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Demônios Fora da Escuridão
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Introdução
O que permite a existência do mal?
O que vem das profundezas mais obscuras de
nossa alma, ou o meio que nos influencia, corrompendo
o que há de puro e limpo em nossa existência?
Uma reflexão seria válida, mas quem pode
garantir que mesmo a sua capacidade de pensar vai
resistir á própria mente ?
No que você pode confiar ?
A vida então é só um jogo, com os desejos e
ambições abrindo o caminho? Ou tudo faz parte de um
destino já determinado?
Ainda há muito para ser descoberto, mas você
arriscaria uma busca mais profunda, quando sua
própria vida pode estar em jogo?
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“Na sua presença,minhas lembranças me engolem
De momento a momento
Você me joga de volta pra cá
Um novo dia, as mesmas trilhas, velhos medos
Sou a ferramenta dos meus demônios
Eles se escondem nas profundezas da minha alma,
Na escuridão.”
Caliban, Forsaken Horizon
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Parte 1:
Esboços do Paraíso
Um mundo fora da minha mente
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Capítulo Um
“— The Eyeball. É assim que ele passou a ser
chamado. Um homem normal, exatamente como eu e
você. — O garoto recuou um passo, mas ainda
mantinha os olhos fixos no expectador.—Certo, vamos
chamá-lo pelo nome politicamente correto, Charles
Abright.
Charles foi adotado por Delle e Fred
Albright.Passou a ter a vida que toda criança do
orfanato desejava.Família e proteção?Não foi o
suficiente.
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Aos treze anos, cometeu seu primeiro
crime, um assalto á mão armada. Não teve a sorte dos
iniciantes, e foi pego pela polícia.A consequêcia de seu
novo crime, dessa vez apenas um furto, foi a expulsão
da escola onde estudava.Mas ele já não precisava dessas
futilidades.Aprendeu a falsificar documentos, forjar
assinaturas.Tudo que fazia, fazia bem feito.Conseguiu
seus próprios diplomas de bacharelado, sem nunca ter
cursado uma faculdade.
Incrível história para um adolescente, não é?
— Sentou-se em algo parecido com um leito
cirúrgico.Estava obviamente em um quarto doméstico,
porém adaptado para o que ele faria.Deu um sorriso.—
Mas espere.Ainda não lhe contei a melhor parte de
nossa historinha.Charles casou-se com uma namorada
de colégio.Uma linda filha selou a união dos
dois.Emocionante, não acha? —Ele riu.— Não
conseguia segurar nenhum emprego, todos lhe
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pareciam entediantes demais.O que acha que
aconteceu? Assim como toda história de amor real, o
romance acabou, o dinheiro acabou, a paciência da
garota de Charles também.Ela abandonou-o. Quem sabe
tenha sido isso que desencadeou os fatos que se
seguiram?Bom, ele voltou ao que fazia de melhor, forjar
cheques e credenciais. — Pegou um alicate cirúrgico da
bancada de metal ao seu lado na cama, e brincava com
ele.
A Polícia o descobriu com milhares de
dólares roubados, e ele foi preso pela terceira vez,
libertos três meses depois.Resolveu mudar.Mudou de
bairro, mudou de vida.Conseguiu até mesmo um
emprego digno: Passou a cuidar das crianças dos
vizinhos quando eles iam trabalhar.Quer algo mais
nobre do que isso para um ex-presidiário?
Foi acusado de agredir as crianças.Seria
verdade? — Ele fez um ar demagogo.Tornou a sorrir. —
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Acha mesmo que nosso amigo seria capaz de machucar
criancinhas?Verdade ou não, o processo legal não deu
em nada. E Charles mudou-se daquela vizinhança.
Conheceu Dixie, uma garota como outra
qualquer, estúpida, patética e apaixonada.Dessa vez,
Charles não teve filhos, mas o relacionamento terminou
também, quando a pequena Dixie se viu
sobrecarregada, sustentando sozinha a casa e o
marido.Foi exatamente nessa época que ele matou Mary
Lou Pratt, em dezembro de 1990.
Aos trinta e três anos, Mary vivia nas
ruas, e teve o infortúnio de conhecer Eyeball, numa
noite de trabalho qualquer...Seu corpo foi encontrado no
quarto de hotel, usando apenas uma camiseta.Tinha
sido baleada na nuca com uma calibre. 44.O mais
intrigante para a Polícia vem agora. — Ele fez uma
pausa dramática.A câmera deu um zoom em seu rosto.
— Seus olhos tinham sido arrancados.Mas não pensem
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que Charles deixou uma poça de sangue nojento pelo
tapete, ou buracos mal feitos no rosto dela.Eles foram
removidos cirurgicamente, de forma precisa, incisiva.Os
globos nunca forma encontrados.
Foi o destino de Mary, Billy? — Ele
perguntou, largando o alicate na bancada.Estendeu as
pernas na cama.—Eu chamo isso de azar...
Poucos meses depois, Susan Petterson foi
encontrada quase exatamente do mesmo jeito que Mary
Lou.As semelhanças com a outra defunta eram
muitas.Ambas partilhavam da mesma profissão,
vestiam uma camiseta de algodão, e estiveram com
Charles Albright na noite do crime.Vale lembrar que os
olhos de nossa querida Susan também foram
removidos.
Em 18 de março, nas mesmas circunstâncias
que as mulheres que eu já mencionei, a terceira e última
vítima foi encontrada sem os olhos.Shirley
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Willians.Apenas uma coisa a diferencia dos outros
casos.Ela teve uma deformidade no rosto, um nariz
quebrado.Penso que ela tentou resistir, que tentou lutar
pela sua miserável vida, acrescentando somente mais
dor á sua morte.
Será que Eyeball era apenas um cara
entediado, uma pessoa fria e ruim, uma vítima da
sociedade, ou sofria de um distúrbio mental?
Para concluir nossa história, Charles foi
condenado á prisão perpétua por um júri revoltado,
sedento de justiça.As provas apresentadas foram apenas
circunstanciais, sendo que a única evidência sólida foi
um fio de cabelo encontrado na cena do crime no caso
Willians.
Enquanto conversamos, Eyeball está em um
presídio em Dallas, somente aguardando sua morte.
Certo, agora que já sabe tudo sobre nosso
mestre inspirador, vamos ao que interessa.— Havia um
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espelho pendurado em uma das paredes brancas.Ele
tinha uma pinça cirúrgica nas mãos.
—Precisamos aprender a lidar com a dor.Ela não nos
domina.Nós é que a dominamos.”
Com a prática de um cirurgião, o garoto
removeu o próprio olho com a Foerster, sem emitir um
único gemido de dor.A tela do monitor escureceu.”
Joshua recostou-se na cadeira.Sem dúvida
alguma, aquele era um dos melhores vídeos do ano.Se
não o melhor...Autêntico, original.Com o mouse do
computador, seguiu até a página de recados do
remetente, Martin Bundy.
“Seu vídeo será postado, Bundy.Valeu
pela participação, e por lembrar-se de Eyeball.Há muito
tempo que eu mesmo não ouvia falar dele...”
Ele ia postar o recado, quando o
computador de repente desligou.Deu um soco no
monitor.
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— Droga!—Ele exclamou.
Levantou-se, tentando ignorar a dor de
cabeça. Ela sempre vinha se ele ficasse nervoso, ou
levemente irritado.Começava sorrateira, para se
transformar num turbilhão, só seria amenizada se ele
fosse dormir.
Acendeu a luz da cozinha, ponderando
se aquela não seria uma boa hora para tentar o café da
manhã nutritivo, que sempre ficava para depois.Ficaria
para outra vez de novo.Já se encontrava irritado o
suficiente para travar uma batalha com a
frigideira. Pegou o leite e a caixa de cereais.
Voltou para a sala, dando uma rápida
olhada no relógio digital do rádio.Meio dia e
quinze.Café da manhã.
Não haveria outra saída.Teria que
chamar um técnico.Já fazia três dias que o computador
desligava sozinho, e tão repentino quanto tinha
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desligado, era acionado por conta própria.Um trabalho
importante precisava ser entregue naquela semana, e ele
já estava atrasado.
A hipótese de ter sido atingido por um
vírus na rede era inviável,então não havia nada que ele
próprio pudesse fazer.Joshua orgulhava-se de pensar
que nem mesmo a CIA seria capaz de hakear seus
arquivos. Sim, devia se tratar de um problema técnico.
Amaldiçoou novamente o computador,
tendo que recorrer á lista telefônica.Não demorou muito
até que achasse uma agência, foi-lhe indicado alguém
especializado.Joshua afirmou ser um caso urgente, mas
duvidava de que cumprissem a promessa de virem
aquela tarde.
Duas horas depois, o técnico chegou.Receber
alguém no apartamento chegava a ser estranho.A única
pessoa que entrava ali além de Joshua era a diarista.Da
mesma forma, era raro que ele deixasse o apartamento.
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—Bom dia.—Disse o homem alto e grisalho, no seu
clássico uniforme e boné azul da companhia.
Joshua indicou o computador e puxou uma
cadeira para vê-lo trabalhar com precisão, depois de ter
explicado o problema.Ao fim de duas horas, estava
terminado.O homem abriu um dos documentos salvos
no computador para testar seu trabalho.Joshua
adiantou-se.
—Isso não é necessário.
—Seria bom dar uma conferida.— Ele disse, surpreso
pela intervenção.
—Sério mesmo, não precisa. —Pegou a carteira da
gaveta da escrivaninha, e deu a gorjeta.O homem ainda
parecia surpreso.—Muito obrigado.
Depois que ele saiu, Joshua testou o que
tinha sido feito.Pelo jeito, um bom trabalho, mas só
poderia ter certeza se o computador não resolvesse
desligar daqui há algumas horas.Só esperava que a
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agência não lhe cobrasse uma fortuna.Espiou a conta
que tinha sido deixada sobre a escrivaninha.Até que era
uma quantia razoável. Finalmente poderia voltar ao
trabalho.
Há cinco anos, ele tinha começado a
trabalhar para alguns amigos no planejamento de
sites.Naquele tempo, a Internet era só uma
criança.Acabou por tornar-se popular entre donos de
micros e pequenas empresas, que anunciavam seus
produtos nessa rede tão ampla.O mundo passou a ver a
Internet como um novo veículo para a informação.
Tinha acabado de formar-se na escola
técnica, um curso razoavelmente caro pro seu bolso na
época.
Depois começaram as atividades ilegais.Não
que ele alguma vez tivesse roubado realmente. Deixava
que os outros fizessem isso por ele. Hackeava
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arquivos para o cliente que solicitasse seus serviços, e
deixava que fizessem o resto. Já fabricava seus próprios
vírus, e também seu próprio anti vírus, que o tornara
impenetrável.Certa vez, roubara as fórmulas secretas de
uma empresa de bioquímicos para um cliente auto
intitulado “Desastre”. Este se tornara fabulosamente
rico meses depois.
Há dois anos surgira o Death of Patience.
Ele não saberia dizer exatamente de onde
viera a idéia em si.Era verdade que ele sempre tinha
sido um grande fã de serial killers.As paredes de seu
quarto estavam cobertas de pôsteres e desenhos.Seu
preferido era a fotografia de um assassino de sua
cidade, autografada pelo próprio condenado, meses
antes de sua execução.
O site tinha começado como uma brincadeira
entre amigos em um outro site de
relacionamentos.Postara um vídeo diferente,
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violento.Recebera comentários
aprovadores.Obviamente, se tratava de uma montagem,
o garoto se auto mutilando e depois cometendo suicídio
com uma serra elétrica.Apesar de parecer absurdo, e
fisicamente incorreto, Joshua espalhou para os amigos
que se tratava de cenas reais.
“Genial, perfeito”, respondera um de seus
amigos, Filth Darkness.”Também tenho um dos bons.
Dê uma olhada.”
O vídeo que Filth Darkness postara parecia
ser real.Alguém flagrara com uma câmera o momento
em que um assaltante baleava a vítima em um posto de
gasolina.A câmera tinha como foco principal a
vítima.Os vídeos continuaram a ser postados, um
trocando o mais interessante que achava com o
outro.Terminaram por ser denunciados por abuso, os
vídeos proibidos, e suas contas no site excluídas.
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Então, Joshua teve que inventar o próprio site
de relacionamentos, um site secreto.Se estava sendo
acusado de incitar a violência, o faria só entre
amigos.Mas o Death of Patience acabou tomando
proporções grandes, e a quantidade de membros
aumentava a cada dia.Para manter a segurança, Joshua
estabeleceu uma regra.Só se tornava membro quem
tivesse um convite.Dessa forma, apenas pessoas que
conheciam alguém de dentro do site poderiam entrar.
Ele odiava ter que fazer tudo as escondidas, só
porque sua idéia não era aceita.A humanidade é
hipócrita.É cientificamente provado que todo ser
humano gosta de ver a desgraça alheia.Assumidamente
ou não, todos são sádicos.E Joshua não incentivava a
violência, simplesmente a atraia até ele. Ela estava em
todo lugar.Tudo que ele fazia era encontrar nela uma
forma de entretenimento para pessoas de gosto pouco
convencional.
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Ele via-se no direito de revoltar-se contra a
sociedade. Durante toda a vida, tinha sentido a
influência contrária dela.Sentia-se descriminado o
tempo todo, e cada vez mais procurava ser
diferente.Talvez na simples tentativa de não ser um
hipócrita.
Na adolescência, esses sentimentos tinham
sido mais pronunciados. Costumava desaparecer
madrugadas inteiras, mas desconfiava de que sua mãe
nunca sentira sua falta. Deixou de fazer a barba, e o
cabelo liso e escuro cresceu até os ombros.Seu guarda
roupa limitou-se á cor preta por muitos anos.Mas que
adolescente nunca tinha passado por uma fase como
aquela? Decidiu que isso não o fazia diferente dos
outros.O que o diferenciaria dos bilhões de pessoas no
mundo seria única e simplesmente sua maneira de
pensar.Então, ele desistiu do preto.
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O pai abandonara a família quando Joshua
tinha dez anos.Três anos mais tarde quem desapareceu
também foi o irmão mais velho.A mãe passou quatro
semanas no hospital.O laudo foi overdose de
cocaína.Ela voltou para a casa, largou as drogas ilícitas e
passou a tomar antidepressivos.
Joshua nunca fez caso de nada disso.
Refletindo agora, se arrependia um pouco.Tinha
passado muito tempo centrado em si mesmo.Sentia falta
de sua mãe.
Aos dezoito anos, completou o colegial e
deixou San Francisco para a cidade vizinha.Nunca teve
a intenção de voltar.Repensando tudo, quem sabe a
vida tinha melhorado.
Já passava das sete da manhã, e Joshua
terminou o trabalho.Desligou o computador e foi
dormir.Mais um dia tinha terminado.
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Foi a insistente campainha que o despertou.
Lançou um olhar óbvio para o relógio de cabeceira,
resmungando qualquer obscenidade.Uma da tarde.Não
fazia a menor idéia de quem poderia ser.Teria feito
alguma encomenda? Era possível, ele sempre se
esquecia das encomendas que fazia.Calçou o tênis sem
amarrar os cadarços.
—Olá! —A moça sorridente disse.Tinha o cabelo curto e
loiro.Na baby look que vestia estava estampado um
gato com jeito de preguiçoso.Ela estendeu a mão para
Joshua. —Eu sou sua nova vizinha, Heather Spencer.
—Joshua Dunne.
—Sabe o que é, Sr. Dunne...? —Ela parecia
constrangida, apesar de continuar sorrindo. —Eu tenho
uma tonelada de caixas lá embaixo, no carro.Não
conheço uma única alma nessa cidade, e pelo visto, falta
um porteiro nesse prédio... —Ela riu. —Será que
poderia...?
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Ela não terminou a frase, e Joshua
obrigou-se a ser simpático.
—Certo, eu te ajudo.
—Ah! Não sabe o quanto lhe sou grata!
Ele adiantou-se para chamar o elevador.
—É novo aqui?
—Não.
—Já mora aqui há muito tempo?
—Moro.
—Acha que é um bom lugar?A região, os vizinhos?
—Acho.
—Eu vim do interior. —Ela deu uma risadinha.— Não
sou muito acostumada com cidades grandes.
Chegaram ao estacionamento.Ela o conduziu
até um Saveiro verde, e, exatamente como ela tinha dito,
estava lotado de malas.
Joshua mantinha os olhos semi abertos por
causa do sol.Heather apontou as malas e caixas.
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—São apenas essas.
Ele pegou três caixas de uma vez.Ela seguiu-o,
ajudando com o resto da bagagem.
—Está pesado?
Ele perguntou-se se ela estava ironizando.
—Não.
—E olha que eu tive que me desfazer de metade das
minhas coisas! —Disse, rindo. —Nós, mulheres, somos
assim mesmo.Precisamos de uma porção de
acessórios...É casado, Joshua?
—Não.
Eles entraram no elevador, ela descansou as
malas no chão.
—Ás vezes sinto como se tivesse cinqüenta anos!—Ela
arqueou, cansada.—!Não se sente assim ás vezes?
—Sinto.—Ele nunca tinha pensado nisso, e não estava
certo se já tinha se sentido assim.
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A porta do apartamento de Heather
emperrou, e ela deu um chute para abri-la.Empilhou as
malas em um canto.
—Você foi muito legal, Joshua.Quer beber alguma
coisa?
—Não, obrigado.
Ele já ia saindo, mas ela o deteve.
—Eu não tenho nada aqui, agora, mas eu posso buscá-lo
mais tarde para um café?Como agradecimento?
—Sério, isso não é necessário mesmo.
—Mas será apenas um café!
Ele hesitou, contrafeito.
—Está certo.
—Então, até mais tarde.
Não conseguiria voltar a dormir.Ligou o
computador para verificar se algum novo vídeo teria
sido postado.
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Esperou o computador ligar, enquanto
colocou água para ferver.
Nenhum vídeo recém postado.Página de
recados.
“Data: 02/12/2008, 11:45hs.
Remetente: Moonface.
Recado: E aí, Billy?Beleza?Estou passando
pra fazer um pergunta.Eu posso postar o vídeo de um
amigo? Sabe como é, não é meu, nem dele...É o
assassinato de três policiais ali na avenida 31.Você deve
ter ouvido falar.Ele filmou tudo com a câmera de um
celular, mas ficou super dez! Tenho certeza de que você
vai gostar.”
Joshua respondeu que ele poderia, sim,
postar o vídeo roubado.Passou para o recado seguinte.
“Data: 03/12/2008, 00:03 hs.
Remetente:Dark Kisses.
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Recado: Tenho uma música do Lacuna
Coil que eu gostaria de postar aqui.Como eu faço?”
“Responder: Não faço idéia. Aqui
postamos vídeos, não somos rádio on line.Abraços.”
“Data: 03/12/2008, 3:52hs.
Remetente:Joey.
Recado:Está chegando em você.”
Joshua releu a mensagem
atentamente.Não se se lembrava desse membro.Clicou
no link que o levaria á página pessoal do tal de Joey.O
perfil havia sido deletado.Não existia mais.Alguém
tinha dado o convite, então ele teve vinte e quatro horas
para navegar pelo site, até que Joshua aprovasse ou
recusasse a sua estadia.Só então ele poderia ser
definitivamente aceito.Joey tinha tido tempo suficiente
de postar seu recado e simplesmente ir embora.Talvez
fosse hora de Joshua aumentar a segurança do Death of
Patience, torná-lo ainda mais reservado.Já estava
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tornando-se propenso á falhas, devido á grande
quantidade de pessoas que adquiriram a idéia.
O cheiro de gás que se espalhou pelo
apartamento lembrou Joshua que o bule de café tinha
sido deixado no fogão.
Heather chegou ás seis da tarde em
ponto.Ele deu um pulo de susto com a
campainha.Estava tendo uma semana péssima.Esperava
que terminasse logo.
—Oi. —Ela disse, com um ar inocente.Ele percebeu que
a noite só ia começar. —Vim cobrar de você o meu
agradecimento,com atraso de vinte e quatro horas!
—Deixe-me desligar o computador.
—O que você faz nessa sala escura? —Ela perguntou,
espiando lá dentro.
—Estava trabalhando. —Ele trancou a porta atrás de si.
Ela fez um gesto para que ele entrasse no
apartamento dela.
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— Desculpa a bagunça.Ainda não tive tempo de
arrumar tudo.
Isso ele já tinha notado.Foi invadido por
uma espécie de deja vu completamente sem
sentido.Provavelmente ele tinha tido um sonho
parecido com aquela situação, ou alguma coisa assim.
— Sinto muito por não te oferecer nada melhor. —Ela
colocou um pacote de biscoitos e uma garrafa térmica
de café sobre a antiquada mesa redonda. —Então,
Joshua, o que faz?
— Desing gráfico.
— Ah é?O que é isso, exatamente?
Ele hesitou.
— Monto sites para empresas.
— Trabalha em casa?
— Sim.
— Posso por açúcar? — Ele assentiu. Ela despejou uma
quantia mínima de açúcar na xícara.Ele teve vontade de
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colocar suas habituais colheradas cheias, mas conteve-
se.—Que tipo de empresas?
—Várias empresas.
—Você não é um daqueles viciados em computador,
é?Um nerd ?
—Isso depende do ponto de vista.
—Eu gostaria de entender os computadores.Tudo que
sei é ligá-los e acessar a internet.— Ela riu.
—É só uma questão de prática. —Ele levantou-se. —
Obrigado pelo café.
Ela pareceu ficar decepcionada com sua
rápida partida.
—Foi um prazer.
Capítulo Dois
— Ei Billy! Boa noite. — Jovial,o adolescentes de olhos e
cabelo muito escuros começou.Seu inglês tinha um
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carregado sotaque latino. — Quero te apresentar uma
pessoa.
A câmera deixou de focalizá-lo para
mostrar uma garota amarrada numa
cadeira.Amordaçada, ela emitia sons abafados,
sacudindo-se freneticamente.
— Essa é Beverly, minha garota. —Ele abraçou-a sobre
as cordas. —Você deve ter percebido que Bev não gosta
da idéia de ter que participar do meu vídeo...Será um
pequeno sacrifício.Vamos lá, querida, diga olá.Nós já
vamos começar.
O garoto se aproximou de um balcão de
madeira no canto da sala escura.Sensacionalizou para
escolher entre um facão e um machado, com um sorriso
estranho.Escolheu o facão.
— Está pronta? —A câmera desviou-se no momento em
que a faca atingia a garota no abdome.Tornou a
focalizá-la, ainda mais desesperada que a princípio.Sua
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roupa tinha ficado encharcada de sangue. —
Vagabunda! Vai pagar por ter feito isso comigo! — Ele
gritou, tornando a esfaqueá-la.
Joshua balançou a cabeça em
desaprovação.
— Bons atores...
Não terminou de ver o vídeo, deletou-
o.Voltou á página de recados.
“Data- 03/12/2008, 23:51hs.
Remetente:Liu Kung.
Recado: Adorei o vídeo ‘The Third
Hand’.Quem é esse tal Bear? muito criativo.Gostaria de
levá-lo pra jantar.Não me importo que ele já não tenha
uma das mãos...”
Responder: Eu gostaria de bancar o
cupido dessa união, mas temo que ele já tenha tido uma
hemorragia. Até mais...’
“Data: 04/12/2008, 00:02hs.
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Remetente: Buffalo Bill
Recado: Quero postar o vídeo de uma
ex namorada minha. Ela suicidou. Ela gravou tudo
justamente para que nós postássemos aqui. Sim, uma
verdadeira freak. Que dica você me dá? E depois, como
eu faço o upload do vídeo? “
Ele começou a explicar o procedimento,
quando uma nova mensagem apareceu no canta da
tela.Era de Filth Darkness.
“Preciso encontrar-me com você, Billy. É
um assunto sério, e não é seguro conversarmos por
mensagens instantâneas.Me dê seu telefone”
Filth Darkness. Seu antigo amigo, um
dos primeiros membros do Death of Patience. O recado
de Joey veio á sua mente, mas ele afastou o pensamento,
temendo acabar ficando paranóico. Provavelmente, uma
coisa estranha não tinha a ver com a outra. Ele ainda
deveria estar on line.
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“Se o assunto é sério, me adiante um
pouco. Não posso dar meu telefone. “
Seu recado foi respondido
imediatamente.
“Já disse que não é seguro. Vamos nos
encontrar em algum lugar público..’
O que seria tão perigoso? Estaria se
arriscando se fosse.E se alguém tivesse hackeado Filth
Darkness, e o remetente do recado se tratasse de um
impostor? Praguejou mentalmente.Não gostava de
mistérios.
“Onde você mora?”
“ Não longe de você.”
Por Joshua ter demorado um pouco
para responder o recado, Filth Darkness destinou a
próxima mensagem.
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“Encontre-me hoje á tarde, ás três
horas, na avenida 43.Em frente a Lethal´s, a loja de
roupas.’
Encontrá-lo em um lugar público. Era
uma situação intrigante.
Abrindo caminho entre a multidão, Mabel
caminhava em seus habituais passos apressados. Em
primeiro lugar, odiava multidões. E a garoa fina era
insistente e irritante. Ela tinha a impressão de que não
terminaria nunca.
Reconheceu Billy imediatamente, mesmo
sem nunca tê-lo visto antes. Ele estava completamente
vestido de preto, os braços cruzados, protegido da
chuva sob o toldo amarelo da loja.
Ele correspondia exatamente ao que
Mabel imaginara, exceto pela ansiedade na sua
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expressão.Ou talvez o que ele demonstrava fosse
impaciência.
— Billy? — Ela disse, mais afirmando do que
perguntando. Achou divertida sua surpresa.
— Você é Filth Darkness? — Ele teve que perguntar.
— Mabel. — Apontou um pequeno bistrô do outro lado
da rua. — Vamos conversar ali.
Joshua seguiu-a, sentindo-se meio
embaraçado.Notou que a chuva tinha apertado.
Ela escolheu a mesa mais isolada do
restaurante.
— Quem é você? — Ela perguntou, como se ele tivesse
aparecido na sua frente de repente.
— Joshua Dunne.
— Joshua? — Ela deu um meio sorriso, sentindo a
palavra.Talvez se sentisse importante por saber o nome
verdadeiro de Billy. — Eu já lhe disse que meu nome é
Mabel, certo?Acho que você esperava por um garoto.
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—Esperava. — Ele foi sincero.
—Não sou um homem.— Ela fez sinal para que o
garçom viesse.Recusou o cardápio. — Duas mini-
bengalas de presunto e duas xícaras de café com
açúcar.— Ela retomou a conversa. — Você deve ter
percebido.
— Eu quero apenas café.— Ele corrigiu-a para o
garçom.— Com açúcar.
O fato de ela ser uma garota tornava, por
algum motivo, tudo mais assustador. Mais estranho.
— Recebi um recado igual ao seu.— Ela alegou.Ele não
soube o que dizer. — ”Está chegando em você”.
— E o que acha disso?
Ela deixou os olhos negros fixos nele por
alguns instantes, como se estivesse especulando.
— Eu não sei.— Deu de ombros.
—Acho que se trata de alguém que não gostou dos
vídeos.—Ele refletiu, sentindo-se entediado
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subitamente. — Talvez estejamos fazendo muito caso
disso.
— Muito caso disso?Acho que devíamos tomar as
providências o mais rápido possível.
— Afinal, o que poderia ser?
— Eu pensei em várias coisas.
Ele deu um sorriso irônico.
— Me dê um exemplo.
O garçom chegou e deixou as xícaras sobre a
mesa.Ela começou a comer e não voltou a olhar para
ele.Deu um meio sorriso sem graça.
— Não tenho nenhuma teoria completamente formada.
Joshua tomou todo café num gole só.
— Sabe o que eu acho? — Ele abandonou o que estivera
pensando o tempo todo.A garota á sua frente não lhe
parecia mais uma assassina em potencial, a remetente
de uma mensagem ameaçadora.Agora sentia-se um
idiota por ter considerado essa hipótese. —Sabe o que
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eu acho, Filth Darkness?Acho que você armou tudo isso
só pra me conhecer
— Está sendo um pouco egocêntrico, não está? Quem
você acha que é? O Zorro? Não sou sua fã, Billy.Posso
ser fã do Death of Patience, mas não sua.Não espere por
groupies.
Ele levantou-se, irritado.
— Acho que você é louca!
Já estava saindo quando ela disse:
—Vai em frente, ignore.Mas não se esqueça de que
fomos avisados.
Ele voltou-se para ela.
— Que diabos! Eu não vou me apavorar com isso, se é o
que deseja. —Ele esbravejou, formulando uma nova
hipótese mentalmente.Acabou chamando a atenção dos
outros clientes do bistrô. —E não me perturbe mais, ou
serei obrigado a excluir você do site.
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Mabel já tinha uma boa resposta, mas não deu
tempo de responder.Ele tinha ido embora.Levantou-se,
considerando a perda de tempo que tinha sido vir
procurar Billy.Sem esperar que o garçom trouxesse a
conta, ela foi até o balcão e pagou ali mesmo.
Billy era um completo idiota.Mas pelo menos a
chuva tinha passado.
Tudo saíra errado.Tinha recebido o recado, e
pensara estar imaginando coisas.Mas a sensação de
estar sendo perseguida foi-se tornando cada vez mais
evidente, até que ela não podia mais negar que era
real.Na noite de domingo, ela vira o vulto de um
homem esconder-se atrás de uma árvore.
Até o momento, não tinha contado nada a
ninguém.Sabia o que os outros diriam.E ela não estava
nada disposta a ouvi-los.Amaldiçoou Billy por não
escutá-la.Ele que se desse mal.Ela sabia muito bem se
virar sozinha.
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Subiu as escadas direto para o quarto.Trancou a
porta, certificando-se que tirara a chave da fechadura e
jogado na bolsa.Ouviu Charles gritar da sala.
— Mabel chegou!
Ligou o computador, impaciente até que fosse
completamente iniciado.
Como ela suspeitava, não demorou muito até
que batessem á porta.
— O jantar está pronto. — Era a voz de Pebble.
— São quatro horas da tarde! — Ela gritou de volta, mas
não obteve resposta.”Maluca...” Pensou consigo mesma.
Pebble era a madrasta de Mabel.Sua mãe
verdadeira morrera quando ela ainda era um
bebê.Criada pelo pai, ela foi notando com o passar do
tempo que ele nada entendia sobre crianças, para mais
tarde descobrir que ele nada entendia sobre
adolescentes.Quando ela terminou o colegial, há pouco
tempo atrás, ela entendeu que, de fato, ele nada
42
entendia sobre mulheres.Finalmente, chegou á
conclusão de que ele não entendia Mabel.
Admitia nunca ter sido uma aluna ou filha
exemplar, e sentia certo orgulho nisso.Ele também
nunca se esforçara para ao menos parecer o pai
perfeito.Repensando tudo, era possível que eles nunca
tivessem tido uma conversa inteira.
Então ele conhecera Pebble.A loira adorável,
bonita e muito simpática, disposta a assumir o
compromisso de cuidar da filha bastarda de seu
amado.Mabel soubera odiá-la desde o início, e fizera
todo o possível para sabotar a nova amante do pai.Todo
seu esforço tinha sido em vão.Pouco tempo depois, eles
tiveram um filho juntos.Mabel fora excluída da nova
família do pai.
Tornou a ler a mensagem na página de
recados de Filth Darkness.Levantou-se da cadeira
bruscamente, quase a derrubando.
43
— Maldito psicopata!
Já era noite quando ela saiu do quarto.Não
tinha intenção de jantar em casa.Procuraria uma
lanchonete.
— Olá minha garota! —Tony saudou quando Mabel
abriu a porta da frente, dando de encontro com ele. —
Atração ácida.Onde estava indo?
— Eu queria conversar com você.
Ele assentiu, preocupado.Ela o puxou
delicadamente pela mão para que entrasse.
— O que aconteceu? — Ele sentou-se na cama e ela fez o
mesmo.
— É um assunto delicado.Eu... — Devia contar a ele?
Respirou fundo.Tony entenderia.
Ela o conhecera ainda na escola.Ele vinha
tentando conquistá-la há algum tempo, mas Mabel
jamais tinha se interessado por ele.Acabou envolvendo-
se, na época, com Marc,um motoqueiro de jaqueta de
44
couro,dez anos mais velho.O relacionamento acabou
depois de a melhor amiga ter visto Marc beijar uma
colega em comum, em plena luz do dia. Um alívio para
o pai e a madrasta.
Foi exatamente nessa época, depois de uma
duradoura crise, que ela aprendeu a cortar-se com gilete
para acalmar-se, e aliviar a dor no coração.
Há cerca de um ano atrás, Mabel reencontrou
Tony acidentalmente em um shopping da cidade.Ela
notou que algo de estranho e muito diferente do
colegial estava acontecendo entre eles.Tony tinha
crescido.Não só na aparência, como na maneira de
falar.Seus assuntos não eram mais vídeo games e
figurinhas.Quase não se lembrava mais do garoto de
sorriso aberto, óculos grossos e o cabelo muito
escovado.
45
Agora, ele parado á sua frente, seu
semblante sempre calmo e receptivo, ela não sabia se
deveria confiar nele.
— Acho que estou sendo perseguida.
— Como assim? — Ele soou incrédulo, e ela
arrependeu-se imediatamente de ter começado aquela
conversa.
— Por diversas vezes, quando estou na rua, me sinto
vigiada.Eu vi alguém se esconder de mim. — Ela viu
sua expressão de preocupação transformar-se em
desconfiança. Parecia até mesmo irritado.
— Aposto que é impressão sua.Quem haveria de
perseguí-la?
Como todos os outros, ele achava que ela era
louca.O que eles poderiam entender sobre loucura?
Pensavam isso desde que o pai a levara para ver o
médico.Tinha sido somente a primeira de intermináveis
vezes que ela tivera que ir naquele consultório
46
estressante, só para ouvir alguém dizer que ela era
maluca.Tinha-lhe sido receitados comprimidos para
tomar antes de dormir, mas ela sequer chegara a colocar
um deles na boca.
— É verdade que a violência está terrível —Tony
continuou, e ela sentiu mais uma vez que ele olhava
através dela.— Mas não acho que nesse caso seja real.
— Claro, estou delirando... — Ela murmurou. — Você
não entende.
— O que eu não entendo?
Ele tinha assumido aquela condescência que
Mabel odiava. Poderia matá-lo naquele momento.Não
tentou esconder sua raiva.
— Você não entende droga nenhuma! — Ela tinha sido
louca de pensar em contar sobre o Death of Patience
para ele. — Sou uma completa idiota de confiar em
você!
47
Ela ia deixá-lo sozinho no quarto, e desaparecer
em qualquer lugar.
— Por favor, Mabel, eu não queria...
Mudou de idéia, e gritou para ele:
— Saia daqui! — Pebble se aproximava, com aquele
jeito preocupado que Mabel odiava. — Desapareça,
Tony!
— Sinto muito, Mabel.Deixe ...
— Dê o fora, eu já falei!
Ele suspirou.
— Está certo, então.Me ligue quando estiver mais
calma.
— Vai se danar...— Ela gritou, depois que ele desceu as
escadas.
— O que ele te fez? — Pebble perguntou, obviamente
penalizada.Por Tony, ela refletiu. Jamais sentiria pena
de Mabel.
48
Bateu a porta do quarto, sem responder.Deixou-
se cair sentada no chão, chorando.Como se ela se
importasse! Ninguém daria a mínima importância se
soubessem que um assassino queria matá-la.Apagou as
luzes do quarto, queria ficar submersa na
escuridão.Afundar-se nela para sempre.Tentou
imaginar a cena do assassino acabando com ela.
Começou a rir.O pai e Pebble observando, horrorizados,
o espetáculo.Tony seria o próximo a ser morto
Falaria a respeito com o psiquiatra no dia
seguinte.Detestável dia de consulta.
Capítulo Três
Joshua deparou-se novamente com Heather no
corredor do prédio, quando ambos iam tirar o lixo pela
manhã.
— Bom dia, Jos.
Ele surpreendeu-se com a repentina intimidade.
49
— Bom dia.
—Eu sei que tenho me aproveitado um pouco demais
de você. — Ela desculpou-se, jogando uma mecha de
cabelo para trás, numa espécie de cacoete. — Mas juro
que vai ser a última coisa que vou pedir. — Ele assentiu.
— Você disse que trabalha com computador, e acho que
tenho um problema com meu PC.
— Eu não sou técnico. — A resposta soou mais ríspida
do que ele pretendera. Completou. — Mas eu posso dar
uma olhada pra você.
Adiantou-se para entrar no apartamento
dela.
— Não precisa ser agora. — Deu uma olhada no relógio
de ouro que trazia no pulso. —O que acha de sairmos
para almoçar?
Joshua ia negar, dizer que tinha muitas
coisas para fazer.
—Vamos.
50
Ela sorriu.Levou-o a um restaurante
próximo ao prédio.
— Então... — Ela começou, quando eles sentaram-se á
mesa.O restaurante era especializado em comida
italiana, a preferida de Joshua. — Já conseguiu descobrir
as senhas de algum banco suíço?
Ele demorou um segundo até perceber que
ela estava brincando.
— Não é esse o meu negócio.
— Eu sei.— Ela riu.
Heather ficou em silêncio.Ele sentiu-se
desconfortável. Precisava de algo para falar.
— E o que você faz?
Ela pareceu surpresa e satisfeita com a
pergunta.
— Escrevo. Já dá pra sobreviver com o que ganho...
— O que escreve?
51
— Romances. Adoro escrever histórias, imaginar, criar,
desde que eu era garotinha.É como inventar um mundo
só seu.Mas depois você o compartilha com o mundo.
— Isso é muito legal.
Novamente o silêncio.Dessa vez, foi ela quem
falou:
— Não gosto muito dessa cidade.
— O calor é insuportável no verão.
— Deve ser mesmo.Você nasceu aqui?
— San Francisco.
— Sua família mora lá?
— Mora.
— Por que veio para cá?
— Eu precisava dar o fora.
— A vida começava a ficar difícil para um jovem
estudante?
— Muito. — Ele sorriu com a tentativa de adivinhar o
que teria acontecido.Uma contadora de histórias, ela
52
dissera.Uma romântica.Acabaria por se decepcionar
com ele. Não compartilhavam o mesmo mundo.
— Morava sozinho?
— Com minha mãe. — Ele começava a sentir-se
desconfortável de novo. Já tinha falado demais. —
Como é o tempo em Dakota?
— Frio. Mas sinto falta de toda aquela neve! — Ela
prosseguiu, encorajada pelo silêncio dele. — Meu pai
me disse para eu vir pra cá divulgar o livro.Vou voltar
para Dakota, quando tudo der certo.Ou errado. Essa
lasanha está ótima.
Joshua procurou manter o nível de conversa
superficial até o fim do almoço.Na volta ao prédio, ela
levou-o até seu computador.
— Achei que a Internet não voltaria nunca mais.
Ele resolveu o problema em poucos
minutos.Estava para desligar o computador, mas o
histórico de sites na Internet chamou sua atenção.O
53
Death of Patience estava entre os sites acessados.
Decidiu ser discreto.
— O que costuma fazer na Internet?
— Conversar com amigos, pesquisar para o livro. — Ela
não demonstrou surpresa com a pergunta.—A única
coisa que sei fazer no computador é escrever e acessar a
Internet!
Ele não conseguiu mais se conter.
— Você não parece ser do tipo...Sangrenta.
Ela ficou confusa por um momento, mas logo
sua expressão se desanuviou.Deu uma risada.
— O Death of Parience? Muitas pessoas me vêem como
uma garotinha indefesa.Talvez eu não seja tão frágil
quanto pareço.
— Mas...Pelo que sei, é necessário um convite para
entrar no site.
— Você também é membro? — Ela deixou o pequeno
escritório e foi á sala de estar, sentando-se no sofá e
54
convidando-o para fazer o mesmo.A casa já estava
completamente arrumada, diferente do dia anterior.Ela
tinha tido um grande trabalho. —Preciso achá-lo para
adicionar aos meus amigos.Qual o seu nick?
—E onde você conseguiu o convite?
— Bom, pra ser sincera...Quem o conseguiu foi Tommy,
meu agente.
Um alarme soava no fundo da mente de
Joshua.A imagem de Mabel no bistrô, lhe dizendo que
tinha sido avisado.Não, seria idiotice ligar uma coisa á
outra.Sua nova vizinha não era uma assassina.Nada
mais do que uma simples coincidência.
— E não faço idéia de como ele conseguiu...— Ela
continuou. — É uma ótima inspiração para meu
livro.Estou contando a história de um serial killer.Eu
ainda não revelei a quem lê que se trata de um
assassino, é claro. — Ela sorriu. — Tenho outros sites de
referência.Quer dar uma olhada?
55
Ele observou meio distraído o que ela mostrava.
Não havia nada de novo ali para ele.
— O que acha de assistirmos um bom filme mais tarde?
— Ela perguntou. — Pelo jeito, partilharemos o mesmo
gosto para cinema.
Ela sorriu de novo, e ele concluiu que nunca
tinha visto um sorriso tão lindo.
Desde que recebera o recado de Joey, Mabel
sentia-se ameaçada em qualquer lugar.Estava em
grande agitação, reconhecia.Decidira-se não ir o médico
por um tempo.
Sabia que a crise passaria logo, e até então ela
esconderia dos outros. Aprendera a esconder quando
estava muito eufórica.De vez em quando, sumia de
casa. Quando o estado de agitação passava, ela sentia-se
deprimida. Já sabia de cor o que ia acontecer.O pai lhe
perguntaria se ela tinha tomado o remédio.Ela diria que
56
sim, e pensaria “Não estou doente”. Isso se resolveria
rapidamente com uma garrafa de vodca.
Novamente com o coração batendo forte,
Mabel pegou a bolsa e saiu, ignorando a madrasta
intrometida perguntando aonde ela ia.Acendeu um
cigarro com as mãos trêmulas, sem surtir muito
efeito.Ela tossiu, completamente desacostumada com a
fumaça.
Que droga, por que afinal estava tão nervosa?
Obviamente tinha a si mesma sob controle.A situação
estava sob controle.Entrou em uma loja e pediu um
canivete.
— Já está afiado?
— Afiamos gratuitamente, se necessário. — O
atendente disse. — Mas vai durar bastante.É uma das
melhores marcas.
57
— Não vai ser necessário afiá-lo novamente.Vou usá-lo
apenas uma vez. — Guardou o canivete na bolsa, com
um sorriso.
Esperava que o maldito psicopata não
demorasse a vir. Estava protegida agora, e seria bem
divertido. Diminuiu os passos, observando atentamente
cada transeunte, imaginando qual deles se pareceria
com seu assassino.
— A pizza chegou. — Joshua gritou para Heather.
— Estou indo...
Ele colocou a pizza na mesa de centro da
sala e começou a parti-la. Aproveitou que ela tinha ido
ao banheiro para espiar o que estivera fazendo no
computador.Um site de busca, procurando um
endereço em New Orleans. Provavelmente o
personagem de seu livro fosse de lá.
58
Heather entrou na sala de estar.
— Que bom que já chegou.Estava com fome.
— E o que me diz? Por que seu serial killer anda
matando inocentes?
Ela pegava copos na cozinha adjacente.
— Vamos dizer que Jon tem problemas.
— Jon? — Ele riu. — Conheço pelo menos meia dúzia
de assassinos chamados Jon.
— Fala sério. — Ela brincou, esboçando um sorriso
amarelo. —Vamos comer.
Ela sentou ao lado dele no sofá e pegou um
pedaço de pizza.
— Não gosta de clichês?— Perguntou.
Ela beijou o rosto dele, de repente.
— Odeio.
— Eu gosto...
59
Sabia que a pergunta que ele faria a seguir o
levaria a um caminho perigoso.Colocou catchup em seu
pedaço de pizza.
— O que acha dos vídeos do Death of Patience?
— Não acho que sejam de verdade.
— Por que não?
— Não quero acreditar que a humanidade seja capaz de
coisas assim.
— Com certeza sua expectativas estão erradas.Se visse
os jornais, saberia.
— Eu vejo os jornais, mas não acredito.
Ele riu.
— Não acredita? Não há nada para se
acreditar.Simplesmente são fatos.É disso que eu
gosto.Fatos.E você nada entende da natureza humana.
— Ah não diga isso, Jos! Sou escritora, lembra?
Escritora, metida á psicóloga.
60
— Psicóloga? Eles entendem menos ainda.Acham que
entendem. Gostam de dar conselhos.
Foi a vez dela rir.
— Pelo jeito, você não acredita em psicólogos.
— Médicos, psicólogos, terapeutas, palhaços. Não
acredito em nenhum deles.
— Se as pessoas são realmente tão ruins, por que
continuamos a nos envolver com elas?
Ele olhou ao redor, o pequeno apartamento,
de maneira significativa.
— Ás vezes, nos desligamos do mundo exterior,
tentamos fugir.Mas nos esquecemos de que também
somos humanos. — Ele deu um sorriso triste. —
Fugimos do mal, mas o mal está dentro da gente.—
Apontou para a própria cabeça. — Aqui.Muito mais
poderoso do que podemos imaginar.E nunca se sabe
quando vai ser liberto.
61
— É por isso que a maldade existe no homem? Puro
instinto? —Ela balançou a cabeça, em negativa.— Então
não somos culpados de nossas atrocidades, certo?
— Não somos.Uma vez que nascemos desse jeito.Nosso
cérebro está formado, exatamente do jeito que deve
ser.Ele pode sofrer mudanças com o tempo, ele sofre
mudanças com o tempo.Mas o que nós somos, nós
somos.Não somos capazes de mudar.
— Sou responsável pelos meus atos.
— Fisicamente, se pudesse mudar algo em você, o que
mudaria?
— Meu nariz.
— Mas a Natureza fez seu nariz desse jeito.Você não
pode mudar.É tudo uma questão de genética, enzimas,
tal, e o ambiente em que se vive.Nem sua personalidade
está em suas mãos.
— E se eu fizer cirurgia plástica para deixar meu nariz
mais fino? — Ela riu.
62
— Faça uma cirurgia na mente, e mude seu jeito de
ser.É só um pouco mais complicado. Antes, usávamos a
lobotomia para controlar certos instintos.Hoje, ela é
considerada desumana...
— Estamos apenas representando um papel?
Ele assentiu.
— Se eu pudesse, eu seria mais calmo.É o que eu
mudaria em mim, pois sei que faria bem a mim
mesmo.Por que eu não mudo? Por que nasci assim, não
posso mudar. Algumas pessoas são capazes de mudar
seus destinos, pois têm o completo domínio de si
mesmas.Elas são raras, e eu nunca conheci alguma.Só
imagino que elas existam. — Ele recostou-se no sofá,
olhando nos olhos dela. Ela era linda. Muito linda. Mas
ingênua demais.Se achava durona, mas era tão
vulnerável e crente! — O ser humano é um mistério. —
Ele concluiu.
— Isso me apavora.E me fascina...
63
— Sabe que conhecemos apenas dez por cento de nossa
mente?
Ela assentiu.
— O que estará escondido nos outros noventa por
cento? — Ela sorriu.— Capacidades incríveis? Não
zombe de mim, Jos, mas eu acredito que tenhamos
capacidades inimagináveis que ainda não fomos
capazes de despertar.Não somos capazes de
desenvolver essas habilidades, mas talvez possamos
atravessar aquela parede.
Ele riu.
—Eu não seria assim, tão otimista.Talvez haja um bom
motivo para não nos ser permitido o acesso aos outros
noventa por cento.Existem áreas de nosso cérebro que
não devem jamais serem exploradas.Existem coisas
feitas para nunca serem vistas.Os vídeos são autênticos,
Heather.
Ela foi pega de surpresa.
64
— Como pode ter certeza?
— Porque sou especialista em diferenciar o que é real, e
o que não é.
— Nunca podemos ter certeza.
— Você é a pessoa mais autêntica que já conheci.
— Eu sou autêntica, sou real. Invento personagens e
histórias.Eles não são reais.
— Eu escolho os vídeos metodicamente.
Ela sorriu, descrente.
— Está brincando.
— Não estou.
Heather demorou para falar novamente.
Repousou o copo de Coca-Cola na mesa da sala.
— E tem certeza de que são reais?
— Cem por cento.
Ela levantou-se e começou a recolher as
louças sujas.Joshua sentia-se estranho. Era a primeira
vez que revelava-se como Billy, a não ser para Mabel.
65
— Tenho a impressão de que não vai querer me ver
nunca mais.
— Não tenho nada a ver com seu...Trabalho.
— Não é bem um trabalho. —Ele tentou justificar. —É
mais um hobby. —Ele notou que tinha piorado a
situação com essa informação.Seguiu-a até a cozinha. —
Então me responda, como conseguiu o convite?
— Já disse, meu agente conseguiu.Por que é tão
importante?
— Curiosidade.
Ela compreendeu subitamente.Pareceu mais
incomodada ainda quando disse:
— Se a pessoa errada descobrir, você pode ser preso,
não é?
— Eu estava apenas curioso.
Pegou um pano para enxugar as louças.
Heather ficou em silêncio por vários segundos.
66
— Como pode fazer isso com aquelas pessoas? — Ela
desabafou, deixando o prato ensaboado na pia.
— Eu? O que eu faço com elas? Elas fazem tudo
sozinhas!
— Você as instiga a fazer essas coisas! — Ela não
levantou o tom, sua voz demonstrava aborrecimento.
— Se um idiota resolve se suicidar na frente de uma
câmera, a culpa é minha?
— Você o estimulou a fazer isso.
— Eu o estimulei a gravar o suicídio, mas ele ia se matar
de qualquer jeito! — Jogou o pano seco sobre a pia. —
Droga, Heather, você não entende!
— Desculpa, não sei como alguém pode se divertir com
o sangue alheio!
— Você assistiu os noticiários hoje?
— Sim.— Ela voltou a lavar louça.
67
— Você ouviu mais uma vez sobre a violência que
domina essa cidade.Que domina esse mundo. — Ele
também pegou o pano de volta.
— E você gosta disso? — Ela respondeu com outra
pergunta.
— Não assisto á essa droga.O que quero dizer é que a
violência está em todo lugar. A culpa é do cinegrafista
que filmou o assalto na Av.22?
— A mídia ganha milhões com tragédias.Esse
cinegrafista está feliz, pois foi promovido. E a vítima do
assalto está morta. Sua família se sentindo abandonada.
— Claro, você está coberta de razão.Mas, se não
existisse televisão, a violência seria reduzida?
— Essa não é a questão, Jos.Você se diverte ás custas os
outros.O mal é cada vez maior, porque é estimulado
por...Gente como você!
— Fala sério! Não tem mais jeito. Não posso mudar o
mundo. Então, vou me divertir com ele.
68
— Eu chamo isso de oportunismo.
Heather guardou o último copo e foi para a
sala.
— Certo, Heather. — Ele a seguiu. — Acho que
devemos esquecer essa discussão boba. Era apenas algo
que eu precisava dizer.
Ela pensou por um momento, mordendo o
canto do lábio inferior.Abraçou-o.
—É, você tem razão.
Joshua não sentiu convicção em sua voz.
Capítulo Quatro
Já passava das quatro da manhã quando ele teve
tempo de ligar o computador novamente.Sua página de
recados no Death of Patience estava cheia mais uma
vez.
“Data: 09/12/2008, 3:00hs.
Remetente: KillerCat
69
Mensagem: Boa noite, Billy! Devo dizer que
não gostei do vídeo ‘A babá’. Estava em preto e branco!
Não me parece real... O sangue estava mais para
catchup! (risos)”
Responder: Procure na Internet sobre a babá que
matou o bebê sufocado em Denver, no ano de 1952.É
uma raridade, acredite.Por ter sido gravado em uma
deprimente fita cassete do outro século, está em preto e
branco (Idiota).”
“Data: 09/12/2008, 3:46hs.
Remetente: Jason 7
Mensagem: Confira o vídeo que eu
postei.Acabou de ser gravado.Valeu!’
Joshua acessou o link, curioso.O vídeo vinha da
Alemanha, tinha sido gravado no dia anterior.O rosto
do tal Jason 7 estava censurado, mas a qualidade da
gravação era boa.
70
“ — Olá, Billy.Eu sou Jason.Eu e meus amigos vamos
brincar um pouquinho.A idéia não é original, mas
vamos nos inspirar no melhor filme de terror dessa
geração,um dos mais cultuados do site: S.A.W..Estão
prontos? — Ele perguntou para dois garotos presos em
cordas e algemas, deitados no chão.
Mais um garoto, também com o rosto
censurado, entrou em cena, vestido como um capanga
de séculos atrás.
— O primeiro jogo — Ele explicava para os garotos em
alemão, uma legenda para o expectador. — Vai ser o de
perguntas e respostas.
Jason pegou um pedaço grande de arame
farpado.
— Se errar, vai doer.Quem quer começar?”
O vídeo era autêntico e seria postado.Os
garotos copiavam outros jogos do filme original.
Finalmente, Jason anunciou o último jogo.
71
“ — Você precisa soltar-se e libertar seu amigo. — Ele
explicou para o garoto que ficara menos machucado
durante os vinte minutos do vídeo.Colocou chaves
sobre um balcão de madeira poída. — Quando
conseguirem se livrar dos arames farpados, podem
pegar a chave e ir embora.Boa sorte!
As luzes foram apagadas.A câmera filmava o
primeiro garoto libertar-se dolorosamente das cordas e
arames farpados.Ele precisava pegar a chave para soltar
as algemas do amigo, que gritava abafado pela
mordaça.
— Não grite. — Ele sussurrou por causa da dor.Estava
quase completamente liberto. —Estou
conseguindo.Vamos sair dessa.
Pegou a chave e soltou o amigo, livrando-o
dos arames farpados que ainda o envolvia.
72
Era um dos vídeos mais bem feitos que tinha
visto no Death of Patience. Imaginou o que teriam feito
as duas vítimas para merecer aquilo.
Não importava. Estava aceito.
O filme acabou e Mabel acordou Charlie.Ele
tinha adormecido em sua cama poucos minutos depois
de chegar em seu quarto.
Tinha sido uma cena engraçada.Ele tinha batido
á sua porta, trazendo seu ursinho de pelúcia.
— O que está fazendo, Mab?— Ele tentara soar casual.
Ela fitou o corredor vazio.
— O que quer, Charlie?
— Não estou com sono.Posso ficar com você?
— Entra. Mas vou ver um filme de terror. — Ele
arregalou os olhos, disfarçando em seguida. — Tem
certeza de que quer ficar?
73
— Você sabe que sou corajoso.Nem ligo pra filmes de
terror.
Mabel riu e puxou-o para a cama junto com ela.
— Ótimo. — Ela pegou a caixinha do DVD. — Chama-
se O Grito.
Ele desviou os olhos da imagem do fantasma
na capa.
— Pode mandar ver!
Ela sentiu o pequeno corpo dele se contrair
contra o seu toda vez que ele levava um susto.Até que
ele dormiu.Ela sacudiu-o quando o filme acabou.
— Charlie...Vai dormir no seu quarto.
Ele levantou-se cambaleante e sonâmbulo.
— Boa noite, Mab.
Depois que Charles saiu, ela apagou a luz do
abajur com um sorriso. Estava desobedecendo as ordens
do médico de novo.Ele tinha sido claro quanto a não
assistir filmes de terror.Aumentava a sua
74
adrenalina.Lembrava-se, vagamente, de ter sido lhe dito
algo sobre chocolates também.
Mal tinha fechado os olhos, tornou a abri-los,
assustada.Tinha ouvido um barulho na janela do
quarto.Era o som parecido ao de uma pedra contra o
vidro.
Apanhou o canivete da gaveta e espiou pelo
vidro fechado. Não havia nada lá embaixo.
Abriu o vidro e curvou-se sobre a janela o
máximo que conseguiu.Achou ter visto alguém
escondido na outra extremidade da casa, mas poderia
ser apenas uma das sombras projetadas pela luz da
frente.Afastou-se da janela, e ligou o computador.
Fez o login no site do Death of Patience.Página
de recados de Billy.
“Data : 09/12/2008, 4:16hs.
Remetente: Filth Darkness
75
Mensagem: Ele está aqui agora, Joshua. Está na
minha casa.Entre em contato comigo imediatamente.
2222-4662.”
Enfiou o celular no bolso do casaco e observou
da janela novamente.A sombra não estava mais ali.
Ela o pegaria de surpresa.Começou a descer
pela janela.
A porta da frente estava trancada, sem sinais
de arrombamento do lado de fora. Percorreu todo o
redor da casa, mas não havia nada de
incomum.Adentrou o jardim dos fundos.
Ouviu o barulho de folhas pisadas.Alguém
mais estava ali.Antes que pudesse raciocinar, foi
atingida na cabeça, caindo no chão.Derrubara o
canivete, e não conseguia ver a face de seu agressor.O
rosto dela foi mantido voltado pro chão.Ele estava
segurando-a com uma força inimaginável.
76
Finalmente, soltou-a. Ela levantou-se a tempo
de ver a silhueta negra fugindo.Levou as mãos á cabeça,
mas não deixou que a dor e o medo a impedissem de
gritar:
— Volte, covarde! Venha brigar como homem!
Olhou para as mãos.Não havia sangue.Correu
na direção para onde ele tinha ido, mas sabia ser tarde
demais.Percorreu a rua residencial inteira, entrando em
desespero.Precisava encontrá-lo.E quando ela o fizesse,
o mataria.
Por que ele deixara que recuperasse o
canivete? Ela perguntou-se, aflita.Tinha sido óbvio que
ele só quisera apavorá-la, e depois fugiu.
Correu tanto que em poucos minutos tinha
alcançado a avenida.
Por que a cabeça machucada tinha deixado de
doer?
77
— Onde você está maldito psicopata? —Ela gritou, em
meio aos carros que buzinavam para que ela saísse do
caminho. — Apareça, não se esconda!
Foi cegada por uma luz branca.Mal
reconheceu ser um carro que a atingira em cheio, antes
de perder a consciência.
Demorou um pouco até que ela se lembrasse
do que tinha acontecido, e do que provavelmente a
levara até ali.A cabeça latejava.Estava em um
hospital.Notou que não apenas a cabeça doía, mas o
corpo todo emitia dor ao menor movimento.Chamou a
mulher vestida de branco, e sua própria voz pareceu-lhe
estranha.
—Vou chamar seu pai. —A enfermeira disse. —
Estávamos esperando você acordar.
78
Mabel observou, pronta para um ataque
histérico, que o pai chegara acompanhado de seu
psiquiatra.Ambos sentaram-se em cadeiras postas em
frente á cama.Ela esforçou-se para sentar-se também.
— Por que fez isso? — O pai perguntou, parecendo
mais chateado do que a irritação de sua pergunta
sugeria. — A vida que te dou não é suficiente pra você?
Do que diabos ele estava falando?
— Você é tão jovem, bonita, tem um namorado que te
ama, nunca precisou trabalhar.Então, por quê?
O Dr. Terry disse:
— Gostaria de se abrir com seu pai, Mabel? Queremos
ajudá-la, e tenho certeza de que, se você permitir,
poderemos.
— Sua família tem direito de saber! — Foi uma
declaração desesperada.
Ela sentiu as lágrimas quentes nos olhos, mas
não daria esse prazer a eles.
79
— Eu não tentei me matar!
Dr. Terry fez um sinal para que o pai os
deixasse a sós.
— Vamos conversar, Mabel.Não quero julgá-la, mas a
negação é o caminho mais difícil. Identificar o que te faz
sentir-se mal é o primeiro passo para que você atinja a
vida que procura.
— Foi alguém... — Ela cedeu, e deixou que as lágrimas
caíssem. — Alguém tentou me matar naquela noite...
Ontem. Foi ontem? Que dia é hoje?
— Sim, aconteceu ontem.Terça feira. — Ele quer me
matar! Ele jogou uma pedra na minha janela para
chamar minha atenção.Tentei pegá-lo de surpresa, mas
quem me surpreendeu foi ele! Me deu uma pancada na
cabeça! — Ela sabia que em seu desespero ela parecia
incoerente, mas foi incapaz de parar. — Mas ele não
quer me matar assim, tão fácil.Só estava
80
provocando.Ontem, ele só estava provocando! Mas vai
voltar.
— Se ele só queria provocá-la, por que te atropelou?
— Ele não me atropelou, imbecil.Isso foi um acidente!
Aliás, o motorista nem teve culpa, avise os guardas.A
culpa foi toda do assassino.
— Sim, você tem razão.Foi um acidente, e o motorista já
foi liberado. — Ele olhou para ela profundamente. —
Não havia ninguém te perseguindo, Mabel.
— Claro que não, ele tinha fugido.Eu estava
perseguindo ele.
— Não havia perseguição alguma.
Ela encarou-o por um segundo, derrotada.
— Certo.Eu é que sou louca.
— Você viu seu agressor?
Ela não tentaria mais fazer com que alguém
acreditasse.
81
— Não, deve ter sido um fantasma que me bateu na
cabeça, pois eu sou maluca.
— Tem idéia de quem poderia ser esse suposto
assassino?
Ele estava sendo condescente.
— Um fruto da minha imaginação.
— O motorista do carro disse que você se jogou na
frente do automóvel.
— Claro, ficou com medo de levar a culpa.E não
entende nada de suicídios.Nem você entende, com toda
sua “inteligência médica”. Eu tinha um canivete na
mão.Por que haveria de me jogar na frente de um carro?
Não seria menos dolorido do que cortar os pulsos,
seria? — Ela agradeceu mentalmente por ter parado de
chorar.
— Sobre o canivete...Onde conseguiu?
82
— Dê o fora. — Ela decidiu, deitando-se novamente,
suportando a dor. — Fique com sua teoria de suicídio,
se ela for mais fácil pra você.
Depois de uma breve hesitação, deixou-a
sozinha no quarto.Ela levantou-se, inquieta.Precisava
sair dali.
Antes que abrisse a porta, ouviu o Dr. Terry
falando no corredor.
— ...e ela vai precisar de observação contínua.Acredito
que tenha deixado de tomar remédios, está ficando
paranóica.Sugiro uma clínica para internação.
— Tem razão, ela não toma as pílulas, doutor. — Era a
voz de Pebble.
— Eu conheço uma clínica que não fica longe daqui, é
na fronteira de San Diego. —Ele fez uma pausa. — Saint
Clair. Alguns de meus amigos trabalham lá, e...
Ela deixou de prestar atenção, afastando-se
lentamente da porta.O psicopata da noite anterior lhe
83
parecia muito menos perigoso do que seu psiquiatra
agora.Abriu a janela do quarto com cuidado para não
fazer barulho, e calculou a distância.Não seria difícil.
A primeira providência que tomou ao chegar em
casa foi formatar o computador e apagar toda sua
memória. Juntou numa mochila todo o dinheiro que
mantinha no seu porquinho cor de rosa.Não era muito,
mas talvez fosse o suficiente.
Pegou o primeiro ônibus que parou no ponto e foi
até o terminal.Quanto mais longe estivesse de seu pai e
da madrasta, melhor.Parou no cyber café da
estação.Joshua era a única pessoa que poderia ajudá-la.
Não tinha anoitecido ainda quando Joshua
chegou em casa.A experiência de andar no Saveiro
verde de Heather deu-lhe uma sensação de
novidade.Era a primeira vez em dois anos que saía do
84
apartamento por vontade própria.Tentou lembrar-se da
última vez que tinha ido ao cinema.
Novas mensagens foram anunciadas, assim que
ele entrou com sua senha no Death of Patience.Eram da
madrugada da noite anterior, e uma delas vinha de Filth
Darkness.
“Ele esteve na minha casa ontem, e logo virá
atrás de você. Temos que fazer alguma coisa. Precisei
fugir de casa.Encontre comigo hoje, ás sete horas, no
restaurante Giano´s, na avenida 27.Se você não souber
onde é, busque referências.”
Partiu para a próxima mensagem de Filth
Darkness.
“Ele está aqui agora, Joshua! Você precisa me
ajudar!”
Joshua! Aquela maluca jamais deveria chamá-lo
pelo nome publicamente daquele jeito!
85
Ele não sabia onde ficava o tal restaurante, e não
tinha absolutamente a menor intenção de encontrar-se
com Filth Darkness.Como ela apresentara-se mesmo?
Mabel.Devia ser completamente louca.Era verdade que
ele mesmo assustara-se com a mensagem á princípio,
mas achava difícil que aquilo que ela contara tivesse
realmente acontecido.O recado de Joey parecia a ele
bem inocente, agora.Filth Darkness estava levando
aquilo tudo longe demais.E não se tratava de uma
garota muito esperta.Se ela achava que alguém de
dentro do Death of Patience procurava matá-la, ou o
que quer que fosse, por que diabos publicava o lugar
onde se encontraria ás sete horas?
Estava irritado demais para se preocupar com a
segurança daquela paranóica, que estava a fim de ferrar
ele.Com apenas alguns cliques, a excluiu do site.
86
Ela percebeu que Billy não viria quando deu sete
e meia da noite.O lugar escolhido, novamente, tinha
sido propositalmente uma avenida com muito
movimento, para diminuir o perigo.Mas a quantidade
de pessoas e automóveis que circulavam a assustavam
ainda mais.Sentia-se terrivelmente vulnerável e
sozinha.Voltou ao pequeno e precário hotel que
escolhera para passar a noite.
Sentou na cama, sentindo o olhar perdido.Não
fazia idéia do que faria a seguir.Estava chorando de
novo.
Em uma noite estava na segurança de sua
casa.Na noite seguinte, fugia de um assassino e de seu
próprio pai, escondida em um quarto sujo, num hotel
barato.Apertou com força os nós dos dedos, até que
doessem.Completamente sozinha.Fora de controle, seu
corpo balançava freneticamente, os soluços fazendo um
movimento uniforme em seu corpo.Arranhou o braço
87
com as unhas compridas, até que sangrasse, e isso a
acalmou um pouco.
Levantou-se num pulo, reconhecendo-se
incapaz de ficar ali, de mãos atadas, comprimida pelas
paredes.Saiu do quarto deixando que a porta batesse
com um estrondo. Desceu as escadas correndo, com a
cabeça doendo e o rosto dormente.Parou na calçada,
olhou para a rua movimentada. Estava sozinha.
Caminhava a passos largos sem saber para
onde estava indo.Ninguém jamais a entendera, jamais
entenderia.Tony nunca a ajudaria, diria também que ela
era louca.Até Billy a abandonara.
Ignorava a dor.Cada movimento seu fazia um
músculo doer, um osso lembrar-lhe que existia.
Atravessou a rua, um carro freou quase em
cima dela, mas ela não se importou.Não ter destino não
seria problema, desde que continuasse andando.
88
Pensou no que a trouxera até ali, e desejou
matar Joey como nunca desejara nada antes. ”Vem logo,
seu idiota. Mal posso esperar até que venha!”
A sirene da polícia se aproximou.Ela levou as
mãos aos ouvidos pra abafar o barulho ensurdecedor
que parecia penetrar seu cérebro.Caiu de joelhos.Muitas
pessoas começaram a rodeá-la, machucá-la com suas
presenças, sufocando-na.Não queria ser tocada.
Mãos fortes a levaram para dentro de um
carro, enquanto ela gritava inutilmente por socorro.
Capítulo Cinco
A primeira coisa que Mabel viu ao entrar na
chamada “casa de repouso” foi uma árvore de Natal
com dois metros de altura, decorada alegremente.Quem
sabe um pouco colorida demais.Entrava em contraste
com o estado de espírito em que ela se encontrava.
89
Uma enfermeira fazia o maior esforço possível
para ser simpática, enquanto a conduzia pelos
aposentos do hospital, excursionando seus silenciosos
corredores.Tudo parecia calmo, tão calmo que não
poderia ser real.Alguns pacientes observavam sua
chegada, parecendo distantes.Sua própria mente tinha
se tornado vaga, e ela já não conseguia pensar com
clareza.
— Esse vai ser seu quarto. — A enfermeira falou. Ela
observou as outras duas camas.Imaginou com quem
dividiria aquele aposento. — Seus companheiros de
quarto chegam daqui a pouco, e você vai conhecê-los.—
Ela afirmou, como se lesse seus pensamentos. — Eles
são muito amigáveis.Pode acomodar-se.Em meia hora
todos estarão na cama. — Não devia passar das oito
horas da noite. — Mas se estiver com fome, podemos
lhe conceder um pedido, já que é seu primeiro dia aqui.
— Ela sorriu.
90
A expressão “Primeiro dia” causou-lhe um
arrepio.
Sua mentira saiu parecida com um sussurro.
— Já comi.
— Então, sinta-se á vontade.Boa noite.
Mabel permaneceu parada no centro do
quarto.Ouviu a chave rodar na fechadura.
Tinha sido trancada com seus demônios.
— Eu tenho uma coisinha pra você. — Heather disse,
com um forçado ar misterioso.
Joshua ficou envergonhado, não tinha
comprado nada para ela. A verdade era que tinha se
esquecido completamente do Natal. A data nunca tinha
feito sentido para ele, que não era cristão, nem
comerciante.
91
Ela entregou-lhe um embrulho de papel
decorado com vermelho e verde.
— Feliz Natal.
— Obrigado, Heather! — Era um relógio de
pulso.Resolveu ser sincero. —Não comprei nada pra
você...
Ela sorriu de sua desculpa desajeitada.
— Não faz mal.
— Eu nem tinha pensado nisso.
— Não tem problema mesmo, Jos. — Procurou um
abridor de latas no balcão da cozinha para o vinho que
trouxera. — Acho que já podemos começar nossa ceia
particular.
Ele espiou dentro dos sacos de papel.
— O que você tem aqui?
— Vamos ver... — Ela tirou os itens do saco, declarando
em voz alta. — Uma caixinha de bom bom, biscoito, um
92
saco de balas de iorgute... — Ele sorria para ela. — E o
melhor...Coca Cola!
— Perfeito! — Ele pegou copos de dentro do armário,
abandonando a taça quase cheia de vinho.
— Nutritivo, não?
— Exatamente do jeito que eu gosto.
Ele escolheu um bom bom recheado com
licor.
— Somos tão parecidos! — Ela exclamou.
Ele reparou que tinha escolhido o mesmo
chocolate que ela.
— Tem toda razão...
— O que quer fazer? — Ela mordeu o doce.
— Acho que nossa ceia não dura muito tempo, não é?
Bom, faremos o que você quiser.
— Que tal ligar o som? Vai ver temos também o mesmo
gosto musical.
Ela procurou por um aparelho e não encontrou.
93
— Ouço música apenas pelo computador. — Ele
explicou, imaginando se sua vida inteira não acontecia
pelo computador.
— Hip hop. — Ela sorriu, vasculhando os arquivos
musicais dele. —Aumentou o volume de uma música
que gostava particularmente.
— Eu sabia que dividiríamos isso também.
Á meia noite, eles foram ver os fogos
da varanda.A visão era muito bonita, diferente do ano
passado.Ele ficara amaldiçoando o barulho infernal que
tinham as bombas, atrapalhando sua concentração.
Ela puxou-o para perto de si.
— Você é maravilhoso, Jos. — Ela olhou dentro de seus
olhos com um sorriso. — Mas tem um defeito. É lento
demais.
Heather beijou-o.
94
Mabel mal notou que o Natal e o
Réveillon vieram e passaram.Tinha ficado dias deitada
naquela cama, de olhos fechados, o corpo o mais
retraído possível.De início, ela tentara manter a mente
vaga, mas as lágrimas continuavam molhando o
travesseiro branco.Aos poucos, sua mente foi ficando
vazia, e seus olhos fixos em algum lugar muito além
daquele quarto.
A enfermeira trazia-lhe comida três vezes
ao dia, e ela comia de forma mecânica, sem ao menos
sentir seu gosto.Ignorava quando a enfermeira dizia
para que ela desse uma volta no jardim.Tomava as
pílulas que lhe eram trazidas, sem mais resistir.Elas
faziam com que Mabel se sentisse relaxada.Não era
exatamente uma sensação boa, mas algo dentro dela
estava profundamente adormecido, e isso bastava para
impedi-la de pensar.
Um médico viera vê-la.
95
— Procure-me quando quiser conversar. — Ele
terminara a consulta, sem que Mabel dissesse uma
palavra.
Foi na mesma noite que ela teve uma
série de sonhos estranhos. Em um deles, estava na casa
de Tony, comendo bolinhos de arroz da mãe dele. De
repente, Tony levantava-se e dizia:
— Estou cansado de você! — Jogava um bolinho no
rosto dela, e ria. Ela gritou, pois o bolinho fazia sua pele
ferver e dissolver-se, como cera.Ele tornava a gritar. —
Maldita louca!
A última palavra fazia um eco
interminável, e não era mais a voz de Tony a dizer-lhe
isso.Era a voz de seu pai.
Louca, louca, louca...
O sonho seguinte parecia mais uma
continuação do primeiro.Mabel dirigia um caminhão
em uma estrada de barro vazia.Uma perua branca veio
96
em sua direção, batendo em seu veículo.Ela caiu para
fora do carro, e rolou morro abaixo.
Teve um vislumbre do rosto do
motorista da perua, que agora dirigia o caminhão
dela.Era Billy.O caminhão explodiu, embora ele ainda
sorrisse.Ela acordava em um hospital, e lhe diziam que
ela tinha tentado suicídio.
Charlie estava em seu quarto quando
ela abriu os olhos.Segurava sua mão.
— Não vai embora. — Ele chorou.
— Não vou.
— Eu te amo, Mab.
Havia algo de estranho em Charlie.Ela
não soube identificar, mas sabia que algo estava
errado.Ela foi abraçá-lo, mas ele desapareceu em seus
braços.
— Charlie! Onde você está? — Ela quis gritar, mas
sussurrou.— Ah Deus...Eu não estou louca...Não estou
97
louca... — Repetia, desesperada, em resposta ao eco que
tinha voltado.Puxou o cabelo com tanta força que
alguns fios caíram em suas mãos. —Me deixem em paz!
— Os fios foram transformando-se em chumaços.
“Todos foram embora”, disse a voz
desencarnada de Charlie.”Só restou você. Dê uma
olhada ao redor”.
— Não! Não! — Agora ela conseguia gritar.Não poderia
aceitar aquela verdade.
Esquadrinhou o quarto inteiro, sem
saber o que procurava.Era tudo branco.Por quê? Fixou
os olhos no lençol que a cobria.Sorriu para si mesma.Ele
não era branco.Era bege.
Ela acalmou-se com a nova informação,
mas em pouco tempo aquilo começou a intrigá-la.Se o
quarto todo era branco, por que o lençol tinha de ser
diferente? Comprimiu as unhas com força contra o
braço.
98
“Tinha de ser branco! Por que não?”
Estava tudo manchado de vermelho,
agora.
Pela primeira vez desde sua internação no
Saint Clair, Mabel aceitou o convite da enfermeira. Foi
almoçar no refeitório com os outros pacientes.Percebeu
que esteve perdida no tempo.
— Que dia é hoje? — Ela perguntou á moça que lhe
ofereceu a bandeja de comida.
— Sexta feira. — Ela percebeu que aquela resposta não
satisfez Mabel. — Dois de janeiro.
Então tinha passado mais tempo do que ela
previra.
Escolheu um lugar no grande refeitório,
imaginando se seria recebida pelos outros malucos.E
por que isso importaria? Provou a comida.Estava
boa.Tinha emagrecido demais.Não sentia vontade
99
nenhuma de comer, mas precisava recuperar seu
peso.Pensou no uniforme de hospital que vestia.Pelo
menos não ficaria nervosa ao observar que os quilos que
perdera sobravam na calça jeans.
Não ficou muito tempo sentada sozinha.Um
rapaz sentou-se ao lado dela.Tinha uma expressão
infantilmente alegre, e usava um boné vermelho, que
causou má impressão em Mabel. Não condizia com seu
uniforme branco e pálido.
— Boa noite. —Ele cumprimentou.
Ela esperou que ele notasse o próprio
erro.Como ele não disse nada, ela corrigiu-o.
— Estamos almoçando.
— Ah droga! —Ele baixou a cabeça na mesa, como se
estivesse dormindo.Ela voltou a comer. — Eu sempre
me confundo. —Ele ergueu-se novamente. — Sempre,
sempre, sempre, sempre.
100
Ela ignoraria a presença dele.Não permitiria
que sua irritação afetasse seu apetite. Ele continuou
falando.
— Sinto muito. — O sorriso estava de volta. — Como é
seu nome?
Ela demorou pra responder.
— Mabel Gibbs.
— Sensacional! Eu sou o Jim. — Ele estendeu a mão.Ela
fitou-o pela primeira vez.Viu naqueles olhos azuis uma
inocência que a comoveu.Seu coração se comprimiu.Em
breve, tudo o que sentiriam por ela seria aquilo, o que
ela sentia por aquele pobre garoto: pena. — Mas pode
me chamar do que quiser. — Ele completou.Torcia os
dedos sem parar, seus olhos observavam tudo, de forma
frenética, como se esperasse alguém, ou estivesse com
medo de alguma coisa.
— Por que está aqui, Jim?
Ele riu.
101
— Por que mamãe acha que sou louco.
Ela sorriu.
— E você não é?
— Claro que não.
— Somos todos loucos.
— Eu não sou louco. — Ele cuspiu a frase com mágoa,
como se tivesse repetido aquilo muitas vezes antes. Mas
havia convicção no que ele dizia.Uma certeza que ela
gostaria de ter. —Você é? — Seu tom de voz havia
suavizado novamente.
— Dizem que sim, dizem que sim...Mas o que faz sua
mãe pensar dessa forma?
— Bom...Eu não queria matar o Bobby.
— Quem é Bobby?
— Era. — Ele corrigiu, parecendo triste. — Ele
morreu.Não foi de propósito. — Ele começou a
justificar-se. — Eu só achei que ele estivesse com
frio.Mesmo com todo aquele pêlo, ele sentia frio.
102
— E...? — Ela encorajou-o a continuar quando ele
parou.
— Eu tinha visto um programa sobre aqueles... — Ele
não achou a palavra que procurava. — Esses caras que
se perdem numa floresta de vez em quando.Eles usam
fogueiras para se aquecer, senão morrem de frio.Sabe o
que são fogueiras?
— Sei.
— Fogueiras são feitas de madeira.A única madeira que
tinha no quintal era a casinha do Bobby.
— E o cachorro estava lá dentro.
— Exato.
— Coitado.
— É, eu sei.Sinto falta dele.
Ela observou-o refletir.
— Por que você não lhe deu um cobertor?
Ele olhou para ela, soltando um grunhido.
— Droga! Por que você não me deu essa idéia antes?
103
— Sinto muito. — Ela riu.
— Sabe de uma coisa? Acho que estou apaixonado por
você, Millie.
— Mabel.
— Desculpa. Mabel.
— Certo. — Ela levantou-se. — Acho que vou dar uma
volta.
— Pelo jardim? Posso ir com você? — Ele já tinha
levantado-se prontamente.
— Por que não termina de comer primeiro? — Ela
tentou.Gostaria de ficar sozinha.
Jim fitou a comida, depois olhou para
Mabel, pensativo.
— Espera um minuto? — Ele não esperou resposta.
Começou a comer muito depressa. Ela se afastou.
104
Mabel observava sua imagem refletida no
espelho atentamente.A enfermeira aguardava á sua
frente até que ela terminasse de usar o perigoso
objeto.Estava pálida demais, refletiu.Seu cabelo já
formava pequenas ondas.Precisava de seu
condicionador urgente.
— Tem um batom?
— Não, Srta. Gibbs.
— Um rímel, um lápis de olho? —Tentou, exasperada.
— Está linda desse jeito.
— Você está de batom, sua megera.
— Posso guardar o espelho?
— Estará me fazendo um favor.
A enfermeira deixou o quarto, levando sua
imagem embora. Mabel sentou-se na cama, esperando
que as luzes se apagassem parcialmente.O corredor
permaneceria iluminado.”Como numa maldita
penitenciaria”.
105
Melhor assim.O escuro não lhe agradava.
Ela deitou-se.Ao menos os muros de
concreto a protegiam do que estava do lado de
fora.Fechou os olhos, subitamente grata.Estava longe do
chamado mundo real.Ele agora lhe parecia
imensamente perigoso.Lá morava seu pai.Morava
Tony.Ela sorriu para si mesma. Ali dentro, ela tinha
todo direito de ser louca.
Jim correu até o quarto de Mabel assim que
amanheceu.
— Bom dia! Bom dia!
— Bom dia, Jim.
— Dormiu bem?
— Dormi. — Ela hesitou. — E você?
— Quer casar comigo, Millie?
Seus olhos moviam-se ainda mais
frenéticos em sua expectativa. Ela riu.
106
— Quem sabe, um dia...
— A menina que dorme aí do seu lado vai sair. —
Mabel olhou insistivamente para a cama vazia do lado
da sua. — E vão me colocar aqui.
— Legal.Vamos ser colegas de quarto.
— Colegas de quarto... — Ele saboreou a nova
expressão. — Isso me lembra casamento.Vai casar
comigo?
Ela pensou em Tony e riu em voz alta.
— Por que não, Cachorro Quente?
— Isso aí! — Ele beijou-a no rosto, em comemoração. —
Sensacional! Posso contar pra todo mundo?
— Vai em frente.
Jim saiu correndo pelo corredor. Ela sorriu
consigo mesma. Ele parecia ser o único homem sincero
que conhecera em toda sua vida. Aquela era uma
sociedade diferente, longe da hipocrisia que ela
conhecia muito bem. Passou pelo corredor também,
107
passos curtos. Alguns pacientes sorriram pra ela com
cumplicidade. Jim já tinha feito seu trabalho.
Os pacientes do hospital que não
simpatizavam com ela, simplesmente a ignoravam. Não
havia disfarces. Não havia mentiras. Ninguém mudava.
Ninguém esperava que ela mudasse.
Ela lembrava-se de alguma vez ter pensado
a mesma coisa a respeito dos bêbados.
Capítulo Seis
A manhã seguinte era um sábado. A
enfermeira conduziu Mabel até a sala de visitas.Ela
dissera a si mesma que seria a última vez que se
encontraria com aquelas pessoas que um dia chamara
de família.Estava disposta a permanecer no Saint Clair
pacientemente, até que um dia fosse liberta.
Tony estava preocupado.Já não lhe parecia
atraente como antes, sentado ali naquela sala.Parecia
108
abatido, como se estivesse doente.Seu pai estava ao lado
dele, e beijou-a quando ela entrou.
— Como está, querida?
Mabel limitou-se a encará-lo.Estava
decepcionada por Charlie não ter vindo vê-la.
— Como está? — Ele insistiu.Ela encarou Tony também,
sua expressão de piedade acentuando o ódio que ela
sentia naquele momento. — Estão te tratando bem?
— Claro. — Ela sorriu, irônica. — Essa manhã até me
serviram o café na boca, porque eu estava com a camisa
de força.
— Não seja tão dura, Mabel.É só pra que você descanse
um pouco.
—Ah, me sinto realmente descansada.Como nunca! Só
sinto falta da Coca Cola.
— Você sairá em breve.
—Obrigada pela preocupação, papai. — Ela indicou que
a visita tinha terminado. —Adeus, Tony.
109
—Mabel! — Ele ainda tentou, depois que ela saiu. —
Espere!
Ela já estava no corredor de novo.Encontrou-
se com Jim.
— Sua mãe veio te visitar? — Ele indagou, sorridente.
— Meu pai.E meu ex namorado.
Jim piscou várias vezes, e levou o braço
torcido até o rosto, num gesto nervoso.
— Mas você é a minha noiva!
— Esposa.E Tony é um passado morto e
cremado.Morto, morto.
— Que bom. — Sua expressão se suavizou novamente, e
ele sorriu.
— E a sua mãe? Não vem te ver? — Ela retomou o
caminho do jardim.
— Ah não. Mamãe não vem me visitar desde... — Ele
estalou os dedos, procurando lembrar-se. — Bom, faz
110
muito tempo...Jane veio me ver um dia desses, mas
desde então...
—Sinto muito.
Ele deu de ombros.
— Tudo bem.Eu sei que um dia eles vão voltar pra me
buscar.
Sentaram-se em um banco do jardim.Os dois
partilhando a mesma falsa esperança.Ela começou a
chorar.
—O que foi, Millie? —Ele disse, enxugando seu rosto
com as costas da mão. — Por que está chorando?
Ela permitiu que ele a abraçasse.
— Só estou um pouco triste, Jim.
— Não gosto quando você fica triste.Você chora.
— Eu gostaria de voltar pra casa.
— Ás vezes também sinto essa imensa vontade de
voltar pra casa.Mas agora eu conheci você.Não quero
que você volte.Sente falta do seu namorado?
111
— Não.Sinto falta de casa, no sentido literal da palavra.
— Ela mentiu, parcialmente.
Enxugou as lágrimas restantes. Deixar tudo no
passado.Viver em paz.Aquele lugar lhe trazia paz. Ou
talvez fossem os remédios.Já se passara duas semanas
desde sua última crise. Droga! Por que diabos ela estava
chorando, então?
— Quer que eu pegue água pra você? — Jim ofereceu.
— Pra repor o que você perdeu chorando.
Ela riu.
— Acho que não vai ser necessário. — Deu um beijo no
rosto dele. — Obrigada.
— Está feliz de novo?
— Estou.
— Quer andar por aí?
— É a única coisa que fazemos, mesmo. — Ela
concordou.
112
Ele começou a andar rápido demais em sua
agitação.Mabel segurou-o pelo braço delicadamente,
obrigando-o a diminuir a velocidade.
— Se formos rápido demais, vamos ficar tontos com
tantas voltas que daremos pelo jardim.
— É verdade. — Ele sorriu. — Desculpe.
— Já notou que não temos um piano no hospital?
— Um piano?
Jim abaixou-se para pegar uma rosa vermelha
no canteiro de flores.
— Sim, um piano.Sempre lemos nos livros e vemos nos
filmes pianos nos manicômios.Não vi nenhum aqui.
Ele entregou-lhe a rosa.Imitou o gesto de
quem toca piano, no ar.Acompanhava o ritmo
imaginário com a cabeça.
— Não tem instrumento musical aqui, realmente. —Ele
parou a canção. — Será que eles escondem nos porões?
— Acho que ninguém pensou nisso antes.
113
— Vou comprar um pra você.
— Não sei tocar piano.Vai ter que me ensinar então.
— Eu aprendo, depois te ensino.
— Tenho certeza que sim.
Joshua sabia que seria idiotice perder a cabeça e
ficar nervoso.Estava certo de que se tratava de uma
brincadeira estúpida, ou algum conservador sem o
menor senso de humor negro tentando assustá-lo.
“Está chegando em você”.
Quase um mês depois do primeiro recado, ele
tinha recebido outro do mesmo remetente, Joey.
Novamente,tinha sido impossível rastreá-lo.Tentou
perguntar aos outros membros o que sabiam sobre Joey,
mas nenhum deles o conhecia.Não havia fotos,ou
qualquer outra coisa que pudesse lhe dar uma pista.
114
Dessa vez, Joshua respondeu o recado antes de
deletá-lo.
“Me diga de uma vez o que quer”.
Gostaria de poder fazer alguma ameaça, mas
não tinha recurso nenhum.Obviamente, a polícia seria
uma advertência ridícula.
Joey estava on line e respondeu segundos
depois.
“Dito popular, óbvio e um pouco irritante:
Você recebe o que der. Está voltando pra você”.
Joshua deu um soco na escrivaninha.
“DIZ LOGO! O QUE DIABOS ESTÁ
QUERENDO DE MIM?”
Esperou impaciente até a resposta, incapaz de
fazer qualquer outra coisa enquanto esperava.Tinha
outro trabalho para terminar, mas não minimizou sua
página de recados.
Um minuto depois. Joey não respondeu.
115
“O que você quer?”
Ele já não estava conectado.Frustrado, Joshua
desligou o computador, sentindo-se subitamente
cansado.Maldito aquele estúpido que tinha conseguido
tirar-lhe a paz.Da próxima vez, o ignoraria
simplesmente.Agora, ia dormir.
Ele imaginava o quanto Heather tinha
mudado até mesmo sua rotina diária.Agora ele se
perguntava como tinha conseguido passar anos
confinado em seu apartamento.
Não que o mundo do lado de fora o atraísse,
refletiu, enquanto caminhava pela calçada vazia
naquela manhã de domingo.Pelo contrário, as pessoas
ainda pareciam-lhe irritantes e indesejadas.O sol estava
forte, irritando seus olhos.Ele tirou os óculos escuros do
bolso.
116
Uma senhora que carregava suas compras
passou por ele, provavelmente moradora do
bairro.Lançou-lhe uma olhada rápida e
interrogativa.Nunca o tinha visto por ali antes.Um
bairro fechado, vidas fechadas.Sim, as pessoas eram
detestáveis.
Mas tinha sido o mundo aqui fora que lhe
trouxera Heather.
“Estou virando um filósofo idiota”.Ele
censurou-se, apertando os passos
inconscientemente.”Um apaixonado estúpido ou
qualquer coisa assim. Antes, eu era um idealista, e vivia
apenas para minha arte. Talvez seja hora de rever
alguns conceitos antes que seja tarde demais”.
Entrou no prédio, carregando um saco de
compras do supermercado.O mercado ficava há apenas
dois quarteirões, mas ele estava exausto.”Meu Deus...
Acho que fiquei preguiçoso demais”.
117
Imaginou se não seria melhor um porteiro
para o prédio desprotegido.Por que ninguém tinha
pensado nisso ainda?
”Do que estou com medo?”.
Ele desistiu do elevador e usou as escadas,
para se exercitar mais um pouco.
”Dos outros ou de mim mesmo?”
Subiu o primeiro lance de escadas e se
arrependeu por não ter escolhido o elevador.
”Filosofando de novo! Estou virando um
sentimental. Quando eu chegar em casa vou sentar e
escrever uma música...”, ironizou.
Colocou a chave na fechadura, mas antes que
a girasse para abrir a porta, constatou que estava
completamente aberta, obviamente arrombada.
Entrou na sala de estar com cautela,
observando com atenção.Parecia tudo perfeitamente
normal.Olhou para o computador que ele tinha
118
desligado antes de sair.Estava na tela de proteção.A foto
de Jason Vorhees tornava o escuro da sala ainda mais
sinistro naquele momento.
Percorreu o resto da casa, á procura de
alguma pista do invasor.Estava tudo intacto.
Conferiu o último site acessado.Era a conta de
Joey, no Death of Patience.
Com o coração acelerado, cruzou o corredor
até o apartamento de Heather.
—Você esteve no meu apartamento? — Perguntou,
assim que ela abriu a porta.
— O que aconteceu?— Ela percebeu o nervosismo
dele.Puxou-o delicadamente para que entrasse no
apartamento dela.Ele recusou, levando a mão á cabeça,
num gesto de desespero.
— Você foi ao meu apartamento? — Insistiu, sabendo
que era uma pergunta boba.
— Não, Jos! O que aconteceu?
119
— Alguém esteve lá.
— Invadiram seu apartamento?
— Sim!
— Levaram o quê?
— Nada.
— Não levaram nada?
Ela estava mais confusa do que ele
desesperado.
— Não...Eles...Ele, ele só queria que eu soubesse que
esteve lá.
Ela encarou-o por um instante, agora
assustada.
— Ele quem?
— Eu não sei... — Joshua percebeu que já tinha falado
demais.Não era seguro Heather saber do que vinha
acontecendo.Suas velhas suspeitas voltaram-lhe á
mente. — Parece que alguém gostaria que eu soubesse
de algo.
120
— Isso parece loucura.
— Eu sei. — Voltou para o próprio apartamento, apenas
para conferir a fechadura quebrada de novo. — Talvez
eu seja paranóico, não é? — Ironizou, enquanto ela
também observava o arrombamento.
— Não levaram absolutamente nada? — Ela quis ter
certeza. — Nada de diferente por aqui?
— Meu computador estava ligado.
— Talvez você tivesse esquecido de desligar.
— Não esqueci.Estava no Death of Patience, conectado á
uma conta que não é a minha, com uma senha que eu
não conheço. — “Mas tenciono descobrir”.
— Onde tinha ido?
Heather parecia uma investigadora.Não eram
necessárias tantas perguntas.Não quando ele já tinha as
respostas.
— No mercado. — Apontou as sacolas de compras
esquecidas sobre o balcão da cozinha.
121
— Você precisa acalmar-se. — Ela abraçou-o,
esquecendo-se de sua investigação.
— Tem razão. — Ele disse, sem convicção.
— Vamos almoçar em casa.Depois, vamos á delegacia.
— Não! — Ele disse, perguntando-se por quê almoçar
viria antes de ir á delegacia.
— Estou fazendo lasanha. — Ela contestou, parecendo
indignada.
— Vamos almoçar, mas não quero ir á polícia.
Ela o considerou por um momento, depois
assentiu.
— Está bem, se prefere assim.
—A Polícia não pode fazer nada.Essa não é uma de suas
histórias.
Ela devia ter se ofendido com o tom de
Joshua, pois fechou a cara.
— Além disso — Ele continuou. — Preciso cuidar de
uns assuntos. Deixe o almoço para outro dia.
122
— Certo. — Ela deu as costas para sair.
— Volte mais tarde. — Ele gritou para ela.
Fechou a porta que ela tinha deixado aberta ao
sair, trancando-a com o dobro de cuidado.Talvez sua
própria vida estivesse correndo perigo.Sentou-se ao
computador.Esse Joey já não lhe parecia tão inofensivo
como antes.
Precisava entrar em contato com Filth
Darkness.Odiava admitir, mas ela tinha estado certa, e
ele não lhe dera ouvidos.
Puxou o cadastro de membros e ex membros,
para encontrar o e-mail dela.
“Talvez você tenha razão. Me encontre no
mesmo lugar amanhã, ás três da tarde.”
Ele considerou a possibilidade de ela ter
ficado zangada com o pouco caso que ele
fizera.Imaginou se obteria resposta.Mandou-lhe um
123
novo convite para o Death of Patience.Quem sabe isso o
ajudasse a obter seu perdão.
“Mabel...”, ele procurava lembrar-se de seu
sobrenome, mas talvez ela não tivesse lhe
dito.Consultou a lista telefônica on line, mas era
impossível encontrar Mabel em meio á tantas
Mabels.Havia fábricas, lojas, ruas com nomes
relacionados, mas não parecia estar nem perto de
encontrar o que procurava.Não ignorava também a
possibilidade de Mabel ter-lhe omitido sua verdadeira
identidade.
Recostou o pescoço na cadeira, sentindo-se
exausto e sem saída.Não havia nada que pudesse
fazer.Estava de mãos atadas.E sozinho.
Mais uma vez, tentou rastrear Joey pelo
Death of Patience, sem resultados.O vírus que ele
jogava para o misterioso amigo do site voltava para ele
intacto, como se não houvesse destinatário.
124
“Quem sabe eu estou fazendo uma
tempestade num copo de água”, ele tentou se
convencer.Não acreditava absolutamente nisso.
Capítulo sete
Mabel observava a paisagem passar
rapidamente pelo vidro fechado do carro. Deu uma
olhada pro seu reflexo no espelho retrovisor.Talvez
fizesse algo com seu cabelo. Precisava mudá-lo. Aquele
castanho escuro já tinha cansado. Talvez pintaria de um
preto muito escuro.
Não parecia ter passado muito tempo desde que
Mabel tinha sido internada no Saint Clair.Mas estava
completamente habituada, apesar de seu grupo de
amigos estar resumido somente a Jim.
Naquela manhã, seu pai aparecera fora do dia
de visita.
— Não quero vê-lo.
125
— Não é visita, Srta. Gibbs. — A enfermeira explicara.
— Seu pai veio te buscar.
Emoções confusas encheram seu coração
naquele momento.Ela não sabia se estava contente pelo
pai finalmente ter-se lembrado dela, ou triste por ter
que voltar ao mundo que tinha abandonado.
— Pegue suas coisas e venha. — Ela não tinha escolha.
Era incrível como o pai tinha mudado.Estava
mais magro. Ela sorriu por dentro.Talvez tivesse
sentido sua falta.
— Mabel! — Ele dissera, quando ela entrou na sala de
recepção.Tentou abraçá-la, mas ela recuou. — Já trouxe
suas coisas?
O velho ódio tinha voltado na presença
dele.Ela encarou-o, sem responder.
— Não quero ir embora.
Ele não ficou surpreso. Ela continuou.
— Você não decidiu que é esse o meu lugar?
126
— Parece que você ainda não entendeu. — Ele irritou-
se. — Acha que gostei de ver minha filha internada?
— Claro que gostou.Eu sei que você e sua mulherzinha
riram muito ao me imaginar levando choques na
cabeça.
— Não fale assim!
— Pois fique sabendo que não levei choques!
— Tenha respeito. — Ele levantou a voz. — Sua ingrata!
— Ingrata? Desculpe, eu deveria ter agradecido por ter
me internado num hospício! —Ela ironizava, mas suas
mãos tremiam.
— Eu tive que fazer isso! — Ele baixou a voz quando
viu que os enfermeiros se aproximavam. — Você não
quis tomar os malditos remédios.
— Apenas se esqueça de mim, certo? Tenho certeza de
que não vai ser difícil.
Ela ia deixar a sala, mas ele a impediu.
— Ouça.
127
— Já ouvi demais.Não quero ir embora.
— Você volta pra casa comigo.Não estou te dando
escolha.Vai pegar o que é seu.
Mabel hesitou, mas descobriu-se cansada
demais para continuar aquela discussão.
Colocava as coisas na mala com pressa.
— Está chorando de novo! — Jim exclamou.
— Estou triste de novo, Jim.
—Você sabe que não gosto quando você chora.
Ela segurou a mão dele.
— Eu vou embora.
— Não.
— Preciso ir. Meu pai veio me buscar. Mas vou vir te
visitar.
— Nós não íamos nos casar? — Ela sentiu o desespero
dele, e forçou-se a parar de chorar.Decidiu que era a
pior situação que vivenciava.
128
— Me perdoe. — Ela soltou o braço que ele segurava, e
saiu sem olhar para trás.
— Não me deixe! — Ele ainda tentou, mas ela já tinha
ido.O enfermeiro viera buscá-la.
Estava abandonando a única pessoa que tinha
a amado de verdade.
Charles mostrou o cachorro que tinha
ganhado durante a ausência de Mabel assim que ela
entrou.Ela mostrou-se entusiasmada, depois voltou-se
para Pebble.
— É ótimo estar em casa. — Ela exclamou. — Aqui não
tem camisa de força, nem quartos acolchoados. Ainda
tenho um quarto? Ou vocês o transformaram em um
quarto de brinquedos para Charlie?
O menino riu.Foi o pai que falou.
— Você deve estar cansada.Vai dormir um pouco.
— Vou dormir. Só preciso da minha dose noturna de
Diazepan, certo?
129
Charles seguiu-a até o quarto, com o
cachorro atrás.
— Toby, conheça a Mabel, minha irmã.
Ela pegou o vira lata no colo.
— Prazer, Toby.
— Gostou dele?
— Gostei, mas Toby não é um nome criativo, não é?
— Não?
— Por que não o chama de Esotérico?
— É o nome de um país?
— Não.
— Pode ser isso aí, mesmo.Gostei.
— Ótimo, Charlie, mas vou pro quarto,tenho um monte
de coisa pra arrumar.
— Mamãe esteve arrumando seu quarto enquanto você
viajava.
— Então preciso bagunça-lo.
130
Precisava de um emprego, mudar de casa,
mudar de vida.
Tony veio vê-la na manhã seguinte.
— Como se sente?
— Controlada, querido.Os calmantes me fazem muito
bem.
Ele baixou a cabeça.
— Está mentindo.
— Não me importa.
— Vai ficar brava comigo, não vai?
— Não mais do que com minha claustrofobia recém
adquirida.
— Você era bem tratada lá.
— Foi como tirar férias.
— Sinto muito.
— Todos sentem.
131
Amaldiçoando-se por não ter escolhido uma
carreira no fim do colegial, e arrependendo-se por não
ter estudado mais, Mabel jogou-se na cama,
exausta.Tinham sido lojas, escritórios. Não tinha certeza
se alguém realmente a chamaria para trabalhar.Estava
com a maior esperança na loja de artigos de bebê, onde
a dona parecia ter simpatizado com ela.
Ela pensou em Billy.O que teria acontecido?
Agora ela via que nada tinha acontecido, admitia ter
sido apenas sua imaginação paranóica. E ele devia ser
tão louco quanto ela.
Descobriu um novo convite para o Death of
Patience em seu e-mail. Acessou o site por
curiosidade.Um antigo recado de Billy.Encontrar-se
com ele á tarde.Ele devia ter esperado bastante, e se
decepcionado. Ela riu. Mas outra idéia lhe passou pela
cabeça.Alguma novidade havia
132
Percebeu que começara a tremer.”Será que
Billy ainda está vivo?” Ela desejou que sim.
Bateram á porta.
— Mabel! — Era seu pai, gritando por cima da música
alta. — Dá pra abaixar isso? Não é música, é gritaria!
Era real, tinha sido tudo real.Ela ignorou o
pai. Seu pesadelo poderia estar muito mais perto do que
ela imaginara.
Tentou acalmar-se. Precisava pensar em
alguma coisa, mas pensaria na manhã seguinte. Agora,
ela precisava dobrar a dose de Soroquel.
“Responder: Percebe a ironia? Trocamos
nossos papéis.Antes,era eu que morria de medo,e você
que desacreditava. Não estou desacreditando, Billy. Só
acho que devemos manter a calma, para não meter os
pés pelas mãos.
Capítulo Oito
133
“Vítima Perfeita” tinha postado um vídeo.
Quatro amigos sentados em roda passavam um
revólver de mão em mão. Cada um, na sua vez,
apontava para a própria cabeça e apertava o
gatilho.Roleta Russa. Joshua surpreeendeu-se ao
descobrir que nunca tinha assistido á uma de verdade.
Uma garota loira bonita hesitou em sua vez.
Apontou o revólver para a própria mão, e se aquilo
poderia ser considerado sorte, a bala atingiu-a na palma
esquerda. As outras pessoas não ficaram surpresas, mas
correram para socorrê-la. A garota caiu desmaiada no
chão ,e o vídeo terminou.
“Teria sido mais legal se ela tivesse realmente
acertado a cabeça”, ele comentou para Vítima Perfeita.
”Ou ela é incrivelmente sortuda, ou sabia que a arma ia
disparar.”Incrivelmente estúpida, também”, ele pensou.
Ele postou o vídeo no site.Era o segundo
vídeo aprovado desse membro.
134
“Ainda está vivo?”, Joshua perguntou na
página de recados pessoais de Vítima Perfeita.Tinham
sido postados vários vídeos onde ele era a própria
vítima,mas já não parecia tão perfeita assim.Joshua
imaginava que tipo de confusões o garoto de rosto
censurado se metia,para que lhe submetessem á tantas
“aventuras”.
Um recado de Filth Darkness para ele.
“Data: 05/01/2009.
Hora:03:02hs.
Remetente:Filth Darkness.”
Mensagem: O que está acontecendo? Estive
viajando nos últimos dias.Se quiser, me encontre lá ás
dezenove, amanhã. Espero quer você possa me dar
algumas explicações.”
Ele esperava que ela lhe desse uma luz.
Não seria ele a ajudá-la.
135
Depois da invasão, Joshua tinha ficado
terrivelmente nervoso. Estivera disposto a esquecer o
incidente.Tinha ouvido em algum lugar: Se você não
acreditar, não é real. Nada pode acontecer, a menos que
você acredite que está acontecendo. Ele não aceitaria
que a idéia de Joey ser real e perigoso entrasse em sua
mente,e fizesse um grande estrago emocional lá
dentro.Era apenas uma questão de bom senso e auto
proteção. E Joey tinha sido bloqueado do Death of
Patience.
Exatamente quando Joshua pensava isso,
um novo recado foi postado para ele. Era de alguém
chamado Joey, mas com um endereço eletrônico
diferente.Ele sentiu o coração congelar, mas começou a
ler a ler a mensagem.
“O cheiro de carne humana enchia o
lugar. O detetive Sanders nunca tinha visto em toda sua
carreira nada nem parecido com aquilo. Fez sinal para
136
que o companheiro o seguisse numa turnê pela casa,
seguindo os rastros de sangue. Encontraram o lugar do
crime.Uma garota mutilada estava pendurada pelo
pescoço no chuveiro do banheiro.Era estranho, mas os
lábios pálidos pareciam sorrir.Uma linda garota, ele
pensou. Era realmente uma pena.Quem poderia ter feito
uma coisa daquelas? Mas ele considerou novamente
aquilo que ninguém poderia entender: a mente humana.
Isso tinha que acabar.As pessoas más tinham que ter um
fim.
“Ainda estava submerso em seus
pensamentos, quando ouviu o grito de seu amigo atrás
de si. Antes que ele pudesse virar-se para ver o que
tinha acontecido, foi atingido na cabeça com um objeto
pesado. Estava acabado. Não havia saída”.
Ele controlou-se para não entrar em
pânico.Olhou de relance, insistivamente, para a porta
trancada. Não soube identificar de onde tinha sido
137
tirado o trecho que Joey usara. Ele apagou o recado,
como se esse gesto resolvesse seu problema.
Não poderia ficar parado esperando que o
assassino viesse até ele. Precisava da ajuda de alguém.
Respondeu para Filth Darkness o recado que tinha
deixado pendente.
“Certo. Amanhã, no mesmo lugar, ás
dezenove horas.
— O que você acha? — Mabel perguntou. — A cena
descrita por ele, ou ela, aconteceu? Ou é uma
ameaça,vai acontecer?
Ele balançou a cabeça.
— Não tenho certeza.Temo que se trate de uma ameaça.
Ela suspirou, pensativa.
— Era isso que eu tentava dizer desde o começo...
Por causa disso ela tinha ido parar num
hospício.E quase chegara acreditar que estivera mesmo
138
ficando louca. Não deveria culpá-lo, sabia disso. Ele era
tão vítima quanto ela. Vítima. Essa era uma palavra que
não combinava com sua personalidade.Há muito tempo
que ela deixara de sentir medo. Sentia ódio. Pegaria o
desgraçado de jeito, com as próprias mãos. Pensou no
canivete, e ficou animada de repente.”Não”, ela pensou
contradizendo-se.”Preciso comprar um a arma. Um
revólver de verdade”.
— Ele só fica na ameaça... — Joshua murmurou, mais
para si mesmo do que para ela. —Até agora nada.
Dessa vez ele não se deu ao trabalho de
convidá-la á um restaurante.Os dois andavam pela
calçada.
— O que ele quer, afinal? — Ela perguntou.
— Não sei! — Ela notou o desespero em sua voz. —
Será que ele quer alguma coisa?
— Ele tem que querer algo, certo?
139
— Talvez seja um idiota a fim de nos assustar.Quem
sabe alguém que nós conhecemos.
Ela percebeu que ele não acreditava no que
estava dizendo. Se tratava muito mais do que uma
simples provocação.
— Tem que ser alguém que me conhece.— Ele deu
continuidade ao pensamento. —Conhece Billy.
Ela mataria o imbecil aos poucos.Assistiria
ele morrer, exatamente como ele tencionava fazer com
ela.
“Parece um maldito filme de terror”, ele
pensou.Um clichê perfeito.Era isso que ele estava
vivendo.Quem era a garota ao seu lado? Ele tinha
certeza que não conhecia.Já imaginava o vídeo de seu
próprio assassinato sendo postado no Death of
Patience.Quem aceitaria o vídeo? Mabel era estranha.
Caminhava olhando para o nada, como se sentisse no
140
vento gelado muito além do que ele sentia.Estranha
demais.
— Por onde esteve? —A pergunta soou estranhamente
casual, de uma forma completamente inadequada
naquele momento. — Passou muito tempo sem
responder meus recados.
— Fora da cidade.
— Estava fugindo dele?
— A trabalho.A trabalho, do meu pai. Fui a San
Francisco.Aproveitei para espairecer.
— E conseguiu? Parece assustada ainda.
— Não seja idiota.Não foi por medo.Você não me
conhece.Eu nunca fugiria por medo.
— Você mudou muito desde a última vez que nos
vimos.
— O que acha? Que eu sou uma assassina? Poupe-me,
se eu fosse matar alguém, não seria você.Existem muitas
pessoas que eu escolheria antes. — Ela pensou em Tony
141
e nas pílulas que ela tomara de manhã.Talvez elas
fossem as respostas que Billy procurava para sua
mudança repentina de comportamento.
—Sabe o que acho? — Ela disse,de repente mudando
seu tom.Tinha tido uma idéia.—Devíamos virar o jogo.
— O que quer dizer? — Ele sabia o que ela queria dizer.
— Se ele não vem logo até nós, vamos até ele. — Ela não
esperaria novamente.
— Por quê?
— “Matar ou ser morto”.
— Está blefando.
— Acha mesmo?
— Espero.
— Vamos mudar essa história, Billy, Joshua, ou seja lá
quem você for. — O tom na voz dela começou a assustá-
lo.
— Você é maluca, garota.Onde poderíamos encontrá-lo,
pra começar?
142
— Vamos dar um jeito. Somos tão bons quanto ele. —
Ela olhou bem para ele. — Eu darei um jeito.
143
Parte 2
O Despertar
144
Capítulo Nove
Onze e dezessete. Onze e dezessete e quinze segundos.
Dezesseis segundos. dezessete segundos.Dezoito
segundos. Dezenove segundos.
Nicky observava os ponteiros apressados do
seu relógio de ouro.Desviou os olhos, mas continuou a
contagem mentalmente.Vinte e um segundos.Vinte e
dois segundos.Precisava estar em casa.
Logo seria meia noite.A primeira pontada de
desespero não o surpreendeu.
Teve um estremecimento involuntário e mal
notou que todos na sala olharam para ele.Levantou-se
do sofá de couro preto, talvez apenas uma imitação de
couro, e desculpou-se.
— Vou ao banheiro.
A sala pequena não estava cheia.Seu pai não
tinha tido muitos amigos em vida, e muito menos em
145
sua morte, tão quieta e insignificante quanto ele.Não
tinha sentido a morte do pai, admitiu.Se dissesse que se
sentia triste, ou ao menos, comovido, teria sido
mentira.Simplesmente chegara ao fim. É um mundo
corrosivo.Tudo chega ao fim.
Ele olhou para o seu reflexo no espelho do
banheiro, distraído.Talvez isso fosse lhe causar
problemas, mas ele tinha que ir embora.Onze e
dezenove.Tinha ganhado o relógio do pai quando era
quase um adolescente.Não gostava de ouro.Ouro.O
símbolo do desejo, uma lembrança daquilo que destruía
a humanidade.
“Desculpe, papai”, ele pensou.”Não posso
arriscar minha vida permanecendo aqui”.
— Preciso ir.— Ele sussurrou para a tia, antes de deixar
a casa dela.Sua mãe levantou os olhos reprovadores
para ele.
146
— Dirija com cuidado. — A mulher de olhos bondosos
respondeu, por hábito, ou por falta de ter o que dizer.
Deu uma última olhada para o caixão no
centro da sala, onde outrora tinha ficado a mesinha de
café.Quantas vezes seu pai tinha apoiado sua xícara de
chá sem açúcar ali? Ainda lembrava-se das noites que o
acompanhava, em suas visitas á tia. Ela servia-lhes bolo
e café. Nicky gostava da cobertura de morango que ela
colocava especialmente para ele.Ouvia a conversa dos
adultos sem interesse, então eles voltavam para casa.
Com passos rápidos, ele alcançou o carro, e
saiu na máxima velocidade que a ruazinha escura e
vazia permitia.
Era á noite que eles espreitavam.Á meia-
noite, precisamente. A hora das bruxas.
Espiou os rostos de uma família que andava
pelo bairro.Seus passos eram lentos.Levavam a vida
normalmente, vulneráveis áquela hora.Eles não sabiam.
147
Ignoravam completamente o mais essencial. Nicky
sabia, ele sorriu para si mesmo.E essa era a sua
vantagem sobre o gado.
Em menos de quinze minutos, estava em
casa.
Com as portas trancadas, enfiou-se na cama
de seu quarto sem janelas.Dessa vez , estava sozinho em
casa.Sua mãe demoraria a voltar.
Imaginou o que ela sentia naquele momento.
Seu pai sempre vivera á sombra dela,
esperando uma palavra para tomar qualquer atitude.
Eram poucas as lembranças que ele tinha do pai,
sempre tão distante e calado, sem esperar nada dele.
A vida de Nicky sempre se resumira á sua
mãe. Até que um dia não foi suficiente. Ele encontrou
na Igreja de seu bairro o carinho de pai que ele nunca
teve. Sua mãe não aprovou que ele passasse tantas
horas confinado no pequeno santuário.
148
— É algo criado pelo homem, para o homem. — Ela
dissera, procurando fazê-lo entender. Eles querem seu
dinheiro. Eles querem seu pecado.Não quero mais que
você vá.
Nicky deixou de frequentar as missas.
Descobriu que não era aquilo que procurava.Precisava
de algo mais pessoal, que fosse somente dele.Não
queria dividir Deus com ninguém.Não queria que
alguém lhe dissesse como cuidar de sua alma.Ele
simplesmente sabia.As respostas vinham para ele, sem
que ele precisasse da igreja. Sim, ele tinha tudo que
precisava.
— Está na hora de escolher uma carreira. — A mãe
disse, á mesa da cozinha.
— Psicologia. — Ele disse.
— Psicologia?
— Por que não Medicina? — A mãe sugeriu. — Talvez
você se desse bem na área.Ou mesmo
149
Veterinária.Lembra de quando tratou daquele
passarinho doente?
Nicky empurrou o resto da comida e foi para
o quarto.Sentou-se no canto entre a cama e a parede,
que fazia com que ele se sentisse
protegido.Repensou.Não seria psicólogo.As pessoas
eram assustadoras demais. Muito pior do que a idéia de
abrir um homem morto nas aulas de Anatomia, era
tentar entender a mente de uma pessoa viva.
Não iria estudar.Tinha deixado para trás uma
fase difícil, a fase escolar.Não tinha amigos, pelo
simples fato de que não precisava se relacionar com as
pessoas. Talvez por esse motivo, tinha sido alvo de
chacota dos outros garotos, e agora ele se sentia livre
daquilo.Não toleraria mais provocações de pessoas que
não sabiam de nada. Pessoas limitadas á vida que
podiam ver.
150
Foi ajudante geral em um supermercado,
lavador de pratos em um bar e trabalhou em diversos
escritórios.Tornou-se auxiliar de escrita fiscal em um
estabelecimento de seu bairro.Assim permaneceu,
mantendo sua profissão superficial.
Ele mudou a posição do travesseiro.Por que
estava difícil de dormir? Sentiu-se tentado a pensar
naquilo que fazia seu espírito pesar, a presença
desencarnada de seu pai ali. ”Ele não pode me ver”,
convenceu-se. ”Há um abismo intransponível entre o
céu e a Terra. Impossível para as simples almas
humanas”.
Precisava fazer um cálculo para um cliente,
passou-lhe pela cabeça o dia de trabalho. Ele entraria
em apuros com a justiça, se Nicky não tomasse uma
posição rápida.Suspirou alto.Resolveria aquilo assim
que chegasse no escritório pela manhã. O amanhã lhe
aguardava, e ele estava entusiasmado para começá-lo.
151
Mais do que a burocracia do escritório, ele
tinha muito que fazer.Entendera finalmente para quê
estava ali, qual era seu propósito em vida.
Encontrara o site por acaso, enquanto fazia
uma busca pela Internet.Tinha chegado a hora de
justificar sua existência.
Ele apostava que seria bem divertido.
Naquela noite, Nicky não tinha conseguido
dormir também.Os vídeos tinham provocado seus
sentimentos, o mal iminente assombrando-o como algo
físico.Eram seres humanos.Todos eles.E mesmo assim,
matavam-se uns aos outros, capazes de muitas
atrocidades.Não era para serem semelhantes? Ele não
compreendia.A única coisa que ele sabia era que aquilo
precisava parar.
152
Sentou-se na cama e diminuiu a luz do
abajur.Precisava dormir.As criaturas da noite já estavam
acordando, ele já podia sentir seu cheiro. Não poderiam
atacá-lo se ele estivesse dormindo, pois sua alma já não
estaria no seu corpo mortal.O próprio Platão dissera
isso.O repouso do sono levaria sua alma para outra
dimensão, um mundo que sua mente mortal não
conhecia por enquanto.Um lugar onde o Mal não
existia.
Ali estava ele, acordado, incapaz,
vulnerável.Mas assim que ele fechava os olhos, via os
vídeos em sua mente.Amaldiçoou sua curiosidade,
porque ainda não tinha entendido a que propósito ele
acessara o site. Seu costume era usar seu tempo livre
para vasculhar computadores atrás de senhas, para
derrubar coisas que ele sabia não serem boas, dentro de
uma rede tão abrangente como a Internet. Com apenas
um clique, milhares de pessoas tinham suas mentes
153
invadidas. Com toda habilidade que adquirira com
computadores em sua adolescência desocupada, ele
conseguia fazer grandes proezas.
Imaginava as almas perdidas, aquelas que já
tinham sido levadas pelas criaturas, gritando por
socorro.Uma ajuda que nunca viria, pois elas tiveram
sua chance de escolher o Bem. Ao invés disso,
deixaram-se dominar por pessoas como Billy, o
moderador do site.
Alguns deles tinham cometido suicídio.Uma
das coisas que Nicky menos compreendia.A total
desvalorização da vida, o desprezo pela sua própria
alma. Sem salvação, não haveria misericórdia para essas
pessoas.O que Nicky precisava fazer era ajudar as
pessoas enquanto elas ainda tinham vida.
Ele sabia que a culpa não era dos seguidores
do Mal.Eles eram apenas espíritos fracos.Deixam-se
dominar pelo sangue que corria em suas veias,
154
ignoravam o que realmente eram: Criaturas boas,
inicialmente criadas para o Bem. Mas elas não estavam
preparadas.E logo, suas almas já tinham sido levadas.
Tinha chegado a hora.Se ele continuasse a
guardar tudo o que sabia só para si, estaria sendo
egoísta, cedendo ao medo que insistia em dominar seu
coração.Era um ser humano, também.Cheio de
fraquezas.A diferença era que ele sabia como vencê-las.
Perseverança e coragem. Enfrentar o Mal, encará-lo com
a maior pureza,a melhor arma que ele poderia usar.
Mataria Billy.Entregaria a alma dele aos
espíritos contrários, e salvaria as almas condenadas por
ele.Tinha esperança que com o sacrifício dele, a salvação
viesse para o próprio Billy também. Afinal, Billy era
apenas um inocente, dominado pela sua Natureza
Humana..Quanto aos outros membros do site, o único
que lhe chamara a atenção em especial tinha sido Filth
Darkeness, seu apelido já dizia tudo. Segundo o perfil
155
do moderador, sem sua ajuda o site não teria
acontecido.Ele rastrearia essa pessoa e só lhe daria um
bom susto.Não seria necessário matá-lo.Não queria
derramar sangue á toa.
Escolhera o apelido Joey.
Por um descuido de Billy, Nicky descobriu
que estava lidando com Joshua Dunne.Um boleto tinha
sido esquecido no computador de Billy, e ele tinha
conseguido hackear seus arquivos pessoais.Nicky
admitia ter sido um golpe de sorte, ou puro Destino, o
recibo não estar devidamente protegido como devia
estar entre os outros documentos.Ele sorriu consigo
mesmo.A distração.Um erro humano muito mais grave
do que a maioria das pessoas imaginam.Era por isso
que ele estava sempre alerta a tudo. Joshua tinha sorte
de ter sido ele a pegar um momento de
distração.Conseguira tudo que precisava sem precisar
tentar entrar na sua fortaleza.
156
Era manhã de domingo quando Nicky entrara
no apartamento silencioso.O escuro da sala o
perturbava mais do que qualquer outra coisa.Guardou o
pedaço de arame que usara para abrir a porta no seu
melhor estilo Holdini.Seu coração estava inquieto, ele
tinha pressa de sair dali.Tirou o facão do cinto,
escondido pelo casaco de lã.
Decepcionado, notou que o apartamento
estava vazio.Pensou em esperar até que Joshua
chegasse, mas não conseguiria ficar nem mais um
minuto naquele lugar.Estava com medo, teve que
admitir.A luz do sol entrava pelas venezianas da janela
fechada, projetando sombras estranhas.Precisava salvar
Joshua daquele lugar.Suas mãos começaram a tremer, a
respiração tornou-se irregular.
“Eu preciso ser forte”, ele pensou.”Preciso
fazê-lo saber que estive aqui”. Quem sabe o medo
157
vencesse Joshua e ele desistisse de suas maldades?
Antes que fosse tarde demais.
Ligou o computador.A luz forte pareceu
cegá-lo por um instante.Nicky odiava o escuro, mas não
suportava luzes fortes.Digitou sua senha no Death of
Patience e acessou sua página.Escrevia o recado para
Billy quando a camapinha tocou.Ouviu uma voz
feminina.
— Jos! Está dormindo ainda? — Ela riu. Nicky
observava-a pelo olho mágico. — Jos!
Era uma linda garota. Seus cabelos cacheados e seus
olhos azuis provocaram um anti clímax na
situação.Esperava que ela não viesse a ser outra vítima.
Depois que ela desistiu de chamar, ele
terminou de escrever para Joshua e deixou o
apartamento sem ser visto.
Pensou nos recados desesperados de Filth
Darkness para Billy enquanto entrava no carro.Não
158
seria necessário ter trabalho com ele.Parecia assustado o
suficiente para deixar a vida criminosa.Já tinha dirigido
alguns segundos quando se deparou com um homem
que carregava um saco de compras pela calçada.Ele não
pareceu notar que Nicky diminuíra a velocidade do
carro para observá-lo, apesar da rua estar
completamente vazia.Joshua correspondia exatamente
ao que tinha imaginado.
Viu quando ele entrou no prédio.Já ia abrir
a porta do carro para ir atrás dele, quando se lembrou
do interior do apartamento e do que tinha sentido lá
dentro.Só o pensamento fez suas mãos esfriarem de
novo, e ele recuou, envergonhado de si mesmo.Sentiu
lágrimas quentes descerem pelo seu rosto, sem que ele
pudesse entender.”Por favor, me perdoe. Me perdoe
por eu não ser forte o suficiente agora...”
Ligou a chave do Corsa, o carro de sua mãe,
e arrancou com tudo, sentindo-se frustrado e
159
impotente.Poderia estar com medo agora, mas voltaria e
faria o que tinha que ser feito.
Ainda tentou dar outro alerta para Joshua,
poucas semanas depois.
Mas o site continuou no ar.
Capítulo Dez
Mabel comia os bom bons que tinha comprado no
supermercado perto da casa de Joshua.Eles eram seu
vício, seu doce e maravilhoso vício.
— Servido? — Ela ofereceu, muito tempo depois de ter
começado a comer.
— Não.
— São ótimos. — Ela justificou, enquanto ele puxava
uma cadeira para que ela sentasse ao seu lado, frente á
escrivaninha do computador. — Eu ainda não almocei.
— E pelo jeito nem vai almoçar. — Ele acessou a página
de recados de Joey.
160
— Como conseguiu a senha do assassino?
Incomodava ouvi-la falando daquele jeito.Joey
não era um assassino porque não tinha matado
ninguém. Até onde ele sabia.
— Ele invadiu minha casa, e deixou a senha aqui.
— Nossa....
Ele não entendeu a interjeição dela.Clicou nos
contatos de Joey. Só havia Joshua e Mabel.
O convite devia ter sido roubado.Era difícil,
mas não impossível.
— Não tem como rastreá-lo? — Ela perguntou.
— Não. Ele tem uma conta fantasma.
— Então ele está fora do Death of Patience? Criou uma
conta e deixou que ela expirasse?
— A conta demora vinte e quatro horas para
desaparecer, mas ele excluiu seu endereço de e-mail
também.Não consigo rastreá-lo.
161
— Isso quer dizer que ele não vai mais nos atormentar
no Death.
— Isso quer dizer que ele vai roubar outro convite, e
criar uma nova conta quando quiser.
Mabel tirou o mouse da mão de Joshua para
vasculhar ela mesma o que tinha na conta quase
expirada de Joey.
— Não há fotos, declaração de status, amigos ou
recados. Já tentou descobrir se alguém conhece ele aqui
no site?
— Perguntei para algumas pessoas, mas ninguém faz
idéia.É como se ele não existisse.
—Talvez ele não exista... — Ela murmurou.
— Como será que nos descobriu? — Ele vagueou, mais
para si mesmo do que para ela. — Deve ser um
conservador estúpido.Um religioso, quem sabe.
Ela deu de ombros.
162
— A teoria do psicopata é mais aceitável. — “E mais
interessante.”
A porta trancada do apartamento ameaçou
ser aberta, fazendo com que Joshua levantasse da
cadeira com um pulo.Mabel riu, mas não comentou.
— Quem é? — Ele perguntou, desconfiado, pronto para
pegar qualquer coisa que pudesse servir-lhe de arma.
A voz de Heather respondeu assustada,
também.
— Sou eu, Jos.
Joshua abriu a porta com cautela.
— Você tem estado nervoso demais. — Ela comentou,
entrando no apartamento.Trazia uma bacia de pipoca.
— Tem refrigerante aí?
Heather notou a presença de Mabel na sala.
— Boa noite. — Ela passou os olhos da garota para
Joshua rapidamente.
163
— Essa é... — Ele começou, constrangido. — Essa é
Mabel. Heather, minha namorada.
Mabel deu um sorriso irônico.
— Boa noite, querida.
— Mabel veio aqui discutir comigo sobre... Você sabe. O
incidente.
— Joey. — Heather terminou a frase por ele.
— Joey. — Ele enfatizou.
— Se quiser — Mabel disse. — Pode sentar aí.
Heather deixou a pipoca sobre o balcão da
cozinha.Sentou no sofá.
— Obrigada. Eu sei que posso.
Mabel sorriu, e tornou sua atenção para o
computador.
— Ligue a televisão. — Joshua sugeriu, incomodado por
Heather estar ali. Já era ruim o suficiente que Mabel
estivesse no caso.
Ela não respondeu, nem ligou o aparelho.
164
— Sabe de uma coisa? — Mabel concluiu de repente. —
Acho que essa busca toda não vai nos levar a nada.
— Só agora percebeu isso?
— Precisamos de uma estratégia.
Heather levantou-se para juntar-se a eles.
—Vocês precisam da Polícia, isso sim.
— Não! — Os dois responderam em uníssono.
— Nem pensar. — Mabel concluiu. — E eu já sei o quer
vamos fazer.
Começou a digitar na página de recados de
Joey.Talvez ele voltasse com nova conta antes que essa
fosse expirada. E então, leria sua mensagem.
“Se está assim, tão a fim de aventura, nos
encontre no Bar 29, na avenida principal, sexta-feira, ás
vinte horas.”
Joshua estava perplexo.
— Está louca?
165
— Vamos esperar que ele venha até nós, ou vamos
assumir o controle da situação?
Ele encarou-a por um momento.
— Melhor do que ir até ele, e pedir que nos mate.
— Ele não vai nos matar na Avenida Principal.
Ela assinou o recado e completou:
“Venha até mim”.
Tanto Heather quanto Joshua soltaram uma
exclamação quando ela clicou na irreversível opção
‘enviar’.
—Você é louca! — Ele decidiu.
— Não o suficiente. — Ela sorriu.
Pegou a bolsa e a caixa de bombons.
— Até sexta, Billy.
Capítulo Onze
Mabel apertou o casaco de lã contra o corpo,
gemendo rapidamente. Não havia nada que ela pudesse
166
odiar mais do que o frio. Movia-se lentamente para
frente e para trás. Começava a ficar cansada. Que
diabos, já tinha se passado quinze minutos. Tirou o
telefone celular do bolso para confirmar a hora no visor
digital. A familiar agitação já tinha começado. Estava
ficando nervosa.
Como se fosse necessário, ela voltou-se para
Joshua :
— Estou com frio.
Ele olhou para ela com certa indiferença.
— Eu sei.
Ela suspirou, olhando para a rua iluminada.
— Talvez fosse melhor irmos embora. — Ele disse.
— Vamos esperar.
— Você quer que ele venha ?
Ela deu de ombros.
— Não foi para isso que viemos ?
— Acho que sim... — Ele afirmou vagamente.
167
Um casal de namorados passou por eles.
Andavam de mãos dadas, envolvidos numa conversa
empolgada. Ela notou que o cabelo do garoto era
exatamente da mesma cor que o da garota, um
vermelho irritantemente vibrante. O mais estranho era
os dois terem o mesmo comprimento de cabelos,
usavam jeans e camiseta solta, apesar do frio.
— Almas gêmeas... — Ela voltou-se para Joshua, que
observava o movimento da rua, sem parecer olhar nada
em específico. — Acha que vai encontrar sua alma
gêmea ? Seu outro eu, sua outra metade, ou o que quer
que você chame isso?
Ele foi arrancado de seu devaneio,
prestando atenção á ela pela primeira vez. Pensou em
Heather sem querer, e sentiu–se constrangido por isso.
— Eu vou esperar.
— Cansei disso... Acho que vou desistir.
Joshua ficou confuso.
168
— Vai desistir de esperar por Joey?
— Pela minha cara metade.
— Ah, certo.
— Desistir... — Ela pronunciou a palavra de forma
poética, mas sem que houvesse algum sentido real
naquilo. — Por Joey ? — Ela riu ,como se só agora
tivesse ouvido o que ele falou. — Estou quase
desistindo disso também...
Ele consultou seu relógio de pulso.
— Só mais cinco minutos. — Ele advertiu.
— Certo...
Mabel voltou a balançar o corpo,
ocasionalmente soltando um gemido de frio. Joshua
estava se irritando com a impaciência da menina, mas
não disse nada. Esperaria apenas cinco minutos. Olhou
no relógio. Quatro minutos, agora.
Estava assustado , ele admitiu a si mesmo. Mas
talvez, com a falta de Joey ao encontro, ele se
169
convencesse de que estava tudo bem. Respirou fundo.
Ele não viria.Três minutos.
Pelo canto do olho ele viu Mabel consultar o
relógio de seu celular de novo. O que estaria pensando?
Não parecia se sentir ameaçada. Pelo menos naquele
instante. Mas ela era tão inconstante quanto sua mãe.
Era estranho pensar em sua mãe naquela hora.
Dois minutos.
E se Joey aparecesse? Com esse pensamento, o
coração dele gelou. O que faria então? Pior, o que Joey
faria? Uma sucessão de filmes de terror que tinha visto
nos últimos anos invadiu seus pensamentos, mas ele
tratou de afastá-los. Joshua correria no momento que o
visse? Era o mais provável naquele momento. Talvez o
mais sensato a fazer.
Estava louco. Deveria ir embora. Por que
viera, afinal? Culpa de Mabel! Não devia ter vindo.
Um minuto. Seu telefone celular tocou.
170
— Alô? — Atendeu hesitante, reconhecendo o número
no identificador de chamadas. A ligação vinha de sua
casa.
— Billy? — Perguntou a voz tão hesitante quanto a sua,
em um tom de ingenuidade levemente forçada. Ele não
respondeu. Soube imediatamente do que se tratava.
Joey não viera. Pressentiu que algo de bem pior estava
para acontecer. — Está me esperando há muito tempo?
— Como Joshua permaneceu mudo, ele prosseguiu. —
Bom, se ainda estiver me ouvindo, estou na sua casa.
Venha até aqui se juntar com a gente. — Ele fez uma
pausa. — Conheci Heather, sua amiga.
Mabel arrancou o telefone da mão de Joshua.
Ele tinha consciência de ainda estar imóvel, mas agora
muito mais desesperado do que assustado.
— Quem está falando? — Ela quase gritou. –— Onde
está, seu covarde? Por que não vem até aqui?
Ele já tinha desligado.
171
— Por que esse idiota não veio?
— Ele... — E se algo terrível tivesse acontecido? Sentiu
que já começava a chorar. Precisava ver Heather,
abraçá-la, ter certeza de que ela estava bem. E de que
tudo ficaria bem.
— Ele o quê? — Mabel estava gritando ao seu lado. —
Pára de chorar, bichinha, e me fala logo, pelo amor de
Deus!
— Ele está em casa! — Joshua gritou de volta. — Na
minha casa! E disse estar com Heather!
—Ah meu Deus !
— O que vamos fazer agora? — Ele disse, de forma
vaga.
Joshua se decidiu antes que ela pudesse
responder. Voltaria ao apartamento.
— Chamar a Polícia seria idiotice, saiba disso. — Ela
disse, com medo do que ele pretendia fazer.
172
— Não tenho a menor intenção de chamar a polícia. —
Ele respondeu, rispidamente.
— Graças a Deus ! O que pretende fazer, então?
Ele tirou o revólver recém comprado do bolso.
Nunca tinha usado uma arma antes. Estendeu para
Mabel.
— Acho que isso vai ser útil. — Ela sorriu, pegando a
pistola 9 mm parabellun. Finalmente se encontraria com
o responsável pelos dias mais agonizantes de sua vida,
seus dias de manicômio. Numa espécie de anti-clímax,
ela pensou em Jim, e onde é que ele estaria. Era pouco
provável que tivesse deixado o Saint Claire.
Chegaram numa rapidez incrível. Joshua entrou
no prédio, não se sentindo mais tão confiante quanto
estivera durante o caminho. Os seus sentimentos eram
instáveis, e ele adoraria poder acordar logo daquele
pesadelo maluco, pois tinha certeza de que não era real.
Ou pelo menos não podia ser.
173
Ele olhou para Mabel com a arma na mão e
reconsiderou se devia deixar a pistola nas mãos daquela
inconsequente.
— Eu fico com isso. — Ela afirmou, como se lesse seus
pensamentos.
Avançaram pela portaria sem vacilar dessa
vez.
— Elevador? — Mabel perguntou, quando ele começou
a subir as escadas. O prédio escuro despertava um mau
pressentimento nela.
— Não. — Ele disse simplesmente, correndo pelos
degraus, subindo-os de dois em dois. Ela entendeu que
seria mais rápido se corressem pela escada, e esperava
que ele estivesse certo.Tempo era algo que eles não
teriam certamente. Ou talvez sim, ela ponderou
novamente. Psicopatas gostavam de fazer tudo devagar.
Estremeceu sem ter certeza se era de medo, e apertou a
arma com mais força.
174
Joshua precisava ser rápido, chegar ao
apartamento antes que fosse tarde, perdesse a coragem.
Se sua capacidade de pensar naquele momento o
surpreendia, seus sentimentos confusos e vacilantes
entre coragem, raiva, e um medo profundo, tanto pela
própria vida quanto pela de Heather, o deixavam ainda
mais nervoso.Sentiu-se grato por ter Mabel com ele
naquele momento.Ela parecia muito mais forte do que
ele.
Passou-lhe pela cabeça que ela estivesse
esperando esse momento chegar. Sua determinação
demonstrava isso para ele, e entendeu que era
exatamente para isso que ela armara tudo. Não se
tratava de nada a mais do que uma vingança pessoal.
Mas não havia tempo para sentir raiva agora. Já haviam
alcançado o andar de seu apartamento.
— Pronto? — Ela disse, preparada para entrar no
apartamento destrancado.
175
Antes que ele tivesse chance de responder, ela
abriu a porta, fazendo um barulho desnecessário.
— Apareça, miserável! — Ela xingou debilmente.
— Não fale alto. — Joshua murmurou para Mabel.
Prendendo a respiração, ele entrou no
apartamento atrás dela. Ela chamou-o do corredor que
os levava da sala para o quarto.
Mal ele pôde reconhecer o pedaço de carne
jogado no chão, envolto em um lamaçal de sangue.
— Ah Deus, isso não pode ser real! — Ela disse.
A verdade era que Mabel estava mais fascinada
do que amedrontada ou horrorizada. Parecia um filme,
ou um dos vídeos do Death of Patience. Na parede
estavam rabiscadas palavras ilegíveis, escritas com
sangue. O lugar estava escuro, e isso dificultava ainda
mais a leitura das palavras.
Joshua estava gritando.
— Heather! Onde você está?
176
Mabel entrou no quarto, e estacou na porta.
Pôde perceber Joshua parado atrás dela.
— Finalmente chegaram. — Disse o homem com uma
faca na garganta de Heather, enquanto ela dava gritos
abafados sob um pano que servia de mordaça. —
Demoraram mais do que eu previa !
— Desgraçado! — Mabel gritou, apontando a arma para
ele.
— Não faça isso. — Joshua disse á ela quase
ameaçadoramente, prevendo a reação de Joey. O
homem sorriu, como se esperasse sua intervenção.
— Solte-a ou vai ser pior pra você.— Joshua murmurou.
— Pior pra mim? —Ele ensaiou uma risada. — Não vejo
como isso poderia ser pior para mim do que para ela.
— Eu vou chamar a polícia!
— Eu sei que você não vai fazer isso. — Ele declarou. —
Não vai fazer porque sabe que é tão criminoso quanto
eu.
177
— Você não sabe de nada! Solte-a agora!
— Está dizendo palavras vazias. Sabe que não vou
soltá-la.
— Eu não entendo... O que quer de mim?
— Você me chamou de psicopata, certo? Você não acha
que isso é hipocrisia?
— O que você quer de mim?
— Você matou muita gente, Joshua.Mesmo sabendo que
sua vez chegaria.
— Você é louco! Não matei ninguém!
— Sabe do que estou falando! — Ele quase gritou,
obviamente perdendo a paciência. —Você escreveu que
odeia as pessoas hipócritas. Eu testemunho sua
hipocrisia contra você mesmo. Lembra-se do escreveu
no home do Death of Patience? Isso me fez pensar por
muito tempo.
178
Joshua lembrava-se do que escrevera logo no
começo do Death of Patience, quase como uma
justificativa por estar fazendo aquilo.
Você odeia o ser humano tanto quanto eu?
Não apenas um ser humano em particular, mas todos
como a raça hipócrita que são. Eles criaram algo muito
bom chamado de sociedade. Entende o que isso
significa? Supostamente, era pra todos serem iguais,
terem uma qualidade de vida estável e suportável. Isso
não acontece. Não acontece por que todos nós queremos
ser melhores. Eu serei melhor do que você, e tem
alguém querendo ser melhor do que eu.Não pensamos
que — digo isso com o prazer de usar um clichê
popular, o que enfatiza a minha idéia de hipocrisia —
Vamos todos morrer um dia, e não levaremos nada com
a gente. Absolutamente nada. É nessa parte que eu
entro... — Nós começamos todos do mesmo jeito,
exatamente. Nascemos, fomos criados por nossos pais,
179
aderimos seus costumes e formas de se portar nesse
mundo. Depois aprendemos a pensar por conta
própria, e passamos, de uma forma ou de outra, a
questionar o que havíamos aprendido.Mas não
mudamos muita coisa. Aliás, não mudamos
praticamente nada. As pessoas são diferentes, mas
pensam exatamente igual.Depois, nós construímos
nossas famílias, julgamos que conhecemos o amor e de
fato o possuímos. Temos filhos, e os ensinamos o que
tínhamos aprendido. E então morremos. Mas por que
morremos? A resposta é sempre a mesma: Porque é
assim que deve ser. Certo, não estamos aqui para
questionar por quê coisas acontecem. Estou apenas me
defendendo.
Você pode estar achando isso tudo uma
baboseira sem nexo, mas talvez você entenda quando eu
explicar.
180
Li uma matéria interessantíssima em uma
revista há alguns anos atrás. Ela me chamou muito a
atenção, embora só comprove o que eu sabia há muito
tempo. Ela dizia que o ser humano sente prazer na
desgraça alheia.
Inocentes. Somos inocentes quando ficamos
sabendo que nossa vizinha de dezoito anos sofreu um
terrível acidente de carro e perdeu os movimentos,
ficará numa cama para o resto de sua vida. E por mais
que queira ficar triste por ela, estamos felizes por não
ter sido com a gente ou com as pessoas que
supostamente amamos.
Por que você assiste o jornal das sete todas as
noites, se sabe que ele só vai relatar as tragédias de sua
região?
Confesso que já parei para pensar no porquê de
eu ligar a TV e só ouvir aqueles apresentadores bem
arrumados e com cara de indignados falarem dos
181
absurdos de nosso cotidiano. Eu consegui a resposta
que me satisfez. Entretenimento. As redes de televisão
dão aos telespectadores o que eles querem.
Veja bem: suponhamos que sua mãe ou sua
namorada, pense em alguém real que você conhece,
entre aqui e veja um dos nossos vídeos. Ela vai dizer
que você é louco por aceitar isso.Vai chamar tudo isso
de loucura. Eu chamo de tragédia viciante.
Bom, espero que tenham entendido, e se sintam
pessoas normais por estarem aqui, fazendo parte do
Death of Patience.
Lembre-se de que a morte é tão natural quanto a
própria vida, não importa como ambas sejam.
— Isso é ridículo! — Joshua disse. — Não faz sentido!
— Se você fosse um pouco mais paciente eu poderia te
explicar. — Ele replicou, como se falasse com uma
criança.
182
— Não quero entender droga nenhuma! Solte ela,
maluco da po... !
— Espere, chamei você aqui para conversar como os
seres humanos decentes que somos. — Respirou fundo.
— Entendeu o que eu disse sobre sua própria hipocrisia
? Vamos lá... Bem, o que sente agora?
Como ele esperasse resposta, Joshua procurou
o auxílio de Mabel. Mas ela parecia tão perdida quanto
ele.
— Apenas responda minha pergunta. — Joey insistiu.—
Não se parece com sua retórica, parece?
— Não sei! — Ele disse, sem pensar.
— Medo? — Ele sugeriu, encostando ainda mais a faca
no pescoço de Heather , que soltou outro grito abafado.
— Um amor tão sincero por ela que nunca achou ser
capaz de sentir ?
183
— Não sei... — Ele sentiu que começava a chorar, uma
enorme vontade de abraçá-la, livrá –la daquela situação.
— Por favor...
— Vergonha? Culpa? — Joshua não respondeu.
Não se sentia culpado.
Tinha escrito sobre isso uma vez. A mãe de
um garoto suicida entrara no Death of patience, e
deixara um recado para ele. Ela o culpara pela morte do
garoto.
A tragédia está em todo lugar. Ele
respondera. A única coisa que eu faço é trazê-la até
mim.
Depois ele excluíra a conta, sem deixar
vestígios.
— Sente culpa?
— Não! — Ele fez um esforço para parar de chorar.
184
— Sabia que as lágrimas são uma forma de
manifestação de tristeza exclusivamente humana? —
Ele sorriu. — Acha isso irônico?
— Pare com isso! — Mabel interveio finalmente. — É
ridículo você bancar o maníaco romântico.
Ele olhou diretamente para Mabel, obviamente
se sentindo contrariado com sua declaração. Balançou a
cabeça, irritado, como se tentasse arrancar algo de
dentro dela. Ela continuou.
— Sei muito bem o que significa uma ter uma mania
das boas, imbecil.
Ela achou estranho falar da própria doença
que tanto discriminava e nem sempre admitia ter. Ele
pareceu ter-se ofendido, e levou a mão á cabeça,
novamente como se tentasse afastar um inseto dentro de
sua mente.
— Não! Não! — Ele gritou sem que fizesse sentido.
185
— Isso não interessa! — Joshua esbravejou, olhando
para a mão decepada de Heather, e seu rosto pálido.
Sabia que ela não resistiria por muito tempo. — Eu faço
o que você quiser. Mas solte-a, por favor! — As palavras
ficaram presas em sua garganta, e ele sentiu toda a
irrealidade do momento. — Se não deixá-la ir agora ela
vai morrer.
Mas Joey não parecia mais interessado. Tinha o
olhar parado, perdido em algum ponto do assoalho sob
seus pés. Seus olhos encheram-se de lágrimas e ele
voltou-se para Joshua com o olhar distante.
— Agora você entende o que está fazendo? Está tirando
vidas. Está matando a pobre moça. Oh Deus! — Ele
esfregou a testa com a mão desesperadamente. — Está
me matando !
Ele voltou a fixar os olhos no chão, mas agora
insinuava um sorriso.
186
— Então, Billy? — Ele deu um suspiro como
consequência do choro que tinha terminado.— Está
pronto para trocar sua vida pela dela?
— Por favor, não... — Ele olhava para Heather, ciente
de que estava chorando. Ela tinha perdido a
consciência. — Resolveremos isso..
— Agora. — Ele interrompeu com um grito. — Dê sua
vida por ela agora! — Ele movia a faca de um lado para
o outro do pescoço de Heather. Acrescentou, em voz
quase inaudível: — Agora...
— O que você quer que eu faça? — Ele perguntou
hesitante.
— Venha até aqui.
Joshua olhou ao redor. Há algumas horas era
seu quarto, sua casa. Agora, lhe parecia um lugar
completamente desconhecido. Mortal.
Heather abriu os olhos. Transmitindo a dor
que sentia, olhava diretamente para Joshua. Ele desviou
187
os olhos dela, envergonhado pela culpa daquilo que ele
não faria por ela.
— Venha até aqui! — Ele repetiu, impaciente.
Joshua negou com a cabeça.
— Agora! — Ele disse, dando um grito estranho e
abafado, parecido com um grito de dor. Seus olhos
novamente molhados se perderam no chão.
Mabel já se cansara disso. Olhou para
Joshua. Ele não parecia disposto a tomar uma atitude,
De qualquer forma, já era hora de fazer
alguma coisa. Segurou o cabo da arma com mais força e
levantou-a, atirando no mesmo momento. Sua
experiência anterior com armas de fogos tinha sido aos
quatorze anos, quando seu tio a levara á academia
policial onde trabalhava como militar e a ensinara a
atirar. Mas ela havia se esquecido do quanto era forte o
impacto quando a bala do revólver era disparada.
Quase caiu para trás.
188
Não acertou. Mesmo que tivesse pegado-no
de surpresa, a bala passou cerca de quinze centímetros
de distância de seu corpo. Ele passou a faca no pescoço
de Heather.
Joey ficou hesitante por um segundo, depois
correu pela porta do quarto. Mabel tentou acertá-lo
mais uma vez, sem sucesso.A bala passou á uma
distância considerável dele.
— Deus! — Joshua exclamou, correndo na direção do
corpo sem vida de Heather.
Soltou as cordas que prendiam os braços dela
na cadeira, reconhecendo-as como suas. O assassino
pegou-as na pequena despensa quase escondida e
inutilizada do apartamento. Deviam estar esquecidas lá
há muito tempo, já que ele nem se lembrava de quando
ou para quê as usara pela última vez.
189
— Heather... — Ele chamou baixinho, sabendo ser
inútil.Tirou a amordaça da boca dela, sujando as mãos
de sangue.
Recuou, forçado a admitir que estava tudo
perdido.Chegou á sala e sentou-se no chão, as mãos no
rosto e os cotovelos apoiados nos joelhos.A porta da
frente tinha sido deixada aberta por Mabel quando ela
correu atrás de Joey.
Heather estava morta. “Está chegando em
você “
Poucos segundos depois, Mabel reapareceu,
tomando fôlego.
— Não consegui alcançá-lo. — Ela declarou. — O que
faremos, agora?
Ele levantou-se sem se preocupar em enxugar
os olhos.Sim, ele repetiu mentalmente.Heather estava
morta e a culpa era inteiramente daquela vadiazinha á
sua frente.
190
— Não há mais nada que possamos fazer. — Ele
respondeu, num fio de voz. —Nada mais...
Mabel correu até o quarto, deparando com a
cena que não tinha visto antes de se lançar á
perseguição dentro do pequeno prédio. Ela tinha
parado na rua quando percebeu que ele era muito mais
rápido do que ela, e naquele ritmo ela não o alcançaria
nunca.
— Ah Heather... — Ela murmurou, autenticamente
pesarosa. Pensou: — Joshua ainda vai ficar arrasado por
muito tempo...
Voltou á sala.
— Eu sinto muito. — Disse.
Ele não respondeu.
Bem próximo, o som de uma sirene de polícia
fez-se ouvir na sala escura.
— Veja só... — Joshua murmurou, num
sensacionalismo irônico. — A polícia.
191
Ela sentiu a afirmativa como uma
acusação.Ele não seria tão idiota em culpá-la pelo que
acontecera.Seria?
Pareceu passar horas até que a polícia
chegasse.Mabel pensava se ficaria ou simplesmente
daria o fora.
Os policiais entraram.
— No quarto. — Mabel apontou, tomando a dianteira e
conduzindo os oficiais até lá.
Dois policiais ficaram na sala de estar.
— Pode explicar o que aconteceu aqui? — Um deles
perguntou a Joshua.
— Ele é louco...
O outro policial, um negro alto e de dentes
muito, quase exageradamente brancos, disse, enquanto
mastigava um chiclete ruidosamente.
— Quem? — Ele olhou ao redor como se procurasse por
ele.
192
Joshua deu de ombros, olhando para o policial
com um sorriso triste.
— Ele disse que o nome dele era Joey, mas quem pode
saber?
Um dos policiais gritou do quarto:
— Há um verdadeiro massacre aqui, J.
— Ambulância. — Pediu um dos policiais, ao telefone.
— Prédio Esperança, quinto andar, apartamento 23.
Assassinato.
Mabel sentou-se ao lado de Joshua.
— Acho que vão achar que fomos os responsáveis. —
Falou, em tom baixo, mas alto o suficiente para que o
policial negro a escutasse.
Joshua não respondeu. Um dos guardas disse:
— Queiram me acompanhar, por favor.
Joshua levantou-se, seguindo-o até a porta.Deu
uma última olhada na direção do quarto, mas de sua
posição não pôde ver o corpo de Heather.Lembrou-se
193
da primeira vez que ela viera ao apartamento, para
pedir ajuda com as mudanças.Gostaria que isso nunca
tivesse acontecido.Relutava em admitir que não via
coincidência alguma nas sequências dos fatos ao longo
dos últimos dois anos.
O mais estranho era que já não sentia mais
medo, dor ou tristeza. Sim, é claro que deveria sentir
alguma coisa.Devia estar morto, pois não era capaz de
sentir nada.
Capítulo Doze
A delegacia estava apinhada. A
recepcionista não parava por um segundo
sequer.Atendia ligações, digitava no computador, e
tentava acalmar uma senhora histérica que chamava por
sua filha.Sem dúvida,a jovem e recém formada policial
teria um colapso a qualquer minuto.
194
Mabel ouviu parte da conversa de pessoas que
discutiam quase animadas sobre um assalto acontecido
há poucas quadras dalí.Aguardavam também, e
gesticulavam muito. Cada uma contava a parte que
tinha testemunhado.Diziam que o assaltante tinha se
desesperado ao invadir uma das casas da 52 Boulevard.
O alarme começou a tocar. Ele disparou contra todos
que estavam na rua, uma quantia de pessoas
considerável. Muita gente tinha saído de suas casas para
ver o que tinha acontecido na grande e reservada
mansão, cujos donos eles nem ao menos conheciam.
— Foram cinco baleados. — Disse um gorducho careca,
também naquele tom de quem assistiu a um
horripilante filme de terror, e tem ansiedade de contar
aos amigos o que tinha visto. — Parece que já morreram
dois.
O sofá de couro preto era desconfortável. Talvez
isso fosse proposital, ela pensou.O desconforto podia
195
causar certa pressão nas pessoas que aguardavam
ali.Testemunhas ou criminosos, eles pensariam bem
antes de mentir e complicar as situações policiais,
correndo o risco de terem que aguardar novamente.
”Oh, eu não matei Ted”, diria o acusado. ”Não
matou?Aguarde um momento mais,vamos checar se
sua declaração é verdadeira. ”Ela ajeitou-se, trocando as
pernas de posição.Já estava ficando cansada de esperar.
— Não morreu ninguém por enquanto. — Disse o
interlocutor do baixinho,um homem alto e grisalho, que
usava chinelos e bermuda, provavelmente saído da
cama ao ouvir a confusão na vizinhança. — Não
morreu ninguém, ainda. — Ele enfatizou sua afirmação,
com ar de quem entende do assunto.
— Minha nossa... — Exclamou o Gorducho, pensativo,
acariciando a barba grisalha.— Como isso foi acontecer,
assim, tão perto de nós e das nossa famílias?
196
— E sempre pensamos que nunca vai acontecer com a
gente... — Disse o outro.Mabel sorriu intimamente.Os
seres humanos são todos iguais. — O que será que
acontece com uma pessoa assim? O que se passa por sua
mente numa hora dessas?— Disse, com ar reflexivo,
sem realmente esperar resposta.
— Deve ser algum tipo de maníaco, psicopata.
— Matar assim... por nada.
Mabel percebeu que Joshua ouvira a conversa
e recomeçara a chorar.Ela interrompeu os dois homens,
que se voltaram pra ela, surpresos com sua intromissão
— Ele matou para defender seus próprios
interesses.Talvez sua própria vida.
O Gorducho pareceu disposto a discutir o
assunto com Mabel.
— Ele queria dinheiro, garota.
— Seu amigo disse que ele matou por nada. — Ela
referiu-se ao Grisalho, que agora tinha um ar
197
zombeteiro, e dava um meio-sorriso na direção dela. —
Se ele matou por dinheiro, foi por alguma coisa, certo?
— Por uma coisa completamente sem valor, menina. —
Ela notou que ele usava a palavra menina para lembrar-
lhe que ela era mais jovem do que ele, portanto, menos
experiente.
— De qualquer forma,o motivo é real, ele existe! Acho
que vocês, humanos, julgam demais.
— Talvez você esteja certa. — Disse o Grisalho, olhando
diretamente para ela. — Ele teve um motivo. Ainda que
um motivo nada justo, um motivo. Mas e as pessoas que
matam por prazer?
Ela sorriu.
— Então o motivo será o prazer.
— Considera isso um motivo? — O Gorducho
perguntou, perplexo.
198
— Talvez não um motivo justo. — O Grisalho
respondeu por Mabel. — Mas ainda assim um motivo,
não é? — Ele buscou a confirmação dela.
— Pode não parecer justo pra você.
— Parece justo pra você? — Ele perguntou..
— Depende...De qualquer forma, pelo que ouvi dizer,
esse tal assassino não matou por dinheiro.Mas por
medo.
— Sim. — O Grisalho concordou. — De certa forma.
— Sua intenção era de início assaltar a mansão.Roubar
de ricos...
— Não justifica. — Disse o baixinho gorducho, um tanto
nervoso.
— Não quero bancar a advogada do diabo, e de
qualquer forma, justificar o tal assassino.— Ela sentiu-se
defensiva.
— De uma forma estranha. — Admitiu o Grisalho. —
Entendo o que quer dizer.
199
— Acontece — Ela prosseguiu o raciocínio. — Que ele
teve medo. Matou por medo. Talvez nem tivesse tido
intenção de matar.
O gorducho fez sinal de ‘besteira’com a
mão. O Grisalho riu.
— Acha mesmo que ele não teve a intenção de matar?
— Desafiou o Gorducho. — Acredito que não passa de
um psicopata!
— Pode ser... — Reletiu o Grisalho, olhando mais
atentamente para Mabel. Voltou-se para o Gorducho. —
Talvez até o advogado dele alegue insanidade na hora
do crime.
— Todos somos doidos de vez em quando.O problema
é qual será a intensidade e a frequência que a loucura
virá.— Ela concluiu.
— O que fez para estar aqui? — Ele perguntou, mas ela
não sentiu acusação na pergunta.
200
— Sou suspeita de assassinato com requintes de
crueldade.
Ele sorriu, e ela sentiu algo como
desconfiança naquele sorriso.
— E você é uma assassina ?
Ela decidiu que gostara dele.Tinha algo nele
que lhe chamara a atenção, sem que ela pudesse
identificar exatamente o que era.Uma pena que aquela
fosse a primeira e última vez que o veria.
— Não. — Ela respondeu, com um sorriso direto para
ele. — Pelo menos até que provem o contrário.
Um policial chamou o nome de Mabel.Era
hora de ir á sala do delegado depor, sua vez de explicar
cada detalhe de seu próprio filme de terror.
Ela não se despediu dos dois homens, mas
percebeu que o Grisalho a acompanhou com os olhos
até perdê-la de vista.
201
Aguardando sua vez de ser chamado, Joshua
ponderava se tudo o que tinha acontecido não passaria
de um sonho. Lembrava-se com clareza de um pesadelo
que tivera quando ainda era menino. Sonhara que tinha
ouvido gritos vindos do quarto de sua mãe. Ele
levantara-se da cama, e saíra do quarto que dividia com
seu irmão mais velho. Apesar dos gritos serem
altíssimos, a ponto de explodir os vidros da janela — ou
teria sido o vento tempestuoso que o fizera? —Albert
não acordara. Joshua seguiu hesitante pelo corredor que
o levaria ao quarto de sua mãe, mas estacou no meio do
caminho.De onde estava, ele conseguia ver o corpo
ensanguentado dela, refletido no espelho. A porta tinha
sido deixada aberta. Ele recuou, e começou a
gritar.Alguém invisível começou a sacudi-lo pelos
braços.Ele abriu os olhos e deparou-se com Albert, de
expressão preocupada.Levantou-se da cama, sem se dar
202
ao trabalho de responder ao irmão se estava
bem.Correu ao quarto da mãe, e abraçou-a.Ela deveria
ter ficado sem entender, pois, envergonhado, ele
recusou-se a explicar o que tinha acontecido.Decidira-se
então a nunca mais assistir escondido aos filmes do
irmão mais velho.
Joshua sorriu consigo mesmo.Quando
pequeno, estava proibido de assistir filmes de terror.
Mas Albert era um verdadeiro fã do gênero e assistia a
todos que saíam do cinema — Por ser menor de idade e
não poder entrar desacompanhado nas salas escuras.
Joshua escondia-se então no topo da escada da sala de
estar, oculto pelas sombras. Dalí ele conseguia assistir
tudo pelo reflexo que a televisão fazia no vidro
espelhado da janela sem cortina.E então, tinha
pesadelos...
Talvez fosse isso, ele disse para si
mesmo.Quem sabe ele não acordaria a qualquer
203
minuto, só que dessa vez em seu apartamento solitário?
Teve vontade de fechar os olhos com força.Teve
vontade de abrir um buraco na própria mão utilizando
apenas a caneta esquecida sobre a mesa da
secretária.Queria matar Joey.Queria matar alguém.
Mabel voltou da sala do delegado, e Joshua
não teve idéia de quanto tempo tinha se passado desde
que ela abandonara aquela conversa estúpida e
completamente sem sentido, com dois desconhecidos.
Ele foi chamado para depor.
Antes que ele seguisse o guarda
uniformizado que o guiaria , Mabel abraçou-o pelos
ombros.Ela disse, numa voz audível apenas para ele.
— Não sabemos o que o assassino queria com nós ou
com Heather.A primeira vez que o vimos foi hoje.
Estamos tão confusos quanto eles.
Ela largou-o e disse numa voz chorosa:
— Vai com Deus, Jos. Tudo vai ficar bem.
204
Assim que ele entrou na sala, o delegado
pediu que ele se sentasse. Era magro, porém forte.Tinha
olhos azuis apagados, e o nariz levemente torto.Sua voz
não combinava com sua aparência. Fina demais para
um homem com aquele porte.Joshua poderia tê-la
achado engraçada.
— Então — Ele começou. — Pode me dizer o que
aconteceu? — Ele não esperou resposta. — Por que está
aqui, sr.Dunne?
Joshua reparou que o delegado não tinha
fotografias de sua família em sua escrivaninha, e por
algum motivo, ficou decepcionado.Talvez ele quisesse
evitar que os criminosos vissem sua família.Claro, fazia
sentido a ausência de fotografias naquela sala triste. Ou
então o motivo pudesse vir a ser outro.O delegado não
queria que seus visitantes soubessem que ele também
era humano...
Vai ver o delegado não tivesse família.
205
Ele demorou a responder.
— Eu saí de casa...Acho que passava das sete... Acho.
A porta abriu-se.Um homem de
aproximadamente quarenta anos entrou.Vestia uma
camisa social, mas combinava-a com tênis e calça
jeans.Parecia um pouco cansado.
— Teria sido melhor esperar por mim, Gerald. — Ele
declarou, mais animadamente do que sua aparência
parecia permitir. — O trânsito — Ele justificou, mais
para Joshua do que para o delegado. — Crews está
vindo. — Ele riu. Pedi que estacionasse o carro para
mim. — Tomou a cadeira ao lado de Joshua. Exclamou:
— Puxa, que frio!
— Acredito que vá esperar seu colega para entrevistar
o Sr. Dunne.
— Oh sim, claro.
— Então faça o favor de fazê-lo em sua sala.
206
O homem que Joshua identificara como o
detetive levantou-se da cadeira.
— Certo, excelência. Só vim para cá porque Maggie
disse que você estava com nosso prezado amigo.
— Estava lhe adiantando um favor, Hooper.Achei que
não pudesse vir mais por hoje.Você e Crews.
— Estou absolutamente ciente disso. — Fez um sinal
para que Joshua o seguisse.
Joshua obedeceu.O detetive Hooper o levou
até sua sala.Era muito menor em relação á outra. Ficava
quase escondida no final do corredor principal da
delegacia.
— Minha sala... — O detetive enfatizou com ironia.
Apontou uma cadeira para Joshua. —Pode sentar-se.
Pegou uma garrafa de uísque, e despejou
uma dose generosa em um copo pequeno.Ofereceu-o a
Joshua com um gesto. Ele recusou com um aceno de
cabeça.
207
— Parece que não teve uma noite que se possa chamar
de boa, não é?
Joshua não se deu ao trabalho de
responder.Sabia o que viria a seguir.O interrogatório.Na
adolescência passara por um interrogatório policial,
quando tinha sido pego fazendo alguns favores com
drogas para uns amigos.Tudo tinha acabado quase bem
no final, a não ser pelo castigo parcialmente não
cumprido de sua mãe.
Não demorou muito, o colega do detetive
entrou na sala.Carregava uma pasta de arquivos, e
colocou-a em cima de uma das duas mesas do recinto.
Cumprimentou Joshua com um leve aceno de cabeça,
sem parecer realmente notar sua presença.
— Karl me arrumou aqueles documentos. — Ele disse
ao parceiro. — Acredito que minha mãe pare de
reclamar agora. — Ele sentou-se na cadeira atrás da
208
escrivaninha, esticando as pernas. — É...Espero que ela
pare um dia de me encher o saco.
Hooper sorriu.
— As mães nunca param de encher o saco.
Joshua remexeu-se nervosamente na
cadeira.Queria ir pra casa.Então pensou em seu quarto,
agora ensanguentado.’Aquela não é minha casa’.
— Bom — O outro começou.Vestia uma roupa parecida
com a de seu amigo, mas ele era ainda mais alto.Tinha o
rosto avermelhado, como se estivesse o tempo todo
ruborizado. — Esse aí é quem?
O detetive Hooper esperou que ele
respondesse, mas Joshua não o fez.
— Esse é Joshua — Apresentou Hooper. — Ele veio
aqui nos falar sobre um assassinato que aconteceu em
sua própria casa.
209
Ele imaginava quem representaria os papéis
de detetive bom e detetive mau naquela cena. Tinha um
palpite.
— Parece que a garota já deu o depoimento pro
estimado delegado. — Disse o parceiro de Hooper.—
Não sabia que o tio Gerald era agora detetive.
Hooper deu uma risada escandalosa.
— Nem eu... — Ele olhou para Joshua. — Mas vamos
ao que interessa. — Pode nos dizer exatamente o que
aconteceu?
Joshua respirou fundo.
— Eu não sei, nem imagino porquê ele fez isso. —
Começou, percebendo tarde que tinha sido defensivo
demais.Passou a escolher as palavras com
cuidado.Pensou nos detetives que via nas séries
policiais de tv que assistia com devoção. — Tudo que
sei é que ele queria que eu visse.
O detetive Crews interrompeu.
210
— Por que não começamos do começo, Joshua? Quando
e sob quais circunstâncias conheceu a vítima?
— É assim mesmo. — Hooper explicou. — O nome
dele é Harry Crews, como o escritor.Gosta de
histórias,entende?
Joshua sentiu-se incomodado por ouvir o
detetive chamando Heather de vítima.
— Conheci Heather há muito pouco tempo, cerca de
um, dois meses.Ela era minha vizinha, e pediu que eu a
ajudasse com as mudanças.
— Então, vocês começaram a namorar. — Concluiu
Hooper.
— Algum tempo depois. — Ele tentou lembrar-se
exatamente de quando, mas sua mente parecia recusar-
se a colaborar
— Quando começou a primeira briga? — Hooper sorriu,
amigável. — É normal e até saudável haver brigas em
relacionamentos amorosos.Fazem-nos amadurecer.
211
Joshua balançou a cabeça em negativa.
— Não posso nem imaginar Heather em uma discussão
com alguém.Mesmo se isso fosse possível, não tivemos
tempo.
— Então, responda-me. — Disse Crews. — Se era tudo,
assim, tão perfeito, por que você tem um caso com ... —
Olhou para Hooper á procura de ajuda.
— Mabel Gibbs. — Ele acudiu.
Joshua deixou-se parecer confuso.
— Mabel e eu nunca tivemos nada. Somos amigos.
— Tudo o que disser vai contribuir apenas para
descobrir o assassino de Heather, e prendê-lo.Acredito
que seja isso o que você deseja.
Antes de responder, Joshua respirou
fundo.Tinha começado as acusações que ele sabia serem
inevitáveis.Nunca se sentira tão esgotado.
— Eu sei que acham que estou mentindo, mas quero
tanto quanto vocês que o maldito assassino seja
212
castigado, de preferência executado numa cadeira
elétrica. — Ele deixou que a emoção sincera
transparecesse, sentindo que começaria a chorar.
Hooper disse:
— Então nos conte quem é Mabel para você.
— É uma amiga, já disse.Nunca rolou nada entre a
gente.Absolutamente nada.Nós nos conhecemos pelo
Orkut, e nos encontramos pessoalmente há pouco
tempo, também — Pensou na aliança que tinha visto na
mão dela na primeira vez que se viram. — Acho que ela
tem namorado.
— Você acha? — Crews perguntou.
— Não somos tão amigos assim.Coincidiu de termos
nos encontrado justo nessa noite.
— E como foi que encontrou Heather morta ? — Hooper
indagou.
— O cara me ligou. No celular. Falou que estava com
Heather, na minha casa.Eu acreditei porque era o
213
número do meu telefone registrado na bina. O telefone
do meu apartamento.
— E você não pensou em chamar a polícia?
Joshua deu de ombros.
— Não sei, estava tão atordoado...
— E o que ele fez quando você e Mabel entraram no
apartamento? — Crews quis saber.
— Começou a falar coisas sem sentido.Disse que
mataria Heather, e não havia nada que eu pudesse
fazer.
— Se não havia nada que você pudesse fazer, por que
acha que ligou para você?
— Você sabe como são esses psicóticos, psicopatas.
Precisam de platéia. — Ele teve que recuperar o fôlego
novamente. — Depois, começou a chorar...
Completamente insano.
— Quando chegou, a mão da vítima já tinha sido
decepada, certo? — Hooper falou.
214
— Certo. — Joshua se apressou para terminar a
história. — Então, ele ficou ameaçando.Eu tinha uma
arma guardada há muito tempo. Nunca achei que fosse
usá-la realmente... Estava com Mabel.
— Sim.— Confirmou Hooper. — Os tiros disparados
foram da 9mm parabellun que estava com a garota.
— Acho que ela acabou se desesperando. — Ele
continuou, sentindo o ódio , lembrando do instante que
Joey matara Heather. —E disparou.Acho que isso
assustou o assassino,e ele adiantou o serviço.
— Vocês chamaram a polícia, então?
— Mabel correu atrás do maluco, mas acho que não o
alcançou. Então a polícia veio.Provavelmente algum
vizinho que ouviu os tiros.
— E isso é tudo? — Hooper quis confirmar.
— Tudo que sei e vi.
— Saberia me responder se Heather tinha inimigos?
215
— Ela tinha vindo do interior há pouco tempo.Morava
com a família em uma casinha na fazenda. Não tinha
inimigos por lá, pelo menos não que tenha me contado.
— Ele pensou melhor. — Tenho certeza que ninguém
poderia odiá-la.
— Ela conhecia alguém na cidade? — Crews indagou.
— O pessoal do prédio.Era muito desinibida, fazia
amizades fácil.Mas fora do prédio,eu não sei.Não saio
muito de casa.Trabalho no meu apartamento.
Hooper sorriu.
— É seu próprio patrão.Quem me dera...
— E ela? — Crews perguntou. — O que fazia?
— Também trabalhava em casa, era escritora. Escrevia
romances.
— Acredito que ela tenha um agente na cidade.
— Era... — Ele puxou pela memória.. — Robert alguma-
coisa.
Hooper levantou-se.
216
— Por enquanto é só. — Declarou. — Mas acredito que
você tenha que esperar por um tempo. Estaremos indo
ao seu apartamento agora.
Crews completou:
— Se nos der sua permissão.
Joshua assentiu vagamente.
— A última coisa que gostaríamos de perguntar por
enquanto — Crews avisou. — É como se parecia o
assassino. Se você chegou a ver seu rosto.
Era algo que ele adoraria não se lembrar.
— Ele tinha mais de um e oitenta de altura, era meio
forte, entende? Meio musculoso. Acho que olho dele era
verde, talvez azul.
Ele parou. Hooper exortou:
— Se lembra da roupa que ele vestia?
—Uma camisa preta, estava escrito alguma coisa...Acho
que em vermelho.Talvez vestisse calça jeans, mas disso
não tenho certeza.
217
Hooper abriu a porta e fez sinal para alguém
do lado de fora. Apenas alguns segundos depois,um
guarda uniformizado apareceu na porta.
— Mark vai acompanhá-lo, Joshua.
Joshua seguiu-o até uma sala menor do que a
recepção.Estava um pouco abafado por causa do grande
número de pessoas sentadas nos bancos espalhados
pela sala.Um ventilador de teto estava ligado.
O guarda fez um gesto para que ele se
sentasse para esperar seja lá o que fosse.
Joshua escolheu um banco de dois assentos
vazios, encostado á parede. Fechou os olhos, mas a
imagem de Heather morta e presa á cadeira de seu
próprio quarto tornou-se mais nítida, e ele tornou a
abri-los.
Estimava que houvesse cerca de dez pessoas
na sala, além do guarda na porta.Todas tinham a
mesma expressão preocupada e entediada. Apenas dois
218
homens conversavam baixinho, mas Joshua tinha a
impressão de que não se conheciam de outro lugar.
Imaginou onde Mabel estaria, e quanto tempo
demoraria para que o deixassem sair dalí.Começou a
sentir frio, e desejou que o ventilador estivesse
quebrado.
Ele olhou no relógio tantas vezes que perdeu
a conta.Outro guarda chamou seu nome.
Foi-lhe oferecido café e bolachas, mas apesar
da fome que sentia não foi capaz de comer. Isso só
colaborou para deixá-lo com mais dor de cabeça.
Pediram para que ele descrevesse o assassino
para que um especialista o desenhasse, e assim
facilitasse o trabalho da polícia. Disseram-lhe que não
saísse da cidade até que a investigação estivesse
concluída. Ele imaginou porquê o faria. Deixou a
delegacia, sentindo-se tonto.Ir pra casa. Ele não tinha pra
onde ir.
219
Mabel chegou em casa pouco mais de
quatro horas da manhã. Tudo estava silencioso,e ela
subiu as escadas na esperança de que ninguém a
ouvisse chegar.
Quase deu um encontrão com o pai.
— Posso saber onde você estava? — Ele perguntou, com
a raiva controlada que ela conhecia.
— Na casa de uma amiga.
— O que nós conversamos sobre ficar até tarde em
festas, Mabel? —Ele disse, encostando-se com punhos
cerrados no batente da porta do quarto. Começava a
elevar o tom da voz.
Ela riu em voz alta.
— Festa? Certo, papai...Sinto muito por isso, falou?
Seguiu para o quarto dela, mas ainda deu
tempo de escutá-lo murmurando antes de
220
descer.Provavelmente estava indo beber água, como
fazia todas as noites, por causa do diabetes.
— Conversaremos sobre isso amanhã.
Ela vestiu o pijama de estampas infantis, e
deitou-se na cama. Mas sentia-se excitada demais para
dormir.Desistiu de tentar e resolveu fazer um lanche na
cozinha.
Observou a rua deserta da janela da
cozinha, enquanto mordia o pão com manteiga,
pensativa.O sol não demoraria para nascer.
Pobre Heather...Orgulhou-se de sua
própria compaixão.Tivera que morrer para que a vida
de Mabel tivesse um pouco de ação de verdade, sem
fantasias paranóicas. Ele não deveria demorar para vir
atrás dela e de Joshua. Mas dessa vez ela não
fracassaria. Só seria uma pena se a polícia o pegasse
antes dela.
221
Não tinha dado muita informação ao
delegado, e posteriormente aqueles dois idiotas auto-
intitulados detetives. Resumira o que tinha
visto.Achava difícil que eles chegassem ao Death of
Patience com as poucas coisas que ela declarou saber.
Esperava que Joshua tivesse feito o mesmo.Ele tendia a
ser inseguro e medroso.
Terminou de comer o lanche e foi pra
cama.Ficou lendo um romance policial e parou quando
amanheceu.
Saiu de casa, ignorando a saudação de bom
dia de Pebble. Andou pela rua olhando atentamente
para os transeuntes estranhos. Joshua não deveria ter
voltado pra casa. Precisava dar um jeito de descobrir
onde ele estava.
Capítulo Treze
222
Joshua despertou da noite mal dormida com a
dor de cabeça do dia anterior. Ainda vestia a mesma
roupa.Realmente precisaria ir para a casa, se o
apartamento ainda não estivesse interditado. Não, ele
repensou. Não voltaria para a prisão que tinha chamado
de lar nunca mais.
O quarto de hotel era limpo e bem arrumado,
mas pouco mobiliado. Não havia nada mais do que a
cama de madeira antiga, e o criado-mudo onde ficava o
abajur. De qualquer maneira, tinha servido bem aquela
noite.
Levantou-se, sentindo-se estranhamente
dolorido. Foi ao banheiro escovar os dentes com a
escova improvisada, depois saiu, adiando o café para
mais tarde.Só depois de estar na rua ele percebeu que
não tinha pra onde ir. Seguiu para a delegacia.
A recepcionista não era a mesma da noite
anterior. Era uma garota um pouco jovem demais, com
223
olhos simpáticos que não combinavam com tudo ao
redor. Olhou para ele quando ele entrou. Devia ter
reparado em suas roupas amarrotadas e com manchas
de sangue.
— Preciso falar com o detetive Hooper.
— Qual é o seu nome?
— Joshua Dunne.
Ela acenou ‘um momento’ enquanto pegava o
telefone. Observou as próprias unhas pintadas com ar
crítico. Digitou o número do ramal.
— Um tal de Dunne quer falar com você. — Ela olhou
para Joshua novamente, especulando. Deu um sorriso
para ele. — Certo. — Ela repôs o fone no gancho. — Ele
disse que você sabe onde é a sala dele.
—Não, só quero saber se posso ir pra casa.
Ela ficou confusa.
— Pode ir perguntar pessoalmente.
224
Voltou ao trabalho que estava fazendo no
computador.
“Droga”, ele murmurou, e seguiu pelo
corredor até o final. Encontrou o detetive Crews
fumando um cigarro na porta da sala.
— Cohen está lá dentro. — Ele disse, como se a sala
fosse grande o suficiente para que Joshua não pudesse
vê-lo.
— Só quero saber se posso ir pra casa. — Ele quis que o
policial notasse seu cansaço.
— Ir pra casa? — Hooper surgiu. — Sabe que tem um
assassino á sua caça, e o primeiro lugar em que vai
procurá-lo será na sua casa?
— Não me preocupa. Não estou com medo.
— Isso é muito corajoso da sua parte. — Declarou com
evidente ironia. — Mas a mim preocupa. Entre.
Ele pediu que Joshua sentasse, e foi-lhe
oferecido uísque novamente. Dessa vez, Joshua aceitou.
225
— O nome dele é Nicolas Farkas. É um psicótico.
O detetive estava sendo direto. Joshua
gostou disso.
— Ele trabalha com a mãe, num escritório de
contabilidade.
— Certa vez ouvi dizer... — intrometeu-se Crews.
Fechou a porta atrás de si, abandonando a fumaça de
cigarro do lado de fora. — As pessoas que trabalham
com números o dia todo, têm direito de tornar-se
assassinas, ou suicidas. O juiz diria: “Você é acusado
pela morte dele”. Mas o advogado responderia: “Vossa
excelência, meu cliente é contador”. — Ele imitava a voz
dos personagens, e riu da própria piada. — “Oh,
desculpe o incômodo, senhor. Está liberado.’”.
Tornou a rir. Joshua nunca sentira tanto
ódio de uma pessoa em toda sua vida. Hooper sorriu, e
continuou:
226
— Conversei com poucas pessoas, mas todas disseram
que ele é um tipo estranho. Uma cliente do escritório
disse que é um rapaz muito simpático e prestativo, mas
tem uma estranha mania de levar as mãos á cabeça, e
soltar ruídos estranhos quando se irrita com barulhos
agudos. — A risada de Crews encheu a sala. — Achei,
particularmente, um comentário estranho da velha
senhora, mas isso está me levando á algum lugar. O
motivo do assassinato.
Crews disse:
— É assim que o Dr. Psiquiatra Cohen conclui que
nosso amigo é alguma espécie de psicótico.
— Exato. — Concordou ele. — Mas isso é tudo que
consegui por enquanto.
— E agora temos algumas perguntas pra você. — Crews
puxou uma cadeira á sua frente. — Conhece alguém da
contabilidade Pôr-do-Sol?
227
Ele não fazia idéia e balançou a cabeça em
negativa.Não ajudaria em nada. Pelo contrário, ele sabia
de tudo, mas nada diria.
— Tem idéia de onde possamos encontrar o agente da
sua namorada? —Indagou Hooper. — Estamos partindo
da idéia de que Farkas possa conhecê-la dessa
contabilidade.
— Sério — Joshua não respondeu na pergunta. — Eu só
quero ir para casa.
— Estamos confiando em você. — Hooper disse. —
Queremos que saiba de tudo, por que achamos que você
pode ter a chave desse mistério, e talvez nem saiba
disso.
— Como sabe que não fui eu que a matei? — Indagou,
com sincera curiosidade. — Poderia ter sido eu.
— Não, não poderia. — Crews discordou, sem achar
estranha sua pergunta. —Foram comparadas suas
impressões digitais e as da outra garota. Elas não
228
conferem na faca que matou a vítima. — Joshua não
sabia que o assassino acabara deixando a faca no
apartamento.Imaginou se ele queria ser encontrado. —
Havia realmente uma terceira pessoa na casa.
Hooper disse, mais afirmando do que
perguntando:
— E você não tinha motivos para matá-la, tinha?
Joshua levantou-se, indicando que a conversa
tinha terminado.
— Não — Respondeu. — Obviamente não.
— Não pode ir para casa. — Hooper admitiu. — Não
por enquanto. Você e sua amiga continuarão no hotel.
— Por favor... Eu só quero ir pra casa.
Foi Crews quem assentiu, depois de um
rápido olhar na direção de Hooper.
— Bom, então a responsabilidade será inteiramente sua.
Ele se sentiu grandemente agradecido pelo
policial.
229
—Valeu.
Antes que ele saísse, ouviu Hooper insistir:
— É melhor ser muito cuidadoso.
Pegou um táxi de volta para casa. Nicolas
Farkas.Ficou pensando na conversa com os detetives em
todo o caminho de volta.
A passos largos, Mabel sentia-se
completamente perdida.Precisava encontrar Joshua, ou
a polícia pegaria o tal de Nicolas antes deles.Ela estava
ficando nervosa.Muito nervosa, admitiu á si mesma.
Onde teria o imbecil do Joshua se metido?
Fora procurá-lo naquela manhã na delegacia, mas ele
não estava, nem os detetives que estavam tomando
conta do caso. Foi á padaria tentar empurrar algo para
comer, e retornara á delegacia. Não encontrara Joshua,
230
mas os detetives fizeram outra série de perguntas
inúteis. Ela respondeu á todas com impaciente
ingenuidade, e declarou que tudo que queria era saber
onde Joshua estava. Os malditos policiais não revelaram
para que hotel o tinham mandado.
Onze da manhã.
Bufou alto e começou a caminhar na direção
de casa novamente. Pensou na loja de roupas e na
patroa. Riu alto. Odiava aquele lugar, aquelas
obrigações, seu injusto salário no final do mês.
Chegou rapidamente em casa.
— Mab! — Gritou Charles, pulando para abraçá-la. —
Não foi trabalhar?
— E você não foi para a escola?
Ele deu um sorriso malicioso.
— Estou com dor de barriga.
— Sei... — Ela desconfiou, rindo.
Atraída pela risada dela, Pebble surgiu.
231
— O que faz aqui á essa hora, Mab?
— Tirei o dia de folga. — Ela respondeu, recolocando
Charles no chão.
— E você pode fazer isso? — A madrasta estava
desconfiada, e Mabel teve vontade de matá-la,
igualzinho Nicolas tinha feito com Heather.
— Não é da sua conta, bruxa! — Ela gritou, virando as
costas e subindo as escadas correndo.
Trancou-se no quarto, arrancou o fio do
telefone da parede.A maldita não demoraria a ligar para
o seu pai, e contar-lhe que tinha sido chamada de bruxa.
Sentou-se na cama, batendo os pés no chão
energeticamente. ”Preciso fazer alguma coisa, preciso
fazer alguma coisa...”, ela repetia para si mesma, sem
saber ao certo a que se referia.
Levantou, soltando uma exclamação de mau
humor.Estava ficando sem ar trancada naquele
quarto.Precisava dar o fora.
232
Saiu apressada, quase correndo.Trombou com
Charlie na escada.
— Olhe por onde anda! — Ele gritou, em tom de
brincadeira.
Manteve o ritmo até o ponto de táxi. Pediu que
ao motorista familiar que a levasse ao endereço de
Joshua.
Tinha sido estranho olhar para o corredor
vazio do prédio. Mais estranho ainda tinha sido fechar a
porta do apartamento, sabendo que Heather não viria
bater á sua porta. Nunca mais.
Tudo tinha acontecido rápido demais.Há
pouco mais de dois meses ele vivia literalmente
sozinho, na particularidade de seu próprio mundo. De
repente, ele se via fugindo de um medo supostamente
paranóico, e, num anticlímax, apaixonado de verdade
233
pela primeira vez. Logo, seu medo se tornava real, e sua
namorada estava morta. Deixou-se cair no sofá da sala
de estar e chorou. Por tudo, ele pensou. Estava
chorando por tudo. Sua vida toda tinha sido um
completo desastre.Desde criança, exatamente como sua
mãe predissera.
Ele sentado á mesa da cozinha, com o caderno
de gramática e o lápis na mão, batendo com agitação
sobre o papel. Não conseguia decorar o que eram
palavras oxítonas, prop... Não se lembrava do resto. A
mãe esbravejou, jogando o livro escolar nele, sem que
ele tivesse tempo de desviar.
— Menino inútil!
Albert sentara a seu lado e conseguira fazer
com que ele finalmente entendesse.
Joshua terminou ficando nervoso na hora da
prova, e tirou um zero.
234
Albert...Chorava por Albert. Onde ele estaria
àquela hora?
Não, ele pensou melhor. Heather não era a
primeira pessoa por quem ele se apaixonara. Houve
Margie, sua colega de classe na quinta série.Ela tinha
lhe dito que ele não era bom o suficiente para ela.
Depois de Margie, havia tido outros casos,
mas ele não conseguira se apegar a ninguém. Não
imaginava o quanto sentira falta de uma pessoa ao seu
lado até que Heather aparecesse. E fosse embora.
A campainha tocou. Dessa vez, Joshua não se
assustou.Nem se moveu no sofá.Apenas olhou de
relance para a fechadura, certificando-se de que estava
trancada. Depois de passados alguns segundos, ouviu
chamar.
— Jos! — Era a voz de Mabel. — Sou eu, abra a porta. —
Como não houve resposta, ela insistiu. — Preciso falar
com você.
235
Ele continuou fitando o teto, reparando que
estava manchado. De onde poderia ter vindo aquela
mancha negra? Parecia uma infiltração. Mas seria
estranho se o banheiro do apartamento superior ficasse
logo acima de sua sala.
Novamente, tudo ficou em silêncio. Ele foi até
a janela, e abriu apenas um pouco a
veneziana.Observou a rua, procurando entre os rostos
desconhecidos.
Seu coração ficou apertado. Sabia que ele não
demoraria a vir.
Capítulo Catorze
Não, ele definitivamente não estava
satisfeito.Tentou olhar de outro ângulo, com outro
olhar, mas não conseguiu uma resposta
positiva.Pareciam-lhe apenas figuras disformes, mas
236
não exatamente do jeito que ele pretendia. Era verdade
que Nicky gostava de pintar rostos indefinidos, sem
traços, objetos e paisagens que não seriam facilmente
identificadas para um expectador que não observasse
com a alma.Tinha como ídolo, e ousava dizer,
inspiração, o artista russo Kandinsky. Suspirou.O
desenho que ele esboçara antes de passar para a tela,
parecia muito melhor.
Precisava parar um pouco.Por mais que
desejasse ficar no pequeno estúdio improvisado em seu
novo quarto, era necessário dar uma parada, refrescar a
imaginação. Nicky foi á cozinha, para tomar
água.Talvez fosse o suficiente para descansar a mente.O
próprio mestre, Da Vinci, fazia seu repouso de três em
três horas, e ninguém poderia negar que o resultado de
sua mente aparentemente descansada produzia ótimos
resultados.
237
Certa vez ouvira dizer que o grande Da
Vinci sofria de uma grave doença, o transtorno bipolar.
Talvez tivesse sido isso que o tinha levado para tão alto
em sua carreira...
Observou as pessoas que passavam na
rua.Todas pareciam tão insignificantes. Elas iam acabar,
sua geração ia chegar ao fim, tudo que tinham feito
seria esquecido. Lembrou-se das palavras do grande
Pregador, filho do rei Davi. Ele tinha sabido das coisas.
Mas também tinha morrido, deixado aquilo que os seres
humanos chamavam de lar.
Enfiou um cd na bandeja do rádio.A nona de
Bethoven.
Beethoven tinha sido imortalizado por suas
músicas. Ele esperava que assim acontecesse com suas
telas.Voltou ao trabalho.
Acompanhava o som da música com a
cabeça.Tinha sido um medroso, um medroso estúpido.
238
Fugira, como um rato assustado.Seu único conforto era
imaginar que Joshua tinha entendido tudo com seu
aviso. Fechou os olhos brevemente. Sim, era o que
esperava.
Abaixou um pouco o volume do rádio. Estava
enganando a si mesmo. Teria que voltar ao
apartamento.Cumprir sua missão.Oh Deus, sua missão.
Por que tinha que ser tão difícil? Por tantas vezes ele
alegrara-se em lembrar que tinha sido dotado da
sabedoria, do entendimento do bem e do mal. Mas
agora, isso lhe parecia um fardo pesado demais. Não
fracassaria, se fosse realmente necessário tentar de
novo.Não permitiria dominar-se novamente.
Sim, a pintura estava legal. Diferente da arte
abstrata que ele estava acostumado a fazer, era isso que
estivera estranhando.O homem de perfil e um chapéu,
olhava para o chão, sem fitar nada realmente.Tinha as
mãos para trás, presas por cordas invisíveis.Seus olhos
239
sombreados revelavam um certo vazio, um pouco de
desespero.Na janela do prédio, a cidadezinha antiga e
barrenta, uma figura parecida á silhueta de uma
mulher, observando, a expressão escondida pela
deformidade de seus traços.Ele sorriu, fitando o
personagem central.Se aquilo fosse uma reflexão sua,
imaginava estar correta.Era inconsciente no ser
humano, mas todo trabalho que se faz acaba voltando-
se para si mesmo.Naturalmente egocêntricos.
Ele ainda lembrava-se de sua primeira
pintura, e de como tinha começado. Sempre tinha sido
um bom desenhista, dono das melhores notas em sala
de aula, principalmente em Artes. Passou os esboços do
papel para a tela, e passou a conseguir dinheiro em
feirinhas de rua.
Mais do que qualquer outra coisa, aquilo lhe
trazia paz, e tirava tudo que era ruim dentro dele. E
passava a ficar pendurado na parede da sala de alguém.
240
Desde pequeno, Nicky sabia que era diferente
de todas as outras pessoas. A partir do momento que se
conscientizou disso, excluiu todos que não faziam parte
de seu mundo.
O problema era que as pessoas não entendiam
ou aceitavam sua decisão. Especialmente sua mãe.
Quando Nicky fez dez anos, ela convidou
algumas crianças da vizinhança do bairro, e seus
supostos colegas de escola para uma festinha. Naquela
noite, ele resolvera ficar no quarto, estudando até a hora
de dormir.
Sua mãe ficou contrafeita.
— Está tendo uma festa lá embaixo, Nicky. — Ela falou.
— Sua festa.
— Sei disso. — Ele respondeu com simplicidade, sem
desviar os olhos do livro. Estudava sobre o habitat e o
tipo de alimentação dos animais. Um adiantamento
para a lição de Ciências.
241
— Nicky... — Ela insistiu, entre paciente e
condescente. — Você precisa descer, brincar
com seus amigos... Por que não pode fazer isso
uma única vez na vida? Por mim!
Ele não podia. Sabia que se descesse no
quintal onde a festa estava acontecendo, na melhor das
hipóteses seria ignorado pelos outros meninos.Ou seria
seu alvo de piadas e brincadeiras. Não, por mais que
adorasse sua mãe, não poderia fazer aquilo por ela.
Mais tarde, aos dezesseis anos, ele passou a
entender que ela era exatamente como os outros.
Governada pelo que ele chamava de lado ruim. Já tinha
visto-na com outros homens. Outros homens tinham
tocado nela!
Essa compreensão tinha acontecido no
mesmo ano em que ele levara uma surra dos garotos da
escola. O ano em que tudo tinha mudado em sua vida.
242
Foi deitado em seu quarto, com lábios e olhos
inchados, que ele entendeu. Sim, ele compreendeu o que
destrói a sensibilidade e o amor humano. A fraqueza.
Ele sabia ser forte. Sabia reconhecer o que era bom e o
que era mau, e por isso o seu lado ruim nunca vencia
seu lado bom. O verdadeiro lado.
As pessoas não tinham culpa de fazer o que
faziam.Eram assim porque não sabiam lutar contra os
próprios desejos. Exatamente como o grande sábio
japonês dissera: O fim do desejo é o fim da tristeza.O
estado de nibbana. O fim do mal. Ele sorrira, passando
os olhos pelo quarto vazio. Fez uma prece de
agradecimento.
Sua mãe entrara no quarto trazendo o almoço.
Ele perguntou:
— Você sabe que a amo, não é, mamãe?
— Claro.Também te amo.
243
Ele segurou-a pelo braço antes que ela saísse
para voltar aos seus afazeres.
— Não quer conversar comigo?
— Está me machucando, Nicky. — Ela tentou soltar o
braço, mas ele apertou com mais força. Tentou livrar-se
dele, sem sucesso. — Me solte!
Ele pegou o garfo que estava apoiado sobre o
prato.
— Eu gostaria de não precisar fazer isso. — Ele disse
com sinceridade, investindo o garfo contra o rosto dela.
Por muito pouco não lhe acertara o olho.
Ela caiu no chão, tentando estacar o sangue
com a mão. Ele levantou-se com dificuldade por causa
da dor, mas conseguiu abaixar-se até ela. Levantou o
garfo novamente, ela conseguiu detê-lo, chutando o
osso da perna que tinha sido lesada durante a surra. Ele
gritou, e caiu no chão. Foi o tempo dela correr para fora
e trancá-lo no quarto.
244
Sozinho ali dentro por muitas horas, ele se
arrependeu do que tinha feito. Sabia que era o certo,
mas talvez não conseguisse tentar de novo. Ele chorou.
Estava deixando que o lado ruim da sua mãe vencesse.
Estava deixando que ela saísse impune de seus pecados,
ele mesmo condenando sua alma ao inferno. Mas
quando ela entrou hesitante no quarto novamente
naquela mesma noite, o cabelo loiro preso em um rabo-
de-cavalo, ele entendeu que não conseguiria.
Abraçou-a, chorando.
— Desculpa, mamãe. Eu sinto muito.Muito, mesmo...
Ela chorou também, e ele notou que ela se
sentia aliviada.
— Está tudo bem, filho.Tudo vai ficar bem...
Por causa dele a alma dela estava condenada.
Assim que Nicky terminou a escola, sua
primeira idéia foi mudar-se de cidade. Estava realmente
cansado de morar em Los Angeles.Não havia cidade
245
mais corruptível ou corrompida do que aquela. Ele
temia que pudesse vir a desvirtuá-lo também. Mas
quando ele falou disso com sua mãe, ela desaprovou
sua decisão. Tinha ficado irritadíssimo aquele dia, e
quebrara cerca de maia dúzia de pratos. Não adiantara.
Ela tinha deixado bem claro que ele ficaria.
Então ela sugerira que ele estudasse algo que
lhe interessasse, e chegou até mesmo a sugerir Artes.
Ele respondera que não, não estava interessado em
voltar a estudar, passar pela experiência da adaptação
de novo. Da rejeição de novo. Da humilhação de novo.
Trancou-se no quarto, declarando que nunca
mais sairia dali. Como a mãe não fizesse caso disso, ele
a encontrou na cozinha, fazendo o jantar. Sentou-se á
mesa, apoiando os cotovelos. Sem querer, ele bagunçava
o cabelo enquanto descansava a cabeça nas mãos, com
movimentos uniformes, mostrando certo desespero.
246
— Já desceu para jantar? — A mãe perguntou, e ele
notou pela voz dela que ela sorria. — Está meio
cedo.Vai ter que esperar um pouco.
Ele soltou um grunhido alto suficiente apenas
para ela ouvir. Deixou que a cabeça encostasse na mesa.
Levantou, para bater uma colher na mesa, formando
uma música. Os sons foram ficando gradativamente
mais altos.A mãe pegou sua mão gentilmente, forçando-
o a parar.
— O que há de errado, Nicky?
— Não me sinto bem.
— Está com alguma dor?
Ele olhou para ela, de baixo para cima.
— Não... — Sua resposta soou mais como um
murmúrio.
— Então...?
Levantou-se, encarando-na com raiva.Tinha
sentido condescência em sua voz.
247
Tornou a trancar-se no quarto, chorando dessa
vez. Não sabia por que se sentia desse jeito, algumas
vezes. Era um vazio, uma dor que ele não conseguia
entender. Era como se algo não se encaixasse, como se
alguma coisa estivesse errada com ele. Era natural que
ele se sentisse daquele jeito, sozinho, isolado, já que sua
missão na Terra não era a mesma dos mortais que o
rodeavam. Mas ele não podia simplesmente deixar-se
levar, era necessário manter aquela distância segura das
pessoas. Repetiu em voz alta para si mesmo que essas
palavras, aquele sofrimento era pro seu próprio bem.
Não tentaria mais se iludir, acreditando que pelo menos
sua mãe entenderia.
Mas tudo ficava pior á noite. Era a hora que o
Mal realmente vinha á tona, quando o mundo ocidental
dormia. Era mais fácil atuar na escuridão, as pessoas
estavam vulneráveis. Então, tudo o que era ruim se
248
materializava e invadia mentes e corações daqueles que
não estão preparados e protegidos.
Nicky já tinha contemplado com os próprios
olhos, certa vez. Estava na cama, e ele lembrava-se bem
de ser meia-noite e trinta e dois, num sábado. Como
todas as noites, ele foi dormir ás onze horas,
pontualmente. Mas não conseguiu pegar no sono. Ficou
desesperado. Precisava manter sua alma longe daquele
mundo durante a noite para não ser pego também. Ele
sabia que quanto mais nervoso ele ficava, menos
conseguiria dormir. Mas não conseguia controlar-se.
Começou a rezar, mas daquela vez não adiantou. Então,
ele viu.
Era apenas uma sombra, uma sombra vaga e
indefinida. Exatamente como ele tinha imaginado. Ele
via claramente, iluminada apenas pela luz amarela do
abajur. A criatura saiu de debaixo da cama. Subiu á
superfície, como se emergisse do subsolo e chegasse até
249
ali. Olhou fixamente para ele, o rosto indefinido,
retorcido num meio sorriso, que poderia ser
interpretado como uma expressão de dor. Mas não se
atrevera a chegar perto. Apenas o ameaçara. Era o
aviso.O primeiro, o último.
Assim que a criatura saiu, desaparecendo pela
janela fechada, ele levantou-se da cama. Correu até a
cozinha, na impressão de que encontraria outra delas
pela casa. Abriu a geladeira com os olhos semicerrados
porque não queria ver, tateando pela escuridão quase
completa. Sabia que eles o veriam, mas pelo menos ele
não os veria. Apanhou a garrafa de uísque que a mãe
deixara pela metade na semana anterior, quando
recebera alguns amigos em casa. Deu três goles grandes
e apressados, para depois correr de volta para o abrigo
de sua cama, de olhos bem fechados.
Depois daquela noite, beber algo antes de
dormir tornou-se um hábito para evitar que acontecesse
250
de novo. Mas como ele sabia que a mãe implicaria se
descobrisse, escondeu a garrafa no armário de seu
banheiro particular.
Ele sabia que tinha acontecido por um deslize
seu. Estava com a fé um pouco fraca, e talvez devesse
ter se esforçado mais para conseguir dormir. Pensado
em coisas boas, era o conselho de sua mãe. Ela dizia
isso, nas noites mal dormidas de sua infância. “Pense
em coisas boas que te aconteceram, ou que gostaria que
acontecessem”. Então ele pensava nela, em seus
passeios juntos em suas conversas, em suas risadas.
Eram quase oito horas da noite.Talvez o jantar
estivesse pronto.Ele desceu, receoso de que a mãe
pudesse perguntar de novo por quê ele não se sentia
bem. Estava arrependido de ter mencionado aquilo para
ela. Se fosse obrigado a contar-lhe tudo, ela acharia que
ele estava louco. Ele a compreendia, apesar de desejar
que ela, entre todos os outros, entendesse.
251
Tornou a sentar-se á mesa, dessa vez mais
calmo. A mãe já tinha preparado o prato para ele, e
serviu-o, sentando-se á mesa também.
— Estive pensando, Nicky.O que acha de vir trabalhar
comigo? —Essa era uma das qualidades de sua mãe.
Agia como se nada tivesse acontecido. — O que acha?
Mas apenas se você quiser.
Algumas vezes, ele visitara o escritório de
sua mãe.Tinha observado a mãe e os empregados
trabalharem, e tinha achado interessante. Pedira para
uma das garotas para que o ensinassem algumas coisas,
e ele aprendera com facilidade. Tinha gostado. Exigia
concentração, e isso deixava sua mente livre de coisas
ruins.
— Pode ser bom para você. — Continuara a mãe,
levando o garfo com macarrão na boca. Era o preferido
de Nicky, em formato de estrelas ou carrinhos. Ela
enfatizou o que já tinha dito. — Só se você quiser.
252
— Está certo. Quando eu começo?
Ela sorriu, inclinando-se um pouco para fazer
carinho no cabelo dele.
— Pode começar amanhã.Tem muita coisa que você vai
precisar aprender.
Ele pegou a mão dela, em retribuição ao
carinho.
— Acho que eu vou dar conta.
Tinha certeza que daria.
Depois de três anos trabalhando no escritório
de sua mãe, ele conheceu Laura. Ela tinha um ano a
mais do que ele. O cabelo loiro, a pele quase morena, e
olhos azuis brilhantes. Estava sempre sorrindo quando
ia ao escritório, e Nicky admitiu desde a primeira vez
que a vira que estava apaixonado. Lembrava-lhe muito
sua própria mãe.
Ela era neta de um dos clientes do escritório
de contabilidade, e ele já falara com ela por telefone
253
algumas vezes. O avô dela era dono de um açougue, e
ligava muitas vezes por semana, com assuntos que
muitas vezes não tinha a ver com contabilidade. Mas
Nicky sentia pena por ele ser um senhor de idade, e não
entender muito da vida moderna. Explicava-lhe sobre
os mais variados contextos, respondia perguntas. Certa
vez o ajudara a passar um e-mail, dando-lhe as
coordenadas por telefone, e outra vez o acalmara,
falando com ele enquanto ele se escondia no banheiro,
ao ter avistado um possível assaltante que entrara na
loja.
Laura começara a aparecer de vez em quando
no escritório quando assumira o negócio do avô. Para
que ele pudesse ficar mais sossegado, ela dissera. Ele
andava alterando-se demais nos últimos meses, chegara
a gritar várias vezes com clientes. Nicky sentiu-se grato
por trocar o velho pela garota.
254
Mas ela parecia nunca tê-lo notado.Tudo o que
fazia era cumprimentar-lhe, como fazia com todos os
outros funcionários, depois ia discutir seus negócios
com sua mãe. De algum jeito, ele precisava que ela o
percebesse.
Começou a conversar com ela, escolhendo um
assunto qualquer, tentando parecer confiante, ao
mesmo tempo em que tinha medo que ela não
conversasse com ele. Mas tudo aconteceu melhor do
que ele esperava. Notou que ela passara a vir mais
vezes ao escritório, obviamente inventando motivos.
Sua mãe também tinha percebido
— Ela gosta de você, Nicky. — Ela dissera, ao fim do
expediente. Ele sentara-se na cadeira á frente da
escrivaninha da mãe, apoiando os pés sobre a mesa.
— Acha mesmo? — Ele mais afirmou do que
perguntou, num meio sorriso.
255
Ela assentiu, inclinando-se sobre a mesa, com o
queixo apoiado nas mãos.
— Você gosta dela?
Ele deu de ombros.
— Ela é legal.
— Sei... — Riu, incrédula.
— Está certo, talvez eu goste mesmo dela... E o que é
que tem? — Ele sorriu.
— Nada demais, Nicky. Pelo contrário. Acho ela uma
moça bem simpática. E tem uma boa família.
— É...Claro.
— Fico feliz por você.
Ele sabia que isso significava muito mais pra
sua mãe do que ela deixava transparecer. Podia vir a ser
sua cura. Ele sabia disso porque há alguns anos atrás a
ouvira conversar com uma tia distante, logo após uma
discussão á toa que eles tiveram. Nicky não se lembrava
256
mais do motivo, mas recordava-se de ter derrubado a
televisão no chão.
— Tem algo de muito errado com ele, Sarah. — Ela
dizia com a voz de quem tinha chorado muito,
enquanto ele ouvia, encostado á porta do quarto
fechado. — Ele é muito estranho... — Uma pausa, ela
apenas soluçava. — Eu sei... Eu sei... — Ela respondia á
tia, do outro lado da linha. — Talvez ele esteja doente,
sabia? Eu li sobre isso em algum lugar... Distúrbio
bipolar.— Ela tornou a chorar.
Não comentou á respeito com ele, nem se
falou mais na briga. Porém ele procurou na Internet á
respeito da doença que a mãe mencionara. Encontrou
‘sintomas’ que nada dizia a seu respeito, e ficou
decepcionado com o quão pouco a mãe o conhecia. Ou
talvez ela não soubesse muito de psiquiatria.
Se estivesse doente, seu perfil se encaixaria em
esquizofrenia. Um tipo de psicose, que o faria acreditar
257
em coisas inexistentes, faria sua mente caminhar por
estradas perigosas, e completamente psicológicas. Ele
tinha quase todos os sintomas descritos no site que
encontrou. Mas seu caso era diferente. O que os outros
achariam que vinha da sua mente, acontecia de
verdade.
Nos dias que se seguiram, Nicky notou que
Laura e sua mãe passaram a trocar olhares cúmplices.
Ele ficou com certa raiva da mãe estar partilhando algo
tão pessoal de sua vida, mas por outro lado sentiu-se
grato, porque isso tornava as coisas mais fáceis para ele.
Finalmente, ele reuniu coragem para conversar com
Laura. Começaram a namorar no começo da primavera,
exatamente no dia do aniversário dela.
Ficaram juntos por três meses. Ele notou um
pouco tarde demais que ela não era uma boa pessoa
para ele, quando levantaram a questão da pena de
morte no país.
258
Ele sempre soubera que ela era uma idealista,
e a admirava muito por isso. Estavam sentados na
varanda da casa dela, e assunto saiu. Ela comentou que
em qualquer situação seria defensora dos direitos
humanos, o qual o principal era o direito á vida.
— Nós ganhamos a vida como um presente de Deus. —
Ela argumentava. — Ninguém deve ter o direito de
tomá-la, Nicky. Ninguém.
— Mas e quanto a um assassino? — Ele torcia a folha de
uma planta que estava pendurada num vaso.
— Não importa. Sempre há uma segunda chance.Ou até
mesmo uma terceira ou quarta. Estamos falando da vida
de um ser humano.
— Não interessa. — Ele estava se controlando, com
vontade de bater nela. — Se ele tirou uma vida
indevidamente tem que morrer. — Ele baixou a voz
como se lhe confidenciasse algo. — Quando uma pessoa
259
perde a vida como punição, ela está livre do pecado,
entende? “O salário do pecado é a morte”.
— Isso não tem nada a ver.O que justifica é o
arrependimento. E você vai quebrar o bracinho da
planta.
Ele levou as mãos á cabeça, dando um grito
abafado.
— Não, não, não! O que salva é a morte, você não
entende? A MORTE!
Ela o encarou por um momento, sem parecer
considerá-lo realmente. Seria tão difícil de entender?
Pode parecer ruim, mas a morte também tem um
propósito, como todo o resto das coisas que acontecem
no mundo. Exceto a maldade humana.
— Está bem, Nicky.Vamos esquecer isso, certo? O que
acha de um programa diferente amanhã? Estive
pensando, talvez fosse legal fazermos um passeio, ir
ao...
260
— Não! — Ele não se deu por satisfeito.Tinha que fazê-
la compreender, ou ela seria uma deles também.
Arrancou a folha da árvore, e o impulso quase derrubou
o vaso inteiro no chão. — Você precisa me ouvir, ás
vezes, para o seu próprio bem! — Ele mal notara que
estava gritando, e ela levantou. — Você precisa me
ouvir! — Pegou o vaso do chão e arremessou-o contra
ela.
— Bem que sua mãe disse.— Ela gritou de volta, depois
de um grito assustado e de dor.Tentava levantar-se do
chão. — Você é um doente mental!
Ele não deixou que ela se
levantasse.Começou a chutá-la sem parar, sabendo que
devia matá-la ali mesmo.Ao invés disso, ele recuou,
deixando-a num estado de semi consciência.
— Espero que haja piedade da sua alma.
“Doente mental”.
Ele nunca mais vira Laura.
261
O próximo natal se aproximava. Nicky
observava sua mãe decorar a casa com pouco
entusiasmo. Não que tivesse algo contra a festa
religiosa. Pelo contrário, achava legal a alegria e
algumas vezes a união verdadeira das pessoas nessa
data.Também gostava de comemorar o nascimento de
Cristo. Mas aquelas luzes brilhantes, e as amontoações
nas festas que a mãe dava em casa o deixavam
estressado.
Ele costumava gostar da época quando era
criança. A mãe permitia que a tia o levasse á missa pela
manhã. Ele comia um pedaço de pão e bebia um pouco
de vinho e sentia paz no coração. Era a maior alegria
que uma pessoa poderia sentir.Gratuita, pura e sem
motivo corruptível. Á tarde, ele abria os presentes, e á
noite eles comiam juntos, conversando. Apenas os três.
Estava em frente ao computador naquela
noite. Ele deixava sempre o lugar bem iluminado e
262
arejado, e nunca apagava as luzes á noite. Da caixinha
de som do computador vinha uma música romântica
que estava na moda. Quando não estava lendo ou
trabalhando, era dessa forma que ele passava o tempo.
No computador, descobrindo coisas que nem ele se
dava conta de ter conhecimento. Pensava orgulhoso, á
respeito de si mesmo, que seria capaz de roubar senhas
de bancos e ficar milionário, se quisesse. Mas ele
ponderava tristemente se isso só não se deveria ao fato
de ser uma pessoa solitária. Afastava o pensamento da
cabeça. Vinha de seu lado ruim.
Nicky se comunicava com amigos por
intermédio de um novo site de relacionamentos muito
conhecido, e também muito popular, principalmente
entre os adolescentes. Essa era uma forma de interagir
com o mundo lá fora, sem correr o risco de se
contaminar. Desse jeito, ele acabara conhecendo outro
site de relacionamentos, bem diferente do Orkut. Seus
263
membros eram fãs da morte e seus piores aspectos. Não
os motivos que traziam a vida. A morte, sem toda sua
complexidade.
Como para entrar era necessário um convite,
ele obteve um ingresso falsificado. Hackeou a conta de
um amigo de Orkut que recusara dar-lhe legalmente,
por ele não ser um verdadeiro ‘fã do gênero’.
Usou o nome de Joey, um apelido escolhido
ao acaso. As coisas que viu ali o deixaram noites sem
dormir. Resolveu sair do site o mais rápido possível,
sem fazer amigos ou interagir com aquela coisa
horrível. Antes que o fizesse, ele entendeu o propósito
que o levara até ali. Devia fazer alguma coisa. E estava
pronto para tomar um a atitude.Tudo o que precisava
fazer era descobrir o responsável, ou responsáveis pelo
Death of Patience.
Capítulo Quinze
264
Ela até pensou em começar a procurar Joshua
pelos hotéis da cidade, mas sabia que seria inútil. Era
muito provável que ele estivesse usando um nome
fictício no registro.
Já se aproximava da porta de casa, seu coração
deu um salto ao ver Kate e Tony correndo em sua
direção. Amaldiçoou-se, Tony ainda mexia com seus
sentimentos. Logo a emoção deu lugar ao tédio, ela
sabia o que o ex-namorado e a amiga diriam.
— Não há nada de errado. — Ela adiantou. — Eu estou
aqui, e ótima.
— Por que não está na loja? — Tony perguntou, como
se fosse a coisa mais normal do mundo ele estar falando
com ela depois de terem terminado de forma tão bruta.
—Pebble estava preocupada com você.
— Que se dane Pebble. Você sabe que ela é louca.
265
Kate tinha a mão no peito, e respirava com
certa dificuldade pelo esforço de ter corrido muito.
Disse:
— Pebble falou que você, além de não ter ido trabalhar
hoje, passou a noite inteira fora.
— Ela é louca. — Repetiu com um sorriso. — Passei a
noite todinha em casa. A culpa é dela, que nem nota
minha presença.
— É mentira, Mab. — Kate declarou. — É sua obrigação
de melhor amiga me contar a verdade. — Mabel fez um
sinal discreto de “depois falo com você”. Passou os
olhos dela para Tony. — Certo, então... — Murmurou.
Tinha entendido o recado de Mabel. — vou deixar que
vocês dois conversem.
Mabel nada disse. Apoiou-se na grade baixa da
varanda e esperou que ele falasse.
Tony enfiou as mãos no bolso, e passou a fitar o
asfalto da rua.
266
— Então... — Ela o encarou impaciente. — Veio aqui em
busca de satisfações, apenas?
— Gostaria de conversar com você.
— Estou ouvindo.
— Sabe, Mab... — Ele tentou, obviamente sem saber
bem o que dizer. Provavelmente ensaiara aquela
conversa várias vezes. Não seria tão fácil adivinhar
quais seriam as respostas dela. — Muitas coisas
aconteceram...
— Claro. — Ela interrompeu. — Você me mandou pro
manicômio.
— Por favor, você não sabe o quanto isso é difícil pra
mim.
— Lá é um verdadeiro inferno, sabia?
— Eu sei, eu sei... — Ele procurava não fitá-la. — Mas é
que ficamos tão desesperados... Não sabíamos o que
fazer.
“Nós”. Não apenas ele, mas seu próprio pai.
267
— Então — Ela completou. Batia os dedos
ininterruptamente na grade, um pouco fora de sintonia.
— Resolveram que o melhor era me mandar pra junto
dos meus iguais.
Ele olhou para seus olhos pela primeira vez.
Ela conseguiu identificar irritação nele.
— Eu vou ser direto, tá bom? Quero me desculpar. Não
devia ter deixado que fizessem isso com você. Mas é
que você não toma remédio. Parecia tão paranóica que
eu tive medo que pudesse acabar se machucando.
— Besteira! — Ela disse, deixando o a batucada com os
dedos para bater o pé no chão. — Não tente me
convencer de que fizeram isso pro meu bem. E pra
quem tenta se desculpar, você se justifica demais.
— Acho que você tem razão. — Ele admitiu. — Eu
realmente amo você, Mab.
268
Ela ficou emocionada com a declaração
direta. Já ia enlaçá-lo num abraço quando uma idéia
passou-lhe pela cabeça.
— Tudo bem, tudo bem. — Ela interrompeu-o,
começando a dar as costas. — Estamos juntos de novo.
— Espera Mab. Eu...
Ela já estava a uma distância considerável
dele.
— Vem me pegar hoje á noite. Vamos fazer um passeio.
— Mab! — Ela pôde ouvi-lo irritar-se. — Espera!
Ela não respondeu. Como ela não tinha
pensado naquilo antes? Que estúpida tinha sido. O
lugar mais óbvio para encontrar Joshua era no funeral
de Heather. Se ela dissesse aos policiais que tinha sido
uma grande amiga da defunta, eles lhe concederiam o
endereço da casa funerária.
Agradeceu mentalmente por estar usando
tênis naquele dia. Os saltos seriam um empecilho
269
enorme naquele momento. Andava a passos largos,
observando com atenção principalmente os becos. Por
mais que estivesse de dia, eram sempre lugares óbvios e
ótimos esconderijos para assassinos. Ela sorriu para si
mesma. Assassino. Era como se fosse um filme, e ela a
protagonista.
Era ainda mais excitante. O perigo era real. E
podia estar na próxima esquina.
Deu um grito quando um menino saiu de trás
de uma árvore, correndo em sua direção. Quase colidiu
com ela. Estava brincando de esconde-esconde. Ela
gritou qualquer obscenidade, e colocou o canivete de
volta ao bolso da calça jeans.
Não foi necessário dizer nenhuma mentira para
o detetive Crews. Ele lhe anunciara que estava indo
justamente para lá, e poderia lhe dar uma carona, se
quisesse.
270
O caminho foi curto, e o policial nem ao menos
mencionou a respeito do crime. Conversaram sobre seus
respectivos times de beisebol, times rivais. A camisa
dela tinha a estampa do Seatlle Mariners e ele fizera o
primeiro comentário.
Mabel não viu Joshua ao na mórbida sala.
Reinava ali um silêncio pacífico, o caixão branco
decorado com rendas brancas e flores azuis. Um casal
de meia idade se abraçava, sentados no frio banco de
madeira envernizada, dividindo a dor. Julgou que
seriam os pais de Heather. Havia mais três pessoas no
local, mas Mabel não reconheceu nenhuma delas.
O policial não ficou observando as pessoas.
Entrou na sala espaçosa como se já conhecesse tudo, e
estivesse adaptado ao lugar. Aproximou-se do casal. De
onde estava, Mabel não podia ouvir o que eles
conversavam, mas podia imaginar. Crews deveria estar
dizendo, primeiramente que sentia muito, e que
271
gostaria de conversar com eles o mais rápido possível,
depois do funeral, em sua sala na delegacia.
Ela começava a desesperar-se. Se não
encontrasse Joshua ali, não teria onde procurá-lo.
Provavelmente, como um cãozinho sem dono, ele
deveria ter aceitado a proteção policial, e estava
escondido. Por que ela contava com ele, afinal? Podia
imaginá-lo no quarto de hotel, exatamente como no dia
que ela fora ao apartamento dele: tremendo a cada
barulho e a cada batida na porta.
Viu Joshua entrar.
— Graças a Deus! — Ela exclamou, atraindo a atenção
das pessoas presentes. Ele olhava para ela como se nem
a conhecesse. — Graças a Deus que você veio!
— O que quer? — Ele perguntou baixinho. Como se não
esperasse resposta, continuou caminhando em direção
ao caixão de Heather.
— Preciso da sua ajuda. — Ela seguiu-o.
272
— Sabe que não posso ajudá-la. — Ele olhou para
Heather, e Mabel teve a impressão de que seus olhos
vazios não viam nada. — Peça ajuda pra eles. — Indicou
o detetive Crews.
Mabel percebeu que só estava perdendo seu
tempo.
— Certo, certo. — Ela disse, irritada. Olhou ao redor. A
maioria das pessoas os fitava. — Desejo boa sorte pra
você. — Ela encarou a audiência de volta. — Até um
dia.
Apressada e sem deixar de devolver o
olhar para quem a observava, ela saiu do lugar, a mente
em turbilhão, imaginando o que faria a seguir.
Heather não parecia realmente morta. Na
verdade, Joshua teve a nítida impressão de tê-la visto se
mexer. Ele sabia que as pessoas mortas faziam
273
movimentos parecidos com espasmos, por causa dos
últimos comandos do cérebro. Mas aquilo tinha sido
muito mais do que uma simples contração. Ela tinha se
movido como uma pessoa que está dormindo. Como se
estivesse sonhando. Ele achou mais apropriada a
expressão. Olhou ao redor para ver se mais alguém
tinha percebido. Esperou que alguém dissesse: “Veja,
ela não está morta, não! Ela está viva” . Começou a
chorar, desejando estar sozinho.
Quase não percebeu quando um homem se
aproximou. Ele devia estar na casa dos quarenta anos,
mas vestia bermudas e tênis. Totalmente inadequado
para a ocasião.
— Boa tarde. — Ele cumprimentou, e por um instante
Joshua achou que ele estava ironizando. — Você é
Joshua, certo?
Notou que o homem parecia triste, e até um
pouco abatido. Ele confirmou sua dúvida.
274
— Sou Martin Hoppus, o agente de Heather.
— Heather já falou sobre você.
— E não tem idéia do quanto ela falava de você. — Ele
deu um sorriso triste. —Gostaria que você pudesse vir
ao meu escritório amanhã, na hora que puder.
Ele estendeu um cartão a Joshua e
continuou:
— Quero conhecer você direito.
Cumprimentou-o e saiu. Joshua ponderou se
ele seria louco.
Teve a sensação de que ia desmaiar.
Impaciente, Joshua não esperou até o dia
seguinte para ir ao escritório de Hoppus. Encontrou-o
ás cinco e trinta da tarde.
Com o corpo um pouco grande demais para
sua cadeira, Hoppus ofereceu chá para Joshua, mas não
275
insistiu quando ele não aceitou. Despejou em um copo
descartável uma quantia generosa do líquido, e
recolocou-a sobre sua mesa.
— Acho que você precisa descansar. — Declarou, de
repente.
— É provável. — Imaginou como sua aparência devia
estar horrivelmente desleixada.
— Death of Patience. — Hoppus disse, com solenidade,
depois de um longo gole de chá.
— O que é que tem? — Joshua perguntou, alarmado,
apesar de já saber do que se trataria aquela conversa
desde que falara com o empresário na primeira vez.
— Era um dos lugares em que ela fazia pesquisas
ultimamente. Conhece o site?
— Acho... Acho que já ouvi falar.
Hoppus sorriu.
— É o criador do site, Joshua.
Não houve acusação em sua voz.
276
— Eu... — Ele começou, sem saber o que dizer. Não, não
podia acreditar que além de tudo, seria preso. — Eu
sinto muito. — Foi o que ele encontrou para dizer. —
Jamais imaginei que fosse acontecer algo assim.
— Sei disso. — Joshua percebeu que Hoppus estava
sendo sincero. — Heather gostava muito de você, estava
apaixonada. Pensava em casar, ter filhos, essas coisas
todas.
Ele não respondeu. É claro que sabia que
Heather estava apaixonada por ele, mas não imaginou
que pensasse dessa forma. Ponderou se um dia ele teria
pensado nisso. Ou se viria a pensar.
— Deve estar sendo muito difícil pra você. — Ele
prosseguiu. — Ter sido tão bruscamente arrancado para
fora de sua realidade. — Joshua imaginou o quanto
Hoppus sabia sobre ele. — Heather era como uma filha
pra mim. Sabe que ela teve uma infância difícil no
Colorado.
277
— Heather não gostava de falar de seu passado. —
Joshua considerou o que o agente dissera. — Pra falar a
verdade, a única coisa que sei é que ela morou no
Colorado.
— O pai era um bêbado, a mãe uma drogada. Ela não
tinha irmãos — não que conhecesse. Vivia sempre
sozinha. Com vergonha de seus pais, de sua casa — que
servia muitas vezes de ponto de vendas de drogas.
Vergonha de si mesma. — Ele fez uma pausa, tomando
de uma vez o que restava de chá no copo. — Então, ela
começou a escrever. Achou um mundo á parte,
entende? Um mundo só dela, onde podia se expressar,
inventar do jeito que bem lhe aprouvesse. Não me
admira que ela nunca tenha falado nada disso com você.
Nunca gostou de coisas ruins, embora escrevesse sobre
elas. — Fitou o teto, pensativo. — Lembro do que ela
me disse uma vez. A parte ruim da vida devia ficar
apenas nas páginas de um livro. Para que pudesse,
278
qualquer dia, ser amassada e jogada fora. Se ela entra na
mente, vai para o coração. Então, é definitivo.
Joshua nunca tinha pensado na Heather
sobre quem ele falava. A imagem dela em sua
lembrança estava sempre sorrindo, fazendo piadas,
falando sobre tudo e nada alegremente. Era como se o
homem á sua frente falasse de outra pessoa, ela não se
encaixava nessas descrições.
— Eu a conheci quando ela fez quinze anos. — Hoppus
continuou. — Estava vendendo balas no farol. Fazia isso
treze horas por dia, em troca de míseros dois ou três
dólares. Perguntei por que ela fazia isso, e ela
respondeu sem afetação que era para não precisar
vender drogas em outros lugares. Acabamos por nos
conhecer melhor quando descobrimos que morávamos
na mesma rua. — Ele olhou para Joshua
significativamente. Ele ouvia a história com interesse,
embora sua cabeça estivesse doendo e girando mais do
279
que nunca. — Eu a convidei para jantar em casa, e ela
passou a vir todas as noites, sem ser convidada. —
Como se lesse seus pensamentos, ele disse: — Nós não
tivemos um caso romântico, certo? Acho que era isso o
que estava pensando, mas eu sou casado e tenho dois
filhos, que moram no Colorado. Minha esposa adorava
Heather, e quando nos mudamos para Los Angeles, fez
questão de que eu a trouxesse junto. Á essa hora, já
tínhamos publicado o primeiro romance, ela estava com
quase vinte e seis anos. Minha esposa morreu de um
aneurisma cerebral, e nosso mundo tornou-se apenas eu
e ela.
Joshua procurou notar a dor que ele deveria
estar sentindo, mas não encontrou. Voltou ao presente,
abandonando a expressão sonhadora, admitindo um
rosto preocupado.
— Eu encontrei o Death of Patience, e mandei o convite
para ela. Achei uma ótima forma de inspiração para um
280
livro sobre psicopatas. Mas pensei que se tratasse de
montagens de computador e jogos de câmeras muito
bem feitos.
— São reais.
— Eu sei. Heather me disse. Me falou também sobre as
ameaças que você e sua amiga estavam recebendo
recentemente..
— Ela não é minha amiga. — Ele achou necessário
dizer.
— Pensávamos que fosse.
— Não é, nunca foi. — Ele tinha sido amigo de Filth
Darkness, não de Mabel.
— Acho que Heather só estava no lugar errado na hora
errada. — Joshua concordou mentalmente. — Ela
achava que era algum tipo de trote, uma brincadeira de
mau gosto.
— Ela chegou a me dizer isso. Disse também que a sua
amiga promoveu um encontro com o suposto assassino.
281
— Ontem á noite.
— Exato. Isso só serviu pra satisfazer as vontades de
Farkas.
— Como eu imaginaria isso? — O agente tinha dito o
nome do assassino?
— Eu sei que não pensou nisso, não estou culpando
você. Pelo contrário. Te chamei aqui porque gosto de
você. — Fez uma pausa esperando que Joshua dissesse
alguma coisa. — Gosto de você porque foi bom o
suficiente para Heather.
Ele não soube exatamente o que dizer.
Murmurou:
— Obrigado.
— Tenho certeza que ele vai voltar.
Tornou a encher o copo de chá.
— Claro que vai. — Joshua disse. Sua voz soava-lhe
estranha. Sentia-se fraco até mesmo pra falar. — Uma
282
vez que quem ele procurava era a mim, não por
Heather.
Acabou soando mais rude do que pretendia.
Hoppus olhou fixamente para ele por alguns instantes.
— Não se pergunta até onde eu sei?
Ele não tinha certeza do quanto mais queria
saber.
Assentiu hesitante.
— A Pôr do sol prestou muitos serviços para mim e
Heather. Ela já tinha conversado com o próprio Farkas
pessoalmente.
Joshua deu um sorriso triste. Uma coincidência
irônica. Joey tinha em seus arquivos o endereço do
mesmo prédio em que Joshua morava. Devia ter
conversado com Heather, de forma discreta, até
descobrir a ligação dela com Joshua.
283
— Vá pro hotel, garoto. — O agente finalizou. — Fique
lá até que eles peguem esse maldito ceifador de
tesouros.
Joshua levantou-se, assentindo.
Esperaria Joey em casa, até que ele aparecesse.
Capítulo Dezesseis
Mabel foi recebida no escritório como se
fosse uma cliente. Perguntara por Farkas, e a
recepcionista pedira que ela entrasse e aguardasse na
sala de espera. Não demorou muito até que uma mulher
descesse as escadas em forma de caracol. Estava muito
bem vestida, embora usasse roupas simples. Devia ter
mais de cinquenta anos, mas mantinha a aparência
serena e jovial.
— Gibbs? — Perguntou. Mabel assentiu. Ela fez sinal
para que a seguisse pelas escadas.
284
Exatamente como a proprietária, a sala tinha
um toque de bom gosto, do jeito que só uma mulher
poderia fazer. Ela pediu que Mabel sentasse.
— Sobre o que deseja falar, Srta.Gibbs?
— Sobre Nicolas Farkas. Ele trabalhava aqui.
Mabel viu a surpresa passar por seus olhos,
seguida da tristeza que uma lembrança triste causa.
— O que quer saber? — Perguntou hesitante.
— Onde ele está.
— Não sei onde ele está. — Declarou. — Você é a garota
que presenciou o assassinato?
— Assassinato? — Ela sorriu. — Aquilo foi um
massacre.
— Eu... — As palavras saíam com dificuldade. Mabel
entendeu que ela era muito mais do que a patroa de
Joey Farkas. — Sinto muito pela sua amiga.
285
— É, eu também. Era uma boa menina, sabe? —
Começou a brincar com uma caneta sobre a mesa. — Foi
realmente uma pena.
— O que você quer, afinal? — A mulher perguntou,
bruscamente. Mabel levantou os olhos para ela,
surpresa com o repentino aborrecimento.
— Já disse. Quero saber onde ele está. — A caneta
pulava quando Mabel apertava a mola contra a mesa.
A mulher levantou-se num pulo, na
direção de Mabel.
— Acha que já não basta meu sofrimento? — Mabel
parou a caneta. — Por favor, vá embora. Tudo que eu
tinha a dizer foi dito aos policiais.
Mabel levantou também.
— Os policiais não vão fazer nada. Mas eu vou. E irei
acabar com seu filho. — Virou as costas. — Boa tarde.
286
— Entre. — O pai puxou-a para dentro do quarto dele.
— Sente-se. — Ordenou rispidamente.
Ela obedeceu, entre confusa e irritada.
— Onde diabos você passou a noite? — Ele quase
gritou. Ela passou a mão no braço ligeiramente
machucado, onde o pai tinha apertado. Não estava
disposta a voltar ao assunto.
— Eu estava em casa, dormindo. Não entendo por que
tanta implicância!
— Implicância? — Ele suspirou alto, com impaciência.
— Escuta, Mabel, não minta pra mim. Se você passou a
noite em casa, por que seu nome saiu no jornal dessa
manhã?
Ela tentou disfarçar um sorriso, sem obter
sucesso.
— Meu nome no jornal?
— Pelo amor de Deus, Mabel! Você esteve envolvida em
um assassinato!
287
Ela procurou sua expressão mais inocente.
— Assassinato? Está ficando louco.
— Louco, é? — Ele remexeu uns papéis na gaveta do
criado-mudo, encontrando o jornal do dia.
— Acha que eu assassinei alguém, papai?
Antes de responder, ele entregou o jornal
aberto na mão dela.
— Deve ser sobre outra Mabel Gibbs.
— Não tire sarro da minha cara.
— Acha que estou brincando? Queria eu estar
envolvida em um assassinato, ao invés de estar presa
num quarto, com meu pai me dizendo absurdos.
Estava deixando o aposento.
— Você não vai á lugar algum! Vai terminar essa
conversa.
— Então seja breve porque tenho muito o que fazer.
— Desmarque o que tiver a fazer, pois daqui você não
sai.
288
Ela praguejou, e voltou a sentar-se na cama.
Batia o pé no chão nervosamente, ansiosa para que o pai
terminasse logo de falar.
— Quem é Joshua Dunne?
— Não sei. — Respondeu, sem rodeios.
— Joshua Dunne. — Ele insistiu, apontando o nome no
jornal. Ela balançou a cabeça em negativa. — Porr...,
Mabel! Pare de mentir pra mim!
Ela sentiu seus olhos encherem de lágrimas.
Assumiu uma expressão de desafio.
— Por que você nunca acredita em mim? Pra você e
para aquela estúpida retardada eu sempre tenho que ser
a víbora mentirosa?
— Não fale de Pebble desse jeito. Ela não está em
discussão!
Mabel levantou a voz á altura do tom dele.
289
— Eu não quero mais morar aqui. Não há motivos para
eu ficar. Você não se importa comigo, tudo que te
importa é preservar a sua imagem de família perfeita.
— Não comece a apelar pro emocional. Você sabe muito
bem que está errada.
— Eu estrago tudo, não é? Eu e os meus problemas. Por
que eu tive que nascer? Foi um erro desde o começo.
— Cala a boca!
— Tenho sido uma decepção pra você desde o dia que
eu nasci e matei a mamãe.
Ele segurou-a pelo braço, com mais força dessa
vez.
— Estou dizendo para ficar quieta!
— E agora eu sou a louca bipolar que você deve
esconder da sociedade, para não manchar sua
reputação. Na eterna crise de adolescência que você
despreza.
290
Sem esperar mais, ele deu um tapa no seu
rosto.
— Eu mandei calar a boca!
Pebble surgiu no corredor.
— O que está fazendo?
— Vai se arrepender por isso! — Mabel gritou, antes de
deixar o quarto. Passou por Charlie, que tinha os olhos
arregalados.
Tony demorou apenas alguns segundos para
atender o chamado de Mabel á porta. Ela enlaçou-o
num abraço.
— O que anda fazendo, Mab? — Ele perguntou, com
um carinho triste. Ela apoiou a cabeça no ombro dele. —
Estamos tão preocupados com você!
Ela afastou-o bruscamente para encará-lo.
291
— Eu vim aqui em busca de apoio. — Declarou. — Não
preciso de mais pessoas pra me julgar. Não estou
fazendo coleção de críticas, certo?
Ele puxou-a para dentro da casa. Mabel sentiu
nos olhos dele piedade, e não quis que ele a tocasse.
— Também não quero que tenha pena de mim. Isso é
ridículo, não há motivo para isso.
— Você está doente, Mab. Por que não admite? — Ele
tentou colocar a mão no ombro dela de novo, mas ela o
repeliu. — Por que não toma seus remédios? Seria tudo
tão mais fácil se você fizesse isso!
— Me deixa em paz. — Ela exclamou, deixando a casa
quase correndo.
Que parte do “estou sozinha” ela não tinha
entendido?
Caminhava a passos largos, apertando a
jaqueta contra o corpo, para proteger-se do frio da
tarde. Estava louca, tinham dito. Estava louca de achar
292
que alguém no mundo a compreenderia. Que uma
pessoa normal pudesse gostar dela exatamente do jeito
que ela era, sem tentar moldá-la ou curá-la.
Apertou os passos quase inconscientemente,
precisava pegar coisas em casa. Em parte por causa do
frio, que faz com que as pessoas andem mais rápido, em
parte porque ansiava para fazer o que deveria ter feito
há muito tempo: dar o fora daquele lugar. Desde muito
tempo ela planejava viajar para lugares longes, longes
de forma geográfica e espiritual. Já tinha considerado o
Japão ou Alemanha, fazer turismo, comer comidas
exóticas e conhecer gente diferente. Mas não teria
dinheiro para isso. O que tinha em suas economias mal
daria para cobrir a viagem á Nova York que tencionava
fazer no momento.
Por enquanto Manhattan serviria. Tinha
amigos que conhecera pela Internet que moravam lá.
Pelo menos teria onde ficar.
293
Enfiou tudo o que precisaria em uma mala
pequena. Não era muita coisa. Nada que fosse fazê-la
lembrar da vida que estava deixando pra trás.
O pai surgiu na porta do quarto.
— Eu disse que você não vai a lugar algum.
— Não me importa o que você disse. — Ela terminou de
fechar a mala abarrotada, puxando o zíper com força. —
Você sabe o quanto vai ser muito melhor para você e
Pebble.
Charlie estava ao lado do pai, a expressão
confusa.
— Adeus, Charlie.
Seguiu rapidamente até o ponto de ônibus,
sendo quase atropelada por um táxi no caminho.
Colocou os fones de ouvido, enquanto o ônibus
sacolejava. Acompanhou a música, como sempre fazia
se estava triste, sentindo a letra bem no fundo do
coração. Sim, ela vivia uma vida solitária, onde
294
ninguém a entendia. Sorriu para si mesma. A música a
entendia, entendia seus suspiros gritados...
A viajem até o aeroporto foi rápida. Ela desceu
no ponto e caminhou um pouco até o aeroporto. A mala
estava mais pesada do que ela previra. Amaldiçoou sua
idiotice de levar tantas coisas que ela poderia comprar
no caminho, como aquele monte de roupas. Ajeitou o
fone de ouvido quando ele quase caiu. Sentia-se muito
mais calma agora.
Passou por uma garotinha sentada na beira da
calçada, obviamente esperando por algum adulto. Ela
comia salgadinhos, e tinha a boca cheia de migalhas.
Sorriu para Mabel, e ela retribuiu o sorriso. Fez com que
ela se lembrasse da própria infância. Apesar de não ter
sido fácil — Uma criança hiperativa, com a mente
sempre a um milhão de léguas longe. Mas a vida era
melhor, pois ela sempre acreditava que tudo ia ficar
295
bem, e que as broncas e castigos do pai logo seriam
coisas do passado.
Entrou no aeroporto, ouvindo o ruído das
pessoas, e vendo-as passar apressadas. Tudo ia ficar
bem, agora. Ela tinha certeza disso.
Era a primeira vez que viajava sozinha, mas
sabia bem o que fazer. Seguiu até a bancada para
comprar a passagem.
Conversou com a mulher sentada atrás da
mesa alta de madeira. Ela tinha o cabelo grisalho preso
em um coque, e olhos altivos. Observou Mabel de forma
crítica, e ela teve medo de que a mulher a tivesse ligado
seu nome ao crime em Westwood.
— Aguarde um minuto. —A secretária disse, antes de
levantar, mal-humorada. Desapareceu numa sala
adjacente.
Passaram-se dois minutos, sem que a mulher
retornasse. Ela estremeceu. A polícia tinha sido clara ao
296
avisá-la para não deixar a cidade antes que as
investigações estivessem concluídas. Dane-se a polícia. Eu
não sou uma criminosa.
O celular vibrou em seu bolso, acompanhada de
uma música instrumental que a irritava, mas ela sempre
se esquecia de substituí-la por outro toque. Reconheceu
o número no identificador de chamadas. Vinha de sua
casa. Desligou. A mulher não tinha voltado ainda,
começou a ficar alarmada. Talvez seu plano não desse
certo. Lembrou-se de repente de Joey — Ou Nicolas,
dando-se conta do por que de estar ali. Não importava
mais a vingança. Ela só queria dar o fora. Deixou a
bancada. Daquela maneira não iria a lugar algum. Se
queria sair de Los Angeles precisaria achar alguém para
subornar. Olhou ao redor, á procura de um segurança
com cara de idiota.
Caminhou em direção a ele, mas parou no meio
do caminho. Joey estava lá. Como a teria descoberto ali?
297
Ela começou a recuar, mas repensou. Não deveria ter
medo dele. Não depois de tudo que ele tinha feito,
depois de seu assassinato estúpido quase impedi-la de
viajar. Agarrou a mala com força. Não, não permitiria
que ele escapasse impune dessa.
Não tinha visto muito bem, pois ele estava de
costas, caminhando na direção contrária, Procurando
por ela. Bom, ele acharia. Correu na direção dele, mas
não longe o suficiente para não ouvir a secretária
chamá-la. Não voltou. Percorria com os olhos a
multidão. Ele estava perto de uma vitrine.
Nem ao menos notara o policial que estava
atrás dela. Deu um grito quando ele segurou seu braço.
Sentiu um alívio ao virar-se e ver que não era Joey a
segurá-la com força. Demorou alguns segundos para
que ela entendesse o que estava acontecendo.
298
— Me larga, seu idiota! — Ela gritou, debatendo-se.
Outro policial segurou-a também, ela não obteve êxito
na tentativa de escapar.
Precisava ir pra Nova York o mais rápido
possível.
— Por que estão fazendo isso, seus imbecis? — Ela
tentou morder a mão dele, sem se importar com as
pessoas que observavam a cena, com espanto e
curiosidade. Gritou para eles: — Sádicos do inferno!
Três homens vestidos com uniformes de
hospital. Ela gritou. Sabia o que aconteceria agora. Eles
enfiaram uma agulha em seu braço agitado, e ela sentiu-
se acalmar.
Estava de volta ao inferno.
Capítulo Dezessete
Sobressaltado, Joshua abriu os olhos, lançando
um rápido olhar para o relógio. Não passavam das onze
299
da manhã, mas ele sabia que não conseguiria dormir
mais. Com um suspiro, afastou as cobertas, ligeiramente
tremendo de frio. Decidiu levar a manta azul para a
sala.
Deitou-se no sofá, cobrindo-se até o pescoço.
Já tinha gostado do inverno, mas era passado. Sua vida
parecia ter-se dividido em duas etapas: Antes e depois
de Heather. A primeira etapa tinha sido solitária, e
olhando agora para trás, vazia. A segunda etapa estava
sendo difícil, e ainda mais solitária. Pior ainda, tinham
começado os pesadelos. Por várias vezes ele acordara
no meio da noite, sempre o mesmo sonho: Heather e a
cadeira. Ainda podia ver as manchas de sangue no
assoalho bege. Embora tivesse considerado a idéia de
mudar-se de casa, sabia não ser esse o real problema.
Podia rever a cena com assustadora clareza quando
fechava os olhos, e tinha certeza de que não dormiria
em paz novamente.
300
Trocava os canais da televisão, mas não
conseguia concentrar-se. Tinha passado diversas vezes
pelo mesmo canal, e perguntou-se por que mantinha a
TV á cabo, sendo que nunca passava nada de bom.
Desistiu do controle remoto.
Tinha sido um sonho diferente dessa vez. O
assassino prendia Heather, com uma faca em seu
pescoço. Joshua não fazia movimentos bruscos até que
tivesse a certeza de que Joey tinha ficado distraído por
apenas um instante. Um instante suficiente para que ele
desse um golpe e tomasse a arma dele, deixando ele
inconsciente. Libertava Heather, e eles corriam pra
longe... Muito longe...
Quando abriu os olhos novamente, o relógio
digital do rádio mostrava duas e sete da tarde. Tinha
ido dormir mais tarde do que de costume, resolvendo o
problema de última hora de um cliente. Estava de volta
ao computador. O telefone começou a tocar, mas ele
301
ignorou. Provavelmente era a companhia de telefone,
cobrando-lhe a conta de dois meses atrasadas. Ele não
precisava de telefone, decidiu. Era apenas mais uma
conta a pagar, mais um problema. Precisava cancelar.
Faria isso assim que tivesse um tempo disponível.
Acessou sua conta do Death of Patience, e
respondeu os recados de sua página. Reconhecendo sua
curiosidade mórbida mais do que o medo e a paranóia
que a situação deveria ter-lhe provocado, ele procurou
por Joey. Como tinha imaginado, a conta estava
expirada.
Era a primeira vez que ele procurava por Joey
depois da morte de Heather. Considerava a hipótese de
ele ter-se infiltrado com outro apelido. Estranhamente, a
idéia de que poderia estar sendo vigiado não lhe
causava arrepios como talvez devesse causar. Ele sentia
que alguma coisa, algo realmente importante dentro
302
dele tinha morrido para sempre. Restava saber o que
era, mas ele não estava interessado.
Logo depois da morte de Heather, Joshua
recebera recados de alguns dos membros mais
chegados, de forma secreta, que lhe deram os pêsames
pela morte da garota. Aquilo o surpreendeu mais do
que o deixara irritado. Sua identidade não era tão
secreta quanto ele gostaria que fosse. E isso parecia
perigoso.
Teve que rir para si mesmo. Perigoso... O que
mais poderia acontecer? Então foi confortante receber
aquele apoio, não para Billy, mas para Joshua, embora
em momento algum tivesse sido mencionado seu nome
verdadeiro.
O estranho também, ele relembrava agora, era
o fato de Mabel, Filth Darkness, ter desaparecido
também. Sua conta continuava ativa, mas ela parecia
não ter entrado mais no site por muito tempo. Ele
303
tentou achá-la no outro site de relacionamentos onde a
conhecera, mas ela também não tinha aparecido por lá.
Era mera curiosidade, ele achava a situação intrigante.
Perguntou-se se um dia tornaria a vê-la.
Esperava que não.
De início tinha sido desesperador estar de
volta aquele lugar, mas agora só parecia-lhe triste.
Mabel reviu Jim. Ele ficou emocionado ao vê-la,
repetindo sem parar que agora eles se casariam sem
demora, antes que ela partisse novamente. Então ela o
acalmara com ironia, dizendo para que ele não se
preocupasse. Ela não iria deixar aquele lugar nunca
mais, a menos que seu pai falisse de dinheiro, então iria
para um hospício público.
Mas tinha sido um bom ano para os
negócios. O pai mantinha o bar aberto, e as coisas
304
melhoraram em casa depois que ele abriu uma
lanchonete filial. Pelo que ele contara em sua última
visita, Pebble também arrumara um emprego de meio
período. Mabel comentara: ’Finalmente aquela
vagabunda resolveu fazer algo de útil na vida, e tirar
aquele traseiro gordo da cadeira’. Ele a fez lembrar de
que ela também nunca tinha trabalhado antes da loja de
roupas, e deixara-a na sala de visitas, quinze minutos
antes que o tempo acabasse.
No tempo que passara ali, Mabel descobriu
que podia ser bem confortável, e até mesmo divertido
ser louca. Se ela era uma demente não precisava se
preocupar com o que os outros iriam pensar. Dessa
forma, começou a liderar movimentos, greves e
travessuras estúpidas, rapidamente conquistando a
amizade dos pacientes mais infantis, tais como Jim.
Passou a deixar de lado sua apatia inicial, reconhecendo
que aquilo a fazia sentir-se ainda mais sozinha e
305
deprimida. Tinha ido parar na sala da diretora do
hospital três vezes, sendo castigada uma vez. Ficou
trancada no quarto, sem direito a almoço.
Jim entrou no quarto de Mabel estremecendo
com o barulho da porta batendo atrás de si. Trazia um
aparelho de cd portátil nas mãos, a expressão excitada.
— Onde arrumou isso? — Ela perguntou.
— Magda me emprestou. Mas acho que está quebrado.
— Ele inspecionava o aparelho. — Não consigo ligar ele.
— Deixa eu ver. — Ela tirou da mão dele. Realmente
não ligava. — Está quebrado. Onde ela arrumou isso?
Ele deu de ombros, e começou a abrir o disk
man, na tentativa de consertá-lo.
— Ah Deus... — Ela reclamou, recostando-se na
cabeceira da cama. — Gostaria de assistir um bom filme
de terror.
— Gosta de filme de terror? — Ele indagou,
concentrado em seu serviço.
306
— Adoro um bom susto.
— Eu fico com medo. E não gosto de ficar com medo.
Ela riu.
— Não gosta de adrenalina, Jim?
— Meu médico me disse uma vez que adrenalina é o
que eu tenho demais... — Ele prendeu o dedo, e soltou
uma exclamação de dor. — E energia. Achei que isso
fosse bom, mas... Se eles dão remédio contra energia,
não deve ser tão legal assim...
— Esses médicos não sabem de nada. Sabe o que eles
têm a mais do que nós? Um diploma pendurado na
parede.
— E uma cuca boa. — Ele completou com um sorriso. —
Inteligente e saudável. —Pronunciou as palavras bem
devagar, como se as tivesse ensaiado.
— Saudável... — Ela repetiu. — Depende do que se
entende por saudável...
Ele ficou confuso.
307
— Saudável é o contrário de doente. Se você é saudável,
não está doente.
— E se você for doente, mas controlado com remédio,
você deixa de ser doente?
— Se é o que está insinuando, eu tomei Haldol hoje. E
não reclamei.
— Sei disso. Só estou dizendo que... Esqueça. A verdade
é que ser saudável ou não é uma questão de escolha.
Eles me dizem que estou doente, mas me sinto
realmente bem, o tempo todo. Com ou sem esses
malditos anti-psicóticos que nos fazem tomar, pra nos
deixar ‘sob controle’. Isso me assusta, pois fazem meus
músculos se contraírem o tempo todo. Me sinto louca
desse jeito.
— Sei... — Ele disse, sem prestar muita atenção.
— Por outro lado, me sinto realmente sã nesse lugar. —
Olhou ao redor, considerando as pessoas daquele
hospital. — Muito sã.
308
Jim sorriu, satisfeito. Tinha conseguido
consertar o aparelho de cd.
— Pois é, muito sã. Veja isso, Millie! Consegui!
Ela colocou o fone de ouvido, constatando
que ele realmente tinha consertado. Uma música
country estava tocando, e ela logo tirou os fones do
ouvido.
— Certo... — Ele murmurou, levantando-se. Puxou-a
pela mão. —Vamos devolver isso á Magda.
Sem alternativa, Mabel o seguiu pelo corredor.
Encontraram a garota rechonchuda e de bochechas
rosadas sentada numa cadeira do refeitório. Ela
estendeu as mãos ansiosas para Jim.
— Millie consertou pra você. — Ele disse. — Acho que
ficou per... — Não terminou a frase por causa de um
acesso de tosse repentino.
309
— Está bem? — Bertha perguntou, entrando na
conversa. Era pequena como uma criança, os olhinhos
azuis cintilantes.
—... feito. — Ele conseguiu completar, restabelecendo-se
com seu largo sorriso habitual.
Magda já tinha colocado os fones no ouvido
para comprovar o resultado.
— Ficou ótimo, Jim. Obrigada, Millie.
Mabel murmurou de nada, e deixou o
refeitório, novamente impelida por Jim. Recomeçaram a
caminhar pelo corredor.
— O que vai fazer agora? — Ela perguntou.
— Sei lá.
— Quer jogar cartas? — Era o que eles mais tinham feito
juntos nos últimos tempos.
Sentaram-se ao redor da mesa quadrada, com
mais dois dos pacientes do hospital. Por causa do frio,
310
foi-lhes permitido colocar a mesa do lado de dentro, não
no jardim, como eles costumavam fazer.
Robert, o dono o bigode mais estranho que
Mabel já vira, pegou as cartas para embaralhá-las.
Distribuiu-as com sua habitual rapidez.
Quem pegou as primeiras cartas colocadas
sobre a mesa foi Bertha, a menina franzina que dissera
ter a mesma idade de Mabel, mas parecia pelo menos
vinte anos mais velha.
— Prontos? — Jim perguntou, sensacionalista. Mabel
jogou a primeira carta. — Vocês não acham que deveria
ter um piano no Saint Clair? Todo hospício tem um.
— Eu ouvi dizer que Magda está namorando. — Robert
falou. —E que o namorado deu um diskman para ela.
— Eu acho que não... — Jim opinou sabiamente. —
Acho que foi a mãe que deu para ela.
Robert deu de ombros.
— Bom, foi o que eu ouvi...
311
— E onde está esse tal namorado? Só a mãe e a irmã
vêm visitar ela. Nenhum menino... Nenhum.
— Droga, Jim! — Ele bateu na mesa com os punhos
fechados. — Foi só o que me disseram!
Jim levantou os braços em redenção.
— Certo, Robbie. Tudo bem.
O jogo prosseguiu em silêncio. Jim passou
um ás de espadas por baixo da mesa para Mabel. Ela
sorriu pra ele com cumplicidade.
— Não é sua vez. — Ele disse, paciente, quando Bertha
jogou uma dama. — É a vez de Robbie.
Ela deu um sorriso sem graça.
— Ah... É mesmo... — Ela aguardou com impaciência.
— Agora sou eu. — Ele declarou como se estivesse
ensinando-na.
Foi novamente interrompido por um acesso
violento de tosse, retirando-se da mesa e correndo para
a cozinha.
312
— Coitado... — Bertha declarou piedosa. — Tive uma
tia que morreu de tanto tossir.
— Isso é bobagem. — Robert disse. — Ninguém morre
de tanto tossir.
—Minha avó morreu! — Declarou, indignada. Mabel só
desejou que Jim voltasse logo. — Está dizendo que
minha avó não existiu?
— Só estou dizendo que ninguém morre de tanto tossir!
— Talvez ela tenha pegado uma doença. — Mabel
acudiu. — Como pneumonia ou...asma.
— Sei não. — Declarou, considerando-a por um
momento. — Eu sei que ela morreu tossindo.
Jim retornou e voltou a sentar-se.
— Qual de vocês me roubou? — Perguntou, com um
sorriso.
Não ter relógio no Saint Clair era uma das
coisas que mais irritava Mabel. Era verdade que ela não
313
tinha horários ou compromissos, mas sempre tinha sido
muito ligada no tempo. Quando pequena, ela lembrava-
se, o pai lhe dera um relógio de pulso, com a Minnie
desenhada. Ela nunca tinha sido fã do Mickey Mouse,
ou de qualquer desenho animado, mas adorara o
presente. Só o tirou do braço quando ele quebrou. Tinha
ficado muito triste naquele dia, chorou no colo do pai
sob a promessa de comprar-lhe um relógio novo e ainda
mais bonito. Não se lembrava se o pai tinha cumprido
realmente seu juramento.
Era uma cena que tinha ficado escondida
em algum lugar do passado. Ela não se permitia ter
acesso a essa parte que escondera no coração, porque
sabia que seria dolorido demais pensar no que fora
forçada a abandonar. Despertaria a saudade, lembraria
do amor que tinha ficado para fora dos muros do Saint
Clair. Então, viria o ódio inútil e devastador. Ela
precisava esquecer.
314
A cena do pai sorrindo para ela quando
criança não saía de sua cabeça. Ele acariciava seu cabelo
e dizia o quanto ela era bonita e importante para ele. Ela
tinha ficado doente, e precisara ser internada por causa
de uma inflamação na garganta. Mas ela não se
importou, porque sentiu pela primeira e única vez o
quanto o pai a amava. Sempre soubera, mas ouvi-lo
dizer aquilo era bom demais. Naquele tempo ela ainda
tinha medo de escuro...
Virou-se pro outro lado da cama. Jim
aproveitava a fraca luz do corredor para ler. Estava
deitado ao contrário, com os pés onde deveria estar a
cabeça, o rosto apoiado nos cotovelos e a expressão
compenetrada. Ela não entendia como ele não
desenvolvia um sério problema nas vistas por forçá-las
assim. Ou por que não dormia e esperava amanhecer
para ler seu romance policial.
315
— Jim...? — Ela chamou, num sussurro para não
acordar Bertha, sua companheira de quarto.
— Sim?
— Por que acha que não temos relógios por aqui?
— Porque não precisamos de um. — Ele respondeu com
simplicidade, voltando-se para ela na semi-escuridão.
— Eu gostaria de ter um relógio de parede. — Ela
considerou a própria afirmação. —aqui no quarto,
talvez.
— Pra quê? Não faz diferença, Millie.— Ele voltou a
atenção para o livro.
Ela trocou de posição, as mãos cruzadas sobre
a barriga.
— Você gosta daqui, Jim? Gosta de saber que vai passar
o resto da vida preso aqui dentro?
— Não sei. — Ele ficou pensativo, tirando os olhos do
livro. — Acho que já me acostumei.
316
— É, eu também. Mas é desesperador saber que não
vamos nunca mais viver como era antes... Como as
outras pessoas. — Ela se lembrou de sua casa, do pai e
de Charlie. — Eu achava que um dia ia me formar em
qualquer coisa, casar ter filhos. — Ela riu. —Sabe?
Talvez essa vida aqui seja muito mais interessante...
— Eu não sei se gostaria de voltar, Millie. Parece que as
pessoas aqui me dão muito mais atenção do que em
casa. Minha mãe nunca foi muito paciente, e meu pai
estava sempre trabalhando.
— Não tem irmãos?
— Dois, mas eles achavam que eu sou louco.
— Por quê?
— Eles diziam isso. Riam de mim... Eu sei que riam.
Achavam minhas idéias estranhas, e tudo que eu fazia
era errado.
Isso a fez lembrar-se de sua própria casa.
317
— Você tinha amigos? Quero dizer... Amigos de
verdade?
Ele deu de ombros, com um meio sorriso.
— O pessoal aqui é meu amigo. Você é minha amiga.
Não quero voltar pra casa.
Ela o considerou, em parte concordando.
— Acho que vai chegar uma hora que não vou suportar
esse lugar.
— Então...?
— Então o quê?
— O que vai fazer quando não suportar mais?
— Enlouquecer. — Deu uma risada curta. — Bem
conveniente.
— Você poderia fugir. Dar o fora.
— Num caminhão de comida? Cavando um túnel?
Ele sentou-se na cama, marcando a página
do livro com um pedaço de papel.
318
— Não. Eu teria uma idéia melhor. — Ela também se
sentou, ouvindo com estranha atenção. — Um dia, eu
fui ao shopping com minha mãe. Faz muito tempo...
Bom, tinha uma saída de emergência. Sabe o que é uma
porta de emergência?
— Sei.
— Eu não sabia, mas ela me explicou que todo lugar
público tem uma saída de emergência, pro caso de
incêndios ou... Emergências.
— E onde entra seu fabuloso plano nessa história?
— Saint Clair não é exatamente um lugar público, mas
eu vi uma dessas portas no fundo do pátio.
— Que eles mantêm devidamente trancada. — Ela
concluiu. — E sem chances de arrombo, provavelmente.
— Eu não pensaria em arrombar, isso seria coisa de
marginal.
— E...?
— Se houvesse um acidente, poderíamos sair por ela.
319
Ela suspirou, decepcionada.
— Não há muitas chances de isso acontecer aqui.
— Não naturalmente.
— O que quer dizer com isso? — Seu interesse renovou.
— Eu sei exatamente onde a tia Anna guarda os palitos
de fósforo. É apenas uma questão de como pegá-los.
— E depois? — Ela notou a conversa casual tomar outro
rumo, e Jim mudar os verbos de ´seria´ para ‘é’.
Ele ficou confuso, como se achasse que era
óbvio ela entender o que acontecia a seguir. Respondeu
mesmo assim:
— Nós damos o fora, claro.
— Sabe que faz sentido? — Ela ajeitou as pernas na
posição de ‘indiozinho’, como fazia na pré-escola. —
Poderíamos realmente conseguir.
— Claro. — Ele admitiu, com um sorriso modesto. — É
viável.
320
Ela imaginou o que aconteceria com eles se
fossem pegos. Avaliando tudo, não havia muito a
perder. Eles já estavam condenados.
— Mas para onde iríamos?
— Era de noite, a luz tinha acabado, e os geradores não
funcionaram. — Ele começou, sem responder a
pergunta de Mabel. — Muitos doidos são escotofóbicos.
Sabe o que é escotofobia, Millie? — Ela balançou a
cabeça em negativa. —É o medo exagerado e
incontrolável do escuro. Imagine só a confusão que
ficou esse lugar!
Ela sorriu.
— Deve ter parecido um hospício.
Ele retribuiu o sorriso.
— Magda,coitada, era a que mais chorava. Então a tia
Julia gritou para que alguém pegasse uma vela, um
fósforo, um lampião...
321
Mabel imaginou a enfermeira gorda
gritando desesperada por um lampião e começou a rir.
— Ela falou pra eu procurar na cozinha. — Ele
continuou. — Disse que estava na porta debaixo do
armário marrom, e que a chave ficava dentro do vaso.
Guardei esse segredo até hoje, porque imaginei que
usaria essa informação em alguma outra ocasião.
— Você levou os fósforos, e o pessoal se acalmou?
— Mais ou menos. Tio George demorou para achar as
velas no sótão, iluminado só com o palito de fósforo que
eu levava. E não foi legal vê-lo levar um tombo
daqueles no degrau da cozinha.
Ela riu.
— Deve ter sido, sim.
Jim sorriu.
— Se importar, as velas ficam no armário de metal do
sótão, do lado das caixas de papelão.
— Certo, vou me lembrar disso.
322
— Acha que nossa memória é como se fosse cercada por
elásticos, como dizem? Ou ela tem um limite de
capacidade, não devemos enfiar tudo que vemos pela
frente?
— Gosto de definir prioridades.
Ele deitou-se, a cabeça recostada nos braços.
— Eu deixo entrar tudo que vejo pela frente.
Um silêncio pensativo prevaleceu por alguns
segundos.
— E o que faremos depois, Jim? Pra onde iremos?
— Deixe que o destino se encarregue do resto. Deixe
acontecer naturalmente...
Ela soltou um suspiro.
— Não é tão fácil deixar o depois para depois.
A colega de quarto acordou e lançou-lhes um
olhar reprovador. Apesar de manterem o tom baixo da
voz, começavam a pertubá-la.
323
— Acho que precisamos domir. — Jim disse, colocando
o livro embaixo do travesseiro.
— Parece que sim.
Mabel recostou a cabeça, pensando se iriam
realmente fazer aquilo. Ela reconhecia ser audaciosa o
bastante, mas e quanto a Jim? Não poderia fazer
sozinha. Achava mesmo que se permanecesse ali mais
um ano, enlouqueceria.
— Jim? — Ela tentou novamente, minutos depois.
— Hum?
— Você me disse que não sentia necessidade de sair
daqui.
— E não sinto. Mas acho que seria legal uma aventura.
Ainda mais com você. Por você.
Ela sentiu a sinceridade dele, e lembrou-se do
que havia de muito ali, e de pouco no mundo lá fora:
sinceridade.
324
— Obrigada. — Ela sentiu-se tentada a perguntar
quando, mas ainda não tinha certeza se Jim realmente
faria. Ele acabou respondendo sua pergunta com uma
risada baixa.
— Não teria ido uma boa idéia? Minha mãe sempre
disse que eu leio demais...
‘Teria sido uma boa idéia. ’
Capítulo Dezoito
Era estranho que agora Joshua se sentisse
sozinho em casa, já que tinha passado a maior parte dos
últimos três sem se importar com isso. O problema era
não ter pra onde ir.
Muitas vezes ele saía na rua de madrugada, só
para vagar. Ter uma noite de sono tranquila tornara-se
impossível, e isso só complicava ainda mais sua difícil
situação. Considerou a idéia de arrumar um emprego
fora de casa, até mesmo estudar alguma coisa. Mas
325
chegou á conclusão de que o mundo lá fora era muito
perigoso. Recostou-se no sofá, avaliando sua vida nos
últimos dias. A familiar sala escura, onde o único ponto
de luz era a tela do computador. Talvez o mundo ali
dentro fosse ainda mais perigoso.
Passava das sete da manhã, mas isso não
fazia qualquer diferença. Tinha passado outra noite em
claro, e sabia que tinha os olhos injetados. Talvez
devesse comer. A televisão estava em volume baixo,
mas ele ouvia bem a discussão acalorada de Patolino e
Perna Longa. Joshua sabia que o coelho venceria outra
vez, usando sua esperteza.
A campainha tocou várias vezes antes que
Joshua notasse. Enrolou a manta no corpo e observou
do olho mágico. Era uma garota. Tinha o cabelo loiro
preso em um rabo de cavalo, e trazia sacolas nas mãos.
Ele não a reconheceu.
326
— Entrega da padaria. — Ela anunciou, estendendo um
pacote de papel. Mascava chiclete ruidosamente.
Ele ficou confuso.
— Eu sou nova no serviço. — Ela explicou com
paciência. — O outro menino foi demitido.
— Mas eu não pedi nada, ainda. Eu acho...
— Avenida 33, quinto andar, apartamento 20? Deve ser
você.
Ele coçou a cabeça, na tentativa de lembrar-se.
Era possível que tivesse pedido algo.
— O que tem aqui? — Ele perguntou, abrindo o pacote.
— Um litro de leite e dois croissants.
— Bom, pode deixar aqui.
Ele pagou e deu a gorjeta. A menina o
encarou por um momento.
— Se sente bem, moço?
— Claro.
Ela ainda o observou mais um pouco.
327
— Obrigado. — Ele finalizou a possível conversa,
batendo a porta em seguida.
Voltou a deitar-se no sofá, bebendo o leite
diretamente da garrafa. Sabia que não teria força
suficiente para levantar dali mesmo se quisesse.
Começou a chorar. Sabia que não era tristeza, mas sim
desespero. Desespero por não ter aquilo que precisava
urgentemente. Por não saber do quê precisava tão
urgente
Já era tarde quando Joshua tornou a abrir os
olhos, surpreso por ter dormido tanto tempo. Levantou-
se um pouco cambaleante do sofá, tropeçando na
garrafa de leite. O líquido derramado no chão o fez
lembrar de outra cena. Uma garrafa de vinho jogada no
tapete branco da sala, na manhã seguinte á uma festa
que ele dera em casa. Deparara-se com uma menina
dormindo na cama de sua mãe, sem que ele nem ao
menos soubesse quem era. A bagunça da festa tinha
328
sido uma lição para que Joshua jamais desobedecesse a
sua mãe de novo.
Enquanto limpava o leite derramado do chão,
ele imaginou como teria sido sua vida se ele não tivesse
ido embora de casa. Não seria melhor, reconheceu.
Ainda estaria naquela cozinha empoeirada, sentado á
mesa com sua mãe. Ele, com os pensamentos distantes,
ouvindo-a mastigar ruidosamente. Ela diria de repente
que Joshua precisava se esforçar mais na escola, pois do
jeito que estava indo, se tornaria um vagabundo, como
tinha sido seu pai. Então, ela soltaria um comentário
casual de como ele se vestia mal.
A cabeça latejava novamente. Joshua largou
o pano de chão. Não tinha conseguido tirar a mancha
do tapete, deu-se por vencido. Precisava de uma
aspirina.
Ultimamente, ele vinha pensando muito
sobre a vida. Refletiu mais uma vez, empurrando o
329
comprimido com um gole de água. Era angustiante
pensar o tempo todo. Gostaria de não pensar nunca
mais. Ser lobotomizado, quem sabe. O que faria agora?
Eram exatamente quatro e cinquenta e sete da tarde, e
ele não tinha absolutamente nada pra fazer. Na
verdade, não sentia vontade de fazer nada do que tinha
a fazer. Com passos lentos e a mente dormente, ele tirou
o abridor de latas da gaveta do balcão. Estava velho e
enferrujado. Há muito tempo que decidira comprar
outro, mas sempre acabava deixando pra depois. Aquilo
pareceu de grande importância naquele momento, mas
ele teve que ignorar. Não poderia mais resolver aquele
problema.
Por um instante, ele fitou os próprios pulsos.
Seria mais fácil se tivesse um canivete á mão. Devagar, e
com cuidado, ele passou a lâmina sobre uma das veias.
A segunda veia foi cortada com pressa e fúria.
330
Deixou-se cair no chão, quase sem dor. Tudo
que sentia era um imenso vazio. Sua vida era boa, até
Heather chegar e mostrar-lhe que poderia ser muito
melhor. E depois o abandonou. Estava sozinho. Ela
tinha enganado ele. A vida nunca poderia ser boa o
suficiente para ninguém.
O mundo imenso e sombrio ao redor girava e
vacilava. Ele sabia estar caindo de um imenso abismo,
pois não conseguia apoiar os pés. Talvez o chão não
existisse. Talvez fosse uma mentira, como todo o resto.
Estava tudo ficando escuro.
Teve a impressão de ouvir a campainha.
Considerou a idéia de ser Heather, mas logo a afastou.
Heather estava morta. Morta.
Mal reconheceu os gritos que saíam com
dificuldade de sua garganta como seus. Poderiam até
não ter sido, se eles não estivessem queimando tudo por
dentro.
331
Tinha sido um erro. Deveria telefonar para o
pronto socorro, e pedir ajuda. Tentou levantar, mas o
corpo recusou-se obedecer ao comando do cérebro.
Então, ele entendeu que era tarde demais.
Era a primeira entrevista de emprego que
Nicky conseguia. Mandara seus currículos para
diversos escritórios, e estava disposto a não perder esse
emprego.
Vestiu seu melhor terno, esperando que
ninguém reparasse no furinho do colarinho azul. O
lugar era uma contabilidade também, afinal, Pôr-do-sol
tinha sido seu único emprego em toda sua vida. Ele não
tinha certeza se sabia fazer alguma outra coisa.
Reconhecia ser um trabalho cansativo e entediante, mas
precisava de dinheiro, até que, um dia, pudesse
332
sobreviver apenas de sua arte. Por enquanto, apenas
caçava um agente, e torcia por muita sorte.
Nicky entrou no escritório pequeno, muito
menor do que ele esperava. Cumprimentou
polidamente a secretária simpática e achou ter saído-se
muito bem na entrevista quando partiu. Na semana
seguinte, foi contratado e encontrou um homem
disposto a agenciá-lo. Considerando tudo, talvez tivesse
sido sua semana da sorte.
A verdade é que ele tinha sido um cara de
sorte nos últimos meses. Apesar do terrível fracasso
daquela noite fatídica.
Ele chegara em casa, e trancara-se no quarto.
Afundou a cabeça no travesseiro. Sua mãe abrira a
porta, preocupada. Nicky nunca saía de casa depois do
anoitecer, e tinha desaparecido por uma hora inteira.
Ela acendera a luz e sentara-se na cama, ouvindo seus
soluços abafados.
333
— O que aconteceu, Nicky?
Ele ergueu-se na cama, mostrando as mãos
cheias de sangue. Tinha o rosto encharcado de lagrimas.
— Eu matei uma mulher.
Ela ficou vários instantes estática, até
absorver a informação.
— Alguém viu? — Perguntou.
— Não sei... — Ele disse, desatando a chorar
novamente. — A culpa não foi minha! — Ele começou a
gritar. — A culpa não foi minha!
— Conte. — Ela falou, numa paciência forçada. —
Conte tudo, Nicky.
Ele contou. Desde os espíritos que se
libertavam quando era escuro, da sua missão, sobre os
demônios que habitavam entre as pessoas. Deixou-se
desabafar, falou sobre como as coisas iam de mal a pior
nesse mundo enorme e fora de controle, como se sentia
mal em pensar nas crianças que morriam de fome por
334
causa dos erros das pessoas que permitiam que o mal
entrasse em suas vidas, e dominasse seus corações
fracos. O desejo era uma das armas usadas contra elas,
alvos fáceis e descuidados. Depois, vinha o ódio. E o
medo. Então, essas forças negativas eram liberadas tão
sorrateiras que ninguém percebia. Se fortaleciam a cada
vez que uma alma se entregava nas mãos da morte, sem
que estivesse a salvo, do lado do bem. Ele reconhecia as
próprias fraquezas, mas entendia-se bem demais como
ser humano para deixar-se levar por elas.
Ela ouviu tudo calada. Deixou que ele
chorasse por mais alguns instantes, depois se levantou,
começou a colocar roupas em uma mala. Ela tinha
permanecido esquecida no fundo do guarda roupas por
muito tempo. Fora usada apenas uma vez, quando os
dois fizeram uma viajem juntos, há muitos anos atrás.
Havia outra viajem a ser feita. Mas dessa
vez ele iria sozinho.
335
A passagem foi-lhe arranjada para a manhã
seguinte, e horas depois, ele estava em um aeroporto da
Flórida, sentindo muita falta de sua mãe.
O lugar estava apinhado, e aquilo lhe
causava arrepios. Tinha que apresentar-se com um
nome diferente, a mãe lhe aconselhara a deixar a barba
crescer e cortar o cabelo. Não lhe agradava ter que fingir
ser outra pessoa. Mas não havia outro jeito. Pelo menos
até que entendessem o seu motivo, e reconhecessem que
aquilo era o melhor para todos. Seguiu até o banheiro,
sentindo-se sufocado. Talvez não fosse o aeroporto
lotado que o fazia sentir-se assim, mas seus próprios
sentimentos. E o medo. Ele balançou a cabeça para
espantá-lo. Não deixaria que fosse assim.
Um rapaz acabara de entrar em um dos
banheiros. Não devia ter mais do que vinte anos,
calculou. Nicky encostou-se na pia do banheiro para
336
esperar. Por algum motivo que desconhecia, ele
precisava falar com o outro.
Deu um sorriso polido quando o rapaz abriu
a porta e passou por ele. Não foi correspondido. Foi
ignorado.
Inconformado, indagou em voz alta:
— Não viu que te cumprimentei?
Ele voltou-se para Nicky, surpreso.
— Está falando comigo?
— Está vendo mais alguém aqui?
— Eu não te conheço.
Estava deixando o recinto, mas Nicky
segurou-o pelo braço.
— Me escute, seu tolo! Por que ninguém nunca me dá
ouvidos?
— Me solta, seu louco! — O rapaz disse, tentando
livrar-se. Nicky o vencia na força. — Me larga!
337
Nicky apertou o pescoço dele com as duas
mãos. Largou-o assim que percebeu que ele cedeu, e o
corpo caiu pesadamente no chão de ladrilhos sujos.
Deixou o banheiro e o aeroporto, para procurar uma
casa para morar em sua nova e breve vida em Nova
York.
A casa era pequena, mas servia-lhe bem. O
emprego serviria melhor ainda.
Sim, as coisas estavam saindo perfeitas.
Jim tropeçou no degrau baixo que os levava á
cozinha. A cozinheira olhou com desaprovação. Ele
puxou o fôlego novamente, como fizera durante todo o
passeio no jardim, antes de decidir que estava cansado
demais para continuar andando.
— Eu já disse para tirarem essa droga de degrau. É
perigoso. Eu mesma tropeço nele todos os dias.
— Tirá-lo e colocá-lo onde?
338
Jim já estava recuperado do tropeção e
sorria. Sentou esparramado á pequena mesa redonda
que servia para os poucos empregados do hospital.
Mabel entrou atrás dele.
— Estou com fome... — Ele entoou em forma de canção.
— Ainda não é nem meio dia.
— É... Eu sei. Mas meu estômago não sabe.
— O que você tem é gula, menino. — Ela disse,
voltando a atenção para a panela de água fervente.
Ele correu para frente do fogão, onde ela
podia vê-lo e prestar-lhe atenção.
— Estou triste, tia Jane.
— É mesmo? Por quê? — Indagou, sem deixar de mexer
a antiquada colher de pau.
— Porque acho que estou doente.
Enquanto ele falava, Mabel seguia para o
compartimento adjacente á cozinha. Ainda podia ouvi-
lo falar besteiras para mantê-la distraída. Não
339
encontrava nenhuma pimenta na geladeira. Começava a
ficar nervosa.
— O que está sentindo? — Tia Jane perguntou.
— Tosse. Muita tosse.
— Tenho certeza de que é só uma gripe. Onde está sua
amiga?
Não havia pimentas naquele lugar, ela
amaldiçoou. Olhou ao redor, e notou uma porta que ela
nunca tinha visto antes.
— Não sei, deve ter saído para arrumar o cabelo.
Meninas adoram arrumar o cabelo. Não adoram?
Mabel percebia a voz dele se alterar em seu
nervosismo. Era um laboratório pequeno. Os remédios
estavam dispostos em prateleiras brancas. As paredes
também eram brancas. Céus, como aquela cor
confundia seus olhos.
340
— Sabe de uma coisa, tia Jane? — Ele tagarelava sem
parar. — Eu estou com vontade de beber. Beber até cair
no chão de tão embriagado.
— O quê?
— Pois é, um Jack Daniels, quem sabe. Quer beber
comigo, tia Jane?
Não eram remédios conhecidos aqueles. E
pareciam ser todos psiquiátricos. Lembrou-se
vagamente de certa vez ter ouvido dizer a respeito de
um mutirão anti-manicomial. Dizia-se que os doentes
mentais eram usados como cobaias para testes.
Na outra prateleira havia os remédios
convencionais.
Analgésicos, antiinflamatórios. Encontrou o que queria:
um laxante potente.
Já ia deixando a sala quando ouviu a voz de
Jim mais de perto.
341
— Pra quem a senhora torce? Eu acho que os Bucks
arrasam!
Estavam perto.
— Deixe disso. — Jim dizia. — Ela não está aqui. Eu a vi
saindo.
Mabel agachou-se atrás de uma mesa.
— Não é para nenhum de vocês entrar, garoto. Aliás,
nem sei o que faz aqui, James. Dê o fora.
— Mas que forma horrível de tratar as pessoas que vêm
conversar com a senhora...
— Acontece que eu tenho coisas pra fazer. — Ela
esbravejou. — Muitas coisas! Se vocês não trabalham,
eu sim!
Mabel ouviu a porta do laboratório ser
aberta. Encolheu-se mais.
— Eu já te contei sobre o meu sonho de ser arquiteto?
— Essa porta deveria estar trancada!
342
— Eu teria sido um bom arquiteto. Mas minha mãe não
quis me deixar completar nem o primeiro ano na
faculdade.
A porta bateu. Eles estavam novamente do
lado de fora.
— Saia daqui!
O silêncio que se seguiu mostrou á Mabel
que não havia mais ninguém por ali. Esperou até
deduzir que já era meio dia, a hora que as empregadas
serviam o almoço e saiu. Encontrou Jim no corredor,
esperando por ela, ansioso. Ela mostrou-lhe o novo
líquido precioso.
Capítulo Dezenove
Com passos lentos, Nicky caminhava
observando vitrines e transeuntes. Era tudo tão
superficial. A tarde fria tornava essa idéia física e ainda
mais solitária. Alguém esbarrou nele, mas ele não se
343
deu o trabalho de olhar para trás. Não estava disposto a
encontrar mais um olhar distante. Distante dele. O
mundo estava distante dele. E ele sentia-se distante do
mundo.
Uma jovem parada no ponto de ônibus
fumava um cigarro, com um olhar perdido no vazio. Ela
estava do outro lado da rua, mas mesmo através da
bagunça do trânsito, e das pessoas ruidosas, ele podia
vê-la claramente. Algo lhe chamava a atenção, e ele logo
descobriu o que era. Ela parecia-se com uma versão
mais jovem de sua mãe.
Ele atravessou a rua ao encontro dela. Ela não
pareceu surpresa com sua repentina aparição, como se
estivesse esperando por ele.
— Boa tarde. Eu sou Nicky Oberon. — Ele sabia que a
escolha do nome era um pouco romântica, fantasiosa
demais, e que sua mãe não aprovaria quando soubesse.
Mas ele não teria se contentado com nomes simples,
344
Smith, Harrison, Taylor. Não justamente quando ele
poderia escolher. Seu nome verdadeiro não era
entediante, vinha de seus antecedentes na Hungria.
Porém, o nome do personagem de Shakespeare pareceu
perfeito para ele.
A garota deu um sorriso que o comoveu
na mesma hora.
— Julia Dean. — Estendeu a mão pra ele. — Prazer.
— O prazer é todo meu. — Segurou a mão dela por
alguns instantes. — O que faz uma menina como você
perdida numa rua de Jacksonville?
— Só esperando meu ônibus. — Ela riu.
— Eu vejo algo diferente nos seus olhos.
— Sabe que são poucos os caras que abordam mulheres
desse jeito? Assim falando de seus olhos, não gritando
idiotices. Achei que isso tinha ficado no século XX.
— Me acha antiquado?
345
— Bastante! — Ela tornou a rir. — Mas isso é diferente,
original. Gostei, Nicky.
— Então me diga, Srta.Dean. De onde vem e para onde
vai?
—Volto do trabalho. Vou para a casa.
— Eu também volto do trabalho, mas sobre meu futuro,
não estou muito certo. Nunca se pode saber com
certeza.
— Acho que tenho certeza de que estou indo para casa.
Ele arqueou uma sombracelha.
— Acha com certeza?
— Bom, não tem outro lugar para onde eu possa ir.
— Há muitos lugares para onde ir. Só não sabemos
como chegar até eles. Ou se o que realmente queremos é
ir.
Ela olhou para ele por alguns instantes.
— É um poeta?
346
— Longe disso! Apenas um louco... Mas o que acha?
Você quer ir?
— Ir aonde?
— Pra onde disse que está indo?
— Pra minha casa.
— Por quê?
— Como assim, por quê? Está me deixando confusa.
— Por que quer ir pra casa? Porque se sente segura lá?
— Me sinto segura em qualquer lugar.
— Mesmo aqui?
Ela olhou ao redor, repentinamente
parecendo assustada.
— Sim, aqui também.
— Com todas as pessoas, assim, tão perto?
— Por que diz isso? — Ela já tinha mudado o tom de
voz do flerte para a defensiva, e recuou um passo para
trás.
347
— Nunca se sabe o que elas pensam. Por dentro, são o
lugar menos seguro para se conhecer. Portanto, nunca
se sinta segura perto de um da espécie. — Ela olhou
para a rua, apreensiva, como se procurasse ajuda. —
Mas não fique assustada, Srta.Dean, por favor. Tenha
certeza de que não pretendo machucá-la. — Pegou o
braço dela com delicadeza. — Pelo contrário.
Ela não pareceu mais descontraída com
sua afirmação. Mas não puxou o braço.
— Não estou assustada. —Disse, com determinação.
— Vamos começar de novo, certo? Sinto que não está
confortável com esse assunto.
— Não muito.
— Prazer, meu nome é Nicky Oberon. Qual a graça da
Srta.?
— Julia. — Ela deu uma risada curta. — Apenas Julia,
certo?
348
— Eu não digo ‘prazer’ apenas por dizer. É realmente
um prazer conhecê-la, Julia.
— Sei disso, pois você já demonstrou.
— Sinto muito se minha sinceridade te irrita. Vou tentar
ser mais discreto.
— Não faz mal, Nicky. Mas por que você não me
convida logo pra sair? Meu ônibus já está chegando.
Nicky olhou na direção que ela
apontava. O ônibus se aproximava rapidamente.
—Não vou convidá-la para sair.
— Não? — Ela deu sinal o ônibus.
— Vou tentar encontrá-la aqui amanhã, nesse mesmo
horário, ao pôr do sol. Gosto da expectativa.
— Isso é bacana. — Ela disse. O ônibus já havia parado
em frente ao ponto. — Espero encontrá-lo amanhã. —
Começou a subir os degraus.
— Confie no destino. Quem sabe eu encontro você aqui?
— Sorriu para si mesmo enquanto observava o ônibus
349
partir. Mas eu sei que o destino escolheu você para mim. Eu
sou Oberon ,e vou pingar em seus olhos o orvalho da flor do
amor perfeito.
Angela passou por Mabel e Jim no jardim.
A enfermeira inspetora gritava ordens para as outras
enfermeiras. Pedia para que tirassem uma das pacientes
do canteiro de flores, pois se ela não fosse atingida por
um dos espinhos das flores mal tratadas — pois o
jardineiro nem tirar espinhos sabia, estragaria o que
restava das rosas. Mabel lançou para ele um olhar
cúmplice.
— Acho que Alice não vai machucar as rosas. — Jim
disse. — Pelo contrário... Ela adora flores.
— Cadê o Robert? — Mabel perguntou, lembrando que
fazia tempo que não o via.
— Roger só vem aqui quando está em crise. Acordou
gritando semana passada, perguntando onde diabos
350
estava. Faz uma semana que saiu. Você é muito
perceptiva, Millie.
— Obrigada.
—Não tem por onde. Então, quando vamos atacar?
Ela olhou na direção de tia Angela. O
mais breve possível.
— Nessa noite, no jantar. Vai ser muito fácil, Jim.
Sentou-se em um dos bancos de
madeira, e Jim a imitou.
— Parece seguro, também.
— Acho que sim. — Ela deu de ombros. — Estamos
realmente precisando de uma agitada.
— Mal posso esperar. — Seus olhinhos agitados
agitaram-se ainda mais. Depois, ele relaxou. — O que
acha? Que o mundo vai acabar por causa do
aquecimento global, ou por falta de água?
351
— O aquecimento global vai acabar com a água, e
começaremos a brigar por ela. O mundo vai acabar em
poucas e grandes explosões atômicas.
A manhã seguinte começou normal, sem
qualquer tipo de novidade. Mabel estava esperando por
alguma. A noite passada tinha sido um completo
sucesso. Só torcia para que Angela não descobrisse.
Deixou o quarto e procurou por Jim,
acostumada a nunca vê-lo na cama depois do
amanhecer.
Como não o encontrou, sentou-se á mesa
de Bertha para começar o café da manhã.
— Jim vai reclamar que comecei a comer sem ele. — Ela
riu para Bertha.
— Você o viu?
— Não. — Uma leve preocupação agitou seus sentidos.
352
— Nem eu. Estive procurando por ele. Meu rádio
quebrou de novo. Precisa de conserto.
Mabel largou o prato ainda cheio sobre a
mesa. Encontrou uma das enfermeiras na cozinha.
— Sabe onde está Jim?
— Ele não passou bem a noite. Teve de ser levado para
a enfermaria.
A imagem de tia Ângela tomando o
laxante passou pela sua cabeça, mas ela descartou a
possibilidade. Não tinham sido descobertos. E mesmo
que tivessem de fato, o que poderiam ter feito com ele?
— O que ele tem?
— Não se preocupe com seu amigo. É apenas uma gripe
forte.
Ela segurou a enfermeira pelo braço.
— Tem certeza de que ele está bem?
— Claro. — Ela livrou o braço.
— Preciso vê-lo. Quero falar com ele.
353
— Prometo fazer o possível. — Deu as costas.
Mabel voltou para a mesa, mas descobriu-
se sem apetite. O que teria acontecido com Jim? Ela
sabia não se tratar somente de uma gripe. Talvez ele
estivesse realmente doente. Lembrou-se de que ele
estava tossindo muito nos últimos dias. Notou que a
apreensão já tinha tomado conta de sua mente. Não
tentou afastar o pensamento, e passou o resto do dia
esperando por algum sinal.
Nenhum sinal de Jim, nem de tia Angela.
Ela não pôde deixar de rir. Ela não viera trabalhar.
Tinha realmente funcionado.
Foi na manhã seguinte, depois de uma
noite mal dormida, que Mabel teve uma pista de Jim.
Pelo vidro fechado, ela viu os pais dele conversarem
com um dos médicos na sala de visitas. Não ouvia o que
diziam, mas pelas suas expressões, o assunto não era
nada bom.
354
— Será que Jim morreu?
Robert perguntou, surgido de repente,
parado ao seu lado. Devia estar em crise de novo. Ela
lançou-lhe um olhar mortal.
— O quê? — Ele defendeu-se. — É possível.
— Droga! — Ela exclamou, afastando-se do vidro.
Se Jim estivesse doente, ela só saberia
quando ele retornasse. A enfermeira Margareth havia-
lhe prometido novidades, mas ela sabia que a outra só
estava mentindo, afinal, Mabel era apenas uma louca
que precisava ser acalmada. Ela sentiu vontade de
chorar de raiva. Queria rir de tia Angela com ele! Ele
poderia até mesmo ser transferido para um hospital,
dependendo do que ele tivesse. Não poderia ficar assim.
Iria encontrá-lo antes que fosse tarde.
— Ah Robert! — Ela exclamou como se sentisse dor.
Segurou o peito com as duas mãos.
— O que foi?
355
Ela balançou a cabeça, impossibilitada de
falar.
— O que foi? — Robert repetiu, angustiado.
—Não sei... — Sua voz saiu entrecortada. — Não me
sinto bem!
— Quer que eu chame um médico?
Ela assentiu. Em poucos segundos, tinha
sido levada para a enfermaria. Prestaram-lhe os
primeiros socorros rapidamente, deram-lhe remédio
para a dor, e pediram para que descansasse.
— Não foi nada, Srta.Gibbs. —O doutor Phoenix disse
tranquilizador. — Provavelmente só um mal estar. Já
sentiu isso antes?
— Não, doutor. — ajeitou o travesseiro atrás da cabeça.
— Foi a primeira vez. Tudo começou a girar, e o ar me
faltou.
356
— Vamos fazer os exames á tarde, certo? Enquanto isso,
peço para que descanse e não se preocupe. As
enfermeiras vão trazer-lhe algumas revistas.
O doutor deixou-a sozinha no quarto, e ela
esperou apenas alguns instantes antes de sair também.
Percorreu os curtos corredores da enfermaria
rapidamente, observando cada quarto. Finalmente,
encontrou Jim no final do terceiro corredor.
— Millie! — Ele exclamou, com um sorriso radiante
estampado no rosto muito pálido. —Você demorou pra
vir me visitar.
Ela sentou-se ao seu lado na cama, e só
então ele percebeu que ela também vestia roupas de
hospital. Ele pareceu preocupado.
— Não se sente bem também?
— O que aconteceu com você? — Ela perguntou á beira
do desespero. Colocou a mão no rosto quente dele.
357
— Eu acho que estou com febre. E não consegui dormir
á noite. Tive sonhos estranhos. Num deles, eu...
— O que disseram? — Ela interrompeu.
— Os médicos? Eu estava um pouco zonzo, mas ouvi
alguma coisa sobre tuberculose. — Ela não conseguiu
disfarçar o susto, mas ele pareceu não se importar. — E
tia Angela? — Ele riu, interrompido por uma dor no
peito. — Já a viu?
— Não, Jim... — Começou a chorar, contra a própria
vontade. — Eu ainda não a vi.
— Por que está chorando, Millie? — Ele perguntou,
consternado. Passou a mão pelo cabelo dela. — Alguém
te fez alguma coisa?
Ela balançou a cabeça em negativa, e disse
mais para si mesma do que para Jim:
— Você vai ficar bem...
— Ah, isso? Claro que eu vou ficar bem! — Ele puxou o
ar profundamente, soava tão natural para ele, como se
358
ele tivesse respirado daquele jeito a vida toda. — Uma
vez eu caí do muro da minha casa, e meu irmão me
disse que eu não ia morrer, porque ‘vaso ruim não
quebra’. — Ele riu.
Ela assentiu na hora que a porta foi aberta.
Era o doutor Phoenix, com os pais de Jim. Estava
irritado.
— O que faz aqui, Srta.Gibbs? — Os três usavam
máscaras que tampavam o nariz e a boca. — Saia daqui
imediatamente!
— Já estou indo. — Ela limpou os olhos, encarando-o
com desafio.
— Agora!
— Até mais, Jim. — Ela disse, de alguma forma sabendo
que aquela seria a última vez que o veria sorrir.
Robert e Bertha estavam esperando por ela no
jardim.
359
— Tommy quer saber onde está o Jim. — Bertha disse,
quase acusando.
— E eu também. — Robert completou. Ouvi dizer que
todos nós vamos ter que fazer exame pra ver se estamos
com tube.. Tuber..
— Tuberculose! — Bertha acudiu.
— Isso... Isso mesmo. O que sabe a respeito?
Mabel passou direto por eles, e foi sentar-se no
banco mais afastado do jardim, onde costumava ficar
com Jim para fugir dos outros. E deixou-se chorar por
vários minutos.
Por diversas vezes, Mabel trocou de posição
até notar que decisivamente não conseguiria dormir.
Levantou-se e ficou caminhando pelos corredores, sem
direção. Parou na sala de atividades, imaginando que
360
havia algo de muito errado naquele lugar. E de repente
ela entendeu o que era.
— Ei! — Ela gritou, para quem pudesse ouvi-la. — Por
que nós não temos um piano?
Dois médicos entraram na sala e a agarraram
pelo braço.
— Me larguem seus malucos! Eu quero um piano!
Precisamos de um piano nessa sala estúpida! — Sentiu
as lágrimas quentes escorrerem do seu rosto, e ela
tentou controlá-las. Como se tivessem vida própria, elas
insistiam em sair de seus olhos dormentes. Estavam
queimando sua pele.
Seu braço foi estendido á força, e lhe
aplicaram uma injeção.
— Vocês o mataram! — Ela gritou, nos braços do
médico. — Mataram ele e vão me matar! — Sentiu suas
forças deixá-la. — Estão me matando...
361
Só acordou na cama, sem saber que horas
eram. O sol que via pela janela parecia ser o sol da
tarde. Fechou os olhos para afastar a dor. Queria ir para
casa. Eles tinham um plano perfeito... Fugiriam juntos
daquele lugar. Mas Jim não estava mais ali. E ela não
tinha mais casa.
Pela primeira vez desde que retornara Saint
Clair, ela sentiu-se sozinha. Estava chorando
novamente. Não suportaria outra crise. Não suportaria
mais um dia naquele lugar. Se Jim estivesse morto, ela o
invejava. Mas mesmo o suicídio seria impossível
naquele lugar. Como uma experiência nova, ela rezou.
Rezou para ir pra casa, mas não sabia exatamente o que
queria dizer com isso. Simplesmente rezava para ir
embora. Ir embora...
Ela soube que a noite passou e o dia
amanheceu. A enfermeira Anne disse que ela teria que
ir ao refeitório para o desjejum, e ela obedeceu de forma
362
mecânica, sentando-se numa mesa afastada e sozinha.
Decidiu que era assim que passaria o resto de sua vida.
Esperando.
Capítulo Vinte
Nicky esperou durante meia hora no ponto
de ônibus, mas Julia não apareceu. Começava a ficar
irritado. Estava realmente ansiando por rever aquela
moça. Passara a tarde toda pensando naquele encontro
de fim de tarde, impossibilitado de concentrar-se em
seu serviço. Ele passou a mão no cabelo, retirando um
pouco da umidade. O tempo estava instável. Poderia
chover a qualquer hora. Voltaria para casa, e esqueceria
de tudo. Afinal, era tolice dele deixar-se levar pela
beleza e encanto de uma mulher. Lembrou-s de como a
graça do ser feminino podia levar á desgraça um
homem hipnotizado. O desejo em forma humana. Ele
estaria muito mais seguro longe de uma delas.
363
— Nicky! — Ele ouviu Julia gritar por ele, reconhecendo
a voz na mesma hora. — Espere.
Ele se voltou, e ela correu atrás dele.
— Pensei que não viesse. — Ele disse.
— Claro que eu viria. — Ela sorriu. — Então? Ainda
quer manter o suspense ou vai me levar para comer?
Estou faminta!
— Está certo. — Ele retribuiu o sorriso. — Se é o que
você quer.
Julia tomou o braço dele.
— O que quer comer? É cedo demais para jantar?
— Conheço um ótimo restaurante aqui perto.
Minutos depois, estavam sentados em um
pequeno bistrô francês. Ela tirou da boca o chiclete que
viera mascando pelo caminho, e ele sentiu-se grato por
esse gesto. O barulho de mastigação já começava a
incomodá-lo.
364
O garçom trouxe e levou o cardápio. Ele
esperava que ela dissesse algo sobre sua vida.
— Mora aqui por perto, Nicky? — Ela perguntou, ao
invés disso.
— Há duas quadras daqui.
— Eu moro há três.
— Isso é bom. Estamos perto.
— O que você faz?
— Assistente de contador .Nada demais. E você?
— Eu sou garçonete. As coisas estão indo de mal a pior,
sabia? — Ela suspirou. —Precisamos mudar de
presidente logo.
— As eleições já estão aí, mas, acredite, isso não vai
mudar nada. O que precisa ser mudado, sem dúvida, é
a alma egoísta do homem.
— É engraçado, Nicky. Você é tão... — Ela procurou a
palavra. — Humano. Estamos falando de política, e
você acaba caindo na ‘filosofia’ de novo.
365
— Desculpe. Vou tentar ser mais objetivo.
— Não há problema algum com isso, querido. Seja você
mesmo. Isso é tudo que importa.
O jantar foi servido. Ela comia com
delicadeza, ele notou e aprovou.
— Mora sozinha?
— Me mudei para Citrus Park há apenas um ano.
Morava em Arcádia, perto da praia.
—Você devia se divertir por lá.
— Com certeza. Mas, vim com uma colega de faculdade
para cá. Nós duas estávamos cansadas de ordens e
estudos. Tenho vinte e cinco anos. Jovem demais para
ficar presa numa escola.
“E prefere ser garçonete?”, ele pensou.
— Mas o que pretende pro futuro?
— Por enquanto? Pensar no presente.
— É um pouco arriscado viver sem propósitos. Vai me
dizer que é uma anarquista?
366
—Não, nada tão grave. — Ela riu. — Você é?
— Gosto de estar sob a ordem de alguém. Lembra-se da
Idade Média? Eles estiveram muito tempo controlados.
— Certo, Nicky. Responda-me agora: Mora sozinho?
— Eu e Deus. Nunca estamos sozinhos. Também me
mudei há pouco tempo.
— Sabia que você não era daqui. Deixe eu adivinhar:
Nova York?
— Pelo contrário. Califórnia. Los Angeles.
—Também cansou-se do sol?
— Pode-se dizer que sim. Vai pedir a sobremesa?
— Acho que apenas um café. Talvez eu tenha comido
demais.
— Não se preocupe tanto com seu corpo. Ele é
destruído muito facilmente.
— E esse não é um bom motivo para eu cuidar ainda
mais dele? — Foi ela que chamou o garçom e pediu o
367
café, junto com a conta. Era como se estivesse com
pressa. — Vai tomar café?
— Não bebo cafeína. Ela prejudica o sono.
— Então você é um daqueles caras que valorizam um
bom sono... Suponho que não tenha namorada.
— Supôs certo.
— Mas já teve.
— As pessoas vêm e vão.
— Você está absolutamente certo. Só os que são sinceros
ficam.
“Não existe ninguém que seja absolutamente
sincero. E ninguém permanece.”
— Sente saudades de sua família? — Ela perguntou.
— Sinto falta da minha mãe.
— Eu também. — Ela colocou poucas gotas de adoçante
no café.
— Pensa em voltar para casa?
368
— Quem sabe, um dia? Decepcionar meus pais com o
que me tornei uma garçonete, quando deveria estar
estudando Direito.
— Direito? Perda de tempo. Nenhum ser mortal tem
direito de inventar leis.
— Isso eu não sei... Mas que o negócio é chato, é. — Ela
riu, e ele sorriu. Era uma tola. Não entendia nada que
fosse um pouquinho mais longe de sua lógica
vivenciada.
Julia levantou-se com a bolsa na mão.
—Vai me levar para casa, ou é pedir muito depois de ter
me pago um jantar ás seis da tarde?
— Vai ser um prazer.
A casa era um sobrado de dois quartos
pequenos, banheiro e cozinha. Não tinha lavanderia,
mas era limpa e arrumada. Ele imaginou que vida ela
teria deixado em Arcadia.
369
— Barbara, minha colega de quarto, vai chegar mais
tarde. Nós teremos tempo. — Ela o guiou até o quarto
repleto de bichinhos de pelúcia. — Acho que você vai
gostar de Barbara.
— Acha mesmo? — Ele perguntou agora
desinteressado, pensando em como ela era linda. E ele a
teria.
— Hum hum... — Ela o abraçou, e ele se esqueceu de
todo o resto.
Nicky abriu os olhos, dando direto com o
relógio. Dez e quinze. Lançou uma olhada rápida na
direção da janela. Estava completamente escuro. Como
pudera ter sido tão descuidado? Levantou-se para
vestir-se rapidamente. As horas tinham passado
voando, ele mal notara, e sinceramente tinha deixado de
370
pensar nisso. Tinha deixado de pensar. Julia dormia
tranquilamente esparramada na cama, e não notou
quando ele se levantou. Tudo culpa de sua precipitação,
ele amaldiçoou-se. Não sabia ele que todo cuidado era
pouco, e ainda assim ele deixava-se distrair? Não
conseguia encontrar o tênis esquecido em algum canto
do quarto. O desejo da carne é um assassino de amor.
Finalmente encontrou o outro par do tênis,
e praticamente correu para a rua. A passos largos, ele
observava tudo ao redor atentamente. Não parecia nada
fora do comum, apesar do breu, iluminado pelas
enganosas luzes artificiais da cidade. Tudo o que tem no
claro, tem também no escuro. Era o que sua mãe dizia-lhe
quando ele era criança. Se ela soubesse da verdade, não
diria isso.
Ele apressou os passos ainda mais. A rua
estava completamente vazia.
371
Mantenha a mente ocupada. Ele repetia
mentalmente. Não deixe que eles se aproximem. Ele
procurava o que pensar, mas o pânico já começava a
tomar conta dele.
O que eu preciso fazer? Ele forçava-se a
lembrar da sua mesa no escritório. O computador, os
papéis metodicamente organizados. Não poderia ter
perdido o documento de Richards, um dos clientes. Se
não estavam com ele, não tinham chegado até ele, isso
com certeza era um fato. Passos atrás dele. Havia mais
alguém ali. Ele não olhou. Continuaria olhando pra
frente. Sempre para frente. A carteira de trabalho do
funcionário de Richards deve ter sido extraviada no correio.
Ah sim, foi o que provavelmente aconteceu.
— Nicky! — A voz desesperada chamou. Não era uma
voz masculina, mas também não era feminina. Ele mal
notou que já começava a correr. — Não faça isso. Não
me ignore. Olhe para mim!
372
Ir em frente, ele disse a si mesmo. Não
olhar para trás. Ele sabia o que veria se o fizesse.
— Está tentando fugir de si mesmo, Nicky. Sabe que
não pode lutar sozinho. — Ele levantou as mãos para
tampar os ouvidos. — Você é um ser humano.
Exatamente como eles. — A voz tornava-se cada vez
mais alta. — Deixe que eles venham a mim. Venha a
mim!
Estava tocando em seu ombro.
Instintivamente, ele olhou para a mão que o segurava.
Deu um grito. A mão incisiva continuava pressionando
seu ombro, na tentativa de fazê-lo olhar para trás. Olhar
para seus olhos e fazê-lo compreender que ele era tão
mortal quanto os outros. Nicky não se rendeu. Deixou-
se cair de joelhos, os olhos bem fechados.
Com as mãos no rosto, ele percebia que não
era apenas um, mas que vários deles já tinham se
juntado ao seu redor. As vozes eram altas, mas apesar
373
dele saber estarem muito perto, pareciam distantes.
Estavam tentando pegá-lo, fazê-lo levantar-se, mas tudo
que ele continuaria fazendo era rezar. Não posso fracassar
agora. Se eu abrir meus olhos, vão me levar. Eles querem me
levar! Não deixe que me levem!
— Talvez fosse melhor chamar um médico. — Disse
uma das vozes. Parecia incrivelmente humana, mas ele
não se deixaria enganar. — Ele não deve estar bem...
Ninguém mais o tocava, mas ele continuava
a sentir suas asquerosas presenças. Era melhor tomar
uma atitude. Continuar ali seria mais arriscado do que
fugir. Abriu os olhos com hesitação, e tornou a correr.
Não olhou diretamente para onde vinham as vozes, mas
apenas um vislumbre foi suficiente. Sentiu-se
estremecer, as lágrimas caíam pelo seu rosto. Eles
continuaram onde os deixou, Nicky podia senti-los
olhando para ele. Não tinham desistido. Nunca
374
desistiam. Arrancariam sua alma imortal, então ele já
não existiria mais. Não! Não deixe que isso aconteça!
Bateu a porta de casa atrás de si, estremecendo
novamente com o estrondo. Passou os trincos, e correu
para o quarto. Embaixo das cobertas estaria a salvo. Mas
a agitação não estava colaborando para fazê-lo dormir.
Ainda sentia-se tremer. Eles poderiam estar ali dentro.
Deviam estar ali dentro de seu quarto, espreitando,
silenciosos. Pensou em Julia. Ela estava a salvo. Ele a
deixara dormindo, como uma criança.
Sem produzir som algum com a boca, ele
recitava versos que sua mãe cantava para ele quando
era um menino. Aos poucos, foi-se acalmando, e
finalmente conseguiu dormir.
— O que aconteceu? — Julia perguntou, pelo telefone.
— Fugiu como se fosse um bandido!
375
— Ah... Isso... — Ele sentou-se na poltrona da sala,
agarrando o fone com força. Não tinha pensado no que
diria á Julia. — Bom, surgiu um imprevisto.
— Um imprevisto ás onze da noite? Sabe muito bem o
que estou achando.
— Não sei. O que está pensando? — Ele perguntou até
onde ela sabia. Nada, provavelmente. Também não
deveria deduzir nada.
— Estou começando a achar que você é o Batman!
— Sério mesmo?
Ela riu.
— Acho que você mentiu pra mim. — Ela tornou a
assumir a voz séria. — Deve ter uma namorada. Ou até
pode ser que seja casado. Essas coisas pedem ‘chamados
de emergência’.
— Não é nada disso, Julia. Acredite... Apenas alguns
problemas pessoais.
376
— Claro, claro... Problemas pessoais. Tudo bem, Nicky.
Deixa pra lá.
— O que vai fazer essa tarde?
— Nada, se você não me convidar para sair.
— Então se considere ocupada. Nos encontramos no
mesmo ponto ás cinco.
— Gosta mesmo do pôr do sol, não é?
— Ainda mais nas tardes de domingo, com pessoas
especiais.
Ele a ouviu rir do outro lado da linha.
— Você é o melhor... O melhor.
— Mal posso esperar.
Desligou o telefone, largando-o no sofá ao
seu lado, com um suspiro aliviado. O acontecimento da
noite passada nada tinha interferido entre ele e Julia.
Bom. Ainda não era hora dela saber a verdade.
377
A primeira coisa que Joshua fez, depois de
constatar que sua cabeça doía como nunca antes, foi
erguer os pulsos e perceber suas ataduras. De uma
estranha forma, ele não se sentiu exatamente aliviado
por estar vivo. Nem decepcionado. Apenas um pouco
cansado. E curioso. Quem poderia tê-lo achado no seu
apartamento? Algum vizinho, talvez. Achava que tinha
gritado. Devia ter chamado a atenção de algum deles,
provavelmente a sra.Mikes. Intrometida.
Tentou chamar alguém, na esperança de que
aparecesse alguma enfermeira uniformizada e
cuidadosa, como nos filmes. Mas ele descobriu-se fraco
demais para produzir qualquer som além daquele
sussurro inaudível. Uma cortina cor creme o dividia de
outros pacientes. Por algum motivo, ele lembrou-se da
crônica dos dois pacientes em um hospital, como
aquele.
378
Um deles tinha sofrido um acidente, e estava
debilitado, sem poder levantar ou se erguer. O outro
tinha uma doença terminal. Apenas a cama do segundo
dava para uma janela, então o outro, entediado,
perguntava ao novo amigo o que ele via. ”Vejo um
lindo parque. Têm crianças correndo, velhos sentados
em bancos lendo. Moças bonitas puxam a coleira de
seus cachorros obedientes. O sol está brilhando,
mulheres conversam e sorriem”. Certo dia, o paciente
que sofrera o acidente ficou sabendo que o outro havia
falecido. Então, a cortina finalmente foi aberta, e ele viu
que não havia janela alguma. Perguntou á uma
enfermeira: ”Onde está a janela? Foi tampada sem que
eu percebesse?”. A enfermeira balançou a cabeça.
“Nunca houve uma janela aqui”. Sem dúvida aquele
tinha sido um homem sonhador. E devia ter vivido
feliz. Mas, se Joshua fosse o paciente que ouvia as
379
histórias, nunca teria acreditado. A vida perfeita não
existe. A vida perfeita não teria graça se existisse.
Tornou a fechar os olhos, pois isso ajudava
a diminuir a dor de cabeça. Estava curtindo o silêncio.
Gostaria que ele durasse para sempre. O silêncio vazio.
Livre de emoções contraditórias, livre de qualquer tipo
de sentimento. Gritava sem barulho, talvez por socorro.
Não havia ajuda. Mas ele sentia-se em paz, e isso era
mais do que o suficiente.
Pegou no sono e foi acordado pela
enfermeira e pelo médico.
— Como foi que me encontraram?
— A entregadora da padaria. — O médico explicou. —
Você gritou, ela ligou para a polícia.
Ele sorriu, com ironia. A menina da
padaria!
— Mas agora você está a salvo. — A enfermeira
completou. — Isso não é bom?
380
— Ótimo.
— Você deve estar se sentindo um pouco tonto. — O
médico tranquilizou, ajeitando o óculos de aros
dourados. — Isso é perfeitamente normal. Você perdeu
um litro e meio de sangue, precisou ser reposto. Mas em
poucos dias estará bem, e em casa.
— Mal posso esperar para ir para a casa. —Ele não
esperava que o médico acreditasse.
— Deixe-me dizer uma coisa, Sr.Dunne. Existem muitas
pessoas nesse mesmo hospital, pessoas estão lutando
pela vida. Algumas delas vão perdê-la. Lute pela sua
vida. Ela é preciosa demais.
Ele assentiu para não discutir. Preciosa?
Super estimada.
— Você será encaminhado a um psiquiatra. — Ele disse.
— Espero que você vá vê-lo.
Joshua foi deixado sozinho novamente.
Não queria pensar no futuro agora.
381
O silêncio vazio.
Capítulo Vinte e Um
Estar de volta pra casa era quase uma
ironia. Tudo continuava igual. Tudo exatamente como
Joshua tinha deixado, antes de sua temporada de férias
no hospital. Não podia deixar de ser assim, ele refletiu
afundando o rosto entre as mãos, cotovelos apoiados na
mesa. Quem poderia ter mudado alguma coisa durante
sua ausência, se mesmo quando ele estava ali, ninguém
mais estava? Levantou os olhos cansados para o
computador. Internet lenta. Estava demorando mais de
dois minutos para um upload simples. “Qual é seu
problema?”, ele pensou, irritado, com vontade de
derrubar o computador no chão. “Vamos lá...” . A mão
que segurava o mouse bateu com violência na mesa.
Dando-se por vencido, levantou-se. No momento que
ele colocou-se de pé, o aviso na tela foi exibido:
382
“Operação completada”. Joshua tornou a sentar com
uma exclamação exasperada.
Minutos depois, digitou sua senha
cadastrada no Death of Patience. O site tinha estado
quase abandonado nos últimos dias. Desde a morte de
Heather, era raro ele entrar em seu perfil, e quando
entrava havia muitos recados a serem respondidos. Isso
também lhe desestimulava.
Pacientemente, começou a responder os
recados um por um. Até ficar estático com o terceiro
recado da lista.
“Está chegando em você.’
Ele afastou a cadeira para trás, num gesto
de perplexidade. O que mais tinha para chegar nele?
Achava que Joey já tivesse terminado seu trabalho.
Pegou o telefone.
— Detetive Crews. — Atendeu a voz do outro lado.
383
Joshua olhou para a página do Death of
Patience aberta á sua frente. Billy. Antes de tudo, ele era
Billy, o culpado direto pela morte de Heather.
Lentamente, apertou o botão vermelho que desligava o
telefone.
A data marcada era de dois dias atrás. A
imagem de Heather presa na cadeira, e o sinistro sorriso
no rosto do assassino. Imaginou o caso arquivado no
pequeno escritório do detetive Crews, e Joey
espreitando a cada esquina. Talvez pudesse observá-lo
dentro do próprio apartamento de Joshua, dentro dos
seus pensamentos. Pensou também em todas as coisas
que ainda tinha a perder se Joey resolvesse atacar de
novo, e seus pulsos cortados na pia da cozinha. E
começou a responder o recado de Joey.
“Se fosse corajoso o suficiente, viria até
minha casa para conversarmos. Só nós dois. Sem reféns
ou detetives. Você sabe muito bem onde moro.”
384
Mas ele não esperaria.
Nicky entendia que enquanto ficasse
pensando em Julia o tempo todo, não conseguiria
trabalhar direito. Ligou para ela apenas para desejar um
bom dia, ela agradeceu, com sua jovem espontaneidade.
Ele sabia que ela estava no restaurante, provavelmente
cercada de clientes, e mesmo assim respondeu a ele com
um entusiasmado “eu amo você”. Cercada de clientes,
ele pensou. Cercada de homens para cobiçá-la.
O dia no escritório estava calmo, e ele
aproveitou para dar uma checada em seu e-mail.
Apenas cartas de clientes. Acessou sua página no Death
of Patience, tomando o devido cuidado com o histórico
de sites acessados no computador da empresa.
Constatou satisfeito que Billy tinha lhe
respondido finalmente. Estivera aguardando ansioso
385
por essa resposta. Uma simples mensagem poderia
determinar o que Nicky teria que fazer a seguir.
“Você sabe onde eu moro” tinha sido
claramente uma referência ao quão desrespeitado Billy
sentira-se com sua invasão. Bom. Muito bom. Agora ele
conseguia entender como seu trabalho invadia as casas
e mentes das pessoas que acabavam por deixar-se levar.
Era hora de agir de novo. Dessa vez ele faria do jeito
certo. Sem ter que sacrificar inocentes.
Inocente, a pobre moça, apesar de Nicky
sempre ponderar se ela não seria uma futura vítima a
ter a alma ceifada. Pensando bem, ele tinha feito algo
bom para ela. Tinha certeza de que agora ela sabia
disso. Depois da dor, vem a paz.
Com um suspiro conformado, ele fechou a
página e foi acertar as últimas despesas de um cliente
pendente. Era uma das empresas que sempre davam
um trabalho a mais no final das contas.
386
As horas pareceram se arrastar, mas
finalmente a hora do almoço chegou. Ele estava saindo
do escritório quando encontrou Julia.
— Bom dia, senhor. — Ela brincou, com um sorriso. —
O que acha de levar essa humilde senhorita para um
almoço?
Ele tomou o braço dela no seu.
— Acho que seria encantador.
Seguiram até a lanchonete onde Nicky
costumava almoçar sozinho todos os dias.
— Não é nada romântico. — Ele alertou enquanto eles
entravam. — Pelo contrário, eu venho aqui porque a
comida é mais barata.
— Não tem problema nenhum. — Ela puxou uma
cadeira. — Sou muito mais acostumada com a minha
gente. — Ela riu. — A classe baixa.
— Você é quem sabe... — Declarou, sentando-se ao seu
lado. — O que vai querer?
387
—Não sei... Peça você. Sabe que não posso comer
muito... — Ela colocou a mão barriga. Ele sorriu. As
mulheres... Sempre preocupadas com a aparência. Mas
ele não podia culpá-la. Ela não sabia dos perigos que
espreitavam a cada esquina.
— Certo... Deixe que eu escolha. Uma pizza bem
recheada, com refrigerante. E de sobremesa, claro, um
bolo de chocolate lotado de cobertura. — Ela riu. — O
que acha?
— Acho que vou ficar com algo um pouquinho mais
leve.
Ela tirou o menu dele e fez o pedido
para os dois.
— Tenho a impressão de que só saímos até hoje para
comer. — Ele refletiu.
— Pois é, menino mau. Por que faz isso?
— Não consigo pensar em outro passeio.
388
— Tenho certeza que vamos encontrar um perfeito.
Temos muito em comum que ainda precisamos
descobrir.
— Espero que sim.
Uma moça entrou na lanchonete
acompanhada de uma criança. Era um menino de
cabelo cacheado e olhos tão azuis quanto o céu. Ele
sorriu para Nicky quando passou pela sua mesa, mas
foi Julia quem retribuiu o sorriso.
— Cinema?
Ela perguntou, arrancando Nicky de um
devaneio. Havia algo naquele garotinho. Ele não saberia
explicar o quê, mas havia algo.
— Hum hum.. — Ele respondeu.
— Ou mesmo um parque. Você com certeza gosta de
parques. Sol, natureza... Todo esse seu papo romântico.
O garçom trouxe os lanches, e Julia
começou a comer.
389
— Sabe, Nicky, Barbara já anda perguntando de você.
Ela acha que você não existe. Pelas coisas que eu conto.
Eu sei que você existe, só penso que está perdido nesse
século. — Ela riu. — Mas eu disse á ela que... Nicky?
— Hum hum. — -Ele mantinha os olhos fixos no
menino de olhos azuis.
— Não está prestando atenção no que estou dizendo. —
Ela zangou-se. — No que está pensando?
Ele descobriu o que era. O menino... Não era
uma criança qualquer. Estava ali para vigiá-lo. Nicky
sabia que eles não desistiriam tão fácil. Eles sabiam que
ele tinha entrado em contato com Billy. Sabiam de seus
planos futuros. De alguma forma, já tinham tornado-se
capazes de infiltrarem-se em seus pensamentos.
Antes que eles fossem capazes de fazer
alguma coisa, Nicky mostraria para eles que não seria
tão fácil. Com um soco de punhos fechados na mesa, ele
390
levantou-se e agarrou o garoto pelos braços. Não
gostava de ser vigiado.
— Maldito! — Ele gritou, enquanto chacoalhava o
pequeno espião. — Acha que pode me possuir? Nunca!
— Uma multidão já tinha rodeado os dois, e tentavam
soltar o menino que estava chorando e gritando pela
mãe. — Vocês não podem me deter! É melhor desistir,
poupar suas energias!
— Nicky! — Era Julia gritando. — Pare com isso!
O dono da lanchonete conseguiu fazê-lo
largar o garoto. Ele correu para os braços da mãe, que
também chorava em desespero.
— Fora daqui! — Gritou o dono do estabelecimento. —
E nunca mais apareça, seu covarde desprezível!
— Vai procurar um psiquiatra! — Gritou um dos
clientes exasperados.
Julia seguiu atrás dele. Ele voltava a
caminho do escritório.
391
— O que foi aquilo? — Julia perguntou.
— Esqueça, certo? — Ele limpou uma lágrima com a
manga da blusa.
— Como esquecer? Você parecia um louco lá dentro,
Nicky!
Ele parou para encará-la.
— Pode ter certeza de que louco eu não sou.
— E quem era aquele menino? Você o conhecia?
— Muito bem, acredite.
Retomou a caminhada.
— Meu Deus, Nicky! É só uma criança!
— Não era só uma criança, será que não percebe? — Ele
percebeu que estava gritando e baixou a voz. — Eu pedi
pra esquecer, Julia. Por favor.
Ela não disse mais nada até chegarem no
escritório.
— Vejo você á noite. — Ele falou.
392
— Está bem. — Deu-lhe um beijo de despedida e saiu.
Ele perguntou-se até quando conseguiria manter seu
segredo. Sua mãe sabia, já estava correndo perigo. Ele
não cometeria o mesmo erro de novo, dessa vez
colocando a vida de Julia em risco.
Com certa dificuldade em aparentar que
estava tudo bem, ele cumprimentou as outras
assistentes do escritório e seguiu á sua mesa. Descobriu-
se incapaz de fazer os cálculos de uma conta. Remexeu-
se na cadeira, irrequieto. Tamborilava os dedos na
mesa.
— De onde vem esse barulho?
Karen, a assistente rechunchuda e de
enormes olhos verdes atentos voltou-se para ele. Em
todo o tempo que Nicky estivera ali, jamais tinham tido
uma conversa completa.
— Esse barulho!
393
A outra funcionária, Jill, também
levantou os olhos. Ao contrário de Karen, ela e Nicky se
davam muito bem.
— Não estou ouvindo nada.
— Como não? — Ele exasperou-se. O barulho de chaves
chacoalhando era terrivelmente irritante, e parecia estar
ficando cada vez mais alto. — Ah meu Deus! — Ele
tampou os ouvidos com as mãos. — Pare com esse
barulho!
Karen levantou-se, pronta para prestar
socorro.
— Vou buscar um copo de água. — A outra disse,
deixando a sala apressadamente.
— Pare! — Ele começou a gritar, incapaz de controlar-
se. Por que insistia tanto? Aquele barulho parecia entrar
no mais profundo da sua cabeça, que já começava a
latejar cruelmente. — Faça parar!
394
— Por favor, fique calmo! — Karen exclamou,
colocando a mão no seu ombro, na tentativa de
tranquilizá-lo. Ele a tirou bruscamente, irritado.
— Não toca em mim! Não toca em mim!
Jill não voltou com a água, mas retornou
com a patroa, as expressões preocupadas.
— O que está acontecendo? — A sra.Lane perguntou.
— Não tem barulho nenhum! — Jill tentou.
— A chave! — Nicky levantou-se, o barulho agudo
retinindo nos ouvidos. — Parem de balançar as chaves!
— Ele levantou-se, quase derrubando a mesa e o
computador. Desceu as escadas correndo, e saiu para a
rua.
A caminho de casa, quase foi atropelado
por um ônibus, mas teve certeza de que aquilo não teria
sido um acidente. Abriu a porta com um estrondo, e na
sua pressa acabou deixando o portão aberto. O barulho
da chave ainda soava claro, como se estivesse bem
395
perto. Com um ganido de raiva, ele deixou-se cair na
cama de bruços, o travesseiro sobre a cabeça, na
tentativa de amenizar o barulho. Para piorar tudo, o
relógio de cabeceira do quarto fazia um ruído alto a
cada segundo que se passava. Ele apenas estranhava
nunca ter notado isso antes. Levantou-se apenas para
derrubá-lo no chão, e fazê-lo parar de funcionar
completamente. Não teve idéia de quantas horas tinham
se passado, até que o ruído atordoante finalmente
cessou. Olhou pela janela. Já tinha anoitecido. Foi
subitamente invadido pelo pânico.
De qualquer maneira, ele deitou-se na
cama novamente, dessa vez o travesseiro embaixo da
cabeça. Suspirou, com um sorriso. Sentia-se bem
novamente.
396
Com o ânimo de certa forma renovado,
Joshua resolveu sair de casa. Ele não se lembrava da
última vez que tinha visto o sol, a luz amarela quase
parecia inédita. Continuava frio, as pessoas já
começavam a usar os casacos e jaquetas. Mas talvez isso
mudasse, Joshua pensava enquanto caminhava. O
aquecimento global vinha se tornando mais real a cada
dia. O que era merecido para eles, habitantes da Terra.
Eles sempre esperavam acontecer para começar a
discutir o assunto, então remediar. Quase riu da própria
hipocrisia. O que ele tinha feito até hoje para contribuir
com o Meio Ambiente? Ou no mínimo, quando ele tinha
agido para melhorar a sociedade em que vivia? A
verdade é que ele não se importava nem um pouco.
Morreria em breve, e o mundo ficaria nas mãos de
outras pessoas, tão irresponsáveis quanto ele.
Não esperou muito até que o táxi
chegasse. Pediu ao motorista que o conduzisse até o La
397
Guardia. Olhava a rua que parecia correr por ele,
imaginando se tinha sentido falta daquilo tudo. Era
possível. Talvez ele tivesse sido covarde por esse tempo
todo, se trancando em sua vida particular, não
permitindo que ninguém invadisse seu mundo seguro,
até Heather aparecer. Ou ele tinha sido corajoso demais,
por viver sozinho, completamente entregue a si mesmo.
Mundo seguro? Ele não tinha tanta certeza.
Os minutos que ele passou dentro do táxi
pareciam ter corrido como segundos. Saltou bem na
frente do aeroporto, carregando poucas coisas em sua
mala improvisada. É claro que ele pretendia voltar. Era
só um tempo para esfriar a cabeça, quem sabe relembrar
seu passado, compará-lo com o presente, e, afinal,
chegar á conclusão de que a vida não era tão ruim
assim.
O avião não demorou a sair. Ele
embarcou com a sensação estranha de pertencer aquele
398
lugar. Não saberia dizer se isso era bom ou ruim. Nunca
tinha precisado se encaixar. Não gostaria de se encaixar
naquela terra de faz de conta que o mundo chamava de
‘sociedade’. Entendia muito bem o que era fazer parte
dela, e já tinha sofrido demais tentando convencer aos
outros que ele era um deles. Um ser humano. Então ele
passou a entender que não precisava disso, se sentia
confortável em sua própria pele.
Durante o vôo inteiro, ficou inquieto.
Estava preocupado. Sua mãe poderia não receber tão
bem assim seu filho pródigo. Quantas coisas teriam
mudado desde que ele saíra de casa naquela manhã de
domingo? Tinha ido embora para fugir. Agora ele
voltava, novamente para fugir.
Repetiu que não se tratava de Joey.
Poderia até nada ter a ver com ele. Não estava com
medo. Não teria motivos para estar. E acabava se
399
surpreendendo consigo mesmo ao perceber que era
completamente verdade.
O bairro pequeno que tinha sido cenário
de toda sua infância não lhe parecia familiar. Não havia
tido muitas mudanças físicas, apenas uma ou outra casa
reformada, rostos novos, crianças novas. A todo o
momento ele tinha a impressão que trombaria com um
de seus amigos a caminho da escola.
Decepcionado, ele admitiu que não tinha o
sentimento de estar voltando pra casa para o que ele
viera buscar.
Tal como todo o resto, sua antiga casa nada
tinha mudado. Ele tocou a mesma campainha que
tocava há dez anos atrás, das muitas vezes que ele
perdera as chaves. E exatamente da mesma forma, a
mãe abriu a porta com seu olhar parado, jogando o
cabelo loiro para trás.
— Joshua. — Ela disse, sem qualquer emoção na voz.
400
— Sim, mãe. Joshua. — Ele também disse, sem
implicações. Era como se ele tivesse feito uma viajem de
três dias e voltado um pouco antes do tempo planejado.
— Como você está?
Sua pergunta era polida, distante. Sempre
tinha sido assim. Há coisas que nunca mudam.
— Eu ando muito bem. — Ela abriu espaço para que ele
entrasse. Ele notou que ela havia trocado os sofás e o
tapete.
— Bonita decoração.
Sua mãe estava muito diferente. Aparentava
pelo menos dez anos a mais de sua verdadeira idade.
Os muitos anos de álcool e cigarros não tinham lhe feito
bem.
— O que te fez ir embora? — Ela perguntou acusadora.
Talvez ela devesse ter perguntado primeiro
o que o trazia ali, por educação.
— O mesmo que Jake.
401
— Não se esconda atrás de Jake, não de novo. Por que
vocês fizeram isso?
Ele sentou no sofá, observando as roupas
e louças sujas espalhadas pela sala de estar.
— Era o que precisávamos fazer. Precisávamos de um
futuro, mãe.
— Um futuro? Você voltou! Por que voltou?
Porque nunca antes me senti tão perdido, e
qualquer coisa que me trouxesse uma direção eu aceitaria.
— Eu queria vê-la de novo antes de morrer.
— Do que está falando? Céus! Você está com quantos
anos? Muito jovem para aguardar a morte.
— Vinte e sete. Estamos sujeitos a morrer a partir do
momento que nascemos. Se nascermos com vida. E a
morte não é um castigo. A morte é onde o ser humano
deve chegar. É quase a meta do homem. O fim.
402
Ela encarou-o por um longo momento
como se ele estivesse delirando. Procurou pelo maço de
cigarros e acendeu um.
— O que tem feito? — Ela perguntou, depois de uma
longa tragada.
— Estou trabalhando para empresas. Montando sites. O
que você não chamaria de trabalho real.
— Sempre no mundo virtual, no mundo da lua. Eu
percebia isso em você desde que ganhou aquele maldito
vídeo game da sua tia. Eu sabia que você seria um
desses viciados em tecnologia.
Ele deu um sorriso triste.
— Claro que você sabia.
— Tem visto Jake?
— Nunca mais. E você?
Ela bufou.
403
— Não. Já é uma surpresa que você tenha aparecido.
Mas eu sabia que você iria voltar, não seu irmão. Você
sempre foi o mais fraco.
Talvez ele devesse ter se sentido ofendido.
— Está namorando? — De novo?
— Você sabe que não. Esse negócio de alma gêmea não
existe. Eu fui á cartomantes, médiuns... Nada adiantou.
Agora estou frequentando uma igreja.
‘Médiun?’
— Quem sabe agora... — Ele não completou a frase.
—... Eu não desencalho?Acho difícil. E você, casou?
Aposto que não.
Joshua emitiu qualquer som que
representasse um ‘não’.
— Ouvi dizer que a Internet tem unido casais no mundo
todo. Você deve entender disso. É verdade?
— Por que eu deveria entender disso? Não sei... Deve
ser tudo uma furada.
404
— Pode ser, mas já começo a ficar desesperada. Desde
que você e Jake me abandonaram, tenho sentido a falta
de um namorado.
— Desde que completou dez anos, você quer um
namorado.
Ela fez um gesto depreciativo.
— Você ainda não me disse porquê veio.
— Disse sim. Queria revê-la.
— Não acredito. Você é um cara de pau.
— Por que mais seria? — Ele deu um meio sorriso, e
uma rápida olhada ao redor da sala suja. — Dinheiro?
— Não acredito em caridade, Joshua. Pra quê veio?
— Porque mataram minha namorada, cortando a veia
jugular dela. E agora, o mesmo psicopata que a matou
está atrás de mim.
— Partindo de você, eu não duvido que seja verdade.
— Não duvide.
405
— Bom, pelo jeito você não vai me responder, e eu vou
me contentar com isso. O que acha de darmos uma
volta essa noite?
— Estou cansado.
Ela começou a juntar a bagunça da sala.
— Por quanto tempo pretende ficar?
Ele deitou no sofá, com a cabeça apoiada nas
mãos.
— Pra sempre.
— Você precisa trabalhar. Não posso sustentá-lo.
— É brincadeira. Eu vou voltar a Los Angeles.
— Veio de Los Angeles?
— A cidade dos anjos... E dos sonhos falsos.
— Você está tão diferente!
— Tenho tomado Valium.
— Cresceu tanto! — Ela deixou-se sentar pesadamente
numa poltrona. Escondeu o rosto nas mãos e chorou. —
406
Ah Deus! Sinto que perdi uma enorme parte da vida de
meu próprio filho!
— Perdeu mesmo... Mas não vai fazer falta.
— Você sabe que sempre te amei.
— Hum hum.
— Eu era tão descuidada, agia sempre pelo coração. Fiz
tantas coisas erradas, Joshua! Mas sempre te amei.
— É, eu sei. Eu também te amo. — Ela enxugou os olhos
com a manga da blusa, um gesto muito familiar. —
Estou com fome. O que tem pra comer?
Ele levantou-se para ir até a cozinha. Não
havia quase nada nos armários. Ele pegou uma caixa de
cereais, mas não havia leite.
— Desculpe. Eu não sabia que você viria.
Joshua assentiu, com uma leve ironia.
Lembrou-se de onde tinha vindo seu costume de
almoçar ou jantar cereais embalados.
407
Capítulo Vinte e Dois
Julia olhava pra Nicky com expectativa não
disfarçada. Ele queria mantê-la curiosa por mais tempo,
mas a verdade era que nem ele mesmo estava
aguentando esperar. Ele sabia que o que tinha no bolso
era muito mais do que um simples anel. Era o selo de
seu futuro. De seu futuro ao lado de Julia.
— Chega de cerimônias, Nicky! Anda logo!
A palavra cerimônia o fez sorrir. Tirou a
caixinha dourada do bolso, e pediu que ela se sentasse
quando ele afastou os jornais amontoados para o canto
do sofá. Ele ainda não tinha tido tempo de fazer uma
arrumação aquela semana. A sala de estar estava repleta
de esboços em preto e branco, uma tela coberta com um
lençol branco, e manchas de tinta no chão. Ele pedira
desculpas pela bagunça, mas ela afirmara que não se
importava, afinal compreendia que Nicky era um artista
408
em ascensão. Ele riu. Não com modéstia, mas com
descrença.
— Está bem, apressadinha! Aqui está.
Ele tentou desvendar a expressão no rosto
dela enquanto ela abria o presente. De início, pareceu
um pouco apreensiva, mas isso durou apenas uma
fração de segundo. Ela se jogou nos braços dele, com
uma risadinha um tanto histérica.
— Ah Nicky! Isso é maravilhoso! Mas... —Ela segurou
nos ombros dele para olhar em seus olhos. —Você tem
certeza? Essa é uma decisão muito séria...
Ela deixou a frase morrer no ar.
—Com os diabos! — Exclamou de repente, depois de
ver a decepção nele. Enlaçou-o novamente. — Se você
tem certeza disso, eu também.
—Você diz sim?
—Sim, eu serei a senhora Oberon !
Ele abraçou-a e beijou-a.
409
Apoiada no parapeito da janela, Mabel
pensava no que a faria mudar completamente de vida.
Primeiro, começaria pela mente. Deixá-la calma.
Tomaria os remédios direito, nos horários certos. Não
porque concordava com o médico maluco que achava
que ela era a doida, mas porque eles também serviriam
de calmante. Antipsicóticos? Ela estava longe de ser
uma psicótica.
Quem sabe um cruzeiro, uma estadia na praia.
Ótima oportunidade para esquecer da existência de
Tony. A tão sonhada viajem a Paris, ou á Roma, quem
sabe?
Então, ela pensou em Jim de novo. Jamais
conseguiria fazer nenhuma dessas coisas. Não realizaria
nenhum de seus sonhos, porque era doente. Se não
410
fosse, não teria passado tanto tempo em um hospício,
teria?
Trocou de roupa. Começaria curtindo a noite,
ignorando tudo que lhe viesse á mente que não fosse
diversão. Ligou para Kate e combinou o passeio com
ela, no mesmo esquema que elas usavam há muitos
anos: Kate dizia á avó que passaria a noite na casa de
Mabel, e ela dizia ao pai que ficaria com Kate.
Elas pegaram um ônibus até o local onde seria o
salão da danceteria, pois nenhuma das duas teria o
dinheiro suficiente para um táxi.
O lugar estava apinhado, mas dessa vez Mabel
resolveu ignorar o que ela mesma denominava
agorafobia. Kate separou-se dela minutos depois de
terem entrado, alegando ter encontrado ‘o cara da
noite”. Mabel sabia que haveriam muitos outros.
Foi sentar-se em um canto, para apenas
observar o movimento. Não tinha vindo á procura de
411
garotos, mas apenas para descontrair, apesar de odiar a
música que o DJ tocava. Dispensou diversos convites
com tolerância advertida. Até que um rapaz sentou ao
lado dela. Ela teria se esquivado do repentino beijo que
ele deu nela, se não se tratasse de um garoto bonito.
—Você é muito bonita. — Ele gritou para ser ouvido
através da música alta. Estava completamente bêbado.
— Obrigada. Devo me sentir lisonjeada?
Ele assentiu, tomando mais um gole da
bebida que trazia na mão.
—Vindo de você o elogio, — Ela disse, divertida. —
Devo,mesmo.
— O que faz aqui?
— O mesmo que você.
— Não parece contente.
— Ao contrário de você.
— Vodca. — Ele explicou. — Com Coca-Cola.
412
— Adoro um bom drinque. — Ela ergueu seu coquetel
num brinde.
— Quem não adora? Então, gata...
Ele deixou a pergunta por fazer, porque se
perdeu em meio á neblina alcoólica.
— É a música que me irrita.Talvez eu não devesse ter
vindo aqui.
— Acho o som agradável.
— É péssimo. Só venho aqui porque minha amiga gosta
de Techno.
— Sorte sua me encontrar aqui.
Ela riu.
— Sim, sorte minha.
— Quer ir lá fora?
A pergunta pareceu inocente. Ela respondeu
sem afetação.
— Não.
413
— Não? — Ele puxou o ‘ã’ da palavra, fazendo-a
parecer muito comprida. — Por quê? Vamos fugir da
música.
— Qual é o seu nome?
— Nem me lembro mais! — Ele riu.
— Enquanto eu não tenho certeza de que você não é um
assassino, não posso ir lá fora com você.
Ele deu uma estrondosa gargalhada.
— Meu nome é Andy. Andy Foster. Reconhece de
algum jornal? Já matei alguém?
— Nunca ouvi falar, mas como eu posso saber?
— Eu sei que seu nome é Mabel. Pergunte como eu sei
disso. — Ela ficou calada, e ele prosseguiu. — Sua a
amiga me contou. — Ele apontou para Kate, que
dançava improvisado com um descendente de asiático.
— Estou te observando há muito tempo.
— Antes de ficar bêbado?
— Não estou bêbado.
414
— O ruim de ficar de porre é a dor de cabeça que vem
depois. Ainda mais se seus pais descobrirem.
— Acho difícil isso acontecer, estão mortos.
— Então, a dor de cabeça é bem menor.
Andy encarou-a, de repente muito sério.
— Eu os matei. — Ela ficou sem fala, e ele começou a rir.
— Estou brincando. Vou levar uma surra quando minha
mãe descobrir.
Ela tomou um gole generoso do coquetel.
— Boa sorte.
— Pra você também.
— Não bebi muito.
— É o seu primeiro? — Ela assentiu, dando outro gole.
— O primeiro de muitos. Quer dançar?
— Não sei dançar, olha pra mim. Chega a ser um
insulto uma pergunta dessas.
— Então, daqui a pouco você aceita.
415
A previsão dele foi certa. Inconscientemente,
ela ficou embriagada também, e rindo muito por sua
falta de habilidade, foi para a pista de dança com Andy.
Quando se deu conta, ele a levara para casa no seu carro
esporte. E ela não fazia idéia de onde estava Kate.
— E o asiático? — Mabel estava perguntando.
— Que asiático? — Kate levantou um olho para Mabel.
Estava deitada, segurando um saco de gelo na cabeça.
Mabel reclinou-se na poltrona macia do
quarto de Kate.
— O que estava com você ontem!
— Está surtando, ele não é... — Ela interrompeu-se,
entendendo subitamente o que Mabel estava dizendo.
— Ah, sim, o japonês. Um imbecil. Quem me trouxe pra
casa ontem, Mab, foi um morenaço, de dois metros de
altura.Você ia morrer de inveja.
416
— Ainda bem que não o vi, certo? Eu vim pra casa
acompanhada também.
— Eu sei... — Ela deu um sorriso cúmplice. — Andy
Foster. Ou alguma coisa do tipo.
— Você já o conhecia?
— Não. Mas ele veio me perguntar de você. Deve ser
um desses manés sem atitude. —Ela riu, abandonando
o saco de gelo, e sentando-se para fitar Mabel. — Mas é
um mané bonito.
Mabel deu de ombros.
— Não faz meu tipo.
— Sei... — Ela ironizou. Mabel riu, sabendo que estava
enganando a si mesma.
— Bom, não sei. Ele disse que ia ligar... Mas eles nunca
ligam.
A avó de Kate estava chamando-a do andar
de baixo. Devia estar estranhando o fato da neta ter
recusado o almoço aquela tarde.
417
— Você precisa esquecer o Tony. — Kate disse, antes de
responder para a avó. — Droga! Parece que tem um
macaco dentro da minha cabeça.
Mabel riu.
— Um macaco?
— E deve estar tocando tambor.
— Vai ver você não é tão boa com bebidas quanto acha
que é.
Ela encarou-a, um sorriso irônico enquanto
calçava os chinelos.
— Você também já teve uma ressaca, Mab.
— Estou tendo uma agora! — Gritou para a amiga, que
se afastava para atender o chamado da avó.
Capítulo Vinte e Três
Já tinham se passado dez minutos desde que
Nicky deitara-se para dormir. Julia ao seu lado tinha os
olhos fechados, e a respiração regular de quem tem
418
sonhos tranquilos. Antes de deitarem-se, eles beijaram-
se e tiveram um daqueles lindos momentos de amor.
Agora, ele sentia um vazio incomum, como se algo
estivesse errado, ou faltando.
Ele fitou o teto mal iluminado pela luz
pálida do abajur. Por que Julia não tinha falado nada
sobre casamento até agora? O que havia de errado entre
eles, o que deixava ele em dúvida, por que ela tinha
aparecido tão de repente, tão milagrosamente em sua
vida, como algo para tirá-lo do abismo que ele sentia-se
afundar desde que saíra de sua casa?
Sentou-se na cama, alarmado. Julia não
era um milagre. Ele a queria como nunca quisera outra
coisa em sua vida, o amor por ela sobressaía-se ao amor
sagrado de sua mãe. Sim, ele seria capaz de dar sua vida
por ela. Devia estar louco por deixar-se dominar
daquele jeito. Um tolo, inocente. Ah Deus, agora ele
entendia. Desde o começo, a mulher tinha sido uma das
419
armas do diabo para enganar os homens e tirá-los
prazerosamente do caminho que eles deveriam estar
seguindo.
Ele observou o rosto calmo de Julia.
Sentiu que começava a chorar. Desde Eva, a mãe do
pecado. Depois Dalila. O grande juiz Sansão entregara
seu segredo na mão dela, e ela o traíra, entregara-o nas
mãos dos filisteus. Roubou sua vida, e os inimigos
deixaram-no cego em seu próprio pecado. Não, Julia
não daria de seu fruto para ele. Não ele!
Enxugou as poucas lágrimas que
conseguiram escapar, e levantou-se, sentindo-se meio
cambaleante. Tateou em busca do interruptor, e logo a
luz se acendeu. Respirou fundo antes de tomar sua
decisão final. Faria o que tinha que fazer, não poderia
deixar-se levar pelas emoções que se confundiam muito
naquele momento. A cobiça da carne é uma assassina de
amor. O amor é sereno e sagrado. Ele pegou a fita
420
isolante que tinha guardado na gaveta da última vez
que consertara um aparelho doméstico qualquer. O
amor estava fazendo com que ele ficasse cego, mas
ainda não era tarde demais. Daria tempo de salvar-se a
si mesmo, sua missão e a alma de Julia. Afinal, ela
também era apenas um espírito inocente preso numa
carne fraca.
Irritado, jogou a gaveta arrancada do
gabinete no chão. Arrependeu-se logo em seguida pelo
barulho que tinha feito. Parecia-lhe estar acontecendo
tudo humanamente demais. Pensou na sua caixa de
ferramentas no pequeno quarto onde ficavam suas telas
e tintas.
Julia surgiu na porta da cozinha, antes
que ele tivesse oportunidade de sair do lugar.
— Você me assustou. — Ela falou, preocupada. Apertou
o hobby branco contra o corpo. Devia estar com frio. —
Aconteceu alguma coisa?
421
— Não, claro que não. — Ele descobriu-se incapaz de
olhar nos olhos dela. Não queria que aquele rosto
angelical pudesse enganá-lo novamente.
— Andou chorando? — Ela tentou pegar o rosto dele
com as mãos, mas ele desviou-se.
—Volte a dormir. — Ele conseguiu dizer, abrindo
caminho.
Passou por uma de suas telas. Ela tinha o
rosto de Julia pintado com perfeição. Embora o pequeno
quarto ficasse mal iluminado durante a noite, ele
observou os traços dela, que ele captara com clareza.
Uma menina-mulher, um pouco solitária, até conhecê-
lo. Seus olhos azuis, a essência de uma vida um pouco
superficial. Seu meio sorriso, travesso, sincero. Nunca
mais sorriria para ele. Com um pouco de tinta
vermelha, ele passou o pincel sobre os olhos da figura.
422
Escolheu uma chave de fenda. Não seria
prático nem pouco dolorido, mas serviria para purificá-
la.
Ela estava deitada de volta, mas não
dormia. Ergueu os olhos para ele quando entrou no
quarto.
— Conte-me o que aconteceu, Nicky.
— Não quero falar a respeito. — Ele manteve os olhos
além dela. Se a fitasse, seu coração poderia ser laçado
novamente. Afinal, ele também era um ser humano
preso á um corpo mortal. Isso fez com que se lembrasse
de que tinha que dormir logo antes que alguém
percebesse que estava acordado áquela hora.
Ela apoiou-se na beirada da cama, e
acendeu a lâmpada do abajur.
— Então venha para a cama. Conversaremos amanhã,
pode ser?
423
Ele assentiu e deitou-se ao lado dela, a
chave de fenda embaixo de sua camisa. Precisava
esperar calmamente. Mas a serenidade parecia passar
longe dele naquele momento. Seu coração batia forte, e
ele teve medo de que ela pudesse ouvi-lo.
“Um, dois, três...”, ele começou, na tentativa
de acalmar-se frente ao que tinha de fazer. Funcionou.
”Duzentos”, ele terminou, observando as pálpebras
fechadas de Julia. Elas escondiam o que havia dentro
dela, e isso era ótimo. Sabia que não seria possível, mas
desejava que ela permanecesse assim até seu suspiro
final. Não queria sentir a agonia dela, nem gostaria que
ele fosse a última pessoa que ela veria. Como explicar
para ela que a ela seria livre, iria para longe daquele
mundo sujo? Por que resistir? A morte é uma benção.
“Fique em paz, querida”, ele murmurou,
antes de afastar o cabelo dela delicadamente, para
prender seus lábios com a fita isolante. Ela gritou
424
abafado, ele fez sinal para que ela se acalmasse. Gostaria
que ela compreendesse o que ele estava fazendo, mas
entendia que nessa vida isso não seria possível.
— Eu sinto muito. — Ele murmurou. — Mas essa não é
a hora, o lugar para entendermos essa vida.
O primeiro movimento foi hesitante, e ele
resistiu á vontade de recuar quando o sangue saiu de
sua carne dilacerada. “Esqueça de seu passado agora.
Prepare-se para um futuro maravilhoso.”. Mais uma
investida com a chave de fenda, e tudo começou a fluir
mais naturalmente.
— Profanação. — A palavra lhe veio á mente, e ele
tentou entender o que ela significava naquele momento.
— Seu corpo mortal está sendo profanado, minha
querida. — O olhar desesperado mostrava que ela
continuava viva. Não era essa a essência da vida? A dor.
No momento que não houver mais dor, o sangue deixa
de fluir pelo corpo, a vida vai deixar de existir. E estava
425
prestes a acontecer com Julia. — Mas não demora até
que seu espírito seja liberto, perdoado pelo sangue
derramado.
Descansou a ferramenta na cama, e
debruçou-se sobre seu corpo. Não queria contaminar-se
com a sujeira, mas a proximidade nos últimos
momentos de vida de sua adorada lhe parecia
inevitável. Começou uma prece, mas antes que ele
terminasse, teve certeza de que ela já não o ouvia.
Encostou o ouvido em seu coração que tinha deixado de
bater. Deu um suspiro. Estava terminado.
Ficava tarde. Tinha deixado de ser seguro
permanecer acordado. Não havia tempo para limpar-se
ou trocar de roupa. Precisaria tomar conta disso
amanhã. Observou pela veneziana fechada da janela. A
rua estava escura e deserta, quase invisível pela neblina
fria que a envolvia. Deitou-se ao lado de Julia. Seria sua
426
última noite juntos. Beijou sua testa rapidamente, antes
de fechar os olhos.
Tremia de frio. Estava chorando, incapaz
de controlar os estremecimentos de seu corpo. Era como
se tivesse sido enfiado numa banheira de gelo. ”Com
sabão, eu lavo meu rostinho, meus pezinhos, minhas
mãos...”, ele cantou mentalmente. ”Mas pra ficar
mesmo limpinho, tenho que lavar o coração. Quando o
mal faz uma manchinha, eu sei muito bem. É papai do
céu, pra me deixar limpinho, quer lavar meu coração”.
Joshua passou o vôo inteiro batendo os
dedos em qualquer lugar que servisse de apoio. Por que
tinha que ser sempre assim, tão impulsivo? Primeiro,
desacreditara Mabel, abandonara-a, e só Deus pra saber
o que tinha acontecido com ela. Não deveria estar
morta, ou os jornais e a tv teriam noticiado mais um
427
terrível assassinato nas ruas de Los Angeles. Joshua
teria ficado sabendo, pois passar um tempo com a sua
mãe era estar ciente de todas as tragédias que
aconteciam no mundo. ”Está nos noticiários, nas
revistas, em todo lugar”, ela justificara sua onisciência.
”E eu preciso estar atualizada”. Ele assentira, e pensara:
“Atualizada? Precisa ter o que conversar com as
vizinhas, e os milhares de amigas que ela encontra em
suas tão frequentes idas á venda da esquina”. Claro,
além de tragédias, a mídia falava de novelas e filmes em
cartazes, culinárias e sobre a vida pessoal dos astros de
Hollywood, e infinitas notícias inúteis do globo
terrestre. Santo Deus, para quê tanta informação
desnecessária?
Mais um estúpido impulso seu. Por que
diabos ele resolvera visitar sua mãe? Isso não resolveu
nada, obviamente. Pelo contrário, agora ela viajava ao
seu lado, ansiosa por conhecer o bairro onde ele
428
morava. ”Oh céus, Hollywood!”, ela disse. ”Perto de
Hollywood”, ele tentara ser paciente. ”E não vai ser
nem um pouquinho interessante pra você, acredite”.
— Onde estão os detetives? — Ela perguntou,
aborrecendo-o por tirar-lhe a atenção da paisagem
cinzenta fora do avião. Depois de sua tentativa de
suicídio frustrada, muitas coisas passaram a irritá-lo.
— Eu adoraria saber.
— Acha que já pegaram ele?
— Disseram que me avisariam se o prendessem.
— Não é perigoso voltarmos?
— Muito.
— Então por que estamos voltando?
— Por que está vindo comigo?
— Você sabe o quanto me sinto sozinha, Jos.
— Sei.
— Você também se sente sozinho. Do contrário, não
teria vindo me procurar.
429
— Tem razão, mas não quero ser responsável caso
aconteça alguma tragédia.
— Se algo tiver que acontecer, que seja com nós dois
juntos.
— Não nos víamos há anos.
— Mas agora você voltou.
— E tentei fugir de novo. Mas dessa vez, não tive tanta
sorte.
Ela riu.
— Você, sempre irônico. Isso não é saudável.Usa uma
piadinha para esconder seus sentimentos.
“Claro, Vodka sim seria um método
saudável.”
— Que piada? Não estou vendo nada de engraçado.
— Nem eu. — Ela segurou o braço de Joshua
carinhosamente. — Fique sabendo que estarei ao seu
lado, meu filho. Por favor, me dê outra chance, e vou
fazer tudo diferente dessa vez.
430
Ele conservou o silêncio até o fim da
viajem. Finalmente, chegaram em seu destino. Joshua
largou as malas no sofá do apartamento e foi direto para
o quarto. Parecia estar tudo incrivelmente limpo.
Imaginou por que tinha essa sensação estranha e
absurda.
Imaginou o apartamento ao lado, vazio.
— Onde vou dormir? — Sua mãe surgiu á porta.
— Não sei.
— Muito atencioso de sua parte. — Ela acendeu um
cigarro. Ele tentou repreende-la com o olhar, mas foi
inútil.
— Você não vê que não importa? Acredito que
estaremos mortos em alguns dias.
— Deveríamos falar com os detetives, Jos.
— Preciso dormir.
— Vou dar uma volta.
— Tenha cuidado.
431
Ela bateu a porta da frente. Foi impossível
dormir, como ele já tinha previsto. Estava atento ao
menor ruído, sobressaltado. Se sua vida já não parecia
ter sentido, agora o medo tornava tudo ainda mais
insuportável. Deixou o quarto, murmurando qualquer
coisa ininteligível. A sala continuava escura, apesar da
luz do sol escassa pela veneziana. Não lhe parecia mais
familiar, não parecia mais sua casa.
Sua casa. Ele repetiu as palavras
mentalmente. O que tinha chamado de lar por todo esse
tempo? Passara sozinho horas demais. Pensara ter
achado sua liberdade, mas agora compreendia que
estivera trancado em sua própria cela. E a única forma
de libertar-se agora era jogando-se pela janela. Ele riu.
Talvez nem isso fizesse sentido, um clássico final
trágico. Não queria isso, tinha perdido sua identidade.
O coração estava apertado, uma coisa que tinha sentido
432
há muito tempo atrás, quando sua vida de adolescente
não parecia estar indo para lugar nenhum.
Agora sentia falta daquele sentimento
que o levara a cortar os pulsos impiedosamente. Era
tristeza, pura e simples. Ele conseguia compreender
isso, e soube lidar com a situação. Mas com aquele
desespero estranho, ele estava perdido. Não sabia a
origem do desespero, ou como acalma-lo, ou por que
deveria detê-lo.
O computador estava desligado,
desconectado da tomada de uma forma que ele nunca
tinha costumado deixar. Não tencionava ligá-lo
novamente. Abriu a janela, e deixou que a luz do sol
iluminasse tudo. Talvez ele estivesse pronto para mais
um dia, seus velhos caminhos, antigos medos. Algo
tinha voltado para a escura profundeza de sua alma, e
agora ele ficaria em paz.
433
Com seus passos sempre apertados,
Nicky dispensou o ônibus aquela manhã, e foi
caminhando até o escritório. Pediria as contas,
conseguiria algum dinheiro adiantado, e abandonaria
aquela cidade fria, que já tinha lhe parecido acolhedora,
tinha lhe dado a vontade humana de sonhar
novamente. Era um lugar perigoso.
Algo passou correndo por ele, como uma
criança para não ser pega na brincadeira do pega. Nicky
parou de caminhar, não se tratava de uma brincadeira
de criança. O vulto negro havia desaparecido atrás de
um poste na calçada. Ele recuou um passo, sem se
preocupar com a atenção dos transeuntes da
movimentada avenida. Precisava voltar para casa, mas
sabia que ali não estarias seguro também.
Vestiu a toca da jaqueta, como se aquilo
pudesse protegê-lo. Atrás de um carro parado no meio
434
fim, havia mais um deles. Estavam cercando, armando
uma armadilha, e ele não seria capaz de escapar
daquela vez. Eles o levariam para seu abismo escuro, o
qual os mortais costumavam chamar de Inferno.
Antes que pudesse dizer a si mesmo que
mantivesse a calma, ele já tinha começado a correr. Eles
surgiam de todos os lugares, não mais tímidos e
hesitantes. Estavam ali, dispostos a pegá-los, cientes da
que ninguém além de Nicky podia vê-los. E essa era sua
maior vantagem.
Seus dedos gelatinosos e gelados como a
própria morte tocaram seu rosto, e ele gritou,
inutilmente. Estavam todos ali, mais perto. Cada vez
mais perto, apesar de Nicky estar correndo, e eles a
passos curtos e calmos. Seus rostos não tinham
expressão, e nem o menor indício de traços, mas ele
sabia que estavam sorrindo, vitoriosos.
435
“Eles não podem me pegar”, e ele começou a
repetir baixinho, sem qualquer confiança naquilo que
falava. O número de criaturas aumentavam, surgidas
das portas de estabelecimentos comerciais, das casas, da
rua, dos carros. Nicky observou, horrorizado, quando
uma delas saiu de dentro de uma mulher que passava
pela calçada apinhada, acompanhada de uma criança.
Caiu, tropeçando em qualquer coisa no
chão. Aquele era seu fim, então. Ele fechou os olhos,
consciente de que não havia nada mais que pudesse
fazer. Enquanto sentia que sua alma era arrancada pelos
vultos negros que o sufocavam rodeando-no, algo de
dentro de seu coração lhe disse para que abrisse os
olhos. Hesitante, ele obedeceu, olhando adiante. De
início, achou que estivesse vendo o Paraíso, mas a igreja
majestosa erguia-se a menos de dois quilômetros dele.
Fixou os olhos na enorme cruz erguida no topo da torre.
Sua salvação. Ele arrastou-se, enquanto as criaturas
436
puxavam-no para baixo, para o subterrâneo. ”Eu tenho
o Bem, eu luto por ele”, pensou, tentando distrair-se
para não entrar em pânico enquanto adiantava-se
agonizante. ”Não vou morrer como um mártir antes de
ter completado minha missão”.
Ele conseguiu levantar-se a tempo de
subir os degraus de concreto da igreja. Ouviu os gritos
derrotados das criaturas da noite, e sorriu para si
mesmo. Tinha conseguido! Estava vivo. Correu pela
nave da igreja vazia, até alcançar o altar principal. Fez a
oração mais agradecida de toda sua vida, reconhecendo
que nunca tinha estado tão perto da morte.. Pior do que
da morte, da derrota.
— Será que posso ajuda-lo, rapaz?
Nicky levantou os olhos molhados para o
homem, sem parar de sorrir. Era um anjo em sua frente,
vestido de negro, rosto pacífico.
— Eu estive fraco, mas agora estou forte.
437
Levantou-se, e deixou a igreja. Estaria
de volta á Califórnia em algumas horas.
Capítulo Vinte e Quatro
Por qualquer estranho motivo, Mabel não se
surpreendeu quando recebeu o recado de Joshua na sua
caixa de e-mail.Ela compareceu ao encontro, no
apartamento dele, na mesma tarde. A única coisa que a
deixou levemente intrigada foi o fato de ele estar
esperando na porta do prédio quando ela chegou.
— Você me parece mais velho do que da última vez que
nos vimos.
— Estou mais velho.
— Certo, desculpe. Isso é óbvio, não é? — Ela lembrou-
se de que odiava aquele jeito altivo e de poucas palavras
dele, que fazia um comentário casual parecer ridículo.
— Me parece muito velho pelo pouco tempo que passou.
438
Ele não respondeu, enquanto girava a
chave na porta do apartamento. Ela lembrou-se da
última vez em que estivera naquele apartamento. A
jovem antipática que ela conhecera, morrendo de forma
brutal e completamente não usual.
— Se quiser sentar... — Ele disse, e ela assentiu. Ele
estava certo, afinal. Por que ele deveria comentar sobre
o tempo, sobre a bolsa de valores que estava em alta ou
quem sabe em baixa, essas bobagens que acabam sendo
o assunto comum de uma sociedade educada? Tornava
tudo mais superficial do que era, ainda mais depois que
algum idiota, ou algum gênio individualista, tinha
inventado o Capitalismo.
Ela sentou.
— Por que me chamou aqui?
— Queria ver como estava.
— Á sério.
439
— Não estou brincando. — Ele sentou-se ao lado dela,
meio pesadamente. — Quer beber alguma coisa?
Era uma inédita pergunta polida, mas ele
não fez menção de levantar-se para pegar o que quer
que ela quisesse.
— Depois de tudo que aconteceu, — Ela disse. — Você
me chamou aqui para saber como estou?
— Eu tentei me matar um dia desses. — Ele esperou que
ela dissesse algo, ou que visse nela a piedade devida a
todo suicida fracassado. — Entende por quê?
— Suponho que sim.
— Então me explique.
— Sua namorada morreu. — Ela quis que ele se
surpreendesse por ela ter sido tão direta. Mas talvez por
falta do contato humano na vida dele, permaneceu
impassível.
— Eu vivi tempo demais, como você disse, estou muito
mais velho. — Ele levou a mão no rosto, como um gesto
440
de desespero, mas não alterou a voz. —Ah Deus, esse
mundo me desgastou. — Ele tornou a olhar para ela. —
Então eu me suicidei. Fui bem sucedido da primeira
vez. De um jeito que, tenho certeza, você invejaria.
— Não invejo, você fracassou.
— Estou falando da primeira vez, há três anos. Deixei
pra trás tudo o que eu tinha chamado de vida. Construí
um mundo completamente meu, muros impenetráveis.
Foi a solução de uma infância frustrada, uma casa que
nunca me pareceu um lar, uma mãe que,
romanticamente falando, bebia Vodka com uísque —
uma mistura bem interessante, — a falta de amigos e de
pessoas que me compreendessem de verdade. Uma
sociedade condescente, gente hipócrita. A humanidade
em geral, que se torna cada vez mais falsa e egoísta.
Como você pode não me invejar? Eu encontrei a saída!
— Ele recostou-se no sofá, como se estivesse revivendo
o que dizia. — Eu, essa droga de apartamento escuro, e
441
meu computador. Eu tinha exatamente tudo o que
precisava. Dinheiro suficiente para comer e pagar as
contas mais básicas, conforto e diversão. Não é isso o
que todo mundo precisa?
— Não. Eu preciso de muito, muito mais. Sou
completamente o contrário de você. Eu sempre vou
precisar de mais.
— Mas então me tiraram da realidade que eu tinha feito
para mim, para mim e mais ninguém. Eu vi o que
estava perdendo, desperdiçando minha vida, ou o que
restava dela. Ela me ensinou que eu estava deixando
pra trás não só um passado sujo, mas a melhor coisa
que tinha sido inventada naquilo que nós aceitamos um
dia como realidade: O amor.
“Ah droga”, Mabel pensou. ”Não vamos
começar a discutir sentimentos, vamos? O que ele acha
que sou? Sua namorada? Uma psicóloga?”
442
— Sabe que uma vez que o aceitamos, estamos presos
para sempre? É impossível escapar.
Ela pensou em Tony.
— Todo sentimento humano é temporário, assim como
todo o resto em nossa realidade. O ódio passa, a dor
passa, e também o amor. Nem que seja necessário que
você morra para que isso aconteça.
— E depois de me deixar preso naquilo que eu já tinha
renunciado, isto é, a vida real, ela partiu, e levou com
ela todo o resto. Me deixou somente com o peso de não
poder voltar atrás, muito menos seguir adiante. Então,
eu pensei que tivesse encontrado um segundo recurso.
— E agora, o que acha? Foi uma boa idéia? Pensa em
tentar de novo?
—Não deu certo, eu voltei para minha cidade, aquela
que em que nasci e cresci, como se lá estivessem todas
as respostas. Como você pode imaginar, não encontrei
nenhuma. Pelo contrário, o que achei foram mais
443
perguntas. Uma delas é: como vou fazer para me livrar
da minha mãe, agora que ela quis vir comigo?
Mabel riu.
— Imagino que isso seja um grande problema.
— Eu achava que precisava dela, por isso sempre fiz o
possível para conquistá-la, fazer com que ela me
entendesse e me amasse. Mas aí, eu compreendi que
não necessitava disso realmente, que pensar naquilo era
apenas mais um problema na minha vida já complicada.
E depois de adulto, resolvi que precisava dela, de
alguém, e ela era a última pessoa que restava na minha
memória. Me arrependi de novo, arrumei um outro,
porém não novo, problema para mim. Agora ela está no
meu quarto, dormindo ás quatro horas da tarde, com
migalhas de rosquinha e uma garrafa de álcool quase
vazia na minha cama.
Ele terminou o discurso retórico, e
perguntou-se porque não era estranho estar abrindo seu
444
coração para a garota que tinha sido a grande causa da
morte de Heather, como nunca tinha feito para ninguém
antes. O que esperava dela agora?
Mabel não disse nada. Porque nada tinha
a dizer, e porque Joshua ficou tão perdido em
pensamentos que ela teve medo de despertá-lo, como se
fazem com os sonâmbulos. Ela levantou-se, para olhar a
rua pelo vidro fechado da janela. Aquele apartamento
parecia-lhe mais obscuro e triste do que o hospício.
— Eu sinto muito. — Ela disse, minutos depois.
Talvez fosse exatamente aquilo que ele
esperava ouvir.
— Obrigado.
— É sério. Eu sinto mesmo.
— Sei disso. Você foi a culpada. Se não tivesse
levantado a arma na sua precipitação, e, arrisco sede
por sangue, talvez Heather estivesse viva.
445
Mabel ia discutir, mas a dor estava
brilhando nos olhos dele, o que ela conhecia tão bem.
Era capaz de compreender os três sentimentos que
considerava reais: O ódio, o desespero e a dor. Depois
deles, vinha a tristeza conformada ou a morte. Joshua
tinha vivido o ódio racional pelo assassino, e quem sabe
por ela. O desespero que o levara a tomar muitos
comprimidos ou cortar os pulsos. E agora, a dor. Estava
muito perto de uma das duas emoções finais.
— Posso fazer algo para ajudar?
— Agora entende por que te chamei aqui, não é?
Ela assentiu.
— Pensei que fosse colocar em prática o que tínhamos
combinado. — Ela interpretou a expressão dele,
lembrou-o da última noite antes da morte de Heather.
— Íamos atrás do psicopata, antes que ele viesse atrás
de nós.
— Não.
446
— Você precisava de alguém para conversar, e não
havia mais ninguém.
Ambos permaneceram em silêncio por
muito tempo, cada um em seus pensamentos. Joshua
não mais pensava no que seria de seu futuro, rendendo-
se completamente, pois era a saída mais fácil agora. Não
entendia exatamente o que o fazia sentir-se assim, quem
sabe fosse aquela doença, a moda do fim do século XX,
e sem dúvida muito popular entre os psiquiatras do
século XXI. No tempo dos românticos, tinha sido a
tuberculose. Agora, era a depressão.
Mabel imaginava se o assassino voltaria,
se ela deveria marcar outro encontro com Andy,
inclinando-se mais para a resposta “não”. Lembrou-se
de sua casa, de seu ex emprego, de Jim. Precisava
mudar de vida, largar os remédios, esquecer sua
loucura. Ou acabaria louca de verdade.
447
Ela pegou a bolsa para ir embora. O
gesto fez com que ele levantasse os olhos, e visse
claramente Heather, como ela costumava fazer quando
estava para ir embora.
— Alguém está ocupando o apartamento ao lado? —
Ela disse, apanhando uma caneta e um bloquinho de
papel sobre o balcão da cozinha contígua.
— Não.
— E com essa história, vai ficar vazio por muito tempo...
Deixei o número do meu telefone, e meu endereço.
Podemos conversar quando quiser.
— Acho que alguém se muda pra lá em breve. As
pessoas adoram tragédias.
— A mais pura verdade. Tragédia viciante, não é? O
que há de melhor?
— O que acha que há na mente humana? — Ele
perguntou, dando á ela a impressão de que não queria
que ela fosse embora.
448
— Nada de tão complexo assim. É que o ser humano é
inventivo por natureza. Ele precisa imaginar o que não
entende, e acaba inventando histórias. Somos apenas
isso que podemos ver, Joshua. Nada mais.
— E os outros noventa por cento do cérebro que não
usamos? Não conhecemos o que há daquele lado. E isso
é físico, não estamos adivinhando.
— Isso é conversa do passado. Nós usamos cada uma
das áreas do nosso cérebro, não há nenhuma que ainda
não tenha sido explorada. Dizem que foi Albert Einstein
quem deu origem á essa teoria, mas dessa vez ele estava
errado. Não imagino como poderíamos viver dessa
forma. Buscamos conhecer tudo que está ao nosso
redor, estudamos os animais e as plantas. Imagine se
fôssemos incapazes de conhecer a nós mesmos. — “Será
que conheço á mim mesma?”, ela pensou, ainda
enquanto falava. — Até os gênios erram.
449
Deixou o apartamento. Ele voltou a atenção
ao chão, de volta aos seus pensamentos. Não evitou
uma risada irônica. O que Heather teria pensado do que
Mabel falara? Ela, com todo seu romantismo, as
“escondidas habilidades incríveis que todo ser humano
tem”. Teria se decepcionado.
Somos somente aquilo que somos.
450
Parte 3
O último prelúdio da loucura
451
Capítulo Vinte e Cinco
Nicky largou a mochila no sofá e chamou
pela mãe. Ela não tinha perdido a mania de deixar o
portão da frente aberto. Tantas vezes ele já tinha
chamado a atenção dela que acabara desistindo.
— O que faz aqui? — Ela surgiu na sala. Ele sentiu os
olhos encherem-se de lágrimas imediatamente, e a
abraçou.
— Senti sua falta.
Ela resistiu de início, mas acabou cedendo
Ao abraço. Nicky viu que ela tentou disfarçar que
chorava também. Ela escondia emoções, uma coisa que
Nicky não entendia. Ele sorriu.
— Você não deveria ter voltado. — Ela estava
repreensiva, exatamente como fazia quando ele ainda
era uma criança, e largava seus brinquedos pela casa. —
Não é seguro aqui.
452
— Já vieram me procurar por aqui.
Tinha sido uma afirmativa, não uma
pergunta, mas ela respondeu:
—Vieram. Me diga, Nicky, por quê?
— Não quero falar sobre isso agora. — Ele disse. Ainda
não tinha terminado, era cedo para discutir o assunto.
— Ninguém vai me procurar onde já procuraram, isso
seria idiotice. —Ele suspirou, dizendo a si mesmo que
tiraria o dia para descansar a mente. No dia seguinte,
tomaria as próximas providências, e tudo seria
resolvido o mais breve possível. Precisava daquela noite
para sua preparação espiritual. Aproveitaria para fazer
uma longa oração. —Estou lembrando daquela vez que
você me levou ao parquinho, e eu derrubei o algodão
doce lá de cima, do carrossel. — Ele riu. — Fiquei tão
triste aquele dia... Mas foi divertido, o sol estava
brilhando sorridente.Você se lembra?
453
Ela não respondeu. Devia estar chateada.
Droga, sabia que aquilo o faria chorar. Gostaria que ela
compreendesse! Bom, ainda tinha uma tarde inteira
para colocar os sentimentos em dia.
— Bom café da tarde. — Murmurou rapidamente, antes
de ir para o quarto.
Joshua acordou sobressaltado. Tinha tido
um sonho estranho, confuso. Ele passava por um túnel
escuro e terrivelmente frio, e de algum jeito, sabia que
corria pela própria vida. Não chegou ao final, pois havia
uma enorme porta de metal, que ele não esperava
encontrar. Começou a gritar por socorro, enquanto batia
os punhos fechados contra a porta, em vão. Olhou para
trás, e deu com algo que emergia das sombras. Estava
vindo na sua direção. Ele pôde reconhecer uma silhueta
humana, mas teve medo de descobrir de quem se
454
tratava. E estava se aproximando. Pela primeira vez
depois de adulto, Joshua rezou.
Tinha sido um barulho da porta da frente.
Ainda confuso pelo sono, ele levantou-se. Seis e trinta e
sete da manhã. Sua mãe tinha acordado cedo, depois de
dormir a tarde anterior inteira. Ia dizer á ela que ficasse
quieta, talvez xingá-la de alguma coisa. Colocou a mão
na maçaneta, mas deteve-se, quando ouviu uma voz
masculina vindo da sala.
— ...se não disser nada. A dor é boa, renova a alma e faz
bem para o coração.
Joshua recuou, passando os olhos pelo
quarto á procura de qualquer coisa que pudesse servir-
lhe. O telefone celular estava na sala. Mesmo que
estivesse ali, para quem ligaria? A polícia? Não queria
recomeçar aquilo.
Mabel. Sem fazer ruído, ele abriu a janela do
quarto, e começou a descer pela escada de incêndio.
455
Havia alguém no quarto, e agora ele olhava para
Joshua, de sua janela. Por apenas um instante seus olhos
se encontraram com os dele. Era Joey, o assassino de
Heather. Seus princípios lhe diziam para subir de volta
e lutar pela justiça, pelo que tinha sido feito. Mas ele
continuou a descer as escadas. Algo passou muito perto
dele, antes que ele pudesse descobrir o que era o objeto
arremessado. Uma nova investida, mas Joey não
acertou.
Enquanto corria, fazia o máximo de esforço
para lembrar-se do endereço que ele tinha espiado e
deixado onde estava, em cima do balcão. Exausto,
queria poder parar e respirar, mas sabia que se fizesse
isso seria o fim. Parou de correr, mas continuou a
passos apertados.
Sim, lembrava-se do nome rua! Mas o
número da casa fugia-lhe da mente. Alcançou o ponto
de táxi, mas lembrou que não tinha dinheiro. Pelo
456
menos, estava na avenida, e agora seria mais difícil de
achá-lo. Como estaria sua mãe? Precisava voltar. Estava
confuso, a única certeza que tinha era que não voltaria
sem Mabel.
— Sim, Harry. — O detetive Hooper disse. — Trata-se
da mesma pessoa.
Crews largou os papéis sobre a mesa.
— Ele estava sob o pseudônimo de Nicolas Oberon. Não
teve nem a decência de trocar o primeiro nome.
— O que acha que ele quer? — Hooper sentou-se no
sofá do outro lado da sala. Não conseguia compreender
como e por que um jovem como Farkas escolhe um
caminho como aquele. Mas eles sempre escolhiam.
— É a segunda garota. Poderíamos considerar a clássica
história da mãe vagabunda que torna seu menino um
serial killer psicótico, mas a mãe sempre foi boa com ele.
457
— Ela sabia onde ele estava o tempo todo.
— Podemos julgá-la? O que faria se fosse seu filho?
— Não a culpo, você sabe disso. — Hooper pensou na
sua filha. Estava grávida de dois meses, se casaria em
três. Droga, odiava o noivo dela. Gostaria que Farkas o
matasse. — Eu também protegeria se fosse meu filho.
Crews pegou os papéis de novo.
— As características fornecidas pela amiga de Julia
Dean. A cena do crime se parece muito com a primeira.
— Não há dúvidas, o garoto é um pintor. — Ele pegou
as fotos do cubículo que Nicolas Farkas tinha dividido
com Dean. — São bonitas pinturas, não são?
— Ele teria um bom futuro, se as circunstâncias fossem
outras. Por que acha que os doentes mentais sempre
gostam de pinturas ou desenhos?
— É apenas uma forma de se expressar.
O detetive Hooper pegou o casaco.
458
— Vamos para Citrus Park.Temos um encontro com o
rei dos Elfos.
O telefone tocou antes que os detetives
deixassem o escritório. Era um de seus correspondentes.
Hooper largou o telefone lentamente, pensando sobre o
que deveria fazer em seguida.
— Precisamos encontrar o garoto.
— O que aconteceu? — Crews perguntou, preocupado.
— Acham que Farkas foi visto deixando Nova York
ontem. Pode ser ele, disfarçado. Jordan vai nos trazer as
fotos.
— Ele voltou para cá?
Hooper assentiu, lembrando-se do garoto
de olhar perdido vestido de preto, e da garota histérica
que o acompanhara.
— Deve ter vindo atrás do que deixara pendente. Não
achei que fosse fazer isso.
— Qual era o nome do viajante?
459
— Marcus Langdon.
— Parece inventado.
— Ele não queria a garota, Spencer. Está atrás do
namorado dela.
— É óbvio que Dunne esconde alguma coisa, mas não
acredito que seja ele a vítima visada desde o início.
Procurá-lo em Los Angeles antes de ir a
nova York. Era a coisa certa a fazer.
Crews pegou o telefone e discou o ramal
da secretária.
— Localize Joshua Dunne e Mabel Gibbs
imediatamente. E deixe reservadas as passagens para o
início da noite. Estamos com o pintor nas mãos.
— Mabel Gibbs... — Joshua disse, tomando um pouco
de fôlego, quando a porta foi aberta. Era a terceira casa
daquela rua que ele experimentava. A idéia de estar em
460
endereço errado começava a apavorá-lo. — Ela mora
aqui?
A mulher parecia surpresa.
— Mora sim. Quem é você?
— Por favor, preciso falar com ela urgentemente.
— Quero saber seu nome.
Joshua estava desesperado demais para
desperdiçar tempo com a mãe de Mabel. Quase sem
pensar, ele começou a gritar.
— Mabel! Mabel, eu preciso de você!
A garota surgiu na janela do quarto, para
segundos depois abrir caminho pela porta da frente.
— O que está acontecendo? — Ela perguntou, mas já
puxava o braço de Joshua para a rua.
— Quem é esse, Mabel? — Pebble perguntou,
acusadora.
Mabel ignorou, levando Joshua para
longe.
461
— Ele está... Está em casa. — Ele tentou controlar o
tremor que percorria seu corpo, sem saber se era por
causa do medo ou do frio. — Talvez... Talvez tenha
matado minha mãe.
— Tente ficar calmo. — Ela colocou a mão no ombro
dele, mas o gesto só serviu para deixá-lo ainda mais
nervoso.
— O que vai fazer?
Ela sabia que precisava pensar rápido.
Começou a correr na direção de volta para casa.
— Não saia daí por nada nesse mundo!
Ele observou-a correr, e sentou no meio fio,
torcendo para que ela voltasse logo, e que acabassem
com aquilo de uma vez. Ou que não voltasse.
— É um amigo meu. — Mabel explicou para a
madrasta, antes de correr para o quarto para apanhar o
canivete, e a arma de Joshua, que acabara por pertencer
á ela. — Está com um problema em casa.
462
— Espero que não esteja metendo-se em confusão outra
vez...
Antes que ela completasse a frase, Mabel já
tinha deixado a casa.
— Escute Mabel. — Joshua dizia, acompanhando os
passos apressados dela. — Só espero que dessa vez você
realmente saiba o que está fazendo.
— A não ser nossas próprias vidas, não temos mais
nada a perder agora. Sua mãe já deve estar morta. Mas
nós dois vamos sair dessa vivos, Joshua.Isso eu te
garanto.
— Meu Deus... — Ele perguntou-se porque se colocava
nas mãos daquela louca, mas encontrou a mesma
resposta de todas suas outras perguntas: Não havia
outra escolha.
—Você está acabado. Devia praticar mais esportes, sabia
disso?
463
Chegaram ao prédio no extraordinário recorde
de quinze minutos. Ele hesitou antes de começar a subir
as escadas.
— Não deveríamos ir pela escada de incêndio?
Ele era um patético ingênuo. Provavelmente
tinha sido por lá que ele fugira.
— Não acha muito óbvio? É exatamente isso que ele
acha que você vai fazer.
Nicky lançou um olhar para o corpo da
mulher estendido no chão. Perguntou-se mais uma vez
por que as pessoas o desafiavam, deixando-no sem
escolha. Ele tinha entrado na casa, exatamente como da
primeira vez que estivera ali, apenas para dar o aviso.
Joshua não tinha escutado, continuara fazendo suas
barbaridades, sem se importar que um dia pagaria por
isso com um preço bem alto. Ele girou o pedaço de
464
alarme improvisado na fechadura, no estilo Holdini, e
deu com a mulher sentada no sofá da sala.
Ela ia gritar, mas ele foi mais rápido ao
tampar sua boca. Ela tentou morde-lo, mas ele socou-a
várias vezes no rosto e na cabeça, fazendo com que a
pesada senhora desmaiasse nos seus braços.
— Deixe ele em paz... — Ela conseguiu murmurar antes
de perder a consciência.
Ele a pouparia da morte. Uma mãe
preocupada com o filho, a mais sagrada de todas as
uniões. Tinha sido isso que ele pensara inicialmente,
pois tinha achado que seria rápido e fácil. Joshua estava
dormindo.
Nicky se esquecera de que se tratava de um
escolhido do Diabo. Joshua acordou, e conseguiu fugir.
Mas voltaria, sabia que voltaria. Uma hora ou outra,
teria que voltar. Nicky não temia a polícia.
465
Se tivesse que morrer, morreria fazendo
exatamente o que deveria fazer
Voltou para a sala, encontrando a mulher
que acordava. Ela poderia estragar seus planos, mas ele
não queria sangue derramado á toa.
— Se ficar quieta, vou deixá-la viver.
— O que vai fazer com ele? — Ela esforçou-se a dizer.
—Vou fazer o melhor para a Humanidade. Sabia que
não está tudo perdido? Ainda há uma salvação!
— Louco!
— Não sou louco! — Ele teve vontade de gritar, mas
conteve-se. Não deixaria seus impulsos humanos
estragar algo divino. Os espasmos recomeçaram.
Acontecia toda vez que ele ficava nervoso. — Eu preciso
matar quem não é de Deus.
— Você... Você é o próprio Demônio.
466
Ele levantou a mesa de centro sobre a cabeça
e acertou-a diversas vezes. Foi muito tempo depois que
a porta da frente da casa foi aberta.
— Largue a faca! — Era a garota. Ele a reconhecera
como Filth Darkness desde a primeira vez no
apartamento de Joshua. Ele deixara um recado para ela
também, mas não era quem ele queria. Como os outros,
era apenas mais uma vítima de Joshua, uma vítima da
sociedade. Ela não precisaria ser morta, mas começava a
querer desafiá-lo, também.
— Muito bem, Filth Darkness. Me diga seu nome
verdadeiro.
— Você sabe muito bem, maluco psicopata. Já
estivemos juntos muitas vezes.
— Apenas me lembro de ter o prazer de sua companhia
em uma única ocasião. E você também tinha uma arma
na mão. — Ele olhou para Joshua atrás dela. — Olá,
Joshua.
467
Joshua levantou os olhos do cadáver na sala,
para encará-lo de olhos marejados.
— O que você... O que você fez?
— Foi o melhor para ela. — Disse tranquilizador. — Ela
está dormindo um descanso eterno. Queria conversar
com você por um instante. Será que pode chegar mais
perto?
— Eu disse para largar a faca! — Mabel gritou, ciente da
presença soluçante de Joshua atrás dela. Ele confiava
nela, e ela não poderia desapontá-lo.
—Vá para casa. — Nicky sugeriu. — Isso nada tem a ver
com você. Já está salva.
Ela disparou. Não teve certeza imediata se
tinha acertado, pois no exato segundo que atirou, ele
correu em sua direção. O disparo fez com que ela
retrocedesse. Impulsionada para trás, foi facilmente
rendida. Joey conseguiu tirar a arma dela, e pediu
silêncio com a mão encostada nos lábios.
468
—Você tentou me matar! — Ele sussurrou. Só então ela
viu que escorria sangue do braço dele. Pelo menos o
acertara. — Não está limpa, não está limpa...
Joey repetia a frase sem parar. Ela ia pra
cima dele. Se isso lhe custasse a vida, não importava. Só
precisava pensar rápido em um jeito de chegar até a
faca que ele deixara cair no chão do outro lado da sala.
—... limpa! — Ele puxou Joshua, e apontou a arma para
as costas dele. — Não tente nada, querida. Ou ele morre
agora mesmo.
“Não é assim que deve ser”, dizia uma voz
insistente na cabeça de Nicky. ”Se for rápido e indolor
ele não vai ter pagado pelas muitas almas que fez ir
para o inferno, e não será salvo também”.
— Eu sei! — Ele respondeu em voz alta, impaciente. —
Eu sei exatamente o que devo fazer. Como acha que
cheguei aqui?
469
Ele encontrou os olhos cheios de ódio de
Mabel, e começou a chorar.
— Você não vai sair vivo dessa. — Ela disse. — Acha
que vai, mas não vai.
— Por favor, não tente nada. Eu só quero o melhor para
nós todos.
— Mabel... — Joshua disse, tentando se afastar um
pouco de Joey, mas sendo puxado novamente. — Não
há mais nada que se possa fazer por mim. Vá para casa.
— Não! — Nicky gritou, fazendo que ele tivesse um
sobressalto. — Ela não vai para casa. Vai vir conosco,
Billy. Quer que eu te chame de Billy ou Joshua?
Mabel estava olhando para Joshua, á
procura de uma resposta. Ele nada tinha a dizer. Não
estava mais zangado com ela, ele surpreendeu-se
consigo mesmo. Gostaria que ela conseguisse
sobreviver. Ele baixou os olhos, para não ter que encará-
470
la. A menos que um milagre acontecesse, os dois
estariam mortos antes daquela manhã acabar.
— Responda! — Nicky bateu com a arma nele,
impaciente. Estavam querendo atrasá-lo. —Joshua ou
Billy?
— Billy. — Ele respondeu, voltando-se para encará-lo.
— Me chame de Billy.
— Tem um carro preto estacionado ali na frente. Vocês
vão me acompanhar até lá.
Ele começou a caminhar para a porta.
Observou com atenção a rua vazia, torcendo para que
nenhum dos dois resistisse.
— Vai para casa. — Joshua ainda insistiu. Mabel não
respondeu.
Nicky colocou-os no carro de sua mãe,
alternando a arma para Mabel e Billy. Suspirou alto,
enquanto dava a partida. Tinha sido uma tarefa difícil
pegar o carro de sua mãe.
471
— Você vai atrás dele, não vai? — Ela perguntara. As
mães sempre sabem de tudo.
— Preciso do carro. — Nicky sabia do pecado que era
mentir para a mãe, por isso fugiu da pergunta.
—Não. Você não vai levá-lo. — Ele conhecia o tom
firme da mãe. —Aliás, você nem vai sair da casa hoje.
Ele deu uma rápida olhada para o relógio
sobre a estante da sala. Cinco e dois da manhã, e nada
estava preparado ainda. Não tinha tempo de discussão.
Largou as chaves do carro. Saiu da
presença da mãe, voltando com uma das cordas que
seriam usadas para Joshua. Amarrou-a e colocou-a no
banheiro, mas ela começou a gritar por socorro. Alguém
ouviria, ele temeu. Esqueceu que uma das armas da
sobrevivência do ser humano era o grito. Ele pediu
silêncio, mas ela não quis escutá-lo. Ela puxou a faca da
bainha da calça, e cortou a língua dela.
472
— Cuspa o sangue. — Ele advertiu antes de trancar a
porta do banheiro. — Não engula.
Então ele seguiu para o hospital abandonado
há dez quilômetros da casa de Joshua, e deixou tudo
preparado. Mas seu pressentimento era que a garota
terminaria por estragar tudo.
— Qualquer movimento. — Ele avisou, olhando-a do
banco de trás pelo espelho retrovisor. — E um de vocês
morre aqui mesmo.
Ela não disse nada. Estava com os olhos
fixos bem além da janela do carro.
Capítulo Vinte e Seis
Mabel ainda hesitou antes de entrar no
hospital abandonado. Por muitas vezes ela havia
passado naquela rua quase completamente vazia,
contemplado a imensa construção. Mais um desperdício
do Governo. O lugar já tinha acolhido curado e matado
473
tantas pessoas, mas por falta de verba tinha sido
esquecido por completo. Apesar disso, Mabel achava o
hospital pixado e sujo muito atraente, e convidara Kate
para explorá-lo por dentro, apenas pelo prazer de estar
em um lugar diferente e divertido. Ela ainda guardava
as fotos daquele dia, e se lembrava com certa decepção
por não ter visto nenhum espírito ali dentro.
Provavelmente eram muitas as almas desencarnadas
que vagavam por lá, em busca de perdão, e, quem sabe,
a aceitação dos vivos.
Agora a situação era diferente. Ela não
estava com medo, e não se surpreendia com isso. O que
sentia não era esperança, apenas tinha noção de que era
óbvio que as coisas não terminariam mal. Ela mataria o
assassino. Sim, ela se vingaria de todo mal que tinha
feito á ela. Por sua culpa, agora ela se sentia ainda mais
louca. Uma longa estadia no hospício faz com que as
pessoas se sintam mais doentes.
474
Era o quarto andar do hospital, o
necrotério.
— Nada surpreendente, não? — Ela comentou.
Nicky fez sinal para que eles se
sentassem numa comprida mesa de metal. Mabel
obedeceu, acompanhando o olhar de Joshua até os
armários de gavetas. Ela sabia o que ele pensava.
— Não há nada lá dentro. — Ela disse. Ele olhou para
ela, mas ela sentiu que ele nada via, e talvez nem mais
ouvisse. Sentiu um aperto no coração. Ele tinha
desistido.
— Silêncio! — Nicky gritou, fazendo eco nas paredes
frias. — Por favor, precisamos de concentração agora!
Mabel procurava algo que pudesse protegê-la,
para que pudesse dominá-lo, e tirar Joshua dali.
Nicky trouxe a corda e começou a amarrá-la. Ela
empurrou-o.
—Você não vai tocar em mim!
475
Ele golpeou a cabeça dela com a arma, fazendo-
na desmaiar na mesma hora. Joshua levantou-se num
impulso.
— Maldito psicopata! — Nicky voltou-se para ele,
surpreso. — Não vou deixar que mate mais ninguém.
Joshua foi para cima dele, de punhos
fechados. Conseguiu acertá-lo no rosto, e em seguida
acertou-o no ombro machucado, fazendo-no gritar.
Nicky disparou a esmo, sem conseguir divisar muita
coisa. Quando se deu conta do que estava acontecendo,
Joshua estava prestes a apoderar-se do revólver.
Mabel abriu os olhos a tempo de ver Joshua
investir um novo soco em Joey. Não conseguiria. Joey
era muito mais forte do que ele. Ainda tonta, ela
conseguiu se levantar. Saiu sem ser vista, percorrendo o
corredor. Devia haver alguma coisa, qualquer coisa!
Apesar do sol entrando pelos buracos na parede que um
dia tinham sido janelas, ela não podia enxergar direito.
476
Tateou até encontrar as escadas, e depois mais um lance
de escadas. Não havia nada, absolutamente nada!
Poderia tentar sair, procurar ajuda, mas e se não
houvesse tempo de voltar? Começou a seguir o caminho
de volta, na esperança de que Joshua o distraísse a
tempo de Nicky ter uma hemorragia por causa do tiro
no braço.
Ela tropeçou em alguma coisa no primeiro
degrau da escada. Sorriu para si mesma. Era exatamente
o que precisava. Algum grupo de meninos em busca de
um lugar seguro para fumar e beber tinha encontrado
abrigo no hospital abandonado, provavelmente na noite
anterior. O que era de se esperar, não havia lugar
melhor para usar a inofensiva maconha, sonhar um
pouco, e depois voltar para casa, sem ser descoberto
pela mãe ou pela Polícia. O frio fizera que trouxessem
uma garrafa de gasolina para queimar a madeira e
fósforos. A madeira já não existia, mas ela descobriu um
477
pouco de combustível e um único fósforo na caixinha.
Bom, ela teria apenas uma chance.
Subiu de volta, demorou um pouco para
encontrar o necrotério. Ouviu gritos, que fez com que
congelasse por um instante.
—Você sabe onde isso vai terminar. — Nicky dizia,
enquanto disputavam a arma. — Você não pode me
matar, o bem sempre tem que vencer.
Joshua não disse nada. Não haveria nada
mais gratificante no mundo do que matar aquele
imbecil doente.
— Eu não vou me render.
Nicky conseguiu golpeá-lo a ponto de fazê-
lo cair. Joshua tinha largado a arma. Estava
completamente em poder do revólver. Estava no
comando novamente. Tirou a faca do bolso jaqueta.
478
— Não vamos esperar a garota. Ela foi chamar a polícia.
— Ele disse. Joshua estava no chão, não tinha se
recuperado da pancada. — A alma dela está perdida.
Sinto muito.
Ele golpeou-o pela primeira vez com a faca,
fazendo-o gritar de dor. Era muito pior do que ele tinha
imaginado ao ver vídeos e filmes. Tentou arrastar-se,
mas Joey o deteve. Uma segunda investida, e ele
entendeu que não haveria mais jeito. Rezou para que
sua alma fosse salva, exatamente como Nicky tinha dito.
Sentiu um forte cheiro de gasolina. Segundos depois sua
visão ficou turva por causa da fumaça preta que tinha
envolvido todo o lugar.
Uma terceira investida, mas ele percebeu
que Joey retrocedia.
— Você está salvo. — Ele disse, antes de sair do
necrotério.
479
O detetive Hooper derrubou a porta, sem bater ou tocar
a campainha pela segunda vez.Foi abrindo portas, até
encontrar a mulher estendida no chão do banheiro.Uma
pessoa da equipe foi checar seus sinais vitais.Fez sinal
negativo com a cabeça.
— A própria mãe. — Crews balbuciou.
— A língua foi cortada. — Hooper disse. — Ela morreu
engasgada com o próprio sangue.
— Para a casa de Dunne. — Crews terminou de dizer e
seguiu para o carro. — Hora de seguir os rastros.
Joey passou por Mabel sem vê-la, ainda que
as chamas cada vez mais altas já dominassem todo o
corredor.
480
— Ei! — Ela chamou, e ele olhou para ela, com um
sorriso tímido. — Acho que ainda não terminamos, não
é?
Ele seguiu calmamente na direção dela.
Uma enorme chama de fogo os separava agora.
— Vamos morrer. Todos nós. Como se sente com isso?
— Eu fiz o que deveria fazer, posso partir em paz agora.
— Você vai queimar até a morte, e depois queimaremos
juntos no inferno.
— As chamas purificarão a sua alma, estaremos juntos
no Paraíso.
— Acha mesmo que é um mártir, não acha? Por que não
pega essa arma e atira em mim agora?
Ele ergueu o revólver, mas jogou-o no
fogo.
— Não preciso mais disso, ainda bem. É humano
demais para minha missão.
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— Vamos ser estrelas, sabia disso? Todo mundo vai
comentar do maluco que matou o casal não tão inocente
assim. Vão falar durante meses, e quem sabe até façam
um filme sobre nós.
— É o que seu coração deseja?
— É o que vai acontecer.
A chama já fazia um círculo ao redor dele.
Olhava fixamente para ela, sem tirar o sorriso triste dos
lábios. Ela deu um passo para trás, enquanto a primeira
chama o atingiu. Ele não gritou. Ajoelhou-se no chão, e
ela não conseguiu mais enxergá-lo. Entrou na porta
adjacente, o necrotério abandonado.
— Billy! — Ela gritou, encontrando ele cheio de sangue
no chão. Ele balançou a cabeça negativamente.
— Corre, Mabel. Talvez dê tempo.
— Eu te prometi Joshua!
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Ele deixou que ela colocasse seus braços
nos ombros dela, mas ele parecia-lhe pesado demais.
Ele ainda insistiu.
— Tente correr, Mabel!
Dessa vez ela não respondeu. Ainda teve
tempo de lançar um olhar pela janela. Havia pessoas
que observavam do lado de fora do hospital.
Ela chegou ao buraco que servira como
porta. Não havia jeito de sair. Não teriam a menor
chance de sair dali. Em poucos minutos, e o fogo
invadiria o necrotério.
— Sabe... — Ele começou. — Você foi uma das pessoas
mais legais que conheci em toda minha vida. Em outras
circunstâncias, poderíamos ter sido grandes amigos.
Mabel entendeu. A única coisa que eles
poderiam fazer agora era esperar o fogo atingir a sala.
Ela pensou em Charles, e seus olhos encheram-se de
lágrimas.
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— Também acho. — Ela sentou-se ao seu lado no chão.
— Devíamos ter nos conhecido melhor.
Eles ficaram em silêncio por um instante. A
respiração entrecortada de Joshua falhou por um longo
momento. Ela abraçou-o, sua blusa imediatamente
enchendo-se de sangue. Ele fechou os olhos, e encostou
a cabeça em seu ombro. Ela ouviu a sirene do corpo de
bombeiros. Sim, eles conseguiriam! Precisava dar um
sinal de onde estavam.
— Joshua! — Ela disse. — Os bombeiros chegaram!
Ela afastou-o para levantar-se, mas o
corpo dele tombou no chão. Ela não tentou reanima-lo,
nem tentou controlar o choro. Gritou por socorro da
janela, e detectou que tinha sido vista. Não tinha
cumprido sua promessa.
“Teríamos sido bons amigos”, ela
repetiu consigo mesma.
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Capítulo Vinte e Sete
O vídeo estava demorando a carregar. Mabel
olhou para o celular ao lado do monitor do computador.
Será que Andy retornaria sua ligação? Ela tinha ligado
naquela manhã, mas até agora, nada. Não se importava,
ele que se danasse. A tela finalmente foi aberta.
“— Olá, Billy, há quanto tempo! — Disse a garota,
exibindo um sorriso. Como o tempo passa rápido, não
é?”
Mabel concordou, pegando o salgadinho
deixado ali pela madrasta. Já tinha se passado um ano
desde que tudo acontecera. Quase exatamente um ano.
Tinha acontecido no Natal. Talvez a data tivesse sido
escolhida propositalmente,como um anti clímax, uma
heresia.
O primeiro aviso viera no Natal anterior, e
agora, estava consumado. “Está chegando em você”.
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Era pouco tempo para tantas coisas terem
acontecido, ou tempo demais? Era apenas uma forma
poética de pensar. O fato é que se passara trezentos e
sessenta e cindo dias.
“— Não dói. — Dizia a garota, uma faca atravessada em
sua mão. É apenas uma questão mental. Eu penso: ‘A
dor não existe’. Logo,ela deixa de ser real.”
Intoxicada pela fumaça do incêndio, passou
três dias no hospital, imaginando seus pulmões negros,
e torcendo para sobreviver. Pensava em Joshua
também. Relembrava pela última vez a cena que
decidira apagar de sua memória para sempre. Era uma
ironia que aquela fosse uma cena que o próprio Billy
teria adorado ver.
O pai ficou todo tempo ao seu lado,
dizendo o quanto a amava, e implorando para que não
o abandonasse. Ela sorriu.
— Eu sempre soube... — Murmurou simplesmente.
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Os detetives apareceram no segundo dia.
— Como vai, garota? — Disse Crews. — Quanta
coragem!
— Trouxemos flores. — Disse Hooper, sorrindo.
Colocou o arranjo de flores vermelhas ao lado da cama.
— As flores são para o assassino. Eu ainda estou viva.
Hooper assentiu.
— Podemos conversar?
Era hora de ser cuidadosa.
— Já devo ter mencionado o bilhete que ele escreveu
para mim e Joshua. Assinava como Joey.
— Sabe que o nome dele é Nicolas Farkas?
— Sim.
— Onde foi deixado o bilhete?
— Na caixa de correio de Joshua.
— Você conhecia Dunne há muito tempo? — Crews
perguntou.
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— Há alguns anos nos conhecemos numa sala de bate
papo.
— Desculpe se isso parece um interrogatório, mas
precisamos da verdade. Eram muito amigos?
— Sim, nós tínhamos muito em comum... — Ela
imaginou até que ponto aquilo era verdade.
— Ele tentou se matar semanas antes do acontecido.
Sabe algum detalhe á respeito?
— Eu estava fora da cidade na época. Não sei muito...
— De onde acha que o assassino conheceu vocês? —
Hooper indagou.
— Na rua, passando por aí, não sei... Em qualquer lugar
comum.
— Por que vocês?
Ela deu de ombros.
— Ele deveter ouvido “a voz”.
— Acho isso simplório demais, srta. Gibbs. — Interveio
Crews.
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— O que sugere, então?
— Tenciono descobrir...
— O que quer que tenha passado por sua cabeça,
morreu com ele.
Mabel entendia ser suspeita, também. Mas
nunca haveriam provas contra ela.
— Por enquanto, é só. — Finalizou Hooper. — Deve
estar cansada.
— Não vai me deixar um cartão ou umtelefone de
contato, caso eu me lembre de algo?
O detetetive sorriu com a ironia.
— Então, você sabe exatamente como funciona.
— Assisto filmes policiais demais, não é? Sabia que
vocês ficam bemmais legais na ficção?
Ele fechou a porta do quarto. A verdade
estava escondida para sempre.
Mabel ficou agradecida quando soube ter
ficado com todos os pertences de Joshua, na falta de
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documentos e parentes próximos. Agora, a preciosa
CPU de Billy era sua.
O barulho de festa no andar de baixo ia
diminuindo aos poucos. Passavam das quatro da tarde.
Se os convidados queriam um almoço de Natal decente,
precisariam dormir.
“— Espero que tenha gostado.” — A garota concluiu o
vídeo, a tela ficou escura novamente.
Andy não ligaria, ela amaldiçoou. Estava
cansada demais para zangar-se agora. Espreguiçou-se.
Respondeu o último recado antes de desligar o
computador. Planejava acordar apenas no final da tarde
seguinte. Convidaria Kate para assistir um filme, se a
amiga não tivesse outros planos.
Afastou os maus pensamentos quando
fechou os olhos, logo pegou no sono. Não ouviu o
celular tocando.
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