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Índice
Introdução
A BALADA DE UMA VIDA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Capítulo 1
PARTIDA PARA OS AÇORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Capítulo 2
UMA INUNDAÇÃO DE MÚSICA, DE MIM PARA MIM . . . . . . . 27
Capítulo 3
NOIVA AOS QUINZE ANOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
Capítulo 4
LUA -DE -MEL, LUA -DE -FEL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
Capítulo 5
A MINHA VIDA PASSOU A SER UM FILME. . . . . . . . . . . . . . . . . 43
Capítulo 6
«QUANDO CHEGARES A CASA A GENTE CONVERSA». . . . . . 51
Capítulo 7
ENTRE LISBOA E SÃO JOÃO DO ESTORIL . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
Capítulo 8
O QUE EU QUERIA REALMENTE ERA CANTAR . . . . . . . . . . . . 67
Capítulo 9
NO CASINO SENTI QUE O CÉU TINHA MAIOR AMPLITUDE 77
Capítulo 10
CASAMENTOS E SEPARAÇÕES: DE TANTO BATER
O MEU CORAÇÃO NÃO PAROU . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
Capítulo 11
SEMPRE TIVE MÁ PONTARIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
Capítulo 12
PEDRO OSÓRIO E AS CANÇÕES DO SÉCULO:
ENCONTROS FELIZES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
Capítulo 13
BETO, COMPANHEIRO DE UM LONGO CAMINHO. . . . . . . . . 111
Capítulo 14
A MINHA MÃE ENCAROU A MORTE COMO
SEMPRE ENCAROU A VIDA: DE FRENTE. . . . . . . . . . . . . . . . 121
Capítulo 15
O MEU IRMÃO FALECEU POUCO ANTES DE EU CANTAR
«DEIXA -ME SONHAR» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
Capítulo 16
COMECEI POR APAIXONAR -ME PELO CITROËN 2 CV
E AGORA TENHO UM «FORTE FRAQUINHO» POR MOTAS 139
Capítulo 17
DOIS MESES EM MADRID E UMA LIÇÃO DE MAQUILHAGEM 147
Capítulo 18
DAS LUZES PARA A SOMBRA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155
Capítulo 19
POLITIQUICES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163
Capítulo 20
REGRESSO À ESTRADA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169
Capítulo 21
TENHO OS MELHORES AMIGOS DO MUNDO . . . . . . . . . . . . . 177
Capítulo 22
ONDE EU MORO HÁ SEMPRE ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO . . . . 185
Capítulo 23
NÃO TENHO RECEITAS MÁGICAS, MAS TENHO
ALGUMAS IDEIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195
Capítulo 24
VENDE -SE MUITA MENTIRA NO MUNDO DA MÚSICA. . . . . . 207
Capítulo 25
O MEU NOVO DISCO CHAMA -SE VOLTA E É QUEM
SOU AGORA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215
ALGUNS DESABAFOS, REGRESSADA DA GUERRA . . . . . . . . . . 225
CARREIRA, DISCOS E MOMENTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 227
A BALADA DE UMA VIDA
O que é que eu tenho para contar? O meu percurso devida. Tenho uma batalha constante para partilhar. Sobre-tudo com as mulheres, mas também com os homens(aprendemos todos uns com os outros).
Já sofri agressões físicas, já vivi presa em casa, fechadaà chave e proibida de falar com a minha família. Sei o queé viver sob ameaças e acordar e deitar -me com medo –daquele que paralisa. Sei o que é a violência e sei o que é omedo. E sei que são inseparáveis.
Foram precisos muitos anos até ser capaz de dizer:«Não. Chega.» Mas quando se aprende não se esquece.
Não é segredo que a minha vida é feita de muitos epi-sódios intensos, podemos adjectivá -los assim, que me obri-garam a ter de reagir e a ir buscar forças – às vezes não seibem onde – para enfrentá -los. E se agora decido contá -laé também porque recebo pedidos de ajuda por parte depessoas (fãs e não só) das mais variadas idades, que mecontactam por razões que vão muito além daquilo quepara elas representam as minhas canções, os meus discosou os meus concertos. É com a mulher – quarenta e sete
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anos, mãe de três filhos: o Nuno, o Diogo e a Madalena –e não apenas com a cantora que se identificam e por issome procuram. Desabafam, contam que a minha voz lhesfaz muita companhia, ou que uma música específica temajudado a ultrapassar este ou aquele problema. Eu res-pondo e tento dar alento. Começam por ficar admirados/aspor eu responder e mais ainda quando lhes digo que passeipor algo semelhante ou igual – e pedem -me conselhos.E desabafam, desabafam…
Descrevem -me situações complicadas, pesadas, dassuas vidas privadas; falam -me de casamentos em decom-posição, de amizades frustradas, de perda de familiares, dedoenças causadoras de grande sofrimento, de traições devários níveis. Mesmo sem me conhecerem, escolhem -mepara interlocutora. Não tenho palavras para expressar oque isto significa para mim. Quem lhes responde sou sem-pre eu, não delego em ninguém, e comove -me o valor queatribuem (e fazem questão de mo transmitir) a esse meugesto. Dou comigo a pensar frequentemente no quantopodemos fazer uns pelos outros com tão pouco: umas pala-vras de encorajamento, um minuto de atenção, um con-solo, um aconchego. Mostrar que não ficamos indiferentese que todos temos problemas – no fundo tudo se resume aisso. E o dia ganha mais luz.
Tenho mais de meio milhão de fãs na minha páginaoficial do Facebook. São inúmeras as pessoas que manifes-tam apreço pelo meu trabalho, por esta minha carreira quejá soma mais de trinta anos, mas também pela minha forçainterior. Às vezes, vejo chegar grupos de mulheres aos meusconcertos e a minha intuição diz -me que não estão ali ape-nas pela música. Muitas revêem -se em mim – é o que tantas
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me dizem quando me escrevem. Não consigo responder atodas, como é natural. A cada dia que passa, chegam deze-nas de mensagens novas para ler, é uma impossibilidade.No entanto, sinto -me quase na obrigação de não deixarninguém de fora. A minha intenção é poder chegar a todaselas com este livro, deixar -lhes uma palavra de força, naesperança de poder ajudar e contribuir para que algumassituações sejam evitadas, outras vencidas e outras abraça-das com toda a determinação.
Neste momento, posso dizer que este livro faz todo osentido. Não faltará quem ache pretensioso da minha parteentender que tenho motivo para fazê -lo ou «sumo» paratal. Mas tenho. Já há muito que pensava escrever algoassim, pois não sabemos o dia de amanhã e acho que tenhovivências e experiências ricas, que merecem ser registadase contadas a quem se interesse pela minha pessoa e pelomeu percurso; pela minha experiência e pelas minhas lutas;pelas minhas paixões e pelas minhas falhas. A vida resume - -se a isso: experiências. Depois, há que aprender a vivercom elas e sobreviver, sem drama. Com coragem e defrente, como fez a minha Mãe…
E é o que eu tenho feito de há um tempo para cá. Con-solidei a minha identidade enquanto artista, defini melhoro meu caminho, fui à luta. Iniciei este ano a digressão jácom a presença de alguns temas do meu mais recente tra-balho, Volta. E tenho a agenda preenchida. É a minha prio-ridade neste momento, conjuntamente com o bem -estardos meus filhos. São boas tarefas. J
No meio do azar tive a sorte de ser uma pessoa queconsegue ter força para ultrapassar o que quer que seja.E que nunca desistiu de procurar ser feliz.
Hoje sou feliz à minha maneira e hei -de continuar aser. Uma coisa é garantida: não me fazem mal. Porque eunão deixo.
Tenho dito.Sejam Felizes!
Rita Guerra, Janeiro de 2015
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«NO MEU CANTO»
Sei que não te tenho,Vou -te vendo a passar…Sei que não aguento,Mesmo assim vou esperar…
Guardo na memóriaUm futuro que não passouDe um sonho bom…
E penso sempre«Será que me viu?»Eu quero acreditarQue sentiu
Esta paixão que me elevaE devolve ao vazio…
Eu grito,Eu choro,SorrioEm segredo
Eu queroO fogo!Que frio,Que medo…
Será que um diaSentirei Amor outra vez?Queria ser a únicaMulher que tu vês
NO MEU CANTO
Para te abraçar e embalarNesse futuro que não passouDe um sonho bom…
E navego no sonho A sorrirDesejo tanto que possas sentirA verdade de cada palavra e ouvir
Que eu grito,Eu choro,SorrioEm segredo…
Eu queroEsse fogo!Que frio,Que medo…
Não consigo libertar -me de ti…És o livro mais lindo que li…Vou ficando no meu canto à esperaQue olhes…À espera que olhes p’ra mim…
(Tema da autoria de Rita Guerra, do álbumRita Guerra – Ao Vivo no CCB, 2013)
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«Tinha treze anos quando comecei a namorar como homem que viria a ser o meu primeiro marido. Eletinha vinte e cinco. Casei-me com dezasseis. O casa-mento foi contra a minha vontade e a minha adoles-cência acabou ali. E foi quando esta acabou que aminha luta começou. O meu caminho foi longo ecomeçou nos Açores.»
A primeira vez que andei de avião foi num C-130 daForça Aérea. Lembro-me perfeitamente desse dia, o dia emque fomos viver para os Açores, para a ilha Terceira, ondeo meu Pai, que era major, foi ocupar o cargo de adjuntodo comandante da Base das Lajes, a BA4.
Partimos muito cedo: os meus Pais, eu e o meu irmãomais novo (os três mais velhos já estavam casados e ficaramem Lisboa). Eu estava cheia de sono, mas sentia-me empol-gadíssima porque ia andar de avião e ia viver para uma ilha.Aos doze anos, a ideia que tinha de uma ilha aproximava --se mais das Caraíbas, praias a perder de vista, palmeiras ecoqueiros. Não demorei muito tempo a perceber que osAçores não eram isso – eram muito mais bonitos: cascatas,grutas, hortênsias e areia cinzenta em praias lindas. E as
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estações do ano todas num mesmo dia. Ainda hoje me lem-bro muitas vezes do enorme prazer que era tomar banhono mar ao longo de todo o ano. Às vezes, mesmo no Verão,estávamos dentro de água, o céu ficava encoberto, chovia,depois passava. Era maravilhoso. Quem conhece o arqui-pélago sabe do que falo: um verdadeiro luxo. No liceu, asaulas de Educação Física eram de vez em quando transferi-das para a praia. O nosso professor Rogério levava-nospara a Silveira e fazíamos corridas na areia e salto em com-primento. Ficávamos extenuados, mas radiantes.
Os quatro anos que lá passei foram os melhores daminha vida: pela descoberta de um ambiente totalmentediferente daquele a que estava habituada, rodeada de umabeleza natural hipnotizante, com amizades sadias, hábitosde desporto, muita música boa (que nos chegava pelosamericanos da Base Aérea), um liceu tranquilo, no qualprofessores e alunos confraternizavam na sala de convíviocom respeito e cumplicidade, e uma permanente sensaçãode segurança. Logo quando cheguei achei curioso o liceunão ter gradeamento. Foi uma imagem que retenho atéhoje. Se me dedicar a pensar nela uns segundos, assim àdistância, concluo que é uma imagem fortíssima, porquede certa maneira representa esses anos sem medo nem gra-des que vivi nos Açores. O liceu, tal como a Base Aérea,era uma comunidade fantástica.
Até pelo Hércules C-130 que nos transportou de Lis-boa para a Terceira, eu nutro um carinho especial. Nãotanto por ter sido a primeira vez que andei de avião, masporque foi o avião que me levou para a época mais felizda minha vida, esses quatro anos entre os doze e os dezas-seis. Talvez mais ainda do que a infância. São duas etapasde uma fase fabulosa, diria simplesmente que me encontrei
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mais quando estava nos Açores. Se hoje me dessem a esco-lher entre viajar num Boeing ou num C-130, acreditem queescolhia o avião militar e preferia viajar naquele descon-forto, sentada de lado, nas lonas, com frio e barulho portodo o lado. Sou assim…
Nos Açores apaixonei-me pela natureza. Posso dizerque me tornei anti-cidade para o resto da vida. Sinto paztotal no campo, na praia, no meio do verde da paisagem –e os Açores são um dos meus destinos. Essa ligação nuncamais se quebrou. Quando puder tirar umas férias, o pri-meiro sítio onde vou é à ilha Terceira, sem qualquer espéciede dúvida. Quero matar saudades. Apetece-me reviver essapaz, essa liberdade, esse desprendimento (um bom sítiopara andar de mota, ocorre-me agora). E, possivelmente,prefiro voltar lá sozinha, para ficar parada o tempo quequiser, ir onde quiser, comer onde quiser, fazer o que quiser.
Não me ressentia nada da insularidade. Olhar à voltae ver mar por todo o lado… para mim era lindo. Os únicosque se queixavam eram os militares solteiros, com namo-radas no continente, que tinham já outras referências eexpectativas. Para mim foi muito importante ter passadoali aqueles anos. Não poderia ter estado em melhor sítio.Ficou-me, aliás, essa necessidade de olhar para o mar, dever água sem fim, estender o olhar e não pensar em maisnada. Da janela do meu quarto e da minha sala vejo o mar.Estou a tocar piano e tenho o azul do mar lá ao fundo. Dá --me paz. Mesmo quando morava em Mafra, apesar de nãoestar tão perto da praia, era raro o dia em que não iaespreitar o mar a Ribeira d’Ilhas, na Ericeira. Se estivessemau tempo, não saía sequer do carro, mas dava à mesmao meu passeio. Raramente vou à água, só que preciso deolhar para ela.
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Como o meu Pai era militar, nos Açores vivíamos nointerior da Base Aérea, no bairro dos oficiais. Levantava --me todos os dias às cinco e meia da manhã, porque tinhade atravessar a ilha de um lado ao outro para ter aulas emAngra do Heroísmo. Uma carrinha recolhia os alunos – nobairro dos sargentos e no bairro dos oficiais – e levava-nosaté à Porta de Armas, onde passava a carreira civil que nosdeixava no liceu. Um dos percursos ia pela chamada estradado mato. Era um cenário… ficou-me na memória para sem-pre. Aquela estrada de paralelepípedos, uma faixa paracada lado, uma recta que parecia não ter fim, nuvens a per-der de vista e hortênsias por todo o lado, a invadir o cami-nho. Era como se estivesse a atravessar um postal ilustrado.Essa estrada desapareceu, foi substituída por uma viarápida. Nas minhas memórias nunca deixará de existir.
O liceu tinha condições magníficas. As aulas eramsempre na mesma sala, com vista para o mar e para omonte Brasil, um vulcão extinto que forma uma penínsulae cujo acesso era regulado por um semáforo, uma raridadena altura na ilha Terceira. Os outros, bem mais frequentes,eram os chamados semáforos a preto e branco: as vacasque apareciam no meio da estrada e obrigavam quem querque circulasse a uma paragem forçada.
A minha vida escolar decorria com grande normali-dade. Apesar de não simpatizar com a Matemática comodisciplina, sempre tive jeito para os números. Isso é muitobom, porque de certa forma a música é matemática pura,a duração das notas e os intervalos, há ali uma organização– em certo sentido uma soma, apenas não se reproduz emnúmeros, mas em sons. Nessa altura eu frequentava aulasde piano no Conservatório Regional, que funcionava nopróprio edifício do liceu, na cave, na zona dos ginásios.
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Pelo menos um dos ginásios tinha um piano lá no cantinhoe era aí que decorriam as minhas aulas.
Foi nos Açores que a música, sempre presente naminha vida, por influência da minha família, começou aimpor-se de outra maneira. Pequenos passos, pequenossinais, também eles prenunciadores de um caminho queestava a delinear-se, e esse, sim, destinado a correr bem.
Comecei, por exemplo, a perceber que conseguiadesenvolver uma melodia e acompanhar-me com a mãoesquerda ao piano. Depois mais um passo e constatar, comagrado, que era capaz de me acompanhar com as duasmãos enquanto cantava. E, acima de tudo, sentir que gos-tava muito disso.
A professora do Conservatório entretanto faleceu. Erauma senhora já com alguma idade, que dava aulas aos alu-nos do 4.º ano de piano, e eu fiquei um ano ou dois semlições. Não tinha aulas mas continuava a ir para o clubedos oficiais americanos tocar num Steinway (o Rolls-Roycedos pianos) que ali havia, sempre afinado e a que ninguémprestava atenção. Passei horas, tardes, noites, sentadanaquele piano no Salão Lisboa, com a sua enorme janelavirada para a praia da Vitória, onde nasceu o VitorinoNemésio. Hoje, na minha memória, a imagem é mesmo ade uma parede inteira em vidro. Uma parede inteira emvidro, luz, claridade, vista desafogada e eu sentada aopiano. Foi aí, nesse salão, que pela primeira vez tomeiconsciência de uma sensação não menos ampla do que avista para o mar: gostava francamente de me ouvir.
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