risco e hiperprevenÇÃo - cebes.org.br · precaução, mas, também a dimensão da proteção. •...

60
RISCO E HIPERPREVENÇÃO Epidemiopoder e promoção da saúde como prática biopolítica com formato religioso. LDCastiel

Upload: dobao

Post on 09-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

RISCOEHIPERPREVENÇÃO

Epidemiopodere promoção da saúde como prática como prática biopolítica com formato religioso.

LDCastiel

Biopolítica e epidemiopoder -prólogo

• Biopolítica: Foucault - importante transição nas estratégias de poder que passam a operar nas estratégias de poder que passam a operar no âmbito biológico (biopoder),

• de tal modo que as dimensões de controle social da sociedade capitalista sobre as pessoas não atuam meramente no registro da pessoas não atuam meramente no registro da consciência ou da ideologia,

• mas incidem diretamente no âmbito somático, corporal, biológico.

• biopoder e biopolítica vinculados à idéia de governamentalidade. Compreende:

• a) o conjunto de instituições, processos, análises, cálculos e táticas que permitem exercer o poder sobre a população, expressos pela economia e que sobre a população, expressos pela economia e que se produzem pelas técnicas de segurança;

• b) a inclinação que leva à predominância deste tipo de poder e juntamente com ele, à sobredeterminação de técnicas de poder e de sobredeterminação de técnicas de poder e de saber;

• c) o processo que leva do estado jurídico e administrativo ao estado de controle da população e de segurança

• Segundo Negri (2008), a biopolítica se institui sobre pressupostos que produzem as tecnologias do capitalismo e da soberania.

• Vão se transformando ao longo do tempo, se desenvolvendo, primeiramente, de forma desenvolvendo, primeiramente, de forma disciplinar e depois, juntando a esta os dispositivos de controle.

• Se a disciplina se dava como uma ‘anátomo-politica’ dos corpos aplicada sobretudo aos politica’ dos corpos aplicada sobretudo aos indivíduos, a biopolítica se coloca como uma espécie de grande ‘medicina social’ que se aplica ao controle das populações com a finalidade de governar a vida.

• Para Rose, hoje, a biopolítica também se relaciona • ao labor de laboratórios biotecnológicos na criação

de novos fenômenos (e patologias),• ao poder computacional dos dispositivos que

vinculam histórias clínicas com seqüências vinculam histórias clínicas com seqüências genômicas,

• aos poderes mercadológicos das empresas farmacêuticas,

• às estratégias regulatórias de comitês de pesquisa, • às estratégias regulatórias de comitês de pesquisa, de bioética e de vigilância de drogas e alimentos

• e, também, à busca de lucros envolvendo todas estas instâncias.

• Nikolas Rose (2007) entende como ‘biopolítica’ ao feixe de estratégias específicas quanto a questões feixe de estratégias específicas quanto a questões relativas aos modos como a vitalidade humana, a morbidade e a mortalidade devem ser tratadas quanto ao nível desejável e a forma das intervenções,intervenções,

• sobre o estabelecimento de autoridades• e das intervenções que são definidas e legitimadas

como as mais eficazes, e, portanto, melhores.

• biopoder deve ser encarado mais como uma perspectiva que um conceito, no sentido de se perspectiva que um conceito, no sentido de se constituir como um espectro de iniciativas mais ou menos racionalizadas desenvolvidas por autoridades no sentido intervir no âmbito da vitalidade humana – seu nascimento, desenvolvimento, adoecimento e morte.da vitalidade humana – seu nascimento, desenvolvimento, adoecimento e morte.

• A expressão “Epidemiopoder” se justifica se considerarmos as características básicas que considerarmos as características básicas que definem o objeto deste campo do conhecimento – saúde e vida nas populações.

• Na atualidade, é a normatividade de base epidemiológica que rege os preceitos e epidemiológica que rege os preceitos e recomendações que pretendem disciplinar as populações humanas no interior dos discursos de promoção da saúde centrados no comportamento saudável.

• Em termos esquemáticos, consumidores das sociedades modernas são condicionados com sociedades modernas são condicionados com a possibilidade de obter o produto ‘vitalidade’.

• Para tanto, devem se apoiar em produtos tecnológicos e em práticas de saúde sustentadas o mais possível pelo sustentadas o mais possível pelo epidemiopoder que produz provas científicas,

• com a chancela de resultados provenientes de estudos empíricos considerados robustos e de revisões sistemáticas e metanálises

• O epidemiopoder ocupa um lugar hegemônico no confronto das definições que se autorizam para estabelecer as decisões quanto ao rumo ‘correto’ das políticas, dos arcabouços administrativos, legais e institucionais e das ações, baseados nos padrões e institucionais e das ações, baseados nos padrões ditados pela expertise técnica vigente.

• O epidemiopoder participa ativamente na geração de uma cultura científica no campo da saúde que configura nosso pensamento e a idéia que a sociedade moderna tem a seu respeito com base sociedade moderna tem a seu respeito com base em uma ética estatística da era técnica, sustentadas sobretudo na noção de curva normal, sem nenhuma necessidade de se referir a qualquer imperativo ético de fato.

• Mas, a pretendida garantia de segurança proporcionada pela perspectiva de expertisetécnica vinculada ao epidemiopoder ancorada técnica vinculada ao epidemiopoder ancorada nas noções probabilísticas de risco se fragiliza.

• Pois, se vê obrigada a se afastar da lógica da segurança ao assumir a possibilidade de ocorrências desastrosas no horizonte,

• sem possibilidade de cálculos de risco, sem a capacidade de assegurar incondicionalmente a segurança almejada

• Não é possível antecipar o que não pode ser antecipado.antecipado.

• Nem mesmo a responsabilidade das instâncias de controle em relação aos riscos globais se mantêm,

• como nos casos das alterações climáticas e • como nos casos das alterações climáticas e seus efeitos, dos acidentes industriais com grandes efeitos ecológicos, da megacrise financeira de 2008/2009, do terremoto no Haiti.

• O princípio da prevenção se torna hiperprevenção ao englobar o princípio da precaução, mas, também a dimensão da proteção.

• Sobretudo ao incluir as estratégias designadas • Sobretudo ao incluir as estratégias designadas pela expressão inglesa “safety”,

• que se refere à dimensão de segurança das pessoas vinculada à integridade corporal, em termos de, por ex.: quantidade e qualidade de termos de, por ex.: quantidade e qualidade de alimentos, água, saneamento, moradias, espaços urbanos, etc.

• Admitindo a pertinência da expertise técnica em determinadas situações no campo da saúde (como na erradicação da varíola e da saúde (como na erradicação da varíola e da poliomielite), não é desprezível a possibilidade de sua aliança com o dispositivo higioterapêutico.

• Higioterapia, como a expressão indica, é a • Higioterapia, como a expressão indica, é a aplicação dos meios higiênicos na cura de doenças.

• No caso, simultaneamente higiênica - na promoção de hábitos de vida saudável, terapêutica - ao enfrentar as doenças civilizatórias

• e, também utilizando a higiene como • e, também utilizando a higiene como tratamento ao estimular indivíduos práticas ditadas pela medicina

• em função de uma postura de hiperprevenção em relação aos supostos riscos à saúde (como em relação aos supostos riscos à saúde (como no caso do uso de hipocolesterolemiantes).

• a promoção da saúde possui elementos biopolíticos imunitários.O epidemiopoder se alia ao dispositivo • O epidemiopoder se alia ao dispositivo higioterapêutico, naturaliza precariedades e produz um deslocamento para riscos preveníveis e patologias tratáveis.

• O epidemiopoder e o dispositivo higioterapêutico • O epidemiopoder e o dispositivo higioterapêutico atuam sobre os indivíduos fazendo com que a vida se confunda com uma série de prevenções e terapias.

• Rose (2007) enfoca dois importantes aspectos na biopolítica atual importantes para o epidemiopoder conjugado ao poder terapêutico:

• 1) a molecularização biologicista dos fenômenos humanos – a vida passa a ser compreendida e humanos – a vida passa a ser compreendida e abordada em termos das propriedades funcionais das seqüências de codificação das bases nucleotídicas e suas variantes, dos mecanismos moleculares que controlam a expressão e transcrição gênica, das conexões entre transcrição gênica, das conexões entre propriedades funcionais das proteínas e sua forma constitutiva, da geração de elementos intracelulares (como canais iônicos, enzimas, genes transportadores, etc)

• 2) O foco central na idéia de vitalidade – algo que pode: ser abordado por distintos tipos de experts, gerarem múltiplos níveis de bens e serviços, ser dividida em diversos serviços, ser dividida em diversos componentes

• que podem ser definidos, guardados, intercambiados, comercializados em termos de tempo, espaço, órgãos, espécies conforme de tempo, espaço, órgãos, espécies conforme diferentes contextos, instituições e grandes empreendimentos bioeconômicos.

• A biopolítica se converte cada vez mais em bioeconomia.

Hiperprevenção e a dimensãoimunitária

• O paradigma imunitário se institui em termos de reação, não como ação. Trata-se de uma contra-força que deve evitar que outra força entre em força que deve evitar que outra força entre em ação. (Esposito, 2006)

• O dispositivo imunitário atua na suposição da existência do mal a enfrentar. Não apenas no sentido de que provém deste mal sua necessidade de manifestação – como o risco da doença justifica de manifestação – como o risco da doença justifica a ação preventiva.

• Mas, também, no sentido de que sua ‘existência’ se autojustifica pelo próprio uso. Assim, acaba reiterando em menor escala ao mal que tenta evitar

• Imunidade: termo jurídico - conjunto de privilégios, vantagens ou isenções de ônus ou encargos concedidos a certas pessoas em função de cargo ou função exercida,

• sentido figurado - capacidade de ficar • sentido figurado - capacidade de ficar afastado, livre, protegido de influência, circunstância etc.

• termo jurídico - privilégio, regalia outorgada a alguém em virtude do cargo ou função que alguém em virtude do cargo ou função que exerce.

• imunologia - conjunto dos mecanismos de defesa de um organismo contra os elementos que lhe são estranhos.

Insegurança e hiperprevenção• A dimensão globalizada do risco é abordada por

Beck (2008)• Aí se destaca a questão ‘riscos e catástrofes’, • Aí se destaca a questão ‘riscos e catástrofes’,

especialmente no que se refere a como se produz o presente diante do risco de catástrofes futuras.

• O risco mundial consistiria na “encenação da realidade do risco mundial”. ‘Encenação’ não no realidade do risco mundial”. ‘Encenação’ não no senso comum de algo simulado ou falso. Mas, na antecipação imaginada da catástrofe.

• Isto vale para o problema do aquecimento global.

• Desta forma, a distinção entre risco e sua correspondente percepção passa a se indiferenciar.

• O ambiente de antecipação cataclísmica pode facilmente derivar para a proliferação social facilmente derivar para a proliferação social de medo/paranóia e entrar em ressonância com a premência preventiva de busca de segurança.

• A hiperprevenção pode assumir dimensões de • A hiperprevenção pode assumir dimensões de obrigação incondicional, tanto ao nível dos indivíduos como dos Estados.

Promoção de saúde como práticabiopolítica com formato religioso

• Não é de se estranhar que surjam propostas racionalistas de enfrentamento de ameaças racionalistas de enfrentamento de ameaças que participam ativamente da criação de um ambiente em que diminuem as possibilidades de distinção entre medo (resultante de causas objetivas) e paranóia (produto de uma ‘percepção’ desarrazoada).objetivas) e paranóia (produto de uma ‘percepção’ desarrazoada).

• Para salvar-se de modo duradouro, a vida deve se fazer ‘privada’, no duplo sentido: deve se fazer ‘privada’, no duplo sentido: privatizada e privada deste vínculo que a expõe a seu traço comum, livrando-se da submissão à autoridade soberana.

• Cristaliza-se assim a noção de ‘indivíduo’, • Cristaliza-se assim a noção de ‘indivíduo’, indivisível, unido a si mesmo. Temos, então, um drama terrível que marca nossa civilização: o que é próprio é sempre imune, não-comum.

• Existência de aspectos religiosos em elementos de nossa cultura, mesmo na era de desencantamento do mundo.desencantamento do mundo.

• As ideologias laicas mais importantes da atualidade se modelaram em um formato de religião recalcada com elementos utópicos – a crença de um acontecimento transformador crença de um acontecimento transformador do mundo que nos traria a redenção com o término de todos os conflitos. (Gray, 2008)

• As imagens religiosas, mesmo folclóricas, de demônios e diabos que tinham a função simbólica de lidar com os medos e temores relativos às ameaças à nossa integridade e segurança foram se deslocando e assumindo a segurança foram se deslocando e assumindo a forma tecnocientífica de perigos e riscos (BAUMAN, 2005).

• Essa seria a base racional para a construção do ideário que constituiria o novo catecismo dirigido à preservação e manutenção da saúde dirigido à preservação e manutenção da saúde e da vitalidade.

• As quatro virtudes cardeais são: prudência, justiça, temperança e fortaleza.justiça, temperança e fortaleza.

• Possivelmente excluindo Justiça, todas apresentam elementos que possuem nexos evidentes com as premissas e exigências para seguir-se um estilo de vida saudável.seguir-se um estilo de vida saudável.

Temperança Prudência Fortaleza Justiça

• “Prudência é o conhecimento correto das coisas a serem feitas ou evitadas (...).

• Prudência reside no intelecto (…). Como um ato de virtude, a prudência requer três ações mentais: tomar conselhos cuidadosamente consigo mesmo e com os outros, julgar corretamente a partir das com os outros, julgar corretamente a partir das provas (evidence) disponíveis (ênfase nossa) e dirigir o restante de nossa atividade baseado em normas que estabelecemos.

• (...) A prudência é a primeira das virtudes cardinais e orienta as demais ao estabelecer a regra e a medida, orienta as demais ao estabelecer a regra e a medida, aplicando princípios morais a casos particulares’

• (http://www.secondexodus.com/html/catholicdefinitions/, consultado em 1/02/2010).

• ‘Temperança é a virtude que modera o desejo pelo prazer. Regula toda a forma de desfrute originário da volição humana e inclui todas as virtudes (...) que restringem os movimentos excessivos de nossos desejos e apetites. (...)

• (A) temperança limita desejos excessivos para prazeres maiores. Uma vez que o prazer resulta de toda a atividade natural, os prazeres mais intensos resultam das atividades mais naturais, particularmente os prazeres da comida, bebida e do ato marital ato marital

• (http://www.secondexodus.com/html/catholicdefinitions/, consultado em 1/02/2010).

• A virtude da fortaleza ou coragem é a firmeza de espírito, constância da vontade em fazer o bem, apesar dos obstáculos no desempenho de nossos deveres cotidianos.

• Suprime o medo imoderado e reprime a imprudência (…).(…).

• A graça da fortaleza traz àqueles que a possuem um destemido espírito de resolução e uma vontade indomável a perseverar com uma fé quieta na providência divina que supera todos os obstáculos.Também traz coragem para persistir na prática da • Também traz coragem para persistir na prática da virtude, apesar das provações, doenças, perseguição e fracasso externo (...)’

• (http://www.secondexodus.com/html/catholicdefinitions/, consultado em 1/02/2010).

• Segundo Benjamin, o capitalismo ‘serve para satisfazer as mesmas preocupações, angústias e inquietudes anteriormente respondidas pela assim chamada religião’. (...)

• ‘O capitalismo se desenvolveu como parasita do Cristianismo no Ocidente’.Cristianismo no Ocidente’.

• 'O capitalismo é puramente culto religioso' (...). Tem sentido somente em relação direta com seu culto. Não conhece dogma em especial, nem teologia’.

• 'Duração permanente do culto'. Não há ‘dias úteis’. Não há dia que não seja festivo, no terrível sentido de que toda a dia que não seja festivo, no terrível sentido de que toda a sua pompa sagrada se desbobra ante nós, cada dia ordena a fidelidade absoluta de cada adorador’.

• ‘O capitalismo é um culto que cria culpa, não expiação’. (Benjamin, 1921, fragmento)

• Agamben segue as reflexões de Benjamin e afirma que o capitalismo amplifica a estrutura de separações entre sagrado e profano que define a religião, potencializando ao paroxismo o movimento de divisão constante do cristianismo até que não haja mais nada por separar –profanação e consagração que tendem a, no limite, profanação e consagração que tendem a, no limite, coincidir.

• As mercadorias se dividem em valor de uso e de troca, assim como tudo que é feito, vivido, atuado é apartado de si-mesmo e transferido para uma outra dimensão onde há impossibilidade de uso – dimensão do consumo e do impossibilidade de uso – dimensão do consumo e do espetáculo.

Biopolítica e epidemiopoder -epílogo

• A religião capitalista de espetáculo e consumo é excessiva e estrita.excessiva e estrita.

• Para não ser consumido por ela, os arautos do consumo da vitalidade e saúde tentam alimentar uma culpa putativa e pregam práticas com elementos assépticos, sob a égide das provas (evidências) das ciências da saúde como argumento (evidências) das ciências da saúde como argumento definitivo, pressionando o indivíduo que não assume a racionalidade evidente do discurso da auto-contenção.

• Assim, deve-se estar atento a enfermidades existentes, suscetibilidades e propensões; deve-se buscar informações baseadas em evidências acerca para que cumpra com o ajuste do ‘estilo de vida’ para minimizar a ajuste do ‘estilo de vida’ para minimizar a doença e otimizar a saúde;

• deve-se conduzir a própria vida de modo estratégico e responsável em relação aos outros de modo a ponderar decisões sobre empregos, casamentos, reprodução à luz de empregos, casamentos, reprodução à luz de elementos biomédicos e epidemiológicos.

• A saúde pública atual espera isso de cada um de nós.