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Demônios Fora da Escuridão

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Demônios Fora da Escuridão

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Introdução

O que permite a existência do mal?

O que vem das profundezas mais obscuras de

nossa alma, ou o meio que nos influencia, corrompendo

o que há de puro e limpo em nossa existência?

Uma reflexão seria válida, mas quem pode

garantir que mesmo a sua capacidade de pensar vai

resistir á própria mente ?

No que você pode confiar ?

A vida então é só um jogo, com os desejos e

ambições abrindo o caminho? Ou tudo faz parte de um

destino já determinado?

Ainda há muito para ser descoberto, mas você

arriscaria uma busca mais profunda, quando sua

própria vida pode estar em jogo?

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“Na sua presença,minhas lembranças me engolem

De momento a momento

Você me joga de volta pra cá

Um novo dia, as mesmas trilhas, velhos medos

Sou a ferramenta dos meus demônios

Eles se escondem nas profundezas da minha alma,

Na escuridão.”

Caliban, Forsaken Horizon

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Parte 1:

Esboços do Paraíso

Um mundo fora da minha mente

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Capítulo Um

“— The Eyeball. É assim que ele passou a ser

chamado. Um homem normal, exatamente como eu e

você. — O garoto recuou um passo, mas ainda

mantinha os olhos fixos no expectador.—Certo, vamos

chamá-lo pelo nome politicamente correto, Charles

Abright.

Charles foi adotado por Delle e Fred

Albright.Passou a ter a vida que toda criança do

orfanato desejava.Família e proteção?Não foi o

suficiente.

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Aos treze anos, cometeu seu primeiro

crime, um assalto á mão armada. Não teve a sorte dos

iniciantes, e foi pego pela polícia.A consequêcia de seu

novo crime, dessa vez apenas um furto, foi a expulsão

da escola onde estudava.Mas ele já não precisava dessas

futilidades.Aprendeu a falsificar documentos, forjar

assinaturas.Tudo que fazia, fazia bem feito.Conseguiu

seus próprios diplomas de bacharelado, sem nunca ter

cursado uma faculdade.

Incrível história para um adolescente, não é?

— Sentou-se em algo parecido com um leito

cirúrgico.Estava obviamente em um quarto doméstico,

porém adaptado para o que ele faria.Deu um sorriso.—

Mas espere.Ainda não lhe contei a melhor parte de

nossa historinha.Charles casou-se com uma namorada

de colégio.Uma linda filha selou a união dos

dois.Emocionante, não acha? —Ele riu.— Não

conseguia segurar nenhum emprego, todos lhe

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pareciam entediantes demais.O que acha que

aconteceu? Assim como toda história de amor real, o

romance acabou, o dinheiro acabou, a paciência da

garota de Charles também.Ela abandonou-o. Quem sabe

tenha sido isso que desencadeou os fatos que se

seguiram?Bom, ele voltou ao que fazia de melhor, forjar

cheques e credenciais. — Pegou um alicate cirúrgico da

bancada de metal ao seu lado na cama, e brincava com

ele.

A Polícia o descobriu com milhares de

dólares roubados, e ele foi preso pela terceira vez,

libertos três meses depois.Resolveu mudar.Mudou de

bairro, mudou de vida.Conseguiu até mesmo um

emprego digno: Passou a cuidar das crianças dos

vizinhos quando eles iam trabalhar.Quer algo mais

nobre do que isso para um ex-presidiário?

Foi acusado de agredir as crianças.Seria

verdade? — Ele fez um ar demagogo.Tornou a sorrir. —

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Acha mesmo que nosso amigo seria capaz de machucar

criancinhas?Verdade ou não, o processo legal não deu

em nada. E Charles mudou-se daquela vizinhança.

Conheceu Dixie, uma garota como outra

qualquer, estúpida, patética e apaixonada.Dessa vez,

Charles não teve filhos, mas o relacionamento terminou

também, quando a pequena Dixie se viu

sobrecarregada, sustentando sozinha a casa e o

marido.Foi exatamente nessa época que ele matou Mary

Lou Pratt, em dezembro de 1990.

Aos trinta e três anos, Mary vivia nas

ruas, e teve o infortúnio de conhecer Eyeball, numa

noite de trabalho qualquer...Seu corpo foi encontrado no

quarto de hotel, usando apenas uma camiseta.Tinha

sido baleada na nuca com uma calibre. 44.O mais

intrigante para a Polícia vem agora. — Ele fez uma

pausa dramática.A câmera deu um zoom em seu rosto.

— Seus olhos tinham sido arrancados.Mas não pensem

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que Charles deixou uma poça de sangue nojento pelo

tapete, ou buracos mal feitos no rosto dela.Eles foram

removidos cirurgicamente, de forma precisa, incisiva.Os

globos nunca forma encontrados.

Foi o destino de Mary, Billy? — Ele

perguntou, largando o alicate na bancada.Estendeu as

pernas na cama.—Eu chamo isso de azar...

Poucos meses depois, Susan Petterson foi

encontrada quase exatamente do mesmo jeito que Mary

Lou.As semelhanças com a outra defunta eram

muitas.Ambas partilhavam da mesma profissão,

vestiam uma camiseta de algodão, e estiveram com

Charles Albright na noite do crime.Vale lembrar que os

olhos de nossa querida Susan também foram

removidos.

Em 18 de março, nas mesmas circunstâncias

que as mulheres que eu já mencionei, a terceira e última

vítima foi encontrada sem os olhos.Shirley

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Willians.Apenas uma coisa a diferencia dos outros

casos.Ela teve uma deformidade no rosto, um nariz

quebrado.Penso que ela tentou resistir, que tentou lutar

pela sua miserável vida, acrescentando somente mais

dor á sua morte.

Será que Eyeball era apenas um cara

entediado, uma pessoa fria e ruim, uma vítima da

sociedade, ou sofria de um distúrbio mental?

Para concluir nossa história, Charles foi

condenado á prisão perpétua por um júri revoltado,

sedento de justiça.As provas apresentadas foram apenas

circunstanciais, sendo que a única evidência sólida foi

um fio de cabelo encontrado na cena do crime no caso

Willians.

Enquanto conversamos, Eyeball está em um

presídio em Dallas, somente aguardando sua morte.

Certo, agora que já sabe tudo sobre nosso

mestre inspirador, vamos ao que interessa.— Havia um

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espelho pendurado em uma das paredes brancas.Ele

tinha uma pinça cirúrgica nas mãos.

—Precisamos aprender a lidar com a dor.Ela não nos

domina.Nós é que a dominamos.”

Com a prática de um cirurgião, o garoto

removeu o próprio olho com a Foerster, sem emitir um

único gemido de dor.A tela do monitor escureceu.”

Joshua recostou-se na cadeira.Sem dúvida

alguma, aquele era um dos melhores vídeos do ano.Se

não o melhor...Autêntico, original.Com o mouse do

computador, seguiu até a página de recados do

remetente, Martin Bundy.

“Seu vídeo será postado, Bundy.Valeu

pela participação, e por lembrar-se de Eyeball.Há muito

tempo que eu mesmo não ouvia falar dele...”

Ele ia postar o recado, quando o

computador de repente desligou.Deu um soco no

monitor.

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— Droga!—Ele exclamou.

Levantou-se, tentando ignorar a dor de

cabeça. Ela sempre vinha se ele ficasse nervoso, ou

levemente irritado.Começava sorrateira, para se

transformar num turbilhão, só seria amenizada se ele

fosse dormir.

Acendeu a luz da cozinha, ponderando

se aquela não seria uma boa hora para tentar o café da

manhã nutritivo, que sempre ficava para depois.Ficaria

para outra vez de novo.Já se encontrava irritado o

suficiente para travar uma batalha com a

frigideira. Pegou o leite e a caixa de cereais.

Voltou para a sala, dando uma rápida

olhada no relógio digital do rádio.Meio dia e

quinze.Café da manhã.

Não haveria outra saída.Teria que

chamar um técnico.Já fazia três dias que o computador

desligava sozinho, e tão repentino quanto tinha

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desligado, era acionado por conta própria.Um trabalho

importante precisava ser entregue naquela semana, e ele

já estava atrasado.

A hipótese de ter sido atingido por um

vírus na rede era inviável,então não havia nada que ele

próprio pudesse fazer.Joshua orgulhava-se de pensar

que nem mesmo a CIA seria capaz de hakear seus

arquivos. Sim, devia se tratar de um problema técnico.

Amaldiçoou novamente o computador,

tendo que recorrer á lista telefônica.Não demorou muito

até que achasse uma agência, foi-lhe indicado alguém

especializado.Joshua afirmou ser um caso urgente, mas

duvidava de que cumprissem a promessa de virem

aquela tarde.

Duas horas depois, o técnico chegou.Receber

alguém no apartamento chegava a ser estranho.A única

pessoa que entrava ali além de Joshua era a diarista.Da

mesma forma, era raro que ele deixasse o apartamento.

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—Bom dia.—Disse o homem alto e grisalho, no seu

clássico uniforme e boné azul da companhia.

Joshua indicou o computador e puxou uma

cadeira para vê-lo trabalhar com precisão, depois de ter

explicado o problema.Ao fim de duas horas, estava

terminado.O homem abriu um dos documentos salvos

no computador para testar seu trabalho.Joshua

adiantou-se.

—Isso não é necessário.

—Seria bom dar uma conferida.— Ele disse, surpreso

pela intervenção.

—Sério mesmo, não precisa. —Pegou a carteira da

gaveta da escrivaninha, e deu a gorjeta.O homem ainda

parecia surpreso.—Muito obrigado.

Depois que ele saiu, Joshua testou o que

tinha sido feito.Pelo jeito, um bom trabalho, mas só

poderia ter certeza se o computador não resolvesse

desligar daqui há algumas horas.Só esperava que a

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agência não lhe cobrasse uma fortuna.Espiou a conta

que tinha sido deixada sobre a escrivaninha.Até que era

uma quantia razoável. Finalmente poderia voltar ao

trabalho.

Há cinco anos, ele tinha começado a

trabalhar para alguns amigos no planejamento de

sites.Naquele tempo, a Internet era só uma

criança.Acabou por tornar-se popular entre donos de

micros e pequenas empresas, que anunciavam seus

produtos nessa rede tão ampla.O mundo passou a ver a

Internet como um novo veículo para a informação.

Tinha acabado de formar-se na escola

técnica, um curso razoavelmente caro pro seu bolso na

época.

Depois começaram as atividades ilegais.Não

que ele alguma vez tivesse roubado realmente. Deixava

que os outros fizessem isso por ele. Hackeava

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arquivos para o cliente que solicitasse seus serviços, e

deixava que fizessem o resto. Já fabricava seus próprios

vírus, e também seu próprio anti vírus, que o tornara

impenetrável.Certa vez, roubara as fórmulas secretas de

uma empresa de bioquímicos para um cliente auto

intitulado “Desastre”. Este se tornara fabulosamente

rico meses depois.

Há dois anos surgira o Death of Patience.

Ele não saberia dizer exatamente de onde

viera a idéia em si.Era verdade que ele sempre tinha

sido um grande fã de serial killers.As paredes de seu

quarto estavam cobertas de pôsteres e desenhos.Seu

preferido era a fotografia de um assassino de sua

cidade, autografada pelo próprio condenado, meses

antes de sua execução.

O site tinha começado como uma brincadeira

entre amigos em um outro site de

relacionamentos.Postara um vídeo diferente,

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violento.Recebera comentários

aprovadores.Obviamente, se tratava de uma montagem,

o garoto se auto mutilando e depois cometendo suicídio

com uma serra elétrica.Apesar de parecer absurdo, e

fisicamente incorreto, Joshua espalhou para os amigos

que se tratava de cenas reais.

“Genial, perfeito”, respondera um de seus

amigos, Filth Darkness.”Também tenho um dos bons.

Dê uma olhada.”

O vídeo que Filth Darkness postara parecia

ser real.Alguém flagrara com uma câmera o momento

em que um assaltante baleava a vítima em um posto de

gasolina.A câmera tinha como foco principal a

vítima.Os vídeos continuaram a ser postados, um

trocando o mais interessante que achava com o

outro.Terminaram por ser denunciados por abuso, os

vídeos proibidos, e suas contas no site excluídas.

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Então, Joshua teve que inventar o próprio site

de relacionamentos, um site secreto.Se estava sendo

acusado de incitar a violência, o faria só entre

amigos.Mas o Death of Patience acabou tomando

proporções grandes, e a quantidade de membros

aumentava a cada dia.Para manter a segurança, Joshua

estabeleceu uma regra.Só se tornava membro quem

tivesse um convite.Dessa forma, apenas pessoas que

conheciam alguém de dentro do site poderiam entrar.

Ele odiava ter que fazer tudo as escondidas, só

porque sua idéia não era aceita.A humanidade é

hipócrita.É cientificamente provado que todo ser

humano gosta de ver a desgraça alheia.Assumidamente

ou não, todos são sádicos.E Joshua não incentivava a

violência, simplesmente a atraia até ele. Ela estava em

todo lugar.Tudo que ele fazia era encontrar nela uma

forma de entretenimento para pessoas de gosto pouco

convencional.

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Ele via-se no direito de revoltar-se contra a

sociedade. Durante toda a vida, tinha sentido a

influência contrária dela.Sentia-se descriminado o

tempo todo, e cada vez mais procurava ser

diferente.Talvez na simples tentativa de não ser um

hipócrita.

Na adolescência, esses sentimentos tinham

sido mais pronunciados. Costumava desaparecer

madrugadas inteiras, mas desconfiava de que sua mãe

nunca sentira sua falta. Deixou de fazer a barba, e o

cabelo liso e escuro cresceu até os ombros.Seu guarda

roupa limitou-se á cor preta por muitos anos.Mas que

adolescente nunca tinha passado por uma fase como

aquela? Decidiu que isso não o fazia diferente dos

outros.O que o diferenciaria dos bilhões de pessoas no

mundo seria única e simplesmente sua maneira de

pensar.Então, ele desistiu do preto.

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O pai abandonara a família quando Joshua

tinha dez anos.Três anos mais tarde quem desapareceu

também foi o irmão mais velho.A mãe passou quatro

semanas no hospital.O laudo foi overdose de

cocaína.Ela voltou para a casa, largou as drogas ilícitas e

passou a tomar antidepressivos.

Joshua nunca fez caso de nada disso.

Refletindo agora, se arrependia um pouco.Tinha

passado muito tempo centrado em si mesmo.Sentia falta

de sua mãe.

Aos dezoito anos, completou o colegial e

deixou San Francisco para a cidade vizinha.Nunca teve

a intenção de voltar.Repensando tudo, quem sabe a

vida tinha melhorado.

Já passava das sete da manhã, e Joshua

terminou o trabalho.Desligou o computador e foi

dormir.Mais um dia tinha terminado.

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Foi a insistente campainha que o despertou.

Lançou um olhar óbvio para o relógio de cabeceira,

resmungando qualquer obscenidade.Uma da tarde.Não

fazia a menor idéia de quem poderia ser.Teria feito

alguma encomenda? Era possível, ele sempre se

esquecia das encomendas que fazia.Calçou o tênis sem

amarrar os cadarços.

—Olá! —A moça sorridente disse.Tinha o cabelo curto e

loiro.Na baby look que vestia estava estampado um

gato com jeito de preguiçoso.Ela estendeu a mão para

Joshua. —Eu sou sua nova vizinha, Heather Spencer.

—Joshua Dunne.

—Sabe o que é, Sr. Dunne...? —Ela parecia

constrangida, apesar de continuar sorrindo. —Eu tenho

uma tonelada de caixas lá embaixo, no carro.Não

conheço uma única alma nessa cidade, e pelo visto, falta

um porteiro nesse prédio... —Ela riu. —Será que

poderia...?

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Ela não terminou a frase, e Joshua

obrigou-se a ser simpático.

—Certo, eu te ajudo.

—Ah! Não sabe o quanto lhe sou grata!

Ele adiantou-se para chamar o elevador.

—É novo aqui?

—Não.

—Já mora aqui há muito tempo?

—Moro.

—Acha que é um bom lugar?A região, os vizinhos?

—Acho.

—Eu vim do interior. —Ela deu uma risadinha.— Não

sou muito acostumada com cidades grandes.

Chegaram ao estacionamento.Ela o conduziu

até um Saveiro verde, e, exatamente como ela tinha dito,

estava lotado de malas.

Joshua mantinha os olhos semi abertos por

causa do sol.Heather apontou as malas e caixas.

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—São apenas essas.

Ele pegou três caixas de uma vez.Ela seguiu-o,

ajudando com o resto da bagagem.

—Está pesado?

Ele perguntou-se se ela estava ironizando.

—Não.

—E olha que eu tive que me desfazer de metade das

minhas coisas! —Disse, rindo. —Nós, mulheres, somos

assim mesmo.Precisamos de uma porção de

acessórios...É casado, Joshua?

—Não.

Eles entraram no elevador, ela descansou as

malas no chão.

—Ás vezes sinto como se tivesse cinqüenta anos!—Ela

arqueou, cansada.—!Não se sente assim ás vezes?

—Sinto.—Ele nunca tinha pensado nisso, e não estava

certo se já tinha se sentido assim.

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A porta do apartamento de Heather

emperrou, e ela deu um chute para abri-la.Empilhou as

malas em um canto.

—Você foi muito legal, Joshua.Quer beber alguma

coisa?

—Não, obrigado.

Ele já ia saindo, mas ela o deteve.

—Eu não tenho nada aqui, agora, mas eu posso buscá-lo

mais tarde para um café?Como agradecimento?

—Sério, isso não é necessário mesmo.

—Mas será apenas um café!

Ele hesitou, contrafeito.

—Está certo.

—Então, até mais tarde.

Não conseguiria voltar a dormir.Ligou o

computador para verificar se algum novo vídeo teria

sido postado.

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Esperou o computador ligar, enquanto

colocou água para ferver.

Nenhum vídeo recém postado.Página de

recados.

“Data: 02/12/2008, 11:45hs.

Remetente: Moonface.

Recado: E aí, Billy?Beleza?Estou passando

pra fazer um pergunta.Eu posso postar o vídeo de um

amigo? Sabe como é, não é meu, nem dele...É o

assassinato de três policiais ali na avenida 31.Você deve

ter ouvido falar.Ele filmou tudo com a câmera de um

celular, mas ficou super dez! Tenho certeza de que você

vai gostar.”

Joshua respondeu que ele poderia, sim,

postar o vídeo roubado.Passou para o recado seguinte.

“Data: 03/12/2008, 00:03 hs.

Remetente:Dark Kisses.

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Recado: Tenho uma música do Lacuna

Coil que eu gostaria de postar aqui.Como eu faço?”

“Responder: Não faço idéia. Aqui

postamos vídeos, não somos rádio on line.Abraços.”

“Data: 03/12/2008, 3:52hs.

Remetente:Joey.

Recado:Está chegando em você.”

Joshua releu a mensagem

atentamente.Não se se lembrava desse membro.Clicou

no link que o levaria á página pessoal do tal de Joey.O

perfil havia sido deletado.Não existia mais.Alguém

tinha dado o convite, então ele teve vinte e quatro horas

para navegar pelo site, até que Joshua aprovasse ou

recusasse a sua estadia.Só então ele poderia ser

definitivamente aceito.Joey tinha tido tempo suficiente

de postar seu recado e simplesmente ir embora.Talvez

fosse hora de Joshua aumentar a segurança do Death of

Patience, torná-lo ainda mais reservado.Já estava

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tornando-se propenso á falhas, devido á grande

quantidade de pessoas que adquiriram a idéia.

O cheiro de gás que se espalhou pelo

apartamento lembrou Joshua que o bule de café tinha

sido deixado no fogão.

Heather chegou ás seis da tarde em

ponto.Ele deu um pulo de susto com a

campainha.Estava tendo uma semana péssima.Esperava

que terminasse logo.

—Oi. —Ela disse, com um ar inocente.Ele percebeu que

a noite só ia começar. —Vim cobrar de você o meu

agradecimento,com atraso de vinte e quatro horas!

—Deixe-me desligar o computador.

—O que você faz nessa sala escura? —Ela perguntou,

espiando lá dentro.

—Estava trabalhando. —Ele trancou a porta atrás de si.

Ela fez um gesto para que ele entrasse no

apartamento dela.

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— Desculpa a bagunça.Ainda não tive tempo de

arrumar tudo.

Isso ele já tinha notado.Foi invadido por

uma espécie de deja vu completamente sem

sentido.Provavelmente ele tinha tido um sonho

parecido com aquela situação, ou alguma coisa assim.

— Sinto muito por não te oferecer nada melhor. —Ela

colocou um pacote de biscoitos e uma garrafa térmica

de café sobre a antiquada mesa redonda. —Então,

Joshua, o que faz?

— Desing gráfico.

— Ah é?O que é isso, exatamente?

Ele hesitou.

— Monto sites para empresas.

— Trabalha em casa?

— Sim.

— Posso por açúcar? — Ele assentiu. Ela despejou uma

quantia mínima de açúcar na xícara.Ele teve vontade de

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colocar suas habituais colheradas cheias, mas conteve-

se.—Que tipo de empresas?

—Várias empresas.

—Você não é um daqueles viciados em computador,

é?Um nerd ?

—Isso depende do ponto de vista.

—Eu gostaria de entender os computadores.Tudo que

sei é ligá-los e acessar a internet.— Ela riu.

—É só uma questão de prática. —Ele levantou-se. —

Obrigado pelo café.

Ela pareceu ficar decepcionada com sua

rápida partida.

—Foi um prazer.

Capítulo Dois

— Ei Billy! Boa noite. — Jovial,o adolescentes de olhos e

cabelo muito escuros começou.Seu inglês tinha um

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carregado sotaque latino. — Quero te apresentar uma

pessoa.

A câmera deixou de focalizá-lo para

mostrar uma garota amarrada numa

cadeira.Amordaçada, ela emitia sons abafados,

sacudindo-se freneticamente.

— Essa é Beverly, minha garota. —Ele abraçou-a sobre

as cordas. —Você deve ter percebido que Bev não gosta

da idéia de ter que participar do meu vídeo...Será um

pequeno sacrifício.Vamos lá, querida, diga olá.Nós já

vamos começar.

O garoto se aproximou de um balcão de

madeira no canto da sala escura.Sensacionalizou para

escolher entre um facão e um machado, com um sorriso

estranho.Escolheu o facão.

— Está pronta? —A câmera desviou-se no momento em

que a faca atingia a garota no abdome.Tornou a

focalizá-la, ainda mais desesperada que a princípio.Sua

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roupa tinha ficado encharcada de sangue. —

Vagabunda! Vai pagar por ter feito isso comigo! — Ele

gritou, tornando a esfaqueá-la.

Joshua balançou a cabeça em

desaprovação.

— Bons atores...

Não terminou de ver o vídeo, deletou-

o.Voltou á página de recados.

“Data- 03/12/2008, 23:51hs.

Remetente:Liu Kung.

Recado: Adorei o vídeo ‘The Third

Hand’.Quem é esse tal Bear? muito criativo.Gostaria de

levá-lo pra jantar.Não me importo que ele já não tenha

uma das mãos...”

Responder: Eu gostaria de bancar o

cupido dessa união, mas temo que ele já tenha tido uma

hemorragia. Até mais...’

“Data: 04/12/2008, 00:02hs.

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Remetente: Buffalo Bill

Recado: Quero postar o vídeo de uma

ex namorada minha. Ela suicidou. Ela gravou tudo

justamente para que nós postássemos aqui. Sim, uma

verdadeira freak. Que dica você me dá? E depois, como

eu faço o upload do vídeo? “

Ele começou a explicar o procedimento,

quando uma nova mensagem apareceu no canta da

tela.Era de Filth Darkness.

“Preciso encontrar-me com você, Billy. É

um assunto sério, e não é seguro conversarmos por

mensagens instantâneas.Me dê seu telefone”

Filth Darkness. Seu antigo amigo, um

dos primeiros membros do Death of Patience. O recado

de Joey veio á sua mente, mas ele afastou o pensamento,

temendo acabar ficando paranóico. Provavelmente, uma

coisa estranha não tinha a ver com a outra. Ele ainda

deveria estar on line.

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“Se o assunto é sério, me adiante um

pouco. Não posso dar meu telefone. “

Seu recado foi respondido

imediatamente.

“Já disse que não é seguro. Vamos nos

encontrar em algum lugar público..’

O que seria tão perigoso? Estaria se

arriscando se fosse.E se alguém tivesse hackeado Filth

Darkness, e o remetente do recado se tratasse de um

impostor? Praguejou mentalmente.Não gostava de

mistérios.

“Onde você mora?”

“ Não longe de você.”

Por Joshua ter demorado um pouco

para responder o recado, Filth Darkness destinou a

próxima mensagem.

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“Encontre-me hoje á tarde, ás três

horas, na avenida 43.Em frente a Lethal´s, a loja de

roupas.’

Encontrá-lo em um lugar público. Era

uma situação intrigante.

Abrindo caminho entre a multidão, Mabel

caminhava em seus habituais passos apressados. Em

primeiro lugar, odiava multidões. E a garoa fina era

insistente e irritante. Ela tinha a impressão de que não

terminaria nunca.

Reconheceu Billy imediatamente, mesmo

sem nunca tê-lo visto antes. Ele estava completamente

vestido de preto, os braços cruzados, protegido da

chuva sob o toldo amarelo da loja.

Ele correspondia exatamente ao que

Mabel imaginara, exceto pela ansiedade na sua

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expressão.Ou talvez o que ele demonstrava fosse

impaciência.

— Billy? — Ela disse, mais afirmando do que

perguntando. Achou divertida sua surpresa.

— Você é Filth Darkness? — Ele teve que perguntar.

— Mabel. — Apontou um pequeno bistrô do outro lado

da rua. — Vamos conversar ali.

Joshua seguiu-a, sentindo-se meio

embaraçado.Notou que a chuva tinha apertado.

Ela escolheu a mesa mais isolada do

restaurante.

— Quem é você? — Ela perguntou, como se ele tivesse

aparecido na sua frente de repente.

— Joshua Dunne.

— Joshua? — Ela deu um meio sorriso, sentindo a

palavra.Talvez se sentisse importante por saber o nome

verdadeiro de Billy. — Eu já lhe disse que meu nome é

Mabel, certo?Acho que você esperava por um garoto.

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—Esperava. — Ele foi sincero.

—Não sou um homem.— Ela fez sinal para que o

garçom viesse.Recusou o cardápio. — Duas mini-

bengalas de presunto e duas xícaras de café com

açúcar.— Ela retomou a conversa. — Você deve ter

percebido.

— Eu quero apenas café.— Ele corrigiu-a para o

garçom.— Com açúcar.

O fato de ela ser uma garota tornava, por

algum motivo, tudo mais assustador. Mais estranho.

— Recebi um recado igual ao seu.— Ela alegou.Ele não

soube o que dizer. — ”Está chegando em você”.

— E o que acha disso?

Ela deixou os olhos negros fixos nele por

alguns instantes, como se estivesse especulando.

— Eu não sei.— Deu de ombros.

—Acho que se trata de alguém que não gostou dos

vídeos.—Ele refletiu, sentindo-se entediado

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subitamente. — Talvez estejamos fazendo muito caso

disso.

— Muito caso disso?Acho que devíamos tomar as

providências o mais rápido possível.

— Afinal, o que poderia ser?

— Eu pensei em várias coisas.

Ele deu um sorriso irônico.

— Me dê um exemplo.

O garçom chegou e deixou as xícaras sobre a

mesa.Ela começou a comer e não voltou a olhar para

ele.Deu um meio sorriso sem graça.

— Não tenho nenhuma teoria completamente formada.

Joshua tomou todo café num gole só.

— Sabe o que eu acho? — Ele abandonou o que estivera

pensando o tempo todo.A garota á sua frente não lhe

parecia mais uma assassina em potencial, a remetente

de uma mensagem ameaçadora.Agora sentia-se um

idiota por ter considerado essa hipótese. —Sabe o que

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eu acho, Filth Darkness?Acho que você armou tudo isso

só pra me conhecer

— Está sendo um pouco egocêntrico, não está? Quem

você acha que é? O Zorro? Não sou sua fã, Billy.Posso

ser fã do Death of Patience, mas não sua.Não espere por

groupies.

Ele levantou-se, irritado.

— Acho que você é louca!

Já estava saindo quando ela disse:

—Vai em frente, ignore.Mas não se esqueça de que

fomos avisados.

Ele voltou-se para ela.

— Que diabos! Eu não vou me apavorar com isso, se é o

que deseja. —Ele esbravejou, formulando uma nova

hipótese mentalmente.Acabou chamando a atenção dos

outros clientes do bistrô. —E não me perturbe mais, ou

serei obrigado a excluir você do site.

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Mabel já tinha uma boa resposta, mas não deu

tempo de responder.Ele tinha ido embora.Levantou-se,

considerando a perda de tempo que tinha sido vir

procurar Billy.Sem esperar que o garçom trouxesse a

conta, ela foi até o balcão e pagou ali mesmo.

Billy era um completo idiota.Mas pelo menos a

chuva tinha passado.

Tudo saíra errado.Tinha recebido o recado, e

pensara estar imaginando coisas.Mas a sensação de

estar sendo perseguida foi-se tornando cada vez mais

evidente, até que ela não podia mais negar que era

real.Na noite de domingo, ela vira o vulto de um

homem esconder-se atrás de uma árvore.

Até o momento, não tinha contado nada a

ninguém.Sabia o que os outros diriam.E ela não estava

nada disposta a ouvi-los.Amaldiçoou Billy por não

escutá-la.Ele que se desse mal.Ela sabia muito bem se

virar sozinha.

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Subiu as escadas direto para o quarto.Trancou a

porta, certificando-se que tirara a chave da fechadura e

jogado na bolsa.Ouviu Charles gritar da sala.

— Mabel chegou!

Ligou o computador, impaciente até que fosse

completamente iniciado.

Como ela suspeitava, não demorou muito até

que batessem á porta.

— O jantar está pronto. — Era a voz de Pebble.

— São quatro horas da tarde! — Ela gritou de volta, mas

não obteve resposta.”Maluca...” Pensou consigo mesma.

Pebble era a madrasta de Mabel.Sua mãe

verdadeira morrera quando ela ainda era um

bebê.Criada pelo pai, ela foi notando com o passar do

tempo que ele nada entendia sobre crianças, para mais

tarde descobrir que ele nada entendia sobre

adolescentes.Quando ela terminou o colegial, há pouco

tempo atrás, ela entendeu que, de fato, ele nada

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entendia sobre mulheres.Finalmente, chegou á

conclusão de que ele não entendia Mabel.

Admitia nunca ter sido uma aluna ou filha

exemplar, e sentia certo orgulho nisso.Ele também

nunca se esforçara para ao menos parecer o pai

perfeito.Repensando tudo, era possível que eles nunca

tivessem tido uma conversa inteira.

Então ele conhecera Pebble.A loira adorável,

bonita e muito simpática, disposta a assumir o

compromisso de cuidar da filha bastarda de seu

amado.Mabel soubera odiá-la desde o início, e fizera

todo o possível para sabotar a nova amante do pai.Todo

seu esforço tinha sido em vão.Pouco tempo depois, eles

tiveram um filho juntos.Mabel fora excluída da nova

família do pai.

Tornou a ler a mensagem na página de

recados de Filth Darkness.Levantou-se da cadeira

bruscamente, quase a derrubando.

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— Maldito psicopata!

Já era noite quando ela saiu do quarto.Não

tinha intenção de jantar em casa.Procuraria uma

lanchonete.

— Olá minha garota! —Tony saudou quando Mabel

abriu a porta da frente, dando de encontro com ele. —

Atração ácida.Onde estava indo?

— Eu queria conversar com você.

Ele assentiu, preocupado.Ela o puxou

delicadamente pela mão para que entrasse.

— O que aconteceu? — Ele sentou-se na cama e ela fez o

mesmo.

— É um assunto delicado.Eu... — Devia contar a ele?

Respirou fundo.Tony entenderia.

Ela o conhecera ainda na escola.Ele vinha

tentando conquistá-la há algum tempo, mas Mabel

jamais tinha se interessado por ele.Acabou envolvendo-

se, na época, com Marc,um motoqueiro de jaqueta de

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couro,dez anos mais velho.O relacionamento acabou

depois de a melhor amiga ter visto Marc beijar uma

colega em comum, em plena luz do dia. Um alívio para

o pai e a madrasta.

Foi exatamente nessa época, depois de uma

duradoura crise, que ela aprendeu a cortar-se com gilete

para acalmar-se, e aliviar a dor no coração.

Há cerca de um ano atrás, Mabel reencontrou

Tony acidentalmente em um shopping da cidade.Ela

notou que algo de estranho e muito diferente do

colegial estava acontecendo entre eles.Tony tinha

crescido.Não só na aparência, como na maneira de

falar.Seus assuntos não eram mais vídeo games e

figurinhas.Quase não se lembrava mais do garoto de

sorriso aberto, óculos grossos e o cabelo muito

escovado.

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Agora, ele parado á sua frente, seu

semblante sempre calmo e receptivo, ela não sabia se

deveria confiar nele.

— Acho que estou sendo perseguida.

— Como assim? — Ele soou incrédulo, e ela

arrependeu-se imediatamente de ter começado aquela

conversa.

— Por diversas vezes, quando estou na rua, me sinto

vigiada.Eu vi alguém se esconder de mim. — Ela viu

sua expressão de preocupação transformar-se em

desconfiança. Parecia até mesmo irritado.

— Aposto que é impressão sua.Quem haveria de

perseguí-la?

Como todos os outros, ele achava que ela era

louca.O que eles poderiam entender sobre loucura?

Pensavam isso desde que o pai a levara para ver o

médico.Tinha sido somente a primeira de intermináveis

vezes que ela tivera que ir naquele consultório

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estressante, só para ouvir alguém dizer que ela era

maluca.Tinha-lhe sido receitados comprimidos para

tomar antes de dormir, mas ela sequer chegara a colocar

um deles na boca.

— É verdade que a violência está terrível —Tony

continuou, e ela sentiu mais uma vez que ele olhava

através dela.— Mas não acho que nesse caso seja real.

— Claro, estou delirando... — Ela murmurou. — Você

não entende.

— O que eu não entendo?

Ele tinha assumido aquela condescência que

Mabel odiava. Poderia matá-lo naquele momento.Não

tentou esconder sua raiva.

— Você não entende droga nenhuma! — Ela tinha sido

louca de pensar em contar sobre o Death of Patience

para ele. — Sou uma completa idiota de confiar em

você!

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Ela ia deixá-lo sozinho no quarto, e desaparecer

em qualquer lugar.

— Por favor, Mabel, eu não queria...

Mudou de idéia, e gritou para ele:

— Saia daqui! — Pebble se aproximava, com aquele

jeito preocupado que Mabel odiava. — Desapareça,

Tony!

— Sinto muito, Mabel.Deixe ...

— Dê o fora, eu já falei!

Ele suspirou.

— Está certo, então.Me ligue quando estiver mais

calma.

— Vai se danar...— Ela gritou, depois que ele desceu as

escadas.

— O que ele te fez? — Pebble perguntou, obviamente

penalizada.Por Tony, ela refletiu. Jamais sentiria pena

de Mabel.

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Bateu a porta do quarto, sem responder.Deixou-

se cair sentada no chão, chorando.Como se ela se

importasse! Ninguém daria a mínima importância se

soubessem que um assassino queria matá-la.Apagou as

luzes do quarto, queria ficar submersa na

escuridão.Afundar-se nela para sempre.Tentou

imaginar a cena do assassino acabando com ela.

Começou a rir.O pai e Pebble observando, horrorizados,

o espetáculo.Tony seria o próximo a ser morto

Falaria a respeito com o psiquiatra no dia

seguinte.Detestável dia de consulta.

Capítulo Três

Joshua deparou-se novamente com Heather no

corredor do prédio, quando ambos iam tirar o lixo pela

manhã.

— Bom dia, Jos.

Ele surpreendeu-se com a repentina intimidade.

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— Bom dia.

—Eu sei que tenho me aproveitado um pouco demais

de você. — Ela desculpou-se, jogando uma mecha de

cabelo para trás, numa espécie de cacoete. — Mas juro

que vai ser a última coisa que vou pedir. — Ele assentiu.

— Você disse que trabalha com computador, e acho que

tenho um problema com meu PC.

— Eu não sou técnico. — A resposta soou mais ríspida

do que ele pretendera. Completou. — Mas eu posso dar

uma olhada pra você.

Adiantou-se para entrar no apartamento

dela.

— Não precisa ser agora. — Deu uma olhada no relógio

de ouro que trazia no pulso. —O que acha de sairmos

para almoçar?

Joshua ia negar, dizer que tinha muitas

coisas para fazer.

—Vamos.

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Ela sorriu.Levou-o a um restaurante

próximo ao prédio.

— Então... — Ela começou, quando eles sentaram-se á

mesa.O restaurante era especializado em comida

italiana, a preferida de Joshua. — Já conseguiu descobrir

as senhas de algum banco suíço?

Ele demorou um segundo até perceber que

ela estava brincando.

— Não é esse o meu negócio.

— Eu sei.— Ela riu.

Heather ficou em silêncio.Ele sentiu-se

desconfortável. Precisava de algo para falar.

— E o que você faz?

Ela pareceu surpresa e satisfeita com a

pergunta.

— Escrevo. Já dá pra sobreviver com o que ganho...

— O que escreve?

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— Romances. Adoro escrever histórias, imaginar, criar,

desde que eu era garotinha.É como inventar um mundo

só seu.Mas depois você o compartilha com o mundo.

— Isso é muito legal.

Novamente o silêncio.Dessa vez, foi ela quem

falou:

— Não gosto muito dessa cidade.

— O calor é insuportável no verão.

— Deve ser mesmo.Você nasceu aqui?

— San Francisco.

— Sua família mora lá?

— Mora.

— Por que veio para cá?

— Eu precisava dar o fora.

— A vida começava a ficar difícil para um jovem

estudante?

— Muito. — Ele sorriu com a tentativa de adivinhar o

que teria acontecido.Uma contadora de histórias, ela

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dissera.Uma romântica.Acabaria por se decepcionar

com ele. Não compartilhavam o mesmo mundo.

— Morava sozinho?

— Com minha mãe. — Ele começava a sentir-se

desconfortável de novo. Já tinha falado demais. —

Como é o tempo em Dakota?

— Frio. Mas sinto falta de toda aquela neve! — Ela

prosseguiu, encorajada pelo silêncio dele. — Meu pai

me disse para eu vir pra cá divulgar o livro.Vou voltar

para Dakota, quando tudo der certo.Ou errado. Essa

lasanha está ótima.

Joshua procurou manter o nível de conversa

superficial até o fim do almoço.Na volta ao prédio, ela

levou-o até seu computador.

— Achei que a Internet não voltaria nunca mais.

Ele resolveu o problema em poucos

minutos.Estava para desligar o computador, mas o

histórico de sites na Internet chamou sua atenção.O

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Death of Patience estava entre os sites acessados.

Decidiu ser discreto.

— O que costuma fazer na Internet?

— Conversar com amigos, pesquisar para o livro. — Ela

não demonstrou surpresa com a pergunta.—A única

coisa que sei fazer no computador é escrever e acessar a

Internet!

Ele não conseguiu mais se conter.

— Você não parece ser do tipo...Sangrenta.

Ela ficou confusa por um momento, mas logo

sua expressão se desanuviou.Deu uma risada.

— O Death of Parience? Muitas pessoas me vêem como

uma garotinha indefesa.Talvez eu não seja tão frágil

quanto pareço.

— Mas...Pelo que sei, é necessário um convite para

entrar no site.

— Você também é membro? — Ela deixou o pequeno

escritório e foi á sala de estar, sentando-se no sofá e

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convidando-o para fazer o mesmo.A casa já estava

completamente arrumada, diferente do dia anterior.Ela

tinha tido um grande trabalho. —Preciso achá-lo para

adicionar aos meus amigos.Qual o seu nick?

—E onde você conseguiu o convite?

— Bom, pra ser sincera...Quem o conseguiu foi Tommy,

meu agente.

Um alarme soava no fundo da mente de

Joshua.A imagem de Mabel no bistrô, lhe dizendo que

tinha sido avisado.Não, seria idiotice ligar uma coisa á

outra.Sua nova vizinha não era uma assassina.Nada

mais do que uma simples coincidência.

— E não faço idéia de como ele conseguiu...— Ela

continuou. — É uma ótima inspiração para meu

livro.Estou contando a história de um serial killer.Eu

ainda não revelei a quem lê que se trata de um

assassino, é claro. — Ela sorriu. — Tenho outros sites de

referência.Quer dar uma olhada?

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Ele observou meio distraído o que ela mostrava.

Não havia nada de novo ali para ele.

— O que acha de assistirmos um bom filme mais tarde?

— Ela perguntou. — Pelo jeito, partilharemos o mesmo

gosto para cinema.

Ela sorriu de novo, e ele concluiu que nunca

tinha visto um sorriso tão lindo.

Desde que recebera o recado de Joey, Mabel

sentia-se ameaçada em qualquer lugar.Estava em

grande agitação, reconhecia.Decidira-se não ir o médico

por um tempo.

Sabia que a crise passaria logo, e até então ela

esconderia dos outros. Aprendera a esconder quando

estava muito eufórica.De vez em quando, sumia de

casa. Quando o estado de agitação passava, ela sentia-se

deprimida. Já sabia de cor o que ia acontecer.O pai lhe

perguntaria se ela tinha tomado o remédio.Ela diria que

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sim, e pensaria “Não estou doente”. Isso se resolveria

rapidamente com uma garrafa de vodca.

Novamente com o coração batendo forte,

Mabel pegou a bolsa e saiu, ignorando a madrasta

intrometida perguntando aonde ela ia.Acendeu um

cigarro com as mãos trêmulas, sem surtir muito

efeito.Ela tossiu, completamente desacostumada com a

fumaça.

Que droga, por que afinal estava tão nervosa?

Obviamente tinha a si mesma sob controle.A situação

estava sob controle.Entrou em uma loja e pediu um

canivete.

— Já está afiado?

— Afiamos gratuitamente, se necessário. — O

atendente disse. — Mas vai durar bastante.É uma das

melhores marcas.

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— Não vai ser necessário afiá-lo novamente.Vou usá-lo

apenas uma vez. — Guardou o canivete na bolsa, com

um sorriso.

Esperava que o maldito psicopata não

demorasse a vir. Estava protegida agora, e seria bem

divertido. Diminuiu os passos, observando atentamente

cada transeunte, imaginando qual deles se pareceria

com seu assassino.

— A pizza chegou. — Joshua gritou para Heather.

— Estou indo...

Ele colocou a pizza na mesa de centro da

sala e começou a parti-la. Aproveitou que ela tinha ido

ao banheiro para espiar o que estivera fazendo no

computador.Um site de busca, procurando um

endereço em New Orleans. Provavelmente o

personagem de seu livro fosse de lá.

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Heather entrou na sala de estar.

— Que bom que já chegou.Estava com fome.

— E o que me diz? Por que seu serial killer anda

matando inocentes?

Ela pegava copos na cozinha adjacente.

— Vamos dizer que Jon tem problemas.

— Jon? — Ele riu. — Conheço pelo menos meia dúzia

de assassinos chamados Jon.

— Fala sério. — Ela brincou, esboçando um sorriso

amarelo. —Vamos comer.

Ela sentou ao lado dele no sofá e pegou um

pedaço de pizza.

— Não gosta de clichês?— Perguntou.

Ela beijou o rosto dele, de repente.

— Odeio.

— Eu gosto...

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Sabia que a pergunta que ele faria a seguir o

levaria a um caminho perigoso.Colocou catchup em seu

pedaço de pizza.

— O que acha dos vídeos do Death of Patience?

— Não acho que sejam de verdade.

— Por que não?

— Não quero acreditar que a humanidade seja capaz de

coisas assim.

— Com certeza sua expectativas estão erradas.Se visse

os jornais, saberia.

— Eu vejo os jornais, mas não acredito.

Ele riu.

— Não acredita? Não há nada para se

acreditar.Simplesmente são fatos.É disso que eu

gosto.Fatos.E você nada entende da natureza humana.

— Ah não diga isso, Jos! Sou escritora, lembra?

Escritora, metida á psicóloga.

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— Psicóloga? Eles entendem menos ainda.Acham que

entendem. Gostam de dar conselhos.

Foi a vez dela rir.

— Pelo jeito, você não acredita em psicólogos.

— Médicos, psicólogos, terapeutas, palhaços. Não

acredito em nenhum deles.

— Se as pessoas são realmente tão ruins, por que

continuamos a nos envolver com elas?

Ele olhou ao redor, o pequeno apartamento,

de maneira significativa.

— Ás vezes, nos desligamos do mundo exterior,

tentamos fugir.Mas nos esquecemos de que também

somos humanos. — Ele deu um sorriso triste. —

Fugimos do mal, mas o mal está dentro da gente.—

Apontou para a própria cabeça. — Aqui.Muito mais

poderoso do que podemos imaginar.E nunca se sabe

quando vai ser liberto.

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— É por isso que a maldade existe no homem? Puro

instinto? —Ela balançou a cabeça, em negativa.— Então

não somos culpados de nossas atrocidades, certo?

— Não somos.Uma vez que nascemos desse jeito.Nosso

cérebro está formado, exatamente do jeito que deve

ser.Ele pode sofrer mudanças com o tempo, ele sofre

mudanças com o tempo.Mas o que nós somos, nós

somos.Não somos capazes de mudar.

— Sou responsável pelos meus atos.

— Fisicamente, se pudesse mudar algo em você, o que

mudaria?

— Meu nariz.

— Mas a Natureza fez seu nariz desse jeito.Você não

pode mudar.É tudo uma questão de genética, enzimas,

tal, e o ambiente em que se vive.Nem sua personalidade

está em suas mãos.

— E se eu fizer cirurgia plástica para deixar meu nariz

mais fino? — Ela riu.

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— Faça uma cirurgia na mente, e mude seu jeito de

ser.É só um pouco mais complicado. Antes, usávamos a

lobotomia para controlar certos instintos.Hoje, ela é

considerada desumana...

— Estamos apenas representando um papel?

Ele assentiu.

— Se eu pudesse, eu seria mais calmo.É o que eu

mudaria em mim, pois sei que faria bem a mim

mesmo.Por que eu não mudo? Por que nasci assim, não

posso mudar. Algumas pessoas são capazes de mudar

seus destinos, pois têm o completo domínio de si

mesmas.Elas são raras, e eu nunca conheci alguma.Só

imagino que elas existam. — Ele recostou-se no sofá,

olhando nos olhos dela. Ela era linda. Muito linda. Mas

ingênua demais.Se achava durona, mas era tão

vulnerável e crente! — O ser humano é um mistério. —

Ele concluiu.

— Isso me apavora.E me fascina...

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— Sabe que conhecemos apenas dez por cento de nossa

mente?

Ela assentiu.

— O que estará escondido nos outros noventa por

cento? — Ela sorriu.— Capacidades incríveis? Não

zombe de mim, Jos, mas eu acredito que tenhamos

capacidades inimagináveis que ainda não fomos

capazes de despertar.Não somos capazes de

desenvolver essas habilidades, mas talvez possamos

atravessar aquela parede.

Ele riu.

—Eu não seria assim, tão otimista.Talvez haja um bom

motivo para não nos ser permitido o acesso aos outros

noventa por cento.Existem áreas de nosso cérebro que

não devem jamais serem exploradas.Existem coisas

feitas para nunca serem vistas.Os vídeos são autênticos,

Heather.

Ela foi pega de surpresa.

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— Como pode ter certeza?

— Porque sou especialista em diferenciar o que é real, e

o que não é.

— Nunca podemos ter certeza.

— Você é a pessoa mais autêntica que já conheci.

— Eu sou autêntica, sou real. Invento personagens e

histórias.Eles não são reais.

— Eu escolho os vídeos metodicamente.

Ela sorriu, descrente.

— Está brincando.

— Não estou.

Heather demorou para falar novamente.

Repousou o copo de Coca-Cola na mesa da sala.

— E tem certeza de que são reais?

— Cem por cento.

Ela levantou-se e começou a recolher as

louças sujas.Joshua sentia-se estranho. Era a primeira

vez que revelava-se como Billy, a não ser para Mabel.

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— Tenho a impressão de que não vai querer me ver

nunca mais.

— Não tenho nada a ver com seu...Trabalho.

— Não é bem um trabalho. —Ele tentou justificar. —É

mais um hobby. —Ele notou que tinha piorado a

situação com essa informação.Seguiu-a até a cozinha. —

Então me responda, como conseguiu o convite?

— Já disse, meu agente conseguiu.Por que é tão

importante?

— Curiosidade.

Ela compreendeu subitamente.Pareceu mais

incomodada ainda quando disse:

— Se a pessoa errada descobrir, você pode ser preso,

não é?

— Eu estava apenas curioso.

Pegou um pano para enxugar as louças.

Heather ficou em silêncio por vários segundos.

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— Como pode fazer isso com aquelas pessoas? — Ela

desabafou, deixando o prato ensaboado na pia.

— Eu? O que eu faço com elas? Elas fazem tudo

sozinhas!

— Você as instiga a fazer essas coisas! — Ela não

levantou o tom, sua voz demonstrava aborrecimento.

— Se um idiota resolve se suicidar na frente de uma

câmera, a culpa é minha?

— Você o estimulou a fazer isso.

— Eu o estimulei a gravar o suicídio, mas ele ia se matar

de qualquer jeito! — Jogou o pano seco sobre a pia. —

Droga, Heather, você não entende!

— Desculpa, não sei como alguém pode se divertir com

o sangue alheio!

— Você assistiu os noticiários hoje?

— Sim.— Ela voltou a lavar louça.

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— Você ouviu mais uma vez sobre a violência que

domina essa cidade.Que domina esse mundo. — Ele

também pegou o pano de volta.

— E você gosta disso? — Ela respondeu com outra

pergunta.

— Não assisto á essa droga.O que quero dizer é que a

violência está em todo lugar. A culpa é do cinegrafista

que filmou o assalto na Av.22?

— A mídia ganha milhões com tragédias.Esse

cinegrafista está feliz, pois foi promovido. E a vítima do

assalto está morta. Sua família se sentindo abandonada.

— Claro, você está coberta de razão.Mas, se não

existisse televisão, a violência seria reduzida?

— Essa não é a questão, Jos.Você se diverte ás custas os

outros.O mal é cada vez maior, porque é estimulado

por...Gente como você!

— Fala sério! Não tem mais jeito. Não posso mudar o

mundo. Então, vou me divertir com ele.

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— Eu chamo isso de oportunismo.

Heather guardou o último copo e foi para a

sala.

— Certo, Heather. — Ele a seguiu. — Acho que

devemos esquecer essa discussão boba. Era apenas algo

que eu precisava dizer.

Ela pensou por um momento, mordendo o

canto do lábio inferior.Abraçou-o.

—É, você tem razão.

Joshua não sentiu convicção em sua voz.

Capítulo Quatro

Já passava das quatro da manhã quando ele teve

tempo de ligar o computador novamente.Sua página de

recados no Death of Patience estava cheia mais uma

vez.

“Data: 09/12/2008, 3:00hs.

Remetente: KillerCat

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Mensagem: Boa noite, Billy! Devo dizer que

não gostei do vídeo ‘A babá’. Estava em preto e branco!

Não me parece real... O sangue estava mais para

catchup! (risos)”

Responder: Procure na Internet sobre a babá que

matou o bebê sufocado em Denver, no ano de 1952.É

uma raridade, acredite.Por ter sido gravado em uma

deprimente fita cassete do outro século, está em preto e

branco (Idiota).”

“Data: 09/12/2008, 3:46hs.

Remetente: Jason 7

Mensagem: Confira o vídeo que eu

postei.Acabou de ser gravado.Valeu!’

Joshua acessou o link, curioso.O vídeo vinha da

Alemanha, tinha sido gravado no dia anterior.O rosto

do tal Jason 7 estava censurado, mas a qualidade da

gravação era boa.

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“ — Olá, Billy.Eu sou Jason.Eu e meus amigos vamos

brincar um pouquinho.A idéia não é original, mas

vamos nos inspirar no melhor filme de terror dessa

geração,um dos mais cultuados do site: S.A.W..Estão

prontos? — Ele perguntou para dois garotos presos em

cordas e algemas, deitados no chão.

Mais um garoto, também com o rosto

censurado, entrou em cena, vestido como um capanga

de séculos atrás.

— O primeiro jogo — Ele explicava para os garotos em

alemão, uma legenda para o expectador. — Vai ser o de

perguntas e respostas.

Jason pegou um pedaço grande de arame

farpado.

— Se errar, vai doer.Quem quer começar?”

O vídeo era autêntico e seria postado.Os

garotos copiavam outros jogos do filme original.

Finalmente, Jason anunciou o último jogo.

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“ — Você precisa soltar-se e libertar seu amigo. — Ele

explicou para o garoto que ficara menos machucado

durante os vinte minutos do vídeo.Colocou chaves

sobre um balcão de madeira poída. — Quando

conseguirem se livrar dos arames farpados, podem

pegar a chave e ir embora.Boa sorte!

As luzes foram apagadas.A câmera filmava o

primeiro garoto libertar-se dolorosamente das cordas e

arames farpados.Ele precisava pegar a chave para soltar

as algemas do amigo, que gritava abafado pela

mordaça.

— Não grite. — Ele sussurrou por causa da dor.Estava

quase completamente liberto. —Estou

conseguindo.Vamos sair dessa.

Pegou a chave e soltou o amigo, livrando-o

dos arames farpados que ainda o envolvia.

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Era um dos vídeos mais bem feitos que tinha

visto no Death of Patience. Imaginou o que teriam feito

as duas vítimas para merecer aquilo.

Não importava. Estava aceito.

O filme acabou e Mabel acordou Charlie.Ele

tinha adormecido em sua cama poucos minutos depois

de chegar em seu quarto.

Tinha sido uma cena engraçada.Ele tinha batido

á sua porta, trazendo seu ursinho de pelúcia.

— O que está fazendo, Mab?— Ele tentara soar casual.

Ela fitou o corredor vazio.

— O que quer, Charlie?

— Não estou com sono.Posso ficar com você?

— Entra. Mas vou ver um filme de terror. — Ele

arregalou os olhos, disfarçando em seguida. — Tem

certeza de que quer ficar?

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— Você sabe que sou corajoso.Nem ligo pra filmes de

terror.

Mabel riu e puxou-o para a cama junto com ela.

— Ótimo. — Ela pegou a caixinha do DVD. — Chama-

se O Grito.

Ele desviou os olhos da imagem do fantasma

na capa.

— Pode mandar ver!

Ela sentiu o pequeno corpo dele se contrair

contra o seu toda vez que ele levava um susto.Até que

ele dormiu.Ela sacudiu-o quando o filme acabou.

— Charlie...Vai dormir no seu quarto.

Ele levantou-se cambaleante e sonâmbulo.

— Boa noite, Mab.

Depois que Charles saiu, ela apagou a luz do

abajur com um sorriso. Estava desobedecendo as ordens

do médico de novo.Ele tinha sido claro quanto a não

assistir filmes de terror.Aumentava a sua

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adrenalina.Lembrava-se, vagamente, de ter sido lhe dito

algo sobre chocolates também.

Mal tinha fechado os olhos, tornou a abri-los,

assustada.Tinha ouvido um barulho na janela do

quarto.Era o som parecido ao de uma pedra contra o

vidro.

Apanhou o canivete da gaveta e espiou pelo

vidro fechado. Não havia nada lá embaixo.

Abriu o vidro e curvou-se sobre a janela o

máximo que conseguiu.Achou ter visto alguém

escondido na outra extremidade da casa, mas poderia

ser apenas uma das sombras projetadas pela luz da

frente.Afastou-se da janela, e ligou o computador.

Fez o login no site do Death of Patience.Página

de recados de Billy.

“Data : 09/12/2008, 4:16hs.

Remetente: Filth Darkness

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Mensagem: Ele está aqui agora, Joshua. Está na

minha casa.Entre em contato comigo imediatamente.

2222-4662.”

Enfiou o celular no bolso do casaco e observou

da janela novamente.A sombra não estava mais ali.

Ela o pegaria de surpresa.Começou a descer

pela janela.

A porta da frente estava trancada, sem sinais

de arrombamento do lado de fora. Percorreu todo o

redor da casa, mas não havia nada de

incomum.Adentrou o jardim dos fundos.

Ouviu o barulho de folhas pisadas.Alguém

mais estava ali.Antes que pudesse raciocinar, foi

atingida na cabeça, caindo no chão.Derrubara o

canivete, e não conseguia ver a face de seu agressor.O

rosto dela foi mantido voltado pro chão.Ele estava

segurando-a com uma força inimaginável.

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Finalmente, soltou-a. Ela levantou-se a tempo

de ver a silhueta negra fugindo.Levou as mãos á cabeça,

mas não deixou que a dor e o medo a impedissem de

gritar:

— Volte, covarde! Venha brigar como homem!

Olhou para as mãos.Não havia sangue.Correu

na direção para onde ele tinha ido, mas sabia ser tarde

demais.Percorreu a rua residencial inteira, entrando em

desespero.Precisava encontrá-lo.E quando ela o fizesse,

o mataria.

Por que ele deixara que recuperasse o

canivete? Ela perguntou-se, aflita.Tinha sido óbvio que

ele só quisera apavorá-la, e depois fugiu.

Correu tanto que em poucos minutos tinha

alcançado a avenida.

Por que a cabeça machucada tinha deixado de

doer?

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— Onde você está maldito psicopata? —Ela gritou, em

meio aos carros que buzinavam para que ela saísse do

caminho. — Apareça, não se esconda!

Foi cegada por uma luz branca.Mal

reconheceu ser um carro que a atingira em cheio, antes

de perder a consciência.

Demorou um pouco até que ela se lembrasse

do que tinha acontecido, e do que provavelmente a

levara até ali.A cabeça latejava.Estava em um

hospital.Notou que não apenas a cabeça doía, mas o

corpo todo emitia dor ao menor movimento.Chamou a

mulher vestida de branco, e sua própria voz pareceu-lhe

estranha.

—Vou chamar seu pai. —A enfermeira disse. —

Estávamos esperando você acordar.

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Mabel observou, pronta para um ataque

histérico, que o pai chegara acompanhado de seu

psiquiatra.Ambos sentaram-se em cadeiras postas em

frente á cama.Ela esforçou-se para sentar-se também.

— Por que fez isso? — O pai perguntou, parecendo

mais chateado do que a irritação de sua pergunta

sugeria. — A vida que te dou não é suficiente pra você?

Do que diabos ele estava falando?

— Você é tão jovem, bonita, tem um namorado que te

ama, nunca precisou trabalhar.Então, por quê?

O Dr. Terry disse:

— Gostaria de se abrir com seu pai, Mabel? Queremos

ajudá-la, e tenho certeza de que, se você permitir,

poderemos.

— Sua família tem direito de saber! — Foi uma

declaração desesperada.

Ela sentiu as lágrimas quentes nos olhos, mas

não daria esse prazer a eles.

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— Eu não tentei me matar!

Dr. Terry fez um sinal para que o pai os

deixasse a sós.

— Vamos conversar, Mabel.Não quero julgá-la, mas a

negação é o caminho mais difícil. Identificar o que te faz

sentir-se mal é o primeiro passo para que você atinja a

vida que procura.

— Foi alguém... — Ela cedeu, e deixou que as lágrimas

caíssem. — Alguém tentou me matar naquela noite...

Ontem. Foi ontem? Que dia é hoje?

— Sim, aconteceu ontem.Terça feira. — Ele quer me

matar! Ele jogou uma pedra na minha janela para

chamar minha atenção.Tentei pegá-lo de surpresa, mas

quem me surpreendeu foi ele! Me deu uma pancada na

cabeça! — Ela sabia que em seu desespero ela parecia

incoerente, mas foi incapaz de parar. — Mas ele não

quer me matar assim, tão fácil.Só estava

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provocando.Ontem, ele só estava provocando! Mas vai

voltar.

— Se ele só queria provocá-la, por que te atropelou?

— Ele não me atropelou, imbecil.Isso foi um acidente!

Aliás, o motorista nem teve culpa, avise os guardas.A

culpa foi toda do assassino.

— Sim, você tem razão.Foi um acidente, e o motorista já

foi liberado. — Ele olhou para ela profundamente. —

Não havia ninguém te perseguindo, Mabel.

— Claro que não, ele tinha fugido.Eu estava

perseguindo ele.

— Não havia perseguição alguma.

Ela encarou-o por um segundo, derrotada.

— Certo.Eu é que sou louca.

— Você viu seu agressor?

Ela não tentaria mais fazer com que alguém

acreditasse.

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— Não, deve ter sido um fantasma que me bateu na

cabeça, pois eu sou maluca.

— Tem idéia de quem poderia ser esse suposto

assassino?

Ele estava sendo condescente.

— Um fruto da minha imaginação.

— O motorista do carro disse que você se jogou na

frente do automóvel.

— Claro, ficou com medo de levar a culpa.E não

entende nada de suicídios.Nem você entende, com toda

sua “inteligência médica”. Eu tinha um canivete na

mão.Por que haveria de me jogar na frente de um carro?

Não seria menos dolorido do que cortar os pulsos,

seria? — Ela agradeceu mentalmente por ter parado de

chorar.

— Sobre o canivete...Onde conseguiu?

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— Dê o fora. — Ela decidiu, deitando-se novamente,

suportando a dor. — Fique com sua teoria de suicídio,

se ela for mais fácil pra você.

Depois de uma breve hesitação, deixou-a

sozinha no quarto.Ela levantou-se, inquieta.Precisava

sair dali.

Antes que abrisse a porta, ouviu o Dr. Terry

falando no corredor.

— ...e ela vai precisar de observação contínua.Acredito

que tenha deixado de tomar remédios, está ficando

paranóica.Sugiro uma clínica para internação.

— Tem razão, ela não toma as pílulas, doutor. — Era a

voz de Pebble.

— Eu conheço uma clínica que não fica longe daqui, é

na fronteira de San Diego. —Ele fez uma pausa. — Saint

Clair. Alguns de meus amigos trabalham lá, e...

Ela deixou de prestar atenção, afastando-se

lentamente da porta.O psicopata da noite anterior lhe

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parecia muito menos perigoso do que seu psiquiatra

agora.Abriu a janela do quarto com cuidado para não

fazer barulho, e calculou a distância.Não seria difícil.

A primeira providência que tomou ao chegar em

casa foi formatar o computador e apagar toda sua

memória. Juntou numa mochila todo o dinheiro que

mantinha no seu porquinho cor de rosa.Não era muito,

mas talvez fosse o suficiente.

Pegou o primeiro ônibus que parou no ponto e foi

até o terminal.Quanto mais longe estivesse de seu pai e

da madrasta, melhor.Parou no cyber café da

estação.Joshua era a única pessoa que poderia ajudá-la.

Não tinha anoitecido ainda quando Joshua

chegou em casa.A experiência de andar no Saveiro

verde de Heather deu-lhe uma sensação de

novidade.Era a primeira vez em dois anos que saía do

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apartamento por vontade própria.Tentou lembrar-se da

última vez que tinha ido ao cinema.

Novas mensagens foram anunciadas, assim que

ele entrou com sua senha no Death of Patience.Eram da

madrugada da noite anterior, e uma delas vinha de Filth

Darkness.

“Ele esteve na minha casa ontem, e logo virá

atrás de você. Temos que fazer alguma coisa. Precisei

fugir de casa.Encontre comigo hoje, ás sete horas, no

restaurante Giano´s, na avenida 27.Se você não souber

onde é, busque referências.”

Partiu para a próxima mensagem de Filth

Darkness.

“Ele está aqui agora, Joshua! Você precisa me

ajudar!”

Joshua! Aquela maluca jamais deveria chamá-lo

pelo nome publicamente daquele jeito!

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Ele não sabia onde ficava o tal restaurante, e não

tinha absolutamente a menor intenção de encontrar-se

com Filth Darkness.Como ela apresentara-se mesmo?

Mabel.Devia ser completamente louca.Era verdade que

ele mesmo assustara-se com a mensagem á princípio,

mas achava difícil que aquilo que ela contara tivesse

realmente acontecido.O recado de Joey parecia a ele

bem inocente, agora.Filth Darkness estava levando

aquilo tudo longe demais.E não se tratava de uma

garota muito esperta.Se ela achava que alguém de

dentro do Death of Patience procurava matá-la, ou o

que quer que fosse, por que diabos publicava o lugar

onde se encontraria ás sete horas?

Estava irritado demais para se preocupar com a

segurança daquela paranóica, que estava a fim de ferrar

ele.Com apenas alguns cliques, a excluiu do site.

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Ela percebeu que Billy não viria quando deu sete

e meia da noite.O lugar escolhido, novamente, tinha

sido propositalmente uma avenida com muito

movimento, para diminuir o perigo.Mas a quantidade

de pessoas e automóveis que circulavam a assustavam

ainda mais.Sentia-se terrivelmente vulnerável e

sozinha.Voltou ao pequeno e precário hotel que

escolhera para passar a noite.

Sentou na cama, sentindo o olhar perdido.Não

fazia idéia do que faria a seguir.Estava chorando de

novo.

Em uma noite estava na segurança de sua

casa.Na noite seguinte, fugia de um assassino e de seu

próprio pai, escondida em um quarto sujo, num hotel

barato.Apertou com força os nós dos dedos, até que

doessem.Completamente sozinha.Fora de controle, seu

corpo balançava freneticamente, os soluços fazendo um

movimento uniforme em seu corpo.Arranhou o braço

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com as unhas compridas, até que sangrasse, e isso a

acalmou um pouco.

Levantou-se num pulo, reconhecendo-se

incapaz de ficar ali, de mãos atadas, comprimida pelas

paredes.Saiu do quarto deixando que a porta batesse

com um estrondo. Desceu as escadas correndo, com a

cabeça doendo e o rosto dormente.Parou na calçada,

olhou para a rua movimentada. Estava sozinha.

Caminhava a passos largos sem saber para

onde estava indo.Ninguém jamais a entendera, jamais

entenderia.Tony nunca a ajudaria, diria também que ela

era louca.Até Billy a abandonara.

Ignorava a dor.Cada movimento seu fazia um

músculo doer, um osso lembrar-lhe que existia.

Atravessou a rua, um carro freou quase em

cima dela, mas ela não se importou.Não ter destino não

seria problema, desde que continuasse andando.

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Pensou no que a trouxera até ali, e desejou

matar Joey como nunca desejara nada antes. ”Vem logo,

seu idiota. Mal posso esperar até que venha!”

A sirene da polícia se aproximou.Ela levou as

mãos aos ouvidos pra abafar o barulho ensurdecedor

que parecia penetrar seu cérebro.Caiu de joelhos.Muitas

pessoas começaram a rodeá-la, machucá-la com suas

presenças, sufocando-na.Não queria ser tocada.

Mãos fortes a levaram para dentro de um

carro, enquanto ela gritava inutilmente por socorro.

Capítulo Cinco

A primeira coisa que Mabel viu ao entrar na

chamada “casa de repouso” foi uma árvore de Natal

com dois metros de altura, decorada alegremente.Quem

sabe um pouco colorida demais.Entrava em contraste

com o estado de espírito em que ela se encontrava.

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Uma enfermeira fazia o maior esforço possível

para ser simpática, enquanto a conduzia pelos

aposentos do hospital, excursionando seus silenciosos

corredores.Tudo parecia calmo, tão calmo que não

poderia ser real.Alguns pacientes observavam sua

chegada, parecendo distantes.Sua própria mente tinha

se tornado vaga, e ela já não conseguia pensar com

clareza.

— Esse vai ser seu quarto. — A enfermeira falou. Ela

observou as outras duas camas.Imaginou com quem

dividiria aquele aposento. — Seus companheiros de

quarto chegam daqui a pouco, e você vai conhecê-los.—

Ela afirmou, como se lesse seus pensamentos. — Eles

são muito amigáveis.Pode acomodar-se.Em meia hora

todos estarão na cama. — Não devia passar das oito

horas da noite. — Mas se estiver com fome, podemos

lhe conceder um pedido, já que é seu primeiro dia aqui.

— Ela sorriu.

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A expressão “Primeiro dia” causou-lhe um

arrepio.

Sua mentira saiu parecida com um sussurro.

— Já comi.

— Então, sinta-se á vontade.Boa noite.

Mabel permaneceu parada no centro do

quarto.Ouviu a chave rodar na fechadura.

Tinha sido trancada com seus demônios.

— Eu tenho uma coisinha pra você. — Heather disse,

com um forçado ar misterioso.

Joshua ficou envergonhado, não tinha

comprado nada para ela. A verdade era que tinha se

esquecido completamente do Natal. A data nunca tinha

feito sentido para ele, que não era cristão, nem

comerciante.

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Ela entregou-lhe um embrulho de papel

decorado com vermelho e verde.

— Feliz Natal.

— Obrigado, Heather! — Era um relógio de

pulso.Resolveu ser sincero. —Não comprei nada pra

você...

Ela sorriu de sua desculpa desajeitada.

— Não faz mal.

— Eu nem tinha pensado nisso.

— Não tem problema mesmo, Jos. — Procurou um

abridor de latas no balcão da cozinha para o vinho que

trouxera. — Acho que já podemos começar nossa ceia

particular.

Ele espiou dentro dos sacos de papel.

— O que você tem aqui?

— Vamos ver... — Ela tirou os itens do saco, declarando

em voz alta. — Uma caixinha de bom bom, biscoito, um

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saco de balas de iorgute... — Ele sorria para ela. — E o

melhor...Coca Cola!

— Perfeito! — Ele pegou copos de dentro do armário,

abandonando a taça quase cheia de vinho.

— Nutritivo, não?

— Exatamente do jeito que eu gosto.

Ele escolheu um bom bom recheado com

licor.

— Somos tão parecidos! — Ela exclamou.

Ele reparou que tinha escolhido o mesmo

chocolate que ela.

— Tem toda razão...

— O que quer fazer? — Ela mordeu o doce.

— Acho que nossa ceia não dura muito tempo, não é?

Bom, faremos o que você quiser.

— Que tal ligar o som? Vai ver temos também o mesmo

gosto musical.

Ela procurou por um aparelho e não encontrou.

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— Ouço música apenas pelo computador. — Ele

explicou, imaginando se sua vida inteira não acontecia

pelo computador.

— Hip hop. — Ela sorriu, vasculhando os arquivos

musicais dele. —Aumentou o volume de uma música

que gostava particularmente.

— Eu sabia que dividiríamos isso também.

Á meia noite, eles foram ver os fogos

da varanda.A visão era muito bonita, diferente do ano

passado.Ele ficara amaldiçoando o barulho infernal que

tinham as bombas, atrapalhando sua concentração.

Ela puxou-o para perto de si.

— Você é maravilhoso, Jos. — Ela olhou dentro de seus

olhos com um sorriso. — Mas tem um defeito. É lento

demais.

Heather beijou-o.

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Mabel mal notou que o Natal e o

Réveillon vieram e passaram.Tinha ficado dias deitada

naquela cama, de olhos fechados, o corpo o mais

retraído possível.De início, ela tentara manter a mente

vaga, mas as lágrimas continuavam molhando o

travesseiro branco.Aos poucos, sua mente foi ficando

vazia, e seus olhos fixos em algum lugar muito além

daquele quarto.

A enfermeira trazia-lhe comida três vezes

ao dia, e ela comia de forma mecânica, sem ao menos

sentir seu gosto.Ignorava quando a enfermeira dizia

para que ela desse uma volta no jardim.Tomava as

pílulas que lhe eram trazidas, sem mais resistir.Elas

faziam com que Mabel se sentisse relaxada.Não era

exatamente uma sensação boa, mas algo dentro dela

estava profundamente adormecido, e isso bastava para

impedi-la de pensar.

Um médico viera vê-la.

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— Procure-me quando quiser conversar. — Ele

terminara a consulta, sem que Mabel dissesse uma

palavra.

Foi na mesma noite que ela teve uma

série de sonhos estranhos. Em um deles, estava na casa

de Tony, comendo bolinhos de arroz da mãe dele. De

repente, Tony levantava-se e dizia:

— Estou cansado de você! — Jogava um bolinho no

rosto dela, e ria. Ela gritou, pois o bolinho fazia sua pele

ferver e dissolver-se, como cera.Ele tornava a gritar. —

Maldita louca!

A última palavra fazia um eco

interminável, e não era mais a voz de Tony a dizer-lhe

isso.Era a voz de seu pai.

Louca, louca, louca...

O sonho seguinte parecia mais uma

continuação do primeiro.Mabel dirigia um caminhão

em uma estrada de barro vazia.Uma perua branca veio

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em sua direção, batendo em seu veículo.Ela caiu para

fora do carro, e rolou morro abaixo.

Teve um vislumbre do rosto do

motorista da perua, que agora dirigia o caminhão

dela.Era Billy.O caminhão explodiu, embora ele ainda

sorrisse.Ela acordava em um hospital, e lhe diziam que

ela tinha tentado suicídio.

Charlie estava em seu quarto quando

ela abriu os olhos.Segurava sua mão.

— Não vai embora. — Ele chorou.

— Não vou.

— Eu te amo, Mab.

Havia algo de estranho em Charlie.Ela

não soube identificar, mas sabia que algo estava

errado.Ela foi abraçá-lo, mas ele desapareceu em seus

braços.

— Charlie! Onde você está? — Ela quis gritar, mas

sussurrou.— Ah Deus...Eu não estou louca...Não estou

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louca... — Repetia, desesperada, em resposta ao eco que

tinha voltado.Puxou o cabelo com tanta força que

alguns fios caíram em suas mãos. —Me deixem em paz!

— Os fios foram transformando-se em chumaços.

“Todos foram embora”, disse a voz

desencarnada de Charlie.”Só restou você. Dê uma

olhada ao redor”.

— Não! Não! — Agora ela conseguia gritar.Não poderia

aceitar aquela verdade.

Esquadrinhou o quarto inteiro, sem

saber o que procurava.Era tudo branco.Por quê? Fixou

os olhos no lençol que a cobria.Sorriu para si mesma.Ele

não era branco.Era bege.

Ela acalmou-se com a nova informação,

mas em pouco tempo aquilo começou a intrigá-la.Se o

quarto todo era branco, por que o lençol tinha de ser

diferente? Comprimiu as unhas com força contra o

braço.

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“Tinha de ser branco! Por que não?”

Estava tudo manchado de vermelho,

agora.

Pela primeira vez desde sua internação no

Saint Clair, Mabel aceitou o convite da enfermeira. Foi

almoçar no refeitório com os outros pacientes.Percebeu

que esteve perdida no tempo.

— Que dia é hoje? — Ela perguntou á moça que lhe

ofereceu a bandeja de comida.

— Sexta feira. — Ela percebeu que aquela resposta não

satisfez Mabel. — Dois de janeiro.

Então tinha passado mais tempo do que ela

previra.

Escolheu um lugar no grande refeitório,

imaginando se seria recebida pelos outros malucos.E

por que isso importaria? Provou a comida.Estava

boa.Tinha emagrecido demais.Não sentia vontade

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nenhuma de comer, mas precisava recuperar seu

peso.Pensou no uniforme de hospital que vestia.Pelo

menos não ficaria nervosa ao observar que os quilos que

perdera sobravam na calça jeans.

Não ficou muito tempo sentada sozinha.Um

rapaz sentou-se ao lado dela.Tinha uma expressão

infantilmente alegre, e usava um boné vermelho, que

causou má impressão em Mabel. Não condizia com seu

uniforme branco e pálido.

— Boa noite. —Ele cumprimentou.

Ela esperou que ele notasse o próprio

erro.Como ele não disse nada, ela corrigiu-o.

— Estamos almoçando.

— Ah droga! —Ele baixou a cabeça na mesa, como se

estivesse dormindo.Ela voltou a comer. — Eu sempre

me confundo. —Ele ergueu-se novamente. — Sempre,

sempre, sempre, sempre.

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Ela ignoraria a presença dele.Não permitiria

que sua irritação afetasse seu apetite. Ele continuou

falando.

— Sinto muito. — O sorriso estava de volta. — Como é

seu nome?

Ela demorou pra responder.

— Mabel Gibbs.

— Sensacional! Eu sou o Jim. — Ele estendeu a mão.Ela

fitou-o pela primeira vez.Viu naqueles olhos azuis uma

inocência que a comoveu.Seu coração se comprimiu.Em

breve, tudo o que sentiriam por ela seria aquilo, o que

ela sentia por aquele pobre garoto: pena. — Mas pode

me chamar do que quiser. — Ele completou.Torcia os

dedos sem parar, seus olhos observavam tudo, de forma

frenética, como se esperasse alguém, ou estivesse com

medo de alguma coisa.

— Por que está aqui, Jim?

Ele riu.

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— Por que mamãe acha que sou louco.

Ela sorriu.

— E você não é?

— Claro que não.

— Somos todos loucos.

— Eu não sou louco. — Ele cuspiu a frase com mágoa,

como se tivesse repetido aquilo muitas vezes antes. Mas

havia convicção no que ele dizia.Uma certeza que ela

gostaria de ter. —Você é? — Seu tom de voz havia

suavizado novamente.

— Dizem que sim, dizem que sim...Mas o que faz sua

mãe pensar dessa forma?

— Bom...Eu não queria matar o Bobby.

— Quem é Bobby?

— Era. — Ele corrigiu, parecendo triste. — Ele

morreu.Não foi de propósito. — Ele começou a

justificar-se. — Eu só achei que ele estivesse com

frio.Mesmo com todo aquele pêlo, ele sentia frio.

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— E...? — Ela encorajou-o a continuar quando ele

parou.

— Eu tinha visto um programa sobre aqueles... — Ele

não achou a palavra que procurava. — Esses caras que

se perdem numa floresta de vez em quando.Eles usam

fogueiras para se aquecer, senão morrem de frio.Sabe o

que são fogueiras?

— Sei.

— Fogueiras são feitas de madeira.A única madeira que

tinha no quintal era a casinha do Bobby.

— E o cachorro estava lá dentro.

— Exato.

— Coitado.

— É, eu sei.Sinto falta dele.

Ela observou-o refletir.

— Por que você não lhe deu um cobertor?

Ele olhou para ela, soltando um grunhido.

— Droga! Por que você não me deu essa idéia antes?

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— Sinto muito. — Ela riu.

— Sabe de uma coisa? Acho que estou apaixonado por

você, Millie.

— Mabel.

— Desculpa. Mabel.

— Certo. — Ela levantou-se. — Acho que vou dar uma

volta.

— Pelo jardim? Posso ir com você? — Ele já tinha

levantado-se prontamente.

— Por que não termina de comer primeiro? — Ela

tentou.Gostaria de ficar sozinha.

Jim fitou a comida, depois olhou para

Mabel, pensativo.

— Espera um minuto? — Ele não esperou resposta.

Começou a comer muito depressa. Ela se afastou.

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Mabel observava sua imagem refletida no

espelho atentamente.A enfermeira aguardava á sua

frente até que ela terminasse de usar o perigoso

objeto.Estava pálida demais, refletiu.Seu cabelo já

formava pequenas ondas.Precisava de seu

condicionador urgente.

— Tem um batom?

— Não, Srta. Gibbs.

— Um rímel, um lápis de olho? —Tentou, exasperada.

— Está linda desse jeito.

— Você está de batom, sua megera.

— Posso guardar o espelho?

— Estará me fazendo um favor.

A enfermeira deixou o quarto, levando sua

imagem embora. Mabel sentou-se na cama, esperando

que as luzes se apagassem parcialmente.O corredor

permaneceria iluminado.”Como numa maldita

penitenciaria”.

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Melhor assim.O escuro não lhe agradava.

Ela deitou-se.Ao menos os muros de

concreto a protegiam do que estava do lado de

fora.Fechou os olhos, subitamente grata.Estava longe do

chamado mundo real.Ele agora lhe parecia

imensamente perigoso.Lá morava seu pai.Morava

Tony.Ela sorriu para si mesma. Ali dentro, ela tinha

todo direito de ser louca.

Jim correu até o quarto de Mabel assim que

amanheceu.

— Bom dia! Bom dia!

— Bom dia, Jim.

— Dormiu bem?

— Dormi. — Ela hesitou. — E você?

— Quer casar comigo, Millie?

Seus olhos moviam-se ainda mais

frenéticos em sua expectativa. Ela riu.

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— Quem sabe, um dia...

— A menina que dorme aí do seu lado vai sair. —

Mabel olhou insistivamente para a cama vazia do lado

da sua. — E vão me colocar aqui.

— Legal.Vamos ser colegas de quarto.

— Colegas de quarto... — Ele saboreou a nova

expressão. — Isso me lembra casamento.Vai casar

comigo?

Ela pensou em Tony e riu em voz alta.

— Por que não, Cachorro Quente?

— Isso aí! — Ele beijou-a no rosto, em comemoração. —

Sensacional! Posso contar pra todo mundo?

— Vai em frente.

Jim saiu correndo pelo corredor. Ela sorriu

consigo mesma. Ele parecia ser o único homem sincero

que conhecera em toda sua vida. Aquela era uma

sociedade diferente, longe da hipocrisia que ela

conhecia muito bem. Passou pelo corredor também,

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passos curtos. Alguns pacientes sorriram pra ela com

cumplicidade. Jim já tinha feito seu trabalho.

Os pacientes do hospital que não

simpatizavam com ela, simplesmente a ignoravam. Não

havia disfarces. Não havia mentiras. Ninguém mudava.

Ninguém esperava que ela mudasse.

Ela lembrava-se de alguma vez ter pensado

a mesma coisa a respeito dos bêbados.

Capítulo Seis

A manhã seguinte era um sábado. A

enfermeira conduziu Mabel até a sala de visitas.Ela

dissera a si mesma que seria a última vez que se

encontraria com aquelas pessoas que um dia chamara

de família.Estava disposta a permanecer no Saint Clair

pacientemente, até que um dia fosse liberta.

Tony estava preocupado.Já não lhe parecia

atraente como antes, sentado ali naquela sala.Parecia

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abatido, como se estivesse doente.Seu pai estava ao lado

dele, e beijou-a quando ela entrou.

— Como está, querida?

Mabel limitou-se a encará-lo.Estava

decepcionada por Charlie não ter vindo vê-la.

— Como está? — Ele insistiu.Ela encarou Tony também,

sua expressão de piedade acentuando o ódio que ela

sentia naquele momento. — Estão te tratando bem?

— Claro. — Ela sorriu, irônica. — Essa manhã até me

serviram o café na boca, porque eu estava com a camisa

de força.

— Não seja tão dura, Mabel.É só pra que você descanse

um pouco.

—Ah, me sinto realmente descansada.Como nunca! Só

sinto falta da Coca Cola.

— Você sairá em breve.

—Obrigada pela preocupação, papai. — Ela indicou que

a visita tinha terminado. —Adeus, Tony.

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—Mabel! — Ele ainda tentou, depois que ela saiu. —

Espere!

Ela já estava no corredor de novo.Encontrou-

se com Jim.

— Sua mãe veio te visitar? — Ele indagou, sorridente.

— Meu pai.E meu ex namorado.

Jim piscou várias vezes, e levou o braço

torcido até o rosto, num gesto nervoso.

— Mas você é a minha noiva!

— Esposa.E Tony é um passado morto e

cremado.Morto, morto.

— Que bom. — Sua expressão se suavizou novamente, e

ele sorriu.

— E a sua mãe? Não vem te ver? — Ela retomou o

caminho do jardim.

— Ah não. Mamãe não vem me visitar desde... — Ele

estalou os dedos, procurando lembrar-se. — Bom, faz

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muito tempo...Jane veio me ver um dia desses, mas

desde então...

—Sinto muito.

Ele deu de ombros.

— Tudo bem.Eu sei que um dia eles vão voltar pra me

buscar.

Sentaram-se em um banco do jardim.Os dois

partilhando a mesma falsa esperança.Ela começou a

chorar.

—O que foi, Millie? —Ele disse, enxugando seu rosto

com as costas da mão. — Por que está chorando?

Ela permitiu que ele a abraçasse.

— Só estou um pouco triste, Jim.

— Não gosto quando você fica triste.Você chora.

— Eu gostaria de voltar pra casa.

— Ás vezes também sinto essa imensa vontade de

voltar pra casa.Mas agora eu conheci você.Não quero

que você volte.Sente falta do seu namorado?

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— Não.Sinto falta de casa, no sentido literal da palavra.

— Ela mentiu, parcialmente.

Enxugou as lágrimas restantes. Deixar tudo no

passado.Viver em paz.Aquele lugar lhe trazia paz. Ou

talvez fossem os remédios.Já se passara duas semanas

desde sua última crise. Droga! Por que diabos ela estava

chorando, então?

— Quer que eu pegue água pra você? — Jim ofereceu.

— Pra repor o que você perdeu chorando.

Ela riu.

— Acho que não vai ser necessário. — Deu um beijo no

rosto dele. — Obrigada.

— Está feliz de novo?

— Estou.

— Quer andar por aí?

— É a única coisa que fazemos, mesmo. — Ela

concordou.

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Ele começou a andar rápido demais em sua

agitação.Mabel segurou-o pelo braço delicadamente,

obrigando-o a diminuir a velocidade.

— Se formos rápido demais, vamos ficar tontos com

tantas voltas que daremos pelo jardim.

— É verdade. — Ele sorriu. — Desculpe.

— Já notou que não temos um piano no hospital?

— Um piano?

Jim abaixou-se para pegar uma rosa vermelha

no canteiro de flores.

— Sim, um piano.Sempre lemos nos livros e vemos nos

filmes pianos nos manicômios.Não vi nenhum aqui.

Ele entregou-lhe a rosa.Imitou o gesto de

quem toca piano, no ar.Acompanhava o ritmo

imaginário com a cabeça.

— Não tem instrumento musical aqui, realmente. —Ele

parou a canção. — Será que eles escondem nos porões?

— Acho que ninguém pensou nisso antes.

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— Vou comprar um pra você.

— Não sei tocar piano.Vai ter que me ensinar então.

— Eu aprendo, depois te ensino.

— Tenho certeza que sim.

Joshua sabia que seria idiotice perder a cabeça e

ficar nervoso.Estava certo de que se tratava de uma

brincadeira estúpida, ou algum conservador sem o

menor senso de humor negro tentando assustá-lo.

“Está chegando em você”.

Quase um mês depois do primeiro recado, ele

tinha recebido outro do mesmo remetente, Joey.

Novamente,tinha sido impossível rastreá-lo.Tentou

perguntar aos outros membros o que sabiam sobre Joey,

mas nenhum deles o conhecia.Não havia fotos,ou

qualquer outra coisa que pudesse lhe dar uma pista.

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Dessa vez, Joshua respondeu o recado antes de

deletá-lo.

“Me diga de uma vez o que quer”.

Gostaria de poder fazer alguma ameaça, mas

não tinha recurso nenhum.Obviamente, a polícia seria

uma advertência ridícula.

Joey estava on line e respondeu segundos

depois.

“Dito popular, óbvio e um pouco irritante:

Você recebe o que der. Está voltando pra você”.

Joshua deu um soco na escrivaninha.

“DIZ LOGO! O QUE DIABOS ESTÁ

QUERENDO DE MIM?”

Esperou impaciente até a resposta, incapaz de

fazer qualquer outra coisa enquanto esperava.Tinha

outro trabalho para terminar, mas não minimizou sua

página de recados.

Um minuto depois. Joey não respondeu.

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“O que você quer?”

Ele já não estava conectado.Frustrado, Joshua

desligou o computador, sentindo-se subitamente

cansado.Maldito aquele estúpido que tinha conseguido

tirar-lhe a paz.Da próxima vez, o ignoraria

simplesmente.Agora, ia dormir.

Ele imaginava o quanto Heather tinha

mudado até mesmo sua rotina diária.Agora ele se

perguntava como tinha conseguido passar anos

confinado em seu apartamento.

Não que o mundo do lado de fora o atraísse,

refletiu, enquanto caminhava pela calçada vazia

naquela manhã de domingo.Pelo contrário, as pessoas

ainda pareciam-lhe irritantes e indesejadas.O sol estava

forte, irritando seus olhos.Ele tirou os óculos escuros do

bolso.

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Uma senhora que carregava suas compras

passou por ele, provavelmente moradora do

bairro.Lançou-lhe uma olhada rápida e

interrogativa.Nunca o tinha visto por ali antes.Um

bairro fechado, vidas fechadas.Sim, as pessoas eram

detestáveis.

Mas tinha sido o mundo aqui fora que lhe

trouxera Heather.

“Estou virando um filósofo idiota”.Ele

censurou-se, apertando os passos

inconscientemente.”Um apaixonado estúpido ou

qualquer coisa assim. Antes, eu era um idealista, e vivia

apenas para minha arte. Talvez seja hora de rever

alguns conceitos antes que seja tarde demais”.

Entrou no prédio, carregando um saco de

compras do supermercado.O mercado ficava há apenas

dois quarteirões, mas ele estava exausto.”Meu Deus...

Acho que fiquei preguiçoso demais”.

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Imaginou se não seria melhor um porteiro

para o prédio desprotegido.Por que ninguém tinha

pensado nisso ainda?

”Do que estou com medo?”.

Ele desistiu do elevador e usou as escadas,

para se exercitar mais um pouco.

”Dos outros ou de mim mesmo?”

Subiu o primeiro lance de escadas e se

arrependeu por não ter escolhido o elevador.

”Filosofando de novo! Estou virando um

sentimental. Quando eu chegar em casa vou sentar e

escrever uma música...”, ironizou.

Colocou a chave na fechadura, mas antes que

a girasse para abrir a porta, constatou que estava

completamente aberta, obviamente arrombada.

Entrou na sala de estar com cautela,

observando com atenção.Parecia tudo perfeitamente

normal.Olhou para o computador que ele tinha

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desligado antes de sair.Estava na tela de proteção.A foto

de Jason Vorhees tornava o escuro da sala ainda mais

sinistro naquele momento.

Percorreu o resto da casa, á procura de

alguma pista do invasor.Estava tudo intacto.

Conferiu o último site acessado.Era a conta de

Joey, no Death of Patience.

Com o coração acelerado, cruzou o corredor

até o apartamento de Heather.

—Você esteve no meu apartamento? — Perguntou,

assim que ela abriu a porta.

— O que aconteceu?— Ela percebeu o nervosismo

dele.Puxou-o delicadamente para que entrasse no

apartamento dela.Ele recusou, levando a mão á cabeça,

num gesto de desespero.

— Você foi ao meu apartamento? — Insistiu, sabendo

que era uma pergunta boba.

— Não, Jos! O que aconteceu?

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— Alguém esteve lá.

— Invadiram seu apartamento?

— Sim!

— Levaram o quê?

— Nada.

— Não levaram nada?

Ela estava mais confusa do que ele

desesperado.

— Não...Eles...Ele, ele só queria que eu soubesse que

esteve lá.

Ela encarou-o por um instante, agora

assustada.

— Ele quem?

— Eu não sei... — Joshua percebeu que já tinha falado

demais.Não era seguro Heather saber do que vinha

acontecendo.Suas velhas suspeitas voltaram-lhe á

mente. — Parece que alguém gostaria que eu soubesse

de algo.

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— Isso parece loucura.

— Eu sei. — Voltou para o próprio apartamento, apenas

para conferir a fechadura quebrada de novo. — Talvez

eu seja paranóico, não é? — Ironizou, enquanto ela

também observava o arrombamento.

— Não levaram absolutamente nada? — Ela quis ter

certeza. — Nada de diferente por aqui?

— Meu computador estava ligado.

— Talvez você tivesse esquecido de desligar.

— Não esqueci.Estava no Death of Patience, conectado á

uma conta que não é a minha, com uma senha que eu

não conheço. — “Mas tenciono descobrir”.

— Onde tinha ido?

Heather parecia uma investigadora.Não eram

necessárias tantas perguntas.Não quando ele já tinha as

respostas.

— No mercado. — Apontou as sacolas de compras

esquecidas sobre o balcão da cozinha.

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— Você precisa acalmar-se. — Ela abraçou-o,

esquecendo-se de sua investigação.

— Tem razão. — Ele disse, sem convicção.

— Vamos almoçar em casa.Depois, vamos á delegacia.

— Não! — Ele disse, perguntando-se por quê almoçar

viria antes de ir á delegacia.

— Estou fazendo lasanha. — Ela contestou, parecendo

indignada.

— Vamos almoçar, mas não quero ir á polícia.

Ela o considerou por um momento, depois

assentiu.

— Está bem, se prefere assim.

—A Polícia não pode fazer nada.Essa não é uma de suas

histórias.

Ela devia ter se ofendido com o tom de

Joshua, pois fechou a cara.

— Além disso — Ele continuou. — Preciso cuidar de

uns assuntos. Deixe o almoço para outro dia.

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— Certo. — Ela deu as costas para sair.

— Volte mais tarde. — Ele gritou para ela.

Fechou a porta que ela tinha deixado aberta ao

sair, trancando-a com o dobro de cuidado.Talvez sua

própria vida estivesse correndo perigo.Sentou-se ao

computador.Esse Joey já não lhe parecia tão inofensivo

como antes.

Precisava entrar em contato com Filth

Darkness.Odiava admitir, mas ela tinha estado certa, e

ele não lhe dera ouvidos.

Puxou o cadastro de membros e ex membros,

para encontrar o e-mail dela.

“Talvez você tenha razão. Me encontre no

mesmo lugar amanhã, ás três da tarde.”

Ele considerou a possibilidade de ela ter

ficado zangada com o pouco caso que ele

fizera.Imaginou se obteria resposta.Mandou-lhe um

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novo convite para o Death of Patience.Quem sabe isso o

ajudasse a obter seu perdão.

“Mabel...”, ele procurava lembrar-se de seu

sobrenome, mas talvez ela não tivesse lhe

dito.Consultou a lista telefônica on line, mas era

impossível encontrar Mabel em meio á tantas

Mabels.Havia fábricas, lojas, ruas com nomes

relacionados, mas não parecia estar nem perto de

encontrar o que procurava.Não ignorava também a

possibilidade de Mabel ter-lhe omitido sua verdadeira

identidade.

Recostou o pescoço na cadeira, sentindo-se

exausto e sem saída.Não havia nada que pudesse

fazer.Estava de mãos atadas.E sozinho.

Mais uma vez, tentou rastrear Joey pelo

Death of Patience, sem resultados.O vírus que ele

jogava para o misterioso amigo do site voltava para ele

intacto, como se não houvesse destinatário.

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“Quem sabe eu estou fazendo uma

tempestade num copo de água”, ele tentou se

convencer.Não acreditava absolutamente nisso.

Capítulo sete

Mabel observava a paisagem passar

rapidamente pelo vidro fechado do carro. Deu uma

olhada pro seu reflexo no espelho retrovisor.Talvez

fizesse algo com seu cabelo. Precisava mudá-lo. Aquele

castanho escuro já tinha cansado. Talvez pintaria de um

preto muito escuro.

Não parecia ter passado muito tempo desde que

Mabel tinha sido internada no Saint Clair.Mas estava

completamente habituada, apesar de seu grupo de

amigos estar resumido somente a Jim.

Naquela manhã, seu pai aparecera fora do dia

de visita.

— Não quero vê-lo.

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— Não é visita, Srta. Gibbs. — A enfermeira explicara.

— Seu pai veio te buscar.

Emoções confusas encheram seu coração

naquele momento.Ela não sabia se estava contente pelo

pai finalmente ter-se lembrado dela, ou triste por ter

que voltar ao mundo que tinha abandonado.

— Pegue suas coisas e venha. — Ela não tinha escolha.

Era incrível como o pai tinha mudado.Estava

mais magro. Ela sorriu por dentro.Talvez tivesse

sentido sua falta.

— Mabel! — Ele dissera, quando ela entrou na sala de

recepção.Tentou abraçá-la, mas ela recuou. — Já trouxe

suas coisas?

O velho ódio tinha voltado na presença

dele.Ela encarou-o, sem responder.

— Não quero ir embora.

Ele não ficou surpreso. Ela continuou.

— Você não decidiu que é esse o meu lugar?

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— Parece que você ainda não entendeu. — Ele irritou-

se. — Acha que gostei de ver minha filha internada?

— Claro que gostou.Eu sei que você e sua mulherzinha

riram muito ao me imaginar levando choques na

cabeça.

— Não fale assim!

— Pois fique sabendo que não levei choques!

— Tenha respeito. — Ele levantou a voz. — Sua ingrata!

— Ingrata? Desculpe, eu deveria ter agradecido por ter

me internado num hospício! —Ela ironizava, mas suas

mãos tremiam.

— Eu tive que fazer isso! — Ele baixou a voz quando

viu que os enfermeiros se aproximavam. — Você não

quis tomar os malditos remédios.

— Apenas se esqueça de mim, certo? Tenho certeza de

que não vai ser difícil.

Ela ia deixar a sala, mas ele a impediu.

— Ouça.

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— Já ouvi demais.Não quero ir embora.

— Você volta pra casa comigo.Não estou te dando

escolha.Vai pegar o que é seu.

Mabel hesitou, mas descobriu-se cansada

demais para continuar aquela discussão.

Colocava as coisas na mala com pressa.

— Está chorando de novo! — Jim exclamou.

— Estou triste de novo, Jim.

—Você sabe que não gosto quando você chora.

Ela segurou a mão dele.

— Eu vou embora.

— Não.

— Preciso ir. Meu pai veio me buscar. Mas vou vir te

visitar.

— Nós não íamos nos casar? — Ela sentiu o desespero

dele, e forçou-se a parar de chorar.Decidiu que era a

pior situação que vivenciava.

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— Me perdoe. — Ela soltou o braço que ele segurava, e

saiu sem olhar para trás.

— Não me deixe! — Ele ainda tentou, mas ela já tinha

ido.O enfermeiro viera buscá-la.

Estava abandonando a única pessoa que tinha

a amado de verdade.

Charles mostrou o cachorro que tinha

ganhado durante a ausência de Mabel assim que ela

entrou.Ela mostrou-se entusiasmada, depois voltou-se

para Pebble.

— É ótimo estar em casa. — Ela exclamou. — Aqui não

tem camisa de força, nem quartos acolchoados. Ainda

tenho um quarto? Ou vocês o transformaram em um

quarto de brinquedos para Charlie?

O menino riu.Foi o pai que falou.

— Você deve estar cansada.Vai dormir um pouco.

— Vou dormir. Só preciso da minha dose noturna de

Diazepan, certo?

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Charles seguiu-a até o quarto, com o

cachorro atrás.

— Toby, conheça a Mabel, minha irmã.

Ela pegou o vira lata no colo.

— Prazer, Toby.

— Gostou dele?

— Gostei, mas Toby não é um nome criativo, não é?

— Não?

— Por que não o chama de Esotérico?

— É o nome de um país?

— Não.

— Pode ser isso aí, mesmo.Gostei.

— Ótimo, Charlie, mas vou pro quarto,tenho um monte

de coisa pra arrumar.

— Mamãe esteve arrumando seu quarto enquanto você

viajava.

— Então preciso bagunça-lo.

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Precisava de um emprego, mudar de casa,

mudar de vida.

Tony veio vê-la na manhã seguinte.

— Como se sente?

— Controlada, querido.Os calmantes me fazem muito

bem.

Ele baixou a cabeça.

— Está mentindo.

— Não me importa.

— Vai ficar brava comigo, não vai?

— Não mais do que com minha claustrofobia recém

adquirida.

— Você era bem tratada lá.

— Foi como tirar férias.

— Sinto muito.

— Todos sentem.

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Amaldiçoando-se por não ter escolhido uma

carreira no fim do colegial, e arrependendo-se por não

ter estudado mais, Mabel jogou-se na cama,

exausta.Tinham sido lojas, escritórios. Não tinha certeza

se alguém realmente a chamaria para trabalhar.Estava

com a maior esperança na loja de artigos de bebê, onde

a dona parecia ter simpatizado com ela.

Ela pensou em Billy.O que teria acontecido?

Agora ela via que nada tinha acontecido, admitia ter

sido apenas sua imaginação paranóica. E ele devia ser

tão louco quanto ela.

Descobriu um novo convite para o Death of

Patience em seu e-mail. Acessou o site por

curiosidade.Um antigo recado de Billy.Encontrar-se

com ele á tarde.Ele devia ter esperado bastante, e se

decepcionado. Ela riu. Mas outra idéia lhe passou pela

cabeça.Alguma novidade havia

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Percebeu que começara a tremer.”Será que

Billy ainda está vivo?” Ela desejou que sim.

Bateram á porta.

— Mabel! — Era seu pai, gritando por cima da música

alta. — Dá pra abaixar isso? Não é música, é gritaria!

Era real, tinha sido tudo real.Ela ignorou o

pai. Seu pesadelo poderia estar muito mais perto do que

ela imaginara.

Tentou acalmar-se. Precisava pensar em

alguma coisa, mas pensaria na manhã seguinte. Agora,

ela precisava dobrar a dose de Soroquel.

“Responder: Percebe a ironia? Trocamos

nossos papéis.Antes,era eu que morria de medo,e você

que desacreditava. Não estou desacreditando, Billy. Só

acho que devemos manter a calma, para não meter os

pés pelas mãos.

Capítulo Oito

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“Vítima Perfeita” tinha postado um vídeo.

Quatro amigos sentados em roda passavam um

revólver de mão em mão. Cada um, na sua vez,

apontava para a própria cabeça e apertava o

gatilho.Roleta Russa. Joshua surpreeendeu-se ao

descobrir que nunca tinha assistido á uma de verdade.

Uma garota loira bonita hesitou em sua vez.

Apontou o revólver para a própria mão, e se aquilo

poderia ser considerado sorte, a bala atingiu-a na palma

esquerda. As outras pessoas não ficaram surpresas, mas

correram para socorrê-la. A garota caiu desmaiada no

chão ,e o vídeo terminou.

“Teria sido mais legal se ela tivesse realmente

acertado a cabeça”, ele comentou para Vítima Perfeita.

”Ou ela é incrivelmente sortuda, ou sabia que a arma ia

disparar.”Incrivelmente estúpida, também”, ele pensou.

Ele postou o vídeo no site.Era o segundo

vídeo aprovado desse membro.

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“Ainda está vivo?”, Joshua perguntou na

página de recados pessoais de Vítima Perfeita.Tinham

sido postados vários vídeos onde ele era a própria

vítima,mas já não parecia tão perfeita assim.Joshua

imaginava que tipo de confusões o garoto de rosto

censurado se metia,para que lhe submetessem á tantas

“aventuras”.

Um recado de Filth Darkness para ele.

“Data: 05/01/2009.

Hora:03:02hs.

Remetente:Filth Darkness.”

Mensagem: O que está acontecendo? Estive

viajando nos últimos dias.Se quiser, me encontre lá ás

dezenove, amanhã. Espero quer você possa me dar

algumas explicações.”

Ele esperava que ela lhe desse uma luz.

Não seria ele a ajudá-la.

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Depois da invasão, Joshua tinha ficado

terrivelmente nervoso. Estivera disposto a esquecer o

incidente.Tinha ouvido em algum lugar: Se você não

acreditar, não é real. Nada pode acontecer, a menos que

você acredite que está acontecendo. Ele não aceitaria

que a idéia de Joey ser real e perigoso entrasse em sua

mente,e fizesse um grande estrago emocional lá

dentro.Era apenas uma questão de bom senso e auto

proteção. E Joey tinha sido bloqueado do Death of

Patience.

Exatamente quando Joshua pensava isso,

um novo recado foi postado para ele. Era de alguém

chamado Joey, mas com um endereço eletrônico

diferente.Ele sentiu o coração congelar, mas começou a

ler a ler a mensagem.

“O cheiro de carne humana enchia o

lugar. O detetive Sanders nunca tinha visto em toda sua

carreira nada nem parecido com aquilo. Fez sinal para

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que o companheiro o seguisse numa turnê pela casa,

seguindo os rastros de sangue. Encontraram o lugar do

crime.Uma garota mutilada estava pendurada pelo

pescoço no chuveiro do banheiro.Era estranho, mas os

lábios pálidos pareciam sorrir.Uma linda garota, ele

pensou. Era realmente uma pena.Quem poderia ter feito

uma coisa daquelas? Mas ele considerou novamente

aquilo que ninguém poderia entender: a mente humana.

Isso tinha que acabar.As pessoas más tinham que ter um

fim.

“Ainda estava submerso em seus

pensamentos, quando ouviu o grito de seu amigo atrás

de si. Antes que ele pudesse virar-se para ver o que

tinha acontecido, foi atingido na cabeça com um objeto

pesado. Estava acabado. Não havia saída”.

Ele controlou-se para não entrar em

pânico.Olhou de relance, insistivamente, para a porta

trancada. Não soube identificar de onde tinha sido

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tirado o trecho que Joey usara. Ele apagou o recado,

como se esse gesto resolvesse seu problema.

Não poderia ficar parado esperando que o

assassino viesse até ele. Precisava da ajuda de alguém.

Respondeu para Filth Darkness o recado que tinha

deixado pendente.

“Certo. Amanhã, no mesmo lugar, ás

dezenove horas.

— O que você acha? — Mabel perguntou. — A cena

descrita por ele, ou ela, aconteceu? Ou é uma

ameaça,vai acontecer?

Ele balançou a cabeça.

— Não tenho certeza.Temo que se trate de uma ameaça.

Ela suspirou, pensativa.

— Era isso que eu tentava dizer desde o começo...

Por causa disso ela tinha ido parar num

hospício.E quase chegara acreditar que estivera mesmo

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ficando louca. Não deveria culpá-lo, sabia disso. Ele era

tão vítima quanto ela. Vítima. Essa era uma palavra que

não combinava com sua personalidade.Há muito tempo

que ela deixara de sentir medo. Sentia ódio. Pegaria o

desgraçado de jeito, com as próprias mãos. Pensou no

canivete, e ficou animada de repente.”Não”, ela pensou

contradizendo-se.”Preciso comprar um a arma. Um

revólver de verdade”.

— Ele só fica na ameaça... — Joshua murmurou, mais

para si mesmo do que para ela. —Até agora nada.

Dessa vez ele não se deu ao trabalho de

convidá-la á um restaurante.Os dois andavam pela

calçada.

— O que ele quer, afinal? — Ela perguntou.

— Não sei! — Ela notou o desespero em sua voz. —

Será que ele quer alguma coisa?

— Ele tem que querer algo, certo?

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— Talvez seja um idiota a fim de nos assustar.Quem

sabe alguém que nós conhecemos.

Ela percebeu que ele não acreditava no que

estava dizendo. Se tratava muito mais do que uma

simples provocação.

— Tem que ser alguém que me conhece.— Ele deu

continuidade ao pensamento. —Conhece Billy.

Ela mataria o imbecil aos poucos.Assistiria

ele morrer, exatamente como ele tencionava fazer com

ela.

“Parece um maldito filme de terror”, ele

pensou.Um clichê perfeito.Era isso que ele estava

vivendo.Quem era a garota ao seu lado? Ele tinha

certeza que não conhecia.Já imaginava o vídeo de seu

próprio assassinato sendo postado no Death of

Patience.Quem aceitaria o vídeo? Mabel era estranha.

Caminhava olhando para o nada, como se sentisse no

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vento gelado muito além do que ele sentia.Estranha

demais.

— Por onde esteve? —A pergunta soou estranhamente

casual, de uma forma completamente inadequada

naquele momento. — Passou muito tempo sem

responder meus recados.

— Fora da cidade.

— Estava fugindo dele?

— A trabalho.A trabalho, do meu pai. Fui a San

Francisco.Aproveitei para espairecer.

— E conseguiu? Parece assustada ainda.

— Não seja idiota.Não foi por medo.Você não me

conhece.Eu nunca fugiria por medo.

— Você mudou muito desde a última vez que nos

vimos.

— O que acha? Que eu sou uma assassina? Poupe-me,

se eu fosse matar alguém, não seria você.Existem muitas

pessoas que eu escolheria antes. — Ela pensou em Tony

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e nas pílulas que ela tomara de manhã.Talvez elas

fossem as respostas que Billy procurava para sua

mudança repentina de comportamento.

—Sabe o que acho? — Ela disse,de repente mudando

seu tom.Tinha tido uma idéia.—Devíamos virar o jogo.

— O que quer dizer? — Ele sabia o que ela queria dizer.

— Se ele não vem logo até nós, vamos até ele. — Ela não

esperaria novamente.

— Por quê?

— “Matar ou ser morto”.

— Está blefando.

— Acha mesmo?

— Espero.

— Vamos mudar essa história, Billy, Joshua, ou seja lá

quem você for. — O tom na voz dela começou a assustá-

lo.

— Você é maluca, garota.Onde poderíamos encontrá-lo,

pra começar?

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— Vamos dar um jeito. Somos tão bons quanto ele. —

Ela olhou bem para ele. — Eu darei um jeito.

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Parte 2

O Despertar

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Capítulo Nove

Onze e dezessete. Onze e dezessete e quinze segundos.

Dezesseis segundos. dezessete segundos.Dezoito

segundos. Dezenove segundos.

Nicky observava os ponteiros apressados do

seu relógio de ouro.Desviou os olhos, mas continuou a

contagem mentalmente.Vinte e um segundos.Vinte e

dois segundos.Precisava estar em casa.

Logo seria meia noite.A primeira pontada de

desespero não o surpreendeu.

Teve um estremecimento involuntário e mal

notou que todos na sala olharam para ele.Levantou-se

do sofá de couro preto, talvez apenas uma imitação de

couro, e desculpou-se.

— Vou ao banheiro.

A sala pequena não estava cheia.Seu pai não

tinha tido muitos amigos em vida, e muito menos em

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sua morte, tão quieta e insignificante quanto ele.Não

tinha sentido a morte do pai, admitiu.Se dissesse que se

sentia triste, ou ao menos, comovido, teria sido

mentira.Simplesmente chegara ao fim. É um mundo

corrosivo.Tudo chega ao fim.

Ele olhou para o seu reflexo no espelho do

banheiro, distraído.Talvez isso fosse lhe causar

problemas, mas ele tinha que ir embora.Onze e

dezenove.Tinha ganhado o relógio do pai quando era

quase um adolescente.Não gostava de ouro.Ouro.O

símbolo do desejo, uma lembrança daquilo que destruía

a humanidade.

“Desculpe, papai”, ele pensou.”Não posso

arriscar minha vida permanecendo aqui”.

— Preciso ir.— Ele sussurrou para a tia, antes de deixar

a casa dela.Sua mãe levantou os olhos reprovadores

para ele.

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— Dirija com cuidado. — A mulher de olhos bondosos

respondeu, por hábito, ou por falta de ter o que dizer.

Deu uma última olhada para o caixão no

centro da sala, onde outrora tinha ficado a mesinha de

café.Quantas vezes seu pai tinha apoiado sua xícara de

chá sem açúcar ali? Ainda lembrava-se das noites que o

acompanhava, em suas visitas á tia. Ela servia-lhes bolo

e café. Nicky gostava da cobertura de morango que ela

colocava especialmente para ele.Ouvia a conversa dos

adultos sem interesse, então eles voltavam para casa.

Com passos rápidos, ele alcançou o carro, e

saiu na máxima velocidade que a ruazinha escura e

vazia permitia.

Era á noite que eles espreitavam.Á meia-

noite, precisamente. A hora das bruxas.

Espiou os rostos de uma família que andava

pelo bairro.Seus passos eram lentos.Levavam a vida

normalmente, vulneráveis áquela hora.Eles não sabiam.

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Ignoravam completamente o mais essencial. Nicky

sabia, ele sorriu para si mesmo.E essa era a sua

vantagem sobre o gado.

Em menos de quinze minutos, estava em

casa.

Com as portas trancadas, enfiou-se na cama

de seu quarto sem janelas.Dessa vez , estava sozinho em

casa.Sua mãe demoraria a voltar.

Imaginou o que ela sentia naquele momento.

Seu pai sempre vivera á sombra dela,

esperando uma palavra para tomar qualquer atitude.

Eram poucas as lembranças que ele tinha do pai,

sempre tão distante e calado, sem esperar nada dele.

A vida de Nicky sempre se resumira á sua

mãe. Até que um dia não foi suficiente. Ele encontrou

na Igreja de seu bairro o carinho de pai que ele nunca

teve. Sua mãe não aprovou que ele passasse tantas

horas confinado no pequeno santuário.

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— É algo criado pelo homem, para o homem. — Ela

dissera, procurando fazê-lo entender. Eles querem seu

dinheiro. Eles querem seu pecado.Não quero mais que

você vá.

Nicky deixou de frequentar as missas.

Descobriu que não era aquilo que procurava.Precisava

de algo mais pessoal, que fosse somente dele.Não

queria dividir Deus com ninguém.Não queria que

alguém lhe dissesse como cuidar de sua alma.Ele

simplesmente sabia.As respostas vinham para ele, sem

que ele precisasse da igreja. Sim, ele tinha tudo que

precisava.

— Está na hora de escolher uma carreira. — A mãe

disse, á mesa da cozinha.

— Psicologia. — Ele disse.

— Psicologia?

— Por que não Medicina? — A mãe sugeriu. — Talvez

você se desse bem na área.Ou mesmo

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Veterinária.Lembra de quando tratou daquele

passarinho doente?

Nicky empurrou o resto da comida e foi para

o quarto.Sentou-se no canto entre a cama e a parede,

que fazia com que ele se sentisse

protegido.Repensou.Não seria psicólogo.As pessoas

eram assustadoras demais. Muito pior do que a idéia de

abrir um homem morto nas aulas de Anatomia, era

tentar entender a mente de uma pessoa viva.

Não iria estudar.Tinha deixado para trás uma

fase difícil, a fase escolar.Não tinha amigos, pelo

simples fato de que não precisava se relacionar com as

pessoas. Talvez por esse motivo, tinha sido alvo de

chacota dos outros garotos, e agora ele se sentia livre

daquilo.Não toleraria mais provocações de pessoas que

não sabiam de nada. Pessoas limitadas á vida que

podiam ver.

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Foi ajudante geral em um supermercado,

lavador de pratos em um bar e trabalhou em diversos

escritórios.Tornou-se auxiliar de escrita fiscal em um

estabelecimento de seu bairro.Assim permaneceu,

mantendo sua profissão superficial.

Ele mudou a posição do travesseiro.Por que

estava difícil de dormir? Sentiu-se tentado a pensar

naquilo que fazia seu espírito pesar, a presença

desencarnada de seu pai ali. ”Ele não pode me ver”,

convenceu-se. ”Há um abismo intransponível entre o

céu e a Terra. Impossível para as simples almas

humanas”.

Precisava fazer um cálculo para um cliente,

passou-lhe pela cabeça o dia de trabalho. Ele entraria

em apuros com a justiça, se Nicky não tomasse uma

posição rápida.Suspirou alto.Resolveria aquilo assim

que chegasse no escritório pela manhã. O amanhã lhe

aguardava, e ele estava entusiasmado para começá-lo.

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Mais do que a burocracia do escritório, ele

tinha muito que fazer.Entendera finalmente para quê

estava ali, qual era seu propósito em vida.

Encontrara o site por acaso, enquanto fazia

uma busca pela Internet.Tinha chegado a hora de

justificar sua existência.

Ele apostava que seria bem divertido.

Naquela noite, Nicky não tinha conseguido

dormir também.Os vídeos tinham provocado seus

sentimentos, o mal iminente assombrando-o como algo

físico.Eram seres humanos.Todos eles.E mesmo assim,

matavam-se uns aos outros, capazes de muitas

atrocidades.Não era para serem semelhantes? Ele não

compreendia.A única coisa que ele sabia era que aquilo

precisava parar.

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Sentou-se na cama e diminuiu a luz do

abajur.Precisava dormir.As criaturas da noite já estavam

acordando, ele já podia sentir seu cheiro. Não poderiam

atacá-lo se ele estivesse dormindo, pois sua alma já não

estaria no seu corpo mortal.O próprio Platão dissera

isso.O repouso do sono levaria sua alma para outra

dimensão, um mundo que sua mente mortal não

conhecia por enquanto.Um lugar onde o Mal não

existia.

Ali estava ele, acordado, incapaz,

vulnerável.Mas assim que ele fechava os olhos, via os

vídeos em sua mente.Amaldiçoou sua curiosidade,

porque ainda não tinha entendido a que propósito ele

acessara o site. Seu costume era usar seu tempo livre

para vasculhar computadores atrás de senhas, para

derrubar coisas que ele sabia não serem boas, dentro de

uma rede tão abrangente como a Internet. Com apenas

um clique, milhares de pessoas tinham suas mentes

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invadidas. Com toda habilidade que adquirira com

computadores em sua adolescência desocupada, ele

conseguia fazer grandes proezas.

Imaginava as almas perdidas, aquelas que já

tinham sido levadas pelas criaturas, gritando por

socorro.Uma ajuda que nunca viria, pois elas tiveram

sua chance de escolher o Bem. Ao invés disso,

deixaram-se dominar por pessoas como Billy, o

moderador do site.

Alguns deles tinham cometido suicídio.Uma

das coisas que Nicky menos compreendia.A total

desvalorização da vida, o desprezo pela sua própria

alma. Sem salvação, não haveria misericórdia para essas

pessoas.O que Nicky precisava fazer era ajudar as

pessoas enquanto elas ainda tinham vida.

Ele sabia que a culpa não era dos seguidores

do Mal.Eles eram apenas espíritos fracos.Deixam-se

dominar pelo sangue que corria em suas veias,

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ignoravam o que realmente eram: Criaturas boas,

inicialmente criadas para o Bem. Mas elas não estavam

preparadas.E logo, suas almas já tinham sido levadas.

Tinha chegado a hora.Se ele continuasse a

guardar tudo o que sabia só para si, estaria sendo

egoísta, cedendo ao medo que insistia em dominar seu

coração.Era um ser humano, também.Cheio de

fraquezas.A diferença era que ele sabia como vencê-las.

Perseverança e coragem. Enfrentar o Mal, encará-lo com

a maior pureza,a melhor arma que ele poderia usar.

Mataria Billy.Entregaria a alma dele aos

espíritos contrários, e salvaria as almas condenadas por

ele.Tinha esperança que com o sacrifício dele, a salvação

viesse para o próprio Billy também. Afinal, Billy era

apenas um inocente, dominado pela sua Natureza

Humana..Quanto aos outros membros do site, o único

que lhe chamara a atenção em especial tinha sido Filth

Darkeness, seu apelido já dizia tudo. Segundo o perfil

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do moderador, sem sua ajuda o site não teria

acontecido.Ele rastrearia essa pessoa e só lhe daria um

bom susto.Não seria necessário matá-lo.Não queria

derramar sangue á toa.

Escolhera o apelido Joey.

Por um descuido de Billy, Nicky descobriu

que estava lidando com Joshua Dunne.Um boleto tinha

sido esquecido no computador de Billy, e ele tinha

conseguido hackear seus arquivos pessoais.Nicky

admitia ter sido um golpe de sorte, ou puro Destino, o

recibo não estar devidamente protegido como devia

estar entre os outros documentos.Ele sorriu consigo

mesmo.A distração.Um erro humano muito mais grave

do que a maioria das pessoas imaginam.Era por isso

que ele estava sempre alerta a tudo. Joshua tinha sorte

de ter sido ele a pegar um momento de

distração.Conseguira tudo que precisava sem precisar

tentar entrar na sua fortaleza.

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Era manhã de domingo quando Nicky entrara

no apartamento silencioso.O escuro da sala o

perturbava mais do que qualquer outra coisa.Guardou o

pedaço de arame que usara para abrir a porta no seu

melhor estilo Holdini.Seu coração estava inquieto, ele

tinha pressa de sair dali.Tirou o facão do cinto,

escondido pelo casaco de lã.

Decepcionado, notou que o apartamento

estava vazio.Pensou em esperar até que Joshua

chegasse, mas não conseguiria ficar nem mais um

minuto naquele lugar.Estava com medo, teve que

admitir.A luz do sol entrava pelas venezianas da janela

fechada, projetando sombras estranhas.Precisava salvar

Joshua daquele lugar.Suas mãos começaram a tremer, a

respiração tornou-se irregular.

“Eu preciso ser forte”, ele pensou.”Preciso

fazê-lo saber que estive aqui”. Quem sabe o medo

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vencesse Joshua e ele desistisse de suas maldades?

Antes que fosse tarde demais.

Ligou o computador.A luz forte pareceu

cegá-lo por um instante.Nicky odiava o escuro, mas não

suportava luzes fortes.Digitou sua senha no Death of

Patience e acessou sua página.Escrevia o recado para

Billy quando a camapinha tocou.Ouviu uma voz

feminina.

— Jos! Está dormindo ainda? — Ela riu. Nicky

observava-a pelo olho mágico. — Jos!

Era uma linda garota. Seus cabelos cacheados e seus

olhos azuis provocaram um anti clímax na

situação.Esperava que ela não viesse a ser outra vítima.

Depois que ela desistiu de chamar, ele

terminou de escrever para Joshua e deixou o

apartamento sem ser visto.

Pensou nos recados desesperados de Filth

Darkness para Billy enquanto entrava no carro.Não

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seria necessário ter trabalho com ele.Parecia assustado o

suficiente para deixar a vida criminosa.Já tinha dirigido

alguns segundos quando se deparou com um homem

que carregava um saco de compras pela calçada.Ele não

pareceu notar que Nicky diminuíra a velocidade do

carro para observá-lo, apesar da rua estar

completamente vazia.Joshua correspondia exatamente

ao que tinha imaginado.

Viu quando ele entrou no prédio.Já ia abrir

a porta do carro para ir atrás dele, quando se lembrou

do interior do apartamento e do que tinha sentido lá

dentro.Só o pensamento fez suas mãos esfriarem de

novo, e ele recuou, envergonhado de si mesmo.Sentiu

lágrimas quentes descerem pelo seu rosto, sem que ele

pudesse entender.”Por favor, me perdoe. Me perdoe

por eu não ser forte o suficiente agora...”

Ligou a chave do Corsa, o carro de sua mãe,

e arrancou com tudo, sentindo-se frustrado e

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impotente.Poderia estar com medo agora, mas voltaria e

faria o que tinha que ser feito.

Ainda tentou dar outro alerta para Joshua,

poucas semanas depois.

Mas o site continuou no ar.

Capítulo Dez

Mabel comia os bom bons que tinha comprado no

supermercado perto da casa de Joshua.Eles eram seu

vício, seu doce e maravilhoso vício.

— Servido? — Ela ofereceu, muito tempo depois de ter

começado a comer.

— Não.

— São ótimos. — Ela justificou, enquanto ele puxava

uma cadeira para que ela sentasse ao seu lado, frente á

escrivaninha do computador. — Eu ainda não almocei.

— E pelo jeito nem vai almoçar. — Ele acessou a página

de recados de Joey.

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— Como conseguiu a senha do assassino?

Incomodava ouvi-la falando daquele jeito.Joey

não era um assassino porque não tinha matado

ninguém. Até onde ele sabia.

— Ele invadiu minha casa, e deixou a senha aqui.

— Nossa....

Ele não entendeu a interjeição dela.Clicou nos

contatos de Joey. Só havia Joshua e Mabel.

O convite devia ter sido roubado.Era difícil,

mas não impossível.

— Não tem como rastreá-lo? — Ela perguntou.

— Não. Ele tem uma conta fantasma.

— Então ele está fora do Death of Patience? Criou uma

conta e deixou que ela expirasse?

— A conta demora vinte e quatro horas para

desaparecer, mas ele excluiu seu endereço de e-mail

também.Não consigo rastreá-lo.

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— Isso quer dizer que ele não vai mais nos atormentar

no Death.

— Isso quer dizer que ele vai roubar outro convite, e

criar uma nova conta quando quiser.

Mabel tirou o mouse da mão de Joshua para

vasculhar ela mesma o que tinha na conta quase

expirada de Joey.

— Não há fotos, declaração de status, amigos ou

recados. Já tentou descobrir se alguém conhece ele aqui

no site?

— Perguntei para algumas pessoas, mas ninguém faz

idéia.É como se ele não existisse.

—Talvez ele não exista... — Ela murmurou.

— Como será que nos descobriu? — Ele vagueou, mais

para si mesmo do que para ela. — Deve ser um

conservador estúpido.Um religioso, quem sabe.

Ela deu de ombros.

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— A teoria do psicopata é mais aceitável. — “E mais

interessante.”

A porta trancada do apartamento ameaçou

ser aberta, fazendo com que Joshua levantasse da

cadeira com um pulo.Mabel riu, mas não comentou.

— Quem é? — Ele perguntou, desconfiado, pronto para

pegar qualquer coisa que pudesse servir-lhe de arma.

A voz de Heather respondeu assustada,

também.

— Sou eu, Jos.

Joshua abriu a porta com cautela.

— Você tem estado nervoso demais. — Ela comentou,

entrando no apartamento.Trazia uma bacia de pipoca.

— Tem refrigerante aí?

Heather notou a presença de Mabel na sala.

— Boa noite. — Ela passou os olhos da garota para

Joshua rapidamente.

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— Essa é... — Ele começou, constrangido. — Essa é

Mabel. Heather, minha namorada.

Mabel deu um sorriso irônico.

— Boa noite, querida.

— Mabel veio aqui discutir comigo sobre... Você sabe. O

incidente.

— Joey. — Heather terminou a frase por ele.

— Joey. — Ele enfatizou.

— Se quiser — Mabel disse. — Pode sentar aí.

Heather deixou a pipoca sobre o balcão da

cozinha.Sentou no sofá.

— Obrigada. Eu sei que posso.

Mabel sorriu, e tornou sua atenção para o

computador.

— Ligue a televisão. — Joshua sugeriu, incomodado por

Heather estar ali. Já era ruim o suficiente que Mabel

estivesse no caso.

Ela não respondeu, nem ligou o aparelho.

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— Sabe de uma coisa? — Mabel concluiu de repente. —

Acho que essa busca toda não vai nos levar a nada.

— Só agora percebeu isso?

— Precisamos de uma estratégia.

Heather levantou-se para juntar-se a eles.

—Vocês precisam da Polícia, isso sim.

— Não! — Os dois responderam em uníssono.

— Nem pensar. — Mabel concluiu. — E eu já sei o quer

vamos fazer.

Começou a digitar na página de recados de

Joey.Talvez ele voltasse com nova conta antes que essa

fosse expirada. E então, leria sua mensagem.

“Se está assim, tão a fim de aventura, nos

encontre no Bar 29, na avenida principal, sexta-feira, ás

vinte horas.”

Joshua estava perplexo.

— Está louca?

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— Vamos esperar que ele venha até nós, ou vamos

assumir o controle da situação?

Ele encarou-a por um momento.

— Melhor do que ir até ele, e pedir que nos mate.

— Ele não vai nos matar na Avenida Principal.

Ela assinou o recado e completou:

“Venha até mim”.

Tanto Heather quanto Joshua soltaram uma

exclamação quando ela clicou na irreversível opção

‘enviar’.

—Você é louca! — Ele decidiu.

— Não o suficiente. — Ela sorriu.

Pegou a bolsa e a caixa de bombons.

— Até sexta, Billy.

Capítulo Onze

Mabel apertou o casaco de lã contra o corpo,

gemendo rapidamente. Não havia nada que ela pudesse

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odiar mais do que o frio. Movia-se lentamente para

frente e para trás. Começava a ficar cansada. Que

diabos, já tinha se passado quinze minutos. Tirou o

telefone celular do bolso para confirmar a hora no visor

digital. A familiar agitação já tinha começado. Estava

ficando nervosa.

Como se fosse necessário, ela voltou-se para

Joshua :

— Estou com frio.

Ele olhou para ela com certa indiferença.

— Eu sei.

Ela suspirou, olhando para a rua iluminada.

— Talvez fosse melhor irmos embora. — Ele disse.

— Vamos esperar.

— Você quer que ele venha ?

Ela deu de ombros.

— Não foi para isso que viemos ?

— Acho que sim... — Ele afirmou vagamente.

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Um casal de namorados passou por eles.

Andavam de mãos dadas, envolvidos numa conversa

empolgada. Ela notou que o cabelo do garoto era

exatamente da mesma cor que o da garota, um

vermelho irritantemente vibrante. O mais estranho era

os dois terem o mesmo comprimento de cabelos,

usavam jeans e camiseta solta, apesar do frio.

— Almas gêmeas... — Ela voltou-se para Joshua, que

observava o movimento da rua, sem parecer olhar nada

em específico. — Acha que vai encontrar sua alma

gêmea ? Seu outro eu, sua outra metade, ou o que quer

que você chame isso?

Ele foi arrancado de seu devaneio,

prestando atenção á ela pela primeira vez. Pensou em

Heather sem querer, e sentiu–se constrangido por isso.

— Eu vou esperar.

— Cansei disso... Acho que vou desistir.

Joshua ficou confuso.

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— Vai desistir de esperar por Joey?

— Pela minha cara metade.

— Ah, certo.

— Desistir... — Ela pronunciou a palavra de forma

poética, mas sem que houvesse algum sentido real

naquilo. — Por Joey ? — Ela riu ,como se só agora

tivesse ouvido o que ele falou. — Estou quase

desistindo disso também...

Ele consultou seu relógio de pulso.

— Só mais cinco minutos. — Ele advertiu.

— Certo...

Mabel voltou a balançar o corpo,

ocasionalmente soltando um gemido de frio. Joshua

estava se irritando com a impaciência da menina, mas

não disse nada. Esperaria apenas cinco minutos. Olhou

no relógio. Quatro minutos, agora.

Estava assustado , ele admitiu a si mesmo. Mas

talvez, com a falta de Joey ao encontro, ele se

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convencesse de que estava tudo bem. Respirou fundo.

Ele não viria.Três minutos.

Pelo canto do olho ele viu Mabel consultar o

relógio de seu celular de novo. O que estaria pensando?

Não parecia se sentir ameaçada. Pelo menos naquele

instante. Mas ela era tão inconstante quanto sua mãe.

Era estranho pensar em sua mãe naquela hora.

Dois minutos.

E se Joey aparecesse? Com esse pensamento, o

coração dele gelou. O que faria então? Pior, o que Joey

faria? Uma sucessão de filmes de terror que tinha visto

nos últimos anos invadiu seus pensamentos, mas ele

tratou de afastá-los. Joshua correria no momento que o

visse? Era o mais provável naquele momento. Talvez o

mais sensato a fazer.

Estava louco. Deveria ir embora. Por que

viera, afinal? Culpa de Mabel! Não devia ter vindo.

Um minuto. Seu telefone celular tocou.

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— Alô? — Atendeu hesitante, reconhecendo o número

no identificador de chamadas. A ligação vinha de sua

casa.

— Billy? — Perguntou a voz tão hesitante quanto a sua,

em um tom de ingenuidade levemente forçada. Ele não

respondeu. Soube imediatamente do que se tratava.

Joey não viera. Pressentiu que algo de bem pior estava

para acontecer. — Está me esperando há muito tempo?

— Como Joshua permaneceu mudo, ele prosseguiu. —

Bom, se ainda estiver me ouvindo, estou na sua casa.

Venha até aqui se juntar com a gente. — Ele fez uma

pausa. — Conheci Heather, sua amiga.

Mabel arrancou o telefone da mão de Joshua.

Ele tinha consciência de ainda estar imóvel, mas agora

muito mais desesperado do que assustado.

— Quem está falando? — Ela quase gritou. –— Onde

está, seu covarde? Por que não vem até aqui?

Ele já tinha desligado.

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— Por que esse idiota não veio?

— Ele... — E se algo terrível tivesse acontecido? Sentiu

que já começava a chorar. Precisava ver Heather,

abraçá-la, ter certeza de que ela estava bem. E de que

tudo ficaria bem.

— Ele o quê? — Mabel estava gritando ao seu lado. —

Pára de chorar, bichinha, e me fala logo, pelo amor de

Deus!

— Ele está em casa! — Joshua gritou de volta. — Na

minha casa! E disse estar com Heather!

—Ah meu Deus !

— O que vamos fazer agora? — Ele disse, de forma

vaga.

Joshua se decidiu antes que ela pudesse

responder. Voltaria ao apartamento.

— Chamar a Polícia seria idiotice, saiba disso. — Ela

disse, com medo do que ele pretendia fazer.

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— Não tenho a menor intenção de chamar a polícia. —

Ele respondeu, rispidamente.

— Graças a Deus ! O que pretende fazer, então?

Ele tirou o revólver recém comprado do bolso.

Nunca tinha usado uma arma antes. Estendeu para

Mabel.

— Acho que isso vai ser útil. — Ela sorriu, pegando a

pistola 9 mm parabellun. Finalmente se encontraria com

o responsável pelos dias mais agonizantes de sua vida,

seus dias de manicômio. Numa espécie de anti-clímax,

ela pensou em Jim, e onde é que ele estaria. Era pouco

provável que tivesse deixado o Saint Claire.

Chegaram numa rapidez incrível. Joshua entrou

no prédio, não se sentindo mais tão confiante quanto

estivera durante o caminho. Os seus sentimentos eram

instáveis, e ele adoraria poder acordar logo daquele

pesadelo maluco, pois tinha certeza de que não era real.

Ou pelo menos não podia ser.

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Ele olhou para Mabel com a arma na mão e

reconsiderou se devia deixar a pistola nas mãos daquela

inconsequente.

— Eu fico com isso. — Ela afirmou, como se lesse seus

pensamentos.

Avançaram pela portaria sem vacilar dessa

vez.

— Elevador? — Mabel perguntou, quando ele começou

a subir as escadas. O prédio escuro despertava um mau

pressentimento nela.

— Não. — Ele disse simplesmente, correndo pelos

degraus, subindo-os de dois em dois. Ela entendeu que

seria mais rápido se corressem pela escada, e esperava

que ele estivesse certo.Tempo era algo que eles não

teriam certamente. Ou talvez sim, ela ponderou

novamente. Psicopatas gostavam de fazer tudo devagar.

Estremeceu sem ter certeza se era de medo, e apertou a

arma com mais força.

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Joshua precisava ser rápido, chegar ao

apartamento antes que fosse tarde, perdesse a coragem.

Se sua capacidade de pensar naquele momento o

surpreendia, seus sentimentos confusos e vacilantes

entre coragem, raiva, e um medo profundo, tanto pela

própria vida quanto pela de Heather, o deixavam ainda

mais nervoso.Sentiu-se grato por ter Mabel com ele

naquele momento.Ela parecia muito mais forte do que

ele.

Passou-lhe pela cabeça que ela estivesse

esperando esse momento chegar. Sua determinação

demonstrava isso para ele, e entendeu que era

exatamente para isso que ela armara tudo. Não se

tratava de nada a mais do que uma vingança pessoal.

Mas não havia tempo para sentir raiva agora. Já haviam

alcançado o andar de seu apartamento.

— Pronto? — Ela disse, preparada para entrar no

apartamento destrancado.

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Antes que ele tivesse chance de responder, ela

abriu a porta, fazendo um barulho desnecessário.

— Apareça, miserável! — Ela xingou debilmente.

— Não fale alto. — Joshua murmurou para Mabel.

Prendendo a respiração, ele entrou no

apartamento atrás dela. Ela chamou-o do corredor que

os levava da sala para o quarto.

Mal ele pôde reconhecer o pedaço de carne

jogado no chão, envolto em um lamaçal de sangue.

— Ah Deus, isso não pode ser real! — Ela disse.

A verdade era que Mabel estava mais fascinada

do que amedrontada ou horrorizada. Parecia um filme,

ou um dos vídeos do Death of Patience. Na parede

estavam rabiscadas palavras ilegíveis, escritas com

sangue. O lugar estava escuro, e isso dificultava ainda

mais a leitura das palavras.

Joshua estava gritando.

— Heather! Onde você está?

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Mabel entrou no quarto, e estacou na porta.

Pôde perceber Joshua parado atrás dela.

— Finalmente chegaram. — Disse o homem com uma

faca na garganta de Heather, enquanto ela dava gritos

abafados sob um pano que servia de mordaça. —

Demoraram mais do que eu previa !

— Desgraçado! — Mabel gritou, apontando a arma para

ele.

— Não faça isso. — Joshua disse á ela quase

ameaçadoramente, prevendo a reação de Joey. O

homem sorriu, como se esperasse sua intervenção.

— Solte-a ou vai ser pior pra você.— Joshua murmurou.

— Pior pra mim? —Ele ensaiou uma risada. — Não vejo

como isso poderia ser pior para mim do que para ela.

— Eu vou chamar a polícia!

— Eu sei que você não vai fazer isso. — Ele declarou. —

Não vai fazer porque sabe que é tão criminoso quanto

eu.

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— Você não sabe de nada! Solte-a agora!

— Está dizendo palavras vazias. Sabe que não vou

soltá-la.

— Eu não entendo... O que quer de mim?

— Você me chamou de psicopata, certo? Você não acha

que isso é hipocrisia?

— O que você quer de mim?

— Você matou muita gente, Joshua.Mesmo sabendo que

sua vez chegaria.

— Você é louco! Não matei ninguém!

— Sabe do que estou falando! — Ele quase gritou,

obviamente perdendo a paciência. —Você escreveu que

odeia as pessoas hipócritas. Eu testemunho sua

hipocrisia contra você mesmo. Lembra-se do escreveu

no home do Death of Patience? Isso me fez pensar por

muito tempo.

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Joshua lembrava-se do que escrevera logo no

começo do Death of Patience, quase como uma

justificativa por estar fazendo aquilo.

Você odeia o ser humano tanto quanto eu?

Não apenas um ser humano em particular, mas todos

como a raça hipócrita que são. Eles criaram algo muito

bom chamado de sociedade. Entende o que isso

significa? Supostamente, era pra todos serem iguais,

terem uma qualidade de vida estável e suportável. Isso

não acontece. Não acontece por que todos nós queremos

ser melhores. Eu serei melhor do que você, e tem

alguém querendo ser melhor do que eu.Não pensamos

que — digo isso com o prazer de usar um clichê

popular, o que enfatiza a minha idéia de hipocrisia —

Vamos todos morrer um dia, e não levaremos nada com

a gente. Absolutamente nada. É nessa parte que eu

entro... — Nós começamos todos do mesmo jeito,

exatamente. Nascemos, fomos criados por nossos pais,

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aderimos seus costumes e formas de se portar nesse

mundo. Depois aprendemos a pensar por conta

própria, e passamos, de uma forma ou de outra, a

questionar o que havíamos aprendido.Mas não

mudamos muita coisa. Aliás, não mudamos

praticamente nada. As pessoas são diferentes, mas

pensam exatamente igual.Depois, nós construímos

nossas famílias, julgamos que conhecemos o amor e de

fato o possuímos. Temos filhos, e os ensinamos o que

tínhamos aprendido. E então morremos. Mas por que

morremos? A resposta é sempre a mesma: Porque é

assim que deve ser. Certo, não estamos aqui para

questionar por quê coisas acontecem. Estou apenas me

defendendo.

Você pode estar achando isso tudo uma

baboseira sem nexo, mas talvez você entenda quando eu

explicar.

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Li uma matéria interessantíssima em uma

revista há alguns anos atrás. Ela me chamou muito a

atenção, embora só comprove o que eu sabia há muito

tempo. Ela dizia que o ser humano sente prazer na

desgraça alheia.

Inocentes. Somos inocentes quando ficamos

sabendo que nossa vizinha de dezoito anos sofreu um

terrível acidente de carro e perdeu os movimentos,

ficará numa cama para o resto de sua vida. E por mais

que queira ficar triste por ela, estamos felizes por não

ter sido com a gente ou com as pessoas que

supostamente amamos.

Por que você assiste o jornal das sete todas as

noites, se sabe que ele só vai relatar as tragédias de sua

região?

Confesso que já parei para pensar no porquê de

eu ligar a TV e só ouvir aqueles apresentadores bem

arrumados e com cara de indignados falarem dos

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absurdos de nosso cotidiano. Eu consegui a resposta

que me satisfez. Entretenimento. As redes de televisão

dão aos telespectadores o que eles querem.

Veja bem: suponhamos que sua mãe ou sua

namorada, pense em alguém real que você conhece,

entre aqui e veja um dos nossos vídeos. Ela vai dizer

que você é louco por aceitar isso.Vai chamar tudo isso

de loucura. Eu chamo de tragédia viciante.

Bom, espero que tenham entendido, e se sintam

pessoas normais por estarem aqui, fazendo parte do

Death of Patience.

Lembre-se de que a morte é tão natural quanto a

própria vida, não importa como ambas sejam.

— Isso é ridículo! — Joshua disse. — Não faz sentido!

— Se você fosse um pouco mais paciente eu poderia te

explicar. — Ele replicou, como se falasse com uma

criança.

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— Não quero entender droga nenhuma! Solte ela,

maluco da po... !

— Espere, chamei você aqui para conversar como os

seres humanos decentes que somos. — Respirou fundo.

— Entendeu o que eu disse sobre sua própria hipocrisia

? Vamos lá... Bem, o que sente agora?

Como ele esperasse resposta, Joshua procurou

o auxílio de Mabel. Mas ela parecia tão perdida quanto

ele.

— Apenas responda minha pergunta. — Joey insistiu.—

Não se parece com sua retórica, parece?

— Não sei! — Ele disse, sem pensar.

— Medo? — Ele sugeriu, encostando ainda mais a faca

no pescoço de Heather , que soltou outro grito abafado.

— Um amor tão sincero por ela que nunca achou ser

capaz de sentir ?

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— Não sei... — Ele sentiu que começava a chorar, uma

enorme vontade de abraçá-la, livrá –la daquela situação.

— Por favor...

— Vergonha? Culpa? — Joshua não respondeu.

Não se sentia culpado.

Tinha escrito sobre isso uma vez. A mãe de

um garoto suicida entrara no Death of patience, e

deixara um recado para ele. Ela o culpara pela morte do

garoto.

A tragédia está em todo lugar. Ele

respondera. A única coisa que eu faço é trazê-la até

mim.

Depois ele excluíra a conta, sem deixar

vestígios.

— Sente culpa?

— Não! — Ele fez um esforço para parar de chorar.

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— Sabia que as lágrimas são uma forma de

manifestação de tristeza exclusivamente humana? —

Ele sorriu. — Acha isso irônico?

— Pare com isso! — Mabel interveio finalmente. — É

ridículo você bancar o maníaco romântico.

Ele olhou diretamente para Mabel, obviamente

se sentindo contrariado com sua declaração. Balançou a

cabeça, irritado, como se tentasse arrancar algo de

dentro dela. Ela continuou.

— Sei muito bem o que significa uma ter uma mania

das boas, imbecil.

Ela achou estranho falar da própria doença

que tanto discriminava e nem sempre admitia ter. Ele

pareceu ter-se ofendido, e levou a mão á cabeça,

novamente como se tentasse afastar um inseto dentro de

sua mente.

— Não! Não! — Ele gritou sem que fizesse sentido.

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— Isso não interessa! — Joshua esbravejou, olhando

para a mão decepada de Heather, e seu rosto pálido.

Sabia que ela não resistiria por muito tempo. — Eu faço

o que você quiser. Mas solte-a, por favor! — As palavras

ficaram presas em sua garganta, e ele sentiu toda a

irrealidade do momento. — Se não deixá-la ir agora ela

vai morrer.

Mas Joey não parecia mais interessado. Tinha o

olhar parado, perdido em algum ponto do assoalho sob

seus pés. Seus olhos encheram-se de lágrimas e ele

voltou-se para Joshua com o olhar distante.

— Agora você entende o que está fazendo? Está tirando

vidas. Está matando a pobre moça. Oh Deus! — Ele

esfregou a testa com a mão desesperadamente. — Está

me matando !

Ele voltou a fixar os olhos no chão, mas agora

insinuava um sorriso.

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— Então, Billy? — Ele deu um suspiro como

consequência do choro que tinha terminado.— Está

pronto para trocar sua vida pela dela?

— Por favor, não... — Ele olhava para Heather, ciente

de que estava chorando. Ela tinha perdido a

consciência. — Resolveremos isso..

— Agora. — Ele interrompeu com um grito. — Dê sua

vida por ela agora! — Ele movia a faca de um lado para

o outro do pescoço de Heather. Acrescentou, em voz

quase inaudível: — Agora...

— O que você quer que eu faça? — Ele perguntou

hesitante.

— Venha até aqui.

Joshua olhou ao redor. Há algumas horas era

seu quarto, sua casa. Agora, lhe parecia um lugar

completamente desconhecido. Mortal.

Heather abriu os olhos. Transmitindo a dor

que sentia, olhava diretamente para Joshua. Ele desviou

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os olhos dela, envergonhado pela culpa daquilo que ele

não faria por ela.

— Venha até aqui! — Ele repetiu, impaciente.

Joshua negou com a cabeça.

— Agora! — Ele disse, dando um grito estranho e

abafado, parecido com um grito de dor. Seus olhos

novamente molhados se perderam no chão.

Mabel já se cansara disso. Olhou para

Joshua. Ele não parecia disposto a tomar uma atitude,

De qualquer forma, já era hora de fazer

alguma coisa. Segurou o cabo da arma com mais força e

levantou-a, atirando no mesmo momento. Sua

experiência anterior com armas de fogos tinha sido aos

quatorze anos, quando seu tio a levara á academia

policial onde trabalhava como militar e a ensinara a

atirar. Mas ela havia se esquecido do quanto era forte o

impacto quando a bala do revólver era disparada.

Quase caiu para trás.

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Não acertou. Mesmo que tivesse pegado-no

de surpresa, a bala passou cerca de quinze centímetros

de distância de seu corpo. Ele passou a faca no pescoço

de Heather.

Joey ficou hesitante por um segundo, depois

correu pela porta do quarto. Mabel tentou acertá-lo

mais uma vez, sem sucesso.A bala passou á uma

distância considerável dele.

— Deus! — Joshua exclamou, correndo na direção do

corpo sem vida de Heather.

Soltou as cordas que prendiam os braços dela

na cadeira, reconhecendo-as como suas. O assassino

pegou-as na pequena despensa quase escondida e

inutilizada do apartamento. Deviam estar esquecidas lá

há muito tempo, já que ele nem se lembrava de quando

ou para quê as usara pela última vez.

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— Heather... — Ele chamou baixinho, sabendo ser

inútil.Tirou a amordaça da boca dela, sujando as mãos

de sangue.

Recuou, forçado a admitir que estava tudo

perdido.Chegou á sala e sentou-se no chão, as mãos no

rosto e os cotovelos apoiados nos joelhos.A porta da

frente tinha sido deixada aberta por Mabel quando ela

correu atrás de Joey.

Heather estava morta. “Está chegando em

você “

Poucos segundos depois, Mabel reapareceu,

tomando fôlego.

— Não consegui alcançá-lo. — Ela declarou. — O que

faremos, agora?

Ele levantou-se sem se preocupar em enxugar

os olhos.Sim, ele repetiu mentalmente.Heather estava

morta e a culpa era inteiramente daquela vadiazinha á

sua frente.

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— Não há mais nada que possamos fazer. — Ele

respondeu, num fio de voz. —Nada mais...

Mabel correu até o quarto, deparando com a

cena que não tinha visto antes de se lançar á

perseguição dentro do pequeno prédio. Ela tinha

parado na rua quando percebeu que ele era muito mais

rápido do que ela, e naquele ritmo ela não o alcançaria

nunca.

— Ah Heather... — Ela murmurou, autenticamente

pesarosa. Pensou: — Joshua ainda vai ficar arrasado por

muito tempo...

Voltou á sala.

— Eu sinto muito. — Disse.

Ele não respondeu.

Bem próximo, o som de uma sirene de polícia

fez-se ouvir na sala escura.

— Veja só... — Joshua murmurou, num

sensacionalismo irônico. — A polícia.

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Ela sentiu a afirmativa como uma

acusação.Ele não seria tão idiota em culpá-la pelo que

acontecera.Seria?

Pareceu passar horas até que a polícia

chegasse.Mabel pensava se ficaria ou simplesmente

daria o fora.

Os policiais entraram.

— No quarto. — Mabel apontou, tomando a dianteira e

conduzindo os oficiais até lá.

Dois policiais ficaram na sala de estar.

— Pode explicar o que aconteceu aqui? — Um deles

perguntou a Joshua.

— Ele é louco...

O outro policial, um negro alto e de dentes

muito, quase exageradamente brancos, disse, enquanto

mastigava um chiclete ruidosamente.

— Quem? — Ele olhou ao redor como se procurasse por

ele.

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Joshua deu de ombros, olhando para o policial

com um sorriso triste.

— Ele disse que o nome dele era Joey, mas quem pode

saber?

Um dos policiais gritou do quarto:

— Há um verdadeiro massacre aqui, J.

— Ambulância. — Pediu um dos policiais, ao telefone.

— Prédio Esperança, quinto andar, apartamento 23.

Assassinato.

Mabel sentou-se ao lado de Joshua.

— Acho que vão achar que fomos os responsáveis. —

Falou, em tom baixo, mas alto o suficiente para que o

policial negro a escutasse.

Joshua não respondeu. Um dos guardas disse:

— Queiram me acompanhar, por favor.

Joshua levantou-se, seguindo-o até a porta.Deu

uma última olhada na direção do quarto, mas de sua

posição não pôde ver o corpo de Heather.Lembrou-se

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da primeira vez que ela viera ao apartamento, para

pedir ajuda com as mudanças.Gostaria que isso nunca

tivesse acontecido.Relutava em admitir que não via

coincidência alguma nas sequências dos fatos ao longo

dos últimos dois anos.

O mais estranho era que já não sentia mais

medo, dor ou tristeza. Sim, é claro que deveria sentir

alguma coisa.Devia estar morto, pois não era capaz de

sentir nada.

Capítulo Doze

A delegacia estava apinhada. A

recepcionista não parava por um segundo

sequer.Atendia ligações, digitava no computador, e

tentava acalmar uma senhora histérica que chamava por

sua filha.Sem dúvida,a jovem e recém formada policial

teria um colapso a qualquer minuto.

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Mabel ouviu parte da conversa de pessoas que

discutiam quase animadas sobre um assalto acontecido

há poucas quadras dalí.Aguardavam também, e

gesticulavam muito. Cada uma contava a parte que

tinha testemunhado.Diziam que o assaltante tinha se

desesperado ao invadir uma das casas da 52 Boulevard.

O alarme começou a tocar. Ele disparou contra todos

que estavam na rua, uma quantia de pessoas

considerável. Muita gente tinha saído de suas casas para

ver o que tinha acontecido na grande e reservada

mansão, cujos donos eles nem ao menos conheciam.

— Foram cinco baleados. — Disse um gorducho careca,

também naquele tom de quem assistiu a um

horripilante filme de terror, e tem ansiedade de contar

aos amigos o que tinha visto. — Parece que já morreram

dois.

O sofá de couro preto era desconfortável. Talvez

isso fosse proposital, ela pensou.O desconforto podia

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causar certa pressão nas pessoas que aguardavam

ali.Testemunhas ou criminosos, eles pensariam bem

antes de mentir e complicar as situações policiais,

correndo o risco de terem que aguardar novamente.

”Oh, eu não matei Ted”, diria o acusado. ”Não

matou?Aguarde um momento mais,vamos checar se

sua declaração é verdadeira. ”Ela ajeitou-se, trocando as

pernas de posição.Já estava ficando cansada de esperar.

— Não morreu ninguém por enquanto. — Disse o

interlocutor do baixinho,um homem alto e grisalho, que

usava chinelos e bermuda, provavelmente saído da

cama ao ouvir a confusão na vizinhança. — Não

morreu ninguém, ainda. — Ele enfatizou sua afirmação,

com ar de quem entende do assunto.

— Minha nossa... — Exclamou o Gorducho, pensativo,

acariciando a barba grisalha.— Como isso foi acontecer,

assim, tão perto de nós e das nossa famílias?

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— E sempre pensamos que nunca vai acontecer com a

gente... — Disse o outro.Mabel sorriu intimamente.Os

seres humanos são todos iguais. — O que será que

acontece com uma pessoa assim? O que se passa por sua

mente numa hora dessas?— Disse, com ar reflexivo,

sem realmente esperar resposta.

— Deve ser algum tipo de maníaco, psicopata.

— Matar assim... por nada.

Mabel percebeu que Joshua ouvira a conversa

e recomeçara a chorar.Ela interrompeu os dois homens,

que se voltaram pra ela, surpresos com sua intromissão

— Ele matou para defender seus próprios

interesses.Talvez sua própria vida.

O Gorducho pareceu disposto a discutir o

assunto com Mabel.

— Ele queria dinheiro, garota.

— Seu amigo disse que ele matou por nada. — Ela

referiu-se ao Grisalho, que agora tinha um ar

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zombeteiro, e dava um meio-sorriso na direção dela. —

Se ele matou por dinheiro, foi por alguma coisa, certo?

— Por uma coisa completamente sem valor, menina. —

Ela notou que ele usava a palavra menina para lembrar-

lhe que ela era mais jovem do que ele, portanto, menos

experiente.

— De qualquer forma,o motivo é real, ele existe! Acho

que vocês, humanos, julgam demais.

— Talvez você esteja certa. — Disse o Grisalho, olhando

diretamente para ela. — Ele teve um motivo. Ainda que

um motivo nada justo, um motivo. Mas e as pessoas que

matam por prazer?

Ela sorriu.

— Então o motivo será o prazer.

— Considera isso um motivo? — O Gorducho

perguntou, perplexo.

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— Talvez não um motivo justo. — O Grisalho

respondeu por Mabel. — Mas ainda assim um motivo,

não é? — Ele buscou a confirmação dela.

— Pode não parecer justo pra você.

— Parece justo pra você? — Ele perguntou..

— Depende...De qualquer forma, pelo que ouvi dizer,

esse tal assassino não matou por dinheiro.Mas por

medo.

— Sim. — O Grisalho concordou. — De certa forma.

— Sua intenção era de início assaltar a mansão.Roubar

de ricos...

— Não justifica. — Disse o baixinho gorducho, um tanto

nervoso.

— Não quero bancar a advogada do diabo, e de

qualquer forma, justificar o tal assassino.— Ela sentiu-se

defensiva.

— De uma forma estranha. — Admitiu o Grisalho. —

Entendo o que quer dizer.

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— Acontece — Ela prosseguiu o raciocínio. — Que ele

teve medo. Matou por medo. Talvez nem tivesse tido

intenção de matar.

O gorducho fez sinal de ‘besteira’com a

mão. O Grisalho riu.

— Acha mesmo que ele não teve a intenção de matar?

— Desafiou o Gorducho. — Acredito que não passa de

um psicopata!

— Pode ser... — Reletiu o Grisalho, olhando mais

atentamente para Mabel. Voltou-se para o Gorducho. —

Talvez até o advogado dele alegue insanidade na hora

do crime.

— Todos somos doidos de vez em quando.O problema

é qual será a intensidade e a frequência que a loucura

virá.— Ela concluiu.

— O que fez para estar aqui? — Ele perguntou, mas ela

não sentiu acusação na pergunta.

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— Sou suspeita de assassinato com requintes de

crueldade.

Ele sorriu, e ela sentiu algo como

desconfiança naquele sorriso.

— E você é uma assassina ?

Ela decidiu que gostara dele.Tinha algo nele

que lhe chamara a atenção, sem que ela pudesse

identificar exatamente o que era.Uma pena que aquela

fosse a primeira e última vez que o veria.

— Não. — Ela respondeu, com um sorriso direto para

ele. — Pelo menos até que provem o contrário.

Um policial chamou o nome de Mabel.Era

hora de ir á sala do delegado depor, sua vez de explicar

cada detalhe de seu próprio filme de terror.

Ela não se despediu dos dois homens, mas

percebeu que o Grisalho a acompanhou com os olhos

até perdê-la de vista.

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Aguardando sua vez de ser chamado, Joshua

ponderava se tudo o que tinha acontecido não passaria

de um sonho. Lembrava-se com clareza de um pesadelo

que tivera quando ainda era menino. Sonhara que tinha

ouvido gritos vindos do quarto de sua mãe. Ele

levantara-se da cama, e saíra do quarto que dividia com

seu irmão mais velho. Apesar dos gritos serem

altíssimos, a ponto de explodir os vidros da janela — ou

teria sido o vento tempestuoso que o fizera? —Albert

não acordara. Joshua seguiu hesitante pelo corredor que

o levaria ao quarto de sua mãe, mas estacou no meio do

caminho.De onde estava, ele conseguia ver o corpo

ensanguentado dela, refletido no espelho. A porta tinha

sido deixada aberta. Ele recuou, e começou a

gritar.Alguém invisível começou a sacudi-lo pelos

braços.Ele abriu os olhos e deparou-se com Albert, de

expressão preocupada.Levantou-se da cama, sem se dar

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ao trabalho de responder ao irmão se estava

bem.Correu ao quarto da mãe, e abraçou-a.Ela deveria

ter ficado sem entender, pois, envergonhado, ele

recusou-se a explicar o que tinha acontecido.Decidira-se

então a nunca mais assistir escondido aos filmes do

irmão mais velho.

Joshua sorriu consigo mesmo.Quando

pequeno, estava proibido de assistir filmes de terror.

Mas Albert era um verdadeiro fã do gênero e assistia a

todos que saíam do cinema — Por ser menor de idade e

não poder entrar desacompanhado nas salas escuras.

Joshua escondia-se então no topo da escada da sala de

estar, oculto pelas sombras. Dalí ele conseguia assistir

tudo pelo reflexo que a televisão fazia no vidro

espelhado da janela sem cortina.E então, tinha

pesadelos...

Talvez fosse isso, ele disse para si

mesmo.Quem sabe ele não acordaria a qualquer

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minuto, só que dessa vez em seu apartamento solitário?

Teve vontade de fechar os olhos com força.Teve

vontade de abrir um buraco na própria mão utilizando

apenas a caneta esquecida sobre a mesa da

secretária.Queria matar Joey.Queria matar alguém.

Mabel voltou da sala do delegado, e Joshua

não teve idéia de quanto tempo tinha se passado desde

que ela abandonara aquela conversa estúpida e

completamente sem sentido, com dois desconhecidos.

Ele foi chamado para depor.

Antes que ele seguisse o guarda

uniformizado que o guiaria , Mabel abraçou-o pelos

ombros.Ela disse, numa voz audível apenas para ele.

— Não sabemos o que o assassino queria com nós ou

com Heather.A primeira vez que o vimos foi hoje.

Estamos tão confusos quanto eles.

Ela largou-o e disse numa voz chorosa:

— Vai com Deus, Jos. Tudo vai ficar bem.

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Assim que ele entrou na sala, o delegado

pediu que ele se sentasse. Era magro, porém forte.Tinha

olhos azuis apagados, e o nariz levemente torto.Sua voz

não combinava com sua aparência. Fina demais para

um homem com aquele porte.Joshua poderia tê-la

achado engraçada.

— Então — Ele começou. — Pode me dizer o que

aconteceu? — Ele não esperou resposta. — Por que está

aqui, sr.Dunne?

Joshua reparou que o delegado não tinha

fotografias de sua família em sua escrivaninha, e por

algum motivo, ficou decepcionado.Talvez ele quisesse

evitar que os criminosos vissem sua família.Claro, fazia

sentido a ausência de fotografias naquela sala triste. Ou

então o motivo pudesse vir a ser outro.O delegado não

queria que seus visitantes soubessem que ele também

era humano...

Vai ver o delegado não tivesse família.

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Ele demorou a responder.

— Eu saí de casa...Acho que passava das sete... Acho.

A porta abriu-se.Um homem de

aproximadamente quarenta anos entrou.Vestia uma

camisa social, mas combinava-a com tênis e calça

jeans.Parecia um pouco cansado.

— Teria sido melhor esperar por mim, Gerald. — Ele

declarou, mais animadamente do que sua aparência

parecia permitir. — O trânsito — Ele justificou, mais

para Joshua do que para o delegado. — Crews está

vindo. — Ele riu. Pedi que estacionasse o carro para

mim. — Tomou a cadeira ao lado de Joshua. Exclamou:

— Puxa, que frio!

— Acredito que vá esperar seu colega para entrevistar

o Sr. Dunne.

— Oh sim, claro.

— Então faça o favor de fazê-lo em sua sala.

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O homem que Joshua identificara como o

detetive levantou-se da cadeira.

— Certo, excelência. Só vim para cá porque Maggie

disse que você estava com nosso prezado amigo.

— Estava lhe adiantando um favor, Hooper.Achei que

não pudesse vir mais por hoje.Você e Crews.

— Estou absolutamente ciente disso. — Fez um sinal

para que Joshua o seguisse.

Joshua obedeceu.O detetive Hooper o levou

até sua sala.Era muito menor em relação á outra. Ficava

quase escondida no final do corredor principal da

delegacia.

— Minha sala... — O detetive enfatizou com ironia.

Apontou uma cadeira para Joshua. —Pode sentar-se.

Pegou uma garrafa de uísque, e despejou

uma dose generosa em um copo pequeno.Ofereceu-o a

Joshua com um gesto. Ele recusou com um aceno de

cabeça.

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— Parece que não teve uma noite que se possa chamar

de boa, não é?

Joshua não se deu ao trabalho de

responder.Sabia o que viria a seguir.O interrogatório.Na

adolescência passara por um interrogatório policial,

quando tinha sido pego fazendo alguns favores com

drogas para uns amigos.Tudo tinha acabado quase bem

no final, a não ser pelo castigo parcialmente não

cumprido de sua mãe.

Não demorou muito, o colega do detetive

entrou na sala.Carregava uma pasta de arquivos, e

colocou-a em cima de uma das duas mesas do recinto.

Cumprimentou Joshua com um leve aceno de cabeça,

sem parecer realmente notar sua presença.

— Karl me arrumou aqueles documentos. — Ele disse

ao parceiro. — Acredito que minha mãe pare de

reclamar agora. — Ele sentou-se na cadeira atrás da

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escrivaninha, esticando as pernas. — É...Espero que ela

pare um dia de me encher o saco.

Hooper sorriu.

— As mães nunca param de encher o saco.

Joshua remexeu-se nervosamente na

cadeira.Queria ir pra casa.Então pensou em seu quarto,

agora ensanguentado.’Aquela não é minha casa’.

— Bom — O outro começou.Vestia uma roupa parecida

com a de seu amigo, mas ele era ainda mais alto.Tinha o

rosto avermelhado, como se estivesse o tempo todo

ruborizado. — Esse aí é quem?

O detetive Hooper esperou que ele

respondesse, mas Joshua não o fez.

— Esse é Joshua — Apresentou Hooper. — Ele veio

aqui nos falar sobre um assassinato que aconteceu em

sua própria casa.

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Ele imaginava quem representaria os papéis

de detetive bom e detetive mau naquela cena. Tinha um

palpite.

— Parece que a garota já deu o depoimento pro

estimado delegado. — Disse o parceiro de Hooper.—

Não sabia que o tio Gerald era agora detetive.

Hooper deu uma risada escandalosa.

— Nem eu... — Ele olhou para Joshua. — Mas vamos

ao que interessa. — Pode nos dizer exatamente o que

aconteceu?

Joshua respirou fundo.

— Eu não sei, nem imagino porquê ele fez isso. —

Começou, percebendo tarde que tinha sido defensivo

demais.Passou a escolher as palavras com

cuidado.Pensou nos detetives que via nas séries

policiais de tv que assistia com devoção. — Tudo que

sei é que ele queria que eu visse.

O detetive Crews interrompeu.

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— Por que não começamos do começo, Joshua? Quando

e sob quais circunstâncias conheceu a vítima?

— É assim mesmo. — Hooper explicou. — O nome

dele é Harry Crews, como o escritor.Gosta de

histórias,entende?

Joshua sentiu-se incomodado por ouvir o

detetive chamando Heather de vítima.

— Conheci Heather há muito pouco tempo, cerca de

um, dois meses.Ela era minha vizinha, e pediu que eu a

ajudasse com as mudanças.

— Então, vocês começaram a namorar. — Concluiu

Hooper.

— Algum tempo depois. — Ele tentou lembrar-se

exatamente de quando, mas sua mente parecia recusar-

se a colaborar

— Quando começou a primeira briga? — Hooper sorriu,

amigável. — É normal e até saudável haver brigas em

relacionamentos amorosos.Fazem-nos amadurecer.

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Joshua balançou a cabeça em negativa.

— Não posso nem imaginar Heather em uma discussão

com alguém.Mesmo se isso fosse possível, não tivemos

tempo.

— Então, responda-me. — Disse Crews. — Se era tudo,

assim, tão perfeito, por que você tem um caso com ... —

Olhou para Hooper á procura de ajuda.

— Mabel Gibbs. — Ele acudiu.

Joshua deixou-se parecer confuso.

— Mabel e eu nunca tivemos nada. Somos amigos.

— Tudo o que disser vai contribuir apenas para

descobrir o assassino de Heather, e prendê-lo.Acredito

que seja isso o que você deseja.

Antes de responder, Joshua respirou

fundo.Tinha começado as acusações que ele sabia serem

inevitáveis.Nunca se sentira tão esgotado.

— Eu sei que acham que estou mentindo, mas quero

tanto quanto vocês que o maldito assassino seja

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castigado, de preferência executado numa cadeira

elétrica. — Ele deixou que a emoção sincera

transparecesse, sentindo que começaria a chorar.

Hooper disse:

— Então nos conte quem é Mabel para você.

— É uma amiga, já disse.Nunca rolou nada entre a

gente.Absolutamente nada.Nós nos conhecemos pelo

Orkut, e nos encontramos pessoalmente há pouco

tempo, também — Pensou na aliança que tinha visto na

mão dela na primeira vez que se viram. — Acho que ela

tem namorado.

— Você acha? — Crews perguntou.

— Não somos tão amigos assim.Coincidiu de termos

nos encontrado justo nessa noite.

— E como foi que encontrou Heather morta ? — Hooper

indagou.

— O cara me ligou. No celular. Falou que estava com

Heather, na minha casa.Eu acreditei porque era o

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número do meu telefone registrado na bina. O telefone

do meu apartamento.

— E você não pensou em chamar a polícia?

Joshua deu de ombros.

— Não sei, estava tão atordoado...

— E o que ele fez quando você e Mabel entraram no

apartamento? — Crews quis saber.

— Começou a falar coisas sem sentido.Disse que

mataria Heather, e não havia nada que eu pudesse

fazer.

— Se não havia nada que você pudesse fazer, por que

acha que ligou para você?

— Você sabe como são esses psicóticos, psicopatas.

Precisam de platéia. — Ele teve que recuperar o fôlego

novamente. — Depois, começou a chorar...

Completamente insano.

— Quando chegou, a mão da vítima já tinha sido

decepada, certo? — Hooper falou.

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— Certo. — Joshua se apressou para terminar a

história. — Então, ele ficou ameaçando.Eu tinha uma

arma guardada há muito tempo. Nunca achei que fosse

usá-la realmente... Estava com Mabel.

— Sim.— Confirmou Hooper. — Os tiros disparados

foram da 9mm parabellun que estava com a garota.

— Acho que ela acabou se desesperando. — Ele

continuou, sentindo o ódio , lembrando do instante que

Joey matara Heather. —E disparou.Acho que isso

assustou o assassino,e ele adiantou o serviço.

— Vocês chamaram a polícia, então?

— Mabel correu atrás do maluco, mas acho que não o

alcançou. Então a polícia veio.Provavelmente algum

vizinho que ouviu os tiros.

— E isso é tudo? — Hooper quis confirmar.

— Tudo que sei e vi.

— Saberia me responder se Heather tinha inimigos?

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— Ela tinha vindo do interior há pouco tempo.Morava

com a família em uma casinha na fazenda. Não tinha

inimigos por lá, pelo menos não que tenha me contado.

— Ele pensou melhor. — Tenho certeza que ninguém

poderia odiá-la.

— Ela conhecia alguém na cidade? — Crews indagou.

— O pessoal do prédio.Era muito desinibida, fazia

amizades fácil.Mas fora do prédio,eu não sei.Não saio

muito de casa.Trabalho no meu apartamento.

Hooper sorriu.

— É seu próprio patrão.Quem me dera...

— E ela? — Crews perguntou. — O que fazia?

— Também trabalhava em casa, era escritora. Escrevia

romances.

— Acredito que ela tenha um agente na cidade.

— Era... — Ele puxou pela memória.. — Robert alguma-

coisa.

Hooper levantou-se.

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— Por enquanto é só. — Declarou. — Mas acredito que

você tenha que esperar por um tempo. Estaremos indo

ao seu apartamento agora.

Crews completou:

— Se nos der sua permissão.

Joshua assentiu vagamente.

— A última coisa que gostaríamos de perguntar por

enquanto — Crews avisou. — É como se parecia o

assassino. Se você chegou a ver seu rosto.

Era algo que ele adoraria não se lembrar.

— Ele tinha mais de um e oitenta de altura, era meio

forte, entende? Meio musculoso. Acho que olho dele era

verde, talvez azul.

Ele parou. Hooper exortou:

— Se lembra da roupa que ele vestia?

—Uma camisa preta, estava escrito alguma coisa...Acho

que em vermelho.Talvez vestisse calça jeans, mas disso

não tenho certeza.

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Hooper abriu a porta e fez sinal para alguém

do lado de fora. Apenas alguns segundos depois,um

guarda uniformizado apareceu na porta.

— Mark vai acompanhá-lo, Joshua.

Joshua seguiu-o até uma sala menor do que a

recepção.Estava um pouco abafado por causa do grande

número de pessoas sentadas nos bancos espalhados

pela sala.Um ventilador de teto estava ligado.

O guarda fez um gesto para que ele se

sentasse para esperar seja lá o que fosse.

Joshua escolheu um banco de dois assentos

vazios, encostado á parede. Fechou os olhos, mas a

imagem de Heather morta e presa á cadeira de seu

próprio quarto tornou-se mais nítida, e ele tornou a

abri-los.

Estimava que houvesse cerca de dez pessoas

na sala, além do guarda na porta.Todas tinham a

mesma expressão preocupada e entediada. Apenas dois

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homens conversavam baixinho, mas Joshua tinha a

impressão de que não se conheciam de outro lugar.

Imaginou onde Mabel estaria, e quanto tempo

demoraria para que o deixassem sair dalí.Começou a

sentir frio, e desejou que o ventilador estivesse

quebrado.

Ele olhou no relógio tantas vezes que perdeu

a conta.Outro guarda chamou seu nome.

Foi-lhe oferecido café e bolachas, mas apesar

da fome que sentia não foi capaz de comer. Isso só

colaborou para deixá-lo com mais dor de cabeça.

Pediram para que ele descrevesse o assassino

para que um especialista o desenhasse, e assim

facilitasse o trabalho da polícia. Disseram-lhe que não

saísse da cidade até que a investigação estivesse

concluída. Ele imaginou porquê o faria. Deixou a

delegacia, sentindo-se tonto.Ir pra casa. Ele não tinha pra

onde ir.

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Mabel chegou em casa pouco mais de

quatro horas da manhã. Tudo estava silencioso,e ela

subiu as escadas na esperança de que ninguém a

ouvisse chegar.

Quase deu um encontrão com o pai.

— Posso saber onde você estava? — Ele perguntou, com

a raiva controlada que ela conhecia.

— Na casa de uma amiga.

— O que nós conversamos sobre ficar até tarde em

festas, Mabel? —Ele disse, encostando-se com punhos

cerrados no batente da porta do quarto. Começava a

elevar o tom da voz.

Ela riu em voz alta.

— Festa? Certo, papai...Sinto muito por isso, falou?

Seguiu para o quarto dela, mas ainda deu

tempo de escutá-lo murmurando antes de

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descer.Provavelmente estava indo beber água, como

fazia todas as noites, por causa do diabetes.

— Conversaremos sobre isso amanhã.

Ela vestiu o pijama de estampas infantis, e

deitou-se na cama. Mas sentia-se excitada demais para

dormir.Desistiu de tentar e resolveu fazer um lanche na

cozinha.

Observou a rua deserta da janela da

cozinha, enquanto mordia o pão com manteiga,

pensativa.O sol não demoraria para nascer.

Pobre Heather...Orgulhou-se de sua

própria compaixão.Tivera que morrer para que a vida

de Mabel tivesse um pouco de ação de verdade, sem

fantasias paranóicas. Ele não deveria demorar para vir

atrás dela e de Joshua. Mas dessa vez ela não

fracassaria. Só seria uma pena se a polícia o pegasse

antes dela.

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Não tinha dado muita informação ao

delegado, e posteriormente aqueles dois idiotas auto-

intitulados detetives. Resumira o que tinha

visto.Achava difícil que eles chegassem ao Death of

Patience com as poucas coisas que ela declarou saber.

Esperava que Joshua tivesse feito o mesmo.Ele tendia a

ser inseguro e medroso.

Terminou de comer o lanche e foi pra

cama.Ficou lendo um romance policial e parou quando

amanheceu.

Saiu de casa, ignorando a saudação de bom

dia de Pebble. Andou pela rua olhando atentamente

para os transeuntes estranhos. Joshua não deveria ter

voltado pra casa. Precisava dar um jeito de descobrir

onde ele estava.

Capítulo Treze

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Joshua despertou da noite mal dormida com a

dor de cabeça do dia anterior. Ainda vestia a mesma

roupa.Realmente precisaria ir para a casa, se o

apartamento ainda não estivesse interditado. Não, ele

repensou. Não voltaria para a prisão que tinha chamado

de lar nunca mais.

O quarto de hotel era limpo e bem arrumado,

mas pouco mobiliado. Não havia nada mais do que a

cama de madeira antiga, e o criado-mudo onde ficava o

abajur. De qualquer maneira, tinha servido bem aquela

noite.

Levantou-se, sentindo-se estranhamente

dolorido. Foi ao banheiro escovar os dentes com a

escova improvisada, depois saiu, adiando o café para

mais tarde.Só depois de estar na rua ele percebeu que

não tinha pra onde ir. Seguiu para a delegacia.

A recepcionista não era a mesma da noite

anterior. Era uma garota um pouco jovem demais, com

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olhos simpáticos que não combinavam com tudo ao

redor. Olhou para ele quando ele entrou. Devia ter

reparado em suas roupas amarrotadas e com manchas

de sangue.

— Preciso falar com o detetive Hooper.

— Qual é o seu nome?

— Joshua Dunne.

Ela acenou ‘um momento’ enquanto pegava o

telefone. Observou as próprias unhas pintadas com ar

crítico. Digitou o número do ramal.

— Um tal de Dunne quer falar com você. — Ela olhou

para Joshua novamente, especulando. Deu um sorriso

para ele. — Certo. — Ela repôs o fone no gancho. — Ele

disse que você sabe onde é a sala dele.

—Não, só quero saber se posso ir pra casa.

Ela ficou confusa.

— Pode ir perguntar pessoalmente.

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Voltou ao trabalho que estava fazendo no

computador.

“Droga”, ele murmurou, e seguiu pelo

corredor até o final. Encontrou o detetive Crews

fumando um cigarro na porta da sala.

— Cohen está lá dentro. — Ele disse, como se a sala

fosse grande o suficiente para que Joshua não pudesse

vê-lo.

— Só quero saber se posso ir pra casa. — Ele quis que o

policial notasse seu cansaço.

— Ir pra casa? — Hooper surgiu. — Sabe que tem um

assassino á sua caça, e o primeiro lugar em que vai

procurá-lo será na sua casa?

— Não me preocupa. Não estou com medo.

— Isso é muito corajoso da sua parte. — Declarou com

evidente ironia. — Mas a mim preocupa. Entre.

Ele pediu que Joshua sentasse, e foi-lhe

oferecido uísque novamente. Dessa vez, Joshua aceitou.

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— O nome dele é Nicolas Farkas. É um psicótico.

O detetive estava sendo direto. Joshua

gostou disso.

— Ele trabalha com a mãe, num escritório de

contabilidade.

— Certa vez ouvi dizer... — intrometeu-se Crews.

Fechou a porta atrás de si, abandonando a fumaça de

cigarro do lado de fora. — As pessoas que trabalham

com números o dia todo, têm direito de tornar-se

assassinas, ou suicidas. O juiz diria: “Você é acusado

pela morte dele”. Mas o advogado responderia: “Vossa

excelência, meu cliente é contador”. — Ele imitava a voz

dos personagens, e riu da própria piada. — “Oh,

desculpe o incômodo, senhor. Está liberado.’”.

Tornou a rir. Joshua nunca sentira tanto

ódio de uma pessoa em toda sua vida. Hooper sorriu, e

continuou:

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— Conversei com poucas pessoas, mas todas disseram

que ele é um tipo estranho. Uma cliente do escritório

disse que é um rapaz muito simpático e prestativo, mas

tem uma estranha mania de levar as mãos á cabeça, e

soltar ruídos estranhos quando se irrita com barulhos

agudos. — A risada de Crews encheu a sala. — Achei,

particularmente, um comentário estranho da velha

senhora, mas isso está me levando á algum lugar. O

motivo do assassinato.

Crews disse:

— É assim que o Dr. Psiquiatra Cohen conclui que

nosso amigo é alguma espécie de psicótico.

— Exato. — Concordou ele. — Mas isso é tudo que

consegui por enquanto.

— E agora temos algumas perguntas pra você. — Crews

puxou uma cadeira á sua frente. — Conhece alguém da

contabilidade Pôr-do-Sol?

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Ele não fazia idéia e balançou a cabeça em

negativa.Não ajudaria em nada. Pelo contrário, ele sabia

de tudo, mas nada diria.

— Tem idéia de onde possamos encontrar o agente da

sua namorada? —Indagou Hooper. — Estamos partindo

da idéia de que Farkas possa conhecê-la dessa

contabilidade.

— Sério — Joshua não respondeu na pergunta. — Eu só

quero ir para casa.

— Estamos confiando em você. — Hooper disse. —

Queremos que saiba de tudo, por que achamos que você

pode ter a chave desse mistério, e talvez nem saiba

disso.

— Como sabe que não fui eu que a matei? — Indagou,

com sincera curiosidade. — Poderia ter sido eu.

— Não, não poderia. — Crews discordou, sem achar

estranha sua pergunta. —Foram comparadas suas

impressões digitais e as da outra garota. Elas não

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conferem na faca que matou a vítima. — Joshua não

sabia que o assassino acabara deixando a faca no

apartamento.Imaginou se ele queria ser encontrado. —

Havia realmente uma terceira pessoa na casa.

Hooper disse, mais afirmando do que

perguntando:

— E você não tinha motivos para matá-la, tinha?

Joshua levantou-se, indicando que a conversa

tinha terminado.

— Não — Respondeu. — Obviamente não.

— Não pode ir para casa. — Hooper admitiu. — Não

por enquanto. Você e sua amiga continuarão no hotel.

— Por favor... Eu só quero ir pra casa.

Foi Crews quem assentiu, depois de um

rápido olhar na direção de Hooper.

— Bom, então a responsabilidade será inteiramente sua.

Ele se sentiu grandemente agradecido pelo

policial.

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—Valeu.

Antes que ele saísse, ouviu Hooper insistir:

— É melhor ser muito cuidadoso.

Pegou um táxi de volta para casa. Nicolas

Farkas.Ficou pensando na conversa com os detetives em

todo o caminho de volta.

A passos largos, Mabel sentia-se

completamente perdida.Precisava encontrar Joshua, ou

a polícia pegaria o tal de Nicolas antes deles.Ela estava

ficando nervosa.Muito nervosa, admitiu á si mesma.

Onde teria o imbecil do Joshua se metido?

Fora procurá-lo naquela manhã na delegacia, mas ele

não estava, nem os detetives que estavam tomando

conta do caso. Foi á padaria tentar empurrar algo para

comer, e retornara á delegacia. Não encontrara Joshua,

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mas os detetives fizeram outra série de perguntas

inúteis. Ela respondeu á todas com impaciente

ingenuidade, e declarou que tudo que queria era saber

onde Joshua estava. Os malditos policiais não revelaram

para que hotel o tinham mandado.

Onze da manhã.

Bufou alto e começou a caminhar na direção

de casa novamente. Pensou na loja de roupas e na

patroa. Riu alto. Odiava aquele lugar, aquelas

obrigações, seu injusto salário no final do mês.

Chegou rapidamente em casa.

— Mab! — Gritou Charles, pulando para abraçá-la. —

Não foi trabalhar?

— E você não foi para a escola?

Ele deu um sorriso malicioso.

— Estou com dor de barriga.

— Sei... — Ela desconfiou, rindo.

Atraída pela risada dela, Pebble surgiu.

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— O que faz aqui á essa hora, Mab?

— Tirei o dia de folga. — Ela respondeu, recolocando

Charles no chão.

— E você pode fazer isso? — A madrasta estava

desconfiada, e Mabel teve vontade de matá-la,

igualzinho Nicolas tinha feito com Heather.

— Não é da sua conta, bruxa! — Ela gritou, virando as

costas e subindo as escadas correndo.

Trancou-se no quarto, arrancou o fio do

telefone da parede.A maldita não demoraria a ligar para

o seu pai, e contar-lhe que tinha sido chamada de bruxa.

Sentou-se na cama, batendo os pés no chão

energeticamente. ”Preciso fazer alguma coisa, preciso

fazer alguma coisa...”, ela repetia para si mesma, sem

saber ao certo a que se referia.

Levantou, soltando uma exclamação de mau

humor.Estava ficando sem ar trancada naquele

quarto.Precisava dar o fora.

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Saiu apressada, quase correndo.Trombou com

Charlie na escada.

— Olhe por onde anda! — Ele gritou, em tom de

brincadeira.

Manteve o ritmo até o ponto de táxi. Pediu que

ao motorista familiar que a levasse ao endereço de

Joshua.

Tinha sido estranho olhar para o corredor

vazio do prédio. Mais estranho ainda tinha sido fechar a

porta do apartamento, sabendo que Heather não viria

bater á sua porta. Nunca mais.

Tudo tinha acontecido rápido demais.Há

pouco mais de dois meses ele vivia literalmente

sozinho, na particularidade de seu próprio mundo. De

repente, ele se via fugindo de um medo supostamente

paranóico, e, num anticlímax, apaixonado de verdade

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pela primeira vez. Logo, seu medo se tornava real, e sua

namorada estava morta. Deixou-se cair no sofá da sala

de estar e chorou. Por tudo, ele pensou. Estava

chorando por tudo. Sua vida toda tinha sido um

completo desastre.Desde criança, exatamente como sua

mãe predissera.

Ele sentado á mesa da cozinha, com o caderno

de gramática e o lápis na mão, batendo com agitação

sobre o papel. Não conseguia decorar o que eram

palavras oxítonas, prop... Não se lembrava do resto. A

mãe esbravejou, jogando o livro escolar nele, sem que

ele tivesse tempo de desviar.

— Menino inútil!

Albert sentara a seu lado e conseguira fazer

com que ele finalmente entendesse.

Joshua terminou ficando nervoso na hora da

prova, e tirou um zero.

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Albert...Chorava por Albert. Onde ele estaria

àquela hora?

Não, ele pensou melhor. Heather não era a

primeira pessoa por quem ele se apaixonara. Houve

Margie, sua colega de classe na quinta série.Ela tinha

lhe dito que ele não era bom o suficiente para ela.

Depois de Margie, havia tido outros casos,

mas ele não conseguira se apegar a ninguém. Não

imaginava o quanto sentira falta de uma pessoa ao seu

lado até que Heather aparecesse. E fosse embora.

A campainha tocou. Dessa vez, Joshua não se

assustou.Nem se moveu no sofá.Apenas olhou de

relance para a fechadura, certificando-se de que estava

trancada. Depois de passados alguns segundos, ouviu

chamar.

— Jos! — Era a voz de Mabel. — Sou eu, abra a porta. —

Como não houve resposta, ela insistiu. — Preciso falar

com você.

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Ele continuou fitando o teto, reparando que

estava manchado. De onde poderia ter vindo aquela

mancha negra? Parecia uma infiltração. Mas seria

estranho se o banheiro do apartamento superior ficasse

logo acima de sua sala.

Novamente, tudo ficou em silêncio. Ele foi até

a janela, e abriu apenas um pouco a

veneziana.Observou a rua, procurando entre os rostos

desconhecidos.

Seu coração ficou apertado. Sabia que ele não

demoraria a vir.

Capítulo Catorze

Não, ele definitivamente não estava

satisfeito.Tentou olhar de outro ângulo, com outro

olhar, mas não conseguiu uma resposta

positiva.Pareciam-lhe apenas figuras disformes, mas

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não exatamente do jeito que ele pretendia. Era verdade

que Nicky gostava de pintar rostos indefinidos, sem

traços, objetos e paisagens que não seriam facilmente

identificadas para um expectador que não observasse

com a alma.Tinha como ídolo, e ousava dizer,

inspiração, o artista russo Kandinsky. Suspirou.O

desenho que ele esboçara antes de passar para a tela,

parecia muito melhor.

Precisava parar um pouco.Por mais que

desejasse ficar no pequeno estúdio improvisado em seu

novo quarto, era necessário dar uma parada, refrescar a

imaginação. Nicky foi á cozinha, para tomar

água.Talvez fosse o suficiente para descansar a mente.O

próprio mestre, Da Vinci, fazia seu repouso de três em

três horas, e ninguém poderia negar que o resultado de

sua mente aparentemente descansada produzia ótimos

resultados.

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Certa vez ouvira dizer que o grande Da

Vinci sofria de uma grave doença, o transtorno bipolar.

Talvez tivesse sido isso que o tinha levado para tão alto

em sua carreira...

Observou as pessoas que passavam na

rua.Todas pareciam tão insignificantes. Elas iam acabar,

sua geração ia chegar ao fim, tudo que tinham feito

seria esquecido. Lembrou-se das palavras do grande

Pregador, filho do rei Davi. Ele tinha sabido das coisas.

Mas também tinha morrido, deixado aquilo que os seres

humanos chamavam de lar.

Enfiou um cd na bandeja do rádio.A nona de

Bethoven.

Beethoven tinha sido imortalizado por suas

músicas. Ele esperava que assim acontecesse com suas

telas.Voltou ao trabalho.

Acompanhava o som da música com a

cabeça.Tinha sido um medroso, um medroso estúpido.

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Fugira, como um rato assustado.Seu único conforto era

imaginar que Joshua tinha entendido tudo com seu

aviso. Fechou os olhos brevemente. Sim, era o que

esperava.

Abaixou um pouco o volume do rádio. Estava

enganando a si mesmo. Teria que voltar ao

apartamento.Cumprir sua missão.Oh Deus, sua missão.

Por que tinha que ser tão difícil? Por tantas vezes ele

alegrara-se em lembrar que tinha sido dotado da

sabedoria, do entendimento do bem e do mal. Mas

agora, isso lhe parecia um fardo pesado demais. Não

fracassaria, se fosse realmente necessário tentar de

novo.Não permitiria dominar-se novamente.

Sim, a pintura estava legal. Diferente da arte

abstrata que ele estava acostumado a fazer, era isso que

estivera estranhando.O homem de perfil e um chapéu,

olhava para o chão, sem fitar nada realmente.Tinha as

mãos para trás, presas por cordas invisíveis.Seus olhos

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sombreados revelavam um certo vazio, um pouco de

desespero.Na janela do prédio, a cidadezinha antiga e

barrenta, uma figura parecida á silhueta de uma

mulher, observando, a expressão escondida pela

deformidade de seus traços.Ele sorriu, fitando o

personagem central.Se aquilo fosse uma reflexão sua,

imaginava estar correta.Era inconsciente no ser

humano, mas todo trabalho que se faz acaba voltando-

se para si mesmo.Naturalmente egocêntricos.

Ele ainda lembrava-se de sua primeira

pintura, e de como tinha começado. Sempre tinha sido

um bom desenhista, dono das melhores notas em sala

de aula, principalmente em Artes. Passou os esboços do

papel para a tela, e passou a conseguir dinheiro em

feirinhas de rua.

Mais do que qualquer outra coisa, aquilo lhe

trazia paz, e tirava tudo que era ruim dentro dele. E

passava a ficar pendurado na parede da sala de alguém.

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Desde pequeno, Nicky sabia que era diferente

de todas as outras pessoas. A partir do momento que se

conscientizou disso, excluiu todos que não faziam parte

de seu mundo.

O problema era que as pessoas não entendiam

ou aceitavam sua decisão. Especialmente sua mãe.

Quando Nicky fez dez anos, ela convidou

algumas crianças da vizinhança do bairro, e seus

supostos colegas de escola para uma festinha. Naquela

noite, ele resolvera ficar no quarto, estudando até a hora

de dormir.

Sua mãe ficou contrafeita.

— Está tendo uma festa lá embaixo, Nicky. — Ela falou.

— Sua festa.

— Sei disso. — Ele respondeu com simplicidade, sem

desviar os olhos do livro. Estudava sobre o habitat e o

tipo de alimentação dos animais. Um adiantamento

para a lição de Ciências.

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— Nicky... — Ela insistiu, entre paciente e

condescente. — Você precisa descer, brincar

com seus amigos... Por que não pode fazer isso

uma única vez na vida? Por mim!

Ele não podia. Sabia que se descesse no

quintal onde a festa estava acontecendo, na melhor das

hipóteses seria ignorado pelos outros meninos.Ou seria

seu alvo de piadas e brincadeiras. Não, por mais que

adorasse sua mãe, não poderia fazer aquilo por ela.

Mais tarde, aos dezesseis anos, ele passou a

entender que ela era exatamente como os outros.

Governada pelo que ele chamava de lado ruim. Já tinha

visto-na com outros homens. Outros homens tinham

tocado nela!

Essa compreensão tinha acontecido no

mesmo ano em que ele levara uma surra dos garotos da

escola. O ano em que tudo tinha mudado em sua vida.

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Foi deitado em seu quarto, com lábios e olhos

inchados, que ele entendeu. Sim, ele compreendeu o que

destrói a sensibilidade e o amor humano. A fraqueza.

Ele sabia ser forte. Sabia reconhecer o que era bom e o

que era mau, e por isso o seu lado ruim nunca vencia

seu lado bom. O verdadeiro lado.

As pessoas não tinham culpa de fazer o que

faziam.Eram assim porque não sabiam lutar contra os

próprios desejos. Exatamente como o grande sábio

japonês dissera: O fim do desejo é o fim da tristeza.O

estado de nibbana. O fim do mal. Ele sorrira, passando

os olhos pelo quarto vazio. Fez uma prece de

agradecimento.

Sua mãe entrara no quarto trazendo o almoço.

Ele perguntou:

— Você sabe que a amo, não é, mamãe?

— Claro.Também te amo.

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Ele segurou-a pelo braço antes que ela saísse

para voltar aos seus afazeres.

— Não quer conversar comigo?

— Está me machucando, Nicky. — Ela tentou soltar o

braço, mas ele apertou com mais força. Tentou livrar-se

dele, sem sucesso. — Me solte!

Ele pegou o garfo que estava apoiado sobre o

prato.

— Eu gostaria de não precisar fazer isso. — Ele disse

com sinceridade, investindo o garfo contra o rosto dela.

Por muito pouco não lhe acertara o olho.

Ela caiu no chão, tentando estacar o sangue

com a mão. Ele levantou-se com dificuldade por causa

da dor, mas conseguiu abaixar-se até ela. Levantou o

garfo novamente, ela conseguiu detê-lo, chutando o

osso da perna que tinha sido lesada durante a surra. Ele

gritou, e caiu no chão. Foi o tempo dela correr para fora

e trancá-lo no quarto.

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Sozinho ali dentro por muitas horas, ele se

arrependeu do que tinha feito. Sabia que era o certo,

mas talvez não conseguisse tentar de novo. Ele chorou.

Estava deixando que o lado ruim da sua mãe vencesse.

Estava deixando que ela saísse impune de seus pecados,

ele mesmo condenando sua alma ao inferno. Mas

quando ela entrou hesitante no quarto novamente

naquela mesma noite, o cabelo loiro preso em um rabo-

de-cavalo, ele entendeu que não conseguiria.

Abraçou-a, chorando.

— Desculpa, mamãe. Eu sinto muito.Muito, mesmo...

Ela chorou também, e ele notou que ela se

sentia aliviada.

— Está tudo bem, filho.Tudo vai ficar bem...

Por causa dele a alma dela estava condenada.

Assim que Nicky terminou a escola, sua

primeira idéia foi mudar-se de cidade. Estava realmente

cansado de morar em Los Angeles.Não havia cidade

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mais corruptível ou corrompida do que aquela. Ele

temia que pudesse vir a desvirtuá-lo também. Mas

quando ele falou disso com sua mãe, ela desaprovou

sua decisão. Tinha ficado irritadíssimo aquele dia, e

quebrara cerca de maia dúzia de pratos. Não adiantara.

Ela tinha deixado bem claro que ele ficaria.

Então ela sugerira que ele estudasse algo que

lhe interessasse, e chegou até mesmo a sugerir Artes.

Ele respondera que não, não estava interessado em

voltar a estudar, passar pela experiência da adaptação

de novo. Da rejeição de novo. Da humilhação de novo.

Trancou-se no quarto, declarando que nunca

mais sairia dali. Como a mãe não fizesse caso disso, ele

a encontrou na cozinha, fazendo o jantar. Sentou-se á

mesa, apoiando os cotovelos. Sem querer, ele bagunçava

o cabelo enquanto descansava a cabeça nas mãos, com

movimentos uniformes, mostrando certo desespero.

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— Já desceu para jantar? — A mãe perguntou, e ele

notou pela voz dela que ela sorria. — Está meio

cedo.Vai ter que esperar um pouco.

Ele soltou um grunhido alto suficiente apenas

para ela ouvir. Deixou que a cabeça encostasse na mesa.

Levantou, para bater uma colher na mesa, formando

uma música. Os sons foram ficando gradativamente

mais altos.A mãe pegou sua mão gentilmente, forçando-

o a parar.

— O que há de errado, Nicky?

— Não me sinto bem.

— Está com alguma dor?

Ele olhou para ela, de baixo para cima.

— Não... — Sua resposta soou mais como um

murmúrio.

— Então...?

Levantou-se, encarando-na com raiva.Tinha

sentido condescência em sua voz.

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Tornou a trancar-se no quarto, chorando dessa

vez. Não sabia por que se sentia desse jeito, algumas

vezes. Era um vazio, uma dor que ele não conseguia

entender. Era como se algo não se encaixasse, como se

alguma coisa estivesse errada com ele. Era natural que

ele se sentisse daquele jeito, sozinho, isolado, já que sua

missão na Terra não era a mesma dos mortais que o

rodeavam. Mas ele não podia simplesmente deixar-se

levar, era necessário manter aquela distância segura das

pessoas. Repetiu em voz alta para si mesmo que essas

palavras, aquele sofrimento era pro seu próprio bem.

Não tentaria mais se iludir, acreditando que pelo menos

sua mãe entenderia.

Mas tudo ficava pior á noite. Era a hora que o

Mal realmente vinha á tona, quando o mundo ocidental

dormia. Era mais fácil atuar na escuridão, as pessoas

estavam vulneráveis. Então, tudo o que era ruim se

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materializava e invadia mentes e corações daqueles que

não estão preparados e protegidos.

Nicky já tinha contemplado com os próprios

olhos, certa vez. Estava na cama, e ele lembrava-se bem

de ser meia-noite e trinta e dois, num sábado. Como

todas as noites, ele foi dormir ás onze horas,

pontualmente. Mas não conseguiu pegar no sono. Ficou

desesperado. Precisava manter sua alma longe daquele

mundo durante a noite para não ser pego também. Ele

sabia que quanto mais nervoso ele ficava, menos

conseguiria dormir. Mas não conseguia controlar-se.

Começou a rezar, mas daquela vez não adiantou. Então,

ele viu.

Era apenas uma sombra, uma sombra vaga e

indefinida. Exatamente como ele tinha imaginado. Ele

via claramente, iluminada apenas pela luz amarela do

abajur. A criatura saiu de debaixo da cama. Subiu á

superfície, como se emergisse do subsolo e chegasse até

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ali. Olhou fixamente para ele, o rosto indefinido,

retorcido num meio sorriso, que poderia ser

interpretado como uma expressão de dor. Mas não se

atrevera a chegar perto. Apenas o ameaçara. Era o

aviso.O primeiro, o último.

Assim que a criatura saiu, desaparecendo pela

janela fechada, ele levantou-se da cama. Correu até a

cozinha, na impressão de que encontraria outra delas

pela casa. Abriu a geladeira com os olhos semicerrados

porque não queria ver, tateando pela escuridão quase

completa. Sabia que eles o veriam, mas pelo menos ele

não os veria. Apanhou a garrafa de uísque que a mãe

deixara pela metade na semana anterior, quando

recebera alguns amigos em casa. Deu três goles grandes

e apressados, para depois correr de volta para o abrigo

de sua cama, de olhos bem fechados.

Depois daquela noite, beber algo antes de

dormir tornou-se um hábito para evitar que acontecesse

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de novo. Mas como ele sabia que a mãe implicaria se

descobrisse, escondeu a garrafa no armário de seu

banheiro particular.

Ele sabia que tinha acontecido por um deslize

seu. Estava com a fé um pouco fraca, e talvez devesse

ter se esforçado mais para conseguir dormir. Pensado

em coisas boas, era o conselho de sua mãe. Ela dizia

isso, nas noites mal dormidas de sua infância. “Pense

em coisas boas que te aconteceram, ou que gostaria que

acontecessem”. Então ele pensava nela, em seus

passeios juntos em suas conversas, em suas risadas.

Eram quase oito horas da noite.Talvez o jantar

estivesse pronto.Ele desceu, receoso de que a mãe

pudesse perguntar de novo por quê ele não se sentia

bem. Estava arrependido de ter mencionado aquilo para

ela. Se fosse obrigado a contar-lhe tudo, ela acharia que

ele estava louco. Ele a compreendia, apesar de desejar

que ela, entre todos os outros, entendesse.

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Tornou a sentar-se á mesa, dessa vez mais

calmo. A mãe já tinha preparado o prato para ele, e

serviu-o, sentando-se á mesa também.

— Estive pensando, Nicky.O que acha de vir trabalhar

comigo? —Essa era uma das qualidades de sua mãe.

Agia como se nada tivesse acontecido. — O que acha?

Mas apenas se você quiser.

Algumas vezes, ele visitara o escritório de

sua mãe.Tinha observado a mãe e os empregados

trabalharem, e tinha achado interessante. Pedira para

uma das garotas para que o ensinassem algumas coisas,

e ele aprendera com facilidade. Tinha gostado. Exigia

concentração, e isso deixava sua mente livre de coisas

ruins.

— Pode ser bom para você. — Continuara a mãe,

levando o garfo com macarrão na boca. Era o preferido

de Nicky, em formato de estrelas ou carrinhos. Ela

enfatizou o que já tinha dito. — Só se você quiser.

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— Está certo. Quando eu começo?

Ela sorriu, inclinando-se um pouco para fazer

carinho no cabelo dele.

— Pode começar amanhã.Tem muita coisa que você vai

precisar aprender.

Ele pegou a mão dela, em retribuição ao

carinho.

— Acho que eu vou dar conta.

Tinha certeza que daria.

Depois de três anos trabalhando no escritório

de sua mãe, ele conheceu Laura. Ela tinha um ano a

mais do que ele. O cabelo loiro, a pele quase morena, e

olhos azuis brilhantes. Estava sempre sorrindo quando

ia ao escritório, e Nicky admitiu desde a primeira vez

que a vira que estava apaixonado. Lembrava-lhe muito

sua própria mãe.

Ela era neta de um dos clientes do escritório

de contabilidade, e ele já falara com ela por telefone

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algumas vezes. O avô dela era dono de um açougue, e

ligava muitas vezes por semana, com assuntos que

muitas vezes não tinha a ver com contabilidade. Mas

Nicky sentia pena por ele ser um senhor de idade, e não

entender muito da vida moderna. Explicava-lhe sobre

os mais variados contextos, respondia perguntas. Certa

vez o ajudara a passar um e-mail, dando-lhe as

coordenadas por telefone, e outra vez o acalmara,

falando com ele enquanto ele se escondia no banheiro,

ao ter avistado um possível assaltante que entrara na

loja.

Laura começara a aparecer de vez em quando

no escritório quando assumira o negócio do avô. Para

que ele pudesse ficar mais sossegado, ela dissera. Ele

andava alterando-se demais nos últimos meses, chegara

a gritar várias vezes com clientes. Nicky sentiu-se grato

por trocar o velho pela garota.

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Mas ela parecia nunca tê-lo notado.Tudo o que

fazia era cumprimentar-lhe, como fazia com todos os

outros funcionários, depois ia discutir seus negócios

com sua mãe. De algum jeito, ele precisava que ela o

percebesse.

Começou a conversar com ela, escolhendo um

assunto qualquer, tentando parecer confiante, ao

mesmo tempo em que tinha medo que ela não

conversasse com ele. Mas tudo aconteceu melhor do

que ele esperava. Notou que ela passara a vir mais

vezes ao escritório, obviamente inventando motivos.

Sua mãe também tinha percebido

— Ela gosta de você, Nicky. — Ela dissera, ao fim do

expediente. Ele sentara-se na cadeira á frente da

escrivaninha da mãe, apoiando os pés sobre a mesa.

— Acha mesmo? — Ele mais afirmou do que

perguntou, num meio sorriso.

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Ela assentiu, inclinando-se sobre a mesa, com o

queixo apoiado nas mãos.

— Você gosta dela?

Ele deu de ombros.

— Ela é legal.

— Sei... — Riu, incrédula.

— Está certo, talvez eu goste mesmo dela... E o que é

que tem? — Ele sorriu.

— Nada demais, Nicky. Pelo contrário. Acho ela uma

moça bem simpática. E tem uma boa família.

— É...Claro.

— Fico feliz por você.

Ele sabia que isso significava muito mais pra

sua mãe do que ela deixava transparecer. Podia vir a ser

sua cura. Ele sabia disso porque há alguns anos atrás a

ouvira conversar com uma tia distante, logo após uma

discussão á toa que eles tiveram. Nicky não se lembrava

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mais do motivo, mas recordava-se de ter derrubado a

televisão no chão.

— Tem algo de muito errado com ele, Sarah. — Ela

dizia com a voz de quem tinha chorado muito,

enquanto ele ouvia, encostado á porta do quarto

fechado. — Ele é muito estranho... — Uma pausa, ela

apenas soluçava. — Eu sei... Eu sei... — Ela respondia á

tia, do outro lado da linha. — Talvez ele esteja doente,

sabia? Eu li sobre isso em algum lugar... Distúrbio

bipolar.— Ela tornou a chorar.

Não comentou á respeito com ele, nem se

falou mais na briga. Porém ele procurou na Internet á

respeito da doença que a mãe mencionara. Encontrou

‘sintomas’ que nada dizia a seu respeito, e ficou

decepcionado com o quão pouco a mãe o conhecia. Ou

talvez ela não soubesse muito de psiquiatria.

Se estivesse doente, seu perfil se encaixaria em

esquizofrenia. Um tipo de psicose, que o faria acreditar

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em coisas inexistentes, faria sua mente caminhar por

estradas perigosas, e completamente psicológicas. Ele

tinha quase todos os sintomas descritos no site que

encontrou. Mas seu caso era diferente. O que os outros

achariam que vinha da sua mente, acontecia de

verdade.

Nos dias que se seguiram, Nicky notou que

Laura e sua mãe passaram a trocar olhares cúmplices.

Ele ficou com certa raiva da mãe estar partilhando algo

tão pessoal de sua vida, mas por outro lado sentiu-se

grato, porque isso tornava as coisas mais fáceis para ele.

Finalmente, ele reuniu coragem para conversar com

Laura. Começaram a namorar no começo da primavera,

exatamente no dia do aniversário dela.

Ficaram juntos por três meses. Ele notou um

pouco tarde demais que ela não era uma boa pessoa

para ele, quando levantaram a questão da pena de

morte no país.

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Ele sempre soubera que ela era uma idealista,

e a admirava muito por isso. Estavam sentados na

varanda da casa dela, e assunto saiu. Ela comentou que

em qualquer situação seria defensora dos direitos

humanos, o qual o principal era o direito á vida.

— Nós ganhamos a vida como um presente de Deus. —

Ela argumentava. — Ninguém deve ter o direito de

tomá-la, Nicky. Ninguém.

— Mas e quanto a um assassino? — Ele torcia a folha de

uma planta que estava pendurada num vaso.

— Não importa. Sempre há uma segunda chance.Ou até

mesmo uma terceira ou quarta. Estamos falando da vida

de um ser humano.

— Não interessa. — Ele estava se controlando, com

vontade de bater nela. — Se ele tirou uma vida

indevidamente tem que morrer. — Ele baixou a voz

como se lhe confidenciasse algo. — Quando uma pessoa

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perde a vida como punição, ela está livre do pecado,

entende? “O salário do pecado é a morte”.

— Isso não tem nada a ver.O que justifica é o

arrependimento. E você vai quebrar o bracinho da

planta.

Ele levou as mãos á cabeça, dando um grito

abafado.

— Não, não, não! O que salva é a morte, você não

entende? A MORTE!

Ela o encarou por um momento, sem parecer

considerá-lo realmente. Seria tão difícil de entender?

Pode parecer ruim, mas a morte também tem um

propósito, como todo o resto das coisas que acontecem

no mundo. Exceto a maldade humana.

— Está bem, Nicky.Vamos esquecer isso, certo? O que

acha de um programa diferente amanhã? Estive

pensando, talvez fosse legal fazermos um passeio, ir

ao...

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— Não! — Ele não se deu por satisfeito.Tinha que fazê-

la compreender, ou ela seria uma deles também.

Arrancou a folha da árvore, e o impulso quase derrubou

o vaso inteiro no chão. — Você precisa me ouvir, ás

vezes, para o seu próprio bem! — Ele mal notara que

estava gritando, e ela levantou. — Você precisa me

ouvir! — Pegou o vaso do chão e arremessou-o contra

ela.

— Bem que sua mãe disse.— Ela gritou de volta, depois

de um grito assustado e de dor.Tentava levantar-se do

chão. — Você é um doente mental!

Ele não deixou que ela se

levantasse.Começou a chutá-la sem parar, sabendo que

devia matá-la ali mesmo.Ao invés disso, ele recuou,

deixando-a num estado de semi consciência.

— Espero que haja piedade da sua alma.

“Doente mental”.

Ele nunca mais vira Laura.

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O próximo natal se aproximava. Nicky

observava sua mãe decorar a casa com pouco

entusiasmo. Não que tivesse algo contra a festa

religiosa. Pelo contrário, achava legal a alegria e

algumas vezes a união verdadeira das pessoas nessa

data.Também gostava de comemorar o nascimento de

Cristo. Mas aquelas luzes brilhantes, e as amontoações

nas festas que a mãe dava em casa o deixavam

estressado.

Ele costumava gostar da época quando era

criança. A mãe permitia que a tia o levasse á missa pela

manhã. Ele comia um pedaço de pão e bebia um pouco

de vinho e sentia paz no coração. Era a maior alegria

que uma pessoa poderia sentir.Gratuita, pura e sem

motivo corruptível. Á tarde, ele abria os presentes, e á

noite eles comiam juntos, conversando. Apenas os três.

Estava em frente ao computador naquela

noite. Ele deixava sempre o lugar bem iluminado e

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arejado, e nunca apagava as luzes á noite. Da caixinha

de som do computador vinha uma música romântica

que estava na moda. Quando não estava lendo ou

trabalhando, era dessa forma que ele passava o tempo.

No computador, descobrindo coisas que nem ele se

dava conta de ter conhecimento. Pensava orgulhoso, á

respeito de si mesmo, que seria capaz de roubar senhas

de bancos e ficar milionário, se quisesse. Mas ele

ponderava tristemente se isso só não se deveria ao fato

de ser uma pessoa solitária. Afastava o pensamento da

cabeça. Vinha de seu lado ruim.

Nicky se comunicava com amigos por

intermédio de um novo site de relacionamentos muito

conhecido, e também muito popular, principalmente

entre os adolescentes. Essa era uma forma de interagir

com o mundo lá fora, sem correr o risco de se

contaminar. Desse jeito, ele acabara conhecendo outro

site de relacionamentos, bem diferente do Orkut. Seus

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membros eram fãs da morte e seus piores aspectos. Não

os motivos que traziam a vida. A morte, sem toda sua

complexidade.

Como para entrar era necessário um convite,

ele obteve um ingresso falsificado. Hackeou a conta de

um amigo de Orkut que recusara dar-lhe legalmente,

por ele não ser um verdadeiro ‘fã do gênero’.

Usou o nome de Joey, um apelido escolhido

ao acaso. As coisas que viu ali o deixaram noites sem

dormir. Resolveu sair do site o mais rápido possível,

sem fazer amigos ou interagir com aquela coisa

horrível. Antes que o fizesse, ele entendeu o propósito

que o levara até ali. Devia fazer alguma coisa. E estava

pronto para tomar um a atitude.Tudo o que precisava

fazer era descobrir o responsável, ou responsáveis pelo

Death of Patience.

Capítulo Quinze

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Ela até pensou em começar a procurar Joshua

pelos hotéis da cidade, mas sabia que seria inútil. Era

muito provável que ele estivesse usando um nome

fictício no registro.

Já se aproximava da porta de casa, seu coração

deu um salto ao ver Kate e Tony correndo em sua

direção. Amaldiçoou-se, Tony ainda mexia com seus

sentimentos. Logo a emoção deu lugar ao tédio, ela

sabia o que o ex-namorado e a amiga diriam.

— Não há nada de errado. — Ela adiantou. — Eu estou

aqui, e ótima.

— Por que não está na loja? — Tony perguntou, como

se fosse a coisa mais normal do mundo ele estar falando

com ela depois de terem terminado de forma tão bruta.

—Pebble estava preocupada com você.

— Que se dane Pebble. Você sabe que ela é louca.

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Kate tinha a mão no peito, e respirava com

certa dificuldade pelo esforço de ter corrido muito.

Disse:

— Pebble falou que você, além de não ter ido trabalhar

hoje, passou a noite inteira fora.

— Ela é louca. — Repetiu com um sorriso. — Passei a

noite todinha em casa. A culpa é dela, que nem nota

minha presença.

— É mentira, Mab. — Kate declarou. — É sua obrigação

de melhor amiga me contar a verdade. — Mabel fez um

sinal discreto de “depois falo com você”. Passou os

olhos dela para Tony. — Certo, então... — Murmurou.

Tinha entendido o recado de Mabel. — vou deixar que

vocês dois conversem.

Mabel nada disse. Apoiou-se na grade baixa da

varanda e esperou que ele falasse.

Tony enfiou as mãos no bolso, e passou a fitar o

asfalto da rua.

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— Então... — Ela o encarou impaciente. — Veio aqui em

busca de satisfações, apenas?

— Gostaria de conversar com você.

— Estou ouvindo.

— Sabe, Mab... — Ele tentou, obviamente sem saber

bem o que dizer. Provavelmente ensaiara aquela

conversa várias vezes. Não seria tão fácil adivinhar

quais seriam as respostas dela. — Muitas coisas

aconteceram...

— Claro. — Ela interrompeu. — Você me mandou pro

manicômio.

— Por favor, você não sabe o quanto isso é difícil pra

mim.

— Lá é um verdadeiro inferno, sabia?

— Eu sei, eu sei... — Ele procurava não fitá-la. — Mas é

que ficamos tão desesperados... Não sabíamos o que

fazer.

“Nós”. Não apenas ele, mas seu próprio pai.

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— Então — Ela completou. Batia os dedos

ininterruptamente na grade, um pouco fora de sintonia.

— Resolveram que o melhor era me mandar pra junto

dos meus iguais.

Ele olhou para seus olhos pela primeira vez.

Ela conseguiu identificar irritação nele.

— Eu vou ser direto, tá bom? Quero me desculpar. Não

devia ter deixado que fizessem isso com você. Mas é

que você não toma remédio. Parecia tão paranóica que

eu tive medo que pudesse acabar se machucando.

— Besteira! — Ela disse, deixando o a batucada com os

dedos para bater o pé no chão. — Não tente me

convencer de que fizeram isso pro meu bem. E pra

quem tenta se desculpar, você se justifica demais.

— Acho que você tem razão. — Ele admitiu. — Eu

realmente amo você, Mab.

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Ela ficou emocionada com a declaração

direta. Já ia enlaçá-lo num abraço quando uma idéia

passou-lhe pela cabeça.

— Tudo bem, tudo bem. — Ela interrompeu-o,

começando a dar as costas. — Estamos juntos de novo.

— Espera Mab. Eu...

Ela já estava a uma distância considerável

dele.

— Vem me pegar hoje á noite. Vamos fazer um passeio.

— Mab! — Ela pôde ouvi-lo irritar-se. — Espera!

Ela não respondeu. Como ela não tinha

pensado naquilo antes? Que estúpida tinha sido. O

lugar mais óbvio para encontrar Joshua era no funeral

de Heather. Se ela dissesse aos policiais que tinha sido

uma grande amiga da defunta, eles lhe concederiam o

endereço da casa funerária.

Agradeceu mentalmente por estar usando

tênis naquele dia. Os saltos seriam um empecilho

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enorme naquele momento. Andava a passos largos,

observando com atenção principalmente os becos. Por

mais que estivesse de dia, eram sempre lugares óbvios e

ótimos esconderijos para assassinos. Ela sorriu para si

mesma. Assassino. Era como se fosse um filme, e ela a

protagonista.

Era ainda mais excitante. O perigo era real. E

podia estar na próxima esquina.

Deu um grito quando um menino saiu de trás

de uma árvore, correndo em sua direção. Quase colidiu

com ela. Estava brincando de esconde-esconde. Ela

gritou qualquer obscenidade, e colocou o canivete de

volta ao bolso da calça jeans.

Não foi necessário dizer nenhuma mentira para

o detetive Crews. Ele lhe anunciara que estava indo

justamente para lá, e poderia lhe dar uma carona, se

quisesse.

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O caminho foi curto, e o policial nem ao menos

mencionou a respeito do crime. Conversaram sobre seus

respectivos times de beisebol, times rivais. A camisa

dela tinha a estampa do Seatlle Mariners e ele fizera o

primeiro comentário.

Mabel não viu Joshua ao na mórbida sala.

Reinava ali um silêncio pacífico, o caixão branco

decorado com rendas brancas e flores azuis. Um casal

de meia idade se abraçava, sentados no frio banco de

madeira envernizada, dividindo a dor. Julgou que

seriam os pais de Heather. Havia mais três pessoas no

local, mas Mabel não reconheceu nenhuma delas.

O policial não ficou observando as pessoas.

Entrou na sala espaçosa como se já conhecesse tudo, e

estivesse adaptado ao lugar. Aproximou-se do casal. De

onde estava, Mabel não podia ouvir o que eles

conversavam, mas podia imaginar. Crews deveria estar

dizendo, primeiramente que sentia muito, e que

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gostaria de conversar com eles o mais rápido possível,

depois do funeral, em sua sala na delegacia.

Ela começava a desesperar-se. Se não

encontrasse Joshua ali, não teria onde procurá-lo.

Provavelmente, como um cãozinho sem dono, ele

deveria ter aceitado a proteção policial, e estava

escondido. Por que ela contava com ele, afinal? Podia

imaginá-lo no quarto de hotel, exatamente como no dia

que ela fora ao apartamento dele: tremendo a cada

barulho e a cada batida na porta.

Viu Joshua entrar.

— Graças a Deus! — Ela exclamou, atraindo a atenção

das pessoas presentes. Ele olhava para ela como se nem

a conhecesse. — Graças a Deus que você veio!

— O que quer? — Ele perguntou baixinho. Como se não

esperasse resposta, continuou caminhando em direção

ao caixão de Heather.

— Preciso da sua ajuda. — Ela seguiu-o.

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— Sabe que não posso ajudá-la. — Ele olhou para

Heather, e Mabel teve a impressão de que seus olhos

vazios não viam nada. — Peça ajuda pra eles. — Indicou

o detetive Crews.

Mabel percebeu que só estava perdendo seu

tempo.

— Certo, certo. — Ela disse, irritada. Olhou ao redor. A

maioria das pessoas os fitava. — Desejo boa sorte pra

você. — Ela encarou a audiência de volta. — Até um

dia.

Apressada e sem deixar de devolver o

olhar para quem a observava, ela saiu do lugar, a mente

em turbilhão, imaginando o que faria a seguir.

Heather não parecia realmente morta. Na

verdade, Joshua teve a nítida impressão de tê-la visto se

mexer. Ele sabia que as pessoas mortas faziam

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movimentos parecidos com espasmos, por causa dos

últimos comandos do cérebro. Mas aquilo tinha sido

muito mais do que uma simples contração. Ela tinha se

movido como uma pessoa que está dormindo. Como se

estivesse sonhando. Ele achou mais apropriada a

expressão. Olhou ao redor para ver se mais alguém

tinha percebido. Esperou que alguém dissesse: “Veja,

ela não está morta, não! Ela está viva” . Começou a

chorar, desejando estar sozinho.

Quase não percebeu quando um homem se

aproximou. Ele devia estar na casa dos quarenta anos,

mas vestia bermudas e tênis. Totalmente inadequado

para a ocasião.

— Boa tarde. — Ele cumprimentou, e por um instante

Joshua achou que ele estava ironizando. — Você é

Joshua, certo?

Notou que o homem parecia triste, e até um

pouco abatido. Ele confirmou sua dúvida.

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— Sou Martin Hoppus, o agente de Heather.

— Heather já falou sobre você.

— E não tem idéia do quanto ela falava de você. — Ele

deu um sorriso triste. —Gostaria que você pudesse vir

ao meu escritório amanhã, na hora que puder.

Ele estendeu um cartão a Joshua e

continuou:

— Quero conhecer você direito.

Cumprimentou-o e saiu. Joshua ponderou se

ele seria louco.

Teve a sensação de que ia desmaiar.

Impaciente, Joshua não esperou até o dia

seguinte para ir ao escritório de Hoppus. Encontrou-o

ás cinco e trinta da tarde.

Com o corpo um pouco grande demais para

sua cadeira, Hoppus ofereceu chá para Joshua, mas não

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insistiu quando ele não aceitou. Despejou em um copo

descartável uma quantia generosa do líquido, e

recolocou-a sobre sua mesa.

— Acho que você precisa descansar. — Declarou, de

repente.

— É provável. — Imaginou como sua aparência devia

estar horrivelmente desleixada.

— Death of Patience. — Hoppus disse, com solenidade,

depois de um longo gole de chá.

— O que é que tem? — Joshua perguntou, alarmado,

apesar de já saber do que se trataria aquela conversa

desde que falara com o empresário na primeira vez.

— Era um dos lugares em que ela fazia pesquisas

ultimamente. Conhece o site?

— Acho... Acho que já ouvi falar.

Hoppus sorriu.

— É o criador do site, Joshua.

Não houve acusação em sua voz.

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— Eu... — Ele começou, sem saber o que dizer. Não, não

podia acreditar que além de tudo, seria preso. — Eu

sinto muito. — Foi o que ele encontrou para dizer. —

Jamais imaginei que fosse acontecer algo assim.

— Sei disso. — Joshua percebeu que Hoppus estava

sendo sincero. — Heather gostava muito de você, estava

apaixonada. Pensava em casar, ter filhos, essas coisas

todas.

Ele não respondeu. É claro que sabia que

Heather estava apaixonada por ele, mas não imaginou

que pensasse dessa forma. Ponderou se um dia ele teria

pensado nisso. Ou se viria a pensar.

— Deve estar sendo muito difícil pra você. — Ele

prosseguiu. — Ter sido tão bruscamente arrancado para

fora de sua realidade. — Joshua imaginou o quanto

Hoppus sabia sobre ele. — Heather era como uma filha

pra mim. Sabe que ela teve uma infância difícil no

Colorado.

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— Heather não gostava de falar de seu passado. —

Joshua considerou o que o agente dissera. — Pra falar a

verdade, a única coisa que sei é que ela morou no

Colorado.

— O pai era um bêbado, a mãe uma drogada. Ela não

tinha irmãos — não que conhecesse. Vivia sempre

sozinha. Com vergonha de seus pais, de sua casa — que

servia muitas vezes de ponto de vendas de drogas.

Vergonha de si mesma. — Ele fez uma pausa, tomando

de uma vez o que restava de chá no copo. — Então, ela

começou a escrever. Achou um mundo á parte,

entende? Um mundo só dela, onde podia se expressar,

inventar do jeito que bem lhe aprouvesse. Não me

admira que ela nunca tenha falado nada disso com você.

Nunca gostou de coisas ruins, embora escrevesse sobre

elas. — Fitou o teto, pensativo. — Lembro do que ela

me disse uma vez. A parte ruim da vida devia ficar

apenas nas páginas de um livro. Para que pudesse,

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qualquer dia, ser amassada e jogada fora. Se ela entra na

mente, vai para o coração. Então, é definitivo.

Joshua nunca tinha pensado na Heather

sobre quem ele falava. A imagem dela em sua

lembrança estava sempre sorrindo, fazendo piadas,

falando sobre tudo e nada alegremente. Era como se o

homem á sua frente falasse de outra pessoa, ela não se

encaixava nessas descrições.

— Eu a conheci quando ela fez quinze anos. — Hoppus

continuou. — Estava vendendo balas no farol. Fazia isso

treze horas por dia, em troca de míseros dois ou três

dólares. Perguntei por que ela fazia isso, e ela

respondeu sem afetação que era para não precisar

vender drogas em outros lugares. Acabamos por nos

conhecer melhor quando descobrimos que morávamos

na mesma rua. — Ele olhou para Joshua

significativamente. Ele ouvia a história com interesse,

embora sua cabeça estivesse doendo e girando mais do

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que nunca. — Eu a convidei para jantar em casa, e ela

passou a vir todas as noites, sem ser convidada. —

Como se lesse seus pensamentos, ele disse: — Nós não

tivemos um caso romântico, certo? Acho que era isso o

que estava pensando, mas eu sou casado e tenho dois

filhos, que moram no Colorado. Minha esposa adorava

Heather, e quando nos mudamos para Los Angeles, fez

questão de que eu a trouxesse junto. Á essa hora, já

tínhamos publicado o primeiro romance, ela estava com

quase vinte e seis anos. Minha esposa morreu de um

aneurisma cerebral, e nosso mundo tornou-se apenas eu

e ela.

Joshua procurou notar a dor que ele deveria

estar sentindo, mas não encontrou. Voltou ao presente,

abandonando a expressão sonhadora, admitindo um

rosto preocupado.

— Eu encontrei o Death of Patience, e mandei o convite

para ela. Achei uma ótima forma de inspiração para um

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livro sobre psicopatas. Mas pensei que se tratasse de

montagens de computador e jogos de câmeras muito

bem feitos.

— São reais.

— Eu sei. Heather me disse. Me falou também sobre as

ameaças que você e sua amiga estavam recebendo

recentemente..

— Ela não é minha amiga. — Ele achou necessário

dizer.

— Pensávamos que fosse.

— Não é, nunca foi. — Ele tinha sido amigo de Filth

Darkness, não de Mabel.

— Acho que Heather só estava no lugar errado na hora

errada. — Joshua concordou mentalmente. — Ela

achava que era algum tipo de trote, uma brincadeira de

mau gosto.

— Ela chegou a me dizer isso. Disse também que a sua

amiga promoveu um encontro com o suposto assassino.

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— Ontem á noite.

— Exato. Isso só serviu pra satisfazer as vontades de

Farkas.

— Como eu imaginaria isso? — O agente tinha dito o

nome do assassino?

— Eu sei que não pensou nisso, não estou culpando

você. Pelo contrário. Te chamei aqui porque gosto de

você. — Fez uma pausa esperando que Joshua dissesse

alguma coisa. — Gosto de você porque foi bom o

suficiente para Heather.

Ele não soube exatamente o que dizer.

Murmurou:

— Obrigado.

— Tenho certeza que ele vai voltar.

Tornou a encher o copo de chá.

— Claro que vai. — Joshua disse. Sua voz soava-lhe

estranha. Sentia-se fraco até mesmo pra falar. — Uma

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vez que quem ele procurava era a mim, não por

Heather.

Acabou soando mais rude do que pretendia.

Hoppus olhou fixamente para ele por alguns instantes.

— Não se pergunta até onde eu sei?

Ele não tinha certeza do quanto mais queria

saber.

Assentiu hesitante.

— A Pôr do sol prestou muitos serviços para mim e

Heather. Ela já tinha conversado com o próprio Farkas

pessoalmente.

Joshua deu um sorriso triste. Uma coincidência

irônica. Joey tinha em seus arquivos o endereço do

mesmo prédio em que Joshua morava. Devia ter

conversado com Heather, de forma discreta, até

descobrir a ligação dela com Joshua.

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— Vá pro hotel, garoto. — O agente finalizou. — Fique

lá até que eles peguem esse maldito ceifador de

tesouros.

Joshua levantou-se, assentindo.

Esperaria Joey em casa, até que ele aparecesse.

Capítulo Dezesseis

Mabel foi recebida no escritório como se

fosse uma cliente. Perguntara por Farkas, e a

recepcionista pedira que ela entrasse e aguardasse na

sala de espera. Não demorou muito até que uma mulher

descesse as escadas em forma de caracol. Estava muito

bem vestida, embora usasse roupas simples. Devia ter

mais de cinquenta anos, mas mantinha a aparência

serena e jovial.

— Gibbs? — Perguntou. Mabel assentiu. Ela fez sinal

para que a seguisse pelas escadas.

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Exatamente como a proprietária, a sala tinha

um toque de bom gosto, do jeito que só uma mulher

poderia fazer. Ela pediu que Mabel sentasse.

— Sobre o que deseja falar, Srta.Gibbs?

— Sobre Nicolas Farkas. Ele trabalhava aqui.

Mabel viu a surpresa passar por seus olhos,

seguida da tristeza que uma lembrança triste causa.

— O que quer saber? — Perguntou hesitante.

— Onde ele está.

— Não sei onde ele está. — Declarou. — Você é a garota

que presenciou o assassinato?

— Assassinato? — Ela sorriu. — Aquilo foi um

massacre.

— Eu... — As palavras saíam com dificuldade. Mabel

entendeu que ela era muito mais do que a patroa de

Joey Farkas. — Sinto muito pela sua amiga.

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— É, eu também. Era uma boa menina, sabe? —

Começou a brincar com uma caneta sobre a mesa. — Foi

realmente uma pena.

— O que você quer, afinal? — A mulher perguntou,

bruscamente. Mabel levantou os olhos para ela,

surpresa com o repentino aborrecimento.

— Já disse. Quero saber onde ele está. — A caneta

pulava quando Mabel apertava a mola contra a mesa.

A mulher levantou-se num pulo, na

direção de Mabel.

— Acha que já não basta meu sofrimento? — Mabel

parou a caneta. — Por favor, vá embora. Tudo que eu

tinha a dizer foi dito aos policiais.

Mabel levantou também.

— Os policiais não vão fazer nada. Mas eu vou. E irei

acabar com seu filho. — Virou as costas. — Boa tarde.

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— Entre. — O pai puxou-a para dentro do quarto dele.

— Sente-se. — Ordenou rispidamente.

Ela obedeceu, entre confusa e irritada.

— Onde diabos você passou a noite? — Ele quase

gritou. Ela passou a mão no braço ligeiramente

machucado, onde o pai tinha apertado. Não estava

disposta a voltar ao assunto.

— Eu estava em casa, dormindo. Não entendo por que

tanta implicância!

— Implicância? — Ele suspirou alto, com impaciência.

— Escuta, Mabel, não minta pra mim. Se você passou a

noite em casa, por que seu nome saiu no jornal dessa

manhã?

Ela tentou disfarçar um sorriso, sem obter

sucesso.

— Meu nome no jornal?

— Pelo amor de Deus, Mabel! Você esteve envolvida em

um assassinato!

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Ela procurou sua expressão mais inocente.

— Assassinato? Está ficando louco.

— Louco, é? — Ele remexeu uns papéis na gaveta do

criado-mudo, encontrando o jornal do dia.

— Acha que eu assassinei alguém, papai?

Antes de responder, ele entregou o jornal

aberto na mão dela.

— Deve ser sobre outra Mabel Gibbs.

— Não tire sarro da minha cara.

— Acha que estou brincando? Queria eu estar

envolvida em um assassinato, ao invés de estar presa

num quarto, com meu pai me dizendo absurdos.

Estava deixando o aposento.

— Você não vai á lugar algum! Vai terminar essa

conversa.

— Então seja breve porque tenho muito o que fazer.

— Desmarque o que tiver a fazer, pois daqui você não

sai.

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Ela praguejou, e voltou a sentar-se na cama.

Batia o pé no chão nervosamente, ansiosa para que o pai

terminasse logo de falar.

— Quem é Joshua Dunne?

— Não sei. — Respondeu, sem rodeios.

— Joshua Dunne. — Ele insistiu, apontando o nome no

jornal. Ela balançou a cabeça em negativa. — Porr...,

Mabel! Pare de mentir pra mim!

Ela sentiu seus olhos encherem de lágrimas.

Assumiu uma expressão de desafio.

— Por que você nunca acredita em mim? Pra você e

para aquela estúpida retardada eu sempre tenho que ser

a víbora mentirosa?

— Não fale de Pebble desse jeito. Ela não está em

discussão!

Mabel levantou a voz á altura do tom dele.

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— Eu não quero mais morar aqui. Não há motivos para

eu ficar. Você não se importa comigo, tudo que te

importa é preservar a sua imagem de família perfeita.

— Não comece a apelar pro emocional. Você sabe muito

bem que está errada.

— Eu estrago tudo, não é? Eu e os meus problemas. Por

que eu tive que nascer? Foi um erro desde o começo.

— Cala a boca!

— Tenho sido uma decepção pra você desde o dia que

eu nasci e matei a mamãe.

Ele segurou-a pelo braço, com mais força dessa

vez.

— Estou dizendo para ficar quieta!

— E agora eu sou a louca bipolar que você deve

esconder da sociedade, para não manchar sua

reputação. Na eterna crise de adolescência que você

despreza.

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Sem esperar mais, ele deu um tapa no seu

rosto.

— Eu mandei calar a boca!

Pebble surgiu no corredor.

— O que está fazendo?

— Vai se arrepender por isso! — Mabel gritou, antes de

deixar o quarto. Passou por Charlie, que tinha os olhos

arregalados.

Tony demorou apenas alguns segundos para

atender o chamado de Mabel á porta. Ela enlaçou-o

num abraço.

— O que anda fazendo, Mab? — Ele perguntou, com

um carinho triste. Ela apoiou a cabeça no ombro dele. —

Estamos tão preocupados com você!

Ela afastou-o bruscamente para encará-lo.

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— Eu vim aqui em busca de apoio. — Declarou. — Não

preciso de mais pessoas pra me julgar. Não estou

fazendo coleção de críticas, certo?

Ele puxou-a para dentro da casa. Mabel sentiu

nos olhos dele piedade, e não quis que ele a tocasse.

— Também não quero que tenha pena de mim. Isso é

ridículo, não há motivo para isso.

— Você está doente, Mab. Por que não admite? — Ele

tentou colocar a mão no ombro dela de novo, mas ela o

repeliu. — Por que não toma seus remédios? Seria tudo

tão mais fácil se você fizesse isso!

— Me deixa em paz. — Ela exclamou, deixando a casa

quase correndo.

Que parte do “estou sozinha” ela não tinha

entendido?

Caminhava a passos largos, apertando a

jaqueta contra o corpo, para proteger-se do frio da

tarde. Estava louca, tinham dito. Estava louca de achar

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que alguém no mundo a compreenderia. Que uma

pessoa normal pudesse gostar dela exatamente do jeito

que ela era, sem tentar moldá-la ou curá-la.

Apertou os passos quase inconscientemente,

precisava pegar coisas em casa. Em parte por causa do

frio, que faz com que as pessoas andem mais rápido, em

parte porque ansiava para fazer o que deveria ter feito

há muito tempo: dar o fora daquele lugar. Desde muito

tempo ela planejava viajar para lugares longes, longes

de forma geográfica e espiritual. Já tinha considerado o

Japão ou Alemanha, fazer turismo, comer comidas

exóticas e conhecer gente diferente. Mas não teria

dinheiro para isso. O que tinha em suas economias mal

daria para cobrir a viagem á Nova York que tencionava

fazer no momento.

Por enquanto Manhattan serviria. Tinha

amigos que conhecera pela Internet que moravam lá.

Pelo menos teria onde ficar.

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Enfiou tudo o que precisaria em uma mala

pequena. Não era muita coisa. Nada que fosse fazê-la

lembrar da vida que estava deixando pra trás.

O pai surgiu na porta do quarto.

— Eu disse que você não vai a lugar algum.

— Não me importa o que você disse. — Ela terminou de

fechar a mala abarrotada, puxando o zíper com força. —

Você sabe o quanto vai ser muito melhor para você e

Pebble.

Charlie estava ao lado do pai, a expressão

confusa.

— Adeus, Charlie.

Seguiu rapidamente até o ponto de ônibus,

sendo quase atropelada por um táxi no caminho.

Colocou os fones de ouvido, enquanto o ônibus

sacolejava. Acompanhou a música, como sempre fazia

se estava triste, sentindo a letra bem no fundo do

coração. Sim, ela vivia uma vida solitária, onde

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ninguém a entendia. Sorriu para si mesma. A música a

entendia, entendia seus suspiros gritados...

A viajem até o aeroporto foi rápida. Ela desceu

no ponto e caminhou um pouco até o aeroporto. A mala

estava mais pesada do que ela previra. Amaldiçoou sua

idiotice de levar tantas coisas que ela poderia comprar

no caminho, como aquele monte de roupas. Ajeitou o

fone de ouvido quando ele quase caiu. Sentia-se muito

mais calma agora.

Passou por uma garotinha sentada na beira da

calçada, obviamente esperando por algum adulto. Ela

comia salgadinhos, e tinha a boca cheia de migalhas.

Sorriu para Mabel, e ela retribuiu o sorriso. Fez com que

ela se lembrasse da própria infância. Apesar de não ter

sido fácil — Uma criança hiperativa, com a mente

sempre a um milhão de léguas longe. Mas a vida era

melhor, pois ela sempre acreditava que tudo ia ficar

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bem, e que as broncas e castigos do pai logo seriam

coisas do passado.

Entrou no aeroporto, ouvindo o ruído das

pessoas, e vendo-as passar apressadas. Tudo ia ficar

bem, agora. Ela tinha certeza disso.

Era a primeira vez que viajava sozinha, mas

sabia bem o que fazer. Seguiu até a bancada para

comprar a passagem.

Conversou com a mulher sentada atrás da

mesa alta de madeira. Ela tinha o cabelo grisalho preso

em um coque, e olhos altivos. Observou Mabel de forma

crítica, e ela teve medo de que a mulher a tivesse ligado

seu nome ao crime em Westwood.

— Aguarde um minuto. —A secretária disse, antes de

levantar, mal-humorada. Desapareceu numa sala

adjacente.

Passaram-se dois minutos, sem que a mulher

retornasse. Ela estremeceu. A polícia tinha sido clara ao

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avisá-la para não deixar a cidade antes que as

investigações estivessem concluídas. Dane-se a polícia. Eu

não sou uma criminosa.

O celular vibrou em seu bolso, acompanhada de

uma música instrumental que a irritava, mas ela sempre

se esquecia de substituí-la por outro toque. Reconheceu

o número no identificador de chamadas. Vinha de sua

casa. Desligou. A mulher não tinha voltado ainda,

começou a ficar alarmada. Talvez seu plano não desse

certo. Lembrou-se de repente de Joey — Ou Nicolas,

dando-se conta do por que de estar ali. Não importava

mais a vingança. Ela só queria dar o fora. Deixou a

bancada. Daquela maneira não iria a lugar algum. Se

queria sair de Los Angeles precisaria achar alguém para

subornar. Olhou ao redor, á procura de um segurança

com cara de idiota.

Caminhou em direção a ele, mas parou no meio

do caminho. Joey estava lá. Como a teria descoberto ali?

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Ela começou a recuar, mas repensou. Não deveria ter

medo dele. Não depois de tudo que ele tinha feito,

depois de seu assassinato estúpido quase impedi-la de

viajar. Agarrou a mala com força. Não, não permitiria

que ele escapasse impune dessa.

Não tinha visto muito bem, pois ele estava de

costas, caminhando na direção contrária, Procurando

por ela. Bom, ele acharia. Correu na direção dele, mas

não longe o suficiente para não ouvir a secretária

chamá-la. Não voltou. Percorria com os olhos a

multidão. Ele estava perto de uma vitrine.

Nem ao menos notara o policial que estava

atrás dela. Deu um grito quando ele segurou seu braço.

Sentiu um alívio ao virar-se e ver que não era Joey a

segurá-la com força. Demorou alguns segundos para

que ela entendesse o que estava acontecendo.

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— Me larga, seu idiota! — Ela gritou, debatendo-se.

Outro policial segurou-a também, ela não obteve êxito

na tentativa de escapar.

Precisava ir pra Nova York o mais rápido

possível.

— Por que estão fazendo isso, seus imbecis? — Ela

tentou morder a mão dele, sem se importar com as

pessoas que observavam a cena, com espanto e

curiosidade. Gritou para eles: — Sádicos do inferno!

Três homens vestidos com uniformes de

hospital. Ela gritou. Sabia o que aconteceria agora. Eles

enfiaram uma agulha em seu braço agitado, e ela sentiu-

se acalmar.

Estava de volta ao inferno.

Capítulo Dezessete

Sobressaltado, Joshua abriu os olhos, lançando

um rápido olhar para o relógio. Não passavam das onze

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da manhã, mas ele sabia que não conseguiria dormir

mais. Com um suspiro, afastou as cobertas, ligeiramente

tremendo de frio. Decidiu levar a manta azul para a

sala.

Deitou-se no sofá, cobrindo-se até o pescoço.

Já tinha gostado do inverno, mas era passado. Sua vida

parecia ter-se dividido em duas etapas: Antes e depois

de Heather. A primeira etapa tinha sido solitária, e

olhando agora para trás, vazia. A segunda etapa estava

sendo difícil, e ainda mais solitária. Pior ainda, tinham

começado os pesadelos. Por várias vezes ele acordara

no meio da noite, sempre o mesmo sonho: Heather e a

cadeira. Ainda podia ver as manchas de sangue no

assoalho bege. Embora tivesse considerado a idéia de

mudar-se de casa, sabia não ser esse o real problema.

Podia rever a cena com assustadora clareza quando

fechava os olhos, e tinha certeza de que não dormiria

em paz novamente.

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Trocava os canais da televisão, mas não

conseguia concentrar-se. Tinha passado diversas vezes

pelo mesmo canal, e perguntou-se por que mantinha a

TV á cabo, sendo que nunca passava nada de bom.

Desistiu do controle remoto.

Tinha sido um sonho diferente dessa vez. O

assassino prendia Heather, com uma faca em seu

pescoço. Joshua não fazia movimentos bruscos até que

tivesse a certeza de que Joey tinha ficado distraído por

apenas um instante. Um instante suficiente para que ele

desse um golpe e tomasse a arma dele, deixando ele

inconsciente. Libertava Heather, e eles corriam pra

longe... Muito longe...

Quando abriu os olhos novamente, o relógio

digital do rádio mostrava duas e sete da tarde. Tinha

ido dormir mais tarde do que de costume, resolvendo o

problema de última hora de um cliente. Estava de volta

ao computador. O telefone começou a tocar, mas ele

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ignorou. Provavelmente era a companhia de telefone,

cobrando-lhe a conta de dois meses atrasadas. Ele não

precisava de telefone, decidiu. Era apenas mais uma

conta a pagar, mais um problema. Precisava cancelar.

Faria isso assim que tivesse um tempo disponível.

Acessou sua conta do Death of Patience, e

respondeu os recados de sua página. Reconhecendo sua

curiosidade mórbida mais do que o medo e a paranóia

que a situação deveria ter-lhe provocado, ele procurou

por Joey. Como tinha imaginado, a conta estava

expirada.

Era a primeira vez que ele procurava por Joey

depois da morte de Heather. Considerava a hipótese de

ele ter-se infiltrado com outro apelido. Estranhamente, a

idéia de que poderia estar sendo vigiado não lhe

causava arrepios como talvez devesse causar. Ele sentia

que alguma coisa, algo realmente importante dentro

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dele tinha morrido para sempre. Restava saber o que

era, mas ele não estava interessado.

Logo depois da morte de Heather, Joshua

recebera recados de alguns dos membros mais

chegados, de forma secreta, que lhe deram os pêsames

pela morte da garota. Aquilo o surpreendeu mais do

que o deixara irritado. Sua identidade não era tão

secreta quanto ele gostaria que fosse. E isso parecia

perigoso.

Teve que rir para si mesmo. Perigoso... O que

mais poderia acontecer? Então foi confortante receber

aquele apoio, não para Billy, mas para Joshua, embora

em momento algum tivesse sido mencionado seu nome

verdadeiro.

O estranho também, ele relembrava agora, era

o fato de Mabel, Filth Darkness, ter desaparecido

também. Sua conta continuava ativa, mas ela parecia

não ter entrado mais no site por muito tempo. Ele

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tentou achá-la no outro site de relacionamentos onde a

conhecera, mas ela também não tinha aparecido por lá.

Era mera curiosidade, ele achava a situação intrigante.

Perguntou-se se um dia tornaria a vê-la.

Esperava que não.

De início tinha sido desesperador estar de

volta aquele lugar, mas agora só parecia-lhe triste.

Mabel reviu Jim. Ele ficou emocionado ao vê-la,

repetindo sem parar que agora eles se casariam sem

demora, antes que ela partisse novamente. Então ela o

acalmara com ironia, dizendo para que ele não se

preocupasse. Ela não iria deixar aquele lugar nunca

mais, a menos que seu pai falisse de dinheiro, então iria

para um hospício público.

Mas tinha sido um bom ano para os

negócios. O pai mantinha o bar aberto, e as coisas

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melhoraram em casa depois que ele abriu uma

lanchonete filial. Pelo que ele contara em sua última

visita, Pebble também arrumara um emprego de meio

período. Mabel comentara: ’Finalmente aquela

vagabunda resolveu fazer algo de útil na vida, e tirar

aquele traseiro gordo da cadeira’. Ele a fez lembrar de

que ela também nunca tinha trabalhado antes da loja de

roupas, e deixara-a na sala de visitas, quinze minutos

antes que o tempo acabasse.

No tempo que passara ali, Mabel descobriu

que podia ser bem confortável, e até mesmo divertido

ser louca. Se ela era uma demente não precisava se

preocupar com o que os outros iriam pensar. Dessa

forma, começou a liderar movimentos, greves e

travessuras estúpidas, rapidamente conquistando a

amizade dos pacientes mais infantis, tais como Jim.

Passou a deixar de lado sua apatia inicial, reconhecendo

que aquilo a fazia sentir-se ainda mais sozinha e

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deprimida. Tinha ido parar na sala da diretora do

hospital três vezes, sendo castigada uma vez. Ficou

trancada no quarto, sem direito a almoço.

Jim entrou no quarto de Mabel estremecendo

com o barulho da porta batendo atrás de si. Trazia um

aparelho de cd portátil nas mãos, a expressão excitada.

— Onde arrumou isso? — Ela perguntou.

— Magda me emprestou. Mas acho que está quebrado.

— Ele inspecionava o aparelho. — Não consigo ligar ele.

— Deixa eu ver. — Ela tirou da mão dele. Realmente

não ligava. — Está quebrado. Onde ela arrumou isso?

Ele deu de ombros, e começou a abrir o disk

man, na tentativa de consertá-lo.

— Ah Deus... — Ela reclamou, recostando-se na

cabeceira da cama. — Gostaria de assistir um bom filme

de terror.

— Gosta de filme de terror? — Ele indagou,

concentrado em seu serviço.

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— Adoro um bom susto.

— Eu fico com medo. E não gosto de ficar com medo.

Ela riu.

— Não gosta de adrenalina, Jim?

— Meu médico me disse uma vez que adrenalina é o

que eu tenho demais... — Ele prendeu o dedo, e soltou

uma exclamação de dor. — E energia. Achei que isso

fosse bom, mas... Se eles dão remédio contra energia,

não deve ser tão legal assim...

— Esses médicos não sabem de nada. Sabe o que eles

têm a mais do que nós? Um diploma pendurado na

parede.

— E uma cuca boa. — Ele completou com um sorriso. —

Inteligente e saudável. —Pronunciou as palavras bem

devagar, como se as tivesse ensaiado.

— Saudável... — Ela repetiu. — Depende do que se

entende por saudável...

Ele ficou confuso.

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— Saudável é o contrário de doente. Se você é saudável,

não está doente.

— E se você for doente, mas controlado com remédio,

você deixa de ser doente?

— Se é o que está insinuando, eu tomei Haldol hoje. E

não reclamei.

— Sei disso. Só estou dizendo que... Esqueça. A verdade

é que ser saudável ou não é uma questão de escolha.

Eles me dizem que estou doente, mas me sinto

realmente bem, o tempo todo. Com ou sem esses

malditos anti-psicóticos que nos fazem tomar, pra nos

deixar ‘sob controle’. Isso me assusta, pois fazem meus

músculos se contraírem o tempo todo. Me sinto louca

desse jeito.

— Sei... — Ele disse, sem prestar muita atenção.

— Por outro lado, me sinto realmente sã nesse lugar. —

Olhou ao redor, considerando as pessoas daquele

hospital. — Muito sã.

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Jim sorriu, satisfeito. Tinha conseguido

consertar o aparelho de cd.

— Pois é, muito sã. Veja isso, Millie! Consegui!

Ela colocou o fone de ouvido, constatando

que ele realmente tinha consertado. Uma música

country estava tocando, e ela logo tirou os fones do

ouvido.

— Certo... — Ele murmurou, levantando-se. Puxou-a

pela mão. —Vamos devolver isso á Magda.

Sem alternativa, Mabel o seguiu pelo corredor.

Encontraram a garota rechonchuda e de bochechas

rosadas sentada numa cadeira do refeitório. Ela

estendeu as mãos ansiosas para Jim.

— Millie consertou pra você. — Ele disse. — Acho que

ficou per... — Não terminou a frase por causa de um

acesso de tosse repentino.

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— Está bem? — Bertha perguntou, entrando na

conversa. Era pequena como uma criança, os olhinhos

azuis cintilantes.

—... feito. — Ele conseguiu completar, restabelecendo-se

com seu largo sorriso habitual.

Magda já tinha colocado os fones no ouvido

para comprovar o resultado.

— Ficou ótimo, Jim. Obrigada, Millie.

Mabel murmurou de nada, e deixou o

refeitório, novamente impelida por Jim. Recomeçaram a

caminhar pelo corredor.

— O que vai fazer agora? — Ela perguntou.

— Sei lá.

— Quer jogar cartas? — Era o que eles mais tinham feito

juntos nos últimos tempos.

Sentaram-se ao redor da mesa quadrada, com

mais dois dos pacientes do hospital. Por causa do frio,

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foi-lhes permitido colocar a mesa do lado de dentro, não

no jardim, como eles costumavam fazer.

Robert, o dono o bigode mais estranho que

Mabel já vira, pegou as cartas para embaralhá-las.

Distribuiu-as com sua habitual rapidez.

Quem pegou as primeiras cartas colocadas

sobre a mesa foi Bertha, a menina franzina que dissera

ter a mesma idade de Mabel, mas parecia pelo menos

vinte anos mais velha.

— Prontos? — Jim perguntou, sensacionalista. Mabel

jogou a primeira carta. — Vocês não acham que deveria

ter um piano no Saint Clair? Todo hospício tem um.

— Eu ouvi dizer que Magda está namorando. — Robert

falou. —E que o namorado deu um diskman para ela.

— Eu acho que não... — Jim opinou sabiamente. —

Acho que foi a mãe que deu para ela.

Robert deu de ombros.

— Bom, foi o que eu ouvi...

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— E onde está esse tal namorado? Só a mãe e a irmã

vêm visitar ela. Nenhum menino... Nenhum.

— Droga, Jim! — Ele bateu na mesa com os punhos

fechados. — Foi só o que me disseram!

Jim levantou os braços em redenção.

— Certo, Robbie. Tudo bem.

O jogo prosseguiu em silêncio. Jim passou

um ás de espadas por baixo da mesa para Mabel. Ela

sorriu pra ele com cumplicidade.

— Não é sua vez. — Ele disse, paciente, quando Bertha

jogou uma dama. — É a vez de Robbie.

Ela deu um sorriso sem graça.

— Ah... É mesmo... — Ela aguardou com impaciência.

— Agora sou eu. — Ele declarou como se estivesse

ensinando-na.

Foi novamente interrompido por um acesso

violento de tosse, retirando-se da mesa e correndo para

a cozinha.

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— Coitado... — Bertha declarou piedosa. — Tive uma

tia que morreu de tanto tossir.

— Isso é bobagem. — Robert disse. — Ninguém morre

de tanto tossir.

—Minha avó morreu! — Declarou, indignada. Mabel só

desejou que Jim voltasse logo. — Está dizendo que

minha avó não existiu?

— Só estou dizendo que ninguém morre de tanto tossir!

— Talvez ela tenha pegado uma doença. — Mabel

acudiu. — Como pneumonia ou...asma.

— Sei não. — Declarou, considerando-a por um

momento. — Eu sei que ela morreu tossindo.

Jim retornou e voltou a sentar-se.

— Qual de vocês me roubou? — Perguntou, com um

sorriso.

Não ter relógio no Saint Clair era uma das

coisas que mais irritava Mabel. Era verdade que ela não

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tinha horários ou compromissos, mas sempre tinha sido

muito ligada no tempo. Quando pequena, ela lembrava-

se, o pai lhe dera um relógio de pulso, com a Minnie

desenhada. Ela nunca tinha sido fã do Mickey Mouse,

ou de qualquer desenho animado, mas adorara o

presente. Só o tirou do braço quando ele quebrou. Tinha

ficado muito triste naquele dia, chorou no colo do pai

sob a promessa de comprar-lhe um relógio novo e ainda

mais bonito. Não se lembrava se o pai tinha cumprido

realmente seu juramento.

Era uma cena que tinha ficado escondida

em algum lugar do passado. Ela não se permitia ter

acesso a essa parte que escondera no coração, porque

sabia que seria dolorido demais pensar no que fora

forçada a abandonar. Despertaria a saudade, lembraria

do amor que tinha ficado para fora dos muros do Saint

Clair. Então, viria o ódio inútil e devastador. Ela

precisava esquecer.

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A cena do pai sorrindo para ela quando

criança não saía de sua cabeça. Ele acariciava seu cabelo

e dizia o quanto ela era bonita e importante para ele. Ela

tinha ficado doente, e precisara ser internada por causa

de uma inflamação na garganta. Mas ela não se

importou, porque sentiu pela primeira e única vez o

quanto o pai a amava. Sempre soubera, mas ouvi-lo

dizer aquilo era bom demais. Naquele tempo ela ainda

tinha medo de escuro...

Virou-se pro outro lado da cama. Jim

aproveitava a fraca luz do corredor para ler. Estava

deitado ao contrário, com os pés onde deveria estar a

cabeça, o rosto apoiado nos cotovelos e a expressão

compenetrada. Ela não entendia como ele não

desenvolvia um sério problema nas vistas por forçá-las

assim. Ou por que não dormia e esperava amanhecer

para ler seu romance policial.

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— Jim...? — Ela chamou, num sussurro para não

acordar Bertha, sua companheira de quarto.

— Sim?

— Por que acha que não temos relógios por aqui?

— Porque não precisamos de um. — Ele respondeu com

simplicidade, voltando-se para ela na semi-escuridão.

— Eu gostaria de ter um relógio de parede. — Ela

considerou a própria afirmação. —aqui no quarto,

talvez.

— Pra quê? Não faz diferença, Millie.— Ele voltou a

atenção para o livro.

Ela trocou de posição, as mãos cruzadas sobre

a barriga.

— Você gosta daqui, Jim? Gosta de saber que vai passar

o resto da vida preso aqui dentro?

— Não sei. — Ele ficou pensativo, tirando os olhos do

livro. — Acho que já me acostumei.

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— É, eu também. Mas é desesperador saber que não

vamos nunca mais viver como era antes... Como as

outras pessoas. — Ela se lembrou de sua casa, do pai e

de Charlie. — Eu achava que um dia ia me formar em

qualquer coisa, casar ter filhos. — Ela riu. —Sabe?

Talvez essa vida aqui seja muito mais interessante...

— Eu não sei se gostaria de voltar, Millie. Parece que as

pessoas aqui me dão muito mais atenção do que em

casa. Minha mãe nunca foi muito paciente, e meu pai

estava sempre trabalhando.

— Não tem irmãos?

— Dois, mas eles achavam que eu sou louco.

— Por quê?

— Eles diziam isso. Riam de mim... Eu sei que riam.

Achavam minhas idéias estranhas, e tudo que eu fazia

era errado.

Isso a fez lembrar-se de sua própria casa.

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— Você tinha amigos? Quero dizer... Amigos de

verdade?

Ele deu de ombros, com um meio sorriso.

— O pessoal aqui é meu amigo. Você é minha amiga.

Não quero voltar pra casa.

Ela o considerou, em parte concordando.

— Acho que vai chegar uma hora que não vou suportar

esse lugar.

— Então...?

— Então o quê?

— O que vai fazer quando não suportar mais?

— Enlouquecer. — Deu uma risada curta. — Bem

conveniente.

— Você poderia fugir. Dar o fora.

— Num caminhão de comida? Cavando um túnel?

Ele sentou-se na cama, marcando a página

do livro com um pedaço de papel.

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— Não. Eu teria uma idéia melhor. — Ela também se

sentou, ouvindo com estranha atenção. — Um dia, eu

fui ao shopping com minha mãe. Faz muito tempo...

Bom, tinha uma saída de emergência. Sabe o que é uma

porta de emergência?

— Sei.

— Eu não sabia, mas ela me explicou que todo lugar

público tem uma saída de emergência, pro caso de

incêndios ou... Emergências.

— E onde entra seu fabuloso plano nessa história?

— Saint Clair não é exatamente um lugar público, mas

eu vi uma dessas portas no fundo do pátio.

— Que eles mantêm devidamente trancada. — Ela

concluiu. — E sem chances de arrombo, provavelmente.

— Eu não pensaria em arrombar, isso seria coisa de

marginal.

— E...?

— Se houvesse um acidente, poderíamos sair por ela.

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Ela suspirou, decepcionada.

— Não há muitas chances de isso acontecer aqui.

— Não naturalmente.

— O que quer dizer com isso? — Seu interesse renovou.

— Eu sei exatamente onde a tia Anna guarda os palitos

de fósforo. É apenas uma questão de como pegá-los.

— E depois? — Ela notou a conversa casual tomar outro

rumo, e Jim mudar os verbos de ´seria´ para ‘é’.

Ele ficou confuso, como se achasse que era

óbvio ela entender o que acontecia a seguir. Respondeu

mesmo assim:

— Nós damos o fora, claro.

— Sabe que faz sentido? — Ela ajeitou as pernas na

posição de ‘indiozinho’, como fazia na pré-escola. —

Poderíamos realmente conseguir.

— Claro. — Ele admitiu, com um sorriso modesto. — É

viável.

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Ela imaginou o que aconteceria com eles se

fossem pegos. Avaliando tudo, não havia muito a

perder. Eles já estavam condenados.

— Mas para onde iríamos?

— Era de noite, a luz tinha acabado, e os geradores não

funcionaram. — Ele começou, sem responder a

pergunta de Mabel. — Muitos doidos são escotofóbicos.

Sabe o que é escotofobia, Millie? — Ela balançou a

cabeça em negativa. —É o medo exagerado e

incontrolável do escuro. Imagine só a confusão que

ficou esse lugar!

Ela sorriu.

— Deve ter parecido um hospício.

Ele retribuiu o sorriso.

— Magda,coitada, era a que mais chorava. Então a tia

Julia gritou para que alguém pegasse uma vela, um

fósforo, um lampião...

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Mabel imaginou a enfermeira gorda

gritando desesperada por um lampião e começou a rir.

— Ela falou pra eu procurar na cozinha. — Ele

continuou. — Disse que estava na porta debaixo do

armário marrom, e que a chave ficava dentro do vaso.

Guardei esse segredo até hoje, porque imaginei que

usaria essa informação em alguma outra ocasião.

— Você levou os fósforos, e o pessoal se acalmou?

— Mais ou menos. Tio George demorou para achar as

velas no sótão, iluminado só com o palito de fósforo que

eu levava. E não foi legal vê-lo levar um tombo

daqueles no degrau da cozinha.

Ela riu.

— Deve ter sido, sim.

Jim sorriu.

— Se importar, as velas ficam no armário de metal do

sótão, do lado das caixas de papelão.

— Certo, vou me lembrar disso.

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— Acha que nossa memória é como se fosse cercada por

elásticos, como dizem? Ou ela tem um limite de

capacidade, não devemos enfiar tudo que vemos pela

frente?

— Gosto de definir prioridades.

Ele deitou-se, a cabeça recostada nos braços.

— Eu deixo entrar tudo que vejo pela frente.

Um silêncio pensativo prevaleceu por alguns

segundos.

— E o que faremos depois, Jim? Pra onde iremos?

— Deixe que o destino se encarregue do resto. Deixe

acontecer naturalmente...

Ela soltou um suspiro.

— Não é tão fácil deixar o depois para depois.

A colega de quarto acordou e lançou-lhes um

olhar reprovador. Apesar de manterem o tom baixo da

voz, começavam a pertubá-la.

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— Acho que precisamos domir. — Jim disse, colocando

o livro embaixo do travesseiro.

— Parece que sim.

Mabel recostou a cabeça, pensando se iriam

realmente fazer aquilo. Ela reconhecia ser audaciosa o

bastante, mas e quanto a Jim? Não poderia fazer

sozinha. Achava mesmo que se permanecesse ali mais

um ano, enlouqueceria.

— Jim? — Ela tentou novamente, minutos depois.

— Hum?

— Você me disse que não sentia necessidade de sair

daqui.

— E não sinto. Mas acho que seria legal uma aventura.

Ainda mais com você. Por você.

Ela sentiu a sinceridade dele, e lembrou-se do

que havia de muito ali, e de pouco no mundo lá fora:

sinceridade.

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— Obrigada. — Ela sentiu-se tentada a perguntar

quando, mas ainda não tinha certeza se Jim realmente

faria. Ele acabou respondendo sua pergunta com uma

risada baixa.

— Não teria ido uma boa idéia? Minha mãe sempre

disse que eu leio demais...

‘Teria sido uma boa idéia. ’

Capítulo Dezoito

Era estranho que agora Joshua se sentisse

sozinho em casa, já que tinha passado a maior parte dos

últimos três sem se importar com isso. O problema era

não ter pra onde ir.

Muitas vezes ele saía na rua de madrugada, só

para vagar. Ter uma noite de sono tranquila tornara-se

impossível, e isso só complicava ainda mais sua difícil

situação. Considerou a idéia de arrumar um emprego

fora de casa, até mesmo estudar alguma coisa. Mas

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chegou á conclusão de que o mundo lá fora era muito

perigoso. Recostou-se no sofá, avaliando sua vida nos

últimos dias. A familiar sala escura, onde o único ponto

de luz era a tela do computador. Talvez o mundo ali

dentro fosse ainda mais perigoso.

Passava das sete da manhã, mas isso não

fazia qualquer diferença. Tinha passado outra noite em

claro, e sabia que tinha os olhos injetados. Talvez

devesse comer. A televisão estava em volume baixo,

mas ele ouvia bem a discussão acalorada de Patolino e

Perna Longa. Joshua sabia que o coelho venceria outra

vez, usando sua esperteza.

A campainha tocou várias vezes antes que

Joshua notasse. Enrolou a manta no corpo e observou

do olho mágico. Era uma garota. Tinha o cabelo loiro

preso em um rabo de cavalo, e trazia sacolas nas mãos.

Ele não a reconheceu.

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— Entrega da padaria. — Ela anunciou, estendendo um

pacote de papel. Mascava chiclete ruidosamente.

Ele ficou confuso.

— Eu sou nova no serviço. — Ela explicou com

paciência. — O outro menino foi demitido.

— Mas eu não pedi nada, ainda. Eu acho...

— Avenida 33, quinto andar, apartamento 20? Deve ser

você.

Ele coçou a cabeça, na tentativa de lembrar-se.

Era possível que tivesse pedido algo.

— O que tem aqui? — Ele perguntou, abrindo o pacote.

— Um litro de leite e dois croissants.

— Bom, pode deixar aqui.

Ele pagou e deu a gorjeta. A menina o

encarou por um momento.

— Se sente bem, moço?

— Claro.

Ela ainda o observou mais um pouco.

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— Obrigado. — Ele finalizou a possível conversa,

batendo a porta em seguida.

Voltou a deitar-se no sofá, bebendo o leite

diretamente da garrafa. Sabia que não teria força

suficiente para levantar dali mesmo se quisesse.

Começou a chorar. Sabia que não era tristeza, mas sim

desespero. Desespero por não ter aquilo que precisava

urgentemente. Por não saber do quê precisava tão

urgente

Já era tarde quando Joshua tornou a abrir os

olhos, surpreso por ter dormido tanto tempo. Levantou-

se um pouco cambaleante do sofá, tropeçando na

garrafa de leite. O líquido derramado no chão o fez

lembrar de outra cena. Uma garrafa de vinho jogada no

tapete branco da sala, na manhã seguinte á uma festa

que ele dera em casa. Deparara-se com uma menina

dormindo na cama de sua mãe, sem que ele nem ao

menos soubesse quem era. A bagunça da festa tinha

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sido uma lição para que Joshua jamais desobedecesse a

sua mãe de novo.

Enquanto limpava o leite derramado do chão,

ele imaginou como teria sido sua vida se ele não tivesse

ido embora de casa. Não seria melhor, reconheceu.

Ainda estaria naquela cozinha empoeirada, sentado á

mesa com sua mãe. Ele, com os pensamentos distantes,

ouvindo-a mastigar ruidosamente. Ela diria de repente

que Joshua precisava se esforçar mais na escola, pois do

jeito que estava indo, se tornaria um vagabundo, como

tinha sido seu pai. Então, ela soltaria um comentário

casual de como ele se vestia mal.

A cabeça latejava novamente. Joshua largou

o pano de chão. Não tinha conseguido tirar a mancha

do tapete, deu-se por vencido. Precisava de uma

aspirina.

Ultimamente, ele vinha pensando muito

sobre a vida. Refletiu mais uma vez, empurrando o

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comprimido com um gole de água. Era angustiante

pensar o tempo todo. Gostaria de não pensar nunca

mais. Ser lobotomizado, quem sabe. O que faria agora?

Eram exatamente quatro e cinquenta e sete da tarde, e

ele não tinha absolutamente nada pra fazer. Na

verdade, não sentia vontade de fazer nada do que tinha

a fazer. Com passos lentos e a mente dormente, ele tirou

o abridor de latas da gaveta do balcão. Estava velho e

enferrujado. Há muito tempo que decidira comprar

outro, mas sempre acabava deixando pra depois. Aquilo

pareceu de grande importância naquele momento, mas

ele teve que ignorar. Não poderia mais resolver aquele

problema.

Por um instante, ele fitou os próprios pulsos.

Seria mais fácil se tivesse um canivete á mão. Devagar, e

com cuidado, ele passou a lâmina sobre uma das veias.

A segunda veia foi cortada com pressa e fúria.

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Deixou-se cair no chão, quase sem dor. Tudo

que sentia era um imenso vazio. Sua vida era boa, até

Heather chegar e mostrar-lhe que poderia ser muito

melhor. E depois o abandonou. Estava sozinho. Ela

tinha enganado ele. A vida nunca poderia ser boa o

suficiente para ninguém.

O mundo imenso e sombrio ao redor girava e

vacilava. Ele sabia estar caindo de um imenso abismo,

pois não conseguia apoiar os pés. Talvez o chão não

existisse. Talvez fosse uma mentira, como todo o resto.

Estava tudo ficando escuro.

Teve a impressão de ouvir a campainha.

Considerou a idéia de ser Heather, mas logo a afastou.

Heather estava morta. Morta.

Mal reconheceu os gritos que saíam com

dificuldade de sua garganta como seus. Poderiam até

não ter sido, se eles não estivessem queimando tudo por

dentro.

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Tinha sido um erro. Deveria telefonar para o

pronto socorro, e pedir ajuda. Tentou levantar, mas o

corpo recusou-se obedecer ao comando do cérebro.

Então, ele entendeu que era tarde demais.

Era a primeira entrevista de emprego que

Nicky conseguia. Mandara seus currículos para

diversos escritórios, e estava disposto a não perder esse

emprego.

Vestiu seu melhor terno, esperando que

ninguém reparasse no furinho do colarinho azul. O

lugar era uma contabilidade também, afinal, Pôr-do-sol

tinha sido seu único emprego em toda sua vida. Ele não

tinha certeza se sabia fazer alguma outra coisa.

Reconhecia ser um trabalho cansativo e entediante, mas

precisava de dinheiro, até que, um dia, pudesse

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sobreviver apenas de sua arte. Por enquanto, apenas

caçava um agente, e torcia por muita sorte.

Nicky entrou no escritório pequeno, muito

menor do que ele esperava. Cumprimentou

polidamente a secretária simpática e achou ter saído-se

muito bem na entrevista quando partiu. Na semana

seguinte, foi contratado e encontrou um homem

disposto a agenciá-lo. Considerando tudo, talvez tivesse

sido sua semana da sorte.

A verdade é que ele tinha sido um cara de

sorte nos últimos meses. Apesar do terrível fracasso

daquela noite fatídica.

Ele chegara em casa, e trancara-se no quarto.

Afundou a cabeça no travesseiro. Sua mãe abrira a

porta, preocupada. Nicky nunca saía de casa depois do

anoitecer, e tinha desaparecido por uma hora inteira.

Ela acendera a luz e sentara-se na cama, ouvindo seus

soluços abafados.

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— O que aconteceu, Nicky?

Ele ergueu-se na cama, mostrando as mãos

cheias de sangue. Tinha o rosto encharcado de lagrimas.

— Eu matei uma mulher.

Ela ficou vários instantes estática, até

absorver a informação.

— Alguém viu? — Perguntou.

— Não sei... — Ele disse, desatando a chorar

novamente. — A culpa não foi minha! — Ele começou a

gritar. — A culpa não foi minha!

— Conte. — Ela falou, numa paciência forçada. —

Conte tudo, Nicky.

Ele contou. Desde os espíritos que se

libertavam quando era escuro, da sua missão, sobre os

demônios que habitavam entre as pessoas. Deixou-se

desabafar, falou sobre como as coisas iam de mal a pior

nesse mundo enorme e fora de controle, como se sentia

mal em pensar nas crianças que morriam de fome por

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causa dos erros das pessoas que permitiam que o mal

entrasse em suas vidas, e dominasse seus corações

fracos. O desejo era uma das armas usadas contra elas,

alvos fáceis e descuidados. Depois, vinha o ódio. E o

medo. Então, essas forças negativas eram liberadas tão

sorrateiras que ninguém percebia. Se fortaleciam a cada

vez que uma alma se entregava nas mãos da morte, sem

que estivesse a salvo, do lado do bem. Ele reconhecia as

próprias fraquezas, mas entendia-se bem demais como

ser humano para deixar-se levar por elas.

Ela ouviu tudo calada. Deixou que ele

chorasse por mais alguns instantes, depois se levantou,

começou a colocar roupas em uma mala. Ela tinha

permanecido esquecida no fundo do guarda roupas por

muito tempo. Fora usada apenas uma vez, quando os

dois fizeram uma viajem juntos, há muitos anos atrás.

Havia outra viajem a ser feita. Mas dessa

vez ele iria sozinho.

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A passagem foi-lhe arranjada para a manhã

seguinte, e horas depois, ele estava em um aeroporto da

Flórida, sentindo muita falta de sua mãe.

O lugar estava apinhado, e aquilo lhe

causava arrepios. Tinha que apresentar-se com um

nome diferente, a mãe lhe aconselhara a deixar a barba

crescer e cortar o cabelo. Não lhe agradava ter que fingir

ser outra pessoa. Mas não havia outro jeito. Pelo menos

até que entendessem o seu motivo, e reconhecessem que

aquilo era o melhor para todos. Seguiu até o banheiro,

sentindo-se sufocado. Talvez não fosse o aeroporto

lotado que o fazia sentir-se assim, mas seus próprios

sentimentos. E o medo. Ele balançou a cabeça para

espantá-lo. Não deixaria que fosse assim.

Um rapaz acabara de entrar em um dos

banheiros. Não devia ter mais do que vinte anos,

calculou. Nicky encostou-se na pia do banheiro para

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esperar. Por algum motivo que desconhecia, ele

precisava falar com o outro.

Deu um sorriso polido quando o rapaz abriu

a porta e passou por ele. Não foi correspondido. Foi

ignorado.

Inconformado, indagou em voz alta:

— Não viu que te cumprimentei?

Ele voltou-se para Nicky, surpreso.

— Está falando comigo?

— Está vendo mais alguém aqui?

— Eu não te conheço.

Estava deixando o recinto, mas Nicky

segurou-o pelo braço.

— Me escute, seu tolo! Por que ninguém nunca me dá

ouvidos?

— Me solta, seu louco! — O rapaz disse, tentando

livrar-se. Nicky o vencia na força. — Me larga!

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Nicky apertou o pescoço dele com as duas

mãos. Largou-o assim que percebeu que ele cedeu, e o

corpo caiu pesadamente no chão de ladrilhos sujos.

Deixou o banheiro e o aeroporto, para procurar uma

casa para morar em sua nova e breve vida em Nova

York.

A casa era pequena, mas servia-lhe bem. O

emprego serviria melhor ainda.

Sim, as coisas estavam saindo perfeitas.

Jim tropeçou no degrau baixo que os levava á

cozinha. A cozinheira olhou com desaprovação. Ele

puxou o fôlego novamente, como fizera durante todo o

passeio no jardim, antes de decidir que estava cansado

demais para continuar andando.

— Eu já disse para tirarem essa droga de degrau. É

perigoso. Eu mesma tropeço nele todos os dias.

— Tirá-lo e colocá-lo onde?

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Jim já estava recuperado do tropeção e

sorria. Sentou esparramado á pequena mesa redonda

que servia para os poucos empregados do hospital.

Mabel entrou atrás dele.

— Estou com fome... — Ele entoou em forma de canção.

— Ainda não é nem meio dia.

— É... Eu sei. Mas meu estômago não sabe.

— O que você tem é gula, menino. — Ela disse,

voltando a atenção para a panela de água fervente.

Ele correu para frente do fogão, onde ela

podia vê-lo e prestar-lhe atenção.

— Estou triste, tia Jane.

— É mesmo? Por quê? — Indagou, sem deixar de mexer

a antiquada colher de pau.

— Porque acho que estou doente.

Enquanto ele falava, Mabel seguia para o

compartimento adjacente á cozinha. Ainda podia ouvi-

lo falar besteiras para mantê-la distraída. Não

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encontrava nenhuma pimenta na geladeira. Começava a

ficar nervosa.

— O que está sentindo? — Tia Jane perguntou.

— Tosse. Muita tosse.

— Tenho certeza de que é só uma gripe. Onde está sua

amiga?

Não havia pimentas naquele lugar, ela

amaldiçoou. Olhou ao redor, e notou uma porta que ela

nunca tinha visto antes.

— Não sei, deve ter saído para arrumar o cabelo.

Meninas adoram arrumar o cabelo. Não adoram?

Mabel percebia a voz dele se alterar em seu

nervosismo. Era um laboratório pequeno. Os remédios

estavam dispostos em prateleiras brancas. As paredes

também eram brancas. Céus, como aquela cor

confundia seus olhos.

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— Sabe de uma coisa, tia Jane? — Ele tagarelava sem

parar. — Eu estou com vontade de beber. Beber até cair

no chão de tão embriagado.

— O quê?

— Pois é, um Jack Daniels, quem sabe. Quer beber

comigo, tia Jane?

Não eram remédios conhecidos aqueles. E

pareciam ser todos psiquiátricos. Lembrou-se

vagamente de certa vez ter ouvido dizer a respeito de

um mutirão anti-manicomial. Dizia-se que os doentes

mentais eram usados como cobaias para testes.

Na outra prateleira havia os remédios

convencionais.

Analgésicos, antiinflamatórios. Encontrou o que queria:

um laxante potente.

Já ia deixando a sala quando ouviu a voz de

Jim mais de perto.

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— Pra quem a senhora torce? Eu acho que os Bucks

arrasam!

Estavam perto.

— Deixe disso. — Jim dizia. — Ela não está aqui. Eu a vi

saindo.

Mabel agachou-se atrás de uma mesa.

— Não é para nenhum de vocês entrar, garoto. Aliás,

nem sei o que faz aqui, James. Dê o fora.

— Mas que forma horrível de tratar as pessoas que vêm

conversar com a senhora...

— Acontece que eu tenho coisas pra fazer. — Ela

esbravejou. — Muitas coisas! Se vocês não trabalham,

eu sim!

Mabel ouviu a porta do laboratório ser

aberta. Encolheu-se mais.

— Eu já te contei sobre o meu sonho de ser arquiteto?

— Essa porta deveria estar trancada!

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— Eu teria sido um bom arquiteto. Mas minha mãe não

quis me deixar completar nem o primeiro ano na

faculdade.

A porta bateu. Eles estavam novamente do

lado de fora.

— Saia daqui!

O silêncio que se seguiu mostrou á Mabel

que não havia mais ninguém por ali. Esperou até

deduzir que já era meio dia, a hora que as empregadas

serviam o almoço e saiu. Encontrou Jim no corredor,

esperando por ela, ansioso. Ela mostrou-lhe o novo

líquido precioso.

Capítulo Dezenove

Com passos lentos, Nicky caminhava

observando vitrines e transeuntes. Era tudo tão

superficial. A tarde fria tornava essa idéia física e ainda

mais solitária. Alguém esbarrou nele, mas ele não se

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deu o trabalho de olhar para trás. Não estava disposto a

encontrar mais um olhar distante. Distante dele. O

mundo estava distante dele. E ele sentia-se distante do

mundo.

Uma jovem parada no ponto de ônibus

fumava um cigarro, com um olhar perdido no vazio. Ela

estava do outro lado da rua, mas mesmo através da

bagunça do trânsito, e das pessoas ruidosas, ele podia

vê-la claramente. Algo lhe chamava a atenção, e ele logo

descobriu o que era. Ela parecia-se com uma versão

mais jovem de sua mãe.

Ele atravessou a rua ao encontro dela. Ela não

pareceu surpresa com sua repentina aparição, como se

estivesse esperando por ele.

— Boa tarde. Eu sou Nicky Oberon. — Ele sabia que a

escolha do nome era um pouco romântica, fantasiosa

demais, e que sua mãe não aprovaria quando soubesse.

Mas ele não teria se contentado com nomes simples,

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Smith, Harrison, Taylor. Não justamente quando ele

poderia escolher. Seu nome verdadeiro não era

entediante, vinha de seus antecedentes na Hungria.

Porém, o nome do personagem de Shakespeare pareceu

perfeito para ele.

A garota deu um sorriso que o comoveu

na mesma hora.

— Julia Dean. — Estendeu a mão pra ele. — Prazer.

— O prazer é todo meu. — Segurou a mão dela por

alguns instantes. — O que faz uma menina como você

perdida numa rua de Jacksonville?

— Só esperando meu ônibus. — Ela riu.

— Eu vejo algo diferente nos seus olhos.

— Sabe que são poucos os caras que abordam mulheres

desse jeito? Assim falando de seus olhos, não gritando

idiotices. Achei que isso tinha ficado no século XX.

— Me acha antiquado?

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— Bastante! — Ela tornou a rir. — Mas isso é diferente,

original. Gostei, Nicky.

— Então me diga, Srta.Dean. De onde vem e para onde

vai?

—Volto do trabalho. Vou para a casa.

— Eu também volto do trabalho, mas sobre meu futuro,

não estou muito certo. Nunca se pode saber com

certeza.

— Acho que tenho certeza de que estou indo para casa.

Ele arqueou uma sombracelha.

— Acha com certeza?

— Bom, não tem outro lugar para onde eu possa ir.

— Há muitos lugares para onde ir. Só não sabemos

como chegar até eles. Ou se o que realmente queremos é

ir.

Ela olhou para ele por alguns instantes.

— É um poeta?

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— Longe disso! Apenas um louco... Mas o que acha?

Você quer ir?

— Ir aonde?

— Pra onde disse que está indo?

— Pra minha casa.

— Por quê?

— Como assim, por quê? Está me deixando confusa.

— Por que quer ir pra casa? Porque se sente segura lá?

— Me sinto segura em qualquer lugar.

— Mesmo aqui?

Ela olhou ao redor, repentinamente

parecendo assustada.

— Sim, aqui também.

— Com todas as pessoas, assim, tão perto?

— Por que diz isso? — Ela já tinha mudado o tom de

voz do flerte para a defensiva, e recuou um passo para

trás.

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— Nunca se sabe o que elas pensam. Por dentro, são o

lugar menos seguro para se conhecer. Portanto, nunca

se sinta segura perto de um da espécie. — Ela olhou

para a rua, apreensiva, como se procurasse ajuda. —

Mas não fique assustada, Srta.Dean, por favor. Tenha

certeza de que não pretendo machucá-la. — Pegou o

braço dela com delicadeza. — Pelo contrário.

Ela não pareceu mais descontraída com

sua afirmação. Mas não puxou o braço.

— Não estou assustada. —Disse, com determinação.

— Vamos começar de novo, certo? Sinto que não está

confortável com esse assunto.

— Não muito.

— Prazer, meu nome é Nicky Oberon. Qual a graça da

Srta.?

— Julia. — Ela deu uma risada curta. — Apenas Julia,

certo?

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— Eu não digo ‘prazer’ apenas por dizer. É realmente

um prazer conhecê-la, Julia.

— Sei disso, pois você já demonstrou.

— Sinto muito se minha sinceridade te irrita. Vou tentar

ser mais discreto.

— Não faz mal, Nicky. Mas por que você não me

convida logo pra sair? Meu ônibus já está chegando.

Nicky olhou na direção que ela

apontava. O ônibus se aproximava rapidamente.

—Não vou convidá-la para sair.

— Não? — Ela deu sinal o ônibus.

— Vou tentar encontrá-la aqui amanhã, nesse mesmo

horário, ao pôr do sol. Gosto da expectativa.

— Isso é bacana. — Ela disse. O ônibus já havia parado

em frente ao ponto. — Espero encontrá-lo amanhã. —

Começou a subir os degraus.

— Confie no destino. Quem sabe eu encontro você aqui?

— Sorriu para si mesmo enquanto observava o ônibus

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partir. Mas eu sei que o destino escolheu você para mim. Eu

sou Oberon ,e vou pingar em seus olhos o orvalho da flor do

amor perfeito.

Angela passou por Mabel e Jim no jardim.

A enfermeira inspetora gritava ordens para as outras

enfermeiras. Pedia para que tirassem uma das pacientes

do canteiro de flores, pois se ela não fosse atingida por

um dos espinhos das flores mal tratadas — pois o

jardineiro nem tirar espinhos sabia, estragaria o que

restava das rosas. Mabel lançou para ele um olhar

cúmplice.

— Acho que Alice não vai machucar as rosas. — Jim

disse. — Pelo contrário... Ela adora flores.

— Cadê o Robert? — Mabel perguntou, lembrando que

fazia tempo que não o via.

— Roger só vem aqui quando está em crise. Acordou

gritando semana passada, perguntando onde diabos

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estava. Faz uma semana que saiu. Você é muito

perceptiva, Millie.

— Obrigada.

—Não tem por onde. Então, quando vamos atacar?

Ela olhou na direção de tia Angela. O

mais breve possível.

— Nessa noite, no jantar. Vai ser muito fácil, Jim.

Sentou-se em um dos bancos de

madeira, e Jim a imitou.

— Parece seguro, também.

— Acho que sim. — Ela deu de ombros. — Estamos

realmente precisando de uma agitada.

— Mal posso esperar. — Seus olhinhos agitados

agitaram-se ainda mais. Depois, ele relaxou. — O que

acha? Que o mundo vai acabar por causa do

aquecimento global, ou por falta de água?

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— O aquecimento global vai acabar com a água, e

começaremos a brigar por ela. O mundo vai acabar em

poucas e grandes explosões atômicas.

A manhã seguinte começou normal, sem

qualquer tipo de novidade. Mabel estava esperando por

alguma. A noite passada tinha sido um completo

sucesso. Só torcia para que Angela não descobrisse.

Deixou o quarto e procurou por Jim,

acostumada a nunca vê-lo na cama depois do

amanhecer.

Como não o encontrou, sentou-se á mesa

de Bertha para começar o café da manhã.

— Jim vai reclamar que comecei a comer sem ele. — Ela

riu para Bertha.

— Você o viu?

— Não. — Uma leve preocupação agitou seus sentidos.

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— Nem eu. Estive procurando por ele. Meu rádio

quebrou de novo. Precisa de conserto.

Mabel largou o prato ainda cheio sobre a

mesa. Encontrou uma das enfermeiras na cozinha.

— Sabe onde está Jim?

— Ele não passou bem a noite. Teve de ser levado para

a enfermaria.

A imagem de tia Ângela tomando o

laxante passou pela sua cabeça, mas ela descartou a

possibilidade. Não tinham sido descobertos. E mesmo

que tivessem de fato, o que poderiam ter feito com ele?

— O que ele tem?

— Não se preocupe com seu amigo. É apenas uma gripe

forte.

Ela segurou a enfermeira pelo braço.

— Tem certeza de que ele está bem?

— Claro. — Ela livrou o braço.

— Preciso vê-lo. Quero falar com ele.

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— Prometo fazer o possível. — Deu as costas.

Mabel voltou para a mesa, mas descobriu-

se sem apetite. O que teria acontecido com Jim? Ela

sabia não se tratar somente de uma gripe. Talvez ele

estivesse realmente doente. Lembrou-se de que ele

estava tossindo muito nos últimos dias. Notou que a

apreensão já tinha tomado conta de sua mente. Não

tentou afastar o pensamento, e passou o resto do dia

esperando por algum sinal.

Nenhum sinal de Jim, nem de tia Angela.

Ela não pôde deixar de rir. Ela não viera trabalhar.

Tinha realmente funcionado.

Foi na manhã seguinte, depois de uma

noite mal dormida, que Mabel teve uma pista de Jim.

Pelo vidro fechado, ela viu os pais dele conversarem

com um dos médicos na sala de visitas. Não ouvia o que

diziam, mas pelas suas expressões, o assunto não era

nada bom.

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— Será que Jim morreu?

Robert perguntou, surgido de repente,

parado ao seu lado. Devia estar em crise de novo. Ela

lançou-lhe um olhar mortal.

— O quê? — Ele defendeu-se. — É possível.

— Droga! — Ela exclamou, afastando-se do vidro.

Se Jim estivesse doente, ela só saberia

quando ele retornasse. A enfermeira Margareth havia-

lhe prometido novidades, mas ela sabia que a outra só

estava mentindo, afinal, Mabel era apenas uma louca

que precisava ser acalmada. Ela sentiu vontade de

chorar de raiva. Queria rir de tia Angela com ele! Ele

poderia até mesmo ser transferido para um hospital,

dependendo do que ele tivesse. Não poderia ficar assim.

Iria encontrá-lo antes que fosse tarde.

— Ah Robert! — Ela exclamou como se sentisse dor.

Segurou o peito com as duas mãos.

— O que foi?

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Ela balançou a cabeça, impossibilitada de

falar.

— O que foi? — Robert repetiu, angustiado.

—Não sei... — Sua voz saiu entrecortada. — Não me

sinto bem!

— Quer que eu chame um médico?

Ela assentiu. Em poucos segundos, tinha

sido levada para a enfermaria. Prestaram-lhe os

primeiros socorros rapidamente, deram-lhe remédio

para a dor, e pediram para que descansasse.

— Não foi nada, Srta.Gibbs. —O doutor Phoenix disse

tranquilizador. — Provavelmente só um mal estar. Já

sentiu isso antes?

— Não, doutor. — ajeitou o travesseiro atrás da cabeça.

— Foi a primeira vez. Tudo começou a girar, e o ar me

faltou.

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— Vamos fazer os exames á tarde, certo? Enquanto isso,

peço para que descanse e não se preocupe. As

enfermeiras vão trazer-lhe algumas revistas.

O doutor deixou-a sozinha no quarto, e ela

esperou apenas alguns instantes antes de sair também.

Percorreu os curtos corredores da enfermaria

rapidamente, observando cada quarto. Finalmente,

encontrou Jim no final do terceiro corredor.

— Millie! — Ele exclamou, com um sorriso radiante

estampado no rosto muito pálido. —Você demorou pra

vir me visitar.

Ela sentou-se ao seu lado na cama, e só

então ele percebeu que ela também vestia roupas de

hospital. Ele pareceu preocupado.

— Não se sente bem também?

— O que aconteceu com você? — Ela perguntou á beira

do desespero. Colocou a mão no rosto quente dele.

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— Eu acho que estou com febre. E não consegui dormir

á noite. Tive sonhos estranhos. Num deles, eu...

— O que disseram? — Ela interrompeu.

— Os médicos? Eu estava um pouco zonzo, mas ouvi

alguma coisa sobre tuberculose. — Ela não conseguiu

disfarçar o susto, mas ele pareceu não se importar. — E

tia Angela? — Ele riu, interrompido por uma dor no

peito. — Já a viu?

— Não, Jim... — Começou a chorar, contra a própria

vontade. — Eu ainda não a vi.

— Por que está chorando, Millie? — Ele perguntou,

consternado. Passou a mão pelo cabelo dela. — Alguém

te fez alguma coisa?

Ela balançou a cabeça em negativa, e disse

mais para si mesma do que para Jim:

— Você vai ficar bem...

— Ah, isso? Claro que eu vou ficar bem! — Ele puxou o

ar profundamente, soava tão natural para ele, como se

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ele tivesse respirado daquele jeito a vida toda. — Uma

vez eu caí do muro da minha casa, e meu irmão me

disse que eu não ia morrer, porque ‘vaso ruim não

quebra’. — Ele riu.

Ela assentiu na hora que a porta foi aberta.

Era o doutor Phoenix, com os pais de Jim. Estava

irritado.

— O que faz aqui, Srta.Gibbs? — Os três usavam

máscaras que tampavam o nariz e a boca. — Saia daqui

imediatamente!

— Já estou indo. — Ela limpou os olhos, encarando-o

com desafio.

— Agora!

— Até mais, Jim. — Ela disse, de alguma forma sabendo

que aquela seria a última vez que o veria sorrir.

Robert e Bertha estavam esperando por ela no

jardim.

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— Tommy quer saber onde está o Jim. — Bertha disse,

quase acusando.

— E eu também. — Robert completou. Ouvi dizer que

todos nós vamos ter que fazer exame pra ver se estamos

com tube.. Tuber..

— Tuberculose! — Bertha acudiu.

— Isso... Isso mesmo. O que sabe a respeito?

Mabel passou direto por eles, e foi sentar-se no

banco mais afastado do jardim, onde costumava ficar

com Jim para fugir dos outros. E deixou-se chorar por

vários minutos.

Por diversas vezes, Mabel trocou de posição

até notar que decisivamente não conseguiria dormir.

Levantou-se e ficou caminhando pelos corredores, sem

direção. Parou na sala de atividades, imaginando que

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havia algo de muito errado naquele lugar. E de repente

ela entendeu o que era.

— Ei! — Ela gritou, para quem pudesse ouvi-la. — Por

que nós não temos um piano?

Dois médicos entraram na sala e a agarraram

pelo braço.

— Me larguem seus malucos! Eu quero um piano!

Precisamos de um piano nessa sala estúpida! — Sentiu

as lágrimas quentes escorrerem do seu rosto, e ela

tentou controlá-las. Como se tivessem vida própria, elas

insistiam em sair de seus olhos dormentes. Estavam

queimando sua pele.

Seu braço foi estendido á força, e lhe

aplicaram uma injeção.

— Vocês o mataram! — Ela gritou, nos braços do

médico. — Mataram ele e vão me matar! — Sentiu suas

forças deixá-la. — Estão me matando...

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Só acordou na cama, sem saber que horas

eram. O sol que via pela janela parecia ser o sol da

tarde. Fechou os olhos para afastar a dor. Queria ir para

casa. Eles tinham um plano perfeito... Fugiriam juntos

daquele lugar. Mas Jim não estava mais ali. E ela não

tinha mais casa.

Pela primeira vez desde que retornara Saint

Clair, ela sentiu-se sozinha. Estava chorando

novamente. Não suportaria outra crise. Não suportaria

mais um dia naquele lugar. Se Jim estivesse morto, ela o

invejava. Mas mesmo o suicídio seria impossível

naquele lugar. Como uma experiência nova, ela rezou.

Rezou para ir pra casa, mas não sabia exatamente o que

queria dizer com isso. Simplesmente rezava para ir

embora. Ir embora...

Ela soube que a noite passou e o dia

amanheceu. A enfermeira Anne disse que ela teria que

ir ao refeitório para o desjejum, e ela obedeceu de forma

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mecânica, sentando-se numa mesa afastada e sozinha.

Decidiu que era assim que passaria o resto de sua vida.

Esperando.

Capítulo Vinte

Nicky esperou durante meia hora no ponto

de ônibus, mas Julia não apareceu. Começava a ficar

irritado. Estava realmente ansiando por rever aquela

moça. Passara a tarde toda pensando naquele encontro

de fim de tarde, impossibilitado de concentrar-se em

seu serviço. Ele passou a mão no cabelo, retirando um

pouco da umidade. O tempo estava instável. Poderia

chover a qualquer hora. Voltaria para casa, e esqueceria

de tudo. Afinal, era tolice dele deixar-se levar pela

beleza e encanto de uma mulher. Lembrou-s de como a

graça do ser feminino podia levar á desgraça um

homem hipnotizado. O desejo em forma humana. Ele

estaria muito mais seguro longe de uma delas.

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— Nicky! — Ele ouviu Julia gritar por ele, reconhecendo

a voz na mesma hora. — Espere.

Ele se voltou, e ela correu atrás dele.

— Pensei que não viesse. — Ele disse.

— Claro que eu viria. — Ela sorriu. — Então? Ainda

quer manter o suspense ou vai me levar para comer?

Estou faminta!

— Está certo. — Ele retribuiu o sorriso. — Se é o que

você quer.

Julia tomou o braço dele.

— O que quer comer? É cedo demais para jantar?

— Conheço um ótimo restaurante aqui perto.

Minutos depois, estavam sentados em um

pequeno bistrô francês. Ela tirou da boca o chiclete que

viera mascando pelo caminho, e ele sentiu-se grato por

esse gesto. O barulho de mastigação já começava a

incomodá-lo.

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O garçom trouxe e levou o cardápio. Ele

esperava que ela dissesse algo sobre sua vida.

— Mora aqui por perto, Nicky? — Ela perguntou, ao

invés disso.

— Há duas quadras daqui.

— Eu moro há três.

— Isso é bom. Estamos perto.

— O que você faz?

— Assistente de contador .Nada demais. E você?

— Eu sou garçonete. As coisas estão indo de mal a pior,

sabia? — Ela suspirou. —Precisamos mudar de

presidente logo.

— As eleições já estão aí, mas, acredite, isso não vai

mudar nada. O que precisa ser mudado, sem dúvida, é

a alma egoísta do homem.

— É engraçado, Nicky. Você é tão... — Ela procurou a

palavra. — Humano. Estamos falando de política, e

você acaba caindo na ‘filosofia’ de novo.

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— Desculpe. Vou tentar ser mais objetivo.

— Não há problema algum com isso, querido. Seja você

mesmo. Isso é tudo que importa.

O jantar foi servido. Ela comia com

delicadeza, ele notou e aprovou.

— Mora sozinha?

— Me mudei para Citrus Park há apenas um ano.

Morava em Arcádia, perto da praia.

—Você devia se divertir por lá.

— Com certeza. Mas, vim com uma colega de faculdade

para cá. Nós duas estávamos cansadas de ordens e

estudos. Tenho vinte e cinco anos. Jovem demais para

ficar presa numa escola.

“E prefere ser garçonete?”, ele pensou.

— Mas o que pretende pro futuro?

— Por enquanto? Pensar no presente.

— É um pouco arriscado viver sem propósitos. Vai me

dizer que é uma anarquista?

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—Não, nada tão grave. — Ela riu. — Você é?

— Gosto de estar sob a ordem de alguém. Lembra-se da

Idade Média? Eles estiveram muito tempo controlados.

— Certo, Nicky. Responda-me agora: Mora sozinho?

— Eu e Deus. Nunca estamos sozinhos. Também me

mudei há pouco tempo.

— Sabia que você não era daqui. Deixe eu adivinhar:

Nova York?

— Pelo contrário. Califórnia. Los Angeles.

—Também cansou-se do sol?

— Pode-se dizer que sim. Vai pedir a sobremesa?

— Acho que apenas um café. Talvez eu tenha comido

demais.

— Não se preocupe tanto com seu corpo. Ele é

destruído muito facilmente.

— E esse não é um bom motivo para eu cuidar ainda

mais dele? — Foi ela que chamou o garçom e pediu o

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café, junto com a conta. Era como se estivesse com

pressa. — Vai tomar café?

— Não bebo cafeína. Ela prejudica o sono.

— Então você é um daqueles caras que valorizam um

bom sono... Suponho que não tenha namorada.

— Supôs certo.

— Mas já teve.

— As pessoas vêm e vão.

— Você está absolutamente certo. Só os que são sinceros

ficam.

“Não existe ninguém que seja absolutamente

sincero. E ninguém permanece.”

— Sente saudades de sua família? — Ela perguntou.

— Sinto falta da minha mãe.

— Eu também. — Ela colocou poucas gotas de adoçante

no café.

— Pensa em voltar para casa?

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— Quem sabe, um dia? Decepcionar meus pais com o

que me tornei uma garçonete, quando deveria estar

estudando Direito.

— Direito? Perda de tempo. Nenhum ser mortal tem

direito de inventar leis.

— Isso eu não sei... Mas que o negócio é chato, é. — Ela

riu, e ele sorriu. Era uma tola. Não entendia nada que

fosse um pouquinho mais longe de sua lógica

vivenciada.

Julia levantou-se com a bolsa na mão.

—Vai me levar para casa, ou é pedir muito depois de ter

me pago um jantar ás seis da tarde?

— Vai ser um prazer.

A casa era um sobrado de dois quartos

pequenos, banheiro e cozinha. Não tinha lavanderia,

mas era limpa e arrumada. Ele imaginou que vida ela

teria deixado em Arcadia.

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— Barbara, minha colega de quarto, vai chegar mais

tarde. Nós teremos tempo. — Ela o guiou até o quarto

repleto de bichinhos de pelúcia. — Acho que você vai

gostar de Barbara.

— Acha mesmo? — Ele perguntou agora

desinteressado, pensando em como ela era linda. E ele a

teria.

— Hum hum... — Ela o abraçou, e ele se esqueceu de

todo o resto.

Nicky abriu os olhos, dando direto com o

relógio. Dez e quinze. Lançou uma olhada rápida na

direção da janela. Estava completamente escuro. Como

pudera ter sido tão descuidado? Levantou-se para

vestir-se rapidamente. As horas tinham passado

voando, ele mal notara, e sinceramente tinha deixado de

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pensar nisso. Tinha deixado de pensar. Julia dormia

tranquilamente esparramada na cama, e não notou

quando ele se levantou. Tudo culpa de sua precipitação,

ele amaldiçoou-se. Não sabia ele que todo cuidado era

pouco, e ainda assim ele deixava-se distrair? Não

conseguia encontrar o tênis esquecido em algum canto

do quarto. O desejo da carne é um assassino de amor.

Finalmente encontrou o outro par do tênis,

e praticamente correu para a rua. A passos largos, ele

observava tudo ao redor atentamente. Não parecia nada

fora do comum, apesar do breu, iluminado pelas

enganosas luzes artificiais da cidade. Tudo o que tem no

claro, tem também no escuro. Era o que sua mãe dizia-lhe

quando ele era criança. Se ela soubesse da verdade, não

diria isso.

Ele apressou os passos ainda mais. A rua

estava completamente vazia.

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Mantenha a mente ocupada. Ele repetia

mentalmente. Não deixe que eles se aproximem. Ele

procurava o que pensar, mas o pânico já começava a

tomar conta dele.

O que eu preciso fazer? Ele forçava-se a

lembrar da sua mesa no escritório. O computador, os

papéis metodicamente organizados. Não poderia ter

perdido o documento de Richards, um dos clientes. Se

não estavam com ele, não tinham chegado até ele, isso

com certeza era um fato. Passos atrás dele. Havia mais

alguém ali. Ele não olhou. Continuaria olhando pra

frente. Sempre para frente. A carteira de trabalho do

funcionário de Richards deve ter sido extraviada no correio.

Ah sim, foi o que provavelmente aconteceu.

— Nicky! — A voz desesperada chamou. Não era uma

voz masculina, mas também não era feminina. Ele mal

notou que já começava a correr. — Não faça isso. Não

me ignore. Olhe para mim!

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Ir em frente, ele disse a si mesmo. Não

olhar para trás. Ele sabia o que veria se o fizesse.

— Está tentando fugir de si mesmo, Nicky. Sabe que

não pode lutar sozinho. — Ele levantou as mãos para

tampar os ouvidos. — Você é um ser humano.

Exatamente como eles. — A voz tornava-se cada vez

mais alta. — Deixe que eles venham a mim. Venha a

mim!

Estava tocando em seu ombro.

Instintivamente, ele olhou para a mão que o segurava.

Deu um grito. A mão incisiva continuava pressionando

seu ombro, na tentativa de fazê-lo olhar para trás. Olhar

para seus olhos e fazê-lo compreender que ele era tão

mortal quanto os outros. Nicky não se rendeu. Deixou-

se cair de joelhos, os olhos bem fechados.

Com as mãos no rosto, ele percebia que não

era apenas um, mas que vários deles já tinham se

juntado ao seu redor. As vozes eram altas, mas apesar

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dele saber estarem muito perto, pareciam distantes.

Estavam tentando pegá-lo, fazê-lo levantar-se, mas tudo

que ele continuaria fazendo era rezar. Não posso fracassar

agora. Se eu abrir meus olhos, vão me levar. Eles querem me

levar! Não deixe que me levem!

— Talvez fosse melhor chamar um médico. — Disse

uma das vozes. Parecia incrivelmente humana, mas ele

não se deixaria enganar. — Ele não deve estar bem...

Ninguém mais o tocava, mas ele continuava

a sentir suas asquerosas presenças. Era melhor tomar

uma atitude. Continuar ali seria mais arriscado do que

fugir. Abriu os olhos com hesitação, e tornou a correr.

Não olhou diretamente para onde vinham as vozes, mas

apenas um vislumbre foi suficiente. Sentiu-se

estremecer, as lágrimas caíam pelo seu rosto. Eles

continuaram onde os deixou, Nicky podia senti-los

olhando para ele. Não tinham desistido. Nunca

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desistiam. Arrancariam sua alma imortal, então ele já

não existiria mais. Não! Não deixe que isso aconteça!

Bateu a porta de casa atrás de si, estremecendo

novamente com o estrondo. Passou os trincos, e correu

para o quarto. Embaixo das cobertas estaria a salvo. Mas

a agitação não estava colaborando para fazê-lo dormir.

Ainda sentia-se tremer. Eles poderiam estar ali dentro.

Deviam estar ali dentro de seu quarto, espreitando,

silenciosos. Pensou em Julia. Ela estava a salvo. Ele a

deixara dormindo, como uma criança.

Sem produzir som algum com a boca, ele

recitava versos que sua mãe cantava para ele quando

era um menino. Aos poucos, foi-se acalmando, e

finalmente conseguiu dormir.

— O que aconteceu? — Julia perguntou, pelo telefone.

— Fugiu como se fosse um bandido!

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— Ah... Isso... — Ele sentou-se na poltrona da sala,

agarrando o fone com força. Não tinha pensado no que

diria á Julia. — Bom, surgiu um imprevisto.

— Um imprevisto ás onze da noite? Sabe muito bem o

que estou achando.

— Não sei. O que está pensando? — Ele perguntou até

onde ela sabia. Nada, provavelmente. Também não

deveria deduzir nada.

— Estou começando a achar que você é o Batman!

— Sério mesmo?

Ela riu.

— Acho que você mentiu pra mim. — Ela tornou a

assumir a voz séria. — Deve ter uma namorada. Ou até

pode ser que seja casado. Essas coisas pedem ‘chamados

de emergência’.

— Não é nada disso, Julia. Acredite... Apenas alguns

problemas pessoais.

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— Claro, claro... Problemas pessoais. Tudo bem, Nicky.

Deixa pra lá.

— O que vai fazer essa tarde?

— Nada, se você não me convidar para sair.

— Então se considere ocupada. Nos encontramos no

mesmo ponto ás cinco.

— Gosta mesmo do pôr do sol, não é?

— Ainda mais nas tardes de domingo, com pessoas

especiais.

Ele a ouviu rir do outro lado da linha.

— Você é o melhor... O melhor.

— Mal posso esperar.

Desligou o telefone, largando-o no sofá ao

seu lado, com um suspiro aliviado. O acontecimento da

noite passada nada tinha interferido entre ele e Julia.

Bom. Ainda não era hora dela saber a verdade.

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A primeira coisa que Joshua fez, depois de

constatar que sua cabeça doía como nunca antes, foi

erguer os pulsos e perceber suas ataduras. De uma

estranha forma, ele não se sentiu exatamente aliviado

por estar vivo. Nem decepcionado. Apenas um pouco

cansado. E curioso. Quem poderia tê-lo achado no seu

apartamento? Algum vizinho, talvez. Achava que tinha

gritado. Devia ter chamado a atenção de algum deles,

provavelmente a sra.Mikes. Intrometida.

Tentou chamar alguém, na esperança de que

aparecesse alguma enfermeira uniformizada e

cuidadosa, como nos filmes. Mas ele descobriu-se fraco

demais para produzir qualquer som além daquele

sussurro inaudível. Uma cortina cor creme o dividia de

outros pacientes. Por algum motivo, ele lembrou-se da

crônica dos dois pacientes em um hospital, como

aquele.

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Um deles tinha sofrido um acidente, e estava

debilitado, sem poder levantar ou se erguer. O outro

tinha uma doença terminal. Apenas a cama do segundo

dava para uma janela, então o outro, entediado,

perguntava ao novo amigo o que ele via. ”Vejo um

lindo parque. Têm crianças correndo, velhos sentados

em bancos lendo. Moças bonitas puxam a coleira de

seus cachorros obedientes. O sol está brilhando,

mulheres conversam e sorriem”. Certo dia, o paciente

que sofrera o acidente ficou sabendo que o outro havia

falecido. Então, a cortina finalmente foi aberta, e ele viu

que não havia janela alguma. Perguntou á uma

enfermeira: ”Onde está a janela? Foi tampada sem que

eu percebesse?”. A enfermeira balançou a cabeça.

“Nunca houve uma janela aqui”. Sem dúvida aquele

tinha sido um homem sonhador. E devia ter vivido

feliz. Mas, se Joshua fosse o paciente que ouvia as

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histórias, nunca teria acreditado. A vida perfeita não

existe. A vida perfeita não teria graça se existisse.

Tornou a fechar os olhos, pois isso ajudava

a diminuir a dor de cabeça. Estava curtindo o silêncio.

Gostaria que ele durasse para sempre. O silêncio vazio.

Livre de emoções contraditórias, livre de qualquer tipo

de sentimento. Gritava sem barulho, talvez por socorro.

Não havia ajuda. Mas ele sentia-se em paz, e isso era

mais do que o suficiente.

Pegou no sono e foi acordado pela

enfermeira e pelo médico.

— Como foi que me encontraram?

— A entregadora da padaria. — O médico explicou. —

Você gritou, ela ligou para a polícia.

Ele sorriu, com ironia. A menina da

padaria!

— Mas agora você está a salvo. — A enfermeira

completou. — Isso não é bom?

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— Ótimo.

— Você deve estar se sentindo um pouco tonto. — O

médico tranquilizou, ajeitando o óculos de aros

dourados. — Isso é perfeitamente normal. Você perdeu

um litro e meio de sangue, precisou ser reposto. Mas em

poucos dias estará bem, e em casa.

— Mal posso esperar para ir para a casa. —Ele não

esperava que o médico acreditasse.

— Deixe-me dizer uma coisa, Sr.Dunne. Existem muitas

pessoas nesse mesmo hospital, pessoas estão lutando

pela vida. Algumas delas vão perdê-la. Lute pela sua

vida. Ela é preciosa demais.

Ele assentiu para não discutir. Preciosa?

Super estimada.

— Você será encaminhado a um psiquiatra. — Ele disse.

— Espero que você vá vê-lo.

Joshua foi deixado sozinho novamente.

Não queria pensar no futuro agora.

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O silêncio vazio.

Capítulo Vinte e Um

Estar de volta pra casa era quase uma

ironia. Tudo continuava igual. Tudo exatamente como

Joshua tinha deixado, antes de sua temporada de férias

no hospital. Não podia deixar de ser assim, ele refletiu

afundando o rosto entre as mãos, cotovelos apoiados na

mesa. Quem poderia ter mudado alguma coisa durante

sua ausência, se mesmo quando ele estava ali, ninguém

mais estava? Levantou os olhos cansados para o

computador. Internet lenta. Estava demorando mais de

dois minutos para um upload simples. “Qual é seu

problema?”, ele pensou, irritado, com vontade de

derrubar o computador no chão. “Vamos lá...” . A mão

que segurava o mouse bateu com violência na mesa.

Dando-se por vencido, levantou-se. No momento que

ele colocou-se de pé, o aviso na tela foi exibido:

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“Operação completada”. Joshua tornou a sentar com

uma exclamação exasperada.

Minutos depois, digitou sua senha

cadastrada no Death of Patience. O site tinha estado

quase abandonado nos últimos dias. Desde a morte de

Heather, era raro ele entrar em seu perfil, e quando

entrava havia muitos recados a serem respondidos. Isso

também lhe desestimulava.

Pacientemente, começou a responder os

recados um por um. Até ficar estático com o terceiro

recado da lista.

“Está chegando em você.’

Ele afastou a cadeira para trás, num gesto

de perplexidade. O que mais tinha para chegar nele?

Achava que Joey já tivesse terminado seu trabalho.

Pegou o telefone.

— Detetive Crews. — Atendeu a voz do outro lado.

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Joshua olhou para a página do Death of

Patience aberta á sua frente. Billy. Antes de tudo, ele era

Billy, o culpado direto pela morte de Heather.

Lentamente, apertou o botão vermelho que desligava o

telefone.

A data marcada era de dois dias atrás. A

imagem de Heather presa na cadeira, e o sinistro sorriso

no rosto do assassino. Imaginou o caso arquivado no

pequeno escritório do detetive Crews, e Joey

espreitando a cada esquina. Talvez pudesse observá-lo

dentro do próprio apartamento de Joshua, dentro dos

seus pensamentos. Pensou também em todas as coisas

que ainda tinha a perder se Joey resolvesse atacar de

novo, e seus pulsos cortados na pia da cozinha. E

começou a responder o recado de Joey.

“Se fosse corajoso o suficiente, viria até

minha casa para conversarmos. Só nós dois. Sem reféns

ou detetives. Você sabe muito bem onde moro.”

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Mas ele não esperaria.

Nicky entendia que enquanto ficasse

pensando em Julia o tempo todo, não conseguiria

trabalhar direito. Ligou para ela apenas para desejar um

bom dia, ela agradeceu, com sua jovem espontaneidade.

Ele sabia que ela estava no restaurante, provavelmente

cercada de clientes, e mesmo assim respondeu a ele com

um entusiasmado “eu amo você”. Cercada de clientes,

ele pensou. Cercada de homens para cobiçá-la.

O dia no escritório estava calmo, e ele

aproveitou para dar uma checada em seu e-mail.

Apenas cartas de clientes. Acessou sua página no Death

of Patience, tomando o devido cuidado com o histórico

de sites acessados no computador da empresa.

Constatou satisfeito que Billy tinha lhe

respondido finalmente. Estivera aguardando ansioso

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por essa resposta. Uma simples mensagem poderia

determinar o que Nicky teria que fazer a seguir.

“Você sabe onde eu moro” tinha sido

claramente uma referência ao quão desrespeitado Billy

sentira-se com sua invasão. Bom. Muito bom. Agora ele

conseguia entender como seu trabalho invadia as casas

e mentes das pessoas que acabavam por deixar-se levar.

Era hora de agir de novo. Dessa vez ele faria do jeito

certo. Sem ter que sacrificar inocentes.

Inocente, a pobre moça, apesar de Nicky

sempre ponderar se ela não seria uma futura vítima a

ter a alma ceifada. Pensando bem, ele tinha feito algo

bom para ela. Tinha certeza de que agora ela sabia

disso. Depois da dor, vem a paz.

Com um suspiro conformado, ele fechou a

página e foi acertar as últimas despesas de um cliente

pendente. Era uma das empresas que sempre davam

um trabalho a mais no final das contas.

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As horas pareceram se arrastar, mas

finalmente a hora do almoço chegou. Ele estava saindo

do escritório quando encontrou Julia.

— Bom dia, senhor. — Ela brincou, com um sorriso. —

O que acha de levar essa humilde senhorita para um

almoço?

Ele tomou o braço dela no seu.

— Acho que seria encantador.

Seguiram até a lanchonete onde Nicky

costumava almoçar sozinho todos os dias.

— Não é nada romântico. — Ele alertou enquanto eles

entravam. — Pelo contrário, eu venho aqui porque a

comida é mais barata.

— Não tem problema nenhum. — Ela puxou uma

cadeira. — Sou muito mais acostumada com a minha

gente. — Ela riu. — A classe baixa.

— Você é quem sabe... — Declarou, sentando-se ao seu

lado. — O que vai querer?

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—Não sei... Peça você. Sabe que não posso comer

muito... — Ela colocou a mão barriga. Ele sorriu. As

mulheres... Sempre preocupadas com a aparência. Mas

ele não podia culpá-la. Ela não sabia dos perigos que

espreitavam a cada esquina.

— Certo... Deixe que eu escolha. Uma pizza bem

recheada, com refrigerante. E de sobremesa, claro, um

bolo de chocolate lotado de cobertura. — Ela riu. — O

que acha?

— Acho que vou ficar com algo um pouquinho mais

leve.

Ela tirou o menu dele e fez o pedido

para os dois.

— Tenho a impressão de que só saímos até hoje para

comer. — Ele refletiu.

— Pois é, menino mau. Por que faz isso?

— Não consigo pensar em outro passeio.

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— Tenho certeza que vamos encontrar um perfeito.

Temos muito em comum que ainda precisamos

descobrir.

— Espero que sim.

Uma moça entrou na lanchonete

acompanhada de uma criança. Era um menino de

cabelo cacheado e olhos tão azuis quanto o céu. Ele

sorriu para Nicky quando passou pela sua mesa, mas

foi Julia quem retribuiu o sorriso.

— Cinema?

Ela perguntou, arrancando Nicky de um

devaneio. Havia algo naquele garotinho. Ele não saberia

explicar o quê, mas havia algo.

— Hum hum.. — Ele respondeu.

— Ou mesmo um parque. Você com certeza gosta de

parques. Sol, natureza... Todo esse seu papo romântico.

O garçom trouxe os lanches, e Julia

começou a comer.

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— Sabe, Nicky, Barbara já anda perguntando de você.

Ela acha que você não existe. Pelas coisas que eu conto.

Eu sei que você existe, só penso que está perdido nesse

século. — Ela riu. — Mas eu disse á ela que... Nicky?

— Hum hum. — -Ele mantinha os olhos fixos no

menino de olhos azuis.

— Não está prestando atenção no que estou dizendo. —

Ela zangou-se. — No que está pensando?

Ele descobriu o que era. O menino... Não era

uma criança qualquer. Estava ali para vigiá-lo. Nicky

sabia que eles não desistiriam tão fácil. Eles sabiam que

ele tinha entrado em contato com Billy. Sabiam de seus

planos futuros. De alguma forma, já tinham tornado-se

capazes de infiltrarem-se em seus pensamentos.

Antes que eles fossem capazes de fazer

alguma coisa, Nicky mostraria para eles que não seria

tão fácil. Com um soco de punhos fechados na mesa, ele

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levantou-se e agarrou o garoto pelos braços. Não

gostava de ser vigiado.

— Maldito! — Ele gritou, enquanto chacoalhava o

pequeno espião. — Acha que pode me possuir? Nunca!

— Uma multidão já tinha rodeado os dois, e tentavam

soltar o menino que estava chorando e gritando pela

mãe. — Vocês não podem me deter! É melhor desistir,

poupar suas energias!

— Nicky! — Era Julia gritando. — Pare com isso!

O dono da lanchonete conseguiu fazê-lo

largar o garoto. Ele correu para os braços da mãe, que

também chorava em desespero.

— Fora daqui! — Gritou o dono do estabelecimento. —

E nunca mais apareça, seu covarde desprezível!

— Vai procurar um psiquiatra! — Gritou um dos

clientes exasperados.

Julia seguiu atrás dele. Ele voltava a

caminho do escritório.

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— O que foi aquilo? — Julia perguntou.

— Esqueça, certo? — Ele limpou uma lágrima com a

manga da blusa.

— Como esquecer? Você parecia um louco lá dentro,

Nicky!

Ele parou para encará-la.

— Pode ter certeza de que louco eu não sou.

— E quem era aquele menino? Você o conhecia?

— Muito bem, acredite.

Retomou a caminhada.

— Meu Deus, Nicky! É só uma criança!

— Não era só uma criança, será que não percebe? — Ele

percebeu que estava gritando e baixou a voz. — Eu pedi

pra esquecer, Julia. Por favor.

Ela não disse mais nada até chegarem no

escritório.

— Vejo você á noite. — Ele falou.

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— Está bem. — Deu-lhe um beijo de despedida e saiu.

Ele perguntou-se até quando conseguiria manter seu

segredo. Sua mãe sabia, já estava correndo perigo. Ele

não cometeria o mesmo erro de novo, dessa vez

colocando a vida de Julia em risco.

Com certa dificuldade em aparentar que

estava tudo bem, ele cumprimentou as outras

assistentes do escritório e seguiu á sua mesa. Descobriu-

se incapaz de fazer os cálculos de uma conta. Remexeu-

se na cadeira, irrequieto. Tamborilava os dedos na

mesa.

— De onde vem esse barulho?

Karen, a assistente rechunchuda e de

enormes olhos verdes atentos voltou-se para ele. Em

todo o tempo que Nicky estivera ali, jamais tinham tido

uma conversa completa.

— Esse barulho!

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A outra funcionária, Jill, também

levantou os olhos. Ao contrário de Karen, ela e Nicky se

davam muito bem.

— Não estou ouvindo nada.

— Como não? — Ele exasperou-se. O barulho de chaves

chacoalhando era terrivelmente irritante, e parecia estar

ficando cada vez mais alto. — Ah meu Deus! — Ele

tampou os ouvidos com as mãos. — Pare com esse

barulho!

Karen levantou-se, pronta para prestar

socorro.

— Vou buscar um copo de água. — A outra disse,

deixando a sala apressadamente.

— Pare! — Ele começou a gritar, incapaz de controlar-

se. Por que insistia tanto? Aquele barulho parecia entrar

no mais profundo da sua cabeça, que já começava a

latejar cruelmente. — Faça parar!

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— Por favor, fique calmo! — Karen exclamou,

colocando a mão no seu ombro, na tentativa de

tranquilizá-lo. Ele a tirou bruscamente, irritado.

— Não toca em mim! Não toca em mim!

Jill não voltou com a água, mas retornou

com a patroa, as expressões preocupadas.

— O que está acontecendo? — A sra.Lane perguntou.

— Não tem barulho nenhum! — Jill tentou.

— A chave! — Nicky levantou-se, o barulho agudo

retinindo nos ouvidos. — Parem de balançar as chaves!

— Ele levantou-se, quase derrubando a mesa e o

computador. Desceu as escadas correndo, e saiu para a

rua.

A caminho de casa, quase foi atropelado

por um ônibus, mas teve certeza de que aquilo não teria

sido um acidente. Abriu a porta com um estrondo, e na

sua pressa acabou deixando o portão aberto. O barulho

da chave ainda soava claro, como se estivesse bem

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perto. Com um ganido de raiva, ele deixou-se cair na

cama de bruços, o travesseiro sobre a cabeça, na

tentativa de amenizar o barulho. Para piorar tudo, o

relógio de cabeceira do quarto fazia um ruído alto a

cada segundo que se passava. Ele apenas estranhava

nunca ter notado isso antes. Levantou-se apenas para

derrubá-lo no chão, e fazê-lo parar de funcionar

completamente. Não teve idéia de quantas horas tinham

se passado, até que o ruído atordoante finalmente

cessou. Olhou pela janela. Já tinha anoitecido. Foi

subitamente invadido pelo pânico.

De qualquer maneira, ele deitou-se na

cama novamente, dessa vez o travesseiro embaixo da

cabeça. Suspirou, com um sorriso. Sentia-se bem

novamente.

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Com o ânimo de certa forma renovado,

Joshua resolveu sair de casa. Ele não se lembrava da

última vez que tinha visto o sol, a luz amarela quase

parecia inédita. Continuava frio, as pessoas já

começavam a usar os casacos e jaquetas. Mas talvez isso

mudasse, Joshua pensava enquanto caminhava. O

aquecimento global vinha se tornando mais real a cada

dia. O que era merecido para eles, habitantes da Terra.

Eles sempre esperavam acontecer para começar a

discutir o assunto, então remediar. Quase riu da própria

hipocrisia. O que ele tinha feito até hoje para contribuir

com o Meio Ambiente? Ou no mínimo, quando ele tinha

agido para melhorar a sociedade em que vivia? A

verdade é que ele não se importava nem um pouco.

Morreria em breve, e o mundo ficaria nas mãos de

outras pessoas, tão irresponsáveis quanto ele.

Não esperou muito até que o táxi

chegasse. Pediu ao motorista que o conduzisse até o La

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Guardia. Olhava a rua que parecia correr por ele,

imaginando se tinha sentido falta daquilo tudo. Era

possível. Talvez ele tivesse sido covarde por esse tempo

todo, se trancando em sua vida particular, não

permitindo que ninguém invadisse seu mundo seguro,

até Heather aparecer. Ou ele tinha sido corajoso demais,

por viver sozinho, completamente entregue a si mesmo.

Mundo seguro? Ele não tinha tanta certeza.

Os minutos que ele passou dentro do táxi

pareciam ter corrido como segundos. Saltou bem na

frente do aeroporto, carregando poucas coisas em sua

mala improvisada. É claro que ele pretendia voltar. Era

só um tempo para esfriar a cabeça, quem sabe relembrar

seu passado, compará-lo com o presente, e, afinal,

chegar á conclusão de que a vida não era tão ruim

assim.

O avião não demorou a sair. Ele

embarcou com a sensação estranha de pertencer aquele

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lugar. Não saberia dizer se isso era bom ou ruim. Nunca

tinha precisado se encaixar. Não gostaria de se encaixar

naquela terra de faz de conta que o mundo chamava de

‘sociedade’. Entendia muito bem o que era fazer parte

dela, e já tinha sofrido demais tentando convencer aos

outros que ele era um deles. Um ser humano. Então ele

passou a entender que não precisava disso, se sentia

confortável em sua própria pele.

Durante o vôo inteiro, ficou inquieto.

Estava preocupado. Sua mãe poderia não receber tão

bem assim seu filho pródigo. Quantas coisas teriam

mudado desde que ele saíra de casa naquela manhã de

domingo? Tinha ido embora para fugir. Agora ele

voltava, novamente para fugir.

Repetiu que não se tratava de Joey.

Poderia até nada ter a ver com ele. Não estava com

medo. Não teria motivos para estar. E acabava se

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surpreendendo consigo mesmo ao perceber que era

completamente verdade.

O bairro pequeno que tinha sido cenário

de toda sua infância não lhe parecia familiar. Não havia

tido muitas mudanças físicas, apenas uma ou outra casa

reformada, rostos novos, crianças novas. A todo o

momento ele tinha a impressão que trombaria com um

de seus amigos a caminho da escola.

Decepcionado, ele admitiu que não tinha o

sentimento de estar voltando pra casa para o que ele

viera buscar.

Tal como todo o resto, sua antiga casa nada

tinha mudado. Ele tocou a mesma campainha que

tocava há dez anos atrás, das muitas vezes que ele

perdera as chaves. E exatamente da mesma forma, a

mãe abriu a porta com seu olhar parado, jogando o

cabelo loiro para trás.

— Joshua. — Ela disse, sem qualquer emoção na voz.

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— Sim, mãe. Joshua. — Ele também disse, sem

implicações. Era como se ele tivesse feito uma viajem de

três dias e voltado um pouco antes do tempo planejado.

— Como você está?

Sua pergunta era polida, distante. Sempre

tinha sido assim. Há coisas que nunca mudam.

— Eu ando muito bem. — Ela abriu espaço para que ele

entrasse. Ele notou que ela havia trocado os sofás e o

tapete.

— Bonita decoração.

Sua mãe estava muito diferente. Aparentava

pelo menos dez anos a mais de sua verdadeira idade.

Os muitos anos de álcool e cigarros não tinham lhe feito

bem.

— O que te fez ir embora? — Ela perguntou acusadora.

Talvez ela devesse ter perguntado primeiro

o que o trazia ali, por educação.

— O mesmo que Jake.

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— Não se esconda atrás de Jake, não de novo. Por que

vocês fizeram isso?

Ele sentou no sofá, observando as roupas

e louças sujas espalhadas pela sala de estar.

— Era o que precisávamos fazer. Precisávamos de um

futuro, mãe.

— Um futuro? Você voltou! Por que voltou?

Porque nunca antes me senti tão perdido, e

qualquer coisa que me trouxesse uma direção eu aceitaria.

— Eu queria vê-la de novo antes de morrer.

— Do que está falando? Céus! Você está com quantos

anos? Muito jovem para aguardar a morte.

— Vinte e sete. Estamos sujeitos a morrer a partir do

momento que nascemos. Se nascermos com vida. E a

morte não é um castigo. A morte é onde o ser humano

deve chegar. É quase a meta do homem. O fim.

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Ela encarou-o por um longo momento

como se ele estivesse delirando. Procurou pelo maço de

cigarros e acendeu um.

— O que tem feito? — Ela perguntou, depois de uma

longa tragada.

— Estou trabalhando para empresas. Montando sites. O

que você não chamaria de trabalho real.

— Sempre no mundo virtual, no mundo da lua. Eu

percebia isso em você desde que ganhou aquele maldito

vídeo game da sua tia. Eu sabia que você seria um

desses viciados em tecnologia.

Ele deu um sorriso triste.

— Claro que você sabia.

— Tem visto Jake?

— Nunca mais. E você?

Ela bufou.

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— Não. Já é uma surpresa que você tenha aparecido.

Mas eu sabia que você iria voltar, não seu irmão. Você

sempre foi o mais fraco.

Talvez ele devesse ter se sentido ofendido.

— Está namorando? — De novo?

— Você sabe que não. Esse negócio de alma gêmea não

existe. Eu fui á cartomantes, médiuns... Nada adiantou.

Agora estou frequentando uma igreja.

‘Médiun?’

— Quem sabe agora... — Ele não completou a frase.

—... Eu não desencalho?Acho difícil. E você, casou?

Aposto que não.

Joshua emitiu qualquer som que

representasse um ‘não’.

— Ouvi dizer que a Internet tem unido casais no mundo

todo. Você deve entender disso. É verdade?

— Por que eu deveria entender disso? Não sei... Deve

ser tudo uma furada.

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— Pode ser, mas já começo a ficar desesperada. Desde

que você e Jake me abandonaram, tenho sentido a falta

de um namorado.

— Desde que completou dez anos, você quer um

namorado.

Ela fez um gesto depreciativo.

— Você ainda não me disse porquê veio.

— Disse sim. Queria revê-la.

— Não acredito. Você é um cara de pau.

— Por que mais seria? — Ele deu um meio sorriso, e

uma rápida olhada ao redor da sala suja. — Dinheiro?

— Não acredito em caridade, Joshua. Pra quê veio?

— Porque mataram minha namorada, cortando a veia

jugular dela. E agora, o mesmo psicopata que a matou

está atrás de mim.

— Partindo de você, eu não duvido que seja verdade.

— Não duvide.

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— Bom, pelo jeito você não vai me responder, e eu vou

me contentar com isso. O que acha de darmos uma

volta essa noite?

— Estou cansado.

Ela começou a juntar a bagunça da sala.

— Por quanto tempo pretende ficar?

Ele deitou no sofá, com a cabeça apoiada nas

mãos.

— Pra sempre.

— Você precisa trabalhar. Não posso sustentá-lo.

— É brincadeira. Eu vou voltar a Los Angeles.

— Veio de Los Angeles?

— A cidade dos anjos... E dos sonhos falsos.

— Você está tão diferente!

— Tenho tomado Valium.

— Cresceu tanto! — Ela deixou-se sentar pesadamente

numa poltrona. Escondeu o rosto nas mãos e chorou. —

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Ah Deus! Sinto que perdi uma enorme parte da vida de

meu próprio filho!

— Perdeu mesmo... Mas não vai fazer falta.

— Você sabe que sempre te amei.

— Hum hum.

— Eu era tão descuidada, agia sempre pelo coração. Fiz

tantas coisas erradas, Joshua! Mas sempre te amei.

— É, eu sei. Eu também te amo. — Ela enxugou os olhos

com a manga da blusa, um gesto muito familiar. —

Estou com fome. O que tem pra comer?

Ele levantou-se para ir até a cozinha. Não

havia quase nada nos armários. Ele pegou uma caixa de

cereais, mas não havia leite.

— Desculpe. Eu não sabia que você viria.

Joshua assentiu, com uma leve ironia.

Lembrou-se de onde tinha vindo seu costume de

almoçar ou jantar cereais embalados.

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Capítulo Vinte e Dois

Julia olhava pra Nicky com expectativa não

disfarçada. Ele queria mantê-la curiosa por mais tempo,

mas a verdade era que nem ele mesmo estava

aguentando esperar. Ele sabia que o que tinha no bolso

era muito mais do que um simples anel. Era o selo de

seu futuro. De seu futuro ao lado de Julia.

— Chega de cerimônias, Nicky! Anda logo!

A palavra cerimônia o fez sorrir. Tirou a

caixinha dourada do bolso, e pediu que ela se sentasse

quando ele afastou os jornais amontoados para o canto

do sofá. Ele ainda não tinha tido tempo de fazer uma

arrumação aquela semana. A sala de estar estava repleta

de esboços em preto e branco, uma tela coberta com um

lençol branco, e manchas de tinta no chão. Ele pedira

desculpas pela bagunça, mas ela afirmara que não se

importava, afinal compreendia que Nicky era um artista

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em ascensão. Ele riu. Não com modéstia, mas com

descrença.

— Está bem, apressadinha! Aqui está.

Ele tentou desvendar a expressão no rosto

dela enquanto ela abria o presente. De início, pareceu

um pouco apreensiva, mas isso durou apenas uma

fração de segundo. Ela se jogou nos braços dele, com

uma risadinha um tanto histérica.

— Ah Nicky! Isso é maravilhoso! Mas... —Ela segurou

nos ombros dele para olhar em seus olhos. —Você tem

certeza? Essa é uma decisão muito séria...

Ela deixou a frase morrer no ar.

—Com os diabos! — Exclamou de repente, depois de

ver a decepção nele. Enlaçou-o novamente. — Se você

tem certeza disso, eu também.

—Você diz sim?

—Sim, eu serei a senhora Oberon !

Ele abraçou-a e beijou-a.

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Apoiada no parapeito da janela, Mabel

pensava no que a faria mudar completamente de vida.

Primeiro, começaria pela mente. Deixá-la calma.

Tomaria os remédios direito, nos horários certos. Não

porque concordava com o médico maluco que achava

que ela era a doida, mas porque eles também serviriam

de calmante. Antipsicóticos? Ela estava longe de ser

uma psicótica.

Quem sabe um cruzeiro, uma estadia na praia.

Ótima oportunidade para esquecer da existência de

Tony. A tão sonhada viajem a Paris, ou á Roma, quem

sabe?

Então, ela pensou em Jim de novo. Jamais

conseguiria fazer nenhuma dessas coisas. Não realizaria

nenhum de seus sonhos, porque era doente. Se não

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fosse, não teria passado tanto tempo em um hospício,

teria?

Trocou de roupa. Começaria curtindo a noite,

ignorando tudo que lhe viesse á mente que não fosse

diversão. Ligou para Kate e combinou o passeio com

ela, no mesmo esquema que elas usavam há muitos

anos: Kate dizia á avó que passaria a noite na casa de

Mabel, e ela dizia ao pai que ficaria com Kate.

Elas pegaram um ônibus até o local onde seria o

salão da danceteria, pois nenhuma das duas teria o

dinheiro suficiente para um táxi.

O lugar estava apinhado, mas dessa vez Mabel

resolveu ignorar o que ela mesma denominava

agorafobia. Kate separou-se dela minutos depois de

terem entrado, alegando ter encontrado ‘o cara da

noite”. Mabel sabia que haveriam muitos outros.

Foi sentar-se em um canto, para apenas

observar o movimento. Não tinha vindo á procura de

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garotos, mas apenas para descontrair, apesar de odiar a

música que o DJ tocava. Dispensou diversos convites

com tolerância advertida. Até que um rapaz sentou ao

lado dela. Ela teria se esquivado do repentino beijo que

ele deu nela, se não se tratasse de um garoto bonito.

—Você é muito bonita. — Ele gritou para ser ouvido

através da música alta. Estava completamente bêbado.

— Obrigada. Devo me sentir lisonjeada?

Ele assentiu, tomando mais um gole da

bebida que trazia na mão.

—Vindo de você o elogio, — Ela disse, divertida. —

Devo,mesmo.

— O que faz aqui?

— O mesmo que você.

— Não parece contente.

— Ao contrário de você.

— Vodca. — Ele explicou. — Com Coca-Cola.

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— Adoro um bom drinque. — Ela ergueu seu coquetel

num brinde.

— Quem não adora? Então, gata...

Ele deixou a pergunta por fazer, porque se

perdeu em meio á neblina alcoólica.

— É a música que me irrita.Talvez eu não devesse ter

vindo aqui.

— Acho o som agradável.

— É péssimo. Só venho aqui porque minha amiga gosta

de Techno.

— Sorte sua me encontrar aqui.

Ela riu.

— Sim, sorte minha.

— Quer ir lá fora?

A pergunta pareceu inocente. Ela respondeu

sem afetação.

— Não.

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— Não? — Ele puxou o ‘ã’ da palavra, fazendo-a

parecer muito comprida. — Por quê? Vamos fugir da

música.

— Qual é o seu nome?

— Nem me lembro mais! — Ele riu.

— Enquanto eu não tenho certeza de que você não é um

assassino, não posso ir lá fora com você.

Ele deu uma estrondosa gargalhada.

— Meu nome é Andy. Andy Foster. Reconhece de

algum jornal? Já matei alguém?

— Nunca ouvi falar, mas como eu posso saber?

— Eu sei que seu nome é Mabel. Pergunte como eu sei

disso. — Ela ficou calada, e ele prosseguiu. — Sua a

amiga me contou. — Ele apontou para Kate, que

dançava improvisado com um descendente de asiático.

— Estou te observando há muito tempo.

— Antes de ficar bêbado?

— Não estou bêbado.

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— O ruim de ficar de porre é a dor de cabeça que vem

depois. Ainda mais se seus pais descobrirem.

— Acho difícil isso acontecer, estão mortos.

— Então, a dor de cabeça é bem menor.

Andy encarou-a, de repente muito sério.

— Eu os matei. — Ela ficou sem fala, e ele começou a rir.

— Estou brincando. Vou levar uma surra quando minha

mãe descobrir.

Ela tomou um gole generoso do coquetel.

— Boa sorte.

— Pra você também.

— Não bebi muito.

— É o seu primeiro? — Ela assentiu, dando outro gole.

— O primeiro de muitos. Quer dançar?

— Não sei dançar, olha pra mim. Chega a ser um

insulto uma pergunta dessas.

— Então, daqui a pouco você aceita.

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A previsão dele foi certa. Inconscientemente,

ela ficou embriagada também, e rindo muito por sua

falta de habilidade, foi para a pista de dança com Andy.

Quando se deu conta, ele a levara para casa no seu carro

esporte. E ela não fazia idéia de onde estava Kate.

— E o asiático? — Mabel estava perguntando.

— Que asiático? — Kate levantou um olho para Mabel.

Estava deitada, segurando um saco de gelo na cabeça.

Mabel reclinou-se na poltrona macia do

quarto de Kate.

— O que estava com você ontem!

— Está surtando, ele não é... — Ela interrompeu-se,

entendendo subitamente o que Mabel estava dizendo.

— Ah, sim, o japonês. Um imbecil. Quem me trouxe pra

casa ontem, Mab, foi um morenaço, de dois metros de

altura.Você ia morrer de inveja.

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— Ainda bem que não o vi, certo? Eu vim pra casa

acompanhada também.

— Eu sei... — Ela deu um sorriso cúmplice. — Andy

Foster. Ou alguma coisa do tipo.

— Você já o conhecia?

— Não. Mas ele veio me perguntar de você. Deve ser

um desses manés sem atitude. —Ela riu, abandonando

o saco de gelo, e sentando-se para fitar Mabel. — Mas é

um mané bonito.

Mabel deu de ombros.

— Não faz meu tipo.

— Sei... — Ela ironizou. Mabel riu, sabendo que estava

enganando a si mesma.

— Bom, não sei. Ele disse que ia ligar... Mas eles nunca

ligam.

A avó de Kate estava chamando-a do andar

de baixo. Devia estar estranhando o fato da neta ter

recusado o almoço aquela tarde.

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— Você precisa esquecer o Tony. — Kate disse, antes de

responder para a avó. — Droga! Parece que tem um

macaco dentro da minha cabeça.

Mabel riu.

— Um macaco?

— E deve estar tocando tambor.

— Vai ver você não é tão boa com bebidas quanto acha

que é.

Ela encarou-a, um sorriso irônico enquanto

calçava os chinelos.

— Você também já teve uma ressaca, Mab.

— Estou tendo uma agora! — Gritou para a amiga, que

se afastava para atender o chamado da avó.

Capítulo Vinte e Três

Já tinham se passado dez minutos desde que

Nicky deitara-se para dormir. Julia ao seu lado tinha os

olhos fechados, e a respiração regular de quem tem

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sonhos tranquilos. Antes de deitarem-se, eles beijaram-

se e tiveram um daqueles lindos momentos de amor.

Agora, ele sentia um vazio incomum, como se algo

estivesse errado, ou faltando.

Ele fitou o teto mal iluminado pela luz

pálida do abajur. Por que Julia não tinha falado nada

sobre casamento até agora? O que havia de errado entre

eles, o que deixava ele em dúvida, por que ela tinha

aparecido tão de repente, tão milagrosamente em sua

vida, como algo para tirá-lo do abismo que ele sentia-se

afundar desde que saíra de sua casa?

Sentou-se na cama, alarmado. Julia não

era um milagre. Ele a queria como nunca quisera outra

coisa em sua vida, o amor por ela sobressaía-se ao amor

sagrado de sua mãe. Sim, ele seria capaz de dar sua vida

por ela. Devia estar louco por deixar-se dominar

daquele jeito. Um tolo, inocente. Ah Deus, agora ele

entendia. Desde o começo, a mulher tinha sido uma das

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armas do diabo para enganar os homens e tirá-los

prazerosamente do caminho que eles deveriam estar

seguindo.

Ele observou o rosto calmo de Julia.

Sentiu que começava a chorar. Desde Eva, a mãe do

pecado. Depois Dalila. O grande juiz Sansão entregara

seu segredo na mão dela, e ela o traíra, entregara-o nas

mãos dos filisteus. Roubou sua vida, e os inimigos

deixaram-no cego em seu próprio pecado. Não, Julia

não daria de seu fruto para ele. Não ele!

Enxugou as poucas lágrimas que

conseguiram escapar, e levantou-se, sentindo-se meio

cambaleante. Tateou em busca do interruptor, e logo a

luz se acendeu. Respirou fundo antes de tomar sua

decisão final. Faria o que tinha que fazer, não poderia

deixar-se levar pelas emoções que se confundiam muito

naquele momento. A cobiça da carne é uma assassina de

amor. O amor é sereno e sagrado. Ele pegou a fita

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isolante que tinha guardado na gaveta da última vez

que consertara um aparelho doméstico qualquer. O

amor estava fazendo com que ele ficasse cego, mas

ainda não era tarde demais. Daria tempo de salvar-se a

si mesmo, sua missão e a alma de Julia. Afinal, ela

também era apenas um espírito inocente preso numa

carne fraca.

Irritado, jogou a gaveta arrancada do

gabinete no chão. Arrependeu-se logo em seguida pelo

barulho que tinha feito. Parecia-lhe estar acontecendo

tudo humanamente demais. Pensou na sua caixa de

ferramentas no pequeno quarto onde ficavam suas telas

e tintas.

Julia surgiu na porta da cozinha, antes

que ele tivesse oportunidade de sair do lugar.

— Você me assustou. — Ela falou, preocupada. Apertou

o hobby branco contra o corpo. Devia estar com frio. —

Aconteceu alguma coisa?

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— Não, claro que não. — Ele descobriu-se incapaz de

olhar nos olhos dela. Não queria que aquele rosto

angelical pudesse enganá-lo novamente.

— Andou chorando? — Ela tentou pegar o rosto dele

com as mãos, mas ele desviou-se.

—Volte a dormir. — Ele conseguiu dizer, abrindo

caminho.

Passou por uma de suas telas. Ela tinha o

rosto de Julia pintado com perfeição. Embora o pequeno

quarto ficasse mal iluminado durante a noite, ele

observou os traços dela, que ele captara com clareza.

Uma menina-mulher, um pouco solitária, até conhecê-

lo. Seus olhos azuis, a essência de uma vida um pouco

superficial. Seu meio sorriso, travesso, sincero. Nunca

mais sorriria para ele. Com um pouco de tinta

vermelha, ele passou o pincel sobre os olhos da figura.

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Escolheu uma chave de fenda. Não seria

prático nem pouco dolorido, mas serviria para purificá-

la.

Ela estava deitada de volta, mas não

dormia. Ergueu os olhos para ele quando entrou no

quarto.

— Conte-me o que aconteceu, Nicky.

— Não quero falar a respeito. — Ele manteve os olhos

além dela. Se a fitasse, seu coração poderia ser laçado

novamente. Afinal, ele também era um ser humano

preso á um corpo mortal. Isso fez com que se lembrasse

de que tinha que dormir logo antes que alguém

percebesse que estava acordado áquela hora.

Ela apoiou-se na beirada da cama, e

acendeu a lâmpada do abajur.

— Então venha para a cama. Conversaremos amanhã,

pode ser?

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Ele assentiu e deitou-se ao lado dela, a

chave de fenda embaixo de sua camisa. Precisava

esperar calmamente. Mas a serenidade parecia passar

longe dele naquele momento. Seu coração batia forte, e

ele teve medo de que ela pudesse ouvi-lo.

“Um, dois, três...”, ele começou, na tentativa

de acalmar-se frente ao que tinha de fazer. Funcionou.

”Duzentos”, ele terminou, observando as pálpebras

fechadas de Julia. Elas escondiam o que havia dentro

dela, e isso era ótimo. Sabia que não seria possível, mas

desejava que ela permanecesse assim até seu suspiro

final. Não queria sentir a agonia dela, nem gostaria que

ele fosse a última pessoa que ela veria. Como explicar

para ela que a ela seria livre, iria para longe daquele

mundo sujo? Por que resistir? A morte é uma benção.

“Fique em paz, querida”, ele murmurou,

antes de afastar o cabelo dela delicadamente, para

prender seus lábios com a fita isolante. Ela gritou

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abafado, ele fez sinal para que ela se acalmasse. Gostaria

que ela compreendesse o que ele estava fazendo, mas

entendia que nessa vida isso não seria possível.

— Eu sinto muito. — Ele murmurou. — Mas essa não é

a hora, o lugar para entendermos essa vida.

O primeiro movimento foi hesitante, e ele

resistiu á vontade de recuar quando o sangue saiu de

sua carne dilacerada. “Esqueça de seu passado agora.

Prepare-se para um futuro maravilhoso.”. Mais uma

investida com a chave de fenda, e tudo começou a fluir

mais naturalmente.

— Profanação. — A palavra lhe veio á mente, e ele

tentou entender o que ela significava naquele momento.

— Seu corpo mortal está sendo profanado, minha

querida. — O olhar desesperado mostrava que ela

continuava viva. Não era essa a essência da vida? A dor.

No momento que não houver mais dor, o sangue deixa

de fluir pelo corpo, a vida vai deixar de existir. E estava

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prestes a acontecer com Julia. — Mas não demora até

que seu espírito seja liberto, perdoado pelo sangue

derramado.

Descansou a ferramenta na cama, e

debruçou-se sobre seu corpo. Não queria contaminar-se

com a sujeira, mas a proximidade nos últimos

momentos de vida de sua adorada lhe parecia

inevitável. Começou uma prece, mas antes que ele

terminasse, teve certeza de que ela já não o ouvia.

Encostou o ouvido em seu coração que tinha deixado de

bater. Deu um suspiro. Estava terminado.

Ficava tarde. Tinha deixado de ser seguro

permanecer acordado. Não havia tempo para limpar-se

ou trocar de roupa. Precisaria tomar conta disso

amanhã. Observou pela veneziana fechada da janela. A

rua estava escura e deserta, quase invisível pela neblina

fria que a envolvia. Deitou-se ao lado de Julia. Seria sua

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última noite juntos. Beijou sua testa rapidamente, antes

de fechar os olhos.

Tremia de frio. Estava chorando, incapaz

de controlar os estremecimentos de seu corpo. Era como

se tivesse sido enfiado numa banheira de gelo. ”Com

sabão, eu lavo meu rostinho, meus pezinhos, minhas

mãos...”, ele cantou mentalmente. ”Mas pra ficar

mesmo limpinho, tenho que lavar o coração. Quando o

mal faz uma manchinha, eu sei muito bem. É papai do

céu, pra me deixar limpinho, quer lavar meu coração”.

Joshua passou o vôo inteiro batendo os

dedos em qualquer lugar que servisse de apoio. Por que

tinha que ser sempre assim, tão impulsivo? Primeiro,

desacreditara Mabel, abandonara-a, e só Deus pra saber

o que tinha acontecido com ela. Não deveria estar

morta, ou os jornais e a tv teriam noticiado mais um

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terrível assassinato nas ruas de Los Angeles. Joshua

teria ficado sabendo, pois passar um tempo com a sua

mãe era estar ciente de todas as tragédias que

aconteciam no mundo. ”Está nos noticiários, nas

revistas, em todo lugar”, ela justificara sua onisciência.

”E eu preciso estar atualizada”. Ele assentira, e pensara:

“Atualizada? Precisa ter o que conversar com as

vizinhas, e os milhares de amigas que ela encontra em

suas tão frequentes idas á venda da esquina”. Claro,

além de tragédias, a mídia falava de novelas e filmes em

cartazes, culinárias e sobre a vida pessoal dos astros de

Hollywood, e infinitas notícias inúteis do globo

terrestre. Santo Deus, para quê tanta informação

desnecessária?

Mais um estúpido impulso seu. Por que

diabos ele resolvera visitar sua mãe? Isso não resolveu

nada, obviamente. Pelo contrário, agora ela viajava ao

seu lado, ansiosa por conhecer o bairro onde ele

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morava. ”Oh céus, Hollywood!”, ela disse. ”Perto de

Hollywood”, ele tentara ser paciente. ”E não vai ser

nem um pouquinho interessante pra você, acredite”.

— Onde estão os detetives? — Ela perguntou,

aborrecendo-o por tirar-lhe a atenção da paisagem

cinzenta fora do avião. Depois de sua tentativa de

suicídio frustrada, muitas coisas passaram a irritá-lo.

— Eu adoraria saber.

— Acha que já pegaram ele?

— Disseram que me avisariam se o prendessem.

— Não é perigoso voltarmos?

— Muito.

— Então por que estamos voltando?

— Por que está vindo comigo?

— Você sabe o quanto me sinto sozinha, Jos.

— Sei.

— Você também se sente sozinho. Do contrário, não

teria vindo me procurar.

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— Tem razão, mas não quero ser responsável caso

aconteça alguma tragédia.

— Se algo tiver que acontecer, que seja com nós dois

juntos.

— Não nos víamos há anos.

— Mas agora você voltou.

— E tentei fugir de novo. Mas dessa vez, não tive tanta

sorte.

Ela riu.

— Você, sempre irônico. Isso não é saudável.Usa uma

piadinha para esconder seus sentimentos.

“Claro, Vodka sim seria um método

saudável.”

— Que piada? Não estou vendo nada de engraçado.

— Nem eu. — Ela segurou o braço de Joshua

carinhosamente. — Fique sabendo que estarei ao seu

lado, meu filho. Por favor, me dê outra chance, e vou

fazer tudo diferente dessa vez.

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Ele conservou o silêncio até o fim da

viajem. Finalmente, chegaram em seu destino. Joshua

largou as malas no sofá do apartamento e foi direto para

o quarto. Parecia estar tudo incrivelmente limpo.

Imaginou por que tinha essa sensação estranha e

absurda.

Imaginou o apartamento ao lado, vazio.

— Onde vou dormir? — Sua mãe surgiu á porta.

— Não sei.

— Muito atencioso de sua parte. — Ela acendeu um

cigarro. Ele tentou repreende-la com o olhar, mas foi

inútil.

— Você não vê que não importa? Acredito que

estaremos mortos em alguns dias.

— Deveríamos falar com os detetives, Jos.

— Preciso dormir.

— Vou dar uma volta.

— Tenha cuidado.

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Ela bateu a porta da frente. Foi impossível

dormir, como ele já tinha previsto. Estava atento ao

menor ruído, sobressaltado. Se sua vida já não parecia

ter sentido, agora o medo tornava tudo ainda mais

insuportável. Deixou o quarto, murmurando qualquer

coisa ininteligível. A sala continuava escura, apesar da

luz do sol escassa pela veneziana. Não lhe parecia mais

familiar, não parecia mais sua casa.

Sua casa. Ele repetiu as palavras

mentalmente. O que tinha chamado de lar por todo esse

tempo? Passara sozinho horas demais. Pensara ter

achado sua liberdade, mas agora compreendia que

estivera trancado em sua própria cela. E a única forma

de libertar-se agora era jogando-se pela janela. Ele riu.

Talvez nem isso fizesse sentido, um clássico final

trágico. Não queria isso, tinha perdido sua identidade.

O coração estava apertado, uma coisa que tinha sentido

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há muito tempo atrás, quando sua vida de adolescente

não parecia estar indo para lugar nenhum.

Agora sentia falta daquele sentimento

que o levara a cortar os pulsos impiedosamente. Era

tristeza, pura e simples. Ele conseguia compreender

isso, e soube lidar com a situação. Mas com aquele

desespero estranho, ele estava perdido. Não sabia a

origem do desespero, ou como acalma-lo, ou por que

deveria detê-lo.

O computador estava desligado,

desconectado da tomada de uma forma que ele nunca

tinha costumado deixar. Não tencionava ligá-lo

novamente. Abriu a janela, e deixou que a luz do sol

iluminasse tudo. Talvez ele estivesse pronto para mais

um dia, seus velhos caminhos, antigos medos. Algo

tinha voltado para a escura profundeza de sua alma, e

agora ele ficaria em paz.

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Com seus passos sempre apertados,

Nicky dispensou o ônibus aquela manhã, e foi

caminhando até o escritório. Pediria as contas,

conseguiria algum dinheiro adiantado, e abandonaria

aquela cidade fria, que já tinha lhe parecido acolhedora,

tinha lhe dado a vontade humana de sonhar

novamente. Era um lugar perigoso.

Algo passou correndo por ele, como uma

criança para não ser pega na brincadeira do pega. Nicky

parou de caminhar, não se tratava de uma brincadeira

de criança. O vulto negro havia desaparecido atrás de

um poste na calçada. Ele recuou um passo, sem se

preocupar com a atenção dos transeuntes da

movimentada avenida. Precisava voltar para casa, mas

sabia que ali não estarias seguro também.

Vestiu a toca da jaqueta, como se aquilo

pudesse protegê-lo. Atrás de um carro parado no meio

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fim, havia mais um deles. Estavam cercando, armando

uma armadilha, e ele não seria capaz de escapar

daquela vez. Eles o levariam para seu abismo escuro, o

qual os mortais costumavam chamar de Inferno.

Antes que pudesse dizer a si mesmo que

mantivesse a calma, ele já tinha começado a correr. Eles

surgiam de todos os lugares, não mais tímidos e

hesitantes. Estavam ali, dispostos a pegá-los, cientes da

que ninguém além de Nicky podia vê-los. E essa era sua

maior vantagem.

Seus dedos gelatinosos e gelados como a

própria morte tocaram seu rosto, e ele gritou,

inutilmente. Estavam todos ali, mais perto. Cada vez

mais perto, apesar de Nicky estar correndo, e eles a

passos curtos e calmos. Seus rostos não tinham

expressão, e nem o menor indício de traços, mas ele

sabia que estavam sorrindo, vitoriosos.

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“Eles não podem me pegar”, e ele começou a

repetir baixinho, sem qualquer confiança naquilo que

falava. O número de criaturas aumentavam, surgidas

das portas de estabelecimentos comerciais, das casas, da

rua, dos carros. Nicky observou, horrorizado, quando

uma delas saiu de dentro de uma mulher que passava

pela calçada apinhada, acompanhada de uma criança.

Caiu, tropeçando em qualquer coisa no

chão. Aquele era seu fim, então. Ele fechou os olhos,

consciente de que não havia nada mais que pudesse

fazer. Enquanto sentia que sua alma era arrancada pelos

vultos negros que o sufocavam rodeando-no, algo de

dentro de seu coração lhe disse para que abrisse os

olhos. Hesitante, ele obedeceu, olhando adiante. De

início, achou que estivesse vendo o Paraíso, mas a igreja

majestosa erguia-se a menos de dois quilômetros dele.

Fixou os olhos na enorme cruz erguida no topo da torre.

Sua salvação. Ele arrastou-se, enquanto as criaturas

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puxavam-no para baixo, para o subterrâneo. ”Eu tenho

o Bem, eu luto por ele”, pensou, tentando distrair-se

para não entrar em pânico enquanto adiantava-se

agonizante. ”Não vou morrer como um mártir antes de

ter completado minha missão”.

Ele conseguiu levantar-se a tempo de

subir os degraus de concreto da igreja. Ouviu os gritos

derrotados das criaturas da noite, e sorriu para si

mesmo. Tinha conseguido! Estava vivo. Correu pela

nave da igreja vazia, até alcançar o altar principal. Fez a

oração mais agradecida de toda sua vida, reconhecendo

que nunca tinha estado tão perto da morte.. Pior do que

da morte, da derrota.

— Será que posso ajuda-lo, rapaz?

Nicky levantou os olhos molhados para o

homem, sem parar de sorrir. Era um anjo em sua frente,

vestido de negro, rosto pacífico.

— Eu estive fraco, mas agora estou forte.

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Levantou-se, e deixou a igreja. Estaria

de volta á Califórnia em algumas horas.

Capítulo Vinte e Quatro

Por qualquer estranho motivo, Mabel não se

surpreendeu quando recebeu o recado de Joshua na sua

caixa de e-mail.Ela compareceu ao encontro, no

apartamento dele, na mesma tarde. A única coisa que a

deixou levemente intrigada foi o fato de ele estar

esperando na porta do prédio quando ela chegou.

— Você me parece mais velho do que da última vez que

nos vimos.

— Estou mais velho.

— Certo, desculpe. Isso é óbvio, não é? — Ela lembrou-

se de que odiava aquele jeito altivo e de poucas palavras

dele, que fazia um comentário casual parecer ridículo.

— Me parece muito velho pelo pouco tempo que passou.

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Ele não respondeu, enquanto girava a

chave na porta do apartamento. Ela lembrou-se da

última vez em que estivera naquele apartamento. A

jovem antipática que ela conhecera, morrendo de forma

brutal e completamente não usual.

— Se quiser sentar... — Ele disse, e ela assentiu. Ele

estava certo, afinal. Por que ele deveria comentar sobre

o tempo, sobre a bolsa de valores que estava em alta ou

quem sabe em baixa, essas bobagens que acabam sendo

o assunto comum de uma sociedade educada? Tornava

tudo mais superficial do que era, ainda mais depois que

algum idiota, ou algum gênio individualista, tinha

inventado o Capitalismo.

Ela sentou.

— Por que me chamou aqui?

— Queria ver como estava.

— Á sério.

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— Não estou brincando. — Ele sentou-se ao lado dela,

meio pesadamente. — Quer beber alguma coisa?

Era uma inédita pergunta polida, mas ele

não fez menção de levantar-se para pegar o que quer

que ela quisesse.

— Depois de tudo que aconteceu, — Ela disse. — Você

me chamou aqui para saber como estou?

— Eu tentei me matar um dia desses. — Ele esperou que

ela dissesse algo, ou que visse nela a piedade devida a

todo suicida fracassado. — Entende por quê?

— Suponho que sim.

— Então me explique.

— Sua namorada morreu. — Ela quis que ele se

surpreendesse por ela ter sido tão direta. Mas talvez por

falta do contato humano na vida dele, permaneceu

impassível.

— Eu vivi tempo demais, como você disse, estou muito

mais velho. — Ele levou a mão no rosto, como um gesto

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de desespero, mas não alterou a voz. —Ah Deus, esse

mundo me desgastou. — Ele tornou a olhar para ela. —

Então eu me suicidei. Fui bem sucedido da primeira

vez. De um jeito que, tenho certeza, você invejaria.

— Não invejo, você fracassou.

— Estou falando da primeira vez, há três anos. Deixei

pra trás tudo o que eu tinha chamado de vida. Construí

um mundo completamente meu, muros impenetráveis.

Foi a solução de uma infância frustrada, uma casa que

nunca me pareceu um lar, uma mãe que,

romanticamente falando, bebia Vodka com uísque —

uma mistura bem interessante, — a falta de amigos e de

pessoas que me compreendessem de verdade. Uma

sociedade condescente, gente hipócrita. A humanidade

em geral, que se torna cada vez mais falsa e egoísta.

Como você pode não me invejar? Eu encontrei a saída!

— Ele recostou-se no sofá, como se estivesse revivendo

o que dizia. — Eu, essa droga de apartamento escuro, e

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meu computador. Eu tinha exatamente tudo o que

precisava. Dinheiro suficiente para comer e pagar as

contas mais básicas, conforto e diversão. Não é isso o

que todo mundo precisa?

— Não. Eu preciso de muito, muito mais. Sou

completamente o contrário de você. Eu sempre vou

precisar de mais.

— Mas então me tiraram da realidade que eu tinha feito

para mim, para mim e mais ninguém. Eu vi o que

estava perdendo, desperdiçando minha vida, ou o que

restava dela. Ela me ensinou que eu estava deixando

pra trás não só um passado sujo, mas a melhor coisa

que tinha sido inventada naquilo que nós aceitamos um

dia como realidade: O amor.

“Ah droga”, Mabel pensou. ”Não vamos

começar a discutir sentimentos, vamos? O que ele acha

que sou? Sua namorada? Uma psicóloga?”

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— Sabe que uma vez que o aceitamos, estamos presos

para sempre? É impossível escapar.

Ela pensou em Tony.

— Todo sentimento humano é temporário, assim como

todo o resto em nossa realidade. O ódio passa, a dor

passa, e também o amor. Nem que seja necessário que

você morra para que isso aconteça.

— E depois de me deixar preso naquilo que eu já tinha

renunciado, isto é, a vida real, ela partiu, e levou com

ela todo o resto. Me deixou somente com o peso de não

poder voltar atrás, muito menos seguir adiante. Então,

eu pensei que tivesse encontrado um segundo recurso.

— E agora, o que acha? Foi uma boa idéia? Pensa em

tentar de novo?

—Não deu certo, eu voltei para minha cidade, aquela

que em que nasci e cresci, como se lá estivessem todas

as respostas. Como você pode imaginar, não encontrei

nenhuma. Pelo contrário, o que achei foram mais

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perguntas. Uma delas é: como vou fazer para me livrar

da minha mãe, agora que ela quis vir comigo?

Mabel riu.

— Imagino que isso seja um grande problema.

— Eu achava que precisava dela, por isso sempre fiz o

possível para conquistá-la, fazer com que ela me

entendesse e me amasse. Mas aí, eu compreendi que

não necessitava disso realmente, que pensar naquilo era

apenas mais um problema na minha vida já complicada.

E depois de adulto, resolvi que precisava dela, de

alguém, e ela era a última pessoa que restava na minha

memória. Me arrependi de novo, arrumei um outro,

porém não novo, problema para mim. Agora ela está no

meu quarto, dormindo ás quatro horas da tarde, com

migalhas de rosquinha e uma garrafa de álcool quase

vazia na minha cama.

Ele terminou o discurso retórico, e

perguntou-se porque não era estranho estar abrindo seu

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coração para a garota que tinha sido a grande causa da

morte de Heather, como nunca tinha feito para ninguém

antes. O que esperava dela agora?

Mabel não disse nada. Porque nada tinha

a dizer, e porque Joshua ficou tão perdido em

pensamentos que ela teve medo de despertá-lo, como se

fazem com os sonâmbulos. Ela levantou-se, para olhar a

rua pelo vidro fechado da janela. Aquele apartamento

parecia-lhe mais obscuro e triste do que o hospício.

— Eu sinto muito. — Ela disse, minutos depois.

Talvez fosse exatamente aquilo que ele

esperava ouvir.

— Obrigado.

— É sério. Eu sinto mesmo.

— Sei disso. Você foi a culpada. Se não tivesse

levantado a arma na sua precipitação, e, arrisco sede

por sangue, talvez Heather estivesse viva.

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Mabel ia discutir, mas a dor estava

brilhando nos olhos dele, o que ela conhecia tão bem.

Era capaz de compreender os três sentimentos que

considerava reais: O ódio, o desespero e a dor. Depois

deles, vinha a tristeza conformada ou a morte. Joshua

tinha vivido o ódio racional pelo assassino, e quem sabe

por ela. O desespero que o levara a tomar muitos

comprimidos ou cortar os pulsos. E agora, a dor. Estava

muito perto de uma das duas emoções finais.

— Posso fazer algo para ajudar?

— Agora entende por que te chamei aqui, não é?

Ela assentiu.

— Pensei que fosse colocar em prática o que tínhamos

combinado. — Ela interpretou a expressão dele,

lembrou-o da última noite antes da morte de Heather.

— Íamos atrás do psicopata, antes que ele viesse atrás

de nós.

— Não.

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— Você precisava de alguém para conversar, e não

havia mais ninguém.

Ambos permaneceram em silêncio por

muito tempo, cada um em seus pensamentos. Joshua

não mais pensava no que seria de seu futuro, rendendo-

se completamente, pois era a saída mais fácil agora. Não

entendia exatamente o que o fazia sentir-se assim, quem

sabe fosse aquela doença, a moda do fim do século XX,

e sem dúvida muito popular entre os psiquiatras do

século XXI. No tempo dos românticos, tinha sido a

tuberculose. Agora, era a depressão.

Mabel imaginava se o assassino voltaria,

se ela deveria marcar outro encontro com Andy,

inclinando-se mais para a resposta “não”. Lembrou-se

de sua casa, de seu ex emprego, de Jim. Precisava

mudar de vida, largar os remédios, esquecer sua

loucura. Ou acabaria louca de verdade.

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Ela pegou a bolsa para ir embora. O

gesto fez com que ele levantasse os olhos, e visse

claramente Heather, como ela costumava fazer quando

estava para ir embora.

— Alguém está ocupando o apartamento ao lado? —

Ela disse, apanhando uma caneta e um bloquinho de

papel sobre o balcão da cozinha contígua.

— Não.

— E com essa história, vai ficar vazio por muito tempo...

Deixei o número do meu telefone, e meu endereço.

Podemos conversar quando quiser.

— Acho que alguém se muda pra lá em breve. As

pessoas adoram tragédias.

— A mais pura verdade. Tragédia viciante, não é? O

que há de melhor?

— O que acha que há na mente humana? — Ele

perguntou, dando á ela a impressão de que não queria

que ela fosse embora.

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— Nada de tão complexo assim. É que o ser humano é

inventivo por natureza. Ele precisa imaginar o que não

entende, e acaba inventando histórias. Somos apenas

isso que podemos ver, Joshua. Nada mais.

— E os outros noventa por cento do cérebro que não

usamos? Não conhecemos o que há daquele lado. E isso

é físico, não estamos adivinhando.

— Isso é conversa do passado. Nós usamos cada uma

das áreas do nosso cérebro, não há nenhuma que ainda

não tenha sido explorada. Dizem que foi Albert Einstein

quem deu origem á essa teoria, mas dessa vez ele estava

errado. Não imagino como poderíamos viver dessa

forma. Buscamos conhecer tudo que está ao nosso

redor, estudamos os animais e as plantas. Imagine se

fôssemos incapazes de conhecer a nós mesmos. — “Será

que conheço á mim mesma?”, ela pensou, ainda

enquanto falava. — Até os gênios erram.

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Deixou o apartamento. Ele voltou a atenção

ao chão, de volta aos seus pensamentos. Não evitou

uma risada irônica. O que Heather teria pensado do que

Mabel falara? Ela, com todo seu romantismo, as

“escondidas habilidades incríveis que todo ser humano

tem”. Teria se decepcionado.

Somos somente aquilo que somos.

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Parte 3

O último prelúdio da loucura

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Capítulo Vinte e Cinco

Nicky largou a mochila no sofá e chamou

pela mãe. Ela não tinha perdido a mania de deixar o

portão da frente aberto. Tantas vezes ele já tinha

chamado a atenção dela que acabara desistindo.

— O que faz aqui? — Ela surgiu na sala. Ele sentiu os

olhos encherem-se de lágrimas imediatamente, e a

abraçou.

— Senti sua falta.

Ela resistiu de início, mas acabou cedendo

Ao abraço. Nicky viu que ela tentou disfarçar que

chorava também. Ela escondia emoções, uma coisa que

Nicky não entendia. Ele sorriu.

— Você não deveria ter voltado. — Ela estava

repreensiva, exatamente como fazia quando ele ainda

era uma criança, e largava seus brinquedos pela casa. —

Não é seguro aqui.

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— Já vieram me procurar por aqui.

Tinha sido uma afirmativa, não uma

pergunta, mas ela respondeu:

—Vieram. Me diga, Nicky, por quê?

— Não quero falar sobre isso agora. — Ele disse. Ainda

não tinha terminado, era cedo para discutir o assunto.

— Ninguém vai me procurar onde já procuraram, isso

seria idiotice. —Ele suspirou, dizendo a si mesmo que

tiraria o dia para descansar a mente. No dia seguinte,

tomaria as próximas providências, e tudo seria

resolvido o mais breve possível. Precisava daquela noite

para sua preparação espiritual. Aproveitaria para fazer

uma longa oração. —Estou lembrando daquela vez que

você me levou ao parquinho, e eu derrubei o algodão

doce lá de cima, do carrossel. — Ele riu. — Fiquei tão

triste aquele dia... Mas foi divertido, o sol estava

brilhando sorridente.Você se lembra?

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Ela não respondeu. Devia estar chateada.

Droga, sabia que aquilo o faria chorar. Gostaria que ela

compreendesse! Bom, ainda tinha uma tarde inteira

para colocar os sentimentos em dia.

— Bom café da tarde. — Murmurou rapidamente, antes

de ir para o quarto.

Joshua acordou sobressaltado. Tinha tido

um sonho estranho, confuso. Ele passava por um túnel

escuro e terrivelmente frio, e de algum jeito, sabia que

corria pela própria vida. Não chegou ao final, pois havia

uma enorme porta de metal, que ele não esperava

encontrar. Começou a gritar por socorro, enquanto batia

os punhos fechados contra a porta, em vão. Olhou para

trás, e deu com algo que emergia das sombras. Estava

vindo na sua direção. Ele pôde reconhecer uma silhueta

humana, mas teve medo de descobrir de quem se

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tratava. E estava se aproximando. Pela primeira vez

depois de adulto, Joshua rezou.

Tinha sido um barulho da porta da frente.

Ainda confuso pelo sono, ele levantou-se. Seis e trinta e

sete da manhã. Sua mãe tinha acordado cedo, depois de

dormir a tarde anterior inteira. Ia dizer á ela que ficasse

quieta, talvez xingá-la de alguma coisa. Colocou a mão

na maçaneta, mas deteve-se, quando ouviu uma voz

masculina vindo da sala.

— ...se não disser nada. A dor é boa, renova a alma e faz

bem para o coração.

Joshua recuou, passando os olhos pelo

quarto á procura de qualquer coisa que pudesse servir-

lhe. O telefone celular estava na sala. Mesmo que

estivesse ali, para quem ligaria? A polícia? Não queria

recomeçar aquilo.

Mabel. Sem fazer ruído, ele abriu a janela do

quarto, e começou a descer pela escada de incêndio.

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Havia alguém no quarto, e agora ele olhava para

Joshua, de sua janela. Por apenas um instante seus olhos

se encontraram com os dele. Era Joey, o assassino de

Heather. Seus princípios lhe diziam para subir de volta

e lutar pela justiça, pelo que tinha sido feito. Mas ele

continuou a descer as escadas. Algo passou muito perto

dele, antes que ele pudesse descobrir o que era o objeto

arremessado. Uma nova investida, mas Joey não

acertou.

Enquanto corria, fazia o máximo de esforço

para lembrar-se do endereço que ele tinha espiado e

deixado onde estava, em cima do balcão. Exausto,

queria poder parar e respirar, mas sabia que se fizesse

isso seria o fim. Parou de correr, mas continuou a

passos apertados.

Sim, lembrava-se do nome rua! Mas o

número da casa fugia-lhe da mente. Alcançou o ponto

de táxi, mas lembrou que não tinha dinheiro. Pelo

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menos, estava na avenida, e agora seria mais difícil de

achá-lo. Como estaria sua mãe? Precisava voltar. Estava

confuso, a única certeza que tinha era que não voltaria

sem Mabel.

— Sim, Harry. — O detetive Hooper disse. — Trata-se

da mesma pessoa.

Crews largou os papéis sobre a mesa.

— Ele estava sob o pseudônimo de Nicolas Oberon. Não

teve nem a decência de trocar o primeiro nome.

— O que acha que ele quer? — Hooper sentou-se no

sofá do outro lado da sala. Não conseguia compreender

como e por que um jovem como Farkas escolhe um

caminho como aquele. Mas eles sempre escolhiam.

— É a segunda garota. Poderíamos considerar a clássica

história da mãe vagabunda que torna seu menino um

serial killer psicótico, mas a mãe sempre foi boa com ele.

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— Ela sabia onde ele estava o tempo todo.

— Podemos julgá-la? O que faria se fosse seu filho?

— Não a culpo, você sabe disso. — Hooper pensou na

sua filha. Estava grávida de dois meses, se casaria em

três. Droga, odiava o noivo dela. Gostaria que Farkas o

matasse. — Eu também protegeria se fosse meu filho.

Crews pegou os papéis de novo.

— As características fornecidas pela amiga de Julia

Dean. A cena do crime se parece muito com a primeira.

— Não há dúvidas, o garoto é um pintor. — Ele pegou

as fotos do cubículo que Nicolas Farkas tinha dividido

com Dean. — São bonitas pinturas, não são?

— Ele teria um bom futuro, se as circunstâncias fossem

outras. Por que acha que os doentes mentais sempre

gostam de pinturas ou desenhos?

— É apenas uma forma de se expressar.

O detetive Hooper pegou o casaco.

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— Vamos para Citrus Park.Temos um encontro com o

rei dos Elfos.

O telefone tocou antes que os detetives

deixassem o escritório. Era um de seus correspondentes.

Hooper largou o telefone lentamente, pensando sobre o

que deveria fazer em seguida.

— Precisamos encontrar o garoto.

— O que aconteceu? — Crews perguntou, preocupado.

— Acham que Farkas foi visto deixando Nova York

ontem. Pode ser ele, disfarçado. Jordan vai nos trazer as

fotos.

— Ele voltou para cá?

Hooper assentiu, lembrando-se do garoto

de olhar perdido vestido de preto, e da garota histérica

que o acompanhara.

— Deve ter vindo atrás do que deixara pendente. Não

achei que fosse fazer isso.

— Qual era o nome do viajante?

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— Marcus Langdon.

— Parece inventado.

— Ele não queria a garota, Spencer. Está atrás do

namorado dela.

— É óbvio que Dunne esconde alguma coisa, mas não

acredito que seja ele a vítima visada desde o início.

Procurá-lo em Los Angeles antes de ir a

nova York. Era a coisa certa a fazer.

Crews pegou o telefone e discou o ramal

da secretária.

— Localize Joshua Dunne e Mabel Gibbs

imediatamente. E deixe reservadas as passagens para o

início da noite. Estamos com o pintor nas mãos.

— Mabel Gibbs... — Joshua disse, tomando um pouco

de fôlego, quando a porta foi aberta. Era a terceira casa

daquela rua que ele experimentava. A idéia de estar em

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endereço errado começava a apavorá-lo. — Ela mora

aqui?

A mulher parecia surpresa.

— Mora sim. Quem é você?

— Por favor, preciso falar com ela urgentemente.

— Quero saber seu nome.

Joshua estava desesperado demais para

desperdiçar tempo com a mãe de Mabel. Quase sem

pensar, ele começou a gritar.

— Mabel! Mabel, eu preciso de você!

A garota surgiu na janela do quarto, para

segundos depois abrir caminho pela porta da frente.

— O que está acontecendo? — Ela perguntou, mas já

puxava o braço de Joshua para a rua.

— Quem é esse, Mabel? — Pebble perguntou,

acusadora.

Mabel ignorou, levando Joshua para

longe.

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— Ele está... Está em casa. — Ele tentou controlar o

tremor que percorria seu corpo, sem saber se era por

causa do medo ou do frio. — Talvez... Talvez tenha

matado minha mãe.

— Tente ficar calmo. — Ela colocou a mão no ombro

dele, mas o gesto só serviu para deixá-lo ainda mais

nervoso.

— O que vai fazer?

Ela sabia que precisava pensar rápido.

Começou a correr na direção de volta para casa.

— Não saia daí por nada nesse mundo!

Ele observou-a correr, e sentou no meio fio,

torcendo para que ela voltasse logo, e que acabassem

com aquilo de uma vez. Ou que não voltasse.

— É um amigo meu. — Mabel explicou para a

madrasta, antes de correr para o quarto para apanhar o

canivete, e a arma de Joshua, que acabara por pertencer

á ela. — Está com um problema em casa.

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— Espero que não esteja metendo-se em confusão outra

vez...

Antes que ela completasse a frase, Mabel já

tinha deixado a casa.

— Escute Mabel. — Joshua dizia, acompanhando os

passos apressados dela. — Só espero que dessa vez você

realmente saiba o que está fazendo.

— A não ser nossas próprias vidas, não temos mais

nada a perder agora. Sua mãe já deve estar morta. Mas

nós dois vamos sair dessa vivos, Joshua.Isso eu te

garanto.

— Meu Deus... — Ele perguntou-se porque se colocava

nas mãos daquela louca, mas encontrou a mesma

resposta de todas suas outras perguntas: Não havia

outra escolha.

—Você está acabado. Devia praticar mais esportes, sabia

disso?

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Chegaram ao prédio no extraordinário recorde

de quinze minutos. Ele hesitou antes de começar a subir

as escadas.

— Não deveríamos ir pela escada de incêndio?

Ele era um patético ingênuo. Provavelmente

tinha sido por lá que ele fugira.

— Não acha muito óbvio? É exatamente isso que ele

acha que você vai fazer.

Nicky lançou um olhar para o corpo da

mulher estendido no chão. Perguntou-se mais uma vez

por que as pessoas o desafiavam, deixando-no sem

escolha. Ele tinha entrado na casa, exatamente como da

primeira vez que estivera ali, apenas para dar o aviso.

Joshua não tinha escutado, continuara fazendo suas

barbaridades, sem se importar que um dia pagaria por

isso com um preço bem alto. Ele girou o pedaço de

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alarme improvisado na fechadura, no estilo Holdini, e

deu com a mulher sentada no sofá da sala.

Ela ia gritar, mas ele foi mais rápido ao

tampar sua boca. Ela tentou morde-lo, mas ele socou-a

várias vezes no rosto e na cabeça, fazendo com que a

pesada senhora desmaiasse nos seus braços.

— Deixe ele em paz... — Ela conseguiu murmurar antes

de perder a consciência.

Ele a pouparia da morte. Uma mãe

preocupada com o filho, a mais sagrada de todas as

uniões. Tinha sido isso que ele pensara inicialmente,

pois tinha achado que seria rápido e fácil. Joshua estava

dormindo.

Nicky se esquecera de que se tratava de um

escolhido do Diabo. Joshua acordou, e conseguiu fugir.

Mas voltaria, sabia que voltaria. Uma hora ou outra,

teria que voltar. Nicky não temia a polícia.

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Se tivesse que morrer, morreria fazendo

exatamente o que deveria fazer

Voltou para a sala, encontrando a mulher

que acordava. Ela poderia estragar seus planos, mas ele

não queria sangue derramado á toa.

— Se ficar quieta, vou deixá-la viver.

— O que vai fazer com ele? — Ela esforçou-se a dizer.

—Vou fazer o melhor para a Humanidade. Sabia que

não está tudo perdido? Ainda há uma salvação!

— Louco!

— Não sou louco! — Ele teve vontade de gritar, mas

conteve-se. Não deixaria seus impulsos humanos

estragar algo divino. Os espasmos recomeçaram.

Acontecia toda vez que ele ficava nervoso. — Eu preciso

matar quem não é de Deus.

— Você... Você é o próprio Demônio.

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Ele levantou a mesa de centro sobre a cabeça

e acertou-a diversas vezes. Foi muito tempo depois que

a porta da frente da casa foi aberta.

— Largue a faca! — Era a garota. Ele a reconhecera

como Filth Darkness desde a primeira vez no

apartamento de Joshua. Ele deixara um recado para ela

também, mas não era quem ele queria. Como os outros,

era apenas mais uma vítima de Joshua, uma vítima da

sociedade. Ela não precisaria ser morta, mas começava a

querer desafiá-lo, também.

— Muito bem, Filth Darkness. Me diga seu nome

verdadeiro.

— Você sabe muito bem, maluco psicopata. Já

estivemos juntos muitas vezes.

— Apenas me lembro de ter o prazer de sua companhia

em uma única ocasião. E você também tinha uma arma

na mão. — Ele olhou para Joshua atrás dela. — Olá,

Joshua.

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Joshua levantou os olhos do cadáver na sala,

para encará-lo de olhos marejados.

— O que você... O que você fez?

— Foi o melhor para ela. — Disse tranquilizador. — Ela

está dormindo um descanso eterno. Queria conversar

com você por um instante. Será que pode chegar mais

perto?

— Eu disse para largar a faca! — Mabel gritou, ciente da

presença soluçante de Joshua atrás dela. Ele confiava

nela, e ela não poderia desapontá-lo.

—Vá para casa. — Nicky sugeriu. — Isso nada tem a ver

com você. Já está salva.

Ela disparou. Não teve certeza imediata se

tinha acertado, pois no exato segundo que atirou, ele

correu em sua direção. O disparo fez com que ela

retrocedesse. Impulsionada para trás, foi facilmente

rendida. Joey conseguiu tirar a arma dela, e pediu

silêncio com a mão encostada nos lábios.

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—Você tentou me matar! — Ele sussurrou. Só então ela

viu que escorria sangue do braço dele. Pelo menos o

acertara. — Não está limpa, não está limpa...

Joey repetia a frase sem parar. Ela ia pra

cima dele. Se isso lhe custasse a vida, não importava. Só

precisava pensar rápido em um jeito de chegar até a

faca que ele deixara cair no chão do outro lado da sala.

—... limpa! — Ele puxou Joshua, e apontou a arma para

as costas dele. — Não tente nada, querida. Ou ele morre

agora mesmo.

“Não é assim que deve ser”, dizia uma voz

insistente na cabeça de Nicky. ”Se for rápido e indolor

ele não vai ter pagado pelas muitas almas que fez ir

para o inferno, e não será salvo também”.

— Eu sei! — Ele respondeu em voz alta, impaciente. —

Eu sei exatamente o que devo fazer. Como acha que

cheguei aqui?

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Ele encontrou os olhos cheios de ódio de

Mabel, e começou a chorar.

— Você não vai sair vivo dessa. — Ela disse. — Acha

que vai, mas não vai.

— Por favor, não tente nada. Eu só quero o melhor para

nós todos.

— Mabel... — Joshua disse, tentando se afastar um

pouco de Joey, mas sendo puxado novamente. — Não

há mais nada que se possa fazer por mim. Vá para casa.

— Não! — Nicky gritou, fazendo que ele tivesse um

sobressalto. — Ela não vai para casa. Vai vir conosco,

Billy. Quer que eu te chame de Billy ou Joshua?

Mabel estava olhando para Joshua, á

procura de uma resposta. Ele nada tinha a dizer. Não

estava mais zangado com ela, ele surpreendeu-se

consigo mesmo. Gostaria que ela conseguisse

sobreviver. Ele baixou os olhos, para não ter que encará-

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la. A menos que um milagre acontecesse, os dois

estariam mortos antes daquela manhã acabar.

— Responda! — Nicky bateu com a arma nele,

impaciente. Estavam querendo atrasá-lo. —Joshua ou

Billy?

— Billy. — Ele respondeu, voltando-se para encará-lo.

— Me chame de Billy.

— Tem um carro preto estacionado ali na frente. Vocês

vão me acompanhar até lá.

Ele começou a caminhar para a porta.

Observou com atenção a rua vazia, torcendo para que

nenhum dos dois resistisse.

— Vai para casa. — Joshua ainda insistiu. Mabel não

respondeu.

Nicky colocou-os no carro de sua mãe,

alternando a arma para Mabel e Billy. Suspirou alto,

enquanto dava a partida. Tinha sido uma tarefa difícil

pegar o carro de sua mãe.

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— Você vai atrás dele, não vai? — Ela perguntara. As

mães sempre sabem de tudo.

— Preciso do carro. — Nicky sabia do pecado que era

mentir para a mãe, por isso fugiu da pergunta.

—Não. Você não vai levá-lo. — Ele conhecia o tom

firme da mãe. —Aliás, você nem vai sair da casa hoje.

Ele deu uma rápida olhada para o relógio

sobre a estante da sala. Cinco e dois da manhã, e nada

estava preparado ainda. Não tinha tempo de discussão.

Largou as chaves do carro. Saiu da

presença da mãe, voltando com uma das cordas que

seriam usadas para Joshua. Amarrou-a e colocou-a no

banheiro, mas ela começou a gritar por socorro. Alguém

ouviria, ele temeu. Esqueceu que uma das armas da

sobrevivência do ser humano era o grito. Ele pediu

silêncio, mas ela não quis escutá-lo. Ela puxou a faca da

bainha da calça, e cortou a língua dela.

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— Cuspa o sangue. — Ele advertiu antes de trancar a

porta do banheiro. — Não engula.

Então ele seguiu para o hospital abandonado

há dez quilômetros da casa de Joshua, e deixou tudo

preparado. Mas seu pressentimento era que a garota

terminaria por estragar tudo.

— Qualquer movimento. — Ele avisou, olhando-a do

banco de trás pelo espelho retrovisor. — E um de vocês

morre aqui mesmo.

Ela não disse nada. Estava com os olhos

fixos bem além da janela do carro.

Capítulo Vinte e Seis

Mabel ainda hesitou antes de entrar no

hospital abandonado. Por muitas vezes ela havia

passado naquela rua quase completamente vazia,

contemplado a imensa construção. Mais um desperdício

do Governo. O lugar já tinha acolhido curado e matado

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tantas pessoas, mas por falta de verba tinha sido

esquecido por completo. Apesar disso, Mabel achava o

hospital pixado e sujo muito atraente, e convidara Kate

para explorá-lo por dentro, apenas pelo prazer de estar

em um lugar diferente e divertido. Ela ainda guardava

as fotos daquele dia, e se lembrava com certa decepção

por não ter visto nenhum espírito ali dentro.

Provavelmente eram muitas as almas desencarnadas

que vagavam por lá, em busca de perdão, e, quem sabe,

a aceitação dos vivos.

Agora a situação era diferente. Ela não

estava com medo, e não se surpreendia com isso. O que

sentia não era esperança, apenas tinha noção de que era

óbvio que as coisas não terminariam mal. Ela mataria o

assassino. Sim, ela se vingaria de todo mal que tinha

feito á ela. Por sua culpa, agora ela se sentia ainda mais

louca. Uma longa estadia no hospício faz com que as

pessoas se sintam mais doentes.

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Era o quarto andar do hospital, o

necrotério.

— Nada surpreendente, não? — Ela comentou.

Nicky fez sinal para que eles se

sentassem numa comprida mesa de metal. Mabel

obedeceu, acompanhando o olhar de Joshua até os

armários de gavetas. Ela sabia o que ele pensava.

— Não há nada lá dentro. — Ela disse. Ele olhou para

ela, mas ela sentiu que ele nada via, e talvez nem mais

ouvisse. Sentiu um aperto no coração. Ele tinha

desistido.

— Silêncio! — Nicky gritou, fazendo eco nas paredes

frias. — Por favor, precisamos de concentração agora!

Mabel procurava algo que pudesse protegê-la,

para que pudesse dominá-lo, e tirar Joshua dali.

Nicky trouxe a corda e começou a amarrá-la. Ela

empurrou-o.

—Você não vai tocar em mim!

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Ele golpeou a cabeça dela com a arma, fazendo-

na desmaiar na mesma hora. Joshua levantou-se num

impulso.

— Maldito psicopata! — Nicky voltou-se para ele,

surpreso. — Não vou deixar que mate mais ninguém.

Joshua foi para cima dele, de punhos

fechados. Conseguiu acertá-lo no rosto, e em seguida

acertou-o no ombro machucado, fazendo-no gritar.

Nicky disparou a esmo, sem conseguir divisar muita

coisa. Quando se deu conta do que estava acontecendo,

Joshua estava prestes a apoderar-se do revólver.

Mabel abriu os olhos a tempo de ver Joshua

investir um novo soco em Joey. Não conseguiria. Joey

era muito mais forte do que ele. Ainda tonta, ela

conseguiu se levantar. Saiu sem ser vista, percorrendo o

corredor. Devia haver alguma coisa, qualquer coisa!

Apesar do sol entrando pelos buracos na parede que um

dia tinham sido janelas, ela não podia enxergar direito.

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Tateou até encontrar as escadas, e depois mais um lance

de escadas. Não havia nada, absolutamente nada!

Poderia tentar sair, procurar ajuda, mas e se não

houvesse tempo de voltar? Começou a seguir o caminho

de volta, na esperança de que Joshua o distraísse a

tempo de Nicky ter uma hemorragia por causa do tiro

no braço.

Ela tropeçou em alguma coisa no primeiro

degrau da escada. Sorriu para si mesma. Era exatamente

o que precisava. Algum grupo de meninos em busca de

um lugar seguro para fumar e beber tinha encontrado

abrigo no hospital abandonado, provavelmente na noite

anterior. O que era de se esperar, não havia lugar

melhor para usar a inofensiva maconha, sonhar um

pouco, e depois voltar para casa, sem ser descoberto

pela mãe ou pela Polícia. O frio fizera que trouxessem

uma garrafa de gasolina para queimar a madeira e

fósforos. A madeira já não existia, mas ela descobriu um

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pouco de combustível e um único fósforo na caixinha.

Bom, ela teria apenas uma chance.

Subiu de volta, demorou um pouco para

encontrar o necrotério. Ouviu gritos, que fez com que

congelasse por um instante.

—Você sabe onde isso vai terminar. — Nicky dizia,

enquanto disputavam a arma. — Você não pode me

matar, o bem sempre tem que vencer.

Joshua não disse nada. Não haveria nada

mais gratificante no mundo do que matar aquele

imbecil doente.

— Eu não vou me render.

Nicky conseguiu golpeá-lo a ponto de fazê-

lo cair. Joshua tinha largado a arma. Estava

completamente em poder do revólver. Estava no

comando novamente. Tirou a faca do bolso jaqueta.

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— Não vamos esperar a garota. Ela foi chamar a polícia.

— Ele disse. Joshua estava no chão, não tinha se

recuperado da pancada. — A alma dela está perdida.

Sinto muito.

Ele golpeou-o pela primeira vez com a faca,

fazendo-o gritar de dor. Era muito pior do que ele tinha

imaginado ao ver vídeos e filmes. Tentou arrastar-se,

mas Joey o deteve. Uma segunda investida, e ele

entendeu que não haveria mais jeito. Rezou para que

sua alma fosse salva, exatamente como Nicky tinha dito.

Sentiu um forte cheiro de gasolina. Segundos depois sua

visão ficou turva por causa da fumaça preta que tinha

envolvido todo o lugar.

Uma terceira investida, mas ele percebeu

que Joey retrocedia.

— Você está salvo. — Ele disse, antes de sair do

necrotério.

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O detetive Hooper derrubou a porta, sem bater ou tocar

a campainha pela segunda vez.Foi abrindo portas, até

encontrar a mulher estendida no chão do banheiro.Uma

pessoa da equipe foi checar seus sinais vitais.Fez sinal

negativo com a cabeça.

— A própria mãe. — Crews balbuciou.

— A língua foi cortada. — Hooper disse. — Ela morreu

engasgada com o próprio sangue.

— Para a casa de Dunne. — Crews terminou de dizer e

seguiu para o carro. — Hora de seguir os rastros.

Joey passou por Mabel sem vê-la, ainda que

as chamas cada vez mais altas já dominassem todo o

corredor.

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— Ei! — Ela chamou, e ele olhou para ela, com um

sorriso tímido. — Acho que ainda não terminamos, não

é?

Ele seguiu calmamente na direção dela.

Uma enorme chama de fogo os separava agora.

— Vamos morrer. Todos nós. Como se sente com isso?

— Eu fiz o que deveria fazer, posso partir em paz agora.

— Você vai queimar até a morte, e depois queimaremos

juntos no inferno.

— As chamas purificarão a sua alma, estaremos juntos

no Paraíso.

— Acha mesmo que é um mártir, não acha? Por que não

pega essa arma e atira em mim agora?

Ele ergueu o revólver, mas jogou-o no

fogo.

— Não preciso mais disso, ainda bem. É humano

demais para minha missão.

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— Vamos ser estrelas, sabia disso? Todo mundo vai

comentar do maluco que matou o casal não tão inocente

assim. Vão falar durante meses, e quem sabe até façam

um filme sobre nós.

— É o que seu coração deseja?

— É o que vai acontecer.

A chama já fazia um círculo ao redor dele.

Olhava fixamente para ela, sem tirar o sorriso triste dos

lábios. Ela deu um passo para trás, enquanto a primeira

chama o atingiu. Ele não gritou. Ajoelhou-se no chão, e

ela não conseguiu mais enxergá-lo. Entrou na porta

adjacente, o necrotério abandonado.

— Billy! — Ela gritou, encontrando ele cheio de sangue

no chão. Ele balançou a cabeça negativamente.

— Corre, Mabel. Talvez dê tempo.

— Eu te prometi Joshua!

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Ele deixou que ela colocasse seus braços

nos ombros dela, mas ele parecia-lhe pesado demais.

Ele ainda insistiu.

— Tente correr, Mabel!

Dessa vez ela não respondeu. Ainda teve

tempo de lançar um olhar pela janela. Havia pessoas

que observavam do lado de fora do hospital.

Ela chegou ao buraco que servira como

porta. Não havia jeito de sair. Não teriam a menor

chance de sair dali. Em poucos minutos, e o fogo

invadiria o necrotério.

— Sabe... — Ele começou. — Você foi uma das pessoas

mais legais que conheci em toda minha vida. Em outras

circunstâncias, poderíamos ter sido grandes amigos.

Mabel entendeu. A única coisa que eles

poderiam fazer agora era esperar o fogo atingir a sala.

Ela pensou em Charles, e seus olhos encheram-se de

lágrimas.

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— Também acho. — Ela sentou-se ao seu lado no chão.

— Devíamos ter nos conhecido melhor.

Eles ficaram em silêncio por um instante. A

respiração entrecortada de Joshua falhou por um longo

momento. Ela abraçou-o, sua blusa imediatamente

enchendo-se de sangue. Ele fechou os olhos, e encostou

a cabeça em seu ombro. Ela ouviu a sirene do corpo de

bombeiros. Sim, eles conseguiriam! Precisava dar um

sinal de onde estavam.

— Joshua! — Ela disse. — Os bombeiros chegaram!

Ela afastou-o para levantar-se, mas o

corpo dele tombou no chão. Ela não tentou reanima-lo,

nem tentou controlar o choro. Gritou por socorro da

janela, e detectou que tinha sido vista. Não tinha

cumprido sua promessa.

“Teríamos sido bons amigos”, ela

repetiu consigo mesma.

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Capítulo Vinte e Sete

O vídeo estava demorando a carregar. Mabel

olhou para o celular ao lado do monitor do computador.

Será que Andy retornaria sua ligação? Ela tinha ligado

naquela manhã, mas até agora, nada. Não se importava,

ele que se danasse. A tela finalmente foi aberta.

“— Olá, Billy, há quanto tempo! — Disse a garota,

exibindo um sorriso. Como o tempo passa rápido, não

é?”

Mabel concordou, pegando o salgadinho

deixado ali pela madrasta. Já tinha se passado um ano

desde que tudo acontecera. Quase exatamente um ano.

Tinha acontecido no Natal. Talvez a data tivesse sido

escolhida propositalmente,como um anti clímax, uma

heresia.

O primeiro aviso viera no Natal anterior, e

agora, estava consumado. “Está chegando em você”.

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Era pouco tempo para tantas coisas terem

acontecido, ou tempo demais? Era apenas uma forma

poética de pensar. O fato é que se passara trezentos e

sessenta e cindo dias.

“— Não dói. — Dizia a garota, uma faca atravessada em

sua mão. É apenas uma questão mental. Eu penso: ‘A

dor não existe’. Logo,ela deixa de ser real.”

Intoxicada pela fumaça do incêndio, passou

três dias no hospital, imaginando seus pulmões negros,

e torcendo para sobreviver. Pensava em Joshua

também. Relembrava pela última vez a cena que

decidira apagar de sua memória para sempre. Era uma

ironia que aquela fosse uma cena que o próprio Billy

teria adorado ver.

O pai ficou todo tempo ao seu lado,

dizendo o quanto a amava, e implorando para que não

o abandonasse. Ela sorriu.

— Eu sempre soube... — Murmurou simplesmente.

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Os detetives apareceram no segundo dia.

— Como vai, garota? — Disse Crews. — Quanta

coragem!

— Trouxemos flores. — Disse Hooper, sorrindo.

Colocou o arranjo de flores vermelhas ao lado da cama.

— As flores são para o assassino. Eu ainda estou viva.

Hooper assentiu.

— Podemos conversar?

Era hora de ser cuidadosa.

— Já devo ter mencionado o bilhete que ele escreveu

para mim e Joshua. Assinava como Joey.

— Sabe que o nome dele é Nicolas Farkas?

— Sim.

— Onde foi deixado o bilhete?

— Na caixa de correio de Joshua.

— Você conhecia Dunne há muito tempo? — Crews

perguntou.

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— Há alguns anos nos conhecemos numa sala de bate

papo.

— Desculpe se isso parece um interrogatório, mas

precisamos da verdade. Eram muito amigos?

— Sim, nós tínhamos muito em comum... — Ela

imaginou até que ponto aquilo era verdade.

— Ele tentou se matar semanas antes do acontecido.

Sabe algum detalhe á respeito?

— Eu estava fora da cidade na época. Não sei muito...

— De onde acha que o assassino conheceu vocês? —

Hooper indagou.

— Na rua, passando por aí, não sei... Em qualquer lugar

comum.

— Por que vocês?

Ela deu de ombros.

— Ele deveter ouvido “a voz”.

— Acho isso simplório demais, srta. Gibbs. — Interveio

Crews.

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— O que sugere, então?

— Tenciono descobrir...

— O que quer que tenha passado por sua cabeça,

morreu com ele.

Mabel entendia ser suspeita, também. Mas

nunca haveriam provas contra ela.

— Por enquanto, é só. — Finalizou Hooper. — Deve

estar cansada.

— Não vai me deixar um cartão ou umtelefone de

contato, caso eu me lembre de algo?

O detetetive sorriu com a ironia.

— Então, você sabe exatamente como funciona.

— Assisto filmes policiais demais, não é? Sabia que

vocês ficam bemmais legais na ficção?

Ele fechou a porta do quarto. A verdade

estava escondida para sempre.

Mabel ficou agradecida quando soube ter

ficado com todos os pertences de Joshua, na falta de

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documentos e parentes próximos. Agora, a preciosa

CPU de Billy era sua.

O barulho de festa no andar de baixo ia

diminuindo aos poucos. Passavam das quatro da tarde.

Se os convidados queriam um almoço de Natal decente,

precisariam dormir.

“— Espero que tenha gostado.” — A garota concluiu o

vídeo, a tela ficou escura novamente.

Andy não ligaria, ela amaldiçoou. Estava

cansada demais para zangar-se agora. Espreguiçou-se.

Respondeu o último recado antes de desligar o

computador. Planejava acordar apenas no final da tarde

seguinte. Convidaria Kate para assistir um filme, se a

amiga não tivesse outros planos.

Afastou os maus pensamentos quando

fechou os olhos, logo pegou no sono. Não ouviu o

celular tocando.

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