roberto schwarz - a dialetica envenenada (entrevista)
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A dialtica envenenada de Roberto SchwarzO crtico literrio volta ao universo de Machado de Assis no livro Duas meninas, em que confronta apersonagem de Dom Casmurro, com Helena Morley, uma espcie de Capitu da vida real01/06/97
Duas meninas na periferia do capitalismoFernandode Barrose Silvaespecial para a Folha
Um livro ideal para moas bem-comportadas, um presente para cativar estrangeiros,
uma obra pitoresca, uma crnica ingnua, leve e encantadora nada alm disso. Minha
vida de meninaera at hoje apenas o dirio de uma menina mineira de ascendncia inglesa,
natural de Diamantina, nascida na segunda metade do sculo passado, que resolveu reunir
seus apontamentos adolescentes, feitos entre 1893 e 1894, j quando estava velha, na
dcada de 40. A primeira edio da obra de 1942.
O relativo desconhecimento do livrinho, a despeito de seu sucesso no exterior,
explica-se pelo fato de que sempre foi considerado uma coisa sem importncia, um
devaneio de uma rapariga que, embora muito esperta e espevitada, nunca poderia pertencer
galeria de autores que formam o esqueleto da literatura brasileira. Dentro de duas
semanas, essa imagem cristalizada em torno deMinha vida de meninavai pelos ares.
Roberto Schwarz, 58, sem publicar desde 1990, quando encerrou (mas nem tanto,como se ver) seu ciclo sobre Machado de Assis lanando Um Mestre na periferia do
capitalismo, publica pela Companhia das Letras um livrinho curto, contendo nada mais que
dois ensaios, reunidos sob o singelo ttuloDuas meninas.
Uma delas, a segunda, a prpria Helena Morley; a primeira Capitu, a
personagem-moa deDom Casmurro, a obra mxima da maturidade de Machado de Assis.
O primeiro ensaio chama-se A Poesia Envenenada de Dom Casmurro ; o segundo, Outra
Capitu e aqui j comeamos a entrar no x da questo (leia trechos dos ensaios no final
da entrevista).
Por trs dos apontamentos soltos, da prosa dispersa e sem inteno de arte de
Helena Morley, Schwarz descobre nada menos do que uma outra Capitu, vivinha da Silva ,
uma moa de verdade igual personagem de Machado.
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A despeito da distncia entre as obras, elas tornam tangvel, para falar como o
crtico, o que se poderia chamar de matria brasileira: Um conjunto de relaes altamente
problemtico, originrio da Colnia, solidamente engrenado, incompatvel com o padro da
nao moderna, ao mesmo tempo um resultado consistente da evoluo do mundo
moderno .
Na entrevista exclusiva que concedeu ao Mais!, Schwarz no entrega o ouro de
bandeja, mas deixa subentendido que a primeira conseqncia disso (h outras, mais
invisveis e venenosas) queMinha vida de meninapassa a fazer parte do sistema literrio
brasileiro, ou seja, passa a integrar a formao da literatura brasileira, tal como foi descrita
no esquema formulado por Antonio Candido, que no por acaso seu maior mestre.
No se trata, veja bem, de uma questo de gosto avulso, de incorporao deste ou
daquele autor obscuro ou da expulso de algum outro escritor consagrado do panteonacional. A tarefa a que se dedica Schwarz, para falar em jargo, de incorporar crtica os
dinamismos especficos da experincia brasileira formalmente estruturados na obra.
Em relao a Machado de Assis, os resultados disso so conhecidos h tempos.
Desde A Lata de Lixo da Histria, pea teatral que parodiava O Alienista, passando pelas
Idias Fora do Lugar e Ao vencedor as batatas, at culminar, com Um Mestre na
periferia do capitalismo, na revelao pormenorizada da monstruosidade embutida na
conduta de Brs Cubas, tido sempre como um filho-famlia exemplar da nossa elite
paternalista.
Agora, com Helena Morley, Schwarz d um passo adiante. Para ir logo ao ponto,
mesmo correndo o risco de um certo brutalismo, prprio dos jornalistas, o crtico fala do
final do sculo 19 como quem pretende iluminar o final do sculo 20. A promessa de
emancipao de Capitu e Helena Morley que a histria brasileira tratou de frustrar, como
mostra o crtico, ganha muito se for vista luz dos dias que correm. No e toa que o livro
encerra indicando, quase como um ponto de fuga, a continuidade do paternalismo no
modernismo brasileiro.
E aqui chegamos essncia do veneno schwarziano. Quando lanou Um Mestre na
periferia do capitalismo, em 90, iniciava-se a era Collor, o perodo recente de maior
crapulizao da classe dominante brasileira. Foi uma coincidncia, obviamente, mas
basta abrir o livro, por exemplo, no captulo sobre A Deseducao de Brs , para ver l,
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palpitando nos seus anos de (de)formao, a imagem espectral da delinqncia do jovem
Collor barbarizando pelas ruas de Braslia.
Agora, em plena era FHC, difcil acreditar que Schwarz tenha consumido trs anos
inteiros debruado sobre Helena Morley sem ter um olho bem plantado sobre o presente.
Como Machado de Assis, Schwarz despista seus contemporneos. como se estivesse
enviando uma mensagem cifrada aos progressistas bem-intencionados de hoje: estamos no
limiar de um novo ciclo de modernizao conservadora que ir aprofundar os traos do
atraso, repondo-os modernamente. Esse o segredo que Schwarz descobriu nas anotaes
da menina de Diamantina.
Nada disso est explicitado e no poderia ser diferente na entrevista que segue,
na qual Schwarz passa a limpo momentos da sua trajetria intelectual.
Talvez num nico momento o crtico tenha deixado escapar o alcanceimpressionante da sua nova cria. Falava no do livro, mas de FHC, elogiando a urbanidade
e a clareza com a qual o presidente capaz de se explicar na televiso, revelando
virtualidades inesperadas na profisso de professor. Mas, a, acrescentou: claro que volta
e meia o Brasil entra pela janela e transforma em chanchada a aula que ia to bem . A
chanchada que invade a sala do professor nem sempre se chama ris Rezende. s vezes
podem ser apenas duas meninas, Helena e Capitu.
*
Folha-O sr. quer explicar o ttulo do livro? Por queDuas meninas? H ironia na inocncia?
Schwarz-Gostaria de ouvir a sua explicao.
Folha- A sua leitura deDom Casmurro venenosa, e quem preparou o veneno, segundo o
sr., foi a histria do Brasil. No livro de Helena Morley a atmosfera mais desanuviada, mas
as dificuldades que a mocinha supera decorrem dos mesmos aspectos do Brasil quederrotaram Capitu.
Schwarz- isso mesmo. A simpatia incrvel de Capitu e Helena vem das dificuldades que
elas souberam contornar. A envergadura das meninas proporcional ao alcance das
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questes que elas enfrentam. Para falar do encanto delas preciso entrar em matrias
sociais que so o contrrio de encantadoras.
Folha-O sr. quer comentar a idia do livro? Ele tem unidade?
Schwarz-Tambm preferia ouvir o que voc achou.
Folha-Algum tempo atrs o sr. contou que asDuas meninasseriam a primeira parte de um
livro de crtica em que haveria de tudo, desde orelhas de livro e resenhas at discusses de
teoria crtica e argumentos polticos, at um conto sobre a privatizao de uma pinguela,
com prs e contras. O sr. desistiu da mistura? O ttulo no ia ser Sempre a mesma coisa?
Schwarz-Desde que haja alguma coisa em comum aos trabalhos, sou a favor desse tipo demistura, que a especializao acadmica e o purismo das teorias literrias foram pondo de
lado. A crtica que se fechou na literatura e se desinteressou do resto no saiu melhor ou
mais cientfica, nem, alis, mais artstica.
Folha- Mas, ento, por que o sr. preferiu um livro com delimitao de assunto? Ele no
ficou menos misturado e mais exclusivamente literrio?
Schwarz- Os amigos me convenceram de que assim haveria mais foco e que uma eventual
discusso sairia ganhando.
O estudo sobre Dom Casmurro aponta as foras histricas escondidas na equao
formal do romance. Esta, alm de detetivesca, sofisticada ao mximo. O estudo de Minha
vida de meninafaz o percurso inverso. Me impregnei o quanto pude dos apontamentos de
Helena Morley, que so extraordinrios, sem serem propriamente artsticos, e procurei
pressentir as suas implicaes formais. A sua organizao latente retesa um tecido de uma
consistncia e complexidade de que poucos romances brasileiros podem se gabar.
Forandoum pouco a simetria, de um lado, o estudo social de uma forma; de outro,
a apreciao formal de anotaes do dia-a-dia em Diamantina, tomadas, como diz
Alexandre Eulalio, sem inteno de arte . Salvo engano, o universo comum que dois
livros to diferentes permitem armar sugere especulaes interessantes em vrios planos,
escapando s banalidades escolares sobre a existncia ou inexistncia de relaes entre
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literatura e sociedade. Conforme explicava um professor meu, h uma certa reversibilidade
prpria aos estudos literrios, que permite chegar a uma viso aprofundada da realidade a
partir da forma, e vice-versa. Seja como for, voc v que o meu livro continua alinhado no
campo da mistura.
Folha-Mas o que o sr. entende por mistura? O sr. quer dizer que a turma da pureza, da arte
separada, quer discutir questes de forma e de linguagem sem entrar noutras dimenses?
Qual o inconveniente?
Schwarz- Nenhum, salvo que, sem estas dimenses ditas externas , o debate artstico se
esteriliza logo. Toda forma forma de alguma coisa, e na ausncia desta relao o essencial
vai embora. Observe a mudana atmosfrica em volta da revoluo formal. No perodo
explosivo, das vanguardas, esta sugeria modos de vida mais complexos e universais, que,
de um modo ou outro, estariam para alm das pautas burguesas.
Hoje, a pesquisa e o clculo dos funcionamentos da forma, seja qual for, viraram a
rotina da publicidade, sem oposio ao objetivo mercantil. Os prprios efeitos de
distanciamento e desautomatizao, a marca registrada da linguagem moderna, que
ambicionavam sacudir o pblico e despert-lo de seu sono histrico, agora servem para
aliciar o consumidor ou para impedir que ele troque de canal de TV. Assim, se que
verdade que nalgum momento a desautomatizao, por si s, chegou a significar liberdadeou qualidade, isso j no o caso.
Folha-Mas o que isso tem a ver comDom Casmurroe Morley?
Schwarz - Como bvio, Minha vida de menina no tem nada de vanguardista. Mas o
livro, que, ao contrrio de quase tudo, no est velho, fala simpatia e insatisfao
modernas. H muitas razes para isso, algumas prximas do kitsch. Mas h outras que so
boas. O leitor, desde que se convena da organizao muito rica e mais ou menosinvoluntria presente nas anotaes da menina, sente-se chamado a uma atitude de etnlogo
amador, atento a todas as conexes possveis, sem preconceitos, que um anlogo do
estado de esprito aberto e alerta que a arte moderna desejou suscitar. Ser que me engano
imaginando que o nosso interesse tonificado pelo carter real dos apontamentos e de sua
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forma tcita, que no teleguiada pelo mercado? E se o nexo de realidade for um
ingrediente esttico peculiar?
Dizendo de outro modo, o motivo atual de simpatia pode estar na forma com
vigncia ordenadora forte, capaz de grandes revelaes, sem que, no entanto, responda a
um desgnio de fico ou de artista. A pesquisa artstica dos segredos da forma, da
linguagem e da fico foi levada ao impasse pela sua colonizao mercantil, qual os seus
achados aproveitam. claro que no so os apontamentos de Helena Morley que vo
mostrar a sada. Mas a textura relacional tangivelmente infinita dos apontamentos,
desprovida de propsitos, mas dotada de ncora real, alm de favorvel inteligncia e ao
esprito crtico, marca uma posio esttica (que seria ridculo imitar). Como, no fundo, j
no acreditamos em intenes individuais que prestem, uma forma em que estas fiquem em
suspenso passa a ter apelo. Como gosta de dizer Helena me dela, pense e responda .
A bomba-relgio
Folha- Fale um pouco sobreDom Casmurro.
Schwarz- A inveno mais complexa e desconcertante de Machado o narrador de seus
romances, que, na minha opinio, se deve entender como uma personagem entre as demais,
com interesses particulares, alm de pouco estimveis, no plo oposto da compreenso
imparcial e confivel que costumamos buscar em literatura.
Folha - O sr. tem certeza? Na escola, os professores de moral e cvica diziam que Dom
Casmurro era o refinamento sentimental supremo e que todos os brasileiros deveriam se
mirar nele.
Schwarz- A tese do narrador pouco estimvel inesperada porque a qualidade muito alta
da prosa, parecendo estranha ao mundo acanhado das outras figuras, serve de disfarce, de
garantia moral. Tem cabimento desconfiar do cavalheiro ctico e requintado a
superioridade em pessoa que est por detrs da escrita? Como duvidar da sua iseno e de
seus juzos? primeira vista, Brs Cubas, Dom Casmurro e o Conselheiro Aires so
modelos culturais a imitar. A mesma coisa para o estilista perfeito que tem a palavra no
Quincas Borba. Entretanto, se entendermos que, alm de prottipos de classe dominante,
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eles so objeto da denncia deliberada, ferina e meticulosa, a fico machadiana d o salto
para o genial.
A ousadia do procedimento grande e, por isso mesmo, de assimilao difcil. O
escritor cultiva as qualidades intelectuais mais ambicionadas pela elite, trata de as
aperfeioar a um grau indito na literatura brasileira, mas com o propsito de lhes expor o
funcionamento de classe na sua crueldade completa. A viravolta transforma o manual de
elegncia para gente fina que como a fico machadiana foi lida numa prosa de
extraordinrio teor de crtica social. Aperfeioar, mas para derrubar de mais alto.
Folha-Explique mais um pouco o tamanho dessa queda.
Schwarz- O exemplo acabado desta estratgia encontra-se emDom Casmurro, com a sua
utilizao sarcstica do ultraconformismo. Trata-se da recordao dos amores juvenis de
Bentinho e Capitu, seguida pela crnica da felicidade conjugal dos dois e do adultrio
cometido pela mulher, que deu luz um filho parecido com o melhor amigo do marido.
Nada mais indiscutvel do que a pureza do primeiro amor de um menino e a
maldade das filhas de Eva, que pecam por instinto e, por isso mesmo, so sedutoras e
deixam desolados os moos bons. Estes chaves, entrelaados a uma coleo de cenas caras
ao convencionalismo saudosista, logo se tornaram a unanimidade nacional.
Demorou 60 anos at que uma professora norte-americana, estranhando a leiturabrbara que Bentinho faz do Otelode Shakespeare, descobrisse que Machado no queria
celebrar, mas criticar aqueles clichs do patriarcalismo. Estava desfeita a cilada que o
romancista havia armado, certamente com propsito crtico. O que diria ele se soubesse que
a sua bomba-relgio iria levar mais de meio sculo para estourar?
Folha - Uma bomba to pstuma no deixa de ser um problema. D para imaginar um
fabricante de bombas que no cuide da eficcia?
Schwarz - De fato, a tcnica de Machado fantasticamente agressiva, ao mesmo tempo
que disfarada, para no dizer abafada. Cem anos depois, a questo da eficcia matria
vencida. Mas a denncia violenta embrulhada em roupagem ostensivamente conformista
forma uma combinao especial, que no fcil de interpretar. A absoluta vitalidade que
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Machado conservou, ou que ele vem adquirindo, tem a ver com esta construo. questo
para pensar.
Folha- O sr. deu continuidade a uma linha de leituras anteriores?
Schwarz - o que eu ia contar. O livro de Helen Cauldwell, The Brazilian Othello of
Machado de Assis, tem dois focos: o uso que o escritor faz de Shakespeare e os estragos
produzidos pelo cime, entre os quais a condenao e ulterior difamao de Capitu pelo seu
marido. Aviravolta produzida na leitura deDom Casmurrono podia ser mais radical, mas
o mbito da reconsiderao inicialmente se limitava s relaes entre marido e mulher. O
passo seguinte foi dado por um machadiano ingls, John Gledson, que observou que a
caracterizao de classe de Bentinho e Capitu muito rica e fiel s peculiaridades da
estrutura social brasileira, o que imprimia um carter historicamente especfico ao conflito.
Machado, como bem lembra Gledson, trabalhava na inveno de intrigas que fossem
significativas de um ponto de vista nacional. A propsito, no deixa tambm de ser
historicamente sugestivo que a virada na interpretao deste romance to preso aos aspectos
mais idealizados da dominao de classe no Brasil tenha sido obra de crticos estrangeiros.
Dito isso, meu trabalho retoma estas concluses e trata de v-las em termos da dinmica
interna do romance, a qual procuro caracterizar como problema a um s tempo histrico e
esttico, que trato de interpretar em seu rendimento.
Folha- O de Helena Morley parece um livro cndido, nada a ver com o cipoal de perfdias
que o sr. explora emDom Casmurro. No ser forado aproxim-los?
Schwarz - Se a linha de contato no for arbitrria, a diferena aumenta o interesse da
comparao. Mas, antes de comentar os pontos em comum, devo dizer queMinha vida de
meninano precisa da vizinhana deDom Casmurropara ser um timo livro.
Dito isso, postas lado a lado, as duas obras tornam tangvel o que se poderia chamarde matria brasileira : um conjunto de relaes altamente problemtico, originrio da
colnia, solidamente engrenado, incompatvel com o padro da nao moderna, ao mesmo
tempo que um resultado consistente da prpria evoluo do mundo moderno, a que serve
de espelho ora desconfortvel, ora grotesco, ora utpico (nos momentos de euforia). A
tenacidade desta estrutura ponto assentado de nossa historiografia. O que procurei indicar
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no livro que vrios momentos fortes da inteligncia brasileira, inclusive as invenes
literrias mais originais, lhe respondem de forma tambm estrutural e lhe devem a
relevncia.
Folha-Vamos voltar comparao entre os livros?
Schwarz - O narrador especioso de Machado de Assis rene uma fina estampa,
aparentando mxima civilidade, s prerrogativas da propriedade em terra de escravos,
agregados e gente pobre sem direitos. Os meandros meio inconscientes e meio cnicos desta
figura, que, sem exagero, sintetiza e revela um aspecto da incongruncia mundial, so uma
grande especialidade machadiana. claro que no livro de Helena Morley, que no tem
maiores intenes de arte, no h dispositivos narrativos com essa potncia ou grau de
deliberao.
Entretanto, as mesmas relaes que em Dom Casmurro esto condensadas e
atritadas no ntimo do narrador, emMinha vida de meninase encontram em ordem dispersa,
mas variada e cheia de correspondncias. A intensidade e a vertigem moral no se
comparam, mas a complexidade e o interesse dos mesmos conflitos esto l. Espelhados
um no outro, os livros dizem muito sobre a dimenso esttica da realidade e sobre a
dimenso real de um artifcio artstico supremo como o narrador machadiano.
Folha-O sr. escreve pginas e pginas sobre a qualidade literria deMinha vida de menina.
Ser que no acabou gostando mais de Helena Morley do que de Machado?
Schwarz - No so livros ou autores que compitam. Mas, de fato, a beleza eventual da
escrita que no ambio de arte um tpico interessante, que convida a crtica a sair do
espao um pouco estreito das teorias literrias do momento. Alm disso, havia o desafio de
persuadir o leitor de que o livro mais do que engraadinho.
Folha- Mas os episdios de Helena so singelos. O sr. os aproxima, contrasta, concatena
etc., para fazer com que surja a sua complexidade. No pode haver exagero nisso? E o sr.
no corre o risco de estar fazendo a propaganda de um realismo simplrio, que aposta no
alcance de anedotas triviais?
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Schwarz- A pergunta boa. A ressonncia entre os episdios de Minha vida de menina
grande e do maior interesse. O leitor vai verificar se exagerei e se as relaes que procurei
indicar no esto l. Quanto propaganda do realismo, garanto que no isso. No h
dvida que a graa do livro est na simplicidade das anedotas, que vo multiplicando
aspectos, s vezes complementares, s vezes contraditrios, at compor um universo de
complexidade surpreendente. E verdade tambm que, quando ela possvel, a
simplicidade complexa tem algo sem igual. Mas ela possvel s raramente, na
dependncia de circunstncias histricasque procurei sugerir.
Folha- A certa altura, o sr. compara a simplicidade de Helena prosa trgida de algumas
grandes figuras da virada do sculo. O sr. est mesmo querendo dizer que ela escreve
melhor que Euclides da Cunha ou Raul Pompia?
Schwarz- A palavra no seria essa, mas, de fato, me parece monstruosa a salada que junta
naturalismo e parnasianismo, criture artistique e racismo cientfico, eloqncia pica e
terminologia tcnica. Por momentos, a mistura chega a ter um rendimento esttico revelia,
pela enormidade da alienao. O lado nocivo surge quando se trata dos pobres, que, em
lugar de serem percebidos na posio de classe complementar de quem fala, so
colocados na escala evolutiva das raas, das religies, dos estratos geolgicos, a uma
distncia de milnios, quase que fazendo parte de outra espcie.O contraste com a prosa franca e espirituosa de Helena, inimiga de afetaes de
superioridade, grande. Por ser criana e no ser escritora, ela passa ao largo das
alienaes ideolgicas e artsticas em que se enroscou parte dos intelectuais da poca.
Escolada na informalidade familiar, ntima de toda sorte de trabalhos, bem como da
pobreza e dos ridculos do mando, a menina no erra na escrita e, muitas vezes, acerta de
forma arrebatadora. Seja pelas causas, seja pelos efeitos, a diferena intriga.
Folha- verdade que o sr. pensou em comparar Machado de Assis e Henry James?
Schwarz- Algum devia aproxim-los, porque vale a pena. A entrada podia estar no uso
crtico que os dois fazem do ponto de vista. J se escreveu muito sobre a tcnica dos
refletores, em que as personagens so vistas umas por intermdio das outras, desaparecendo
o prisma onisciente, que era superstio. A tcnica essa, mas o seu peso cresce muito
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quando ela atravessada por diferenas que no sejam apenas individuais, noutras palavras,
quando o espelhamento recproco diz respeito prpria estrutura do processo.
Em James, por exemplo, o comercialismo meio puritano ou o puritanismo meio
comercial da cultura norte-americana v seu reflexo lamentvel nos olhos to prezados da
civilizada Europa, cujo amlgama burgus-feudal, entretanto, lhe causa sagrado horror. A
integrao e ocasional oposio dos ngulos brbaro e civilizado nos cavalheiros
machadianos j foi comentada. James e Machado foram leitores atentos de seus
predecessores nacionais e trataram de tirar proveito do trabalho destes, de modo a tornar
mais representativo o seu prprio. Os dois conseguiram desprovincianizar a experincia de
seus pases mal ou bem perifricos, de modo a v-la como um problema contemporneo etc.
Marx fora da sala
Folha- O sr. nasceu na ustria e veio para c muito cedo. A sua curiosidade pelas coisas
brasileiras, que certamente um trao forte da gerao de intelectuais a que o sr. pertence,
vem desde os seus primeiros anos de formao?
Schwarz- Eu entrei na faculdade, em 1957, para estudar cincias sociais. Foi um banho de
Brasil. Os colegas do interior, de todas as classes, com toda ordem de preocupaes tudo
isso foi para mim uma revelao. Eu sou de famlia austraca, judia, de esquerda, que
chegou ao Brasil um pouquinho antes de comear a Segunda Guerra. Eu no tinha um ano
de idade. Como natural, uma famlia assim, como a minha, costuma ser bastante isolada
das realidades do pas.
Eu fiz o secundrio numa escola de classe mdia, em que a ambio geral era ter
pouco a ver com os aspectos mais especiais da sociedade brasileira. Por essas razes todas,
a faculdade foi para mim uma entrada mais regular no Brasil, em parte tambm pela
presena maior da poltica, do engajamento poltico de muitos colegas.
O curso de cincias sociais da USP, na poca, era muito bom. Na faculdade, havia adiviso entre os cursos que estavam vivos e os que estavam mortos. O de cincias sociais
era um curso vivo. Isso queria dizer que tinha contato com o debate intelectual
internacional e que tinha algo a dizer sobre o prprio pas. Hoje, vendo de longe, uma das
coisas notveis que se sentia muito, por parte dos professores, uma ambio cientfica real.
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Muitos queriam produzir uma obra que fizesse diferena. Fazia parte desse esforo
cientfico que o resultado, de alguma forma, puxasse para a esquerda. Talvez dizer esquerda
seja exagerado, mas que, de qualquer forma, puxasse para o campo democrtico.
Como observou Antonio Candido, se estudavam as questes do negro, do caipira,
dos caiaras, a cultura popular, enfim, temas ligados a uma reavaliao democrtica da
cultura nacional.
O importante que o clima era de esforo cientfico; no havia nisso nenhuma
demagogia, nenhum populismo. Isso era diferente porque, de maneira geral, ou esses temas
no so encarados ou so encarados de maneira sentimental e difcil de sustentar do ponto
de vista de uma anlise racional.
Outro aspecto interessante da faculdade da poca era uma espcie de zum-zum
bibliogrfico, quanto aos tericos estrangeiros adotados. Como o curso era imparcial,tomvamos contato com Weber, Durkheim, Parsons, mas no com Marx.
Folha-Mas Marx foi a grande influncia terica da sua gerao.
Schwarz-Ele ficava para as conversas de corredor. Os professores tomavam partido de um
ou outro terico, e havia um esforo geral de verificao desses autores a partir do uso que
pudesse ser dado a eles no Brasil.
Houve uma espcie de aclimatao, de naturalizao dos autores, que era muitointeressante. Entre os professores mais jovens, o clima era menos imparcial. Todos esses
autores teriam seus mritos, mas o bom mesmo era o Marx, que curiosamente no entrava
na sala de aula.
Fora do lugar-comum
Folha - A partir de que momento Antonio Candido se tornou a presena decisiva na sua
formao?
Schwarz- No terceiro ano da faculdade comecei a enxergar o rumo que as cincias sociais
tomavam. Estava ficando claro que um bom socilogo era algum que faria pesquisa
emprica, de preferncia quantitativa, com metodologia norte-americana. Eu senti que no
era a minha vocao. Fui, ento, chorar as mgoas com o Antonio Candido, que tinha
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passado para as letras e, naquele momento, estava em Assis. Quando ele resolveu virar
professor de literatura, primeiro passou dois anos em Assis, ensinando literatura brasileira,
para ter tempo de se preparar bem e depois vir a So Paulo assumir a cadeira de teoria
literria.
Folha-Ele se auto-exilou em Assis para se preparar?
Schwarz-. Foi para l preparado e voltou preparadssimo. Ento fui at l perguntar a ele
o que achava da minha crise, que, mal comparando, j tinha sido a dele. Ele me estimulou e
depois me convidou a ser assistente dele, desde que eu fizesse um mestrado em teoria
literria e literatura comparada no estrangeiro. Quando acabei a faculdade, em 60, fui para
os Estados Unidos fazer mestrado em Yale. Nesse mesmo ano, houve um congresso de
crtica em Assis, no qual o Antonio Candido fez uma comunicao que para mim foi
decisiva. Nela, ele anunciava mais ou menos o programa crtico da fase dele posterior
Formao da literatura brasileira. A comunicao foi publicada em Literatura e
Sociedade, com o ttulo ''Crtica e Sociologia''.
Folha-A Formao de 1959?
Schwarz- Isso. Mas, como eu dizia, no ensaio em questo Antonio Candido procurava dar
uma resposta mais sofisticada questo das anlises internas e externas em literatura. Ele
dizia que essa oposio supervel e que uma boa anlise literria consegue acompanhar
aquilo que ele chama de processos de estruturao processos por meio dos quais
elementos da vida social se estruturam e passam a atuar no interior da obra literria,
enquanto forma. Isso tem muitas conseqncias, que ele prpriofoi tirando aos poucos.
Folha-Mas voltemos conferncia de Assis...
Schwarz- O Antonio Candido apresentou uma tese quase programtica. Era um esforo de
superar o antagonismo entre a crtica sociolgica e a formalista. Ele tinha formao slida
nos dois campos; seja na crtica de orientao sociolgica, seja na sua recusa pelo New
Criticisme por anlises de tipo formalista. Naquela altura, em 61, ele estava tentando dar
um balano na experincia intelectual dele, de que as duas tendncias haviam feito parte.
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Os momentos em que um intelectual considera o que acumulou durante a vida,
sobretudo nos seus aspectos contraditrios, e tenta dar um passo a frente, esses obviamente
so os bons.
Folha - Voltando ao seu perodo de formao nos EUA. Se no me engano, o sr. j odescreveu como uma espcie de choque eltrico.
Schwarz-Bom, eu fui para o aeroporto no dia em que Jnio Quadros deixou a Presidncia.
Ele renunciou enquanto eu estava no ar. Sa do Brasil sem saber. Quando cheguei l, todos
me perguntavam o que tinha acontecido. Eu no tinha a menor idia. Nos Estados Unidos,
passei dois anos em Yale. A impresso das impresses foram as bibliotecas. uma coisa da
qual voc nunca mais se recupera. A nostalgia de qualquer intelectual latino-americano s
pode ser passar uma temporada naquelas bibliotecas sem ter a preocupao de dar aulas.
Tambm fiquei muito impressionado com o ritmo de trabalho na ps-graduao. A
graduao l bastante folgada e eles tratam de tirar o atraso na ps de modo violento. Eu
fiz as contas, na poca, e tinha que ler 110 pginas por dia para acompanhar os cursos. Era
duro e eu senti, na poca, como uma brutalizao intolervel, que neurotiza qualquer um.
Quando cheguei l, foi o primeiro ano em que entraram moas nos cursos de ps em
Yale. A graduao era s masculina. As meninas eram em nmero mnimo e o clima era
realmente monacal. A contrapartida eram os porres gigantescos nos fins-de-semana, umacoisa triste. Sentia tudo aquilo como um retrocesso grande. Sa do Brasil achando que era
um intelectual e estava fazendo papers a toque de caixa. Passado o tranco, o fato que
aproveitei muito. Quando voltei e vi que aqui ningum fazia nada, ou que se fazia pouco,
comparativamente, desisti de descansar e continuei a me impor o mesmo ritmo de trabalho.
Demorei uns bons anos at desenlouquecer. Depois, a poltica comeou a tomar conta e eu
desenlouqueci do lado acadmico e enlouqueci do outro.
Folha-Em Yale, o que lhe despertou maior interesse?
Schwarz - A coisa mais interessante talvez tenham sido os chamados American Studies,
nos quais se estudava uma mistura de textos de teologia puritana, os primeiros romances,
histria social dos Estados Unidos, tudo isso integrado ao problema da formao da
nacionalidade e da cultura norte-americana. Era uma coisa de muito bom nvel e de pouco
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prestgio intelectual. Este era reservado s disciplinas de assunto europeu, o que dava a
medida de como os EUA ainda se sentiam uma cultura at certo ponto secundria. O
prestgio mximo era dos estudos clssicos, de grego e latim.
Folha - O sr. destacou o perfil puritano da sociedade norte-americana, mas, nos anos 60,sobretudo nos EUA, as coisas viraram do avesso. Qual a experincia da famigerada
liberao comportamental para um estudante latino-americano isolado em Yale?
Schwarz- Quando estava l, a liberao sexual estava apenas comeando. Uma das modas
era ir em bando praia, onde as moas tiravam a blusa e o suti. Os seios ao ar livre eram a
parte da liberao. S que os rapazes no podiam olhar. Se olhassem, era uma baixaria,
porque a cultura era puritana. O resultado era uma coisa deprimente, tristssima, uma
espcie de naturalismo assexuado. Para quem vinha da Amrica Latina, onde no havia
liberao sexual, mas tambm no havia a negao da sexualidade, era de matar.
Folha- Herbert Marcuse, que pouco depois se tornaria uma espcie de guru acadmico da
contracultura, vivia nos EUA nos anos 60. Como foi seu contato com ele?
Schwarz - uma histria divertida. Um dia achei numa livraria um livro chamado O
Marxismo sovitico, de um sujeito chamado Marcuse, que eu desconhecia. Comecei a ler
com o maior desprezo, pensando que era mais um produto da indstria anticomunista. Logo
percebi que era muito bom.
Pouco depois, houve um grande acontecimento poltico em Yale e foi falar l um
sujeito chamado Chester Bowles, que era o embaixador itinerante do presidente Kennedy.
Ele foi falar sobre Terceiro Mundo, imperialismo, algo assim. Eu ouvia e torcia o nariz,
achando muito ruim. Vi que, a meu lado, havia um casalzinho que tambm ridicularizava a
exposio. Quando acabou a conferncia, fomos tomar um caf e logo ficamos amigos. No
meio da conversa, contei que havia feito uma descoberta, um livro de um tal Marcuse.Caram na gargalhada. No entendi nada. Dizia que eles estavam enganados, que era bom
mesmo, at que o rapaz me contou que era enteado do Marcuse.
Folha-O sr., ento, foi conhecer Marcuse?
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Schwarz - Comecei pensando em fazer uma anlise do humor de Machado de Assis. A
questo das mediaes era uma obsesso para quem queria fazer crtica de inspirao
marxista sem cair em facilidades. Lembro-me de uma frase do Sartre que dizia: No
balano da sintaxe de um bom autor voc pode encontrar o movimento geral da sociedade .Ou seja, havia um arco entre o mais singular ou contingente e o dinamismo geral. A idia
de que fosse possvel estabelecer conexes entre coisas to distantes excitava muito os
espritos dialticos. Alis, so coisas que continuam me interessando.
Folha As Idias Fora do Lugar , o ensaio de 72, que depois virou o captulo de abertura
de Ao Vencedor as Batatas(1977), certamente seu texto mais famoso, a ponto de levar
alguns, bem ou mal-intencionados, a cham-lo de senhor idias fora do lugar . A despeito
do impacto que o artigo provocou, ou por isso mesmo, no faltaram as objees, algumas
rasteiras, outras bem-informadas, mas todas devidamente inflamadas. No sempre que um
texto tem o poder de dividir um ambiente intelectual inteiro. O sr. esperava isso? Como v
hoje as crticas?
Schwarz-Evidentemente que eu no escrevi meu estudo para botar as idias no lugar, nem
para dizer que elas esto fora do lugar. O tema real de meu trabalho explicar por que as
idias no Brasil do a impresso, repito, do a impresso de estarem fora do lugar. claro
que, em sentido bvio, as idias no tm lugar determinado.
Alm disso, no fui em que disse que elas esto fora do lugar. Essa artificialidade
das idias modernas no pas , na verdade, o lugar-comum mais estabelecido do
pensamento conservador brasileiro desde a Independncia. quase uma ladainha. Como
que as pessoas vo defender idias liberais aqui, quando temos escravos. Essas idias so
importao, no tm fundamento, no me venham com idias modernas aqui que isso s
atrapalha. Ns temos escravos, precisamos dos escravos e liberalismo uma bobagem,
alm de ser uma mentira tambm na Europa, porque, como gostavam de dizer, era melhor
ser escravo no Brasil do que operrio na Inglaterra. O operrio morria de fome, enquanto o
escravo tinha sempre seu senhor para proteg-lo.
Isso posto, vou me repetir. A matriz histrica do problema simples: voc tem a
colnia assentada sobre o trabalho escravo; com a conquista da independncia poltica, a
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Schwarz-Em parte uma resposta. O fato que a boa ou a m sorte que teve esse ttulo se
deve ao fato de que toca num ponto melindroso. Suponho que grande parte das pessoas que
me objetaram no tinham lido o ensaio, mas o ttulo. um ttulo que pegou.
FHC e a chanchada
Folha- Desde que Fernando Henrique se elegeu presidente, talvez at um pouco antes, a
esquerda, sobretudo a acadmica, se dividiu de forma indita e vem trocando farpas e
insultos constantemente. O fernandismo de alguns e o anticardosismo de outros
saltaram para o primeiro plano, prejudicando, dos dois lados, a anlise crtica e, muitas
vezes, a prpria capacidade de pensar o que est acontecendo. Sendo ao mesmo tempo de
esquerda e amigo pessoal do presidente, este, para o sr., no assunto dos mais fceis delidar. Qual o real impacto do governo FHC na intelectualidade?
Schwarz- No sei se a pergunta boa. No substantivo, a esquerda est em crise por causa
de uma mudana havida no capitalismo mundial, e no por causa do governo FHC. A
mudana foi objetiva e deslocou as balizas polticas nacionais com que o reformismo, como
alisa revoluo, costumavam contar. Sumariamente, as reformas da esquerda dependiam
do fortalecimento do campo popular diante do Estado e do capital assentado no pas. Com a
atual preponderncia e mobilidade do capital mundializado, que sempre pode preferir outra
plagas, o alcance daquele fortalecimento ficou menor e, com ele, a prpria esquerda,
enquanto no conseguir uma expanso paralela do capital. Essas coisas bom lembrar
para que no se descarreguem no governo FHC dificuldades que a esquerda, se estivesse l,
encontraria igualmente ou em maior escala.
Acontece que FHC, antes de articular a aliana de centro-direita que o levou
Presidncia, foi um dos lderes intelectuais da esquerda. Uma parte desta o acompanhou,
outra ficou contra, e uma boa dose de azedume de parte a parte foi inevitvel. Mas, doponto de vista intelectual, interessante notar a continuidade nas anlises de FHC, que, at
onde vejo, no mudaram muito de estilo.
Se isso for exato, ns, os adversrios de esquerda, poderamos nos questionar a
respeito do nosso prprio arsenal de categorias, prximas das dele, quando no formuladas
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por ele mesmo. Desenvolvimentismo, primado da economia, anlise de classes, viso fria
da dinmica internacional, todos esses mritos do marxismo razovel so compatveis com
a linha do governo atual.
As conseqnciasa tirar do para todos os gostos. Seria razo para apoiar o governo
FHC? Para lhe dar apoio crtico? Seria razo para rechaar a teoria, para rev-la e examinar
os pontos em que ela pode deixar de ser anticapitalista? Ou, ainda, seria razo para fazer
oposio sem teoria, diretamente inspirada no intolervel da fratura social?
De outro ngulo, claro que um governo to cheio de intelectuais toca os
intelectuais, que, mal ou bem, convices parte, vem seus atributos postos prova. Se
no me engano, a urbanidade e clareza com que o presidente capaz de se explicar na
televiso representaram uma novidade para o pas e mostraram virtualidades inesperadas na
profisso de professor. Mas claro que, volta e meia, o Brasil entra pela janela e transformaem chanchada a aula que ia to bem.
Folha-Qual a matria dessa aula?
Schwarz - O horizonte do governo FHC de atualizao capitalista. Apesar do
progressismo ostensivo, a nfase que resulta intelectualmente conservadora. Ela encontra
o foco na diferena que nos separa dos pases ricos, o que os transforma em padro de
excelncia, aceito de maneira acrtica. Todo leitor de jornal, entretanto, sabe que eles estoem dificuldades, em parte parecidas com as nossas. Alis, a necessidade de captar
investimentos estrangeiros protege de debate a feio socialmente absurda de seu
movimento errtico, o qual teria justamente de ser criticado. Alm disso, nada indica que a
atualizao seja, de fato, generalizvel para a populao, e muito menos para o conjunto
das naes, que anda esquecido.
muito possvel que a atual falta de brilho de nosso debate intelectual se deva a
essa situao nova, alis antiga: a busca da soluo para o pas por meio do acatamento da
ordem internacional que a causa do problema. O vigor intelectual do perodo anterior se
deveu justamente articulao entre crtica da ordem social interna e crtica da ordem
internacional, que emprestava vibrao e relevncia contempornea aos debates nacionais,
que, mal ou bem, tinham algo a ver com a melhora da humanidade e com a compreenso da
feio inaceitvel tomada pelo progresso.
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Folha-Vamos saltar para trs, de FHC para o regime militar. Escrevendo sobre o ambiente
cultural brasileiro entre 64 e 69, num ensaio de 1970, depois publicado em O Pai defamlia
e outros ensaios, o sr. faz uma anlise crtica do tropicalismo que passou batida por alguns
e foi malvista por outros. Tratava-se, no ensaio, de entender a justaposio tropicalista entreo arcaico e o moderno, justaposio que, segundo o sr., atualizava no plano artstico (e no
mbito da cultura de massas) a interpretao dualista do Brasil, justa mente no momento
em que a cincia social no pas tentava superar essa construo. O sr. escreve, a certa altura,
sobre o engenho tropicalista: O veculo moderno e o contedo arcaico, mas o passado
nobre e o presente comercial; por outro lado, o passado inquo e o presente autntico
etc.' .
Schwarz - Esse ensaio lida com a posio em que ficaram os intelectuais com simpatia
pelo campo popular depois de 64. O golpe, evidentemente, foi uma grande derrota dos
progressistas. Mas no foi um entrave ao progresso econmico, ao contrrio do que a
esquerda imaginava. Aconteceu ao mesmo tempo uma coisa surpreendente: na rea cultural
houve um perodo de grande exuberncia da esquerda entre 64 e 68. Como a esquerda
elaborava isso? Era uma situao difcil. O tropicalismo foi uma das maneiras mais
profundas e cidas de refletir sobre essa questo.
De certo modo, o tropicalismo um estilo artstico se ns quisermos reduzi-lo a
uma frmula em que entra um elemento de forma avanado acoplado a um elemento de
contedo prprio do arcasmo brasileiro. Essa combinao aparece com uma conotao de
absurdo. Isso uma frmula artstica relativamente fcil de produzir, o que no um
defeito e pode dar bons resultados. Essa frmula retinha a experincia histrica de 64, em
que surgia uma modalidade de progresso que no transformava o pas em sentido
progressista. O golpe de 64, como se sabe, foi um prottipo de modernizao conservadora.
Eu quis indicar que essa frmula tropicalista alegorizava a combinao muito problemticaentre progresso e arcasmo no Brasil.
Meu artigo foi contabilizado como uma crtica ao tropicalismo, quando a inteno
era v-lo como uma formulao forte daquele momento histrico, com todos os problemas
que aquele momento punha em cena. Acontece que a problemtica em si era muito negativa
e o tropicalismo a condensava.
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Folha- Pedir para que seus contemporneos entendessem o que estava em jogo no ensaio
era demais para a poca.
Schwarz- . Era um Fla x Flu. Voltando ao tropicalismo, acho que o crtico interessante o que encontra os problemas e explicita o quanto da problemtica contempornea foi retida
e aprofundada numa obra. Mas, quando voc fala dos problemas, logo pensam que ofensa
pessoal. Para terminar, em diria que 64, para mim, foi uma aula do que no muda no Brasil.
A minha compreenso do Machado de Assis certamente se alimentou muito do grotesco
que 64 ps na rua.
Folha- O sr. escreveu um longo ensaio a respeito de Trs mulheres de trs ppps, nico
trabalho de fico de Paulo Emilio, publicado no ano de sua morte, em 1977. Ele prpriodizia, em tom irnico, que o sr. estava levando o livro muito a srio, que aquilo era um
exerccio ldico, uma espcie de brincadeira. No poderia haver contraste maior entre essa
confisso do autor e as palavras finais do seu texto. Eu cito: a melhor prosa brasileira
desdeGuimares Rosa quem o diz, e no como tese, mas por fora da coerncia de seu
trabalho artstico . Com quem ficamos, com o crtico ou com o autor?
Schwarz- Eu achava e continuo achando o livro do Paulo Emilio muito especial, e acho
tambm que a crtica no deu o reconhecimento devido. De certo modo, o problema
esttico do livro da mesma ordem do que vimos em outros autores. uma fico feita
com prosa de ensasta de alto nvel, coisa quase inexistente no Brasil. O Paulo Emilio se
destaca na fico nacional por ser um intelectual com uma formao vasta em vrias reas.
Os recursos literrios dele so de universitrio. A prosa de uma velocidade, um nvel de
abstrao, uma capacidade de circular entre assuntos aparentemente dspares, ou mesmo
desconexos, que extraordinria.
, portanto, uma prosa de ensasta de alto nvel. E ela se combina com aproblemtica paulista tradicional, com um sistema de conflitos completamente ultrapassado
e grotesco. Isso cria uma comicidade prpria e faz com que o alto n vel intelectual no sirva
para nada. Ele aparece como uma espcie de exibio de brilho intil. , nesse sentido, uma
dramatizao do que j discutimos: a impotncia do desejo de modernizao.
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Folha- O sr. fala em descompasso entre o mbito acanhado dos personagens e a altura da
prosa.
Schwarz- Que uma caracterstica tambm do Machado de Assis. A prosa pertence a um
universo mental incomparavelmente mais rico do que o das personagens. Isso produz umasensao de impotncia e um humorismo muito particulares. O Paulo Emilio est
estruturalmente filiado ao Machado de Assis. Isso vai configurando uma problemtica
nacional. O livro impensvel sem uma enorme acumulao e uma vida bem realizada do
ponto de vista intelectual, que, entretanto, no passam de palha. Uma concluso dura, vista
a qualidade do que ela anula.
Penso que razovel dizer que no perodo brasileiro recente, os prosadores mais
interessantes talvez tenham sido ensastas. Particularmente os do grupo do prprio PauloEmilio reunidos em Clima. A prosa esteticamente mais satisfatria e adulta dos ltimos
tempos a dos ensastas.
Folha- Anatol Rosenfeld, que hoje anda meio esquecido, foi um dos intelectuais que mais
o influenciaram. Qual exatamente o peso dele na sua formao?
Schwarz - Junto com Antonio Candido, o professor a quem eu mais devo Anatol
Rosenfeld. Quando meu pai morreu, eu tinha 15 anos, e o Anatol, que era amigo dele,
passou a me orientar um pouco. Nos vamos toda semana. Conversvamos de tudo. Ele
havia preparado seu doutorado de filosofia em Berlim, quando o nazismo o obrigou a fugir.
A linha dele era especial. Tinha formao acadmica muito boa, mas preferiu no ir para a
universidade. Vivia como intelectual independente. Ele se interessava muito pelo New
Criticisme, de modo geral, pela anlise de texto, coisa que ele combinava com uma espcie
de questionamento filosfico do mundo contemporneo. Tinha simpatias pela esquerda,
mas alimentava uma certa birra do marxismo, que considerava dogmtico. Fazia anlises de
texto muito pormenorizadas, sem nenhum preconceito, incorporando analise tudo o que o
objeto propiciasse. Essa liberdade de esprito, que contrariava e ainda contraria a
compartimentao acadmica, impressionava muito e tinha resultados inesperados.
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PERSONAGENS DA ENTREVISTA
Antonio Candido(1918) - Socilogo de formao, criou a curso de teoria literria da USP
nos anos 60. um dos mais influentes crticos literrios do Brasil, autor de Formaoda
literatura brasileira,Literatura e sociedadee O Discurso e a cidade, entre outros.
Anatol Rosenfeld (1912-1973) - Intelectual alemo, chegou ao Brasil fugindo da
perseguio aos judeus. Atuou em diversas reas, como esttica, crtica literria e teatral.
Autor de O Teatro picoe Texto/Contexto(Ed. Perspectiva).
Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977) - Crtico de cinema e escritor. Foi fundador da
Cinemateca Brasileira. Participou da revista Clima, na dcada de 40, com Gilda de Mello e
Souza, Antonio Candido, Dcio de Almeida Prado e Lourival Gomes Machado.
Herbert Marcuse(1900-1979) - Pensador alemo da Escola de Frankfurt. Colega e amigo
de Adorno, foi o mentor das manifestaes de maio de 68 na Frana. autor de Eros e
civilizao, O Homem unidimensionaleRazo e revoluo, entre outros
Theodor W. Adorno(1903-1969) - Filsofo alemo, um dos grandes expoentes da Escola
de Frankfurt. Forjou, com Max Horkheimer, a expresso indstria cultural . Autor de
Dialtica do esclarecimento (com Horkheimer), Minima moralia, Das estrelas para a
TerraeDialtica negativa,entre outros.
Georg Lukcs(1885-1971) -Filsofo e crtico hngaro de inspirao marxista. Autor deA
Teoria do romanceeHistria e conscincia de classe, entre outros.
Henry James(1843-1916) - Romancista e contista norte-americano. autor de Retrato de
uma SenhoraeA Volta do Parafuso.
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CapituLeia trecho do ensaiode Roberto Schwarz A poesia envenenada deDom CasmurroROBERTO SCHWARZ
A gama das relaes de dependncia paternalista no romance (Dom Casmurro) variada e
escolhida. (...) No prprio campo dos dependentes, o oposto de Jos Dias Capitu. Adiferena, ligada ao mandamento moderno de autonomia da pessoa e objetividade do juzo,
ou, noutras palavras, ao choque entre a norma paternalista e a norma burguesa, tem
significado moral saliente. Sem prejuzo das constantes artimanhas, o agregado no se
concebe propriamente como indivduo, parte da famlia a que serve, com a qual se
confunde em imaginao e cuja importncia lhe empresta o sentimento da prpria valia. A
sujeio ao marido de dona Glria, depois viva e finalmente ao filho no uma
contingncia externa, mas o molde do seu esprito, cujas manifestaes no se desprendemnunca da necessidade imediata de agradar e emprestar lustre.
Capitu, pelo contrrio, satisfaz os quesitos da individuao. A menina sabe a
diferena entre compensaes imaginrias e realidade, e no tem apreo pelas primeiras.
Em pas to sentimental, ainda mais em se tratando de mocinhas, deve-se assinalar o
incomum dessa iniciativa machadiana de estudar a beleza, a aventura e a tenso prprias ao
uso da razo. Assim, quando a santa me de Bentinho resolve cumprir uma promessa e
mandar o filho para o seminrio, pondo em risco os planos conjugais da vizinha pobre, esta
explode num raro espetculo de independncia de esprito e inteligncia. Bento quem
primeiro lhe traz as novas, que a deixam lvida, os olhos vagos, olhando para dentro, uma
figura de pau , o tempo de se dar conta da situao; depois ela rompe no inesperado
Beata! carola! papa-missas! . Capitu no s tem desgnios prprios, os quais consulta,
como tem opinio formada e crtica a respeito de seus protetores, e at da religio deles. Em
seguida ela reflete, aperta os olhos, quer saber circunstncias, respostas, gestos, palavras, o
som destas, presta ateno nas lgrimas de dona Glria, no acaba de entend-las 1. Era
minuciosa e atenta; a narrao e o dilogo, tudo parecia remoer consigo. Tambm se podedizer que conferia, rotulava e pregava na memria a minha exposio 2. Notcia exata e
verificao interior, uma certa recapitulao crtica da situao, vo juntas, indicando o
nexo entre liberdade de esprito e objetividade, esta ltima um verdadeiro esforo
1Dom Casmurro, cap. 18.2Dom Casmurro, cap. 30.
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ponte movedia, iria realmente at Bordus, deixando minha me na praia, espera 5. O
trecho pode e deve ser lido em vrias chaves, pois tanto expressa a fascinao de Bento
pela feminilidade de Capitu, como serve no processo movido pelo marido contra a mulher,
lembrando que ela desde cedo fora ambiciosa, calculista, oblqua e inimiga da futura sogra.
H outra leitura ainda, atenta ao contedo social das relaes, que oferece a vantagem de
articular a conduta de Capitu das demais figuras, de modo a lhes tornar visvel o sistema.
Com efeito, a desproporo entre fins e meios, central no retrato, reflete os
constrangimentos prticos da moa esclarecida nas circunstncias locais. Com muxoxo
oligrquico, as idias atrevidas designam eventuais resultados da independncia de
esprito da personagem, projetos individuais que escapam ao limite da conformidade
respeitosa. J o recurso aos saltinhos , por oposio presumvel franqueza de um pulo
grande (que seria masculino, e no feminino? que no seria atrevido?), registra anecessidade em que se encontram os dependentes de obter o favor de seu patrono a cada
passo, sem o que caem no vazio. Faz parte da lgica do paternalismo que os possveis
objetivos no se assumam enquanto tais e a ttulo individual, mas, filialmente, como
convenincias do protetor, o que no s os viabiliza, como legitima. Da as canoas e a
fortaleza da Laje, em lugar do paquete e de Bordus, j que fins familiares so mais fceis
de impingir. As maneiras hbeis e sinuosas de Capitu representam a poltica de decoro,
ou, segundo o ponto de vista, a hipocrisia requerida por esse arranjo. Por outro lado
caracterstica do Casmurro e de sua ideologia de classe apresentar como deficincia moral,
como falta de franqueza, a poltica de olhos baixos imposta pela sua prpria autoridade,
sem prejuzo de considerar atrevimento a conduta contrria. Como parte de sua confuso,
ou de sua complexidade, note-se ainda como um tipo de conduta com fundamento na
estrutura mesma da sociedade brasileira lhe aparece ora como falta de carter de sua mulher,
ora como elemento de interesse ertico, ora como caracterstica geral e desabonadora da
psicologia feminina. Seja como for, estar claro o fundo comum entre as manobras de
Capitu, o riso sem vontade de Jos Dias, os pnicos de Bentinho diante da me e o susto de
prima Justina quando lhe pedem a opinio. O significado destas variaes sobre uma
situao de dependncia bsica fica incompleto, contudo, enquanto no passamos ao outro
plo, que as determina, o plo da autoridade dos proprietrios.
5Dom Casmurro, cap. 18.
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Outra CapituO crtico examina ''Minha Vida de Menina'', livro de Helena MorleyROBERTO SCHWARZ
As pginas iniciais do dirio, onde no faltam a privao e o trabalho, tm alguma coisa de
utopia. Este paradoxo pode nos servir de ponto de partida. Segundo explica Helena, quinta-feira o dia bom da semana: a famlia levanta cedo, sob as ordens da me, arruma a casa e
vai ao campo trabalhar, no que o melhor lugar de Diamantina , alis sempre deserto .
Sem prejuzo da rotina, os dias e os lugares de que se compe a vida no so de modo
nenhum indistintos, e os melhores, ao contrrio de bvios, podem ser os menos cotados. Os
meninos levam a bacia de roupa na cabea, e as panelas e a comida no carrinho. Depois
iro catar lenha, pegar passarinhos com visgo e pescar. As meninas lavam roupa embaixo
da ponte, junto com a me, que cuida tambm do almoo. Na segunda parte do dia tomambanho e lavam o cabelo no rio, enquanto a me vigia se no vem ningum. Depois
estendem a roupa para secar, e todos correm o campo atrs de frutas, ninhos de passarinho,
casulos de borboleta e pedrinhas redondas para o jogo . Na volta, por cima da roupa
dobrada e das panelas, os meninos trazem a lenha e o mais que apanharam, que vendem na
cidade no mesmo dia6.
Como vemos, um conjunto alegre de atividades simples, necessrias e inocentes, na
fronteira do idlico. Alm de ser mnima, a diferenciao e diviso do trabalho aglutina as
pessoas mais do que as separa, quase sem as especializar, sem nada de irreversvel e
exigindo pouca subordinao. Por outro lado, claro que o processo de trabalho no define
tudo, ainda que esteja em primeiro plano. Olhando melhor, notaremos j aqui os indcios da
organizao social, cujo esprito diferente. Emdio, um dos meninos, um crioulo,
agregado chcara da av. Quem carrega a bacia de roupa em cima da cabea ele, ao
passo que os irmos de Helena levam as panelas em carrinho, assim como ele quem
procura a lenha, enquanto os outros caam e pescam. Umas poucas cenas mais, e tero
surgido os contornos nada igualitrios da grande famlia patriarcal, com proprietrios ricose influentes no centro, e parentes, dependentes, afilhados, ex-escravos e desvalidos
ciscando sua volta.
6 Helena Morley,Minha vida de menina, pgs. 5-6.
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pr a mo na massa, a simpatia pelo trabalho forte, pela faxina em regra. Tambm o trato
humorstico e em p de intimidade com as coisas nojentasparticipa da recusa de fronteiras
intransponveis, que tem outra variante na preferncia pelo ambiente franco da cozinha e
das festas dos negros.
Mas onde o seu nimo dispostopassa do outro lado na invejaque os destitudos s
vezes lhe despertam. sempre possvel que a menina esteja fazendo gnero e sustentando
uma tese do contra, ou tratando de ser edificante e abnegada, ou buclica. Mas no a
impresso que d. Alis, para afastar a hiptese da ostentao de virtude, note-se a sua
inveja tambm enrgica dos confortos e pertences das primas ricas. Assim, afetao ou no,
l est o desejo de viver como a coleguinha pauprrima, num rancho sem nada, na boca do
mato, fazendo lio no meio da paisagem, sentada num caixote10. Ou a vontade de se juntar
fila das carregadoras de uvas, num servio pesado e divertido, onde a gente podia tomarum farto 11. Ou a surpreendente declarao de que os escravos no causam pena, porque
trabalhar o dia inteiro no uma infelicidade; ficar toa que seria um castigo 12. Parece
claro que a inveja aqui no se refere pobreza, posio inferior, nem muito menos ao
trabalho forado, mas prpria atividade e sociabilidade em curso no interior destas
condies pouco prezadas, algo como a sua substncia efetiva. Muito a contracorrente,
Helena no faz caso de enquadramentos exteriores , ideolgicos e de fora, e se concentra
na vida que mal ou bem lhes corre embaixo. No deixa de ser uma abstrao arbitrria
salvo se a prpria Histria estiver operando uma dissociao anloga, como de fato estava:
com a Abolio, a sociedade engendrada pelo escravismo colonial separava-se de seu
arcabouo institucional de origem e passava a existir e a persistir sob um cu diverso, com
consequncias ainda difceis de definir... Voltando a Helena, ao aderir gravitao da
atividade material, considerada na plenitude de seus contedos e despida da rotulao
corrente, ela indica perspectivas imprevistas, nada convencionais, mormente num pas to
desigual. Assim, bastou passar ao largo dos estigmas de classe, complementares da
opresso, para que a choa e o trabalho de carregador como tudo o mais entrassem para
um campo de apreciaes e clculos diferentes, propriamente materialistas. No caso da
choa, mais que o desprezo pela misria passam a contar, positivamente, a diminuio do
10 Op. cit., pg. 236.11 Op. cit., pg. 84.12 Op. cit., pg. 114.
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trabalho domstico e a proximidade com a natureza; no exemplo das carregadoras, o prazer
de fazer fora e cometer excessos em comum. Noutras palavras, apartada da dominao que
lhe deu origem e polarizou os valores, a diferenciao dos trabalhos e das situaes aparece
como a diversidade extensiva da experincia de uma sociedade, uma espcie de cooperao
ampla e solta, que diz respeito s possibilidades de auto-realizao de todos os membros,
brecha pela qual a imaginao de Helena entrou com incrvel energia. De pronto as
segregaes clssicas entre atividade braal e intelectual, utilidade e beleza, trabalho e
diverso, limpeza e sujeira etc. se fluidificam, passveis de arranjos novos, em que se
demora a fantasia de Helena, explorando sem alarde as virtualidades vertiginosas e
desalienadoras da avaliao materialista. Sem desconhecer a petulncia e o af de
originalidade da menina, vale pensar que o vio que at hoje emana de suas observaes
seja indcio de interesses que no esto extintos.
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