roberto schwarz - a dialetica envenenada (entrevista)

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    A dialtica envenenada de Roberto SchwarzO crtico literrio volta ao universo de Machado de Assis no livro Duas meninas, em que confronta apersonagem de Dom Casmurro, com Helena Morley, uma espcie de Capitu da vida real01/06/97

    Duas meninas na periferia do capitalismoFernandode Barrose Silvaespecial para a Folha

    Um livro ideal para moas bem-comportadas, um presente para cativar estrangeiros,

    uma obra pitoresca, uma crnica ingnua, leve e encantadora nada alm disso. Minha

    vida de meninaera at hoje apenas o dirio de uma menina mineira de ascendncia inglesa,

    natural de Diamantina, nascida na segunda metade do sculo passado, que resolveu reunir

    seus apontamentos adolescentes, feitos entre 1893 e 1894, j quando estava velha, na

    dcada de 40. A primeira edio da obra de 1942.

    O relativo desconhecimento do livrinho, a despeito de seu sucesso no exterior,

    explica-se pelo fato de que sempre foi considerado uma coisa sem importncia, um

    devaneio de uma rapariga que, embora muito esperta e espevitada, nunca poderia pertencer

    galeria de autores que formam o esqueleto da literatura brasileira. Dentro de duas

    semanas, essa imagem cristalizada em torno deMinha vida de meninavai pelos ares.

    Roberto Schwarz, 58, sem publicar desde 1990, quando encerrou (mas nem tanto,como se ver) seu ciclo sobre Machado de Assis lanando Um Mestre na periferia do

    capitalismo, publica pela Companhia das Letras um livrinho curto, contendo nada mais que

    dois ensaios, reunidos sob o singelo ttuloDuas meninas.

    Uma delas, a segunda, a prpria Helena Morley; a primeira Capitu, a

    personagem-moa deDom Casmurro, a obra mxima da maturidade de Machado de Assis.

    O primeiro ensaio chama-se A Poesia Envenenada de Dom Casmurro ; o segundo, Outra

    Capitu e aqui j comeamos a entrar no x da questo (leia trechos dos ensaios no final

    da entrevista).

    Por trs dos apontamentos soltos, da prosa dispersa e sem inteno de arte de

    Helena Morley, Schwarz descobre nada menos do que uma outra Capitu, vivinha da Silva ,

    uma moa de verdade igual personagem de Machado.

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    A despeito da distncia entre as obras, elas tornam tangvel, para falar como o

    crtico, o que se poderia chamar de matria brasileira: Um conjunto de relaes altamente

    problemtico, originrio da Colnia, solidamente engrenado, incompatvel com o padro da

    nao moderna, ao mesmo tempo um resultado consistente da evoluo do mundo

    moderno .

    Na entrevista exclusiva que concedeu ao Mais!, Schwarz no entrega o ouro de

    bandeja, mas deixa subentendido que a primeira conseqncia disso (h outras, mais

    invisveis e venenosas) queMinha vida de meninapassa a fazer parte do sistema literrio

    brasileiro, ou seja, passa a integrar a formao da literatura brasileira, tal como foi descrita

    no esquema formulado por Antonio Candido, que no por acaso seu maior mestre.

    No se trata, veja bem, de uma questo de gosto avulso, de incorporao deste ou

    daquele autor obscuro ou da expulso de algum outro escritor consagrado do panteonacional. A tarefa a que se dedica Schwarz, para falar em jargo, de incorporar crtica os

    dinamismos especficos da experincia brasileira formalmente estruturados na obra.

    Em relao a Machado de Assis, os resultados disso so conhecidos h tempos.

    Desde A Lata de Lixo da Histria, pea teatral que parodiava O Alienista, passando pelas

    Idias Fora do Lugar e Ao vencedor as batatas, at culminar, com Um Mestre na

    periferia do capitalismo, na revelao pormenorizada da monstruosidade embutida na

    conduta de Brs Cubas, tido sempre como um filho-famlia exemplar da nossa elite

    paternalista.

    Agora, com Helena Morley, Schwarz d um passo adiante. Para ir logo ao ponto,

    mesmo correndo o risco de um certo brutalismo, prprio dos jornalistas, o crtico fala do

    final do sculo 19 como quem pretende iluminar o final do sculo 20. A promessa de

    emancipao de Capitu e Helena Morley que a histria brasileira tratou de frustrar, como

    mostra o crtico, ganha muito se for vista luz dos dias que correm. No e toa que o livro

    encerra indicando, quase como um ponto de fuga, a continuidade do paternalismo no

    modernismo brasileiro.

    E aqui chegamos essncia do veneno schwarziano. Quando lanou Um Mestre na

    periferia do capitalismo, em 90, iniciava-se a era Collor, o perodo recente de maior

    crapulizao da classe dominante brasileira. Foi uma coincidncia, obviamente, mas

    basta abrir o livro, por exemplo, no captulo sobre A Deseducao de Brs , para ver l,

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    palpitando nos seus anos de (de)formao, a imagem espectral da delinqncia do jovem

    Collor barbarizando pelas ruas de Braslia.

    Agora, em plena era FHC, difcil acreditar que Schwarz tenha consumido trs anos

    inteiros debruado sobre Helena Morley sem ter um olho bem plantado sobre o presente.

    Como Machado de Assis, Schwarz despista seus contemporneos. como se estivesse

    enviando uma mensagem cifrada aos progressistas bem-intencionados de hoje: estamos no

    limiar de um novo ciclo de modernizao conservadora que ir aprofundar os traos do

    atraso, repondo-os modernamente. Esse o segredo que Schwarz descobriu nas anotaes

    da menina de Diamantina.

    Nada disso est explicitado e no poderia ser diferente na entrevista que segue,

    na qual Schwarz passa a limpo momentos da sua trajetria intelectual.

    Talvez num nico momento o crtico tenha deixado escapar o alcanceimpressionante da sua nova cria. Falava no do livro, mas de FHC, elogiando a urbanidade

    e a clareza com a qual o presidente capaz de se explicar na televiso, revelando

    virtualidades inesperadas na profisso de professor. Mas, a, acrescentou: claro que volta

    e meia o Brasil entra pela janela e transforma em chanchada a aula que ia to bem . A

    chanchada que invade a sala do professor nem sempre se chama ris Rezende. s vezes

    podem ser apenas duas meninas, Helena e Capitu.

    *

    Folha-O sr. quer explicar o ttulo do livro? Por queDuas meninas? H ironia na inocncia?

    Schwarz-Gostaria de ouvir a sua explicao.

    Folha- A sua leitura deDom Casmurro venenosa, e quem preparou o veneno, segundo o

    sr., foi a histria do Brasil. No livro de Helena Morley a atmosfera mais desanuviada, mas

    as dificuldades que a mocinha supera decorrem dos mesmos aspectos do Brasil quederrotaram Capitu.

    Schwarz- isso mesmo. A simpatia incrvel de Capitu e Helena vem das dificuldades que

    elas souberam contornar. A envergadura das meninas proporcional ao alcance das

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    questes que elas enfrentam. Para falar do encanto delas preciso entrar em matrias

    sociais que so o contrrio de encantadoras.

    Folha-O sr. quer comentar a idia do livro? Ele tem unidade?

    Schwarz-Tambm preferia ouvir o que voc achou.

    Folha-Algum tempo atrs o sr. contou que asDuas meninasseriam a primeira parte de um

    livro de crtica em que haveria de tudo, desde orelhas de livro e resenhas at discusses de

    teoria crtica e argumentos polticos, at um conto sobre a privatizao de uma pinguela,

    com prs e contras. O sr. desistiu da mistura? O ttulo no ia ser Sempre a mesma coisa?

    Schwarz-Desde que haja alguma coisa em comum aos trabalhos, sou a favor desse tipo demistura, que a especializao acadmica e o purismo das teorias literrias foram pondo de

    lado. A crtica que se fechou na literatura e se desinteressou do resto no saiu melhor ou

    mais cientfica, nem, alis, mais artstica.

    Folha- Mas, ento, por que o sr. preferiu um livro com delimitao de assunto? Ele no

    ficou menos misturado e mais exclusivamente literrio?

    Schwarz- Os amigos me convenceram de que assim haveria mais foco e que uma eventual

    discusso sairia ganhando.

    O estudo sobre Dom Casmurro aponta as foras histricas escondidas na equao

    formal do romance. Esta, alm de detetivesca, sofisticada ao mximo. O estudo de Minha

    vida de meninafaz o percurso inverso. Me impregnei o quanto pude dos apontamentos de

    Helena Morley, que so extraordinrios, sem serem propriamente artsticos, e procurei

    pressentir as suas implicaes formais. A sua organizao latente retesa um tecido de uma

    consistncia e complexidade de que poucos romances brasileiros podem se gabar.

    Forandoum pouco a simetria, de um lado, o estudo social de uma forma; de outro,

    a apreciao formal de anotaes do dia-a-dia em Diamantina, tomadas, como diz

    Alexandre Eulalio, sem inteno de arte . Salvo engano, o universo comum que dois

    livros to diferentes permitem armar sugere especulaes interessantes em vrios planos,

    escapando s banalidades escolares sobre a existncia ou inexistncia de relaes entre

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    literatura e sociedade. Conforme explicava um professor meu, h uma certa reversibilidade

    prpria aos estudos literrios, que permite chegar a uma viso aprofundada da realidade a

    partir da forma, e vice-versa. Seja como for, voc v que o meu livro continua alinhado no

    campo da mistura.

    Folha-Mas o que o sr. entende por mistura? O sr. quer dizer que a turma da pureza, da arte

    separada, quer discutir questes de forma e de linguagem sem entrar noutras dimenses?

    Qual o inconveniente?

    Schwarz- Nenhum, salvo que, sem estas dimenses ditas externas , o debate artstico se

    esteriliza logo. Toda forma forma de alguma coisa, e na ausncia desta relao o essencial

    vai embora. Observe a mudana atmosfrica em volta da revoluo formal. No perodo

    explosivo, das vanguardas, esta sugeria modos de vida mais complexos e universais, que,

    de um modo ou outro, estariam para alm das pautas burguesas.

    Hoje, a pesquisa e o clculo dos funcionamentos da forma, seja qual for, viraram a

    rotina da publicidade, sem oposio ao objetivo mercantil. Os prprios efeitos de

    distanciamento e desautomatizao, a marca registrada da linguagem moderna, que

    ambicionavam sacudir o pblico e despert-lo de seu sono histrico, agora servem para

    aliciar o consumidor ou para impedir que ele troque de canal de TV. Assim, se que

    verdade que nalgum momento a desautomatizao, por si s, chegou a significar liberdadeou qualidade, isso j no o caso.

    Folha-Mas o que isso tem a ver comDom Casmurroe Morley?

    Schwarz - Como bvio, Minha vida de menina no tem nada de vanguardista. Mas o

    livro, que, ao contrrio de quase tudo, no est velho, fala simpatia e insatisfao

    modernas. H muitas razes para isso, algumas prximas do kitsch. Mas h outras que so

    boas. O leitor, desde que se convena da organizao muito rica e mais ou menosinvoluntria presente nas anotaes da menina, sente-se chamado a uma atitude de etnlogo

    amador, atento a todas as conexes possveis, sem preconceitos, que um anlogo do

    estado de esprito aberto e alerta que a arte moderna desejou suscitar. Ser que me engano

    imaginando que o nosso interesse tonificado pelo carter real dos apontamentos e de sua

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    forma tcita, que no teleguiada pelo mercado? E se o nexo de realidade for um

    ingrediente esttico peculiar?

    Dizendo de outro modo, o motivo atual de simpatia pode estar na forma com

    vigncia ordenadora forte, capaz de grandes revelaes, sem que, no entanto, responda a

    um desgnio de fico ou de artista. A pesquisa artstica dos segredos da forma, da

    linguagem e da fico foi levada ao impasse pela sua colonizao mercantil, qual os seus

    achados aproveitam. claro que no so os apontamentos de Helena Morley que vo

    mostrar a sada. Mas a textura relacional tangivelmente infinita dos apontamentos,

    desprovida de propsitos, mas dotada de ncora real, alm de favorvel inteligncia e ao

    esprito crtico, marca uma posio esttica (que seria ridculo imitar). Como, no fundo, j

    no acreditamos em intenes individuais que prestem, uma forma em que estas fiquem em

    suspenso passa a ter apelo. Como gosta de dizer Helena me dela, pense e responda .

    A bomba-relgio

    Folha- Fale um pouco sobreDom Casmurro.

    Schwarz- A inveno mais complexa e desconcertante de Machado o narrador de seus

    romances, que, na minha opinio, se deve entender como uma personagem entre as demais,

    com interesses particulares, alm de pouco estimveis, no plo oposto da compreenso

    imparcial e confivel que costumamos buscar em literatura.

    Folha - O sr. tem certeza? Na escola, os professores de moral e cvica diziam que Dom

    Casmurro era o refinamento sentimental supremo e que todos os brasileiros deveriam se

    mirar nele.

    Schwarz- A tese do narrador pouco estimvel inesperada porque a qualidade muito alta

    da prosa, parecendo estranha ao mundo acanhado das outras figuras, serve de disfarce, de

    garantia moral. Tem cabimento desconfiar do cavalheiro ctico e requintado a

    superioridade em pessoa que est por detrs da escrita? Como duvidar da sua iseno e de

    seus juzos? primeira vista, Brs Cubas, Dom Casmurro e o Conselheiro Aires so

    modelos culturais a imitar. A mesma coisa para o estilista perfeito que tem a palavra no

    Quincas Borba. Entretanto, se entendermos que, alm de prottipos de classe dominante,

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    eles so objeto da denncia deliberada, ferina e meticulosa, a fico machadiana d o salto

    para o genial.

    A ousadia do procedimento grande e, por isso mesmo, de assimilao difcil. O

    escritor cultiva as qualidades intelectuais mais ambicionadas pela elite, trata de as

    aperfeioar a um grau indito na literatura brasileira, mas com o propsito de lhes expor o

    funcionamento de classe na sua crueldade completa. A viravolta transforma o manual de

    elegncia para gente fina que como a fico machadiana foi lida numa prosa de

    extraordinrio teor de crtica social. Aperfeioar, mas para derrubar de mais alto.

    Folha-Explique mais um pouco o tamanho dessa queda.

    Schwarz- O exemplo acabado desta estratgia encontra-se emDom Casmurro, com a sua

    utilizao sarcstica do ultraconformismo. Trata-se da recordao dos amores juvenis de

    Bentinho e Capitu, seguida pela crnica da felicidade conjugal dos dois e do adultrio

    cometido pela mulher, que deu luz um filho parecido com o melhor amigo do marido.

    Nada mais indiscutvel do que a pureza do primeiro amor de um menino e a

    maldade das filhas de Eva, que pecam por instinto e, por isso mesmo, so sedutoras e

    deixam desolados os moos bons. Estes chaves, entrelaados a uma coleo de cenas caras

    ao convencionalismo saudosista, logo se tornaram a unanimidade nacional.

    Demorou 60 anos at que uma professora norte-americana, estranhando a leiturabrbara que Bentinho faz do Otelode Shakespeare, descobrisse que Machado no queria

    celebrar, mas criticar aqueles clichs do patriarcalismo. Estava desfeita a cilada que o

    romancista havia armado, certamente com propsito crtico. O que diria ele se soubesse que

    a sua bomba-relgio iria levar mais de meio sculo para estourar?

    Folha - Uma bomba to pstuma no deixa de ser um problema. D para imaginar um

    fabricante de bombas que no cuide da eficcia?

    Schwarz - De fato, a tcnica de Machado fantasticamente agressiva, ao mesmo tempo

    que disfarada, para no dizer abafada. Cem anos depois, a questo da eficcia matria

    vencida. Mas a denncia violenta embrulhada em roupagem ostensivamente conformista

    forma uma combinao especial, que no fcil de interpretar. A absoluta vitalidade que

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    Machado conservou, ou que ele vem adquirindo, tem a ver com esta construo. questo

    para pensar.

    Folha- O sr. deu continuidade a uma linha de leituras anteriores?

    Schwarz - o que eu ia contar. O livro de Helen Cauldwell, The Brazilian Othello of

    Machado de Assis, tem dois focos: o uso que o escritor faz de Shakespeare e os estragos

    produzidos pelo cime, entre os quais a condenao e ulterior difamao de Capitu pelo seu

    marido. Aviravolta produzida na leitura deDom Casmurrono podia ser mais radical, mas

    o mbito da reconsiderao inicialmente se limitava s relaes entre marido e mulher. O

    passo seguinte foi dado por um machadiano ingls, John Gledson, que observou que a

    caracterizao de classe de Bentinho e Capitu muito rica e fiel s peculiaridades da

    estrutura social brasileira, o que imprimia um carter historicamente especfico ao conflito.

    Machado, como bem lembra Gledson, trabalhava na inveno de intrigas que fossem

    significativas de um ponto de vista nacional. A propsito, no deixa tambm de ser

    historicamente sugestivo que a virada na interpretao deste romance to preso aos aspectos

    mais idealizados da dominao de classe no Brasil tenha sido obra de crticos estrangeiros.

    Dito isso, meu trabalho retoma estas concluses e trata de v-las em termos da dinmica

    interna do romance, a qual procuro caracterizar como problema a um s tempo histrico e

    esttico, que trato de interpretar em seu rendimento.

    Folha- O de Helena Morley parece um livro cndido, nada a ver com o cipoal de perfdias

    que o sr. explora emDom Casmurro. No ser forado aproxim-los?

    Schwarz - Se a linha de contato no for arbitrria, a diferena aumenta o interesse da

    comparao. Mas, antes de comentar os pontos em comum, devo dizer queMinha vida de

    meninano precisa da vizinhana deDom Casmurropara ser um timo livro.

    Dito isso, postas lado a lado, as duas obras tornam tangvel o que se poderia chamarde matria brasileira : um conjunto de relaes altamente problemtico, originrio da

    colnia, solidamente engrenado, incompatvel com o padro da nao moderna, ao mesmo

    tempo que um resultado consistente da prpria evoluo do mundo moderno, a que serve

    de espelho ora desconfortvel, ora grotesco, ora utpico (nos momentos de euforia). A

    tenacidade desta estrutura ponto assentado de nossa historiografia. O que procurei indicar

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    no livro que vrios momentos fortes da inteligncia brasileira, inclusive as invenes

    literrias mais originais, lhe respondem de forma tambm estrutural e lhe devem a

    relevncia.

    Folha-Vamos voltar comparao entre os livros?

    Schwarz - O narrador especioso de Machado de Assis rene uma fina estampa,

    aparentando mxima civilidade, s prerrogativas da propriedade em terra de escravos,

    agregados e gente pobre sem direitos. Os meandros meio inconscientes e meio cnicos desta

    figura, que, sem exagero, sintetiza e revela um aspecto da incongruncia mundial, so uma

    grande especialidade machadiana. claro que no livro de Helena Morley, que no tem

    maiores intenes de arte, no h dispositivos narrativos com essa potncia ou grau de

    deliberao.

    Entretanto, as mesmas relaes que em Dom Casmurro esto condensadas e

    atritadas no ntimo do narrador, emMinha vida de meninase encontram em ordem dispersa,

    mas variada e cheia de correspondncias. A intensidade e a vertigem moral no se

    comparam, mas a complexidade e o interesse dos mesmos conflitos esto l. Espelhados

    um no outro, os livros dizem muito sobre a dimenso esttica da realidade e sobre a

    dimenso real de um artifcio artstico supremo como o narrador machadiano.

    Folha-O sr. escreve pginas e pginas sobre a qualidade literria deMinha vida de menina.

    Ser que no acabou gostando mais de Helena Morley do que de Machado?

    Schwarz - No so livros ou autores que compitam. Mas, de fato, a beleza eventual da

    escrita que no ambio de arte um tpico interessante, que convida a crtica a sair do

    espao um pouco estreito das teorias literrias do momento. Alm disso, havia o desafio de

    persuadir o leitor de que o livro mais do que engraadinho.

    Folha- Mas os episdios de Helena so singelos. O sr. os aproxima, contrasta, concatena

    etc., para fazer com que surja a sua complexidade. No pode haver exagero nisso? E o sr.

    no corre o risco de estar fazendo a propaganda de um realismo simplrio, que aposta no

    alcance de anedotas triviais?

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    Schwarz- A pergunta boa. A ressonncia entre os episdios de Minha vida de menina

    grande e do maior interesse. O leitor vai verificar se exagerei e se as relaes que procurei

    indicar no esto l. Quanto propaganda do realismo, garanto que no isso. No h

    dvida que a graa do livro est na simplicidade das anedotas, que vo multiplicando

    aspectos, s vezes complementares, s vezes contraditrios, at compor um universo de

    complexidade surpreendente. E verdade tambm que, quando ela possvel, a

    simplicidade complexa tem algo sem igual. Mas ela possvel s raramente, na

    dependncia de circunstncias histricasque procurei sugerir.

    Folha- A certa altura, o sr. compara a simplicidade de Helena prosa trgida de algumas

    grandes figuras da virada do sculo. O sr. est mesmo querendo dizer que ela escreve

    melhor que Euclides da Cunha ou Raul Pompia?

    Schwarz- A palavra no seria essa, mas, de fato, me parece monstruosa a salada que junta

    naturalismo e parnasianismo, criture artistique e racismo cientfico, eloqncia pica e

    terminologia tcnica. Por momentos, a mistura chega a ter um rendimento esttico revelia,

    pela enormidade da alienao. O lado nocivo surge quando se trata dos pobres, que, em

    lugar de serem percebidos na posio de classe complementar de quem fala, so

    colocados na escala evolutiva das raas, das religies, dos estratos geolgicos, a uma

    distncia de milnios, quase que fazendo parte de outra espcie.O contraste com a prosa franca e espirituosa de Helena, inimiga de afetaes de

    superioridade, grande. Por ser criana e no ser escritora, ela passa ao largo das

    alienaes ideolgicas e artsticas em que se enroscou parte dos intelectuais da poca.

    Escolada na informalidade familiar, ntima de toda sorte de trabalhos, bem como da

    pobreza e dos ridculos do mando, a menina no erra na escrita e, muitas vezes, acerta de

    forma arrebatadora. Seja pelas causas, seja pelos efeitos, a diferena intriga.

    Folha- verdade que o sr. pensou em comparar Machado de Assis e Henry James?

    Schwarz- Algum devia aproxim-los, porque vale a pena. A entrada podia estar no uso

    crtico que os dois fazem do ponto de vista. J se escreveu muito sobre a tcnica dos

    refletores, em que as personagens so vistas umas por intermdio das outras, desaparecendo

    o prisma onisciente, que era superstio. A tcnica essa, mas o seu peso cresce muito

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    quando ela atravessada por diferenas que no sejam apenas individuais, noutras palavras,

    quando o espelhamento recproco diz respeito prpria estrutura do processo.

    Em James, por exemplo, o comercialismo meio puritano ou o puritanismo meio

    comercial da cultura norte-americana v seu reflexo lamentvel nos olhos to prezados da

    civilizada Europa, cujo amlgama burgus-feudal, entretanto, lhe causa sagrado horror. A

    integrao e ocasional oposio dos ngulos brbaro e civilizado nos cavalheiros

    machadianos j foi comentada. James e Machado foram leitores atentos de seus

    predecessores nacionais e trataram de tirar proveito do trabalho destes, de modo a tornar

    mais representativo o seu prprio. Os dois conseguiram desprovincianizar a experincia de

    seus pases mal ou bem perifricos, de modo a v-la como um problema contemporneo etc.

    Marx fora da sala

    Folha- O sr. nasceu na ustria e veio para c muito cedo. A sua curiosidade pelas coisas

    brasileiras, que certamente um trao forte da gerao de intelectuais a que o sr. pertence,

    vem desde os seus primeiros anos de formao?

    Schwarz- Eu entrei na faculdade, em 1957, para estudar cincias sociais. Foi um banho de

    Brasil. Os colegas do interior, de todas as classes, com toda ordem de preocupaes tudo

    isso foi para mim uma revelao. Eu sou de famlia austraca, judia, de esquerda, que

    chegou ao Brasil um pouquinho antes de comear a Segunda Guerra. Eu no tinha um ano

    de idade. Como natural, uma famlia assim, como a minha, costuma ser bastante isolada

    das realidades do pas.

    Eu fiz o secundrio numa escola de classe mdia, em que a ambio geral era ter

    pouco a ver com os aspectos mais especiais da sociedade brasileira. Por essas razes todas,

    a faculdade foi para mim uma entrada mais regular no Brasil, em parte tambm pela

    presena maior da poltica, do engajamento poltico de muitos colegas.

    O curso de cincias sociais da USP, na poca, era muito bom. Na faculdade, havia adiviso entre os cursos que estavam vivos e os que estavam mortos. O de cincias sociais

    era um curso vivo. Isso queria dizer que tinha contato com o debate intelectual

    internacional e que tinha algo a dizer sobre o prprio pas. Hoje, vendo de longe, uma das

    coisas notveis que se sentia muito, por parte dos professores, uma ambio cientfica real.

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    Muitos queriam produzir uma obra que fizesse diferena. Fazia parte desse esforo

    cientfico que o resultado, de alguma forma, puxasse para a esquerda. Talvez dizer esquerda

    seja exagerado, mas que, de qualquer forma, puxasse para o campo democrtico.

    Como observou Antonio Candido, se estudavam as questes do negro, do caipira,

    dos caiaras, a cultura popular, enfim, temas ligados a uma reavaliao democrtica da

    cultura nacional.

    O importante que o clima era de esforo cientfico; no havia nisso nenhuma

    demagogia, nenhum populismo. Isso era diferente porque, de maneira geral, ou esses temas

    no so encarados ou so encarados de maneira sentimental e difcil de sustentar do ponto

    de vista de uma anlise racional.

    Outro aspecto interessante da faculdade da poca era uma espcie de zum-zum

    bibliogrfico, quanto aos tericos estrangeiros adotados. Como o curso era imparcial,tomvamos contato com Weber, Durkheim, Parsons, mas no com Marx.

    Folha-Mas Marx foi a grande influncia terica da sua gerao.

    Schwarz-Ele ficava para as conversas de corredor. Os professores tomavam partido de um

    ou outro terico, e havia um esforo geral de verificao desses autores a partir do uso que

    pudesse ser dado a eles no Brasil.

    Houve uma espcie de aclimatao, de naturalizao dos autores, que era muitointeressante. Entre os professores mais jovens, o clima era menos imparcial. Todos esses

    autores teriam seus mritos, mas o bom mesmo era o Marx, que curiosamente no entrava

    na sala de aula.

    Fora do lugar-comum

    Folha - A partir de que momento Antonio Candido se tornou a presena decisiva na sua

    formao?

    Schwarz- No terceiro ano da faculdade comecei a enxergar o rumo que as cincias sociais

    tomavam. Estava ficando claro que um bom socilogo era algum que faria pesquisa

    emprica, de preferncia quantitativa, com metodologia norte-americana. Eu senti que no

    era a minha vocao. Fui, ento, chorar as mgoas com o Antonio Candido, que tinha

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    passado para as letras e, naquele momento, estava em Assis. Quando ele resolveu virar

    professor de literatura, primeiro passou dois anos em Assis, ensinando literatura brasileira,

    para ter tempo de se preparar bem e depois vir a So Paulo assumir a cadeira de teoria

    literria.

    Folha-Ele se auto-exilou em Assis para se preparar?

    Schwarz-. Foi para l preparado e voltou preparadssimo. Ento fui at l perguntar a ele

    o que achava da minha crise, que, mal comparando, j tinha sido a dele. Ele me estimulou e

    depois me convidou a ser assistente dele, desde que eu fizesse um mestrado em teoria

    literria e literatura comparada no estrangeiro. Quando acabei a faculdade, em 60, fui para

    os Estados Unidos fazer mestrado em Yale. Nesse mesmo ano, houve um congresso de

    crtica em Assis, no qual o Antonio Candido fez uma comunicao que para mim foi

    decisiva. Nela, ele anunciava mais ou menos o programa crtico da fase dele posterior

    Formao da literatura brasileira. A comunicao foi publicada em Literatura e

    Sociedade, com o ttulo ''Crtica e Sociologia''.

    Folha-A Formao de 1959?

    Schwarz- Isso. Mas, como eu dizia, no ensaio em questo Antonio Candido procurava dar

    uma resposta mais sofisticada questo das anlises internas e externas em literatura. Ele

    dizia que essa oposio supervel e que uma boa anlise literria consegue acompanhar

    aquilo que ele chama de processos de estruturao processos por meio dos quais

    elementos da vida social se estruturam e passam a atuar no interior da obra literria,

    enquanto forma. Isso tem muitas conseqncias, que ele prpriofoi tirando aos poucos.

    Folha-Mas voltemos conferncia de Assis...

    Schwarz- O Antonio Candido apresentou uma tese quase programtica. Era um esforo de

    superar o antagonismo entre a crtica sociolgica e a formalista. Ele tinha formao slida

    nos dois campos; seja na crtica de orientao sociolgica, seja na sua recusa pelo New

    Criticisme por anlises de tipo formalista. Naquela altura, em 61, ele estava tentando dar

    um balano na experincia intelectual dele, de que as duas tendncias haviam feito parte.

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    Os momentos em que um intelectual considera o que acumulou durante a vida,

    sobretudo nos seus aspectos contraditrios, e tenta dar um passo a frente, esses obviamente

    so os bons.

    Folha - Voltando ao seu perodo de formao nos EUA. Se no me engano, o sr. j odescreveu como uma espcie de choque eltrico.

    Schwarz-Bom, eu fui para o aeroporto no dia em que Jnio Quadros deixou a Presidncia.

    Ele renunciou enquanto eu estava no ar. Sa do Brasil sem saber. Quando cheguei l, todos

    me perguntavam o que tinha acontecido. Eu no tinha a menor idia. Nos Estados Unidos,

    passei dois anos em Yale. A impresso das impresses foram as bibliotecas. uma coisa da

    qual voc nunca mais se recupera. A nostalgia de qualquer intelectual latino-americano s

    pode ser passar uma temporada naquelas bibliotecas sem ter a preocupao de dar aulas.

    Tambm fiquei muito impressionado com o ritmo de trabalho na ps-graduao. A

    graduao l bastante folgada e eles tratam de tirar o atraso na ps de modo violento. Eu

    fiz as contas, na poca, e tinha que ler 110 pginas por dia para acompanhar os cursos. Era

    duro e eu senti, na poca, como uma brutalizao intolervel, que neurotiza qualquer um.

    Quando cheguei l, foi o primeiro ano em que entraram moas nos cursos de ps em

    Yale. A graduao era s masculina. As meninas eram em nmero mnimo e o clima era

    realmente monacal. A contrapartida eram os porres gigantescos nos fins-de-semana, umacoisa triste. Sentia tudo aquilo como um retrocesso grande. Sa do Brasil achando que era

    um intelectual e estava fazendo papers a toque de caixa. Passado o tranco, o fato que

    aproveitei muito. Quando voltei e vi que aqui ningum fazia nada, ou que se fazia pouco,

    comparativamente, desisti de descansar e continuei a me impor o mesmo ritmo de trabalho.

    Demorei uns bons anos at desenlouquecer. Depois, a poltica comeou a tomar conta e eu

    desenlouqueci do lado acadmico e enlouqueci do outro.

    Folha-Em Yale, o que lhe despertou maior interesse?

    Schwarz - A coisa mais interessante talvez tenham sido os chamados American Studies,

    nos quais se estudava uma mistura de textos de teologia puritana, os primeiros romances,

    histria social dos Estados Unidos, tudo isso integrado ao problema da formao da

    nacionalidade e da cultura norte-americana. Era uma coisa de muito bom nvel e de pouco

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    prestgio intelectual. Este era reservado s disciplinas de assunto europeu, o que dava a

    medida de como os EUA ainda se sentiam uma cultura at certo ponto secundria. O

    prestgio mximo era dos estudos clssicos, de grego e latim.

    Folha - O sr. destacou o perfil puritano da sociedade norte-americana, mas, nos anos 60,sobretudo nos EUA, as coisas viraram do avesso. Qual a experincia da famigerada

    liberao comportamental para um estudante latino-americano isolado em Yale?

    Schwarz- Quando estava l, a liberao sexual estava apenas comeando. Uma das modas

    era ir em bando praia, onde as moas tiravam a blusa e o suti. Os seios ao ar livre eram a

    parte da liberao. S que os rapazes no podiam olhar. Se olhassem, era uma baixaria,

    porque a cultura era puritana. O resultado era uma coisa deprimente, tristssima, uma

    espcie de naturalismo assexuado. Para quem vinha da Amrica Latina, onde no havia

    liberao sexual, mas tambm no havia a negao da sexualidade, era de matar.

    Folha- Herbert Marcuse, que pouco depois se tornaria uma espcie de guru acadmico da

    contracultura, vivia nos EUA nos anos 60. Como foi seu contato com ele?

    Schwarz - uma histria divertida. Um dia achei numa livraria um livro chamado O

    Marxismo sovitico, de um sujeito chamado Marcuse, que eu desconhecia. Comecei a ler

    com o maior desprezo, pensando que era mais um produto da indstria anticomunista. Logo

    percebi que era muito bom.

    Pouco depois, houve um grande acontecimento poltico em Yale e foi falar l um

    sujeito chamado Chester Bowles, que era o embaixador itinerante do presidente Kennedy.

    Ele foi falar sobre Terceiro Mundo, imperialismo, algo assim. Eu ouvia e torcia o nariz,

    achando muito ruim. Vi que, a meu lado, havia um casalzinho que tambm ridicularizava a

    exposio. Quando acabou a conferncia, fomos tomar um caf e logo ficamos amigos. No

    meio da conversa, contei que havia feito uma descoberta, um livro de um tal Marcuse.Caram na gargalhada. No entendi nada. Dizia que eles estavam enganados, que era bom

    mesmo, at que o rapaz me contou que era enteado do Marcuse.

    Folha-O sr., ento, foi conhecer Marcuse?

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    Schwarz - Comecei pensando em fazer uma anlise do humor de Machado de Assis. A

    questo das mediaes era uma obsesso para quem queria fazer crtica de inspirao

    marxista sem cair em facilidades. Lembro-me de uma frase do Sartre que dizia: No

    balano da sintaxe de um bom autor voc pode encontrar o movimento geral da sociedade .Ou seja, havia um arco entre o mais singular ou contingente e o dinamismo geral. A idia

    de que fosse possvel estabelecer conexes entre coisas to distantes excitava muito os

    espritos dialticos. Alis, so coisas que continuam me interessando.

    Folha As Idias Fora do Lugar , o ensaio de 72, que depois virou o captulo de abertura

    de Ao Vencedor as Batatas(1977), certamente seu texto mais famoso, a ponto de levar

    alguns, bem ou mal-intencionados, a cham-lo de senhor idias fora do lugar . A despeito

    do impacto que o artigo provocou, ou por isso mesmo, no faltaram as objees, algumas

    rasteiras, outras bem-informadas, mas todas devidamente inflamadas. No sempre que um

    texto tem o poder de dividir um ambiente intelectual inteiro. O sr. esperava isso? Como v

    hoje as crticas?

    Schwarz-Evidentemente que eu no escrevi meu estudo para botar as idias no lugar, nem

    para dizer que elas esto fora do lugar. O tema real de meu trabalho explicar por que as

    idias no Brasil do a impresso, repito, do a impresso de estarem fora do lugar. claro

    que, em sentido bvio, as idias no tm lugar determinado.

    Alm disso, no fui em que disse que elas esto fora do lugar. Essa artificialidade

    das idias modernas no pas , na verdade, o lugar-comum mais estabelecido do

    pensamento conservador brasileiro desde a Independncia. quase uma ladainha. Como

    que as pessoas vo defender idias liberais aqui, quando temos escravos. Essas idias so

    importao, no tm fundamento, no me venham com idias modernas aqui que isso s

    atrapalha. Ns temos escravos, precisamos dos escravos e liberalismo uma bobagem,

    alm de ser uma mentira tambm na Europa, porque, como gostavam de dizer, era melhor

    ser escravo no Brasil do que operrio na Inglaterra. O operrio morria de fome, enquanto o

    escravo tinha sempre seu senhor para proteg-lo.

    Isso posto, vou me repetir. A matriz histrica do problema simples: voc tem a

    colnia assentada sobre o trabalho escravo; com a conquista da independncia poltica, a

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    Schwarz-Em parte uma resposta. O fato que a boa ou a m sorte que teve esse ttulo se

    deve ao fato de que toca num ponto melindroso. Suponho que grande parte das pessoas que

    me objetaram no tinham lido o ensaio, mas o ttulo. um ttulo que pegou.

    FHC e a chanchada

    Folha- Desde que Fernando Henrique se elegeu presidente, talvez at um pouco antes, a

    esquerda, sobretudo a acadmica, se dividiu de forma indita e vem trocando farpas e

    insultos constantemente. O fernandismo de alguns e o anticardosismo de outros

    saltaram para o primeiro plano, prejudicando, dos dois lados, a anlise crtica e, muitas

    vezes, a prpria capacidade de pensar o que est acontecendo. Sendo ao mesmo tempo de

    esquerda e amigo pessoal do presidente, este, para o sr., no assunto dos mais fceis delidar. Qual o real impacto do governo FHC na intelectualidade?

    Schwarz- No sei se a pergunta boa. No substantivo, a esquerda est em crise por causa

    de uma mudana havida no capitalismo mundial, e no por causa do governo FHC. A

    mudana foi objetiva e deslocou as balizas polticas nacionais com que o reformismo, como

    alisa revoluo, costumavam contar. Sumariamente, as reformas da esquerda dependiam

    do fortalecimento do campo popular diante do Estado e do capital assentado no pas. Com a

    atual preponderncia e mobilidade do capital mundializado, que sempre pode preferir outra

    plagas, o alcance daquele fortalecimento ficou menor e, com ele, a prpria esquerda,

    enquanto no conseguir uma expanso paralela do capital. Essas coisas bom lembrar

    para que no se descarreguem no governo FHC dificuldades que a esquerda, se estivesse l,

    encontraria igualmente ou em maior escala.

    Acontece que FHC, antes de articular a aliana de centro-direita que o levou

    Presidncia, foi um dos lderes intelectuais da esquerda. Uma parte desta o acompanhou,

    outra ficou contra, e uma boa dose de azedume de parte a parte foi inevitvel. Mas, doponto de vista intelectual, interessante notar a continuidade nas anlises de FHC, que, at

    onde vejo, no mudaram muito de estilo.

    Se isso for exato, ns, os adversrios de esquerda, poderamos nos questionar a

    respeito do nosso prprio arsenal de categorias, prximas das dele, quando no formuladas

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    por ele mesmo. Desenvolvimentismo, primado da economia, anlise de classes, viso fria

    da dinmica internacional, todos esses mritos do marxismo razovel so compatveis com

    a linha do governo atual.

    As conseqnciasa tirar do para todos os gostos. Seria razo para apoiar o governo

    FHC? Para lhe dar apoio crtico? Seria razo para rechaar a teoria, para rev-la e examinar

    os pontos em que ela pode deixar de ser anticapitalista? Ou, ainda, seria razo para fazer

    oposio sem teoria, diretamente inspirada no intolervel da fratura social?

    De outro ngulo, claro que um governo to cheio de intelectuais toca os

    intelectuais, que, mal ou bem, convices parte, vem seus atributos postos prova. Se

    no me engano, a urbanidade e clareza com que o presidente capaz de se explicar na

    televiso representaram uma novidade para o pas e mostraram virtualidades inesperadas na

    profisso de professor. Mas claro que, volta e meia, o Brasil entra pela janela e transformaem chanchada a aula que ia to bem.

    Folha-Qual a matria dessa aula?

    Schwarz - O horizonte do governo FHC de atualizao capitalista. Apesar do

    progressismo ostensivo, a nfase que resulta intelectualmente conservadora. Ela encontra

    o foco na diferena que nos separa dos pases ricos, o que os transforma em padro de

    excelncia, aceito de maneira acrtica. Todo leitor de jornal, entretanto, sabe que eles estoem dificuldades, em parte parecidas com as nossas. Alis, a necessidade de captar

    investimentos estrangeiros protege de debate a feio socialmente absurda de seu

    movimento errtico, o qual teria justamente de ser criticado. Alm disso, nada indica que a

    atualizao seja, de fato, generalizvel para a populao, e muito menos para o conjunto

    das naes, que anda esquecido.

    muito possvel que a atual falta de brilho de nosso debate intelectual se deva a

    essa situao nova, alis antiga: a busca da soluo para o pas por meio do acatamento da

    ordem internacional que a causa do problema. O vigor intelectual do perodo anterior se

    deveu justamente articulao entre crtica da ordem social interna e crtica da ordem

    internacional, que emprestava vibrao e relevncia contempornea aos debates nacionais,

    que, mal ou bem, tinham algo a ver com a melhora da humanidade e com a compreenso da

    feio inaceitvel tomada pelo progresso.

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    Folha-Vamos saltar para trs, de FHC para o regime militar. Escrevendo sobre o ambiente

    cultural brasileiro entre 64 e 69, num ensaio de 1970, depois publicado em O Pai defamlia

    e outros ensaios, o sr. faz uma anlise crtica do tropicalismo que passou batida por alguns

    e foi malvista por outros. Tratava-se, no ensaio, de entender a justaposio tropicalista entreo arcaico e o moderno, justaposio que, segundo o sr., atualizava no plano artstico (e no

    mbito da cultura de massas) a interpretao dualista do Brasil, justa mente no momento

    em que a cincia social no pas tentava superar essa construo. O sr. escreve, a certa altura,

    sobre o engenho tropicalista: O veculo moderno e o contedo arcaico, mas o passado

    nobre e o presente comercial; por outro lado, o passado inquo e o presente autntico

    etc.' .

    Schwarz - Esse ensaio lida com a posio em que ficaram os intelectuais com simpatia

    pelo campo popular depois de 64. O golpe, evidentemente, foi uma grande derrota dos

    progressistas. Mas no foi um entrave ao progresso econmico, ao contrrio do que a

    esquerda imaginava. Aconteceu ao mesmo tempo uma coisa surpreendente: na rea cultural

    houve um perodo de grande exuberncia da esquerda entre 64 e 68. Como a esquerda

    elaborava isso? Era uma situao difcil. O tropicalismo foi uma das maneiras mais

    profundas e cidas de refletir sobre essa questo.

    De certo modo, o tropicalismo um estilo artstico se ns quisermos reduzi-lo a

    uma frmula em que entra um elemento de forma avanado acoplado a um elemento de

    contedo prprio do arcasmo brasileiro. Essa combinao aparece com uma conotao de

    absurdo. Isso uma frmula artstica relativamente fcil de produzir, o que no um

    defeito e pode dar bons resultados. Essa frmula retinha a experincia histrica de 64, em

    que surgia uma modalidade de progresso que no transformava o pas em sentido

    progressista. O golpe de 64, como se sabe, foi um prottipo de modernizao conservadora.

    Eu quis indicar que essa frmula tropicalista alegorizava a combinao muito problemticaentre progresso e arcasmo no Brasil.

    Meu artigo foi contabilizado como uma crtica ao tropicalismo, quando a inteno

    era v-lo como uma formulao forte daquele momento histrico, com todos os problemas

    que aquele momento punha em cena. Acontece que a problemtica em si era muito negativa

    e o tropicalismo a condensava.

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    Folha- Pedir para que seus contemporneos entendessem o que estava em jogo no ensaio

    era demais para a poca.

    Schwarz- . Era um Fla x Flu. Voltando ao tropicalismo, acho que o crtico interessante o que encontra os problemas e explicita o quanto da problemtica contempornea foi retida

    e aprofundada numa obra. Mas, quando voc fala dos problemas, logo pensam que ofensa

    pessoal. Para terminar, em diria que 64, para mim, foi uma aula do que no muda no Brasil.

    A minha compreenso do Machado de Assis certamente se alimentou muito do grotesco

    que 64 ps na rua.

    Folha- O sr. escreveu um longo ensaio a respeito de Trs mulheres de trs ppps, nico

    trabalho de fico de Paulo Emilio, publicado no ano de sua morte, em 1977. Ele prpriodizia, em tom irnico, que o sr. estava levando o livro muito a srio, que aquilo era um

    exerccio ldico, uma espcie de brincadeira. No poderia haver contraste maior entre essa

    confisso do autor e as palavras finais do seu texto. Eu cito: a melhor prosa brasileira

    desdeGuimares Rosa quem o diz, e no como tese, mas por fora da coerncia de seu

    trabalho artstico . Com quem ficamos, com o crtico ou com o autor?

    Schwarz- Eu achava e continuo achando o livro do Paulo Emilio muito especial, e acho

    tambm que a crtica no deu o reconhecimento devido. De certo modo, o problema

    esttico do livro da mesma ordem do que vimos em outros autores. uma fico feita

    com prosa de ensasta de alto nvel, coisa quase inexistente no Brasil. O Paulo Emilio se

    destaca na fico nacional por ser um intelectual com uma formao vasta em vrias reas.

    Os recursos literrios dele so de universitrio. A prosa de uma velocidade, um nvel de

    abstrao, uma capacidade de circular entre assuntos aparentemente dspares, ou mesmo

    desconexos, que extraordinria.

    , portanto, uma prosa de ensasta de alto nvel. E ela se combina com aproblemtica paulista tradicional, com um sistema de conflitos completamente ultrapassado

    e grotesco. Isso cria uma comicidade prpria e faz com que o alto n vel intelectual no sirva

    para nada. Ele aparece como uma espcie de exibio de brilho intil. , nesse sentido, uma

    dramatizao do que j discutimos: a impotncia do desejo de modernizao.

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    Folha- O sr. fala em descompasso entre o mbito acanhado dos personagens e a altura da

    prosa.

    Schwarz- Que uma caracterstica tambm do Machado de Assis. A prosa pertence a um

    universo mental incomparavelmente mais rico do que o das personagens. Isso produz umasensao de impotncia e um humorismo muito particulares. O Paulo Emilio est

    estruturalmente filiado ao Machado de Assis. Isso vai configurando uma problemtica

    nacional. O livro impensvel sem uma enorme acumulao e uma vida bem realizada do

    ponto de vista intelectual, que, entretanto, no passam de palha. Uma concluso dura, vista

    a qualidade do que ela anula.

    Penso que razovel dizer que no perodo brasileiro recente, os prosadores mais

    interessantes talvez tenham sido ensastas. Particularmente os do grupo do prprio PauloEmilio reunidos em Clima. A prosa esteticamente mais satisfatria e adulta dos ltimos

    tempos a dos ensastas.

    Folha- Anatol Rosenfeld, que hoje anda meio esquecido, foi um dos intelectuais que mais

    o influenciaram. Qual exatamente o peso dele na sua formao?

    Schwarz - Junto com Antonio Candido, o professor a quem eu mais devo Anatol

    Rosenfeld. Quando meu pai morreu, eu tinha 15 anos, e o Anatol, que era amigo dele,

    passou a me orientar um pouco. Nos vamos toda semana. Conversvamos de tudo. Ele

    havia preparado seu doutorado de filosofia em Berlim, quando o nazismo o obrigou a fugir.

    A linha dele era especial. Tinha formao acadmica muito boa, mas preferiu no ir para a

    universidade. Vivia como intelectual independente. Ele se interessava muito pelo New

    Criticisme, de modo geral, pela anlise de texto, coisa que ele combinava com uma espcie

    de questionamento filosfico do mundo contemporneo. Tinha simpatias pela esquerda,

    mas alimentava uma certa birra do marxismo, que considerava dogmtico. Fazia anlises de

    texto muito pormenorizadas, sem nenhum preconceito, incorporando analise tudo o que o

    objeto propiciasse. Essa liberdade de esprito, que contrariava e ainda contraria a

    compartimentao acadmica, impressionava muito e tinha resultados inesperados.

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    PERSONAGENS DA ENTREVISTA

    Antonio Candido(1918) - Socilogo de formao, criou a curso de teoria literria da USP

    nos anos 60. um dos mais influentes crticos literrios do Brasil, autor de Formaoda

    literatura brasileira,Literatura e sociedadee O Discurso e a cidade, entre outros.

    Anatol Rosenfeld (1912-1973) - Intelectual alemo, chegou ao Brasil fugindo da

    perseguio aos judeus. Atuou em diversas reas, como esttica, crtica literria e teatral.

    Autor de O Teatro picoe Texto/Contexto(Ed. Perspectiva).

    Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977) - Crtico de cinema e escritor. Foi fundador da

    Cinemateca Brasileira. Participou da revista Clima, na dcada de 40, com Gilda de Mello e

    Souza, Antonio Candido, Dcio de Almeida Prado e Lourival Gomes Machado.

    Herbert Marcuse(1900-1979) - Pensador alemo da Escola de Frankfurt. Colega e amigo

    de Adorno, foi o mentor das manifestaes de maio de 68 na Frana. autor de Eros e

    civilizao, O Homem unidimensionaleRazo e revoluo, entre outros

    Theodor W. Adorno(1903-1969) - Filsofo alemo, um dos grandes expoentes da Escola

    de Frankfurt. Forjou, com Max Horkheimer, a expresso indstria cultural . Autor de

    Dialtica do esclarecimento (com Horkheimer), Minima moralia, Das estrelas para a

    TerraeDialtica negativa,entre outros.

    Georg Lukcs(1885-1971) -Filsofo e crtico hngaro de inspirao marxista. Autor deA

    Teoria do romanceeHistria e conscincia de classe, entre outros.

    Henry James(1843-1916) - Romancista e contista norte-americano. autor de Retrato de

    uma SenhoraeA Volta do Parafuso.

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    CapituLeia trecho do ensaiode Roberto Schwarz A poesia envenenada deDom CasmurroROBERTO SCHWARZ

    A gama das relaes de dependncia paternalista no romance (Dom Casmurro) variada e

    escolhida. (...) No prprio campo dos dependentes, o oposto de Jos Dias Capitu. Adiferena, ligada ao mandamento moderno de autonomia da pessoa e objetividade do juzo,

    ou, noutras palavras, ao choque entre a norma paternalista e a norma burguesa, tem

    significado moral saliente. Sem prejuzo das constantes artimanhas, o agregado no se

    concebe propriamente como indivduo, parte da famlia a que serve, com a qual se

    confunde em imaginao e cuja importncia lhe empresta o sentimento da prpria valia. A

    sujeio ao marido de dona Glria, depois viva e finalmente ao filho no uma

    contingncia externa, mas o molde do seu esprito, cujas manifestaes no se desprendemnunca da necessidade imediata de agradar e emprestar lustre.

    Capitu, pelo contrrio, satisfaz os quesitos da individuao. A menina sabe a

    diferena entre compensaes imaginrias e realidade, e no tem apreo pelas primeiras.

    Em pas to sentimental, ainda mais em se tratando de mocinhas, deve-se assinalar o

    incomum dessa iniciativa machadiana de estudar a beleza, a aventura e a tenso prprias ao

    uso da razo. Assim, quando a santa me de Bentinho resolve cumprir uma promessa e

    mandar o filho para o seminrio, pondo em risco os planos conjugais da vizinha pobre, esta

    explode num raro espetculo de independncia de esprito e inteligncia. Bento quem

    primeiro lhe traz as novas, que a deixam lvida, os olhos vagos, olhando para dentro, uma

    figura de pau , o tempo de se dar conta da situao; depois ela rompe no inesperado

    Beata! carola! papa-missas! . Capitu no s tem desgnios prprios, os quais consulta,

    como tem opinio formada e crtica a respeito de seus protetores, e at da religio deles. Em

    seguida ela reflete, aperta os olhos, quer saber circunstncias, respostas, gestos, palavras, o

    som destas, presta ateno nas lgrimas de dona Glria, no acaba de entend-las 1. Era

    minuciosa e atenta; a narrao e o dilogo, tudo parecia remoer consigo. Tambm se podedizer que conferia, rotulava e pregava na memria a minha exposio 2. Notcia exata e

    verificao interior, uma certa recapitulao crtica da situao, vo juntas, indicando o

    nexo entre liberdade de esprito e objetividade, esta ltima um verdadeiro esforo

    1Dom Casmurro, cap. 18.2Dom Casmurro, cap. 30.

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    ponte movedia, iria realmente at Bordus, deixando minha me na praia, espera 5. O

    trecho pode e deve ser lido em vrias chaves, pois tanto expressa a fascinao de Bento

    pela feminilidade de Capitu, como serve no processo movido pelo marido contra a mulher,

    lembrando que ela desde cedo fora ambiciosa, calculista, oblqua e inimiga da futura sogra.

    H outra leitura ainda, atenta ao contedo social das relaes, que oferece a vantagem de

    articular a conduta de Capitu das demais figuras, de modo a lhes tornar visvel o sistema.

    Com efeito, a desproporo entre fins e meios, central no retrato, reflete os

    constrangimentos prticos da moa esclarecida nas circunstncias locais. Com muxoxo

    oligrquico, as idias atrevidas designam eventuais resultados da independncia de

    esprito da personagem, projetos individuais que escapam ao limite da conformidade

    respeitosa. J o recurso aos saltinhos , por oposio presumvel franqueza de um pulo

    grande (que seria masculino, e no feminino? que no seria atrevido?), registra anecessidade em que se encontram os dependentes de obter o favor de seu patrono a cada

    passo, sem o que caem no vazio. Faz parte da lgica do paternalismo que os possveis

    objetivos no se assumam enquanto tais e a ttulo individual, mas, filialmente, como

    convenincias do protetor, o que no s os viabiliza, como legitima. Da as canoas e a

    fortaleza da Laje, em lugar do paquete e de Bordus, j que fins familiares so mais fceis

    de impingir. As maneiras hbeis e sinuosas de Capitu representam a poltica de decoro,

    ou, segundo o ponto de vista, a hipocrisia requerida por esse arranjo. Por outro lado

    caracterstica do Casmurro e de sua ideologia de classe apresentar como deficincia moral,

    como falta de franqueza, a poltica de olhos baixos imposta pela sua prpria autoridade,

    sem prejuzo de considerar atrevimento a conduta contrria. Como parte de sua confuso,

    ou de sua complexidade, note-se ainda como um tipo de conduta com fundamento na

    estrutura mesma da sociedade brasileira lhe aparece ora como falta de carter de sua mulher,

    ora como elemento de interesse ertico, ora como caracterstica geral e desabonadora da

    psicologia feminina. Seja como for, estar claro o fundo comum entre as manobras de

    Capitu, o riso sem vontade de Jos Dias, os pnicos de Bentinho diante da me e o susto de

    prima Justina quando lhe pedem a opinio. O significado destas variaes sobre uma

    situao de dependncia bsica fica incompleto, contudo, enquanto no passamos ao outro

    plo, que as determina, o plo da autoridade dos proprietrios.

    5Dom Casmurro, cap. 18.

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    Outra CapituO crtico examina ''Minha Vida de Menina'', livro de Helena MorleyROBERTO SCHWARZ

    As pginas iniciais do dirio, onde no faltam a privao e o trabalho, tm alguma coisa de

    utopia. Este paradoxo pode nos servir de ponto de partida. Segundo explica Helena, quinta-feira o dia bom da semana: a famlia levanta cedo, sob as ordens da me, arruma a casa e

    vai ao campo trabalhar, no que o melhor lugar de Diamantina , alis sempre deserto .

    Sem prejuzo da rotina, os dias e os lugares de que se compe a vida no so de modo

    nenhum indistintos, e os melhores, ao contrrio de bvios, podem ser os menos cotados. Os

    meninos levam a bacia de roupa na cabea, e as panelas e a comida no carrinho. Depois

    iro catar lenha, pegar passarinhos com visgo e pescar. As meninas lavam roupa embaixo

    da ponte, junto com a me, que cuida tambm do almoo. Na segunda parte do dia tomambanho e lavam o cabelo no rio, enquanto a me vigia se no vem ningum. Depois

    estendem a roupa para secar, e todos correm o campo atrs de frutas, ninhos de passarinho,

    casulos de borboleta e pedrinhas redondas para o jogo . Na volta, por cima da roupa

    dobrada e das panelas, os meninos trazem a lenha e o mais que apanharam, que vendem na

    cidade no mesmo dia6.

    Como vemos, um conjunto alegre de atividades simples, necessrias e inocentes, na

    fronteira do idlico. Alm de ser mnima, a diferenciao e diviso do trabalho aglutina as

    pessoas mais do que as separa, quase sem as especializar, sem nada de irreversvel e

    exigindo pouca subordinao. Por outro lado, claro que o processo de trabalho no define

    tudo, ainda que esteja em primeiro plano. Olhando melhor, notaremos j aqui os indcios da

    organizao social, cujo esprito diferente. Emdio, um dos meninos, um crioulo,

    agregado chcara da av. Quem carrega a bacia de roupa em cima da cabea ele, ao

    passo que os irmos de Helena levam as panelas em carrinho, assim como ele quem

    procura a lenha, enquanto os outros caam e pescam. Umas poucas cenas mais, e tero

    surgido os contornos nada igualitrios da grande famlia patriarcal, com proprietrios ricose influentes no centro, e parentes, dependentes, afilhados, ex-escravos e desvalidos

    ciscando sua volta.

    6 Helena Morley,Minha vida de menina, pgs. 5-6.

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    pr a mo na massa, a simpatia pelo trabalho forte, pela faxina em regra. Tambm o trato

    humorstico e em p de intimidade com as coisas nojentasparticipa da recusa de fronteiras

    intransponveis, que tem outra variante na preferncia pelo ambiente franco da cozinha e

    das festas dos negros.

    Mas onde o seu nimo dispostopassa do outro lado na invejaque os destitudos s

    vezes lhe despertam. sempre possvel que a menina esteja fazendo gnero e sustentando

    uma tese do contra, ou tratando de ser edificante e abnegada, ou buclica. Mas no a

    impresso que d. Alis, para afastar a hiptese da ostentao de virtude, note-se a sua

    inveja tambm enrgica dos confortos e pertences das primas ricas. Assim, afetao ou no,

    l est o desejo de viver como a coleguinha pauprrima, num rancho sem nada, na boca do

    mato, fazendo lio no meio da paisagem, sentada num caixote10. Ou a vontade de se juntar

    fila das carregadoras de uvas, num servio pesado e divertido, onde a gente podia tomarum farto 11. Ou a surpreendente declarao de que os escravos no causam pena, porque

    trabalhar o dia inteiro no uma infelicidade; ficar toa que seria um castigo 12. Parece

    claro que a inveja aqui no se refere pobreza, posio inferior, nem muito menos ao

    trabalho forado, mas prpria atividade e sociabilidade em curso no interior destas

    condies pouco prezadas, algo como a sua substncia efetiva. Muito a contracorrente,

    Helena no faz caso de enquadramentos exteriores , ideolgicos e de fora, e se concentra

    na vida que mal ou bem lhes corre embaixo. No deixa de ser uma abstrao arbitrria

    salvo se a prpria Histria estiver operando uma dissociao anloga, como de fato estava:

    com a Abolio, a sociedade engendrada pelo escravismo colonial separava-se de seu

    arcabouo institucional de origem e passava a existir e a persistir sob um cu diverso, com

    consequncias ainda difceis de definir... Voltando a Helena, ao aderir gravitao da

    atividade material, considerada na plenitude de seus contedos e despida da rotulao

    corrente, ela indica perspectivas imprevistas, nada convencionais, mormente num pas to

    desigual. Assim, bastou passar ao largo dos estigmas de classe, complementares da

    opresso, para que a choa e o trabalho de carregador como tudo o mais entrassem para

    um campo de apreciaes e clculos diferentes, propriamente materialistas. No caso da

    choa, mais que o desprezo pela misria passam a contar, positivamente, a diminuio do

    10 Op. cit., pg. 236.11 Op. cit., pg. 84.12 Op. cit., pg. 114.

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    trabalho domstico e a proximidade com a natureza; no exemplo das carregadoras, o prazer

    de fazer fora e cometer excessos em comum. Noutras palavras, apartada da dominao que

    lhe deu origem e polarizou os valores, a diferenciao dos trabalhos e das situaes aparece

    como a diversidade extensiva da experincia de uma sociedade, uma espcie de cooperao

    ampla e solta, que diz respeito s possibilidades de auto-realizao de todos os membros,

    brecha pela qual a imaginao de Helena entrou com incrvel energia. De pronto as

    segregaes clssicas entre atividade braal e intelectual, utilidade e beleza, trabalho e

    diverso, limpeza e sujeira etc. se fluidificam, passveis de arranjos novos, em que se

    demora a fantasia de Helena, explorando sem alarde as virtualidades vertiginosas e

    desalienadoras da avaliao materialista. Sem desconhecer a petulncia e o af de

    originalidade da menina, vale pensar que o vio que at hoje emana de suas observaes

    seja indcio de interesses que no esto extintos.

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