979, p. 14).
Bellini e o demôni apresenta-se como um romance policial e seus elementos
constitutivos estão presentes. Um detetive – um não, três – três focos narrativos, um
deles centrado no crime de Silvia Maldini; outro, no desafio de encontrar os
manuscritos do escritor de narrativas policiais, Dashiell Hammett; o terceiro, nos
problemas existenciais do detetive Remo Bellini, suas angústias e o seu relacionamento
com Lázaro, e imbricado neles, o criminoso e o sujeito lesado.
A narrativa diegética no romance Bellini e o demônio
Entendendo-se a diegese como um referencial da narração, embora se saiba não
ser real, admite-se como tal, constitui o universo espaço-temporal designado pela
narração, com projeção imaginária de seres e situações de uma realidade referencial. Na
diegese apresentada no romance Bellini e o demônio, o protagonista é Remo Bellini,
um quase detetive, o qual é formado em Direito e trabalha na agência de investigação de
Dora Lobo. É a partir da perspectiva de Bellini que os fatos são apresentados. Ele
encontra-se envolvido com dois casos, o primeiro é encontrar um manuscrito perdido de
Dashiell Hammett, o mestre do romance noir; e descobrir o assassino da bela jovem
Sílvia Maldini, encontrada com um tiro na testa, no banheiro da escola.
Abri o jornal:‘Adolescente assassinada no banheiro da escola com um tiro na...’‘O que tanto te atrai nos crimes?’, perguntou Antônio interrompendo-me a leitura.‘A atmosfera’, respondi, sem desgrudar os olhos da notícia, enquanto ele me servia o sanduíche de salame com queijo provolone.
Bellini é envolvido numa trama que se desdobra em várias mortes, ressurreição,
tráfico de armas, drogas, sexo, mulheres e vida boêmia. Circula entre São Paulo, Rio de
Janeiro, Petrópolis e Anápolis. Na primeira parte do romance, por delegação de sua
chefe, Dora Lobo, é responsável para desvendar o caso do manuscrito desaparecido,
quando está próximo de desvendá-lo, é chamado para assumir a Agência Lobo de
Investigações. Na segunda parte do romance, o narrador assume o controle da Agência
Lobo e com a ajuda de Olga Souza Lins, a Gala, jornalista que está em busca de uma
grande reportagem, desvenda o assassinato de Sílvia Maldini. Ao desvendar o
assassinato, encontra-se na mira da assassina e é salvo por Dora Lobo, que elucida o
caso manuscrito perdido de Dashiell Hammett. Bellini, ao desvendar os casos, extirpa
também os seus demônios, o terceiro caso.
Os Bellinis
Bellini, um deus solar vindo da Ásia, pai de Pitágoras, desfilou na paisagem
caótica do centro de São Paulo, na esplendorosa Copacabana e nos mais distantes
pontos do Brasil. Porte atlético, 1,82m, 83 quilos e uma envergadura que atemorizava os
adversários, um semideus greco-romano. Essa é uma descrição de Bellini, não a do
detetive apresentado pelo romancista Tony Bellotto, em seu primeiro livro, Bellini e a
esfinge, nem do segundo, Bellini e o demônio, mas poderia ser de Bellini, o capitão da
Seleção Brasileira de 1958, que ergueu a taça Jules Rimet, com os braços elevados
acima da cabeça, num gesto de grandeza vitoriosa e, ao mesmo tempo, de oferecimento
universal, um “vitorioso” no Brasil e fora dele, um apolíneo, ou como diria a velhinha
simpática, para não dizer possuída do deus “Martini”, Isabella Zapotek, esposa
abandonada de Américo Zapotek: “Eu adorava o Bellini jogador. Era um homem
lindíssimo.” (BELLOTTO, 1997, p. 61).
Com a ajuda de uma foice de aço, vem uma música de longe. Distância
comparada entre a Terra e o Céu, envolvida em treva espessa e mergulhada em infectos
vapores e (re)ssoada pelos Titãs e nela há marcas do personagem Bellini, agora sim,
aquele do romance Bellini e o demônio, de Tony Bellotto, um quase detetive, quase
amante, um quase advogado, um quase entendedor de música, um quase...
‘Você quer que eu comece do romance secreto do Hammett ou do meu próprio romance secreto?’, perguntou Dora. ‘Quer dizer que você e o Irwin... era verdade?’‘Calma lá, Bellini. Você desvendou um crime usando uma lupa, tudo bem, mas ainda não é um Sherlock Holmes.’‘Ou uma Dora Lobo.’‘Muito menos uma Dora Lobo. Homens não passam de homens, frangos, entenda isso.’ (BELLOTTO, 1997, p. 247).
Bellini sempre entende a Lobo, a detetive da Agência Lobo, uma senhora
supostamente assexuada, com “carão” de lobo, “olhão” de lobo, “jeitão” de lobo, que
um dia descobre que não é mais “lobolobolobolobolobo”, mas “bolobolobolobolobolo”.
Bellini sempre suspeitou da sexualidade da Lobo. Na primeira vez em que deixa a
Agência Lobo, e a confortável companhia dos Tiparillos e Paganinis, ela relata, de
forma efusiva, a sua vida e o seu relacionamento com o pai, Bellini acha estranho:
‘Meu pai foi um grande tira, Bellini, Laércio Lobo é uma lenda ainda hoje para muitos policiais. Ele me ensinou tudo. Abrir portas com grampos, atirar com pistolas, ler Dashiell Hammett, pegar passarinhos com arapucas e dirigir automóveis....’ Tive ímpetos de perguntar se seu pai ensinara-lhe também transar com mulheres, mas tal pergunta me remeteria imediatamente ao olho da rua. Permaneci em silêncio, escutando [...] (BELLOTTO, 1997, 105).
Mas, Bellini não perdeu a oportunidade e arriscou:
‘Perdoe-me a franqueza, Dora, mas acho que você e Irwin estão apaixonados um pelo outro.’Sempre que eu tocava em assunto como sexo e paixão numa conversa com Dora, sua reação era invariavelmente um muxoxo ou careta mal-humorada. Mas desta vez ela riu muito, e alto, como só uma pessoa apaixonada faria.‘Frango, você não sabe nada. Admiro Irwin como um grande detetive. Tenho até aprendido com ele, se você quer saber.’ (BELLOTTO, 1997, p. 106).
O “frango”, que poderá um dia ser “galo”, um excelente subordinado, aquele
que obedece, que faz por ordem do outro, concorda de forma enciumada. A noite chega,
e antes de dormir, pensa que ela estaria se divertindo com Irwin, arrancando-o da fossa.
Bellini, como um bom (sub)detetive, permanece fora da festa, condenado à
subserviência dos medíocres.
Bellini, no táxi, após ter recebido no aeroporto, o detetive americano, aquele que
viera de longe, a fim de contratar a Agência Lobo, para encontrar um manuscrito
perdido de Dashiell Hammett, tranquilo responde aos questionamentos do detetive
americano:
‘Que tipo de detetive é você... senhor...?’, perguntou em inglês, já que não falava português.‘Bellini. Remo Bellini. Assistente de Dora Lobo.’‘Da próxima vez não seja assim tão.... carnavalesco.’‘Como você gostaria que eu o esperasse?’, perguntei.‘Sem placas, sem nomes, sem espalhafato. Um bom detetive reconhece outro sem necessidade de artifícios.’(BELLOTTO, 1997, p. 16).
Vindo de um mundo distante, Os Titãs (en)cantam “O pulso ainda pulsa Peste
bubônica câncer pneumonia Raiva rubéola tuberculose anemia Rancor cisticircose
caxumba anemia”. Poder-se-ia entender: O pulso ainda pulsa. Chope, café, uísque,
vinho O pulso ainda pulsa Sanduíche de salame com queijo provolone O pulso ainda
pulsa Tiparillo, maconha, cocaína O pulso ainda pulsa... Marcas de Bellini, um deus
dionisíaco da contemporaneidade, em relação ao que utiliza para se manter vivo. Um
deus rico, complexo e fugidio, frágil e indefeso. Alvo da ira de Hera, filha de Cromo e
de Réia e irmã mais velha de Zeus,ou da ira de Licurgo, rei da Trácia, que expulsou
Dionísio, quando este apareceu no reino com suas nutrizes, causou tal medo ao deus-
infante, com suas ameaças, que Dionísio saltou no mar, onde foi recolhido por Tétis.
(GUIMARÃES, 1995, p. 205).Ele foge apavorado, ingênuo cai na armadilha dos Titãs,
seis machos filhos de Géia e Urano,ou seria de Clarice? Amante das festas, do vinho e
do delírio místico. Filho de Zeus e de Sêmele, pertencendo à segunda geração dos
Olímpicos; ou marcas de Apolo, que encontra o pai, um advogado em final de carreira,
que se reconcilia com o filho? O genitor organiza as orgias gastronômicas dominicais de
que ambos participam. Pai e filho se transfiguram. O álcool é um poderoso agente
des/agregador das gerações sobreviventes do período mitológico.
Duas faces de um mesmo Bellini: um Apolo e um Dionísio
Bellini é apresentado como sósia de si mesmo, um múltiplo, que se esforça para
ser uno. São dois deuses que se debatem, Apolo, deus da ordem, da clareza, da
harmonia, da forma e do sonho.
Apolo tem tantos atributos e tão diversos que se pensa estarem nele reunidas várias personalidades. Estudado o problema de suas origens, chegou-se à conclusão de que se trata de um deus solar vindo da Ásia, que teria se confundido com um deus campestre originário do norte da Grécia, o deus principal dos dórios. Apesar do seu caráter múltiplo, suas representações são sempre iguais, obedecendo a um tipo único. Jovem, imberbe, “porque o Sol não envelhece”ele é o deus do Sol; o arco e as flechas quetraz simbolizam os raios, a lira a harmonia dos céus; é chamado o Esplendente. É profeta e, como o Sol, vê tudo, inclusive o que está para suceder. (GUIMARÃES, 1995, p. 52-54).
E Dionísio, deus da música, da exuberância, da desordem, a representação da
fusão do primitivo e do atual.
Dioniso ou Dionísio. Deus da vinha, do vinho e do delírio místico, é chamado também Baco. É filho de Zeus e de Sêmele, esta filha de Cadmo e Harmônia, pertencendo pois à segunda geração dos Olímpicos, como Apolo. Quando Dioniso estava para nascer, pediu Sêmele a Zeus que se lhe mostrasse em todo o seu esplendor, e o deus assim fez para comprazê-la. (GUIMARÃES, 1995, p.125).
São forças gêmeas que brotam, é a vida e a morte, a clareza do raciocínio para
desvendar a morte e a embriaguez para buscar a vida. É a ambivalência da embriaguez
dionisíaca, portadora da alegria, de vida ou morte, encarnando-se em uma mesma
pessoa, de um lado, o lobo (Dora Lobo), um animal feroz e assassino; de outro, o galo
(Olga Souza Lins), um animal fecundo.
O nascimento de Reno Bellini e de Dionísio apresenta-se de forma convergente.
A origem do deus Dionísio é marcada pelo contraditório, o encontro entre a vida e a
morte.
Sêmele, uma morta amada por Zeus, é vítima do ciúme de Hera: como ela pede ao amante divino que lhe apareça em toda a sua glória, morre fulminada pelo raio de Zeus; ele então lhe arranca a criança concebida por eles e a introduz na coxa até o fim da gestação. Assim, Dioniso é sujeito a dois nascimentos, o que deixa marca em seu culto, especialmente no rito do liknites (criança de berço) que as mulheres chamam e procuram, e que desaparece todo ano e aparece no ano seguinte. (BRUNEL, 1997, p. 233).
Assim como o nascimento de Rômulo e Remo, Bellini, que convive desde a sua
origem com a vida e a morte, ele, o vivo que mantém o outro lado de si, (Rômulo), o
morto. É o Bellini em construção.
Posso enumerar algumas razões: a presença fantasmagórica de meu irmão gêmeo Rômulo, morto dois dias após o parto, transformando-me num eterno dois-em-um; as desavenças com meu progenitor, o brilhante criminalista e pífio Túlio Bellini; carreira mal sucedida de advogado; o casamento desfeito; a tendência incontrolável à melancolia ... mas agora o que realmente estava me perturbando era o sexo. Ou melhor a falta dele. É difícil para um homem adulto resolver essa equação. Não encontrei até hoje alguém com quem pudesse, digamos assim, dividir definitivamente o cobertor. (BELLOTTO, 1997, p. 16).
Este ser (des)encontrado, que não classifica as pessoas entre perdedores e
ganhadores, mas as unifica em Dionísio e Apolo, o Bellini, “ [...] não quer só comida,
ele quer comida diversão e arte. Ele não quer só comida, ele quer comida, ele quer
bebida, diversão e uma saída para qualquer parte.”
E é nesta fragilidade doce que se encontra o encantamento de Reno Bellini, um
quase, um quase tudo. É um Bellini que se debruça sobre si mesmo. Um Bellini
múltiplo, ora apolíneo, ora dionisíaco, na concepção Nietzschiana.
É a partir de Die Geburt der Tragödir (A Origem da tragédia), em 1872, que Dionísio ou Dioniso aparece. Seu simbolismo vem da interpretação da cultura grega, especificamente, da tragédia, que só pode ser entendido em relação ao seu antagonista solar, Apolo, deus da ordem, da forma e do sonho, simboliza o verdadeiro espírito helênico, diante do qual se ergue o poder assustador do dionisíaco, no sentido de estrangeiro mas na verdade profundamente arraigado à alma grega. (BRUNEL, 1997, p. 751).
Dionísio é o deus da música, que liberta o homem para o êxtase delicioso
provocado pela ruptura do princípio de individuação e o sentimento de fusão do uno
primitivo, diante de Apolo se ergue o poder assustador dionisíaco. Bellini, nas suas
múltiplas facetas, pode ser uma das representações da reconciliação dessas duas
explosões, ao mesmo tempo, opostas e complementares. É um múltiplo-em-um. É, ao
mesmo tempo, Rômulo e Remo, Dionísio e Apolo.
A literatura na literatura
O autor não é o narrador. O narrador é uma função inventada pelo autor, é um
ser ficcional autônomo, que possui características próprias, não necessariamente as do
autor. As ideias, a visão de mundo do autor não são necessariamente as do narrador. O
autor, ao dar vida ao narrador, pode ocultar os seus valores e sua visão de mundo,
fazendo com que o narrador se distancie do seu autor. O autor de um romance pertence
ao mundo real, histórico e social; o narrador, ao mundo ficcional, da imaginação. As
experiências e a cultura adquirida, ao longo dos anos, pelo autor servem de suporte para
o narrador apresentar a narração e a diegese. Tony Bellotto é o criador do narrador que,
ao ser criado, passa a ter vida própria. O autor é a pessoa que responde pela obra e não
pela visão das personagens ou do narrador. É o indivíduo responsável pela criação da
narrativa. Trata-se de um ser social, com personalidade própria, inserido em um tempo
histórico e num contexto sociocultural.
Não é Bellotto, pessoa física, ser histórico que relata os fatos do romance Bellini
e o demônio, e sim uma criação, no caso, o narrador-personagem. Dentre as cinco
díades possíveis, segundo Genette, a focalização poderia ser homodiegética
(autodiegética), o narrador responsável é agente (protagonista) da história narrada.
O mundo real, no qual o autor vive, pode interferir na obra produzida. É de sua
imaginação e visão pessoal que irá surgir uma realidade que, embora dotada de estatuto
próprio, não será de todo divorciada da realidade que o circunda. Tony Bellotto, sendo
uma pessoa atuante na sociedade, não poderia deixar de apresentar marcas do seu
mundo artístico na obra.
O romance em tela apresenta um narrador autodiegético, em primeira pessoa.
Voltei para casa com a cabeça pesada. Eu havia exagerado no vinho e no licor. As coisas se precipitavam: Dora desaparecida, dois assassinatos insolucionáveis, um alemão satânico e meu pai com câncer na próstata. Não vi nenhuma encruzilhada no caminho entre a Vila Mariana e o Jardim Paulista. (BELLOTTO, 1997, p. 214).
Entre o mundo do autor e o do narrador, ser imaginário, é possível encontrar
pontos de identidade, porém não necessariamente.
Bellini, que em momentos de encantamento e filosofia, encontra-se com a arte,
literatura, história literária, ou como diria o próprio narrador “... um poeta, um filósofo
da arte da detecção.” (BELLOTTO, 1997, p. 49).
Não é exclusividade do narrador-personagem discutir literatura. Dora Lobo,
Irwin, o detetive estrangeiro, e as personagens relacionadas com o assassinato da
estudante Silvia Maldini e o desaparecimento do livro permeiam as falas com assuntos
literários.
O detetive estrangeiro não faz de sua missão uma questão de paixão em relação
ao livro desaparecido, ele não aprecia a literatura de Dashiell Hammett, prefere
Stephen King, Scott Turow e John Grisham, nem conhecia a literatura de Dashiell
Hammett. Para Irwin, poemas e armas não são as suas preferências.
‘Poemas? Poemas são ainda mais obsoletos que armas’, ele deu dois tapinhas na pasta preta que embalava o computador: ‘Isto é tudo de que preciso. Detetives como você ainda usam pistolas, câmeras fotográficas e gravadores, mas isso está ultrapassado .... poemas... Como pode você pensar em poemas? Deixe os poemas para poetas ...’ (BELLOTTO, 1997, p. 26).
O que importa, para o detetive que veio de longe, é o dinheiro e o prestígio que
poderá ter ao encontrar o manuscrito desaparecido, então poderá passar a vida inteira
procurando a Comédia, de Aristóteles.
Os dois deuses de Bellini se encontram na procura do livro desaparecido. Ao
mesmo tempo em que Belliniutiliza o seu lado prático e racional, deixa aflorar o seu
lado satírico, embriagado. O profissional e a arte estão presentes em vários momentos
na narrativa. Em uma conversa entre Bellini e Trajano Tendler, podem ser observados
os dois lados da lâmina.
‘Você é um detetive socialista, Bellini?’‘Não. Como qualquer um, eu morro de inveja da sua fortuna. Você pode me ajudar?’‘Teria muito prazer, mas não vejo como. Se você estivesse à procura de um texto clássico, um manuscrito de Proust, Balzac ou Eça de Queiros, por exemplo, ou de algum brasileiro nobre, como Machado ou Guimarães Rosa, ou até mesmo de um documento raro do Império ou da Primeira República, aí, quem sabe, eu poderia ser de alguma utilidade. Mas um texto de Dashiell Hammett...’ ele franziu o rosto, ‘... sim, eu sei da importância dele, há controvérsias, inclusive, sobre a real autoria da chamada prosa seca americana. Muitos creem que Hammett a criou antes de Hemingway, que foi sempre quem colheu os louros pelo feito. Mas cá entre nós, a prosa americana é tão insossa...’(BELLOTTO, 1997, p. 44).
O lado racional de Bellini–personagem – aflora, e não deixa o prazer de Bellini –
narrador – fluir. Pelo narrador, a conversa poderia prosseguir por muito tempo, mas
Bellini assume o lado profissional e afirma que não está em sua presença para falar de
literatura. Trajano Tendler continua:
‘Não mesmo? É uma pena. Sabe, eu vejo esse interesse crescente pela literatura americana como mais um sinal da estupidificação gradativa do brasileiro médio. No meu tempo dávamos muito mais valor à literatura francesa. Acho que sou um anacrônico, Bellini. Sou um velho esteta perdido nessa América do Sul calorenta e selvagem. [...] ‘Essa é, claro, uma figura de linguagem’, prosseguiu, como que lendo meus pensamentos. ‘Tudo bem, vá lá, há méritos na prosa de Hammett. Ele escreveu apenas cinco romances, todos eles publicados antes de 1940, e ficou célebre pela violência e concisão de seus textos. Depois disso, até sua morte, em 1961, não publicou mais nada. Você sabe por quê?’ (BELLOTTO, 1997, p. 45).
Bellini, o personagem, responde: “Porque ficou obcecado pela concisão e isso o
impediu de escrever. Não conseguiu passar da primeira página. Pior, não passava da
primeira frase, refazendo-a à exaustão. Tornou-se um fracassado, um perdedor.”
(BELLOTTO, 1997, p. 45). São dois deuses, dois Bellinis e uma representação.
Considerações finais
A narrativa do romance policial possibilita a participação de um leitor especial.
Segundo Borges (1996, p. 32), há um tipo de leitor de romances policiais, aquele que lê
com incredulidade, com desconfiança, uma desconfiança especial.
Por exemplo, se ele lê a frase ‘Em certa região da Mancha...’, naturalmente imagina que aquilo não aconteceu na Mancha. Depois: ‘cujo nome não quero lembrar...’Por que Cervantes não quis lembrar-se? Porque, sem dúvida, Cervantes era o assassino, o culpado. Logo vem o resto: “... não faz muito tempo...’ – possivelmente o que vier a acontecer não será tão aterrador quanto o futuro.A novela policial gerou um tipo especial de leitor. Costuma-se esquecer isto, ao julgar a obra de Poe. Porque, se Poe criou o conto policial, criou, mais tarde, o tipo de leitor de ficção policial. (BORGES, 1996, p. 32).
O romance policial é um mundo particular, o leitor participa dele de forma
desconfiada, interage com as personagens, emociona-se, (des)encanta-se a cada página.
Ao estabelecer um estatuto para o romance policial, pode-se também estabelecer
um estatuto para o leitor da ficção policial, que se diferencia dos demais leitores de
ficção, ao competir com o detetive, na busca por desvendar o crime, o fato, ou o caso
misterioso, procurando desvendá-lo antes do detetive. Este leitor é encontrado em todos
os lugares do mundo, foi construído com a colaboração de Edgar Alan Poe ao
estabelecer os princípios da literatura policial, fazendo com que o leitor participe do
romance, levando-o a acabar de escrever o romance, prevalecendo o intelectual, o
fantástico, a imaginação.
Pensar uma obra é pensar o leitor dessa obra e tudo o que a circula. No caso em
pauta, ao pensar o romance Bellini e o demônio, de Tony Bellotto, (violinista,
compositor, guitarrista da banda Titãs, nascido em São Paulo em 1960, casado com uma
atriz Global, autor do romance Bellini e a esfinge), é pensar na atriz Malu Mader, na
banda, na mídia, na editora que publica o romance, elementos que circundam o romance
e que estão em mim, um leitor datado historicamente. A partir destas marcas, o estudo
poderia ter sido estabelecido, porém, optou-se em pensar a obra, com base nas que estão
intrinsecamente na escri(fra)tura exposta.
Nesse estudo, a lupa poderá estar embaçada, o computador com vírus e a arma
carregada de festim, mas Zéfiro apertou o gatilho...
Referências
ALBUQUERQUE, Paulo Medeiros. O mundo emocionante do romance policial. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand, 1993.
BELLOTTO, Tony. Bellini e a esfinge. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
BELLOTTO, Tony. Bellini e o demônio. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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BORGES, Jorge Luis. Cinco visões pessoais. Brasília: Universidade de Brasília, 1996.
BRUNEL, Pierre, (Org.) Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.
CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus. São Paulo: Palas Athena, 1992.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1991.
GUIMARÃES, Ruth, Dicionário da mitologia grega. São Paulo: Cultrix, 1995.
LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
MORIN, Edgar. O homem e a morte. Rio de Janeiro: Imago: 1997.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A origem da tragédia. São Paulo: Moraes.
POE, Edgar Allan. Os assassinatos da Rua Morgue / A carta roubada. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
SCHÜLER, Donaldo. Teoria do romance. São Paulo: Ática, 1989.
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. Coimbra: Almedina, 1994.