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ENTREVISTA: RAIMUNDA PUTANI FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI RITUAL Funeral Bororo CULTURA Irantxe TERRA Trombetas Mapuera Ano III nº5 dezembro/janeiro 2007 Mapa inédito de grupos indígenas autônomos

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Page 1: RITUAL CULTURA TERRA Irantxe Trombetas Mapuera Mapa ... · não tivesse couro ou esporão. Passava o dia tomando ayahuasca e tendo ensinamentos com o Tatá. Nossa maior dificuldade

ENTREVISTA: RAIMUNDA PUTANI

FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO – FUNAI

RITUALFuneral Bororo

CULTURA Irantxe

TERRATrombetas Mapuera

Ano III nº5 dezembro/janeiro 2007

Mapa inédito de grupos indígenas autônomos

Page 2: RITUAL CULTURA TERRA Irantxe Trombetas Mapuera Mapa ... · não tivesse couro ou esporão. Passava o dia tomando ayahuasca e tendo ensinamentos com o Tatá. Nossa maior dificuldade

Onde estão os índios isolados existentes no Brasil? Todo o mundo quer saber isso, por curiosidade e fascínio. A resposta vocês vão encontrar neste novo número da Brasil Indígena. Na verdade, “índio isolado” é uma expressão que vem sendo usada no Brasil desde a década de 1930, mas está na hora de mudá-la. “Isolado” significa uma simples condição de existência em relação à sociedade brasileira, mas não traduz o sentimento real e profundo dos povos indígenas assim posicionados. Acreditamos que o termo “autônomo” fala melhor do verdadeiro modo de existência desses grupos. Representa a condição de independência em que vivem os mais de 15 povos indígenas dos quais temos notícias certas.

Publicamos um mapa com todos os indícios de presença de índios autônomos no Brasil. São 67. Mas isso não quer dizer que todos os sinais serão confirmados, já que, algumas vezes, a aparição de índio é mesmo uma “aparição”, uma fantasia. Temos, porém, de verificar todas as evidências. Boa parte dos povos autônomos conhecidos já vive dentro de terras indígenas demarcadas e protegidas dos ataques de madeireiros, garimpeiros e dos novos especuladores de terras que abundam na Amazônia brasileira. Outros, porém, estão em grave perigo, como os Awá-Guajá, cuja realidade dramática é retratada em outra reportagem da revista.

Também é grave a situação dos Tupi-Kawahib da região do rio Madeirinha, no noroeste do Mato Grosso. Estes precisam de proteção permanente, fornecida pela Funai, que, este ano, junto com o Ministério Público e a Polícia Federal, expulsou um contingente armado de invasores a mando de madeireiros e grileiros, e já iniciou o processo de demarcação das terras habitadas por essa etnia. Recentemente, a Terra Indígena Urueuwauwáu, em Rondônia, foi invadida por lavradores pobres incentivados por especuladores, pondo em risco a vida de um grupo autônomo do povo Amondawa, mas os invasores foram rechaçados por uma equipe da Funai, junto com a Polícia Ambiental de Rondônia e a Polícia Federal.

A entrevista deste número é com Raimunda Putani, da etnia Yawanawá, que fala de sua experiência para se tornar uma pajé, um feito ainda raro entre os povos

Carta do Presidente

Capa: Funeral BororoFoto: Christian Knepper

indígenas. Sua provação foi dura e penosa, como costuma acontecer com os demais aprendizes de pajé.

Apresentamos também uma breve descrição da cerimônia fúnebre do povo Bororo, que comove pelo seu duplo enterramento e pelo auto-sacrifício imposto aos amigos e parentes do morto.

Entre as seis Casas de Cultura estabelecidas pela Funai em 2006 para apoiar a vontade dos índios de terem um espaço de ação e reflexão sobre sua cultura e sua relação com a cultura brasileira, destacamos a inauguração da Casa de Cultura do povo Irantxe, realizada em janeiro deste ano.

Outra matéria interessante é a que fala do viveiro de tartarugas que os índios Karajá da Ilha do Bananal mantêm para o manejo desses quelônios, tão importantes para a ecologia do rio Araguaia e para o sustento alimentar dos indígenas.

A demarcação da Terra Indígena Trombetas Mapuera, situada nos estados do Pará, do Amazonas e de Roraima, culmina alguns anos do trabalho de equipe que índios, antropólogos, topógrafos, indigenistas e a Funai e o Ministério da Justiça, como instituições, realizaram com afinco e dedicação. Essa terra indígena, que se liga às terras Waimiri Atroari, a oeste, e Nhamundá Mapuera, a leste, conformará o quinto maior complexo de terras indígenas do Brasil.

Por fim, deleite-se com o texto do nosso extraordinário sertanista José Carlos Meirelles, que enfoca uma situação vivenciada por ele e por um indígena, mostrando-nos “os dois lados da moeda”.

Mércio Pereira Gomes, antropólogo Presidente da Fundação Nacional do Índio – Funai

Belém-PA

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Foto: Ricardo Labastier

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Para Raimunda Putani Yawanawá, “eu” quer dizer “nós”. A primeira pessoa do discurso só faz sentido no plural. “Nós”, “a gente”, “eu e ela”. Assim é a relação que Putani, como é conhecida entre os índios, tem com a irmã dois anos mais nova, Kátia Rushá, com quem enfrentou todos os desafios de vida, lado a lado. “Eu e ela formamos uma pessoa só, nos completamos.” Assim é, também, o seu povo Yawanawá, o “Povo do Queixada”, que anda sempre em bando, unido. Eles vivem todos juntos em uma única aldeia, às margens do rio Gregório, no Acre.

Em 2006, Putani foi uma das cinco mulheres brasileiras agraciadas com o prêmio Bertha Lutz

guardiãs da espiritualidadeChristiane Peres e Felipe Milanez

Fotos: Ademir Rodrigues

BI: Houve muita resistência dentro da aldeia contra essa decisão?Putani: Teve muita resistência. Até o meu esposo, o Bira [aponta para ele], que é pajé e uma das lideranças políticas da aldeia, disse no início que não acreditava que a gente fosse conseguir. Meu pai não acreditava, ninguém acreditava que a gente iria atravessar as provas do ensinamento. Para eles, era como dar fogo, faca ou qualquer arma na mão de uma criança. Hoje eu entendo essa resistência. Na época [o processo teve início em 2004], houve até uma divisão na aldeia. Quando nós fomos fazer o juramento ao hare (planta sagrada) foi só a nossa família. Normalmente, as pessoas da aldeia vão desejar boa sorte. Com a gente não foi assim. Antes de ir, ficamos três dias tomando o uni [ayahuasca], que é um teste para saber se você agüenta tomá-lo, se ele não te domina, se você é resistente, se não vai pirar. Minha irmã tinha mais domínio do que eu. Eu fui aprendendo aos poucos a dominar o uni. Eu sempre digo que ela já nasceu preparada, diferente de mim. Tudo que eu tenho precisei conquistar. Nós passamos três dias tomando uni, que é superalucinógeno. Depois disso é que a gente foi para o preparo e a reclusão no meio da mata. Mas a gente não teve apoio do nosso povo porque a gente estava quebrando uma regra. A mulher Yawanawá tem o papel de cuidar dos filhos, de ser companheira, mas nunca de se tornar líder espiritual. A gente estava quebrando uma regra e, se a gente não tivesse a certeza do que estava pedindo, provavelmente a gente iria se perder nesse caminho.

BI: Quando esse processo de negação do grupo começou a se inverter?Putani: Nos primeiros meses, quando a gente já estava na mata, todo o mundo pensava que a gente não ia agüentar o tempo necessário. A gente estava isolada de tudo. Se morresse alguém da família, a gente não ia ficar sabendo. Era só eu, minha irmã, o pajé Tatá e o uni. Lá a gente não podia tocar em fogo, fazer artesanato. Comíamos só uma vez por dia — uma banana verde e um peixe pequeno que não tivesse couro ou esporão. Passava o dia tomando ayahuasca e tendo ensinamentos com o Tatá. Nossa maior dificuldade nesse tempo foi não termos o domínio completo da língua espiritual. Durante os ensinamentos, a língua falada é ainda mais pura que a falada pelo povo na aldeia. Tudo era ensinado oralmente. Muitas coisas a gente não entendia, mas quanto mais difícil as coisas ficavam, mais a gente se esforçava para aprender. Aquilo tudo era muito importante pra nós.

RAIMUNDA PUTANI

– uma homenagem do Senado Federal àquelas que atuam em defesa da cidadania, dos direitos humanos e políticos da mulher brasileira. Ela foi reconhecida por ser a primeira pajé entre os Yawanawá. Durante as provas, teve de superar meses de isolamento na floresta em busca do conhecimento espiritual e a resistência dos homens e velhos da aldeia, que duvidavam de sua capacidade e força. Mas Putani não é uma; é pelo menos duas. Enfrentou tudo ao lado da irmã Rushá. Em todos os momentos desse processo, elas estiveram juntas, uma completando a outra, guiando a alma da outra. Assim, o prêmio teve de ser dividido e servir aos padrões daquelas para quem o “eu” sozinho não faz sentido. A cerimônia no Senado deu visibilidade nacional e popularidade para as duas. Hoje é possível até ver vídeos delas em ação de cura, no site www.youtube.com, na internet.

Em dezembro último, Putani esteve em Brasília acompanhada do marido, Biraci Brasil Yawanawá, quando concedeu entrevista à Brasil Indígena. Rushá estava na aldeia, no Acre, e não pôde participar. Mas não deixou de ser lembrada a todo momento, por Putani dividir com a irmã as lembranças das lutas mundanas e espirituais.

“Eu comparo a espiritualidade com uma casa: ela é o esteio que sustenta essa casa. Um povo sem espiritualidade é um povo sem tradição, sem língua, sem cultura.”

Brasil Indígena: No início do ano, você recebeu uma homenagem do Senado Federal pelo fato de ser a primeira pajé Yawanawá. Como você vê esse reconhecimento?Putani: Eu e a minha irmã ficamos muito felizes. Quando a gente estava com uns oito meses de dieta [primeiro desafio do rito para se tornar pajé], nos permitiram sair para a semana de cultura Yawanawá, que ia acontecer no Acre. Foi aí que o governador, Jorge Viana, nos viu e ficou sabendo da nossa história, da nossa luta. Era a primeira vez na história do nosso povo que duas mulheres desafiavam a ordem natural das crenças do grupo e tentavam entrar para o mundo da espiritualidade. O Joaquim Tashka, meu irmão, falou do prêmio Bertha Lutz pra gente. Explicou que era um prêmio oferecido a mulheres que tinham feito história e que o senador Tião Viana tinha indicado nosso nome pra concorrermos como líderes espirituais. A gente não acreditou muito na possibilidade de ganhar, de estar entre as finalistas. Tantas mulheres inteligentes no mundo, que fizeram história, e a gente ali ainda na metade no caminho... Não parecia verdade. Mas, ao mesmo tempo, lá no fundo do nosso coração, esse era um desafio porque, se nós estamos estudando e lutando para ter nossa espiritualidade, não tem limite, não tem barreira.

BI: Como surgiu essa busca pela espiritualidade? Como descobriram essa vocação?Putani: Não foi indicação de ninguém nem incentivo. Foi um chamado mesmo, nasceu do nosso coração. Lá na nossa aldeia, temos dois pajés que estão bem velhos: o Tatá e o Yawarani. Em breve eles podem fazer a passagem para a outra vida. Se isso acontecer, como a aldeia ficará depois que eles se forem? Pensamos na nossa condição de mulher, já que a espiritualidade é uma coisa mais de homem no nosso povo. Mas qual a diferença? Então, a gente pensou muito e decidiu estudar para alcançar a espiritualidade.

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BI: Na aldeia, as pessoas duvidavam de que vocês fossem agüentar?Putani: Um mês tudo bem, né?! Quem não agüenta um mês? Mas foi passando um mês, dois, três, quatro... Acho que foi aí que o povo começou a acreditar que a gente estava levando a sério mesmo. A gente ficou muito magra nesse tempo. A gente soube que as pessoas ficavam perguntando por nós, estavam curiosas. Mas só nos viram depois de oito meses de reclusão. Foi nesse período que adquirimos o respeito das pessoas do nosso povo.

BI: Ninguém apoiou vocês?Putani: O Joaquim e a Laura, sua mulher, foram as duas únicas pessoas que acreditaram na gente. Foram os únicos que deram a mão e disseram: “Vão, que vocês vão conseguir.” Acho que essa força da Laura pra gente veio porque a Laura é uma índia mexicana e lá no povo dela as mulheres são muito fortes. Ela disse pra gente que se aquilo fosse algo de nossa vontade, de nosso coração, a gente ia conseguir. E o Joaquim também nos ajudou muito, muito mesmo e acreditou na gente desde o primeiro dia.

BI: Vocês moraram na cidade quando menores. Isso mudou a visão que vocês têm da cultura Yawanawá?Putani: Fomos pra cidade ainda pequenas porque tinha uma irmã nossa lá. Moramos em Rio Branco quando eu tinha uns sete anos. Ficamos um tempo com ela e depois voltamos para a aldeia. Mas eu acho que é dentro de um povo que você cria as bases da sua espiritualidade. Eu comparo a espiritualidade com uma casa: a espiritualidade é o esteio que sustenta essa casa. Um povo sem espiritualidade é um povo sem tradição, sem língua, sem cultura. Ir para a cidade me mostrou isso. Então, quando voltamos, já estávamos pensando em lutar pela

manutenção da espiritualidade do nosso povo. Porque eu acredito que um povo sem isso é um povo enfraquecido, perdido, que fica com um pé na aldeia e com o outro na cidade, que não tem muita direção. Pensando nisso, resolvemos buscar o caminho da espiritualidade, para que no futuro a gente possa passar esses ensinamentos para as novas gerações. Acredito que nós somos um instrumento para transmitir os conhecimentos do nosso povo e manter nossa cultura e história vivas. Mas, para a gente poder fazer isso direitinho, precisamos aprender

e passar por todos esses processos de formação de um pajé. Caso contrário, a gente não tem como transmitir esses conhecimentos. Não queremos com isso ser melhores que os homens; queremos apenas ser uma companhia para, quando eles precisarem da gente, a gente estar presente.

BI: Nesse sentido, a espiritualidade está ligada ao conhecimento de um povo. O que significa, na sua opinião, espiritualidade?Putani: Espiritualidade é o caminho do conhecimento. Quando eu digo que é um caminho é porque, por exemplo, um povo que não tem uma pessoa mais velha, um pajé para ensinar, pra dizer como é a história, qual o papel das mulheres, dos jovens, dos homens e como era no passado, esse povo fica perdido. E nós, Yawanawá, aproveitamos as novas tecnologias, como CD, DVD, para registrar isso, caso a gente precise utilizar esse material algum dia para resgatar nossa cultura. São os cantos do passado, as histórias. Tudo está lá registrado. E esse é o papel dos pajés: guardar os ensinamentos dos povos para retransmitir para as pessoas escolhidas e não deixar nunca que esses conhecimentos morram. Porque o conhecimento é sagrado.

BI: A iniciativa de vocês, de fazer todo o preparo para se tornarem pajés, causou algum tipo de mudança no papel da mulher dentro da aldeia?Putani: Mudou bastante. É como se tivesse virado uma página na vida das mulheres. Se a gente não tivesse alcançado, se a gente não tivesse conseguido superar aquela etapa do preparo, seria uma prova de que as mulheres realmente não são capazes de ter ou administrar a espiritualidade. Mas nós conseguimos e isso abre uma porta grande para outras mulheres que queiram seguir o mesmo caminho. Por causa dessa nossa iniciação, hoje as mulheres já podem tomar um pouquinho do uni, coisa que antes não era permitida.

BI: Você acha que é possível passar esses conhecimentos no futuro para uma outra mulher?Putani: Com certeza. Como a gente conseguiu ultrapassar esses desafios, foi uma porta que a gente abriu para qualquer mulher Yawanawá que queira e que se sinta capaz de passar pela iniciação. As mulheres se inspiram umas nas outras. Então, todo esse processo, no futuro, pode fazer com que meninas se inspirem em nós também e cheguem à espiritualidade como eu e minha irmã. Da mesma forma como nós brincávamos antes da iniciação, dizendo que uma queria ser o Tatá ou o Yawarani, vai chegar um dia que as meninas vão dizer: “Eu quero ser a Putani por isso ou por aquilo.”, “Eu quero ser a Rushá porque ela pinta bem.” etc. Um dia também vão querer ser como nós por causa das nossas qualidades. A minha filha, por exemplo, a Nawa, diz que quer ser metade a tia Rushá e metade a mãe, porque a minha irmã pinta um rosto que é algo maravilhoso. O dom que ela tem para pintar as pessoas é incrível.

BI: Você e a Rushá têm uma relação muito próxima. Como vocês se complementam? Putani: Ah... eu sempre digo que eu e ela somos uma só. A gente tem uma ligação muito forte. Mesmo longe, se ela está passando por alguma coisa, algum problema, eu consigo sentir e ela é a única pessoa para quem eu sorrio, choro, conto tudo. E pra ela eu sou a mesma coisa. A gente é muito ligada. Acho, inclusive, que a gente só conseguiu passar por tudo o que passou porque a gente tinha uma à outra. Além de ter sido um chamado, a gente tinha a companhia uma da outra pra se escorar, conversar.

BI: Qual o papel de vocês na aldeia hoje?Putani: Primeiro, somos companheiras, atuamos juntas nos rituais de cura. E nós ainda não terminamos nossos estudos. Foi apenas o início, abrimos as portas. Somos ainda uma representação feminina nas rodas de discussão dentro da aldeia. Quando os homens vão discutir algum assunto, a gente vai lá, senta junto e fala, dá opinião, briga, se achar que está errado. É um papel importante, porque antes não tinha isso, as mulheres não eram tão ouvidas. Hoje nós não tomamos a frente das coisas porque ainda temos os pajés mais velhos. Só quando eles fizerem a passagem para a outra vida é que nós vamos assumir de vez o papel de pajés. E estaremos prontas para isso. Somos mais duas aprendizes e guardiãs dos conhecimentos do nosso povo.

“Quando os homens vão discutir algum assunto, a gente vai lá, senta junto e fala, dá opinião, briga, se achar que está errado. É um papel importante, porque antes não tinha isso na nossa aldeia, as mulheres não eram tão ouvidas no nosso povo.”

RAIMUNDA PUTANI

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� �sumárioexpedientePresidente da República

Ministro da Justiça Presidente da Funai

Conselho Editorial

Coordenador Editorial Editores

Repórteres

Colaboradores

Fotógrafos

CopidesqueProjeto Gráfico

Diagramação e arteTiragem

ImpressãoJornalista Responsável

Luiz Inácio Lula da Silva Márcio Thomaz Bastos Mércio Pereira Gomes

Publicação bimestral da Fundação Nacional do Índio – Funai/Coordenação Geral de Assuntos Exter-nos (CGAE) em parceria com Via Pública – Instituto para o Desenvolvimento da Gestão Pública e das Organizações de Interesse Público

Carmen JunqueiraDaniel Matenho Cabixi Dominique GalloisGuilherme CarranoIzanoel dos Santos SodréJoão Pacheco de OliveiraJosé Carlos Meirelles Jurandir Siridiwê XavantePierlângela Nascimento da CunhaMichel Blanco Maia e SouzaFelipe Milanez Júlia MagalhãesChristiane PeresDanielle SantosMário Moura FilhoLuiz Fernando VillaresJosé Carlos MeirellesAdemir RodriguesAnderson SchneiderChristian KnepperRicardo LabastierTeresa BilottaMarcelo AflaloUnivers Design / Marcelo Aflalo e Marcelo Menna10 mil exemplaresIpsis Gráfica e EditoraJúlia Magalhães

Fundação Nacional do Índio – Funai Coordenação Geral de Assuntos Externos – CGAE SEPS QD. 702/902 Ed. Lex, 3º andarCEP 70390-025Telefone: (61) 3313.3512Contato: [email protected] | www.funai.gov.br

Carta do Presidente 1Mércio Pereira Gomes, antropólogo

Entrevista: Raimunda Putani 2Duas irmãs são as primeiras pajés Yawanawá

Cultura: Irantxe 8Jovens retomam a identidade de seu povo

Cultura: Nambikwára 14A vida cem anos depois do encontro com Rondon

Ritual: Funeral Bororo 18O pajé Kadagare despede-se da mulher

Autônomos: Mapa exclusivo 26Funai indica as referências de povos sem contato

Autônomos: Awá-Guajá 30Povo nômade do Maranhão resiste às pressões regionais

Terra: Trombetas Mapuera 36Governo autoriza demarcação da última grande área indígena

Opinião: Luiz Fernando Villares 39Novos desafios de sustentabilidade dos povos indígenas

Geral: Projeto Ecológico 40Funai realiza manejo de tartarugas no Araguaia

Crônica: José Carlos Meirelles 45Indigenista reflete sobre a visão do índio em relação ao “branco”

Arte: Xavante 48Cotidiano da aldeia retratado por Sowabze Xavante

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jovens reinventam o mundoFelipe Milanez

Fotos: Ricardo Labastier

IRANTXE

Os adornos que enfeitam os narizes são feitos com penas de araras e papagaios, amarradas sobre uma haste de taquara bem fina. Delicados, tombam sempre para um lado, sem que isso perturbe ou atrapalhe seus donos. Não chegam a deformar a narina, mas precisam de um pequeno furo, doloroso, feito quando ainda se é jovem, para que possam ser usados. Não são todos, porém, que portam o enfeite. Ele está presente apenas no rosto dos velhos e na maioria dos jovens. Uma geração passa inteira despercebida: a dos adultos, homens que contam 40 ou 50 anos. São os Irantxe “filhos do Utiariti”, em referência à missão localizada no centro do Mato Grosso. Se os jesuítas contribuíram para proteger esses índios de massacres, eles ajudaram também a estancar e desestruturar seus traços culturais. Ser índio era motivo de vergonha, não se falava a língua, não se furava o nariz. Hoje, nos jovens, o renascer da cultura ancestral traz de novo a alegria de ser e viver índio entre os Irantxe.

“Naquele tempo”, conta o ancião Inácio Kayoli, com uma bela e longa pena no nariz, “era muito difícil, a gente tava morrendo que nem bicho”.

cultura

Seu filho mais jovem, Marcelino, o “cacique geral de todas as aldeias Irantxe”, ajuda o pai a se expressar em português. Com 29 anos, ao contrário dos irmãos mais velhos, ele também usa o adorno nasal. Com “naquele tempo” seu Inácio quis dizer quando os Irantxe foram buscar abrigo junto aos missionários jesuítas do Utiariti, na década de 1940, que marcou a “pacificação” definitiva de seu povo. Seu Inácio já passou dos 80, pois era um jovem adulto com nariz furado e casado, quando correu para a missão junto dos remanescentes de sua família. Ele, o pajé Alonso Irauli e mais alguns poucos, que sobreviveram a esses tempos difíceis e viveram a opressão da Igreja, são hoje a referência histórica de um movimento de retomada cultural iniciado pelos jovens nos anos 1990. A Funai, através de projetos de financiamento para eventos culturais e da instalação de uma Casa de Cultura, tenta colaborar com a reafirmação da identidade Irantxe. “A Casa é para ajudar a comunidade a guardar a sua cultura, a produzir e a comercializar seus produtos”, comenta o coordenador Geral de Artesanato (CGART) da Funai, Odenir Pinto de Oliveira.

Na aldeia, meninos passam a tarde jogando cabeçobol (ajâli paîpi)

Ser índio era motivo de vergonha, não se falava a língua, não se furava o nariz. Hoje, nos jovens, o renascer da cultura ancestral traz

de novo a alegria de ser e viver índio entre os Irantxe.

Região norte de Mato Grosso Municípios Brasnorte Área 45.555 hectares (ampliação prevista para 252.000) População 280 pessoas Etnia Irantxe ou Manoki Língua manoki

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Sangue e borracha Os massacres e as mortes dos Irantxe estão intimamente ligados com os dois principais ciclos da borracha no Brasil, durante o século passado, e com a ocupação do oeste do Mato Grosso. Com os seringueiros veio, inclusive, o nome “irantxe”. “Dizem que um parente tava colhendo mel de uma abelha que se chama iranxí, quando um seringueiro olhou para ele, e ele dizia ‘iranxí, iranxí’”, explica Manoel Kanunxi, um senhor de meia-idade preocupado com a história de seu povo, bastante inteligente, e que não pôde ter seu nariz furado, quando era jovem. Primeiro, por volta de 1900 e pouco, uma invasão de seringalistas trucidou uma aldeia inteira, em episódio que ficou conhecido como “o massacre do córrego Tapuru”. “Pelo que consegui saber com os velhos, tinha umas 14 ou 15 malocas grandes, cada uma de uma família, com umas 30 pessoas dentro”, afirma Manoel. Os poucos sobreviventes dispersaram-se pelo mato em dois grupos, que só voltaram a se encontrar 70 anos depois. Essa parte da história é documentada e, segundo afirmou o marechal Cândido Rondon em uma conferência na época, o massacre foi comandado pelo seringalista Domingos Antonio Pinto:

“Nada se deve temer da índole pacífica e até mesmo tímida dos Iranche. Mas, apesar disso, o truculento seringueiro entendeu que era necessário expeli-lo das proximidades do ponto em que se estabelecera; e como por ali existisse uma aldeia, assentou dar-lhe cerco, com o auxílio dos camaradas, todos armados de carabinas. Pela madrugada, ao recomeçar a cotidiana labuta daquela misérrima população, a celerada emboscada rompeu fogo, abatendo os que primeiro saíram das casas para o terreiro. Os que não morreram logo, encerraram-se nas palhoças, na vã esperança de encontrarem aí abrigo contra a sanha de seus bárbaros e gratuitos inimigos. Estes porém já estavam exaltados pela vista do sangue das primeiras vítimas e nada os impedia de darem largas à sua fome de carnagem. Então, um deles, para melhor trucidar os misérrimos foragidos, resolveu trepar à coberta de um dos ranchos, praticar nela uma abertura e, por esta, metendo o cano da carabina, foi visando e abatendo uma após a outra as pessoas que lá estavam, sem distinguir sexo nem idade. Acuados assim com tão execrável impiedade, os índios acabaram tirando do próprio excesso do seu desespero a inspiração de um movimento de revolta: uma flecha partiu, a primeira e única desferida em todo este sanguinoso

drama, mas essa embebeu-se na glote do crudelíssimo atirador, que tombou sem vida. A só lembrança do que então se seguiu faz tremer de indignação e vergonha. Onde haverá alma de brasileiro que não vibre uníssona com a nossa, ao saber que toda aquela população, de homens, mulheres e crianças, morreu queimada, dentro de suas palhoças incendiadas?”

A rendição para a cruz Na memória de seu Inácio, ainda estão fortes as histórias da juventude e as lembranças dos ataques que sofriam. “Naquele tempo”, como ele diz, eram cada vez mais atacados pelos vizinhos Rikbatktsa e Tapayuna (“Beiço-de-Pau”, parentes dos Suyá, que foram levados para o Parque do Xingu na década de 1960). Quando podiam, visitavam e mantinham relações cordiais com missionários na região no posto telegráfico do Utiariti. Servia para conseguirem alguma comida e alguns instrumentos de ferro, como facão e machado. “Só que eles nunca levavam os brancos para dentro de suas aldeias”, explica o antropólogo Rinaldo Arruda, professor da PUC de São Paulo e autor dos relatórios de identificação das áreas indígenas dessa região.

”Onde haverá alma de brasileiro que não vibre uníssona com a nossa, ao saber que toda aquela população, de homens, mulheres e crianças, morreu queimada, dentro de suas palhoças incendiadas?”

IRANTXECasa tradicional irantxe e tatuagem feita com tinta de plantas (página ao lado)

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Com a fundação da Prelazia Diamantina em 1930, o assédio dos jesuítas tornou-se mais intenso. Tinham mais recursos e podiam oferecer mais presentes. Na década de 1940, com a Segunda Guerra em curso, veio um novo ciclo da borracha. A volta dos seringais desencadeou uma nova desestabilização política do território, com novos e terríveis ataques dos Rikbaktsa e dos Tapayuna. Junto com os seringueiros que ocupavam a região, vinham surtos de gripe, malária e sarampo. “Foi daí que, em 1948, os Irantxe se refugiaram na missão”, conta Arruda.

De sua “rendição” em busca de abrigo, em 1948, até o ano de 1968, quando conseguiram uma terra do Governo Federal, os Irantxe permaneceram ininterruptamente dentro do Utiariti. “É uma geração inteira”, comenta Arruda, “justamente esses que estão com 40, 50 anos hoje”. No ano seguinte, em 1969, a missão foi fechada por falta de recursos, ao mesmo tempo que veio uma “reorientação ideológica” pelos missionários. Mas o estrago cultural já estava feito. Na nova terra, os Irantxe ainda temiam os Rikbaktsa, que “poderiam surgir de qualquer sombra na mata”, recorda Inácio. “Na missão, quem falava a língua apanhava de vara”, diz o ancião. Nesses 20 anos, tiveram de aprender a trabalhar nas

fazendas e nos seringais da Igreja. E a viver no cerrado da Chapada dos Parecis, longe da Floresta Amazônica que preferiam. Nesse mesmo período, passaram a acompanhar os jesuítas em missões “caladas” (clandestinas) em busca de “índios desconhecidos” na região. Foi quando, dois anos depois, em 1971, junto com o padre Thomaz de Aquino Lisboa, fizeram os primeiros contatos com um grupo de índios que falavam a mesma língua: eram os parentes remanescentes do massacre do Tapuru.

Retomada cutural – penas e “cabeçobol” Essa proximidade de datas – a volta à terra e o reencontro com seu povo – foi fator essencial no movimento de retomada cultural que iria crescer quase duas décadas depois, já nos anos 1990. Os Myky, “gente”, como se autodenominavam os parentes que viviam autônomos, trouxe ao grupo, pela primeira vez, a vontade e o orgulho de ser Myky (na grafia de Pe. Thomaz, “Munku”). “As numerosas visitas dos Iránxe aos Munku favoreceram aos dois grupos: os Iránxe, já em processo de desvitalização cultural, receberam um novo ânimo na retomada dos traços culturais próprios; os Munku, alertados por seus patrícios, foram incentivados a não deixarem o seu modo de vida próprio”, escreveu o

sacerdote em seu diário de campo. No entanto, as visitas eram controladas pelo missionário, que impedia um contato maior entre os grupos, com medo que os “Iránxe” desvirtuassem a “pureza” dos Myky – o mesmo padre que veio a casar-se com uma jovem índia Myky de apenas 12 anos pouco tempo depois.

Acompanhando a tendência de recuperação demográfica e cultural que tocou diversos povos nos anos

1990, os Irantxe deram início a um processo intenso de retomada de identidade e de traços culturais. Expandiram-se pelo território e hoje, com uma população de 280 pessoas, formam seis aldeias. Pleiteiam, junto à Funai, uma revisão dos limites de seu território: não se sentem à vontade no cerrado, onde foram colocados pela Missão Jesuítica, onde possuem dificuldade para encontrar os elementos naturais que usam em seu artesanato, majoritariamente oriundos da

mata alta que ficou de fora da primeira demarcação.Passaram a se autodenominar Manoki, um termo difícil de ser traduzido, mas que pode significar “convidado”, ou, para seu Inácio, “povo”, “o que a gente é”. A expressão serve também para diferenciá-los de seus parentes Myky: falam a mesma língua, possuem a mesma origem, porém, depois de tantos anos vivendo separados, preferem ser diferenciados uns dos outros. Nas escolas indígenas, são ensinados tanto o português quanto a língua materna. Praticamente todos os jovens participam do ritual de iniciação de furação de nariz e não dispensam, nos momentos de folga, uma boa partida de ajâli paîpi ou cabeçobol: jogo tradicional de cabeça com bola feita de leite de mangabeira. “A gente joga futebol de branco também, mas o nosso é mais divertido”, comenta o craque Paulo Manoki, nariz furado, corpo pintado e cansado depois de uma partida. “Meu filho tem nove anos”, diz o cacique Marcelino. “Já, já ele vai ficar preso para furar o nariz, e só agora ele está aprendendo o português na escola: até então, era só a língua nossa”. Ao seu lado, o pai, o velho Inácio, abre um sorriso. “Os meninos têm de ser assim, pra sempre Manoki. Hoje em dia eu tô feliz, mais feliz que antes.”

“Na missão, quem falava a língua apanhava de vara”, relembra o velho Inácio.

IRANTXE

Pessoas Irantxe: Inácio Kajoli e seu filho Marcelino Napôtsi. Na página ao lado, os tocadores de flauta

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cem anos de resistênciaDanielle Santos

Fotos: Arquivos Funai, Museu do Índio e

Ministério da Agricultura

NAMBIKWÁRAcultura Região Mato Grosso Município Comodoro Área 1.011.961 hectares População aproximadamente 1.800 pessoas Etnia Nambikwára Língua nambikwára

Há exatos cem anos uma expedição cortou o vasto cerrado brasileiro. Desconhecido pelo imaginário popular e intocado pela marcha do desenvolvimento, o cenário de árvores retorcidas e chão arenoso abrigaria uma ambiciosa empreitada impulsionada pelas idéias positivistas sobre integração territorial. O ano era 1907. Diante do isolamento dos territórios do interior do Brasil e da escassa proteção militar nas fronteiras com o Paraguai e a Bolívia, o Governo decidiu instalar linhas telegráficas para comunicação do Centro-Oeste com o longínquo Norte do País. Para isso, criou-se um grupo liderado por Cândido Mariano da Silva Rondon, um dos principais personagens do indigenismo brasileiro, que criaria o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em 1910.

O contato com a fauna, a flora e a geografia locais contribuiu para que a Comissão Rondon, como foi batizada, elaborasse a primeira Carta Geográfica de Mato Grosso. Mas não só de animais e plantas constituía-se o grande cerrado. Ali também vivia um povo indígena ainda incógnito. Eram os Uiakoákorês, homens que dormem no chão, como diziam os índios Paresi, ao descreverem os Nambikwára, vizinhos da margem direita do rio Guaporé. Divididos entre 30 subgrupos, os Nambikwára foram assim denominados: os da Serra do Norte, os da Chapada dos Parecis e os do Vale do Guaporé. Desses, apenas os dois primeiros grupos tiveram contato com a Comissão.

“Estamos completando 100 anos de contato e percebo que, entre outras etnias, ainda somos atrasados em termos de gente estudada. A gente não acha isso ruim. O pajé me disse que é porque a gente tem uma espiritualidade que não permite a inclusão da cultura

do kwajato [branco]”, diz Mané Manduca. Professor indígena, ele tomou para si o compromisso de reviver a memória de luta do povo. A espiritualidade e o respeito à natureza fizeram com que o impacto do contato com a sociedade envolvente provocasse o desejo de recuperação da cultura e das crenças indígenas.

Há três anos, contam alguns índios da Terra Indígena Nambikwára, uma criança desapareceu por sete dias na mata. Durante seis dias, os líderes espirituais de todas as aldeias fizeram pajelança e vigília. Um dos pajés, Benjamim, finalmente desvendou o mistério, ao conversar com o Yaitulensu, uma alma da montanha. Segundo ele, o Alukutessu, a alma do pequi, havia escondido a criança para castigar a comunidade pela venda exagerada do fruto. “Os homens da cidade estavam desprezando o filhote que vem agarrado ao fruto maior e isso deixou o pai do pequi muito triste. Daí, o espírito do pequi ouviu as vozes de seus filhos perdidos na cidade e resolveu castigar os Nambikwára”, explica Manduca.

A reverência aos antepassados e ao espaço que habitam constitui a vida dos Nambikwára. A pesquisadora Anna Maria Ribeiro reconhece a importância da espiritualidade entre eles como modo de preservação de sua cultura. Servidora da Funai em Cuiabá, ela estuda a etnia há 24 anos e publicou dois livros sobre o assunto. Atualmente, Anna está concluindo uma tese de doutorado que aborda a ligação desses índios com o território e a posse espiritual. “O que percebi em minhas pesquisas é que os Nambikwára não obedecem necessariamente à demarcação oficial feita pela Funai, mas à determinação do mundo espiritual, por onde

Há um século, os Nambikwára provam ao mundo que a persistência é capaz de ultrapassar o tempo e as dificuldades trazidas pelo jeito branco de viver.

Índios Nambikwára ao lado de Rondon, no início do século 20

Ministério da Agricultura, Conselho Nacional de Proteção aos Índios. Publicação número 97, p. 42. Foto: Leduc

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os espíritos se locomovem. Isso inclui áreas que historicamente eram território indígena e hoje fazem parte das cidades”, explica.

Um dos principais desafios observados pela pesquisadora é justamente a integração desse povo com as comunidades das cidades vizinhas à terra indígena. “O preconceito e a falta de conhecimento têm prejudicado a convivência e os índios sofrem uma interferência negativa por conta disso”, opina.

Cercados por estradas e construções, os Nambikwára buscam apenas resistir às diferenças em nome do futuro da etnia. Há 100 anos, eles provam ao mundo que a persistência é capaz de ultrapassar o tempo e as dificuldades trazidas pelo “jeito branco” de viver.

Resistência e fé Assim, como tantos outros povos indígenas, os Nambikwára foram vítimas de todo tipo de preconceito. Foram intitulados de incapazes, selvagens sem alma e até antropófagos, logo nos primeiros anos de contato. O desenvolvimento que

o Governo prometia levar à região significava uma mudança certa e brusca na vida dos índios. Em 1915, oito anos após o primeiro contato com a Comissão Rondon, a terra habitada pelos Nambikwára já possuía sete estações telegráficas.

Atraídos pelas trilhas, apareceram então seringueiros e missionários. Os primeiros em busca de riqueza e os segundos com a tarefa de catequizar os índios. “Quando eu nasci, em 1963, o homem branco já fazia parte do mundo indígena. Por causa desse contato, nós começamos a ter amizade com os seringueiros e negociamos as coisas que para a gente eram de valor”, conta Manduca.

Com a intensa ocupação na década de 1940, muito pouco do cotidiano Nambikwára era praticado. Nesse período, a extração do látex sustentou-se principalmente com financiamento do Banco da Borracha, incorporado ao Banco da Amazônia, dez anos depois. Outras medidas, como a concessão do direito de exploração dos seringais e da ocupação

“A língua materna é uma identidade, arma do próprio índio e defesa dele também. Eu tenho de incentivar e falar a língua porque nosso

costume tem muito valor. É assim que eu penso todo dia.”

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NAMBIKWÁRA

Em meio às dificuldades advindas de invasões de seringueiros, da presença de missionários e até da construção de uma rodovia que corta a terra (a BR 364, chamada Marechal Rondon), o professor indígena expressa um dos seus maiores objetivos: fortalecer os costumes entre os jovens. “A língua materna é uma identidade, arma do próprio índio e defesa dele também. Eu tenho de incentivar e falar a língua porque nosso costume tem muito valor. É assim que eu penso todo dia.”

Os constantes ataques e investidas findaram em meados de 1968. Época de renovação para os Nambikwára, com a demarcação da terra pela Funai, entre os rios Juína e Camararé. Mais tarde, em 1973, a área foi ampliada do rio Camararé até o rio 12 de Outubro. Mané Manduca e os demais que sobreviveram para presenciar o feito acreditam que a crença na espiritualidade os manteve fortalecidos e confiantes, para que um dia triunfassem naquilo que sempre foi deles.

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Cotidiano de mulheres Nambikwára na primeira metade do século 20.Ao lado, registros de 1981 do indigenista Artur Nobre, em sua primeira visita à aldeia

do território indígena expedida pelo governo de Mato Grosso, também contribuíram para agravar a situação dos índios.

Aos poucos, a aldeia cedeu espaço para construções de alvenaria que serviam de postos para forasteiros. A roça tradicional minguou e deu lugar ao alimento ensacado que vinha da cidade. Os homens, guardiães de suas famílias, largaram suas obrigações para se tornarem soldados da borracha. A saúde para toda hora foi abalada pelas enfermidades trazidas pelo branco. O que restou da língua diversificada vive na memória dos mais velhos.

O reflexo dessa história pode ser observado hoje na atitude dos jovens. “Em 1969, quando os brancos resolveram sair da nossa área, a gente falava pouco a nossa língua. O pai e a mãe da gente não tinha muito interesse em passar os conhecimentos tradicionais porque era mais fácil todo o mundo se comunicar em português. Acho que, por causa disso, alguns dos nossos jovens têm vergonha de falar a língua”, diz Manduca.

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último choropor mariaChristiane Peres

Fotos: Christian Knepper

FUNERAL BORORO ��

Na cova rasa coberta por palha e troncos, a menos de dois palmos de fundura, o corpo da velha Bororo aguarda o tempo de seu funeral: período que leva para decompor a sua carne embebida em água e ervas. Tempo de luto, quando se chora e reza à pessoa morta. Tempo da despedida de sua alma. Depois do resguardo da aldeia, que dura entre 60 e 120 dias, os restos mortais são exumados, seus ossos lavados e velados num cesto, até terem a derradeira despedida. Momento de transformação e renovação de um povo que depende da morte para dar continuidade à vida.

No sul do Mato Grosso, na Terra Indígena Teresa Cristina, as danças e rezas que compõem a homenagem, já estudadas por antropólogos como Darcy Ribeiro e Claude Lévi-Strauss, são vividas intensamente nas noites de lua cheia, como aquelas de dezembro de 2006. Em meados de setembro, com mais de 70 anos, Maria Bororo, mulher de José Kadagare, bari (chefe espiritual) respeitado por todo o povo Bororo, morreu, após lutar por seis meses contra um câncer de colo de útero.

Mesmo com o parecer médico indicando uma doença conhecida pelos “brancos”, os Bororo acreditam que a morte de Maria é resultado da ação do Bope, espírito da natureza envolvido em

todos os processos de criação e transformação, como nascimento, puberdade, morte. Mas como fazer de uma perda momento de reafirmação cultural e até mesmo de recriação da vida?

Entre os Bororo, é exatamente por meio do funeral que a sociedade reafirma a vitalidade de sua cultura. O período é especial na socialização dos jovens porque é nessa época que muitos deles são formalmente iniciados na vida adulta da comunidade. Além disso, participam dos cantos, danças, caçadas e pescarias coletivas realizadas nessa ocasião e têm a oportunidade de aprender e perceber a riqueza da cultura de seu povo.

O lavar dos ossos Na manhã de sábado, em meio a cantos e choros, o corpo de Maria, envolto numa esteira, é retirado da cova. Nenhum cheiro de carne apodrecida paira no pátio da aldeia Córrego Grande, ou Koregedo Paru, na língua bororo. “Não era catinga de bicho ou gente morta. Era um poderoso cheiro, fino como um assobio, que cheirava dia e noite”, descreveu Darcy Ribeiro, quando participou de uma cerimônia como essa na década de 1950. Cheiro proporcionado pela mistura de ervas jogada semanalmente sobre o corpo, para ajudar que as carnes se desmanchem mais rápido.

Na aldeia Córrego Grande, os Bororo prestam a última

homenagem a Maria, mulher do líder espiritual

José Kadagare, falecida no mês de setembro

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É chegada a hora de lavar os restos mortais de Maria e dar início ao fim de sua jornada. Cantos, choros e lamentos dão o ritmo da exumação. Os ossos são amarrados em troncos e carregados até uma área alagadiça da aldeia, onde a água embarrada chega à altura dos joelhos. Os homens começam a limpeza. O cheiro agora, com o resto de tecido exposto, é de carne em decomposição, cheiro que se entranha na pele, nas ventas.

Um por um, os ossos são limpos e colocados cuidadosamente sobre um pano. Apenas os parentes homens próximos de Maria estão autorizados a participar dessa etapa. Para os Bororo, seus mortos precisam receber cuidados minuciosos, garantia da passagem do mundo dos boe (gente) para o mundo dos aroe (almas). Em uma espécie de procissão, voltam ao centro da aldeia para dar continuidade ao ritual de despedida. O esqueleto é guardado em um cesto e levado à casa cerimonial dos homens, o baito, localizado exatamente no centro do pátio da aldeia. Lá estão os responsáveis pela pintura do bakité, o cesto funerário que abrigará os ossos da velha Bororo. Alguns deles já

estão com seus corpos e mentes tomados pelos efeitos do álcool. A cachaça, que substituiu o antigo fermentado de mandioca, é bebida durante a maior parte do funeral, inclusive por aqueles que estão diretamente envolvidos com os momentos de grande espiritualidade.

Queima dos bens A alguns metros do baito, na casa da filha mais velha, as mulheres cantam e se despedem dos bens de Maria. No final da tarde, tudo o que pertencia a ela será queimado, para que nada do seu princípio vital permaneça nesse mundo. Nem seu nome indígena deverá mais ser pronunciado – ao menos até que seja caçada uma onça, o que libertará seu nome para ser colocado em outra pessoa que venha a nascer. “Eu não tenho mais nada. Nos desfizemos de tudo e agora vamos queimar o que resta das coisas dela. Colchão, panelas, ventilador, roupas. Até a casa. Não sobra nada. Agora é hora de começar do zero”, conta Guilhermina Bororo, filha de Kadagare e Maria, que, por morar com a mãe, será obrigada a reconstruir sua vida com o que lhe resta: a roupa do corpo.

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Com pequenos cacos de vidro, as mulheres arranham seus braços, pernas, rosto, barriga. Deixam verter abundantemente seu sangue, num estado de transe profundo.

O rito tem início com o lavar dos ossos na manhã de sábado. Dentro do baito, a casa sagrada, estão os Bororo vivos e

mortos que vieram receber e dar adeus a Maria

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Dia de roia O rito que já era denso e triste fica ainda mais intenso no domingo. Ao amanhecer, homens, mulheres e crianças dos dois clãs Bororo – Tugarege e Cerae – lotam o baito. Todos, parentes e amigos, choram a morte da velha Bororo. Dia de roia é dia de tristeza, dia de roia é dia de cantorias de funeral. “É o dia mais triste de todos”, afirma o jovem líder e intelectual da aldeia Dário Bororo, o chefe cerimonial que auxilia Kadagare na organização.

Assim que o bakité com os ossos de Maria entra no baito, os choros rituais intensificam-se. Parecem gritos finos, palavras faladas no tom mais agudo da escala musical. Uma das formas de demonstrar a saudade daquela que se foi. Entre cantos e frases ritmadas, as mulheres da família começam um processo de escoriação do próprio corpo.

Com pequenos cacos de vidro, cuidadosamente cortados no dia anterior, elas arranham seus braços, pernas, rosto, barriga. Deixam verter abundantemente seu sangue sobre o cesto, num estado de transe profundo. Choram, não pela dor dos vidros rasgando suas carnes, mas pela partida de Maria. Absorvidos pelo ritual, os homens também cortam seus corpos em demonstração de dor. “O sangue significa o sentimento de perda. Forma de demonstrar o quanto estão tristes com a partida. Não existe um limite: enquanto houver caco de vidro, as mulheres vão se cortar”, explica Evaristo Bororo, um dos professores indígenas da aldeia.

Alguns homens são encarregados de fiscalizar o processo. E retiram constantemente das mãos das mulheres os pequenos cacos. Mas elas estão munidas e encontram em seus bolsos mais e mais vidros para continuar o processo de autoflagelação. Ao mesmo tempo que o sangue escorre pelos corpos, numa roda, os homens adornam o crânio de Maria com penas e urucum.

Durante toda a manhã, as mulheres repetem esse processo. Amigas dos dois clãs unem-se às filhas e netas de Maria e também sangram seus corpos. “É um orgulho para a mulher Bororo carregar em seu corpo as marcas de vários funerais”, disse Darcy Ribeiro.

O último bari O maior responsável pela preservação das crenças e da religião entre os Bororo de Teresa Cristina é Kadagare, um dos últimos grandes bari de seu povo. Apesar dos 97 anos de idade, ele rege o funeral da esposa com quase a mesma força e disposição dos anos passados. Participa de tudo e, com a ajuda do genro e do filho, agüenta firme o ritmo de todos os dias. Nem parece aquele senhor frágil que, na noite anterior, não tinha forças para se levantar e dependia das filhas ou que, na última semana, estava internado em um hospital de Cuiabá.

Por conta da idade avançada, ele já prepara o filho Ismael para tomar seu lugar quando chegar a hora de encontrar-se com Maria. Ismael é um cantor hábil, que auxilia o pai na condução do ritual. Mas ser bari não é para qualquer um. Bororo acredita que bari já nasce bari. E Kadagare é dos poucos que consegue incorporar os espíritos e falar com as almas. Na tarde de domingo, ele conversará pela última vez com sua mulher. Dará a ela sua última refeição e com um sopro guardará sua história dentro de uma pequena cabaça, deixada na casa dos parentes e só retirada de lá quando outro funeral acontecer.

Ao mesmo tempo que o sangue escorre pelos corpos, numa roda, os homens adornam o crânio de Maria com penas e urucum.

O bari Kadagare rege o que poderia ser seu último funeral. Aos 97 anos,

ele achava que não suportaria a despedida da mulher

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A despedida da alma A tarde cai e é hora de Maria “descer”. Kadagare incorpora o bari e se esmera para que tudo saia de acordo com a tradição Bororo. Ele já não enxerga mais e ouve muito pouco, mas nada disso é barreira para ele, que puxa os cantos e chama o espírito da velha companheira. Mexe forte no chocalho maricá e canta o mais alto que sua garganta permite. A conversa que ocorre é ininteligível mesmo para os Bororo – segundo Dário, a língua das almas é falada de trás para frente. É a última homenagem de Kadagare à esposa morta.

O fim está perto. Numa roda, uma menina dança com o bakité que está prestes a receber os ossos. Quase uma purificação do balaio funerário. Chega então o momento da pintura dos ossos. Cada um deles é pintado com urucum e colocado no bakité que ficará definitivamente com os restos mortais de Maria. Durante os próximos dias, os Bororo querem que Maria “descanse” de seu funeral na casa da família e só depois vá para um cemitério indígena, em um local da mata que apenas o bari saberá localizar ou no fundo de uma lagoa que ele escolher, onde irá para sempre morar. Depois desse dia, ninguém mais chora, lamenta ou se refere de qualquer forma à finada. A alma de Maria está agora no mundo dos aroe, onde permanecerá eternamente junto de todos os Bororo mortos. É o final de um ciclo. Das homenagens, do rito de respeito aos mortos, da consagração da cultura. Tempo de renovação, reconstrução, vida nova.

Guilhermina carrega o bakité com os ossos da mãe. Após o intenso período fúnebre, é hora do espírito de Maria descansar

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autônomosMAPA

Dispersa em pontos remotos do território nacional, uma pequena parcela da população brasileira foge do alcance de estimativas demográficas: são povos indígenas autônomos. Surpreende a muitos que, no Brasil, ainda haja índios isolados. Causa ainda maior surpresa saber que os indícios de sua existência e localização são mais numerosos do que antes se supunha.

Levantamento inédito feito recentemente pela Coordenação Geral de Índios Isolados da Funai contabiliza hoje 67 referências da existência de índios autônomos no País, conforme demonstra o mapa nas páginas 28 e 29 . Em avaliações anteriores, as referências somavam pouco mais de 40. O aumento deve-se a novos estudos e coleta de informações expostos na oficina de planejamento de ações da CGII, realizada em dezembro de 2006.

As referências do mapa envolvem tanto povos já contatados pela Funai e atualmente assistidos pelas frentes de proteção etnoambiental da Fundação quanto localizações confirmadas, por meio de vestígios materiais e relatos consistentes de moradores locais, incluindo outros índios e ocupantes legais ou ilegais, além de indícios ainda não devidamente verificados. Embora não necessariamente signifiquem a presença de índios autônomos em todos os locais indicados, os dados atestam inquestionavelmente a força de povos (e até de um único indivíduo, como é o caso do “índio do buraco”, cujo drama está nas páginas da terceira edição da Brasil Indígena) na afirmação de sua existência frente a pressões da ocupação do interior brasileiro. Não se sabe ao certo quantos são ou a quais etnias pertencem os povos autônomos; contudo a coleta de indícios que resultou no mapa demonstra a importância da proteção dessas áreas.

A maior parte desses grupos – conhecidos ou não – vive em terras indígenas demarcadas e protegidas

focos de autonomiaMichel Blanco

de investidas econômicas predatórias na Amazônia brasileira, como é o caso dos povos autônomos do Parque do Javari, das terras indígenas Guaporé, Alto Tarauacá, Alto Rio Negro, Yanomami e Waimiri Atroari. Outros, no entanto, estão sob ameaça de invasores atiçados pela cobiça de madeira, minérios, novas terras para agronegócio ou especulação. Ademais, há indícios de grupos autônomos em terras indígenas sem que seus próprios patrícios os tenham contatado, como talvez dois grupos Kayapó, na Terra Indígena Mekrangnoti. No Parque do Xingu, corre há anos a suspeita de que um grupo Yawalapiti permaneça não-contatado. A história é confirmada pelo cacique Aritana Yawalapiti: “Todo o mundo sempre falou que um grupo foi embora quando o Orlando [Villas Bôas] chegou. Dizem que estão hoje numa área aonde quase ninguém vai. Já fui lá quatro vezes, mas não vi nada. Só que tem uma coisa estranha: os macacos dali são todos velhacos. Aí a gente pensa: É velhaco por quê? Porque já deve ter levado flechada.”

Todos os indícios representados no mapa estão localizados na Amazônia Legal, à exceção de um único, que chama a atenção pela proximidade da capital do País. Trata-se da referência de um grupo Avá-Canoeiro, que teria buscado refúgio dos intensos massacres nas grutas e porções de mata da região da Serra da Mesa. A última expedição da Funai ao local ocorreu em julho do ano passado, sem que novos vestígios fossem encontrados. “Não descartamos a hipótese da existência desse grupo, em razão da consistência dos relatos da população local, principalmente de antigos quilombolas. Afinal, no passado, quilombolas chegaram a enfrentar os Avá em disputas territoriais”, afirma o indigenista Marcelo Santos, coordenador da CGII.

A proteção territorial é apenas o primeiro passo

e o mapa indica por onde começar.

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Estabelecer contato é a última opção da Funai no trabalho com povos indígenas autônomos. A decisão só deve ser tomada em caso de extrema ameaça aos índios. Trata-se de uma ação que deve ser muito delicada, mesmo se conduzida com a urgência necessária para o salvamento de vidas, explica Marcelo dos Santos, chefe da Coordenação Geral de Índios Isolados da Funai. Marcelo fala com a experiência de 31 anos de indigenismo, catorze dos quais passados em aldeias Nambikwára, a partir de 1976, quando ele ingressou na Funai, aos 22 anos.

BI: Quando se faz necessário o contato com povos autônomos e como a decisão é tomada? Houve mudanças na postura da Funai?Marcelo Santos: Atualmente, as decisões sobre o contato deixaram de ser uma decisão exclusiva do coordenador e passaram a ser de responsabilidade de um Comitê Permanente, devido à sua importância. O comitê, criado por uma portaria do presidente da Funai em março de 2006, debate a situação crítica, pois o contato somente é feito em situações em que há ameaças graves à sobrevivência do grupo. É passo importante na política para os índios isolados porque o contato traz conseqüências irreversíveis. Podem ser positivas, se houver um planejamento e o grupo for salvo de extermínio, ou negativas, como demonstra a história do indigenismo brasileiro, com grande decréscimo populacional, resultante, sobretudo, de doenças. A decisão de fazer contato ou não, hoje, é um exercício coletivo.

BI: Na hipótese de contato, qual é o procedimento?Marcelo: São duas situações básicas: o contato planejado e o imprevisto. Quando há planejamento, prepara-se uma equipe de assistência em imunização, um

tratamento de saúde delicado. Para isso, precisamos de equipe qualificada, com experiência de campo. Mas há uma carência. Estamos tentando sensibilizar a Funasa [Fundação Nacional de Saúde], para que inicie um processo de formação dessas equipes. Também se deve ter uma consultoria antropológica e lingüística, para estabelecer comunicação efetiva com o grupo e explicar o nosso trabalho. Outro aspecto é a questão fundiária. Um planejamento adequado permite fazer um levantamento mínimo da área de ocupação, permitindo sua proteção. É preciso que, no mínimo, se tenha um espaço territorial resguardado por meio de uma restrição de uso, o que impede a ocupação não-indígena. O contato imprevisto é outro caso. Se servidores da Funai, por acaso, se deparam com índios isolados,

o que pode acontecer durante expedições ou mesmo com visitas inesperadas às bases das frentes de proteção, existe a possibilidade de mobilização rápida de uma equipe de saúde. Mas, no contato com outras pessoas, duas situações graves podem surgir: perseguição aos índios por parte daqueles que cobiçam suas terras ou o contágio de doenças pelo contato com pessoas não preparadas. Nesses dois casos, a Funai corre atrás do prejuízo.

BI: Quais os desafios da Coordenação?Marcelo: A curto prazo, conseguir suprir de recursos humanos as equipes existentes e criar outras necessárias. A médio prazo, verificar todas as referências existentes, fazer o levantamento de ocupação territorial dos grupos confirmados e delimitar e regularizar a área para a ocupação exclusiva dos índios. A longo prazo, proteger as terras e permitir que esses grupos tenham a prerrogativa de decidir se querem ou não estabelecer contato com a sociedade envolvente. O ideal de todo o nosso trabalho é que o índio seja o dono de seu destino e tenha tranqüilidade para tomar suas decisões, incluindo aquela que poderá mudar para sempre sua vida: estabelecer contato. Esse é o maior desafio da Coordenação.

O ideal de todo nosso trabalho é que o índio seja o dono de seu destino e tenha tranqüilidade para tomar suas decisões.

novos rumos

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Terras Indígenas

Área de atuação das Frentesde Proteção Etno-Ambiental

Fonte: Coordenação Geral de Índios Isolados

Terras Indígenas com Autônomos

Confirmada

Não confirmada

Contatada

Cuminapanema

Guaporé

MadeirinhaPurus

Vale doJavari

Envira

A questão dos índios autônomos pode despertar a idéia, em muitos casos falsa, de povos que vivem à margem do processo histórico, alheios a todas as transformações ocorridas desde a deflagração da conquista do território brasileiro. Não raro, esses povos chegam a ter relações esporádicas – por vezes violentas e trágicas – com segmentos da sociedade envolvente. Mas geralmente não mantêm, por opção ou por necessidade, um relacionamento permanente, daí a fuga. Além disso, fatores geográficos também facilitam o seu distanciamento. Garantir a integridade desses povos e, ao mesmo tempo, propiciar condições para que se tornem agentes de seus destinos é um dos desafios da Funai. A proteção territorial é apenas o primeiro passo e o mapa indica por onde começar.

Mapa de referência de índios autônomos

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nas sombrasda florestaFelipe Milanez

Fotos: Christian Knepper

AWÁ-GUAJÁ

Disperso em pequenos grupos pelas franjas orientais da Floresta Amazônica, no estado do Maranhão, vivia um dos últimos povos livres e autônomos do Brasil. Um povo nômade que não precisava da agricultura para sobreviver, pois havia desenvolvido uma economia de caça, pesca e coleta. Cada grupo Awá-Guajá era auto-suficiente em seu território, exceto pelos jovens, que precisavam de esposas e esposos, e pela cultura em si, que precisava celebrar sua existência em rituais de confraternização e de reafirmação do seu ser. Assim, embora espalhados, os grupos Awá se conheciam. Era um tempo de terras extensas, de caça abundante, de babaçuais espessos, de rios que corriam livres sem barragens, na beira dos quais, escondidos, os Awá miravam as raras canoas guajajara e os mais raros barcos de brancos.

Uirohó Guajá e Kamará voltam de uma caçada no P. I. Juriti, um dos últimos resquícios da Amazônia no Maranhão

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Hoje, o povo Guajá, que se autodenomina Awá (homem, gente), está inserido num mundo devastado e violentado, infestado de pequenos lavradores que se aventuraram por essas bandas desde a década de 1960, por fazendas que se instalaram a partir da década de 1980 (em geral grilando ou “comprando” as posses de pequenos lavradores ou expulsando-os por intermédio de jagunços), por projetos de assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e pela Estrada de Ferro Carajás, que transporta em compridos trens de até 2.000 metros, quatro a cinco vezes por dia, mais de dois milhões de toneladas de ferro da Mina de Ferro Carajás. Até a década de 1960, essa região entre os rios Gurupi, a oeste, e Grajaú, a leste, era terra exclusiva de índios

Kaapor, Guajajara, Timbira e Guajá. O que lhes resta hoje, demarcadas pela Funai, são umas manchas de terras indígenas: Alto Turiaçu (530.000 hectares), Awá-Guajá (114.000 hectares), Caru (170.000 hectares), Pindaré (15.000 hectares) e, mais ao sul, Araribóia (413.000 hectares).

A região é campeã de desmatamento da Floresta Amazônica. O que sobrar de mata estará nessas terras indígenas. Desde 1973, quando foi contatado pelo sertanista José Carlos Meirelles o primeiro grupo de índios Awá, às margens do rio Turiaçu, muitos que vivem autônomos na floresta são surpreendidos, de tempos em tempos, por posseiros e grileiros, em confrontos de morte dos quais pouco se sabe. Quando essa população é encontrada pela Funai, os índios são resgatados para viverem em postos indígenas (P. I.). Atualmente, são cerca de 180 Awá nessa situação. Vários grupos, porém, ainda resistem ao contato e preferem viver livres na floresta, como sempre fizeram.

No P. I. Juriti, dentro da Terra Indígena Awá-Guajá, vivem 34 indígenas, contatados ao longo dos últimos 20 anos. Kamará é um índio adulto, com 50 anos, que não entende o português. Ele foi trazido com a família na última expedição de resgate, que chegou ao posto em 1998. Vivia ao norte da T. I. Awá-Guajá,

na beira do igarapé Mão de Onça, uma região cada vez mais ocupada por pasto e gado. Durante uma tarde de outubro do ano passado, enquanto uma equipe da Coordenação Geral de Índios Isolados (CGII) estava na área para confirmar evidências de outros grupos isolados nas proximidades, Kamará sofreu um atentado que quase lhe custou a vida. Por muita sorte, não estouraram as espoletas de uma espingarda que insistiu em contrariar a vontade do atirador. Kamará tinha saído para pescar, quando topou com o caçador. À noite, já mais tranqüilo, ele contava a história, traduzida pelo jovem amigo Hamokoama’a: “Minha filha deu um grito e, quando virei com as flechas, eles já estavam correndo na mata.” Em meio ao relato, Kamará lembrou sua

história. “Meu pai e minha mãe morreram pelas armas de karaí (branco), quando a gente ainda vivia no mato, eu tava junto, vi tudo, um tiro foi bem aqui [aponta a axila]”, recorda. “E meu irmão continua ‘brabo’ no mato, tenho medo de matarem ele.”

A tentativa de assassinato desse índio é uma mostra da violência cotidiana a que estão expostos os índios Awá. Durante todo o século 20, os Awá foram perseguidos por aventureiros, balateiros, grileiros e por outros povos indígenas. Relatos de ataques por outros índios foram descritos por antropólogos que por ali estiveram, como Curt Nimuendaju, em 1918, Darcy Ribeiro, em 1949, Francis Huxley, em 1950, Mércio Gomes, a partir de 1975. Os Awá vivem uma situação delicada que desafia a espetacular harmonia e a interação desse povo nômade com a floresta. “É impressionante a capacidade que eles têm de se esconderem na mata”, relata Wellington Monteiro, um experiente sertanista da Funai, que trabalhou durante anos na região e fez contato com um dos grupos Awá. “São heróis de sobrevivência, devemos respeitá-los, protegê-los e garantir a sua integridade física”, afirma Marcelo dos Santos, chefe da CGII. A destreza desse grupo na floresta é reconhecida a tal ponto que, comenta-se pelo Maranhão,

Os Awá vivem uma situação que desafia a sua harmonia com a floresta. “A mata está acabando, e eles estão ficando sem

lugar para viver”, diz o sertanista.

AWÁ-GUAJÁ

em qualquer punhado de mata na Amazônia pode ter algum Awá. “Mas a mata está acabando, e eles estão ficando sem lugar para viver”, lamenta Santos.

Como estratégia de sobrevivência, eles formam pequenos núcleos familiares, conforme o antropólogo Mércio Gomes, atual presidente da Funai, que morou por alguns anos entre os Awá. “Minha teoria é que eles mudaram a sua organização social depois da revolta da Cabanagem, no Pará, no século 19, como vários outros grupos indígenas, e partiram para a floresta em pequenos núcleos, como vivem até hoje”, explica. “Eles mantêm em sua língua um vocabulário que faz referência a uma agricultura complexa e possivelmente chegaram a morar em grandes aldeias, antes de adquirir esse novo modo de vida.” Por essa razão, um dos desafios dos contatos de resgate tem sido reintegrá-los para formar novamente um povo. Além dos quatro postos indígenas que abrigam índios contatados, há evidências de pelo menos cinco núcleos familiares autônomos vivendo em perigo.

Ao norte da Terra Indígena Awá-Guajá, próximo ao igarapé Mão de Onça, pode estar ainda o irmão de Kamará e sua família. Quando foi contatado, lembra-se o sertanista Monteiro, que participou da operação, Kamará disse que ele, as filhas, a mulher e dois amigos eram todos os Awá que havia na região. Quase oito anos depois, ele começou a falar para os outros índios da comunidade do Juriti e para os funcionários da Funai que seu irmão teria escolhido ficar no mato naquele momento. Surgiu uma nova versão: “Descobrimos que eles estavam desconfiados do pessoal da Funai e decidiram dividir o grupo. Alguns foram, outros ficaram. Se desse certo, voltariam para buscar os restantes.”

Não muito longe de onde pode estar o irmão de Kamará, ainda nas cercanias da T. I. Awá-Guajá, comenta-se sobre outra pequena família. Nessa área, eles vivem muito próximos de grandes fazendas que cresceram suas extensões pelo Pará. Sabe-se muito pouco sobre eles.

Mais ao norte, na T. I. Alto Turiaçu, onde estão os Awá do posto Turiaçu – os primeiros contatados por Meirelles – os índios Kaapor, que são a grande maioria

dos habitantes dessa terra indígena, relatam já terem visto algumas vezes duas famílias diferentes de índios Awá caçando pela região. Se não houver invasões, ao contrário dos parentes de Kamará que estão na terra Awá-Guajá, esses podem continuar vivendo autônomos, da forma que quiserem, pois não correm grande risco.

Entre os Awá autônomos que vivem na T. I. Caru, colada à T. I. Awá-Guajá, a situação, que não era tão grave poucos anos atrás, agora começa a ficar preocupante. Lá existe pelo menos uma comunidade, com 10 a 15 pessoas. Encurralados, esses índios são obrigados a desviar seus passos de invasores, madeireiros e indígenas Guajajara – o grupo majoritário que vive na Caru. Com isso, vem diminuindo o território que usam para caçar, o que os força a partir em expedições cada

To’ó Guajá, com Kamará ao fundo, em uma de suas últimas imagens, no P.I. Juriti

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uma onça. Não se sabe a causa da morte – pode ter sido um acidente, como a queda de uma árvore. Os Guajajara afirmam ter visto, na época da estiagem, alguns índios Awá pegando alimento de suas roças e bebendo água de seus reservatórios. “Como eles não possuem anticorpos, isso poderia desencadear doenças entre eles”, afirma Marcelo dos Santos. “Precisamos encontrá-los, em expedição acompanhada de outros Awá, para que estes expliquem àqueles o perigo a que estão expostos”, diz.

É possível ainda que haja outras famílias no extremo sul do estado, próximo à T. I. Krikati. Conforme relato dos próprios indígenas Krikati, eles já encontraram Awá caçando nas matas de sua terra. Mas esse é o caso mais difícil de ser confirmado. A floresta que não foi desmatada já é rala nessa região, quase cerrado. Mesmo assim, alguns Awá já demonstraram que podem se adaptar ao cerrado. “Não podemos esquecer dos que resgatamos nas serras de Minas Gerais e Bahia, já bem longe do Maranhão, de onde tinham partido”, lembra Monteiro. “No caso dos Awá, é preciso ter toda a cautela.”

Ao longo de 2006, uma equipe foi destacada pela CGII, sob a chefia do indigenista Maurício Wilke, para confirmar essas evidências e tentar resgatar e proteger as pessoas em maior perigo de contato indesejado com a população regional. Devido às dificuldades de deslocamento e ameaças, a equipe da Funai não conseguiu chegar a conclusões precisas sobre a localização e as condições de vida dos Awá. As tragédias têm sido a rotina desses índios. Durante a expedição, não foi diferente. Primeiro, a tentativa de assassinato de Kamará, quando a equipe ainda estava no Juriti. Na delegacia de São João do Caru, sequer foi possível fazer um boletim de ocorrência. “Pode ser pior”, disse o delegado, que preferiu passar um rádio para as comunidades da região dizendo para deixarem os índios em paz. Mais um dia triste na rotina dos Awá. O pior, no entanto, viria logo depois, com o falecimento do jovem líder To’ó, na cidade de Santa Inês, vítima de um ataque cardíaco fulminante.

To’ó fora convidado a acompanhar a expedição a Araribóia, junto com seu primo e amigo de infância Wirakatako, do P. I. Awá, na T. I. Caru. Ambos foram contatados em 1980, por uma expedição da qual fazia parte o antropólogo Mércio Gomes. “To’ó pertencia a um grupo que vivia no igarapé Timbira, acossado por uma intensa frente de agricultores no vale do Pindaré. Embora o contato tenha sido tranqüilo e amistoso, uma parte desse grupo embrenhou-se na floresta e só foi recontatado um mês depois. Entre eles estava To’ó, um menino então com cerca de 10 anos de idade. Seu pai, sua mãe e seu irmão morreram. To’ó foi criado como órfão, ajudado pela irmã e pelo cunhado, sob a liderança de Txipatxiá”, recorda-se Gomes.

Líder de um grupo que tradicionalmente evita as instituições de poder, To’ó falava bem português e era extremamente preocupado com a proteção de seu povo. Foi ele quem apresentou os “brancos amigos” a Pinawatxia e Kamará nos seus primeiros contatos com a Funai. Ele havia aprendido com o grande líder Txipatxiá a integrar todos os Awá que fossem resgatados do mato e formar uma aldeia. Na aldeia do Juriti, To’ó era essencial para que o grupo aprendesse a tornar-se sedentário. Ao mesmo tempo, ele lutava para que a cultura nômade de seu povo não fosse perdida pelo contato necessário que foi estabelecido.

A notícia de seu falecimento caiu como um raio no P. I. Juriti. Wirakatako dormia no mesmo quarto que To’ó e viu Maíra, uma divindade Awá, levar seu espírito. Triste, porém forte e consciente, Wirakatako deu a notícia do falecimento a seus parentes. Apesar do trauma, o mesmo Wirakatako decidiu manter viva a luta pela sobrevivência de seu povo, num momento em que o cerco sobre eles na floresta intensifica-se. “Os contatos, hoje, são verdadeiros resgates”, afirma Santos. Com a morte de To’ó, perderam um grande líder. Agora, dependerá de Wirakatako e de jovens como Hamokoama’a, Uirohó e Pinawatxia que os Awá ainda autônomos em perigo sejam resgatados e possam compreender a sociedade nacional que os envolve, cerca e mata.

As tragédias têm sido a rotina dos Awá. Durante a expedição não foi diferente. Primeiro, a tentativa de assassinato de Kamará. Logo depois, a morte de To’ó, vítima de um ataque cardíaco fulminante.

vez mais distantes à procura de alimento. Eles começam a peregrinar para o leste e já cruzaram, em duas oportunidades, com os Awá contatados do Juriti. Nas duas vezes, houve tensão. Em uma delas, os Awá sem contato prenderam o jovem Uirohó, ameaçaram-no de morte e depois o soltaram. Um ano depois, em meados de outubro de 2006, flecharam Pinawatxia, também jovem do Juriti, enquanto caçava macacos no alto das árvores. A taquara furou sua bermuda e, com muita sorte e habilidade, ele conseguiu escapar.

No entanto, o maior grupo de pessoas dessa etnia que permanece autônomo está concentrado nos sertões da T. I. Araribóia, mais ao sul do Maranhão. É uma região de difícil acesso, que na estiagem se torna extremamente árida. Nessa área, em que a mata é bastante perfurada por estradas de madeireiras ilegais, os índios Awá devem tomar cuidado para não esbarrar com os invasores ou com os Guajajara, índios que possuem contato há mais de 400 anos com a sociedade envolvente. Qualquer dos casos pode ser fatal para eles.

Também no mês de outubro de 2006, o corpo de um menino, que pode ser um Awá, foi encontrado dentro da T. I. Araribóia por um Guajajara que estava caçando. Seu cadáver estava parcialmente comido por

Mais do que nunca, o futuro de um povo depende da capacidade de união dos jovens líderes, como Hamokoama’a

AWÁ-GUAJÁ

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Neste ano, os povos indígenas poderão comemorar a demarcação e a proteção da última grande área indígena em território brasileiro, uma vitória pelo reconhecimento e pelo respeito à ocupação tradicional dos primeiros habitantes do País. Com a demarcação da Terra Indígena Trombetas Mapuera, localizada entre as T.Is Waimiri Atroari e Nhamundá Mapuera, esse será o quinto maior corredor de proteção cultural e ecológica. Ao norte do rio Amazonas, com quase quatro milhões de hectares, a área está situada numa extensa região compreendida pelas bacias dos rios Trombetas, Jatapu, Mapuera, Anauá e Nhamundá, abrangendo os estados do Amazonas, de Roraima e do Pará.

Foram necessários mais de seis anos para que Trombetas Mapuera pudesse ser demarcada. Estudos e trabalhos de campo envolveram técnicos especializados, da Funai e do Incra (engenheiros, sertanistas, geólogos, agrônomos, técnicos agrícolas), além dos índios das comunidades, que auxiliaram na definição dos limites físicos da área. Como ela é bastante acidentada, a geografia tornou-se, de acordo com o coordenador técnico do Projeto de Proteção às Populações e Terras

a última grande terraMário Moura

Foto: Arquivo Funai

TROMBETAS MAPUERA

Indígenas da Amazônia Legal (PPTAL), Wagner Sena, uma barreira natural de proteção ao território, que se manteve intacto. “O difícil acesso impediu a expansão das fronteiras agrícolas em sua direção, não despertando, dessa maneira, a cobiça e o conseqüente surgimento de pretensos proprietários”, afirma.

Apesar do tempo decorrido, o processo de regularização de Trombetas Mapuera, ao contrário do que ocorreu nas T.Is Yanomami e Raposa Serra do Sol, outras grandes áreas, transcorreu sem maiores percalços. Apenas a Procuradoria-Geral do Estado do Amazonas, quando da publicação da Portaria Declaratória, contestou os trabalhos de identificação. Mas não logrou êxito. A contestação foi rejeitada pela Funai e referendada pelo Ministério da Justiça. Os recursos necessários para os trabalhos da demarcação estão sendo disponibilizados pelo PPTAL, uma parceria entre a Funai, o KFW e a GTZ, respectivamente, banco de fomento e Agência de Cooperação Técnica da Alemanha. Os índios, por meio do Conselho Indígena de Roraima (CIR), participarão de todo o processo.

Segundo Sena, a colaboração dos índios é essencial. Como são os maiores conhecedores da região, apenas com eles será possível identificar a variedade de igarapés e, na hora de estabelecer os marcos, ter certeza sobre quais áreas são alagadiças ou sofrem transformações durante os diferentes períodos climáticos.

Além disso, é importante também que eles conheçam exatamente os limites físicos e geográficos de seu novo território político, diferentemente do que eles viviam nas épocas ancestrais, quando o território era determinado exclusivamente pelas relações de guerra e aliança com outros grupos indígenas. “A participação deles é algo mais complexo: identificar, delimitar e demarcar uma terra indígena é, a curto prazo, criar novo

terra

O corredor das terras indígenasWaimiri Atroari, Trombetas Mapuera eNhamundá Mapuera é o quinto maior do Brasil,perdendo apenas para os complexos Parque do Xingu,Alto e Médio Rio Negro, Yanomami e Vale do Javari

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3.000

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9.000

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Trombetas–Waimiri–Nhamundá

Vale do Javari–Mawetek

Yanomami–Balalo

Alto–Médio Rio Negro

Xingu–Kayapó

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AmazonasRio Negro

Faixa de Fronteira

Rio Nhamundá

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WaimiriAtroari

NhamundáMapuera

Trombetas Mapuera

Região sudeste de Roraima, norte do Amazonas e noroeste do Pará Municípios Faro e Oriximiná (PA), Urucara e Nhamundá (AM) e São João da Baliza (RR) Área 3.970.418 hectares População cerca de 3.000 pessoas Etnias Hixkaryana, Karafawyana, Katuena, Mawaiâna, Pianokotó, Sikiana, Tunayana, Waimiri Atroari, Waiwái, Xereu, Yaitiyana, Kaxuyana, além de autônomos Línguas do tronco karib

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ordenamento territorial, que não existia antes do contato dos índios com o mundo ocidental. A longo prazo, é redefinir o universo cosmológico que abrigue uma diversidade étnica e lingüística”, afirma o antropólogo Ruben Caixeta, coordenador do Grupo de Trabalho.

De acordo com Caixeta, as lideranças indígenas locais estão recebendo treinamento e capacitação nas questões legais, técnicas e políticas envolvidas na demarcação. Todas as discussões desse processo demarcatório serão registradas e materializadas em livro e vídeo, realizado pelo PPTAL e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que, em parceria com a Funai, prestará aos índios toda a assessoria antropológica e promoverá, também, capacitação na produção e edição de vídeo.

A demarcação de Trombetas Mapuera garantirá a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas Hixkaryana, Karafawyana, Katuena, Mawaiâna,

Pianokotó, Sikiana, Tunayana, Waimiri Atroari, Waiwái, Xereu, Yaitiyana, Kaxuyana, além de grupos autônomos. Junto com as T.Is Waimiri Atroari e Nhamundá Mapuera, a área formará o quinto maior corredor ecológico e cultural, o que permitirá uma ampla articulação entre os índios das diversas aldeias, facilitando a troca de experiência. Mais que isso, facilitará o planejamento de planos e ações conjuntas de fiscalização e vigilância aos quase oito milhões de hectares de área contínua. De fato, essa é a última grande terra em processo final de regularização. Nenhuma outra reivindicada atingirá área de tamanha proporção. “Uma terra indígena dessa amplitude”, afirma Caixeta, “representará uma conquista para a sociedade brasileira em geral, pois, sabe-se, os índios têm nos ensinado que seus territórios são ocupados e usados de forma harmoniosa, com a preservação do meio ambiente”.

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Arquivo F

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Crianças indígenas brincam durante reunião para discutir a demarcação da área

opiniãoterras indígenas, meio ambiente e sustentabilidade econômica

Prever o futuro é exercício para a força espiritual e a sabedoria dos pajés. Mas o impacto das alterações no meio ambiente que o homem produziu ao longo dos últimos cem anos é sentido por todos, sendo uma das mais dramáticas a mudança do clima global. Um futuro pouco promissor parece chegar rápido, se nada for feito.

O Brasil, por sua dimensão territorial e populacional, pela grandiosidade de seus recursos naturais e por seu desenvolvimento econômico, pode seguir dois caminhos distintos em relação às questões ambientais. Permitir atividades degradantes, sem a necessária preocupação com o meio ambiente, ou colocar-se como país modelo de uma nova relação do homem com a natureza.

Num cenário de mudanças climáticas, não se pode desconsiderar a importância ambiental das terras indígenas. Além de garantirem a vida e a cultura dos povos que nelas habitam, essas áreas se aliam às unidades de conservação como mantenedoras da biodiversidade. São importantes para a conservação de vegetação nativa e nascentes das bacias hidrográficas, e fundamentais para a garantia do equilíbrio do meio ambiente.

A sabedoria dos índios em recriar seus ambientes, alterando-os sem, no entanto, deixar de preservar suas características principais, é conseqüência de serem as terras indígenas o local de manutenção de suas culturas e a base material de sua vida. Essa capacidade de relacionar o meio ambiente com a continuidade da cultura, da vida serve de lição para um mundo que imagina o crescimento da produção como único fator para a perpetuidade do ser humano.

Luiz Fernando Villares*

Fotos: Arquivo Eletronorte

Estrada divide T.I. Parakanã (à direita) de fazendas (à esquerda)

TROMBETAS MAPUERA

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Entretanto, existe um desafio para o qual os povos indígenas não estão preparados. Muitos foram expulsos de suas áreas tradicionais, que lhes estão sendo devolvidas desde a Constituição de 1988, por meio da regularização fundiária das áreas identificadas como indígenas. Essas áreas de ocupação tradicional, contudo, em muitos casos, foram absolutamente desmatadas e transformadas em pastagens e lavouras.

Essa realidade oferece desafios e oportunidades aos povos indígenas para a procura de uma nova sustentabilidade econômica. A gestão tradicional das terras indígenas já não supre as necessidades da vida marcada por uma maior intensidade das relações interétnicas. Desejo por equipamentos mais sofisticados devem ser encarados como uma busca natural por bem-estar. Seu efeito, no entanto, é a busca pelo aproveitamento das terras indígenas de forma mais intensiva, como extrair produtos

com valor de mercado, que serão trocados por dinheiro.Algumas comunidades experimentam a forma de

produção imediatamente mais próxima à realidade em torno delas, aderindo ao agronegócio, como é o caso dos Paresi ou dos Kaingang. O manejo florestal desperta interesses diversos e desconfianças derivadas do passado de extração ilegal de madeira. A mineração reproduz a ilusão do eldorado de recursos ilimitados. Essas, porém, são formas de exploração que alteram a organização social das comunidades e mostram-se pouco racionais e distantes da cultura indígena, pedindo alternativas ecologicamente mais equilibradas.

O desafio apresentado exige a visão clara de que as terras indígenas são cada dia mais estratégicas para o Brasil. Preservá-las e, ao mesmo tempo, delas tirar os recursos necessários para as novas necessidades exige um novo pacto socioambiental. O Direito estará preparado para responder a esse desafio?

Um dos princípios que deve nortear o novo pacto é a autonomia dos povos indígenas, encontrado expressamente na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, sobre povos indígenas e tribais, da qual o Brasil é signatário. Por esse princípio, os povos indígenas têm o direito de estabelecer suas prioridades, no que diz respeito ao processo de desenvolvimento.

Para que seja uma relação consensual e não a imposição de normas de uma parte a outra, é necessário que os povos indígenas tenham garantida sua participação na definição das políticas e das leis que os afetem, o que também já está previsto na Convenção 169 e na Constituição de 1988.

O usufruto das terras indígenas, no entanto, também encontra restrições quanto a sua proteção ambiental. Os povos indígenas, ao exercerem o usufruto de suas terras de forma não tradicional, não podem comprometer o equilíbrio do meio ambiente. As atividades tradicionais estão protegidas pelo artigo 231 da Constituição, pois devem ser reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e o direito sobre as terras que tradicionalmente ocupam. É legal, portanto, a restrição e a proibição de atividades não tradicionais danosas ao meio ambiente dentro dessas áreas.

O Estatuto do Índio exige que o diálogo, e não a repressão, seja a principal forma de mediação.

O Direito não é apenas a reunião de regras proibitivas; pode servir para promover uma exploração racional do meio ambiente, garantindo a preferência por atividades sustentáveis na definição de políticas e de investimentos privados. Como exemplo, pode-se contemplar a recuperação de áreas degradadas com a recomposição florestal realizada pelas próprias comunidades, mediante financiamento estatal, privado ou internacional, aproveitando um movimento pela compensação de créditos/débitos de carbono.

Cabe ao Estado ser o mediador da defesa dos direitos indígenas e do meio ambiente, nas raras oportunidades em que se mostram conflituosos. Em particular, a Funai deve exercer seu poder de proteger as terras indígenas das atividades impactantes, inclusive as realizadas pelos próprios índios, tarefa que exige institucionalização técnica e funcional do órgão, sem desrespeitar a autonomia dos povos indígenas na escolha de seus destinos.

* Luiz Fernando Villares é Procurador-geral da Funai.

A gestão tradicional das terras indígenas já não supre as necessidades da vida marcada por uma maior intensidade das relações interétnicas.

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o rumoda vidaDanielle Santos

Fotos: Anderson Schneider

PROJETO TARTARUGA DO ARAGUAIA

O principal afluente do rio Tocantins é morada de espécies exuberantes, como o boto – figura mítica entre os ribeirinhos – e o gigante pirarucu – que, com quase 120 quilos, sobe à superfície das águas em busca de ar quente. A abundância de matrinchões, tucunarés e pintados chama a atenção dos bandos de garças, mergulhões, marrecões e tuiuiús que se precipitam do espaço para caçarem as presas. Os macacos bugios brigam nas copas das árvores pelo acasalamento com as fêmeas e agitam o som da mata. Esse cenário é comum nas margens do rio Araguaia. Cortado por uma faixa de transição que liga a Floresta Amazônica ao cerrado, o rio banha um dos mais importantes santuários ecológicos do Brasil: a Ilha do Bananal. Índios Javaé, Karajá, Avá Canoeiro e Tapirapé vivem ali e são uns dos responsáveis pela preservação ambiental da área.

geral

Filhotes ficam dentro d’água para tirar o cheiro forte dos ovos

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É nesse ambiente que a tartaruga da Amazônia, o maior quelônio de água doce da América do Sul, consegue manter-se longe da lista de animais ameaçados de extinção elaborada pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O animal, que pode atingir na fase adulta 80 cm de comprimento e 60 cm de largura, e pesar até 60 kg, tem expectativa de vida que ultrapassa os 100 anos. A espécie, cuja carne com baixo colesterol e rica em proteínas é bastante apreciada pelos ribeirinhos e índios pescadores, está protegida pelo Projeto Tartaruga do Araguaia, que existe desde 2001 com apoio de instituições públicas locais e da Funai. Há três anos, o órgão tornou-se responsável financeiramente pelo Projeto, por meio da Coordenação-Geral de Patrimônio Indígena e Meio Ambiente (CGPIMA).

A iniciativa de preservar a espécie está gerando bons resultados. Segundo dados do Ibama, de cada 100 animais, 5 a 10 % conseguem chegar até a fase adulta com auxílio técnico. Sem a interferência humana, o número cai para 1 %. O Araguaia é um bom exemplo disso. O número de soltura surpreende: são cerca de 15 mil filhotes levados ao rio a cada ano. Percorrendo as dimensões da ilha, nota-se o resultado. Na calmaria das águas, a presença dos filhotes é quase certa.

A abundância da natureza Para que a soltura dos filhotes seja bem-sucedida, as fases anteriores a essa também precisam ser executadas com cuidado e atenção. Dessa forma, um mês antes da desova, geralmente em agosto, cerca de 15 técnicos do Projeto, além dos índios, começam a se preparar para a identificação dos locais que servirão como “possíveis” covas. O trabalho é minucioso e inclui a observação do movimento das tartarugas matrizes nos bancos de areia da ilha. É geralmente no fim da tarde que elas começam a colocar seus ovos. O local apropriado é analisado por elas, não apenas uma, mas três ou quatro vezes antes do momento final. A desova só acontece em ambientes considerados seguros para os filhotes. Por isso o trabalho de educação

Primeiro obstáculo: as pequenas tartarugas, pesando em média 25 g, enfrentam os riscos da natureza no trajeto até as águas do Araguaia

PROJETO TARTARUGA DO ARAGUAIA

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ambiental coordenado pela equipe da Funai junto aos ribeirinhos e embarcações turísticas que visitam a área é de extrema importância.

Segundo o coordenador do Projeto, Jorge Bogéa, a maior ameaça à tartaruga da Amazônia está na pesca predatória praticada pelos não-indígenas. “O problema maior enfrentado por nós é a pesca ilegal das tartarugas reprodutoras, que são a principal fonte de tudo. Além do nosso esforço em tentar conscientizar as populações ribeirinhas e os turistas, também pensamos em uma forma de não prejudicar a alimentação dos índios”, explica.

A preocupação em preservar a espécie contribuiu para uma parceria entre a Funai e o Ibama, visando à criação do animal em cativeiro. A iniciativa consiste em conscientizar as comunidades sobre a importância da perpetuação das tartarugas e trabalhar com base no desenvolvimento sustentável. O Projeto ainda está em fase experimental e, por enquanto, serve de modelo apenas para os índios Karajá da aldeia Macaúba.

Uma das líderes da aldeia Mirindiba, onde moram cerca de 30 pessoas, a cacique Maria Karajá fala sobre a abundância da biodiversidade na Ilha do

Bananal. “Aqui basta ter a farinha, o resto a gente tira da natureza para sobreviver”, conta. Com a tartaruga incluída na dieta básica dos índios, eles entendem que o Projeto ajuda a preservar o futuro alimentar das comunidades. Do casco do animal, são manufaturados bacias e pratos. Do sangue, faz-se uma sopa rica em nutrientes, que alimenta crianças e velhos. Desde que a iniciativa foi criada, os Karajá vêm acompanhando de perto todas as etapas do processo e, principalmente, auxiliando como educadores ambientais. “A natureza nos ajuda muito colocando essa fartura entre nós. E o Projeto ajuda ainda mais porque salva as tartarugas pequenas dos maiores predadores”, diz Maria.

Obstáculos naturais Escolhido o local, as mães tartarugas preparam-se para cavar um buraco de 60 a 80 cm de profundidade. Ali, são depositados entre 80 e 120 ovos. Com um misto de fadiga e alívio, elas encerram a missão, depois de nivelarem a cova com areia, processo que dura cerca de meia hora. A ação serve para despistar os pássaros devoradores e garantir mais segurança para os filhotes.

O Projeto solta cerca de 15 mil filhotes de tartarugas por ano. Em 2006, apenas 5.617 sobreviveram

PROJETO TARTARUGA DO ARAGUAIA��

Indígena Karajá participa do projeto de preservação das tartarugas do rio Araguaia

Depois disso, num prazo de 45 a 60 dias, os ovos começam a eclodir. As pequenas tartarugas, que medem cerca de 5 cm e chegam a pesar 25 g, resistem até 10 dias escavando o buraco, rumo à nova vida. Essa fase é bastante delicada para os filhotes porque atrai inúmeros predadores naturais sensíveis ao cheiro forte que sai dos ovos. Antes que as tartaruguinhas saiam para a superfície, a equipe técnica da Funai as recolhe ao viveiro, chamado berçário. Ali, elas aumentam de peso, endurecem a carapaça e ganham um pouco mais de maturidade para encarar seus predadores. O local, construído com arame galvanizado e fundo reforçado, é feito para acondicioná-las durante seis dias à margem do rio Araguaia. O banho que elas recebem antes da soltura é fundamental para retirar o cheiro de ovo que ainda persiste. Por causa dele, visitantes nada agradáveis, como o carcará, o urubu e o jacaré rondam o berçário em busca de uma oportunidade.

Em 2006, a equipe do Projeto teve um resultado imprevisto, comparado a outros anos. Das 190 covas catalogadas, apenas 41 conseguiram escapar ilesas. Das 23 mil tartaruguinhas que seriam soltas na

natureza, apenas 5.617 tiveram tal sorte. Apesar da frustração, a equipe do Projeto reitera o esforço para começar o próximo ciclo. “A gente nunca havia presenciado algo assim, mas acredito que o curso da natureza muitas vezes não pode ser questionado. Apesar do resultado, vamos lutar para garantir que um grande número de filhotes sobreviva na próxima reprodução”, defende Bogéa.

Depois de quase uma semana, as pequenas tartarugas sobreviventes são finalmente levadas ao habitat seguro para os primeiros desafios da liberdade. O local considerado adequado precisa conter água parada e vegetação para refúgio dos filhotes quando atacados por predadores. O cheiro da água e a fartura em alimentos logo os atrai para a beira do rio. Aos poucos, centenas de tartarugas partem para o cumprimento de um ritual que fecha o ciclo reprodutivo e invoca a natureza para a continuação da vida.

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Assim foi feito. De manhã, quando falamos com nossa base, que havia ficado com apenas dois trabalhadores, fomos informados de que a Frente Envira1 havia sido totalmente queimada! A presença de espírito de nossos mateiros salvou somente o radiotransmissor, a bateria e a antena. O resto virou cinza.

E todos nós na mata estávamos cercados pelos parentes. Voltar como? Solicitei um helicóptero do Exército para nos retirar, com temor de que, na volta, pudéssemos ser atacados pelos parentes que estavam só esperando a gente se movimentar. Na mata se enxerga com o nariz e os ouvidos. Quem não quer ser visto que fique quieto. Não ande. Assim fizemos, além de uma clareira, em tempo que, se cronometrado, entraria para o livro dos recordes. Dois dias depois, fomos retirados por um helicóptero do Exército, em três viagens.

Ispaô e seus companheiros, depois de correrem assustados com o gafanhoto enorme que comeu os homens do caminho e os levou em sua barriga verde, foram examinar o caminho. Tanta árvore derrubada, mato cortado, um estrago.

Pedras quadradas, feitas pelos homens do caminho grande, apareciam depois de se andar uma mesma distância. Pedras estranhas, com um olho amarelado brilhante em sua cabeça.

Nós deixamos para trás uma picada com seis metros de largura, os marcos de mil em mil metros e uma enormidade de mata derrubada.

Aliviados com nossa saída, Ispaô e os seus, após

várias noites de histórias, risos e dúvidas, ainda não tinham chegado à conclusão de que tipo de homens eram aqueles que derrubam mato à toa, fazem caminho que não leva a lugar nenhum, não plantam nada onde derrubam e são engolidos por um gafanhoto gigante. E o pior: como chamá-los, quando a história fosse contada para as futuras gerações?

As chuvas do inverno começaram. Dentro da maloca, as discussões continuaram sobre o povo misterioso do caminho grande. Ispaô, num canto, ajeitava a pena de mutum numa flecha de matar macaco. A roda de homens continuava a discutir o assunto. Afinal, que povo doido era esse? Lampejando sabedoria, Ispaô, num pulo, gritou:

– É o povo que planta pedra!!!Todos sorriram, a discussão acabou. Era hora de

dormir. No dia seguinte, tinha muito que fazer. As mulheres já tinham ido, muito brabas, com a discussão que não acabava mais, reclamando que os maridos acordariam tarde e com preguiça de caçar.

1 Frente de Proteção Etnoambiental Envira, que atua na fronteira do Acre com o Peru

* José Carlos Meirelles, indigenista da Funai desde 1970, trabalha há 19 anos com os índios autônomos da região do rio Envira, no Acre. Participou da demarcação da Terra Indígena Kampa e Isolados do Envira. Cedeu gentilmente essa crônica à Brasil Indígena.

crônica

Existe um povo nas terras firmes do alto rio Envira que já viu muitas coisas estranhas que homens de outro povo fazem, riscando árvore de leite, cortando árvores e não plantando nada no lugar, matando veados, porcos e onças e aproveitando só o couro. Sem nenhum motivo, os homens desse estranho povo, com suas armas compridas e ocas que gritam como trovões, enchem os corpos dos nossos de caroços pequenos e enfeitiçados que matam. Nas noites sem lua, à beira da fogueira, os mais velhos conversam, pensam, falam, trocam idéias e tentam colocar os que fazem isso na categoria de homens verdadeiros.

Amanhã é dia de caçar. O moquém está vazio e as mulheres estão brabas!

E nós – 21 trabalhadores da firma que foi demarcar a Terra Indígena Kampa e Isolados do Envira, três Ashaninka, eu e mais dois mateiros – nos preparamos para entrar na mata e fazer as picadas da demarcação. Picadas que desconfiei que passassem próximas à maloca dos índios isolados. A impressão de que isso não ia dar certo não me saía da cabeça. E lá fomos nós, dar aos índios o direito àquela terra!

Ispaô, homem de meia idade, bom caçador e filósofo, rastejava um bando de porcos do mato, usando só a vista, pois a cabeça pensava na terra, naquele chão que ele e os porcos pisavam.

Meu avô dizia que a terra não é nossa, nós somos da terra. Sábio avô, com o nome que herdei. Primeiro neto, nome do avô. Os porcos estavam perto, o cheiro doía nas ventas.

Atravessaram uma grota e...Um caminho estranho na mata. Largo, uns seis ou

sete passos, todo cortado. Os matos finos com corte liso,

como mordida de onça. Os mais grossos com pequenas mordidas, como besouro serra-pau, rolados em pedaços. Muito rastro estranho, com pés sem dedos.

O ouvido fino de Ispaô escutou um som rouco, ora agudo, ora grave. O som parou e deu lugar ao de uma grande árvore caindo. Os porcos, espaventados, correram a todo casco, como quem farejou o diabo!

Ispaô tomou chegada pelo lado do caminho até ver quase 30 homens, todos entretidos na tarefa de fazer o caminho que vai no rumo da maloca.

As histórias do vovô!!! Trovões, gritos, mulheres mortas, crianças espetadas e nossos homens sendo mortos...

De volta pra maloca, quase correndo, a cabeça zunindo de tanto pensar, Ispaô deu a notícia ao povo, entre exclamações e gestos rituais.

A noite era pequena para a reunião dos homens em torno dos mais velhos.

Sim, é preciso fazer alguma coisa. Amanhã vamos ver onde estão acampados, quantos são, o jeito deles.

Saí para dar uma volta em torno do acampamento, ver sinais e matar alguma caça. Vi caça braba e macaco arisco. Vi também vestígios de parentes isolados, do dia!!! A sensação do isto-não-vai-dar-certo voltou mais forte. À noite, inambus, macacos, urus, macucaus e mutuns resolveram dormir perto do acampamento. Os parentes!

Ispaô e outros homens foram escalados para vigiar os homens do caminho grande e, de preferência, não deixá-los dormir, arremedando todo tipo de bicho.

Quem sabe eles não ficam com medo e vão embora. Ao mesmo tempo, outros homens foram escalados para queimar a casa do barbudo, de onde esse bando de gente veio.

o povo que planta pedraJosé Carlos Meirelles*

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Na mata se enxerga com o nariz e os ouvidos. Quem não quer ser visto que fique quieto. Não ande. Assim fizemos.

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O artista Sowabze, da Terra Indígena Pimentel Barbosa, retrata uma noiva Xavante.

Giz de cera, lápis e caneta sobre papel

XAVANTE

Para mais informações, entrar em contato com a

Coordenação-Geral de Documentação e Tecnologia da Informação

Telefones: (61) 3313.3600 / (61) 3313.3602 Fax: (61) 3313.3653

[email protected]

Direito e Povos Indígenas, de Luiz Fernando Villares.

O próximo lançamento da série de publicações da Funai.

Contracapa: Filhotes em viveiro do Projeto Tartaruga do Araguaia. Foto: Anderson Schneider

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Luiz Fernando Villaresé Procurador-Geral da FUNAI,

mestre em Ciência Ambiental pelo Programa de Pós-graduação em

Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo, PROCAM-USP,

formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco - USP.

O livro "Direito e Povos Indígenas" é a concretização do ambicioso objetivo de seu autor: sistematizar o conhecimento jurídico sobre a relação do direito com os povos indígenas. E o faz com minúcia e qualidade, abrangendo todas as áreas do conhecimento implicadas. Com um texto descritivo, crítico e esclarecedor, o autor coloca-se ao lado dos povos indígenas no esforço para que a norma não seja edificada, interpretada ou aplicada em descompasso com a realidade, reportada ao leitor de forma precisa, honesta.

Contribui, assim, para o que almeja, um futuro em que os povos indígenas formarão a complexidade do povo, da cultura, da economia e das relações sociais de um País multicultural, cuja ordem jurídica garanta e promova a diferença de raças, cores, credos e comportamentos.

Direito ePovos Indígenas

Luiz Fernando Villares

Ministérioda Justiça

9 7 8 8 5 7 5 4 6 0 1 7 7

ISBN 978-85-7546-017-7

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AF Livro Direito Funai.pdf 2/13/07 6:56:21 PM

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