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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO DCV5745 Novas Tendências do Direito dos Contratos e das Obrigações Ricardo Nicotra (Mestrando – Direito Civil) Nº USP 1902001 Orientadora: Profa. Doutora Cintia Rosa Pereira de Lima Professores Regentes: Professor Titular Fernando Campos Scaff Professor Associado Claudio Luiz Bueno de Godoy Professor Doutor Marco Fábio Morsello

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Page 1: Ricardo Nicotra (Mestrando Direito Civil) Academicos/Relações... · contratos (contractus) são convenções que, já à época clássica, produziam uma obrigação civil por elas

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO

DCV5745

Novas Tendências do Direito dos Contratos e das Obrigações

Ricardo Nicotra (Mestrando – Direito Civil)

Nº USP 1902001

Orientadora: Profa. Doutora Cintia Rosa Pereira de Lima

Professores Regentes:

Professor Titular Fernando Campos Scaff

Professor Associado Claudio Luiz Bueno de Godoy

Professor Doutor Marco Fábio Morsello

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Relações Contratuais de Fato

1. Sumário

1. Sumário .................................................................................................................. 2

2. Introdução ............................................................................................................... 3

3. Contratos Nominados e Inominados em Roma ...................................................... 3

4. Contratos Típicos e Atípicos - Conceito ................................................................ 6

5. Contratos Típicos e Atípicos no Direito Contemponâneo ...................................... 8

6. A Classificação dos Contratos Atípicos ............................................................... 10

7. Do Tipo Social para o Tipo Jurídico .................................................................... 11

8. Relações Contratuais de Fato. Tutela Jurídica. .................................................... 12

9. Relações Contratuais de Fato em Nossos Tribunais ............................................ 15

10. Contrato sem Negócio Jurídico e o Enriquecimento sem Causa ...................... 17

11. A Obrigação do Pagamento de Taxas em Loteamentos ................................... 18

12. Conclusão ......................................................................................................... 21

13. Bibliografia ....................................................................................................... 22

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2. Introdução

O presente trabalho destina-se a analisar o tema da tipicidade contratual com foco

nas obrigações geradas a partir de fatos sociais, também denominadas relações

contratuais de fato ou relações jurídicas paracontratuais, entendidas como aquelas

que não derivam de um acordo de vontades mas têm sua gênese nas relações sociais.

Inicia-se com uma abordagem histórica revisitando os conceitos de contratos

nominados e inominados em Roma, em especial os aspectos relacionados à

formalidade e proteção jurídica para, posteriormente, comparar aquela classificação

com a distinção moderna entre contratos típicos e atípicos, classificação estabelecida

com base no critério da existência de tratamento legislativo específico.

O pano de fundo para as análises desenvolvidas é o primado da autonomia da

vontade como essência da teoria contratual. A partir daí, passa-se a discorrer sobre

as situações fáticas que, a despeito da inexistência de vontade das partes – ou até

mesmo com a oposição de uma delas – têm o condão de gerar obrigação. A natureza

desta obrigação – contratual ou não contratual – também é tema de discussão.

Sendo o tema bastante abrangente, decidiu-se por limitar a análise das teses de

HAUPT, LARENZ e HIRONAKA.

Conclui-se que as obrigações geradas a partir de fatos sociais, sem a manifestação

de vontade, podem ter seu fundamento no princípio que veda o enriquecimento sem

causa e não em elemento de natureza contratual, o que implicaria na existência do

elemento volitivo.

Como exemplo prático das relações sociais que podem gerar obrigação a despeito

da discordância expressa de uma das partes, menciona-se o caso da obrigação do

pagamento de taxas cobradas por associações que administram loteamentos

fechados em face de moradores que não aderiram à associação.

3. Contratos Nominados e Inominados em Roma

A celebração de contratos, no direito brasileiro atual, geralmente não depende de

formas especiais. A regra geral é no sentido de dispensar as formalidades, exigindo-

as apenas quando a lei se manifestar expressamente neste sentido. Esta é a

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inteligência do artigo 107 do Código Civil Brasileiro que estabelece o primado da

vontade sobre a forma: “A validade da declaração de vontade não dependerá de

forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.”

No entanto, o estudo das relações contratuais no direito romano demonstrará a

existência de rigidez formal nos atos que envolviam a contratação. A regra no direito

romano era no sentido de observar a formalidade sob pena de nulidade do ato.

Esta rigidez, presente no período primitivo e no clássico, demonstrava-se através da

existência de um número limitado de contratos solenes cujo cumprimento era

garantido por ações de mesmo nome. Pelo fato das regras e do rígido formalismo

estarem associados ao nome do contrato, costuma-se denominar este conjunto de

contratos de “contratos nominados”.

Ficavam, portanto, sem proteção jurídica, no direito romano clássico, os negócios

que não se enquadrassem no rol taxativo de tipos de contratos. O máximo que se

poderia obter, em alguns casos, no período clássico, era uma indenização já que não

era possível exigir o cumprimento do pacto que estivesse fora deste rol.

Desta forma, a simples existência de acordo ou manifestação da vontade não gerava

obrigação. Era necessária, além do acordo, a presença da causa civilis. A causa

civilis elevava o ato jurídico bilateral ao status de contractus colocando à disposição

dos contratantes uma actio que garantia a prestação contratada.

Havia três espécies de contratos verbais no direito romano primitivo, todos formais:

o nexum, sponsio e a stipulatio. A formalidade destes contratos consistia na

atribuição de validade ao ato em razão de palavras exatas pronunciadas no momento

da celebração.

Posteriormente, no direito clássico, outras formas contratuais foram desenvolvidas.

Geralmente os contratos eram verbais, no entanto, alguns contratos escritos (literais)

foram desenvolvidos. Tanto os contratos verbais quanto os literais tinham causa

civilis e eram solenes.

Outra importante categoria contratual do período clássico foram os contratos reais.

Como exemplos desta categoria temos o mútuo, o depósito, o comodato e o penhor.

Sob influência do ius gentium¸ contratos baseados apenas no acordo de vontades

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foram admitidos: compra e venda (emptio venditio), locação (locatio conductio), a

sociedade (societas) e o mandato (mandatum). Estes receberam a classificação de

contratos consensuais.

Qualquer outra convenção que não estivesse compreendida nas quatro categorias

acima - verbais, literais, reais e consensuais - eram considerados como pacta e, em

regra, não gozavam de proteção jurídica.1

Muitas vezes a concretização de contratos não previstos, dependia da criatividade

dos juristas para obter a proteção legal. Tentavam fazer uma engenharia jurídica para

encaixar o negócio a partir de um conjunto de contratos nominados. Um exemplo

citado por REINHARD ZIMMERMAN é o “hire-purchase”, compra com pagamento

parcelado.2 Em tais situações o comprador precisava do bem imediatamente mas não

tinha meios para o pagamento à vista. Impunha-se o dever de garantir o pagamento

ao vendedor, mas não havia um contrato nominado de financiamento, como temos

hoje. Em Roma as partes teriam que celebrar dois contratos: um contrato de emptio

venditio combinado com um contrato de locatio conductio para atingir uma

finalidade equivalente à da venda financiada. Desta forma a venda se concretizava

após o pagamento da última parcela. Até então vigorava a locação.

Com o passar do tempo, o surgimento de novas necessidades socioeconômicas

impôs um processo de flexibilização deste rigor formalista. É justamente na

necessidade de flexibilização que está a gênese da liberdade contratual.

Passou-se a admitir, a partir de Justiniano, a existência dos chamados contratos

inominados. Estes eram entendidos como pactos sinalagmáticos que não eram

garantidos por uma ação específica, mas sim por uma ação genérica praescriptis

verbis.

1 Álvaro Villaça Azevedo, citando P. Van Wetter (Cours elèmentaire de droit romain) leciona que “os

contratos (contractus) são convenções que, já à época clássica, produziam uma obrigação civil por elas

mesmas e em virtude do direito civil propriamente dito. Os pactos (pacta) são convenções que criam uma

simples obrigação natural, ou melhor, que não criam uma obrigação civil, senão a título de acessórios de

um outro contrato ou em virtude do direito pretoriano ou das constituições do Baixo Império”. -

AZEVEDO, p. 8

2 ZIMMERMANN, Reinhard. The law of obligations. New York: Oxford University Press Inc., 1996. p.

530.

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Daí surgiram as quatro categorias de Paulo (Digesto, livro 19, 5, 5, par): (1) do ut

des, (2) do ut facias, (3) facio ut des, (4) facio ut facias. Temos, então, as quatro

combinações possíveis entre as prestações de dar e fazer.

Como solução jurídica para os pactos em que se dava algo em troca de um

recebimento ou de um fazimento (do ut des ou do ut facias) estabeleceu-se a

condictio causa non secuta: caso houvesse o inadimplemento da parte, aquele que

inicialmente transferiu a propriedade para a parte poderia pleitear a restituição uma

vez que esta quedou-se inadimplente. A condictio está na gênese daquilo que hoje

entendemos ser a ação de restituição por enriquecimento sem causa.

4. Contratos Típicos e Atípicos - Conceito

Modernamente os contratos típicos se distinguem dos atípicos pelo fato de

possuírem tratamento legislativo específico, de disciplina legal particular para o

contrato.

ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO, ao distinguir os contratos típicos dos atípicos assevera

que “tipicidade significa presença, e atipicidade ausência, de tratamento legislativo

específico”.3

Na mesma linha leciona SÍLVIO DE SALVO VENOSA ao afirmar que

Se a avença contratual for daquelas descritas e especificadas

na lei, estaremos diante de um contrato típico (ou nominado,

embora não seja a terminologia mais correta). Se a avença

contratual tiver por objeto regular relações negociais menos

comuns, ou sui generis, mais ou menos empregadas na

sociedade, mas não descritas ou especificadas em lei,

estaremos perante um contrato atípico (ou nominado, segundo

a doutrina mais antiga).4

CAIO MÁRIO DA SILVA Pereira afirma que “um contrato é típico (ou nominado)

3 AZEVEDO, p. 120.

4 VENOSA, p. 377.

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quando as suas regras disciplinares são deduzidas de maneira precisa nos Códigos

ou nas leis”.5

MARIA HELENA DINIZ leciona que “os contratos inominados, ou seja, atípicos,

afastam-se dos modelos legais, pois não são disciplinados ou regulados

expressamente pelo Código Civil ou por lei extravagante, porém são permitidos

juridicamente...”6

ARNOLDO WALD, no mesmo diapasão, afirma que “os contratos típicos ou

nominados são aqueles que têm uma estrutura legalmente definida. São

regulamentados nos seus principais aspectos por textos legais. Ao contrário, os

contratos atípicos ou inominados não têm estrutura fixada pela lei.”7

Com o devido respeito aos doutrinadores que consideram a expressão “contratos

típicos” como sinônima de “contratos nominados”, e o mesmo para atípicos em

relação a inominados, tal equivalência de sentido não deve ser adotada. A tipicidade,

como visto, está vinculada ao tratamento legislativo do contrato, pouco importando

seu nomen juris. Destaque-se aqui a possibilidade da lei prever nomes de contratos

sem regulá-los. É o caso do contrato de garagem ou estacionamento, mencionado no

art. 1º da Lei de Locação (Lei 8.245/1991). A referida lei menciona, mas não regula

o contrato de garagem. Trata-se, portanto, de um contrato nominado, pois possui

nome; mas atípico, pois não possui tratamento legislativo.

Em favor da adoção das expressões “típico” e “atípico”, ORLANDO GOMES esclarece

que as expressões “contratos nominados” e “contratos inominados” “podem induzir

a equívoco, porque tiveram significado diverso no Direito Romano, é preferível

adotar a outra terminologia, de procedência alemã”.8

ANGELO PIRAINO LETO, além de referir-se à falta de disciplina legislativa, aponta a

“causa nova e diversa” como elemento caracterizador dos contratos atípicos ou

inominados. No entanto, não entende que estas duas categorias (atípicos e

5 PEREIRA, p. 52.

6 DINIZ, p. 113.

7 WALD, p. 258.

8 GOMES, p. 81

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inominados) são sinônimas. Pequenas alterações em elementos contratuais que não

alterem sua causa poderiam tornar o contrato atípico, mas não inominado, pois

permaneceria com o mesmo nome a despeito da alteração em seus elementos:

È difusa la tendenza, in dottrina e nella giurisprudenza, ad identificare

l’atipicità con la innominatezza, intendendo per contratti inominati o

atipici quei contratti che mancano di una disciplina legislativa e che

possiedono una causa nuova e diversa, rispetto a quelli disciplinati

dalla legge. È da ritenere, invece, che quando gli elementi del

contratto mutino, ma non fino al punto da influenzarne la causa, cioè

il momento integrante del processo volitivo, si avrà una

differenziazione del contratto da quello tipico, senza tuttavia giungere

fino ad assumere la figura del contratto inominato.9

Faz-se necessário destacar a importância que LETO atribui à causa do contrato.

Ainda que o conceito de causa, no âmbito das discussões sobre contratos, seja um

dos mais tormentosos, ele acaba sendo o ponto chave para que, posteriormente, as

questões relacionadas à obrigação gerada por fato social, sem manifestação de

vontade, sejam dirimidas.

5. Contratos Típicos e Atípicos no Direito Contemponâneo

Os doutrinadores que discorrem sobre os contratos típicos e atípicos geralmente

traçam a evolução destes institutos a partir dos contratos nominados e inominados

de Roma. Entre eles estão SILVIO DE SALVO VENOSA10, CAIO MÁRIO DA SILVA

PEREIRA11, ARNOLDO WALD

12 e ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO13.

No entanto, como já observado, é necessária muita cautela ao relacionar a

classificação de contratos nominados e inominados de Roma com a atual

9 LETO, p. 67.

10 VENOSA, p. 378 e 379.

11 PEREIRA, p. 51.

12 WALD, p. 258.

13 AZEVEDO, p. 112-117.

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classificação de contratos típicos e atípicos.

Observe-se que a distinção que hoje se faz entre contrato típico e atípico, como visto

na seção anterior, é em relação à existência de legislação própria para regular o

negócio. Portanto diz-se que o contrato é típico quando há tratamento legislativo

para o negócio e atípico quando o negócio é regulado apenas por normas gerais.

Portanto, a classificação dos contratos nominados e inominados fundava-se em

critério muito diverso daquele que inaugurou a classificação atual dos contratos

típicos e atípicos. A classificação dos contratos nominados e inominados em Roma

tinha como critério a exigibilidade e rigidez das formas para a sua celebração. A

diferença entre os atuais contratos típicos e atípicos encontra-se no critério da

previsão legislativa. Relembre-se que os contratos inominados em Roma, a

princípio, não tinham proteção jurídica, o que não ocorre com os contratos atípicos

em nosso ordenamento (art. 425 do Código Civil Brasileiro).

Por isso, é bastante apropriado o alerta de ORLANDO GOMES: “A distinção entre

contratos típicos e atípicos não corresponde à distinção romana entre contratos

nominados e inominados”.14

A referida distinção é analisada e problematizada da seguinte forma pelo professor

ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO: “se o problema dos romanos foi o de forçar o

aparecimento das formas de contratos inominados, o nosso é de não deixá-las ao

livre-arbítrio das partes, ante o perigo de uma liberdade não condicionada”15.

De fato, a dinâmica social e negocial de Roma esbarrou na rígida formalidade dos

seus contratos deixando sem proteção jurídica uma considerável gama de negócios

jurídicos. Já no nosso sistema, a admissibilidade de negócios jurídicos atípicos, ou

seja, negócios sem o tratamento legislativo específico, coloca os contraentes sob o

risco de uma liberdade exacerbada dando ensejo a abusos e desequilíbrios.

O elemento de maior importância no contrato romano era a forma – hoje é o acordo

de vontades. É evidente que em Roma os contratantes manifestavam a vontade, no

14 GOMES, p. 103.

15 AZEVEDO, p. 117.

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entanto esta manifestação era apenas um pressuposto fático para a contratação, pois

tal expressão de vontade não residia na essência do contrato.

Atualmente, pelo fato de inexistir disciplina própria para os contratos atípicos, as

partes gozam de maior liberdade contratual. Não ficam, no entanto, sem limites. As

disposições não poderão violar os princípios gerais do direito, os bons costumes e

as normas de ordem pública. Os valores de equidade e boa-fé devem sempre estar

presentes. MARIA HELENA DINIZ relembra que, nestes casos, “por não haver normas

que os esquematizem e regulamentem especificamente, os contratantes deverão

minudenciar as cláusulas contratuais o mais que puderem”16. De fato, por não haver

regras específicas na legislação acerca dos negócios atípicos, fica justificada a

recomendação no sentido de incluir no contrato regulamentos explícitos e

detalhados.

Deve-se observar que a tipicidade, entendida como o tratamento legislativo de tipos

contratuais, é forma de intervenção (controle) estatal sobre os negócios privados,

encontrando justificativa não apenas na preservação dos interesses sociais (proteção

dos contratantes mais fracos) mas também nos interesses estatais de tributação.

6. A Classificação dos Contratos Atípicos

ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO admite que a classificação dos contratos atípicos é um

tema “por demais complexo” e que muitos juristas de renome trabalharam sobre o

problema “muitas vezes sem resultado prático”.17 Dentre estes juristas ele cita

FRANCESCO MESSINEO, LUDWIG ENNECCERUS e HEINRICH LEMANN.

Geralmente tais classificações levam em conta a existência de elementos dos

contratos típicos. Cita-se, a seguir, a classificação de LUDWIG ENNECCERUS, com

acréscimo das ideias de HEINRICH LEHMANN, citada na obra de FRANCESCO

MESSINEO18:

16 DINIZ, p. 94.

17 AZEVEDO, p. 124.

18 Contratto inominato. Enciclopedia del Diritto. Milão: Giuffrè, 1962. P.102-103 apud AZEVEDO,

2009. p. 125.

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Contratos Combinados: um contratante obriga-se a várias prestações típicas

enquanto o outro promete uma contraprestação única.

Contratos de Tipo Dúplice ou Híbridos: todo conteúdo do contrato enquadra-

se em dois tipos contratuais diversos. Ex: Contrato de Portaria onde

encontram-se elementos do contrato de locação e elementos do contrato de

prestação de serviços.

Contratos Mistos em Sentido Estrito: As prestações têm elementos de mais

de um tipo contratual típico (com causa mista): Ex: transporte em vagão leito

(não é só transporte, mas também locação de coisa). Outro exemplo citado é

o de doação com elemento de venda, ou seja, venda de coisa abaixo do preço

(negotium mixtum cum donatione).

ORLANDO GOMES chama a atenção para o fato de que os contratos atípicos

geralmente são constituídos pela modificação de elementos característicos de um

contrato típico ou pela eliminação de um elemento secundário.19 Ele alerta para que

não se confunda o contrato misto com o contrato coligado. O contrato misto é uma

combinação de elementos de diferentes contratos. Já os contratos coligados não

constituirão apenas um contrato como o contrato misto, mas será uma união de

contratos onde se aplicará a cada contrato as regras próprias do tipo a que se ajustam,

podendo manter entre estes contratos as relações de dependência unilateral, bilateral

ou alternativa.

7. Do Tipo Social para o Tipo Jurídico

A doutrina, nas classificações do contrato em sua teoria geral, utiliza-se da

existência de tratamento legislativo como critério para classificar os contratos

típicos e atípicos. Tal tipicidade é a denominada “tipicidade legal” porquanto os

tipos contratuais são dados pela lei.

Dentre os contratos sem tratamento legislativo e, por isso, denominados de contratos

(“legalmente”) atípicos temos, geralmente, aqueles acordos socialmente aceitos cuja

gênese está num certo dinamismo das relações sociais. Contrata-se em razão de

19 GOMES, p. 103.

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práticas cristalizadas na sociedade a despeito da existência de normas específicas a

regular aquele negócio. Diz-se, portanto, que há, por trás destes contratos legalmente

atípicos uma verdadeira tipicidade social.

Observa-se, ademais, que tais tipos sociais, na medida em que se tornam largamente

difundidos, passam a ser objeto da atenção do legislador que, por sua vez, tende a

produzir normas regulando-os. Desta forma, o tipo social passa a ser tipificado

legalmente.

A tipicidade, portanto, é histórica – os tipos legais não são fixados de uma vez por

todas, mas conforme haja o reconhecimento, pelo legislador, daquelas operações

que sejam úteis e merecedoras de tutela20.

PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, ao discorrer sobre a tipicidade legal e social,

estabelece três categorias: (1) contrato legalmente típico, (2) contrato legalmente

atípico e socialmente típico e (3) contrato legalmente e socialmente atípico. Daí

deduz-se que só faz sentido classificar um contrato em termos de sua tipicidade ou

atipicidade social se ele for legalmente atípico, embora Vasconcelos admita a

existência de alguns raros contratos legalmente típicos, mas socialmente atípicos

(são os contratos tipificados na lei, mas que geralmente não se encontram na vida)21.

No Brasil, como exemplo de contrato legalmente típico, mas socialmente atípico

temos o pacto que estabelece o regime de bens de participação final nos aquestos.

8. Relações Contratuais de Fato. Tutela Jurídica.

Discute-se acerca da possibilidade de determinadas condutas, socialmente típicas,

gerarem obrigação para a parte que não manifestou vontade no sentido de

estabelecer o vínculo contratual. E mais: A discussão inclui situações nas quais o

indivíduo expressamente manifestou vontade no sentido de não contratar.

As questões que se impõem são as seguintes: Não manifestando o indivíduo a

vontade no sentido da contratação ou manifestando-se contrariamente ao vínculo

20 ROPPO, p. 134.

21 VASCONCELOS, p. 207.

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contratual poder-se-ia falar em surgimento de obrigação para ele? Em caso positivo,

esta obrigação teria natureza contratual ou teria outra fonte?

Por trás desta discussão está a disposição do jurista para admitir a flexibilização do

sentido clássico do conceito de contrato. Quem admite que na essência do conceito

do contrato está a autonomia da vontade terá dificuldades para aceitar a criação de

obrigações contratuais sem a manifestação de vontade. Os que, por outro lado,

admitem certa flexibilização no conceito de contrato terão maior facilidade para

aceitar as teorias que admitem a criação de obrigações contratuais a partir de fatos

sociais independentemente da manifestação de vontade.

GÜNTER HAUPT foi o precursor no estudo da teoria das relações contratuais de fato.

Ele entendia que certas relações contratuais se formam sem as correspondentes

manifestações de vontade. Segundo HAUPT, estas relações contratuais de fato

poderiam surgir a partir de três situações:

(1) Do contato social entre as partes em circunstâncias de potencialidade negocial

voltadas para o comércio jurídico ou a prestação de serviços (fase pré-contratual),

(2) Da participação em relações comunitárias que não tenha um ato constitutivo

formal ou cujo instrumento negocial seja nulo ou ineficaz (e.g. contrato fático de

trabalho) e

(3) Das relações envolvendo a prestação de serviços e bens essenciais.22

A teoria de HAUPT foi discutida e criticada por diversos doutrinadores que

discorreram sobre a mesma questão.

KARL LARENZ foi um dos que discorreu brilhantemente sobre o tema. Ele entendia

22 Um interessante exemplo de relação contratual de fato enquadrável na segunda hipótese de Haupt

(relação comunitária sem ato negocial válido) é aquele constante num parecer do Prof. Antônio Junqueira

de Azevedo. No caso em questão, houve diversas prorrogações de contrato administrativo sem prévia

licitação. O Ministério Público de São Paulo ajuizou Ação Civil Pública para a declaração de nulidade

dos aditivos com a consequente restituição dos lucros auferidos pela ré. A ação foi julgada procedente

em primeira e segunda instâncias. Em seu parecer, o Prof. Junqueira entendeu que em casos de declaração

de nulidade deve-se restabelecer o status quo ante. Mas diante da impossibilidade fática deste

restabelecimento, o juiz deveria examinar a equivalência entre as prestações já que o serviço já fora

prestado. Demonstrado que não houve dano para as partes, configurar-se-ia uma relação contratual de

fato tendo a empresa ré o direito à contraprestação pecuniária em face dos serviços prestados, a despeito

da nulidade do contrato.

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que “condutas socialmente típicas” poderiam resultar num vínculo obrigacional,

independentemente da expressão da vontade. Esta possibilidade deriva do

dinamismo e da efemeridade típicos das relações cotidianas. O que se deve levar em

consideração, portanto, é a atividade exercida pelas partes, deixando-se a

manifestação da vontade para um segundo plano. Trata-se de buscar um fundamento

objetivo, ou seja, é a conduta que passa a ser determinante para o estabelecimento

do vínculo obrigacional.

Faz-se necessário observar que, nas condutas que ensejam os referidos vínculos

contratuais de fato inexiste declaração de vontade. Mas esta vontade é aquela de

natureza negocial. Tal observação é imprescindível pois todo o ato pressupõe a

existência da vontade. Da mesma forma como, na introdução histórica, observou-se

que os negócios em Roma dependiam das formalidades e não da manifestação da

vontade, entendeu-se que mesmo lá a vontade era pressuposto fático para a

concretização dos contratos ditos nominados.

Um exemplo citado por LARENZ que ajuda a entender esta questão é o de um homem

que entra num bonde na Alemanha. Perto do destino o homem é assediado pelo

cobrador que lhe solicita o pagamento da passagem. O homem, então, diz que não

celebrou nenhum contrato, que jamais manifestara vontade expressa nesse sentido,

que não desejaria contratar e, finalmente, que sairia imediatamente do bonde. Não

tendo havido a celebração do contrato de transporte através da manifestação de

vontade do homem, é possível dizer que houve a criação de uma obrigação? LARENZ

entende que a declaração de vontade não precisa ser “expressa”, mas pode ocorrer

através de um “comportamento concludente”. Desta forma, o fato do homem entrar

no bonde criaria a obrigação de pagamento da passagem.

Da parte do empresário que desenvolve a atividade de transporte, a disponibilização

do bonde e dos funcionários é considerada o “comportamento concludente”. Mas o

que dizer da parte do homem que ainda não teve contato com o representante da

empresa de transportes? O que dizer da criação de obrigação se a vontade do homem

era apenas de andar de bonde e não de celebrar qualquer contrato de transportes?

LARENZ avança com suas ideias sobre a força do “contato social” a ponto de

entender que existe responsabilidade de natureza contratual mesmo sem a expressa

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manifestação de vontade no sentido de contratar. Bastaria neste caso observar-se a

“entrada em negociações” o que, para LARENZ, é suficiente para o estabelecimento

de relação obrigacional.23

GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA vislumbra na ideia de “causa

sinalagmática” a origem do vínculo obrigacional em situações nas quais, mesmo

sem consenso, observa-se deslocamento patrimonial. Sobre tais situações, ditas

“relações paracontratuais”, leciona:

Essas múltiplas situações fáticas – que envolvem

deslocamentos patrimoniais não justificados pela existência de

um contrato, nem pela ocorrência de um ato ilícito – têm sido

tratadas como fontes de obrigações, cujo fundamento se

denomina de causa sinalagmática. O patrimônio que foi

defasado deve ser compensado, como acontece, dentro do

princípio da reciprocidade, em qualquer relação patrimonial;

para a recomposição do patrimônio, descortina-se uma

verdadeira relação obrigacional.24

Embora reconheça que a causa contratual não foi adotada na legislação brasileira

como pressuposto de existência, nem como requisito de validade do negócio

jurídico, HIRONAKA entende que a causa é que justifica a prestação e contraprestação

sendo, portanto, um “fator de eficácia”. Em particular, a causa sinalagmática é capaz

de explicar a geração de obrigações a partir de relações fáticas que não se enquadram

naquelas fontes tradicionais das obrigações (lei, contrato e ato ilícito), sendo,

portanto, considerada também como uma fonte de obrigações.

9. Relações Contratuais de Fato em Nossos Tribunais

A jurisprudência pátria tem reconhecido, em determinados casos, as relações

contratuais de fato. Através da análise de alguns julgados, observa-se que a

23 LARENZ, Karl. Culpa in contrahendo, dever de segurança no tráfico e “contato social”. In: FACHIN;

TEPEDINO, p. 1194

24 HIRONAKA, p. 213

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configuração destas relações se dá em contexto diverso e com estrutura lógico-

jurídicas distintas.

Tome-se como exemplo, os fatos apreciados no Recurso Especial 915.322/MG.

Neste caso houve uma contratação de funcionário público sem concurso em

flagrante violação aos princípios constitucionais norteadores da administração

pública. No entanto, o fato da servidora ter trabalhado durante 8 anos, oferecendo

serviços como contraprestação dos seus vencimentos, levou a corte a reconhecer a

relação contratual de fato. Os julgadores entenderam que existiu um contrato,

embora inválido, mas que produziu efeitos sociais. A causa sinalagmática foi,

portanto, reconhecida de modo que o dano ao erário não foi configurado. Neste caso,

a estrutura jurídica da relação contratual de fato é típica da segunda hipótese

elencada por HAUPT: relações com instrumento negocial nulo.

Outro exemplo paradigmático, onde a relação contratual de fato foi configurada,

apresenta-se nos autos do Recurso Especial 120.719/SP. A ação trata da

responsabilidade do supermercado por danos ou furto a veículos estacionados no

estacionamento do estabelecimento comercial. O supermercado alegou não ter

celebrado contrato de depósito com o proprietário do veículo furtado não havendo,

portanto, responsabilidade de natureza contratual. Neste caso, o Ministro Ruy

Rosado de Aguiar (Relator), em seu voto, relembrou as lições de Mário Julio de

Almeida Costa:

Na contemporânea civilização de massas, segundo as concepções do

tráfico jurídico, existem condutas geradoras de vínculos

obrigacionais, fora da emissão de declaração de vontade que se

dirijam à produção de tal efeito, antes derivadas de simples ofertas e

aceitações de fato... A autonomia privada se realiza através de duas

formas típicas: uma delas é o negócio jurídico, designadamente o

contrato – no qual a aparência de vontade e as expectativas criadas

podem ceder, diante da falta de consciência de declaração ou

incapacidade do declarante; a outra reporta-se às relações contratuais

fácticas – onde a irrelevância do erro na declaração e das

incapacidades se justifica por exigências de segurança de celeridade e

demais condicionalismos do tráfico jurídico. (Mário Júlio de Almeida

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Costa. Direito das Obrigações. Ed. Almedina. 3ª ed. p. 179)

Note-se que a estrutura lógica para a configuração da relação contratual no caso da

responsabilidade pelos veículos do estacionamento é condizente com a primeira

hipótese apresentada por Haupt – o contato social em potencialidade negocial –

diversa da estrutura no caso da contratação de funcionário público sem concurso.

10. Contrato sem Negócio Jurídico e o Enriquecimento sem Causa

Ao discorrer sobre a possibilidade de relações de natureza contratual formadas sem

a manifestação de vontade, é inevitável a comparação com o instituto dos “quase-

contratos” presentes em Roma, no período Justinianeo.

Segundo JOSÉ CRETELLA JÚNIOR o quase-contrato é "o ato lícito e voluntário que

torna seu autor credor de outra pessoa, sem que tenha havido prévio acordo de

vontades entre ambas".25

JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES relembra a categoria das obligationes quasi ex

contractu das Institutas de Justiniano (Inst., III, 27) que enquadravam as obrigações

decorrentes de atos lícitos que não se traduzem em acordo de vontade.26 Estavam

incluídos neste rol a gestão de negócios, a tutela, a communio incidens, o legado e o

pagamento indevido.

Os quase contratos constituem, portanto, uma categoria jurídica que, juntamente

com o contrato, com a lei e com o ato ilícito, é fonte de obrigação. Atualmente, no

entanto, costuma-se fazer referência ao instituto do enriquecimento sem causa para

explicar as situações que outrora eram qualificadas como quase-contratos,

entendendo-se que o enriquecimento sem causa é fonte de obrigação.

Cabe perquirir se as obrigações nascidas das relações sociais – as relações

contratuais de fato, de HAUPT – ou as obrigações surgidas do “contato social” ou de

“comportamentos socialmente típicos”, como explicado por LARENZ, não teriam, na

realidade, como fonte, o enriquecimento sem causa.

25 CRETELLA JÚNIOR, p. 295.

26 MOREIRA ALVES, p. 567.

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Convém, antes de prosseguir nesta análise, relembrar a brilhante lição de FRANCISCO

CAVALCANTI PONTES DE MIRANDA sobre o enriquecimento sem causa. Num

interessante paralelo traçado com as hipóteses de dano no âmbito da

responsabilidade civil, PONTES DE MIRANDA afirma que “pode-se dar o dano pela

diminuição (damnum emergens), ou pela cessação do aumento do patrimônio

(lucrum cessans); e o enriquecimento, pelo aumento (lucrum emergens), ou pela

não-diminuição (damnum cessans).”27 Note-se a interessante forma de composição

das hipóteses pela troca dos adjetivos atribuídos aos substantivos. O lucro dito

cessante na responsabilidade civil passa a ser “lucro emergente” no enriquecimento

sem causa e o dano emergente passa a ser “dano cessante” na configuração do

enriquecimento lato sensu.

Desta forma, percebe-se que o enriquecimento pode ocorrer não apenas mediante o

aumento do patrimônio (lucro emergente), mas também através da cessação ou

evitação de uma despesa (dano cessante).

Desta forma, situações como as trazidas por LARENZ – o passageiro do bonde que é

transportado sem manifestar a vontade para celebrar contrato – poderiam ser

enquadradas como situações em que não há manifestação de vontade, mas há

economia de despesas (“damnum cessans”) configurando enriquecimento sem

causa.

Em seguida, à guisa de exemplo, será citado um exemplo de “contrato” legalmente

atípico, mas socialmente típico que, mesmo sem a expressa manifestação de vontade

de um dos contraentes (e até mesmo diante de sua discordância) tem gerado

obrigação de contraprestação.

11. A Obrigação do Pagamento de Taxas em Loteamentos

Um caso muito polêmico e comum no Brasil versa sobre a obrigação do proprietário

de imóvel situado em loteamento fechado pagar a taxa associativa como

contrapartida pelos serviços prestados pela associação que administra o loteamento

27 PONTES DE MIRANDA, p. 122

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(monitoramento, segurança, manutenção das vias e “áreas comuns”, etc).

Geralmente tais associações – que não devem ser confundidas com condomínio –

são estabelecidas pelo próprio loteador que, no momento do parcelamento do solo

urbano, vislumbra a alienação dos lotes por um preço superior ao de mercado pelo

fato dele estar situado num “loteamento fechado”.

A situação é atípica, pois não há legislação regulando loteamentos fechados. Trata-

se de uma zona urbana loteada, ou seja, solo urbano parcelado nos termos da Lei

6.766/79. Não se trata, como dito, de condomínio estabelecido nos termos da Lei

4.591/64. Geralmente a associação de moradores que administra o loteamento obtém

junto ao poder público municipal uma permissão para uso dos bens públicos e

fechamento das vias públicas com cancela, possibilitando a instalação de uma

guarita na entrada do loteamento.

As despesas que as associações têm com a manutenção e segurança do loteamento

são repassadas aos moradores através da cobrança da taxa associativa mensal. No

entanto, sabe-se que ninguém é obrigado a associar-se ou a permanecer associado

(art. 5º, XX, CF/88) de modo que o estatuto social da associação que prevê a taxa

não poderia, em tese, vincular terceiros não associados. Diante desta situação, o que

dizer do morador que se recusa a associar-se e, consequentemente, a pagar as taxas

associativas? Qual é a natureza jurídica da relação entre este morador e a associação?

O fato de adquirir um imóvel num loteamento administrado por este tipo de

associação pode ser considerado um “comportamento concludente”, como dizia

LARENZ, vinculando o morador ao pagamento das referidas taxas?

A jurisprudência é divergente em casos como estes. No Tribunal de Justiça de São

Paulo há posicionamento dominante no sentido de que o morador que se beneficia

dos serviços prestados pela associação, ainda que não tenha se associado, deve pagar

as taxas associativas em razão do princípio que veda o enriquecimento sem causa.

O seguinte julgado é representativo desta corrente:

Ementa: COBRANÇA LOTEAMENTO - ASSOCIAÇÃO CIVIL QUE

IMPLEMENTA MELHORIAS E PRESTA SERVIÇOS NA ÁREA

ONDE SE SITUA A PROPRIEDADE DO RÉU EMBARGANTE

SERVIÇOS INDIVISÍVEIS QUE BENEFICIAM INDIRETAMENTE

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TODOS OS PROPRIETÁRIOS DOS IMÓVEIS SITUADOS EM

BOLSÃO RESIDENCIAL VALORIZAÇÃO DO IMÓVEL -

OBRIGAÇÃO DE CONTRIBUIR RECONHECIDA, SOB PENA DE

ENRIQUECIMENTO ILÍCITO - IRRELEVÂNCIA DA NATUREZA

JURÍDICA DA ASSOCIAÇÃO E DA FORMAL ADESÃO DOS

MORADORES AOS SEUS QUADROS SENTENÇA DE

PROCEDÊNCIA MANTIDA RECURSO NÃO PROVIDO. - Apelação

Cível: 0005738-57.2007.8.26.0152, 5ª Câmara de Direito Privado, d.j.

28/05/2014. Relator(a): Erickson Gavazza Marques. (Grifou-se)

Perceba-se, no julgado acima, a menção à irrelevância da adesão dos moradores aos

quadros de associados, demonstrando um entendimento em favor da admissão da

existência de obrigação a despeito da inexistência de lei, de ato ilícito ou de

manifestação da vontade dos moradores no sentido da adesão.

Este posicionamento, apesar de ainda ser majoritário no Tribunal de Justiça de São

Paulo, vem se enfraquecendo nos últimos anos. O primeiro golpe foi dado pelo STF

no julgamento no RE 432106 / RJ, onde decidiu-se o seguinte:

ASSOCIAÇÃO DE MORADORES – MENSALIDADE –

AUSÊNCIA DE ADESÃO. Por não se confundir a associação de

moradores com o condomínio disciplinado pela Lei nº 4.591/64,

descabe, a pretexto de evitar vantagem sem causa, impor mensalidade

a morador ou a proprietário de imóvel que a ela não tenha aderido.

Considerações sobre o princípio da legalidade e da autonomia da

manifestação de vontade – artigo 5º, incisos II e XX, da Constituição

Federal. – Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 432106

/ RJ, d.j. 20/09/2011. Relator: Ministro Marco Aurélio.

O segundo golpe veio em março de 2015 quando o STJ, em sede de julgamento de

recurso repetitivo, firmou a seguinte tese após o julgamento do REsp 1.439.163/SP:

“As taxas de manutenção criadas por associação de moradores não

obrigam os não associados ou os que a elas não anuíram.”

Não obstante a decisão do STJ, muitas câmaras de direito privado do TJSP ainda

têm proferido decisões que condenam os moradores não associados ao pagamento

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das taxas associativas.

12. Conclusão

O estudo da tipicidade contratual, classificação que leva em conta a previsão e

tratamento legislativo, motivou o estudo da tipicidade social e sua potencialidade na

geração de obrigações mesmo sem a expressa manifestação de vontade do

contratante.

A possibilidade de celebração de contrato na ausência da vontade fere o conceito

clássico de contrato que tem na dimensão subjetiva (aspecto volitivo) seu elemento

essencial. O desafio está em encontrar um fundamento jurídico para justificar a

obrigação decorrente de determinados fatos sociais despidos de manifestação de

vontade, mas que implicam na exigência de prestações.

HAUPT fundamenta obrigação no que denominou “relações contratuais de fato”,

LARENZ se baseia no “contato social”. No entanto, diante da ausência da

manifestação de vontade, entendemos que a melhor forma de justificar as obrigações

que não derivam da lei e de atos ilícitos é através do princípio que veda o

enriquecimento sem causa em suas duas dimensões: o lucro emergente, entendido

como o acréscimo patrimonial e o dano cessante, entendido como a economia de

despesas.

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VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos

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