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Rio de Janeiro, Lima, congressos médicos e exposições internacionais de higiene no início do século XX 1 Marta de Almeida – MAST/MCT No continente latino-americano a realização de congressos e exposições científicas acompanhou o processo de constituição do campo científico e ajudou na formação de variadas redes científicas latino-americanas. Os congressos médicos e científicos latino-americanos partiram de iniciativas não governamentais, mas de grupos profissionais que atuavam tanto na esfera dos serviços públicos como também nas faculdades e associações. Tais reuniões científicas foram marcadas pelo esforço de alguns expoentes dedicados a sua realização e a sua manutenção, o que indica a existência de um movimento de organização dos setores profissionais e uma interação entre os cientistas latino-americanos mais efetiva do que aparentemente consta nos estudos existentes. As circulares referentes à iniciativa de realizar o Primeiro Congresso Científico Latino-Americano em Buenos Aires nos anos finais do século XIX reforçaram a necessidade de romper o isolamento intelectual no continente; estreitar as relações científicas permanentes entre os estudiosos; discutir soluções dadas em nações diversas a um mesmo problema industrial, mecânico, médico ou sociológico (Zarranz: 1998, p.96) Já em 1901, por iniciativa de um comitê formado pelo concurso de várias corporações médicas existentes no Chile, inaugurou-se o Primeiro Congresso Médico Latino-Americano (CMLA), seguido pelos demais até 1922 (Almeida: 2004). Segundo o regulamento geral o CMLA tinha como objetivos contribuir para o adiantamento das ciências médicas, estimulando os estudos e investigações pessoais; possibilitar o exato conhecimento de todas as questões relacionadas com as ciências cuja resolução interessasse às nações latino- americanas; favorecer a adoção de medidas uniformes para a defesa sanitária internacional, de acordo com os meios ao seu alcance; criar e manter vínculos de solidariedade entre as instituições, associações e personalidades médicas da América Latina, fomentando o intercâmbio intelectual e garantir como exclusivamente científicos seus fins. 2 1 Esta pesquisa é parte do resultado do Pós-Doutorado realizado no IEP entre 2009 e 2010 e contou com apoio CNPq. 2 Note-se que apesar de explicitados tais objetivos aleatoriamente nos diversos discursos dos membros aderentes aos congressos anteriores, somente no 3º. Congresso é que foram publicados como Regulamento Geral. Regulamento Geral do Terceiro Congresso Médico Latino-Americano. Actas y Trabajos, tomo I, 1908, p. 11.

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Rio de Janeiro, Lima, congressos médicos e exposições internacionais de higiene no início do

século XX1

Marta de Almeida – MAST/MCT

No continente latino-americano a realização de congressos e exposições científicas

acompanhou o processo de constituição do campo científico e ajudou na formação de variadas

redes científicas latino-americanas. Os congressos médicos e científicos latino-americanos

partiram de iniciativas não governamentais, mas de grupos profissionais que atuavam tanto na

esfera dos serviços públicos como também nas faculdades e associações. Tais reuniões

científicas foram marcadas pelo esforço de alguns expoentes dedicados a sua realização e a

sua manutenção, o que indica a existência de um movimento de organização dos setores

profissionais e uma interação entre os cientistas latino-americanos mais efetiva do que

aparentemente consta nos estudos existentes. As circulares referentes à iniciativa de realizar o

Primeiro Congresso Científico Latino-Americano em Buenos Aires nos anos finais do século

XIX reforçaram a necessidade de romper o isolamento intelectual no continente; estreitar as

relações científicas permanentes entre os estudiosos; discutir soluções dadas em nações

diversas a um mesmo problema industrial, mecânico, médico ou sociológico (Zarranz: 1998,

p.96)

Já em 1901, por iniciativa de um comitê formado pelo concurso de várias corporações

médicas existentes no Chile, inaugurou-se o Primeiro Congresso Médico Latino-Americano

(CMLA), seguido pelos demais até 1922 (Almeida: 2004). Segundo o regulamento geral o

CMLA tinha como objetivos contribuir para o adiantamento das ciências médicas,

estimulando os estudos e investigações pessoais; possibilitar o exato conhecimento de todas

as questões relacionadas com as ciências cuja resolução interessasse às nações latino-

americanas; favorecer a adoção de medidas uniformes para a defesa sanitária internacional, de

acordo com os meios ao seu alcance; criar e manter vínculos de solidariedade entre as

instituições, associações e personalidades médicas da América Latina, fomentando o

intercâmbio intelectual e garantir como exclusivamente científicos seus fins.2

1 Esta pesquisa é parte do resultado do Pós-Doutorado realizado no IEP entre 2009 e 2010 e contou com apoio CNPq. 2 Note-se que apesar de explicitados tais objetivos aleatoriamente nos diversos discursos dos membros aderentes aos congressos anteriores, somente no 3º. Congresso é que foram publicados como Regulamento Geral. Regulamento Geral do Terceiro Congresso Médico Latino-Americano. Actas y Trabajos, tomo I, 1908, p. 11.

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Junto aos congressos estava prevista a ocorrência das Exposições Internacionais de Higiene,

previstas no estatuto dos CMLA como anexo. Seu objetivo era apresentar ao público,

aparelhos, instrumentos, utensílios de aplicação médica e higiênica, materiais de construção,

pavimentação e instalação sanitária, publicações, substâncias e artefatos químicos,

farmacêuticos, odontológicos, laboratoriais etc que tivessem relação com a higiene. A duração

da exposição era geralmente de um a dois meses. A partir de 1907 foi dividida em duas

seções: industrial e científica. A primeira tinha caráter internacional e era composta por

aparelhos, instrumentos, utensílios domésticos, cirúrgicos, higiênicos; modelos fac-símiles,

gráficos das mesmas instalações congêneres; materiais de construção, pavimentação,

utilização sanitária; alimentos e bebidas; produtos químicos, farmacêuticos e industriais

destinados ao uso higiênico; ou seja, toda a produção considerada de vantagem higiênica e

interesse comercial. Os expositores podiam fornecer informações orais e impressas,

demonstrar seus aparelhos e instalações e distribuir amostras. Já a seção científica tinha

caráter exclusivamente latino-americano e era formada por gráficos, mapas, modelos de

aparelhos e instalações higiênicas; coleções de peças conservadas, microorganismos e insetos;

amostras de medicamentos, soros e vacinas.

A cooperação científica na América Latina, em suas mais diversas áreas do conhecimento,

ainda é um campo pouco explorado pela historiografia das ciências, com alguns estudos

dedicados especificamente a essa dimensão (Sagasti & Paves: 1989; Lopes, 2000, 1999;

Almeida,2006, 2004) . Antes mesmo do alvorecer do século XX, os países da América Latina

passaram por processos de modernização fortemente marcados pelo dinamismo cultural,

econômico e científico. Importantes contatos de cooperação se deram em diversas áreas de

atuação como nas ciências naturais, engenharias e medicina. Essas trocas foram utilizadas

pelos cientistas latino-americanos e também por estrangeiros que desenvolviam seus trabalhos

na América Latina como reforço de suas carreiras na Europa e nos Estados Unidos (Lopes,

2000)

A realização de congressos médicos e das exposições de higiene na América Latina, longe de

ser considerada apenas como reflexo do que já vinha ocorrendo na Europa e nos Estados

Unidos, é aqui interpretada como estratégia de legitimação e persuasão do conhecimento

médico produzido perante a comunidade especializada e as autoridades públicas, suportes

estes fundamentais para sua apresentação à sociedade em geral como portadores do saber

oficial da arte de medicar.

Rio de Janeiro (Brasil) e Lima (Peru), conexões possíveis

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Levando em consideração o levantamento realizado sobre o 4º. e 5º.Congresso Médico

Latino-Americano e a Exposição de Higiene ocorridos em 1909 e 1913, foi possível entender

um pouco mais sobre a realização de eventos similares na América Latina, numa perspectiva

de análise que priorizou as semelhanças, diferenças e conexões estabelecidas entre os dois

países a partir destes eventos, com ênfase para os elos internacionais de construção das

relações científicas no continente, muitas vezes esquecidos pelas historiografias nacionais

(Gruzinsk: 2001; Prado: 2005).

Pouco se sabe a respeito da relação entre higiene e outras áreas do saber, dos interesses

comerciais e industriais nesta área, da inserção de valores culturais em diferentes grupos

sociais, de setores médios e abastados e não somente voltadas para os grupos menos

favorecidos, como trabalhadores e imigrantes. A perspectiva de entendimento que venho

adotando ao longo das pesquisas realizadas sobre o tema é a de que as exposições

internacionais de higiene realizadas nas capitais latino-americanas foram espaços de tradução

e divulgação do conhecimento científico, de novas sociabilidades e estes eventos precisam ser

entendidos à luz da conformação urbana específica das capitais de cada país.

A reconstrução do Rio de Janeiro, embora restrita a algumas áreas da cidade, funcionou como

reconstrução simbólica da idéia de progresso. A inovação das reformas ecoava como o

discurso da novidade sobreposto à manutenção da lógica excludente e hierarquizadora da

sociedade brasileira.

Houve uma idealização sobre as mudanças sofridas na cidade do Rio de Janeiro a partir da

ação saneadora de Oswaldo Cruz. De pocilga pestilenta tornou-se uma das cidades mais

salubres, mais limpas, mais habitáveis do mundo. A idéia de que o Rio de Janeiro era a

melhor representação do Brasil foi enfatizada em diversas ocasiões, ao longo do 4o. CMLA,

pelos membros das elites médicas. A eloqüência dos discursos médicos, para além do estilo

retórico próprio daquele momento, se explica pela necessidade de legitimação da ciência

numa luta simbólica pelo exercício da atividade médica perante a comunidade de

profissionais ligados à área, o poder público e perante outros agentes sociais que exercessem

atividades concorrentes nas artes de curar.

O Rio de Janeiro era o ‘Brasil republicano’, não só pelas reformas engendradas, mas também

pela peculiaridade de conciliar o que havia de mais inovador em termos de modernização

urbana com a exuberância de sua natureza. Símbolo maior de que os trópicos também

poderiam fazer parte do coro das nações civilizadas. O Quarto Congresso Médico Latino-

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Americano contribuiu, junto a outras manifestações político-culturais daquele período, para a

educação do olhar do mundo sobre o Brasil e deste sobre si mesmo, o reconhecimento de um

“vasto país” se restringiu ao enquadramento de uma bela imagem da capital federal.

Pelo levantamento realizado até então sobre a Exposição Internacional de Higiene ocorrida na

Praia Vermelha do Rio de Janeiro em 1909, puderam ser constatadas informações preciosas

sobre o impacto que o evento teve na cidade, ao reunir mais de 80.000 pessoas no dia da

inauguração, sobre a relação amistosa entre setores médicos e autoridades governamentais

que cederam a região da Praia Vermelha para a instalação da Exposição, aproveitando a infra-

estrutura utilizada para a Exposição Nacional de 1908 e, a ampla repercussão que o evento

teve na imprensa carioca, tanto em revistas como em jornais de grande circulação.3

Já no Peru, entre fins do século XIX e início do XX, Lima é objeto de uma série de

transformações urbanas que buscavam modernizar o que até então constituía uma cidade

tradicional e com fortes traços coloniais. Esta modernização prematura ocorre em um

contexto de crescimento econômico acelerado, produto de um incremento substantivo de

exportações de caucho, açúcar, algodão e minerais a países em processo de industrialização

(Panfichi: 2004). Estabelecem-se na cidade as primeiras indústrias. Percebe-se um elo entre as

transformações urbanas ocorridas ao longo do século XX e aquilo que foi motivo de destaque

na Exposição Internacional de Higiene ali organizada referente à modernização da cidade no

que dizia respeito à saúde e saneamento aliada ao reforço de uma tradição local de

consolidação da arte de medicar, sob a nova égide da medicina tropical que se queria

implementar como disciplina autônoma.4

Um outro ponto em comum ocorrido nos dois eventos refere-se às homenagens feitas à

medicina de cada país e ajuda a refletir sobre temas estudados isoladamente como por

exemplo a construção de mitos da medicina (Brito, 1995) ou das doenças ditas nacionais, caso

de um mito em vida, Oswaldo Cruz e da criação do Instituto de Medicina Tropical Oswaldo

Cruz em 1909, mesmo ano que ocorre o 4º.CMLA e de Daniel Alcides Carrión, mito pós-

morte e da verruga peruana ou enfermidad de Carrión para o Peru, enaltecido no 5º. CMLA.

(Delgado: 2001; Murillo: 2002; Linares: 1958).

3 Este levantamento foi realizado juntamente com o aluno de iniciação científica do PIBIC/MAST, Luis Felipe Trotta, sob minha orientação. 4 Existe um registro de que por ocasião da Exposição Internacional de Higiene foi organizada uma exposição de artigos médicos das épocas incaica e colonial e outra de medicina tropical organizada pela comissão organizadora do 5º. CMLA. Boletín Oficial do 5º.Congreso Médico Latino-Americano (6º. Pan-Americano). Lima, Imprenta Nacional, octubre 1913, n.4, p.5 e 63.

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Naquele período em que se realizava o congresso, o Rio de Janeiro já tinha seu ícone do

saneamento: Oswaldo Cruz foi homenageado com todas as pompas de um herói nacional. A

idéia partiu do diretor da revista Brasil Médico, Azevedo Sodré que iniciou uma campanha de

arrecadação de fundos entre médicos e outros segmentos sociais para a compra de uma

medalha de ouro a ser entregue ao eminente sanitarista por seus “grandes serviços prestados à

pátria e à humanidade.” Ao longo dos meses, várias chamadas e boletins referentes à

quantidade arrecadada para o intuito, eram noticiadas nas principais revistas médicas. Mas

também era uma questão nacional, plenamente justificada pelos adeptos de que o dinheiro

público deveria fazer parte das doações. E de fato, fez, pois o Congresso Nacional contribuiu

com uma generosa parcela, o que demarca seu interesse em associar diretamente o nome de

Oswaldo Cruz ao governo.

De todas as partes do Brasil vieram contribuições. Parecia que a constatação do nome na lista

dos aderentes à campanha representava algo fundamental naquele período, era como se

“reconhecimento dos pares e da sociedade” pelo “reconhecimento do trabalho de Oswaldo

Cruz” fizesse parte de um nobre currículo médico. Talvez, até pelo apoio obtido ter sido

maior que o previsto - 1032 assinaturas de médicos, além da contribuição do Congresso

Nacional - pode ser comprada não somente a medalha de ouro, mas também 25 cunhadas em

prata, destinadas a alguns institutos científicos estrangeiros e 50 em cobre, para os museus e

instituições nacionais.5

Na sessão de homenagens ocorrida no próprio Instituto Oswaldo Cruz e numa data

significativa - 05 de agosto - dia do aniversário do homenageado, iniciou-se uma série de

discursos emocionados. O presidente do 4º. CMLA, Azevedo Sodré abriu a sessão afirmando

que a obra de Oswaldo Cruz, ‘extinguindo a febre amarela no Rio de Janeiro’, libertou não só

o Brasil da mácula de foco epidêmico, como também havia projetado uma sombra benéfica e

protetora sobre os povos vizinhos que viviam em contínua ameaça de importação do terrível

flagelo. Enfatizou a adesão do Quarto Congresso à homenagem prestada a Oswaldo Cruz, de

iniciativa do periódico Brazil Médico, convertendo-se em uma “verdadeira consagração

latino-americana”.

O final da cerimônia se deu com um pequeno discurso emocionado de agradecimentos do

próprio Oswaldo Cruz, com a entoação do Hino Nacional e com a visita às principais

repartições do Instituto Oswaldo Cruz, espaço privilegiado das ações médico–científicas que

5 A contribuição do Congresso Nacional foi de 3:050$000 e a soma da contribuição dos médicos brasileiros foi de 2.102$000. Brasil Médico, ano 23, n.47, 1909, pp. 471-478.

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almejavam representar, naquele momento, a medicina nacional. Nara Britto (1995, p. 28)

afirmou ter sido esta homenagem a primeira manifestação pública de reconhecimento a

Oswaldo Cruz pela comunidade médica brasileira.

Percebe-se que houve uma ação coletiva por parte de alguns expoentes da medicina do Rio de

Janeiro e de outras partes do país em referendar a imagem de Oswaldo Cruz. Havia um

interesse maior em transformá-lo em símbolo de que era possível fazer ciência nos trópicos,

mesmo que para isso, tivesse que enaltecer aquilo que chamaria mais a atenção dos pares

internacionais, numa postura já bastante conhecida de reforço da idéia do exótico. Em que

pese a busca em mudar a imagem do país com relação ao rigor dos métodos e trabalhos

científicos desenvolvidos, o destaque da trajetória de Oswaldo Cruz era sempre marcado por

aquilo que mais interessava naquele momento: a vitória de suas campanhas contra uma

“doença tropical.”

Oswaldo Cruz já parecia um tanto entediado com as seguidas manifestações de homenagem a

que estava sujeito. Em 1908, havia sido recebido como herói nacional ao chegar de Alemanha

com a medalha de ouro recebida por ocasião da Exposição Internacional de Higiene e

Demografia, em Berlim ocorrida em setembro de 1907. Tal acontecimento, também foi

articulado por outros expoentes da medicina interessados em ampliar a ação do Instituto de

Manguinhos enquanto um espaço científico central das pesquisas experimentais do país.6

Cabe salientar que os estudos sobre a trajetória de Oswaldo Cruz, tanto os de caráter

laudatório quanto os mais recentes, destacaram sempre com muito mais ênfase o premio

internacional recebido em Berlim. Praticamente não se faz qualquer referência à homenagem

organizada por ocasião do 4o. CMLA que envolveu tantos médicos do país, quanto do

continente latino-americano. Nara Britto (1995, p.28) afirmou ter sido esta homenagem a

primeira manifestação pública de reconhecimento a Oswaldo Cruz pela comunidade médica

brasileira.

Em 1913, em terras distantes, um outro mito da medicina, desta vez peruano, seria destaque

no 5º. CMLA. O jovem estudante de medicina Daniel Alcides Carrión (1859-1885), que

morreu precocemente. Interessado em entender os sintomas pré-eruptivos (verrugas) de uma

doença epidêmica que grassava na região de Oroya, fez com o auxílio de um companheiro de

turma, a inoculação em si próprio de sangue de um paciente. Ele não chegou a desenvolver a 6 Segundo Henrique Cukierman (2001), o grande responsável pelo sucesso de Oswaldo Cruz naquele evento deve-se ao pesquisador Henrique da Rocha Lima que, naquele momento encontrava-se em Berlim desenvolvendo seus trabalhos e tinha relações muito próximas com os organizadores da Exposição, inclusive com o presidente do júri, Rubner, que havia sido seu professor.

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doença, mas começou a sofrer os mesmos sintomas do que se denominava Febre de Oroya -

febre alta e anemia - morrendo pouco depois (Cueto: 1989, p. 127-28).

A grande novidade foi instituída já na organização do evento que criou uma seção específica

para a medicina tropical e epidemiologia. Uma junta de médicos peruanos, designada pela

comissão organizadora do 5o.CMLA, deveria apresentar os estudos desenvolvidos localmente

sobre temas caros à medicina nacional daquele país: a verruga de Carrión7, a uta

(leishmaniose) e o tifo exantemático, doenças com forte apelo explicativo da geografia

médica.8

No congresso propriamente dito, pelo menos 20 trabalhos foram apresentados sobre a verruga

peruana; 15 na Seção de Medicina Tropical.9 Grande parte dos autores eram os membros da

junta formada pela comissão organizadora do evento, na verdade, médicos que há tempos

vinham se dedicando ao estudo desta e de outras enfermidades endêmicas ocorridas no país.

Questões conceituais, relações da verruga com outras infecções, transformações anatômicas,

relatos de experimentos, terapêuticas, tentativas de imunização, relatos sobre a ocorrência da

doença em outras regiões do país foram abordadas exaustivamente pelos médicos peruanos.10

A realização do 5o. CMLA em Lima e o impacto dos trabalhos norte-americanos a respeito da

verruga peruana funcionaram como uma reanimação aos sentimentos nacionalistas da

medicina peruana. O mito sobre a morte de Carrión, que de jovem estudante imprudente

passou para a história da medicina peruana como “mártir” que se sacrificou pela nação,

ganhou novos coloridos com a votação unânime dos congressistas de várias partes do

continente, inclusive norte-americanos, para se construir uma estátua em sua homenagem na

cidade de Lima. Para isto, foi solicitada aos facultativos sul-americanos uma contribuição 7 Ou verruga peruana, por sua diferenciação aos demais tipos existentes em outras partes do mundo de erupção na pele, que poderia permanecer por poucas semanas ou muitos meses. Inicialmente foi entendida como uma enfermidade distinta da chamada Febre de La Oroya, uma febre epidêmica, muitas vezes fatal, de grande ocorrência entre os trabalhadores da ferrovia que ligava Lima a Oroya, daí seu nome. (Cueto, 1989). 8 Os médicos foram encarregados destes estudos em junho de 1912. Os componentes eram os seguintes: Ramón E.Ribeyro, Ernesto Odriozola (presidente do 5o. CMLA), Alberto L.Bartón, Júlio C.Gastiaburú, Oswaldo Hercelles, Abel S. Olaechea. La Cronica Medica, n. 581, ano 30, 15/03/1913, p. 85-89. 9 Alguns, de autoria de Oswaldo Hercelles foram incorporados à seção de Bacteriologia, Parasitologia, Anatomia e Fisiologia. 10 Além destes, foi apresentado um trabalho conjunto de uma comissão médica norte-americana dirigida por Richard Strong e do limenho Júlio C. Gastiaburu, intitulado “Informe Preliminar da primeira expedição do departamento de Medicina Tropical da Universidade de Harvard à América do Sul.” A equipe norte-americana trabalhou durante três meses no Instituto Municipal de Higiene de Lima. Fizeram experimentos em animais e estudos sobre um paciente acometido da verruga maligna. Chegaram à conclusão de que os estudos realizados pelos médicos peruanos até então, pautados na teoria consagrada de Carrión, de que a verruga e a Febre de Oroya eram a mesma enfermidade, estava incorreta. A equipe norte-americana, concluiu pela existência de micróbios diferentes causadores das doenças, reconhecendo o trabalho de Alberto Bartón que havia, em 1909, encontrado um bacilo, considerado responsável pela enfermidade. Note-se que, de início, ocorreram resistências por grande parte da própria comunidade de bacteriologistas peruanos. (Cueto: 1989, p. 136).

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financeira.11 Boa parte da comunidade médica brasileira chegou a participar da campanha,

enviando sua contribuição diretamente a Lima, para o professor Leonidas Avendaño ou para

os médicos que representaram o Brasil no 5o. CMLA, Plácido Barbosa e Nascimento

Gurgel.12

A estátua demorou a ser construída, foram mais de dez anos de espera para a inauguração.13

No entanto, a cadeira de medicina tropical foi instituída anos mais tarde na Faculdade de

Medicina de Lima e continuou sendo uma das seções científicas do congresso posterior.

Ainda que tenham ocorrido estas homenagens e votações à memória de Carrión, ressalta-se

que o verso da medalha entregue aos congressistas trazia a imagem de Hipólito Unanue

(1755-1833), importante médico e personagem político da história do Peru (Álvarez: 2002, p.

372-3).

Interessante notar que estes fenômenos de mitificação de Oswaldo Cruz e de Daniel Carrión

aconteceram em período muito similar e que os congressos e exposições de medicina tiveram

função mobilizadora para fortalecer ainda mais a consagração dos médicos homenageados,

numa clara identificação com o ideal de uma medicina nacional e também latino-americana.

Além disso, foram arenas de discussões acadêmicas a respeito das causas, da distribuição

geográfica, dos novos estudos e especialidades médicas sobre as doenças que grassavam no

continente naquele período. No entanto, a historiografia que lidou com esta temática pouco

refletiu sobre o papel destes eventos na construção dos mitos, enfermidades nacionais e novas

especialidades médicas, evidenciando assim a pertinência de torná-los mais conhecidos e

analisados perante a comunidade acadêmica e demais públicos.

No 5º. CMLA foi proposto pelo idealizador da seção, o tesoureiro da comissão organizadora,

Julian Arce, de que Medicina Tropical e Epidemiologia fossem mantidas como uma seção

separada nos demais congressos, justificando tal solicitação pelos enormes progressos que a

área havia tido nos últimos 20 anos e pela necessidade de registrar periodicamente os avanços

realizados em todo o continente americano. Foi aprovado por unanimidade, juntamente com

outra solicitação para que o 5o. CMLA aprovasse a proposta de criação da Cátedra de

Medicina Tropical em todas as Universidades da América. A necessidade de conhecer a

patologia das zonas tropicais e o crescimento dos contatos entre culturas diferentes, naquele 11 Esta votação foi ratificada por ocasião do 6o. Congresso Médico de Havana em 1922. 12 Esta informação foi publicada na seção Crônicas e Notícias com o título “Monumento ao medico peruano Carrión”. Brazil Médico, ano 32, n. 28, 13/07/1918, p. 224. 13Segundo nota divulgada na Revista Brasil Médico, 16/07/1927 (n. 29, p. 733), a estátua fora inaugurada em Lima em 1927, com um discurso do médico Carlo E. Paz Soldán, na época professor de Higiene da Faculdade de Medicina de Lima.

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momento ainda mais incentivado com a aproximação da inauguração do Canal do Panamá,

levou Arce a argumentar que o estreitamento de relações comerciais – positivas do ponto de

vista mercantil e econômico – trazia consigo também a possibilidade de intercâmbio de

agentes mórbidos exóticos, principalmente de outros continentes. Daí a importância da

formação de profissionais habilitados a lidar com estas questões de maneira efetiva.

Como finalização deste trabalho, ainda sobre o tema da medicina tropical, é relevante destacar

que no 5º. CMLA houve a recomendação da assembléia geral do congresso para que os

governos do Brasil e Peru atuassem conjuntamente na profilaxia das enfermidades da região

amazônica, com especial ênfase para o caso da febre amarela que naquele período grassava

com intensidade epidêmica na cidade de Iquitos, principal centro produtor e comercial de

borracha no Peru. Em abril de 1914, ocorreu uma audiência da comissão sanitária de

profilaxia da febre amarela que atuou em Manaus, chefiada por Theophilo Torres, com o

então presidente da República do Peru, Óscar Benavides. Também foi formada uma comissão

médica peruana para atuar em Iquitos. A mesma solicitou cópia dos relatórios das obras

realizadas no Rio de Janeiro para a profilaxia da febre amarela realizadas sob a orientação de

Oswaldo Cruz, a fim de que medidas idênticas fossem ali tomadas. Houve, assim, conexões

entre Iquitos e Manaus, cidades localizadas em plena região amazônica, com as autoridades

sanitárias do Rio de Janeiro e de Lima, o que possibilita ampliar as noções de centro-periferia.

Nas negociações realizadas, percebe-se o teor político da argumentação científica de seus

interlocutores, ao afirmarem que o combate à febre amarela na região amazônica era assunto

prioritário aos países envolvidos (Schweickardt: 2009). Na perspectiva de analisar relações

internacionais científicas em países da América Latina, destaca-se a tensão existente entre

firmar acordos internacionais de cooperação e manter os interesses locais.

Deste modo, a perspectiva de entendimento sobre o tema é a de que os congressos latino-

americanos de medicina e as exposições internacionais de higiene realizadas nas capitais

latino-americanas foram espaços de tradução e divulgação do conhecimento científico e de

novas sociabilidades. Estes eventos precisam ser analisados à luz da conformação urbana

específica das capitais de cada país.

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