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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA A Mulher e a Soberania. Metáforas humanas e divinas da «Legitimação do Poder» na literatura épica grega e em paralelos indo-europeus. Ricardo Louro Martins Dissertação Mestrado em História e Cultura das Religiões 2012 1

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

A Mulher e a Soberania.

Metáforas humanas e divinas da «Legitimação do Poder» na literatura épica grega

e em paralelos indo-europeus.

Ricardo Louro Martins

Dissertação

Mestrado em História e Cultura das Religiões

2012

1

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

A Mulher e a Soberania.

Metáforas humanas e divinas da «Legitimação do Poder» na literatura épica grega

e em paralelos indo-europeus.

Ricardo Louro Martins

Dissertação orientada

pelo Prof. Doutor Nuno Simões Rodrigues

Mestrado em História e Cultura das Religiões

2012

2

Resumo

A literatura épica indo-europeia oferece-nos inúmeros exemplos de mulheres e deusas poderosas,

que longe de representarem apenas a passividade face à acção heróica masculina, expressam o

centro sobre o qual toda a acção épica se resolve. A mulher épica é por natureza aquela que dá,

detendo assim o papel mais simbólico quanto à soberania e reconhecimento da mesma, o qual se

expressa nas suas relações familiares e amorosas. A heroína épica, reflectindo princípios e

divindades femininas, possibilita compreender as crises terrenas aliadas das celestes, bem como o

processo de legitimação de um poder celeste no mundo e da preservação de uma dinastia, que são

com frequência representados no casamento e no contra-rapto legal. A compreensão da mulher épica

grega e indiana enquanto elemento legitimador, que afasta e congrega os elementos masculinos,

torna-se possível quando esta é libertada do seu contexto e comparada com outras mulheres e

deusas que lhe são semelhantes, permitindo elaborar uma origem e estrutura cultural indo-europeia.

Palavras-passe:

Mulher épica, Poder e legitimidade, Casamento indo-europeu, Antiguidade Clássica, Índia

antiga.

3

Abstract

The Indo-European epic literature gives us numerous examples of powerful women and

goddesses, who represent not only passivity against the masculine heroic action, but the core on

which all the epic action is resolved. The epic woman is by nature the one who gives, holding the

most symbolic role as the sovereignty and recognition, which is expressed in their family and

amorous relationships. The epic heroine, reflecting principles and female divinities, allows the

understanding of the celestial crises combined with earthly crises, as well as the process of

legitimation of an heavenly power in the world and the preservation of a dynasty, which are often

represented in marriage and legal reabduction. The understanding of greek and indian epic woman

as legitimizing factor, that alienates and brings together the masculine elements, becomes possible

when she is released from its context and is compared to other women and goddesses that are

similar to her, allowing to elaborate an Indo-European origin and cultural structure.

Keywords:

Epic women, Power and Legitimacy, Indo-european marriage, Classical Antiquity, Ancient India.

4

Índice

Resumo 3Palavras-chave 3Abstract 4Keywords 4Índice 5Lista de abreviaturas e siglas 7Observações preliminares 9Nota quanto à transliteração 10Introdução ao Tema 12Agradecimentos 19

Capítulo I (O “princípio feminino”: Śakti e Hera)1.1. Introdução 201.2. A “Mulher” indo-europeia 221.3.1. Śakti 241.3.2. O arremesso e a posse de Śakti 281.4.1. Hera 301.4.2. Hera como “limite” 34

Capítulo II (As esposas celestes: Śrī e Afrodite)2.1. Introdução 372.2. Śrī 382.3. Afrodite 45

Capítulo III (As deusas que “descem”: o nascimento das heroínas épicas)3.1. Introdução 553.2. Sītā 563.3. Helena 643.4. Draupadī 693.5. Penélope 713.6. A mulher e o pilar 74

Capítulo IV (As esposas épicas: tipos de casamento e metáforas à legitimação)4.1. O casamento no mundo indo-europeu 784.2.1. Paradigmas do rapto legítimo: O rākṣasa das princesas de Kāśi, de Subhadrā e de Iole 894.2.2. Paradigmas do rapto ilegítimo: O rākṣasa de Helena, de Sītā, de Draupadī e de Dina 934.2.3. A legitimação do rapto ilegítimo: O rākṣasa das Sabinas, de Perséfone e de Tārā 1054.3.1. O tópico da “legitimação” no svayaṃvara de Penélope e no rājasūya de Ulisses 1114.3.2. O svayaṃvara de Draupadī e rājasūya de Yudhiṣṭhira 1394.3.3. O svayaṃvara de Helena e o reconhecimento dos Aqueus 1514.3.4. O “svayaṃvara” de Sītā e o rājasūya de Rāma 1554.4. Calipso e Hiḍimbā: Paradigmas de uma soberania destruída 157Conclusão 163Anexos 167Bibliografia 169

5

य� नाय�स् तु पू �े रम�े त� देवताः

Onde as mulheres são honradas, aí os deuses estão satisfeitos

ManuS 3.56a

6

Lista de abreviaturas e siglas

IE Indo-Europeus

PIE Proto-Indo-Europeus

ABORI Annals of the Bhandarkar Oriental Research Insitute

AFS Asian Folklore Studies

ArthaŚ Arthaśāstra

BhG Bhagavadgītā

CA Classical Antiquity

DELG Dictionnaire Étymologique de la Langue Grecque

DGRBM Dictionary of Greek and Roman Biography and Mythology

DMGR Dicionário da Mitologia Grega e Romana

DSF Dictionnaire Sanskrit-Français

EC Edição Crítica do Mahābhārata

EDL Etymological Dictionary of Latin and other Italic Languages

EIE Études Indo-Européennes

EIEC Encyclopedia of Indo-European Culture

EMH Études de Mythologie Hindoue

GEF Greek Epic Fragments

HH Hinos Homéricos

HO Hinos Órficos

HR History of Religions

HV Harivaṃśa

IEPM Indo-European Poetry and Myth

IEW Indogermanisches Etymologisches Wörterbuch

IJPS The Indian Journal of Political Science

Il. Ilíada

JAOS Journal of the American Oriental Society

KEWA Kurzgefaßtes Etymologisches Wörterbuch des Altindischen

ManuS Manusmṛti

MBh Mahābhārata

NCO A Narratologial Commentary on the Odyssey

Od. Odisseia

Rām. Rāmāyaṇa

RHR Revue de l'Histoire des Religions

ṚV Ṛgveda

7

SBE Sacred Books of the East

SED A Sanskrit-English Dictionary

ŚpBr Śatapatha Brāhmaṇa

ViPur Viṣṇu Purāṇa

As abreviações das fontes gregas seguem o modelo usual, podendo este ser encontrado em

qualquer dicionário de Antiguidade Clássica. Na Bibliografia podem ser encontradas as referências

completas das obras que são ao longo do texto citadas de forma abreviada.

8

Observações preliminares

Face à inexistência de uma tradução completa do Mahābhārata (salvo as de Ganguli, Dutt e

Fauche,1 que pouco oferecem a um trabalho de investigação), foram utilizadas neste estudo várias

traduções: as do projecto The Clay Sanskrit Library (Maha-bhárata, 10 vols, New York, New York

University Press e JJC Foundation, 2005-2009) livros II-XII, e a tradução de J.A.B. van Buitenen e

James L. Fitzgerald (The Mahābhārata, 3 vols., University of Chicago Press, 1973-81), livros I-V.

Ainda que estas versões utilizem diferentes versões do MBh, e por isto numerações diferentes, estas

foram estruturadas e apresentadas neste estudo de acordo com a numeração da Edição de Mumbai,2

que apresenta o comentário de Nīlakaṇṭha Śāstrī (do final do séc. XVII), conhecida por “Vulgata”.

Nas citações que não estão traduzidas em nenhuma das versões ditas recomendáveis (colecção The

Clay Sanskrit Library; J.A.B. van Buitenen e James L. Fitzgerald), procedeu-se à tradução directa

do sânscrito, com base nas correcções da EC (Edição Crítica do Mahābhārata3), seguindo-se, no

entanto, as traduções das versões completas (as de Ganguli e Dutt).

O mesmo problema sucede com o Rāmāyaṇa, para o qual utilizados as traduções da colecção

The Clay Sanskrit Library (Ramáyana, 5 vols., New York, New York University Press e JJC

Foundation, 2005-2006), livros I-V, e a já ultrapassada tradução completa de Ralph Griffith

(Rámáyan of Válmíki, Londres, Trübner & Co., 1870-1874).

1 Hippolyte Fauche, Le Mahâbhârata: poème épique de Krishna-Dwaipayana, traduit complètement pour la première fois du sanscrit en francais, 10 vols., Paris, Impr. Imperiale, 1863-1870. Com a morte do tradutor, a tradução dos livros X-XII foi continuada por L. Ballin (pela Ernest Leroux, 1899). Tradução de leitura difícil e pouco fiel; Kisari Mohan Ganguli, The Mahaharata of Krishna-Dwaipayana Vyasa Translated into English Prose from the Original Sanskrit Text, 11 vols., Calcutta, Bharata Karyalaya Press, 1884-1896. Esta e uma tradução fiel e agraciada pelo facto de se encontrar inteiramente disponível on-line em varias bases de dados. Contudo, ao ter sido traduzida em prosa, sem referir os versos, pode colocar algumas dificuldades ao leitor, em especial àquele que a utiliza num trabalho de investigação; Manmatha Nath Dutt, The Mahabharata, Sanskrit text and English translation, 3 vols., Calcutta, Elysium Press, 1895-1905. tradução que tem a vantagem ter sido feita em verso (baseando-se na tradução de Ganguli) e a desvantagem de algumas passagens terem sido reconstruidas de forma a não chocar a sociedade britânica, como a omissão de designações de carácter sexual, o que faz da tradução um trabalho menos fiavel do que aquele de Ganguli.

2 Vasudev Batacharya Ainapure (ed.), Mahābhārata with Bhāvadīpa commentary of Nīlakaṇṭha, 6 vols., Bombay, Gopal Narayan and Co., 1901. Reimpresso pela Citrashala Press em 1929-1936 (Puna) e 1979 (Delhi).

3 V. S. Sukthankar, S. K. Belvalkar, P. L. Vaidya (edd.), The Mahābhārata for the First Time Critically Edited, 19 vols., Puna, Bhandarkar Oriental Research Institute, 1933-1972.

9

Nota quanto à transliteração

De acordo com o IAST (International Alphabet of Sanskrit Transliteration), a correcta

transliteração do alfabeto devanāgarī para as línguas ocidentais, implica a adopção de um conjunto

de novos caracteres. Desta forma, para que se possam ler correctamente os sons do sânscrito na

língua portuguesa, apresentam-se de forma abreviada as regras de transliteração e leitura.

O devanāgarī consiste em 13 vogais, 33 consoantes e dois signos especiais. Cada uma das

consoantes contém vogal a que lhes é inerente: क k(a), च c(a), य y(a), etc., esta vogal pode ser

substituída por outra ou anulada mediante signos específicos: क ै(kai), का (kā), क ्(k), e desaparecer

nas “ligações” entre consoantes: � (śra), � (tva), �ा� (rspā), etc.

As vogais que não apresentem o macron (ˉ) como अ (a), उ (u), ए (e), ओ (o) ऋ (ṛ), devem ler-se

sempre breves e fechadas, sendo que os sons e e o nunca são abertos e lêem-se sempre ê e ô. As

vogais cuja transliteração apresenta o macron: आ (ā), ई (ī), ऊ (ū), ॠ (ṝ), devem ler-se abertas e

longas, bem como os ditongos ऐ (ai), e औ (au). Algumas consoantes devem ser lidas de forma

expirada: ख (kha), घ (gha), छ (cha), झ (jha), ठ (ṭha), ढ (ḍha), थ (tha), ध (dha), फ (pha), भ (bha).

Alguns sons alteram significativamente da sua leitura no português, como é o caso de ज (ja) e झ

(jha), que devem ler-se dja e djha respectivamente, e em “ligações” como 2 (jña), pode ser lido

djnha ou gya. O फ (pha) não se lê fa mas sim pa expirado. च (ca) e छ (cha) lêem-se tcha e não ca.

Os signos ऋ (ṛ) e ॠ (ṝ) devem-se ler-se ri, como em Maria. Os sons ङ (ṅa), ञ (ña), ण (ṇa), न (na), e

म (ma), chamados “nasais”, não marcam uma pausa nem representam na palavra uma pausa na

respiração. Os sons sibilantes श (śa) e ष (ṣa) lêem-se cha, e स (sa) lê-se sempre s, nunca tomando os

seus valores de z e x como sucede no português. Os sons mais complicados para os falantes de

língua portuguesa serão os retroflexos: ट (ṭa), ठ (ṭha), ड (ḍa), ढ (ḍha), ण (ṇa), ष (ṣa), e र (ra), em que

a língua deve tocar a “abóbada palatina”. O signo anusvāra �ं (ṃ) dá um carácter nasal à vogal

sobre a qual actua e corresponde ao til (~) no português. Por exemplo क: ं(kanyaṃ) ler-se-á caniã.

10

O som do signo visarga ं� (ḥ) é expirado, fazendo eco da sílaba anterior. Por exemplo क:ाः

(kanyāḥ) ler-se-á caniáhá.

O grego oferece uma maior facilidade no que toca à sua transliteração e leitura, bem como uma

vasta tradição académica em Portugal, pelo que referiremos apenas a utilização do macron (o

alongamento da vogal), em que o eta (η) é transliterado por ē, e o omega (ω) por ō.

Quanto à transliteração do indo-europeu, remeteremos os nossos leitores para uma obra (de entre

várias) que define alargadamente a correcta leitura destes sons, veja-se: “Phonetic Definition” in

EIEC.

11

Introdução ao tema

O estudo comparativo entre divindades e personagens femininas na épica indo-europeia que

apresentamos, nasceu do reconhecimento de paralelos existentes na literatura épica, bem como em

todo o corpus literário, mitológico e legislativo das duas culturas.

Para a escolha do tema foram fundamentais as aulas das cadeiras e seminários de História,

Cultura, Arte, Ideias Políticas, Mitologia e Religião da Antiguidade Clássica, ministradas pelo

Professor Doutor Nuno Simões Rodrigues, que frequentámos ao longo da Licenciatura e Mestrado

(2007-2011), e que nos sugeriram, através do aprofundamento das problemáticas helenísticas e da

referência aos seus respectivos paralelos orientais, bem como da questão do feminino na

Antiguidade, determinar a importância de um estudo comparativo em torno da mulher épica.

Esta análise de alguns paralelos indo-gregos coloca-nos o desafio de uma dimensão geográfica e

cronológica pouco delimitadas, bem como narrações literárias que radicam na tradição oral.

Desafios que nos tornam alheios, com alguma facilidade, à comunidade e temporalidade que as

gerou com um sentimento de concepção muito próprio e quiçá bem delimitado. Este facto levou-nos

a estabelecer uma especificidade determinada: a análise do feminino no contexto comparativo indo-

europeu, em especial na literatura épica. A comparação sistemática entre os dois universos permite-

nos descobrir estruturas subentendidas nas diversas formas épicas, uma simbólica aparentemente

comum e um objectivo fundacional e moralizador que caminha nas mesmas direcções, que são

essencialmente éticas e que radicam em questões religiosas e legislativas. Esta simbólica comum e

inerente ao feminino na Antiguidade Greco-Romana e Indiana, torna-se clara nos paralelos

linguísticos e nos tópicos mitológicos, como são os casos do rapto, do casamento e do

reconhecimento do soberano que se constrói ao longo da narrativa: questões para as quais

procuraremos respostas essencialmente estruturais e desvinculadas do seu espaço específico.

Ao investigador e leitor ocidental que toma contacto com a cultura indiana antiga, acostumado à

literatura épica e mitológica greco-romana, serão difíceis de ignorar os inumeráveis paralelos gregos

presentes no vasto corpus literário do sub-continente indiano. O que procuramos não é apenas dar a

conhecer, ou recordar, os paralelos indo-gregos, mas principalmente apresentar o seu cruzamento e

interpretação, enriquecendo esta área de estudos pouco desenvolvida no panorama nacional,

levantar novas questões, e responder, de acordo com o nosso método comparativo, a algumas

questões que nos têm assaltado ao longo das últimas décadas, séculos, e porque não, milénios: Qual

o motivo do rapto de Helena e de uma guerra causada por este mesmo rapto? Por que surgem

pretendentes em Ítaca, quem é Penélope e por que tece enquanto aguarda pelo seu marido? Qual o

papel da mulher na construção do herói, na idealização da legitimidade e na estrutura da casa e do

12

reino? Por que depende tanto o marido da sua esposa? Etc..

Por outro lado, procuraremos atenuar, sempre através do método comparativo, o sentimento de

alteridade com que o leitor ocidental menos preparado se depara com frequência durante os

primeiros contactos com a literatura indiana antiga, e que representam algumas dificuldades de

interpretação. Para estas questões existem um sem-número de introduções que poderão solucionar

gradualmente esta alteridade,4 bem como o método comparativo, que permite vincular, com fortes

laços, os tópicos indianos àqueles greco-romanos que já persistem na nossa estrutura mental e

ocidentalizada, transformando e elevando os episódios e as personagens em conceitos e correntes de

pensamento, afastando-as momentaneamente da sua morada restritiva. Procuraremos desta forma

atrair a atenção tanto de Classicistas como de Indólogos, bem como de Indo-europeístas, para

alguns paralelos que a literatura grega encontra na literatura indiana, que permitem responder

essencialmente a algumas questões dos épicos gregos, as quais não se resolverão tão facilmente se

isoladas no seu espaço, bem como a algumas das questões suscitadas pela épica indiana, procurando

unir as duas realidade num diálogo inter-cultural em torno do feminino enquanto conceito simbólico

e realidade funcional de uma super-comunidade indo-europeia.

O termo indo-europeu (IE) foi primariamente aplicado pela Linguística à família de línguas que

até à dois mil anos se estenderam desde a Ásia Central até ao Sul da Ásia, Planalto Iraniano,

Anatólia e Europa.5 Poderíamos dizer de forma propositadamente simplista que são as línguas que

se estenderam (desde determinada realidade na Ásia Central) até ao Ganges e ao Tejo, de entre as

quais se poderão destacar neste estudo as indo-iranianas, helénicas e itálicas, que revelam uma

língua ancestral comum e arquetípica, uma proto-forma linguística designada proto-indo-europeu

(PIE). As evidências arqueológicas e a reconstrução de vocabulário de uma “cultura” IE podem

recuar até 7000 a.C., não subentendendo no entanto uma separação ou movimentação, mas sim uma

indiferenciação generalizada dos signos utilizados. Esta separação ter-se-á dado por volta de 2500

a.C..6 A unidade linguística e comunitária greco-ariana7 surgiu em c. 2500 a.C. e subdividiu-se no

grego e no indo-iraniano por volta de 2300 a.C., tendo a sua origem nos Balcãs orientais e nas

regiões Pônticas.8 Neste trabalho, analisar-se-ão comparativamente alguns tópicos do género

4 Destaca-se a obra de Madeleine Biardeau: L'hindouisme: Anthropologie d'une civilisation, Paris, Editions Flammarion , 2009.

5 “Introduction” in IEPM, p. 1.6 “Indo-European Homeland” in EIEC.7 O termo “ário” ou “ariano” refere o grupo linguístico indo-iraniano.8 Cf. “Introduction” in IEPM, p. 10. Não será nosso objectivo definir aqui as afinidades linguístico-culturais IE,

definição que tem vindo a ser desenvolvida desde pelo menos o final do séc. XVI. Contudo, será importante, se bem que lógico, explicitar que um ancestral linguístico subentende um ancestral cultural (estrutural, mítico-religioso e ideológico), que permite desde o séc. XIX, com o surgimento da obra de Franz Bopp (Über das Conjugationssystem der Sanskritsprache in Vergleichung mit jenem der griechischen, lateinischen, persischen und germanischen Sprache: Nebst Episoden des Ramajan und Mahabharat und einigen Abschnitten aus den Vedas, Frankfurt, Andreae, 1816), o desenvolvimento de uma metodologia de estudos comparativos entre as várias sub-culturas IE. Para a questão veja-se essencialmente: EIEC; IEPM; IEW; Tomas Gamkrelidze, Vyacheslav Ivanov, Indo-European and the Indo-Europeans,

13

literário épico da Índia e Grécia antigas, com base numa comunidade linguística ancestral comum, o

IE, que «não pode ser a de um império nem a de uma confederação, mas necessariamente a de um

povo migrador».9 Em especial os tópicos indianos que se encontram na literatura grega: a questão

do feminino (princípio feminino, lugar, voz e acção da mulher); da legitimidade (casamentos e

reconhecimento); do herói (obtenção da masculinidade, da esposa, do reino e da fama); e a relação

entre as heroínas e as deusas. A análise da narrativa épica será comparada, sempre que estes

forneçam novos dados interpretativos, com os fragmentos épicos, hinos, contos e teorizações

religiosas, legislativas e rituais de ambos os espaços. A par das comparações, procura-se igualmente

sugerir em casos muito concretos o que poderão ser as influências horizontais, da Grécia para a

Índia e vice-versa. Este estudo conta ainda com o objectivo de iniciar em Portugal o estudo

comparado destas duas culturas, que se tem comprovado como uma análise de inquestionável

pertinência para a definição e interpretação de elementos mitológicos e culturais dos dois espaços

geográficos.

Os estudos sobre as relações entre a Grécia e a Índia têm sido levados a cabo principalmente por

Indólogos que procuram dar soluções às questões gregas com base na cultura indiana, mas também,

e de forma gradual, por Classicistas que trabalham a questão da alteridade e do “bárbaro” na

literatura grega. Contudo estes estudos centram-se na comparação entre tópicos mitológicos e pouco

na sua re-interpretação. Entre eles alguns trabalhos que se aproximam do objectivo deste trabalho

merecem destaque, principalmente os dois artigos da aplicação da legislação indiana ao casamento

grego de Stephanie Jamison,10 que propõe várias respostas ao comportamento de Helena em Tróia e

de Penélope em Ítaca. Calvert Watkins11 desenvolve um modelo de comparação entre as várias

comunidades indo-europeias, sugerindo continuamente as inúmeras obras que estão por analisar

comparativamente, e a importância do método comparativo para a interpretação de cada uma destas

culturas. A análise comparativa de alguns elementos épicos gregos e indianos num panorama

trifuncional IE de Georges Dumézil,12 análise que estará um pouco ultrapassada pelo facto de nem

todas as personagens humanas e divinas se inserirem concretamente nesta esquematização. Também

Wendy Doniger13 leva a cabo algumas comparações entre mitos gregos e indianos, analisando os

Berlin, Mouton de Gruyter, 1995; Émile Benveniste, Le Vocabulaire des Institutions Indo-Européennes, Paris, Éditions de Minuit, 1969; J.P. Mallory, In Search of the Indo-Europeans, London, Thames and Hudson, 1989; etc..

9 Jean Haudry, Les Indo-Européens, Paris, PUF, 1981, p. 4.10 “Draupadi on the Walls of Troy: Iliad 3 from an Indic Perspective”, CA 13/1, 1994; “Penelope and the Pigs: Indic

Perspectives on the Odyssey”, CA 18/2, 1999.11 How to Kill a Dragon: Aspects of indo-european poetics, New York, Oxford University Press, 1995.12 Mythe et Épopée I: L´idéologie des trois fonctions dans les épopées des peuples indo-européens, 1968, Paris,

Gallimard, 1968.13 Splitting the Difference: gender and myth in ancient Greece and India, Chicago, The University of Chicago

Press, 1999.

14

duplos e as divisões na mitologia indo-grega, numa interpretação recorrentemente psicanalítica.

Wulff Alonso14 compara alguns elementos do Mahābhārata com a Ilíada, partindo do princípio que

a influência é grega, e que se deu com a chegada dos gregos de Alexandre à Índia, facto que é

facilmente contrariado, através da aproximação linguística, mitológica e “jurídica” entre o

Mahābhārata e o Ṛg Veda (1500-1000 a.C.). No entanto, Wulff Alonso analisa a importância das

mulheres nos dois épicos e chega mesmo a sugerir que Helena representa a legitimidade de

Menelau, e que esta é a causa da guerra de Tróia,15 analisando com frequência a mulher

(essencialmente Helena e Draupadī) enquanto causa da destruição. Os estudos comparativos são

com frequência construídos em torno das semelhanças linguísticas e culturais, e para este método

comparativo será muito útil a enciclopédia editada por Mallory e Adams,16 que se destaca acima de

muitos outros estudos, como o ainda actual de Émile Benveniste.17 No entanto, raras são as vezes

em que se comparam as semelhanças legislativas e rituais, como fez Bernard Sergent.18 Destaca-se

ainda o trabalho de Martin L. West,19 que apresenta inúmeras e valiosas comparações entre as

mitologias, os rituais e o imaginário do mundo indo-europeu. Alf Hiltebeitel,20 Sukumari

Bhattacharji21 e Madeleine Biardeau,22 ainda que não dediquem estudos à comparação indo-grega,

sugerem diversas vezes paralelos linguísticos e culturais entre as duas culturas.

No panorama nacional a questão é delicada, visto que não existe uma tradição de estudos

comparativos entre a Índia e a Grécia, nem uma tradição de estudos indológicos, não havendo por

isso estudos sobre os olhares e influências entre as duas culturas, nem uma análise consistente da

cultura indo-europeia, em especial daquela greco-ariana. Salientamos no entanto o contributo, não

raras vezes fundacional, dos professores Guilherme de Leite Vasconcelos e Luís Filipe Thomaz, nas

questões linguísticas e histórico-culturais da Índia Antiga, cujas aulas e estudos definiram a base a

partir da qual a Indologia portuguesa deverá dar os seus primeiros passos.

O presente estudo segue mutatis mutandis o método comparativo definido por Calvert Watkins,23

adoptando leituras que radicam no estruturalismo. Aqui, comparam-se essencialmente as estruturas

éticas, legislativas e simbólicas, bem como os panteões celestes e organizações familiares

14 Grecia en la India. El repertorio griego del Mahabharata, Madrid, Akal, 2008.15 Wulff Alonso, Grecia en la India. El repertorio griego del Mahabharata, Madrid, Akal, 2008, p. 296.16 Encyclopedia of Indo-European Culture, Londres, Fitzroy Dearborn Publishers, 1997.17 Le Vocabulaire des Institutions Indo-Européenes, vol. I, Paris, Les Éditions de Minuit, 1969.18 Athéna et la grande déesse indienne, Paris, Les Belles Lettres, 2008.19 Indo-European Poetry and Myth, Oxford University Press, Oxford, 2007.20 Vishwa Adluri, Joydeep Bagchee (edd.), Essays by Alf Hiltebeitel, 2 vols., Leiden, Brill, 20 11.21 The Indian Theogony: a comparative study of Indian mythology from the Vedas to the Purāṇas, Cambridge,

Cambridge University Press, 2007.22 Le Mahābhārata: Un récit fondateur du brahmanisme et son interprétation, 2 vols., Paris, Éditions du Seuil,

2002. 23 How to Kill a Dragon: Aspects of indo-european poetics, New York, Oxford University Press, 1995, p. 6.

15

subentendidas nos dois espaços geográficos. As interpretações representam igualmente, em alguns

momentos, aproximações à psicanálise. Todo o estudo é construído com base na comparação entre

as várias fontes literárias, encontrando-se os paralelos e as diferenças entre eles. Este método

comparativo inicia-se na observação de várias culturas que partilham várias semelhanças que não

derivam de coincidências, nem da influência de uma cultura sobre outra, mas sim de uma origem

comum. Estas semelhanças definem a existência de uma origem comum, em que o comparatista

assume a existência de uma “filiação genética” entre as línguas, que descendem de uma proto-

linguagem.24 Este método deverá caminhar livremente entre a interpretação linguística sincrónica

(daquilo que permanece estático) e a diacrónica (daquilo que evolui), o campo histórico e o teórico,

o genético e o tipológico.25

Os gregos e os indianos terão recebido do período IE uma tradição literária oral que sustenta as

suas semelhanças. Esta origem explica o discurso, mas também o modo de pensar, que seria

semelhante entre as duas culturas,26 encaminhando-nos gradualmente para um restauro linguístico, e

consequentemente cultural, original e arbitrariamente inicial.27 Restauro esse que permite interpretar

alguns tópicos literários, que vão além do seu espaço geográfico e ideológico.

A comparação e a interpretação dos paralelos presentes nas fontes indianas e gregas,

considerando sempre a sua origem oral, permitem-nos apontar a uma unidade linguístico-cultural

greco-ariana, que terá ocorrido pelo menos entre 2300 a.C. e 1600 a.C., ou a uma aculturação mais

tardia de proveniência externa, iraniana por exemplo.28 Alguns textos de linguagens comparáveis,

exibem semelhanças que sugerem uma origem, gerando, segundo o termo de C. Watkins, uma

“intertextualidade genética” que permite uma maior compreensão dos textos em si e do seu

significado, sugerindo um proto-texto e um proto-significado.29 É sobretudo esta nova significação,

com base na interpretação das origens, que procuramos conferir a este estudo.

Não se poderá por isto pretender que um épico seja apenas um tratado de verdades

herméticamente cosidas ao longo da narrativa, nem que se trata de um reflexo fiel da realidade

sócio-política da época que o viu nascer, dado que não a conhecemos. A tradição épica, semelhante

na Grécia e na Índia, sugere que já não se expressa como registo histórico, e o facto de ter sido

24 Calvert Watkins, “The comparative method in linguistics and poetics” in How to Kill a Dragon: Aspects of indo-european poetics, New York, Oxford University Press, 1995, p. 4.

25 Calvert Watkins, “The comparative method in linguistics and poetics” in How to Kill a Dragon: Aspects of indo-european poetics, New York, Oxford University Press, 1995, p. 6.

26 Cf. Calvert Watkins, “Sketch for a history of indo-european poetics” in How to Kill a Dragon: Aspects of indo-european poetics, New York, Oxford University Press, 1995, p. 27.

27 Calvert Watkins, “The comparative method in linguistics and poetics” in How to Kill a Dragon: Aspects of indo-european poetics, New York, Oxford University Press, 1995, p. 4.

28 Cf. Martin L. West, “Introduction” in Indo-European Poetry and Myth, Oxford, Oxford University Press, 2007, pp. 20-22.

29 Cf. Calvert Watkins, “The comparative method in linguistics and poetics” in How to Kill a Dragon: Aspects of indo-european poetics, New York, Oxford University Press, 1995, p. 10.

16

mantida pela tradição oral comprova que não se dirige em específico a nenhuma época, porque se

alienou da origem temporal. Também não pertencerá a nenhum espaço, adaptando-se

posteriormente a locais e tempos muito específicos. Desta forma, a consistência deste tipo de

literatura encontra-se nos estados mentais, correntes de pensamento e simbólica destas

comunidades.

No primeiro capítulo deste estudo «O “princípio feminino”: Śakti e Hera» analisam-se

comparativamente as esposas celestes, Śakti e Hera, a fim de encontrar e delimitar o conceito de

śakti (“poder”, “esposa” e “lança”) na literatura e idealização indiana, grega e também romana.

Conceito este que será evocado ao longo de todo o estudo, definindo com frequência a posição e

função legitimadora, e o comportamento das personagens femininas, desde o princípio feminino até

à heroínas épicas. A comparação é comprovada através de uma análise etimológica sistemática, bem

como através da comparação mitológica, que é aplicada igualmente à filosofia e imaginário das

duas realidades culturais, com base na pré-existência de uma linguagem comum que terá gerado

uma estruturação do mundo e uma simbólica semelhantes. A gramática comparada, quando o

significado (que persiste ao longo de séculos praticamente inalterável!) é pertinente, gera fórmulas

que são veículos de tópicos, tópicos que na sua totalidade geram a percepção cultural de uma

sociedade,30 como é notório no caso dos conceitos de “poder”, “esposa” e “lança”.

No segundo capítulo «As esposas celestes: Śrī e Afrodite», depois de definida a significação do

feminino nas culturas abordadas, analisar-se-á essencialmente a ideia de deusa relacionada com o

“amor” e a “prosperidade”, no panorama indiano e grego, nomeadamente Śrī e Afrodite.

Apresentaremos a sua origem celeste e nascimento a partir das “águas”, bem como a função de

receptáculo para as esposas celestes (Śakti e Hera) e a interação com as heroínas épicas. Estas

deusas serão analisadas conforme o seu papel igualmente legitimador, que confere a soberania a

deuses e reis.

O terceiro capítulo «As deusas que “descem”: o nascimento das heroínas épicas», é consagrado à

análise comparada do nascimento das quatro heroínas épicas, Sītā, Draupadī, Helena e Penélope.

Estas mulheres representam, até certo ponto, a subdivisão ou materialização das divindades

analisadas no segundo capítulo, Śrī e Afrodite, situação confirmada pelas comparações poéticas,

encarnações terrenas, e reflexos simbólicos que definem as deusas como guias e as mulheres épicas

como guiadas, repetindo-se umas nas outras, completando-se, e definindo a necessidade épica da

existência passiva da legitimidade e do reconhecimento do soberano e herói.

No quarto capítulo «As esposas épicas: tipos de casamento e metáforas à legitimação»,

analisamos a complexidade dos tipos de casamento IE, a sua legitimidade e os efeitos épicos de tais

30 Calvert Watkins, “The comparative method in linguistics and poetics” in How to Kill a Dragon: Aspects of indo-european poetics, New York, Oxford University Press, 1995, p. 9.

17

casamentos. Esta análise dá-nos uma nova significação das mulheres épicas poderosas e da sua

função matrimonial, que subentende a raiz do “poder” e da “autoridade” do seu marido. Esta

realidade é encontrada nos casamentos, raptos e tentativas de usurpação da mulher épica, nas

realidades indiana, grega e romana.31 É neste capítulo que residirá a formulação teórica e completa

do feminino épico, bem como a interpretação do papel centralizador das quatro heroínas analisadas

no episódio anterior, que serão aqui comparadas com outras raparigas e deusas que permitem traçar

paralelos e definições concretas.

31 Estendendo-se ainda à realidade semita, com o exemplo de Dina.

18

Agradecimentos

Resta-nos um profundo agradecimento a todos aqueles sem os quais este estudo não teria seria

possível. Em especial ao Professor Doutor Nuno Simões Rodrigues (FLUL), pela sua orientação,

dedicação e exemplo constantes, que permitiram a este estudo plasmar-se e chegar a bom porto. Ao

Professor Doutor Luís Filipe Thomaz (UCP), pelas inúmeras sugestões quando aos tópicos épicos e

sua repercussão na literatura indiana, bem como relativas à tradução do sânscrito e à bibliografia

elementar, à sua moral e amizade. Ao Professor Doutor Philippe Benoît (INALCO) pelas sugestões

quanto ao método comparativo dos épicos indianos, bem como pelo apoio bibliográfico. Aos

professores da Sorbonne Nouvelle (UP3), em especial a Gopabandhu Mishra, Jean Fezas, Nalini

Balbir e Gerdi Gerschheimer (EPHE). Aos professores da FLUL, em especial a Shiv Kumar Singh,

Paulo Borges, Carlos João Correia e José Augusto Ramos. À Professora Doutora Dejanirah Couto

(EPHE), pela disponibilidade e por nos ter facilitado o acesso às bibliotecas de Paris e nos ter

colocado em contacto com vários especialistas da área. À amiga e colega Dra. Pilar Altinier (UP3),

pelo apoio bibliográfico e companheirismo. Ao amigo e colega Francisco Isaac (IPAEHI) pela sua

moral e incentivo. Aos membros e companheiros de longa data da OINAPO, que foram desde cedo

um exemplo a seguir, em especial aos professores José Carlos Fernández, Paulo Alexandre Loução e

Cleto Saldanha, agradecendo-lhes igualmente o apoio moral e bibliográfico, bem como a

disponibilidade para a discussão e teorização de diversos temas aqui apresentados. Aos colegas e

companheiros de viagem, que em muito contribuíram para o resultado final deste trabalho, em

especial a Edgar Teles, Eirini Constatopoulo, Georgia Zakou, Inês Aguiar, Maria Inês Brazão

Courinha, Martim Aires Horta, Mauro Costa, Rafael Ricardo Rosa, Rafael Santos, Sanjeev Pandey e

Way Lanang, e que me perdoem aqueles que não sendo mencionados, não deixaram de dar o seu

contributo a este estudo. À minha família, a quem mais devo. À Mara Nunes Fernandes, pela sua

presença, incentivo, companheirismo e discernimento, a quem devo inteiramente a minha paixão

pela Índia.

19

Capítulo I

O “princípio feminino”: Śakti e Hera

1.1. Introdução

A designação algo abstracta de “princípio feminino” expressa neste estudo sobretudo a teoria de

um ideal feminino, passivo e receptivo, contido na figura da deusa-esposa (e aqui não tanto na

deusa-mãe) e na natureza, que acaba por ganhar formas mais concretas noutras divindades. Veremos

que Śakti e Hera (as esposas celestes) surgem na literatura antiga essencialmente como conceitos da

feminilidade, e não tanto como deusas (e ainda menos como mulheres). A condição feminina não

existe senão nos humanos, porque uma deusa é sobretudo um deus feminino, existindo por isto uma

menor homogeneidade entre as deusas do que entre as mortais.32 Porque as deusas são as

personificações que se manifestam entre as mortais. No entanto, Śakti e Hera relacionam-se e

“repetem-se” em deusas concretas como Afrodite, Śri, Durgā, Kālī, etc., todas elas deusas muito

presentes e representativas dos momentos de “crise” e de destruição terrena, que são geralmente

reflexos de uma crise celeste. Neste sentido, a deusa-criadora concretizar-se-á na figura da deusa-

mãe e a deusa preservadora-destruidora na de deusa-esposa. Estas esposas divinas não deverão ser

lidas isoladamente da sua relação com o masculino, já que a sua função mitológica persiste

essencialmente na dualidade do casal divino, criando um tópico estrutural de união e separação,

criação e destruição, etc., que se expressa também nos acontecimentos do mundo humano.33 Não há

uma divisão real entre deus e deusa, porque todos obedecem a uma unidade. As divindades

dividem-se por género e idade numa reformulação da relações familiares.34

Quando lidamos com o mito e épica dos Antigos, é comum encontrarmos sistemáticas e

inumeráveis comparações entre diferentes divindades, isto dever-se-á essencialmente ao facto de as

divindades corresponderem a um modelo arquetípico, a um princípio (a um ideal que convoca e

civiliza os seres humanos?). No caso das deusas, poderíamos afirmar (ainda que sem a pretensão de

fechá-las nesta acepção!), que todas elas são as muitas e a uma, e o mesmo se aplicará às divindades

masculinas, i.e., todas as deusas corresponderão a uma ideia de “deusa”, que é o “princípio

feminino” compreendido pelos Antigos na realidade factual e espiritual que os rodeava.35 Ao

compreendermos que no ṚV todos os deuses vão sendo chamados de deuses supremos, sem

32 Nicole Loraux, “Qu'est-ce qu'une déesse?” in Georges Duby, Michelle Perrot, Histoire des Femmes en Occident, vol. 1: L'antiquité, Paris, Perrin, 2002, pp. 53-57; Helene P. Foley, “Introduction” in Female Acts in Greek Tragedy, Princeton, Princeton University Press, 2001.

33 Para a questão veja-se por exemplo: “Consort Goddess” in EIEC.34 Nicole Loraux, “Qu'est-ce qu'une déesse?” in Georges Duby, Michelle Perrot, Histoire des Femmes en Occident,

vol. 1: L'antiquité, Paris, Perrin, 2002, pp. 42-43.35 As deusas terão surgido como um único arquétipo que se une numa designação para lá de todas as designações

que recebem. Cf. Nicole Loraux, “Qu'est-ce qu'une déesse?” in Georges Duby, Michelle Perrot, Histoire des Femmes en Occident, vol. 1: L'antiquité, Paris, Perrin, 2002, p. 65 e ss.

20

distinção aparente, levar-nos-á a crer que a multiplicidade divina reside numa certa unidade. Ou

noutra leitura, podemos entender que todas as divindades correspondem a princípios, e só depois a

deuses (que serão a manifestação/percepção “quase física” desses mesmos princípios).36 Estas

deusas representativas do “princípio feminino” como Śakti, têm sido entendidas como

transfuncionais porque abarcam diferentes características e funções (que se subdivirão mais tarde?)

que usualmente definem os deuses IE, designadamente: as funções sacerdotal, guerreira e agrícola.37

Hera pode igualmente ser inserida nesta leitura, como veremos adiante.

O homem por sua vez, ou se preferirmos, um “princípio masculino”, quando relacionado com a

procriação (bem como com a criação de qualquer género) está com frequência delimitado pelo

princípio feminino. Isto porque a parte masculina necessita da feminina para continuar a existir, para

criar e manter a sua linhagem. Além dos motivos óbvios para este tópico (que seriam observados

pelos Antigos na natureza das relações humanas), existe igualmente o facto de o homem conhecer

melhor a sua mãe do que o seu pai, sendo a sua infância geralmente desenvolvida no mundo

feminino, e apenas a sua maturidade passada num universo masculino. Talvez seja por este motivo

que as divindades femininas parecem ter desempenhado tão importante papel nas antigas

comunidades IE.38 Não que isto subentenda um matriarcado, pelo contrário, subentenderá um

patriarcado estrito, uma visão masculina e um universo “psicológico” do homem, representando a

sua maior ligação à mãe do que à figura paternal.39 O homem é biologicamente activo, e nesta

lógica, relaciona-se com aquilo que é passivo, imprimindo-lhe movimento e concretização, como

nos tópicos da “vida” e do “poder”, dependendo sempre desta passividade. Seguindo esta leitura

aparentemente simplista, podemos dividir todos os tópicos passivos e activos em femininos e

masculinos, sendo a relação entre os dois essencial, porque as falhas da passividade abrem espaço

às virtudes da actividade, e vice-versa. Por exemplo, no género épico o herói é com frequência

“inspirado” por uma heroína, como Ulisses por Penélope e os Aqueus por Helena, dando à

masculinidade um carácter de aedo e à feminilidade um carácter de musa. Desta forma a “mulher”

inspira o “homem” e o “homem” concretiza a ideia projectada passivamente pela “mulher”. O

mesmo exemplo estará presente nos mitos cosmogónicos, no tópico do Cháos (“desordem”, i.e., 36 Cf. Varadaraja Raman, “Vedic Deities: Personifications of Principles” in Glimpses of Indian Heritage, Bombay,

Popular Prakashan, 1989.37 Cf. “Transfunctional Goddess” in EIEC.38 Veja-se por exemplo: Sita Anantha Raman, “Region, Environment, Gender” e “Vedic Goddesses and Women” in

Women in India: A Social and Cultural History, vol. I, Santa Barbara, Praeger/ABC-CLIO, 2009.39 Não é de todo possível discutir a civilização grega neolítica, no entanto foram encontradas estatuetas, como as de

Sesclo, onde as figuras masculinas são representadas sentadas num trono e as femininas em pé ou agachadas, o que subentende uma ordem patriarcal, bem como estatuetas itifálicas e falos individuais, cuja significação vai da fertilidade à demarcação, sem solução definitiva. Cf. Walter Burkert, “Neolítico e Idade do Bronze Tardio” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 43. É possível, até certo ponto, comparar tanto o falo como a mulher que se encontra de pé, com a ideia de um centro e uma possível demarcação (geográfica ou ideológica), pelo facto de tanto a mulher quanto o falo representarem a geração e a fertilidade, logo um centro do qual a criação procede, bem como pela ideia de śakti (“lança” e “poder”) que é possuída pelo homem.

21

caos enquanto homogeneidade e átomos40) de onde surge o Kósmos (ordem). Sendo o caos

entendido como feminino e a ordem como masculina, percebemos a geração feminina e

desordenada que se concretiza e transforma na masculinidade. O caos ao ser entendido como

feminino, representa igualmente o campo em que o homem-herói actua, como nos seres femininos e

masculinos (todos eles caóticos à sua maneira) que Ulisses visita no decurso da sua viagem de

regresso, incluindo a desordem que o aguarda em Ítaca. A ordem por sua vez será masculina, sendo

por este motivo que a criação activa é sempre atribuída a um deus “masculino”, aquele que organiza

o caos, e que representa com frequência o protótipo de rei.

O papel da mulher está presente nas fases de crescimento do homem. Seguindo uma ordem

social, quando um filho se afasta da mãe torna-se pai. Isto porque o faz na altura de se casar,

substituindo em certa medida a sua mãe pela esposa. Isto permite-nos, se bem aplicado ao universo

mitológico, entender que o homem sai de um espaço passivo, da mãe e do crescimento, entrando

num outro espaço igualmente passivo, o da esposa, em quem imprimirá a sua natureza, criando, i.e.,

gerando filhos, que é o primeiro objectivo do casamento. Provavelmente este processo de

transferência masculina seria entendido pelos Antigos como a criação da “ordem” (nascimento e

crescimento) dentro da desordem (espaço da mãe), que segue para outro espaço desordenado

(espaço da esposa), onde imprimirá uma ordenação (procriação). No entanto, o homem não possui

em si esse poder criador, pelo contrário, é a mulher quem o possui e quem o dá ao homem que a

possui a ela. É partindo deste ponto que podemos começar a estudar a significação da mulher e do

feminino na Antiguidade.41

1.2. A “Mulher” indo-europeia

A designação IE para “mulher” provém da raíz gwénha, “mulher”, “esposa” e “rainha”, no grego

gynḗ “mulher”, no avéstico gnā- “esposa do deus” e ǰnā “esposa”, “mulher”, e no sânscrito gnā

“deusa” e jani “mulher”, “esposa”.42 Ainda que foneticamente sugerida, a relação com jñāna

“conhecimento” não está atestada. A origem de gwénha estará relacionada com a de gwou-, “vaca”,

relação ideológica atestada pelo sânscrito, onde vāśa tanto significa “mulher” como “vaca”.43 Esta

relação está presente na importância e aplicação ideológica do gado entre os povos IE, em que este é

recorrentemente utilizado como metáfora a várias estatutos, por exemplo, o de deus ou governador,

40 A designação grega átomos (indivisível) terá, pelo menos foneticamente, uma relação com o sânscrito ātmā (eu, alma, etc.), e ainda com o deus criador egípcio Atum/Atmu/Atumu/etc.

41 Para a questão veja-se: Mary Ebbott, “Where the Girls Are: Parthenioi and Skotioi” in Imagining Illegitimacy in Classical Greek Literature, Oxford, Lexington Books, 2003, pp. 28-29; Froma I. Zeitlin, “The Dynamics of Misogyny: Myth and Mythmaking in Aeschylu's Oresteia” in Playing the Other: Gender and Society in Classical Greek Literature, Chicago, The University of Chicago Press, 1996, p. 89 e ss.

42 “Woman” e “Wife” in EIEC; “γυνή” in DELG; “gu~ ē� nā” in IEW.43 “Woman” in EIEC. O nome para “vaca” é de raíz IE, gwṓus, “vaca”. Do grego boûs e do sânscrito gau-. Cf.

“Cow” in EIEC. Com raiz PIE nas línguas suméria (gu4) e egípcia (gw). “Cow” in EIEC.

22

em ambos os casos chamado de “vaqueiro” (com o mesmo sentido que é aplicado o de “pastor”),

bem como no facto de a vaca servir de unidade de valor.44 No ṚV, onde mais se encontram estas

metáforas, as estrelas são entendidas como uma manada, os raios da aurora e as nuvens são

chamadas de “vacas”, e o céu e a terra representados como o casal primordial “boi-vaca”, entre

outros exemplos.45 Observando os épicos, vemos que a vaca representou na Índia Antiga a

prosperidade total do mundo bem como a ordem brāhmaṇica, simbolizando a integração do rei, da

floresta (lugar da via sacerdotal que permite a secular) e do mundo dos aldeãos, esta união

representada pela vaca deve ser protegida por todos os reis, entendidos como “vaqueiros”.46 A

relação é continuada pela designação utilizada para “rapto” e “levar como saque”, que na maioria

das línguas IE (do sânscrito aj-, persa az- e do grego ágein), é utilizada tanto para mulheres como

para gado.47 No caso grego, as investidas dos Aqueus contra os Troianos são metaforizadas na

imagem de um leão que tenta roubar a «vaca mais gorda» («boō� n ... pîar») de um estábulo guardado

por cães, até que cansado, desiste.48 Também a mãe de Penélope, Peribeia (“à volta do gado”),49

representará a “protecção” ao gado, uma reminiscência da realidade IE (mais propriamente indiana),

com a qual se casará o rei Icário. Recorde-se igualmente o leitor da fácil associação entre os cornos

da vaca e o crescente lunar desde as sociedades pré-históricas, bem como a sua relação com a

mulher,50 imprimindo ao feminino um carácter cíclico, que está aliás amplamente manifesto na

relação fisiológica entre as fases da lua e a periodicidade feminina, por exemplo no indo-iraniano

maas- (“lua”, “mês” e “medida”),51 o que nos permite entender a mulher nos tópicos da

temporalidade, delimitação e da renovação (como veremos na deusa Hera). Ao mesmo tempo que a

relação mulher-lua gera a leitura de que determinado elemento celeste supervisiona, cria, organiza e

influencia algo terreno (leitura que deverá ser aplicada a todos os mitos de Queda!), bem patente na

figura de Soma, representação da lua, do néctar dos deuses52 e da soberania celeste. No ṚV a deusa

44 “Sky and Earth” in IEPM, p. 184.45 Cf. “Sky and Earth” in IEPM, p. 184.46 Cf. “Les mariages d'Arjuna” in EMH III, p. 136. 47 Calvert Watkins, “Aži Dahāka, Viśvarūpa, and Geryon” in How to Kill a Dragon: Aspects of indo-european

poetics, New York, Oxford University Press, 1995, p. 465.48 Il. 11.548-557. A vaca mais gorda é Helena. Os confrontos no decurso da guerra serão comparados por Nestor à

guerra dos Eleios e Aqueus devido ao roubo de gado. Il. 11.670 e ss. 49 Robert Graves, The Greek Myths, New York, Penguin Books, 1992, p. 774.50 Cf. D. Bruce Dickson, “Interpretations of Art and Religion” in The Dawn of Belief: Religion in Upper Paleolithic

of Southwestern Europe, Tucson, The University of Arizona Press, 19963. Esta relação é atestada na linguística IE, Cf. “Horn” in EIEC. O Neolítico terá sido marcado por uma maior importância atribuída à mulher, a par de uma nova simbologia, isto porque o sexo feminino foi sendo identificado com o solo e o sulco, enquanto que a semente e o arado foram associados ao masculino. Da mesma forma a lua (bem como a água e a vegetação) foi relacionada com a maternidade, com o ctónico e o telúrico numa “hierofania terrena”. Cf. Javier Alvarado Planas, El Pensamiento Juridico Primitivo, Madrid, Editorial Nueva Acropolis, 1986, p. 94.

51 Cf. “Moon” in EIEC, onde se atesta a relação etimológica da lua com os “meses”, o “ano”, a “ciclicidade”, bem como com “pensamento”.

52 Os deuses são amṛtāḥ (aqueles que “não-morrem”) e a sua comida/bebida é o amṛta, que foi identificado com o soma (bebida oferecida aos deuses, lua e deus da lua). O amṛta corresponde ao grego ἄμ ροτον (“não-mortal”) e ám roton eîdar “comida não-mortal”, mas tem o mesmo sentido que am rosíē “ambrósia” e néktar “néctar”. Cf. “Gods and

23

Sūryā, a parte feminina (ou consorte) do sol, é geralmente representada acompanhada dos gémeos

Aśvins (comparáveis aos Dioscuros), em que ela simboliza as “noivas mortais”, e eles os seus

“pretendentes”, casando-se por fim com Soma.53 Esta relação com a lua não deixa de subentender a

sua relação com o “poder” e “soberania”, como nos exemplos do deus da lua mesopotâmico: «Sin,

tu que dás o ceptro a todos os reis»54 e indiano: «o senhor de Śrī (soberania) é a lua (Śaśāṅka); ela é

a sua inalterável luz.»55 A relação que existe entre as “águas”, o feminino e a lua,56 está com

frequência relacionada com a “criação” e “gestação” no imaginário IE e humano em geral, dando às

águas e ao oceano a significação de caminho percorrido pelo herói (como Ulisses e Rāma)

previamente provocado por uma mulher (Helena, Penélope e Sītā).

Na etimologia IE, também a terra é recorrentemente feminina, por oposição ao céu,57 colocando o

“princípio feminino” numa relação directa com o céu e com o masculino, sendo por este motivo que

na literatura IE o céu e a terra são invocados como um par, e tidos como as primeiras divindades,

das quais todas as outras divindades surgiram.58 Na Grécia a deusa da terra é usualmente Gaia ou

Ge, remontando a chthṓn, que é provavelmente a forma mais antiga, contudo teve outros nomes

associados a ela, como as deusas Damia (com culto no Peloponeso), Egina e Tera, bem como

Plateia, ninfa de Plateias na Beócia (que deriva de boûs “vaca”59) e esposa de Zeus, e que traça

semelhanças com Pṛthivī), e Sémele.60 Com o mesmo significado temos a deusa Telo em Roma, e

referências tardias à Terra Mater.61 A deusa-terra está com frequência relacionada com a deusa-mãe,

sendo na tradição poética IE “ampla” e o “assento” de deuses e mortais, a “portadora” de todos os

mortais e de todas as coisas, aquela que tudo “alimenta”, sendo com frequência descrita como

“negra”.62

1.3.1. Śakti

Com base no que acabámos de apresentar, a melhor forma de definir a mulher numa relação com

a “mãe”, a “terra” e o “poder” será através da designação de Śakti ou simplesmente devī (“deusa”,

Goddesses” in IEPM, pp. 157-158.53 ṚV 10.85; AV 14.1; Cf. “Sun and Daughter” in IEPM, p. 227.54 Martin L West., The East Face of Helicon: West Asiatic elements in Greek Poetry and Myth, Oxford University

Press, New York, 2003, p. 134.55 ViPur 1.8.25a: «śaśāṅkaḥ śrīdharaḥ kāntiḥ śrīstathaivānapāyinī»56 Veja-se a relação IE entre gu̯elbh- (“útero”, “ventre”) e belbh- (“útero”, “ventre”) e gu̯elbh- (“útero”, “ventre”) e bēd nā (“mulher”, “esposa” e “rainha”). Cf. “gu~ elbh-”

“gu~ ē� nā” in IEW. De entre as várias designações IE para “água”, encontramos a relação com “leite”, “urina”, “rio”, “mar”, “humidade”, etc. Cf. “Water” in EIEC. O acto do agricultor que abre um sulco é comparado a abrir um rio no ṚV (4.22.8). O próprio nome de Indra (tal como o rio Indo) derivará de indu- “gota de água” Cf. “Swell” in EIEC.

57 Que é neutro em Hitita. Cf. “Sky and Earth” in IEPM, p. 174.58 “Sky and Earth” in IEPM, p. 181; Hes. Teog. 36 e ss.59 Cf. “βοή” e “βοῦς” in DELG.60 “Sky and Earth” in IEPM, pp. 174-175.61 “Sky and Earth” in IEPM, p. 175.62 “Sky and Earth” in IEPM, pp. 176, 178-179.

24

“rainha”, etc.), que representa na mitologia indiana (com um carácter mais sistemático na tântrica) o

princípio da “energia activa feminina”. Śakti é a esposa de Śiva (Śakta), ou simplesmente a esposa

de qualquer deus, representando a sua “vitalidade estática”,63 e poder criador, gerando a dualidade

divina “mãe-pai”, comparável ao casal céu-terra (puruṣa-prakṛti).64 Prakṛti, sendo vista como a terra

que recebe aquilo que desce do céu, representa necessariamente a mãe, a mulher, o solo e a matéria,

a capacidade de receber e conter, aplicando-se com frequência ao terreno que é semeado e

organizado. É por este motivo que Prakṛti seduz Puruṣa, da mesma forma com que uma mulher

seduz um homem,65 ou um terreno seduz o arado e as chuvas. Este facto ajuda-nos a compreender o

porquê da distinção entre deuses e deusas IE poder ter começado por ser inexistente, como no ṚV

onde as deusas são subordinadas a um deus, agindo geralmente na sua sombra, representando o seu

“poder” ou “passividade” e não simbolizando qualquer relação com as mulheres mortais.66 Estas

deusas ou as qualidades femininas seriam “posse” do deus, representando uma das suas

características, como o é śakti (“lança” e “poder”). Martin West apresenta-nos uma série de relações

entre os deuses que portam objectos que lhes são próprios, Indra é com frequência chamado

vajrahasta- (“portador do vajra”, de hasta- “mão”, que poderá encontrar relação com o latim hasta

“lança”), vajrabāhu- (armado com o vajra), ou iṣuhasta- (portador da flecha), etc.67 Rudra-Śiva é no

MBh o śūlapāṇi, “portador da lança”, encontrando paralelo, juntamente com Indra, em Ártemis

iochéaira, “portadora da flecha” (flecha: iṣu- e iós), também chamada de toxophóros “portadora da

lança”, tal como o seu irmão Apolo.68 Também Zeus, Ares e Atena são representados como

doryphóroi, “portadores da lança”. Esta ideia pode novamente apontar um motivo para a pouca

63 “Consort Goddess” in EIEC, p. 124; David R. Kinsley, “Goddesses in Vedic Literature” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition, London, University of California Press, 1988, p. 13 e ss.

64 Sobre a dualidade e unidade nesta relação veja-se por exemplo:, Gerald J. Larson, Classical Sāṃkhya: An Interpretation of its History and Meaning, Delhi, Motilal Banarsidass, 1998 (reprint), pp. 7-15. A designação de avyakta, a “não-manifestação” ou “passividade”, atribuída a Prakṛti, é definida como "eterna", “única”, “final”, “independente”, “produtiva”, “firme”, “imortal”, etc., sendo ainda associada com a “produção” e o “solo”. Cf. Knut A. Jacobsen, “The Female Pole of the Godhead in Tantrism and the Prakṛti of Sāṃkhya”, Numen, 43/1, 1996, pp. 64-65. Puruṣa-Prakṛti representam no sistema filosófico sāṃkhya o mesmo que Śiva-Śakti nos Tantras e na literatura Śaiva e Śākta, sendo os dois aspectos da realidade absoluta, e por vezes Śakti é vista como a força dentro de Śiva. Śakti representa a força do mundo, o aspecto dinâmico da realidade, Śiva representa a consciência inactiva, o aspecto estático da realidade. Cf. Shashibhusan Dasgupta, Obscure Religious Cults, Calcutta, Firma KLM, 19693, p. 333, apud, Knut A. Jacobsen, “The Female Pole of the Godhead in Tantrism and the Prakṛti of Sāṃkhya”, Numen, 43, 1, 1996, p. 59.

65, N. N. Bhattacharyya, History of the Tantric Religion, Delhi, Manohar, 1987, p. 113, apud, Knut A. Jacobsen, “The Female Pole of the Godhead in Tantrism and the Prakṛti of Sāṃkhya”, Numen, 43, 1, 1996, p. 61.Prakṛti, ou o “poder terreno”, será mais tarde entendida como causa geradora do reino, sem a qual o reino não pode existir. Prakṛti nasceu provavelmente como um epíteto aplicado a várias deusas como Durgā, Lakṣmī, Rādhā, Pārvatī, etc. , Knut A. Jacobsen, “The Female Pole of the Godhead in Tantrism and the Prakṛti of Sāṃkhya”, Numen, 43/1, 1996, pp. 69-70. No Devībhāgavata Purāṇa (9.1.1) Prakṛti é feita de cinco partes, que se manifestam em Rādhā, Lakṣmī, Sārasvatī, Sāvitrī e Durgā, chamadas de “cinco maiores Prakṛtis”. Knut A. Jacobsen, “The Female Pole of the Godhead in Tantrism and the Prakṛti of Sāṃkhya”, Numen, 43/1, 1996, p. 73.

66 “Gods and Goddesses” in IEPM, pp. 138-139.67 ṚV 10.103.2.68 Cf. “Gods and Goddesses” in IEPM, p. 150.

25

actividade das deusas no ṚV, fonte em que no entanto se compreende uma maior importância dada à

mulher mortal, do que aquela que esta irá receber nos séculos que se lhe seguem, isto porque

recebiam educação de forma semelhante ao homem, caminhavam livremente, podiam herdar

propriedades e uma viúva podia viver sozinha, não estando directamente subordinada a ninguém,69 o

que contrasta com o papel sombrio das deusas. Contudo, e à semelhança do Mundo Clássico, o

papel das mulheres na Índia sempre foi o de dar filhos à comunidade, estando quer social quer

legalmente subordinadas ao seu marido, com base na ideia de pertença a um elemento masculino. A

par disto, as mulheres são símbolo comum da “distracção” que afasta o homem dos seus deveres,

bem como da “tentação sexual”.70 Os épicos encontrar-se-ão assim num meio-termo, já que o

feminino balança entre a mulher devota ao marido, a representação do mal e a rainha (educada

como tal e que se pode opor ao rei). Este “meio-termo” pode ser comodamente aplicado aos dois

épicos indianos, já que estes representam uma “crise” social (bem como cósmica), onde a questão

da conduta feminina é diversas vezes definida, quer por homens, quer por mulheres, como que

relançada na sociedade.71

Em termos filosóficos e teológicos, śakti representa a vontade interna humana que leva a parā-

śakti (o conhecimento e a revelação), representando uma “função divina” que se subdivide nos

vários deuses.72 A sua representação celeste está com frequência relacionada com a ideia de unidade

última, bem como com a dupla-unidade Śiva-Śakti, diversas vezes comparada ao Sol que se divide

em corpo luminoso e raios luminosos,73 que são a essência e a forma. Por este motivo, śakti é

igualmente entendida como o princípio da ilusão (māyā), no sentido em que gera a partir do seu

centro uma substância finita e em última análise irreal.74 O poder interno ou criador (śakti) de um

deus torna-o num ser “neutro” entre a existência e a não-existência, ou seja, dá-lhe uma

característica de totalidade.75 O conceito de śakti manifesta-se na crença tântrico-purāṇica na forma

69 Burton Stein (ed. David Arnold), “Ancient India”, in A History of India, West Sussex, Wiley-Blackwell, 20102, pp. 52-53.

70 Burton Stein (ed. David Arnold), “Ancient India”, in A History of India, West Sussex, Wiley-Blackwell, 20102, p. 53; Sita Anantha Raman, “Vedic Goddesses and Women” in Women in India: A Social and Cultural History, vol. I, Santa Barbara, Praeger/ABC-CLIO, 2009, p. 25.

71 Embora não seja nosso objectivo afastar a data da composição oral dos épicos (em especial o MBh) da proliferação do Budismo (tese de Madeleine Biardeau: “Le bouddhisme et l'empire d'Aśoka” in Le Mahābhārata: Un récit fondateur du brahmanisme et son interprétation, vol. 1, Paris, Éditions du Seuil, 2002), por volta do séc. V a.C., a verdade é que a mulher será no Budismo muito mais relacionada com o mal e o perigo do que nos épicos (à semelhança dos Vedas), representando a sensualidade, a inveja, e possuidora de um corpo que não lhe permite atingir a salvação. Cf. Burton Stein (ed. David Arnold), “Ancient India”, in A History of India, West Sussex, Wiley-Blackwell, 20102, pp. 65-67. Desta forma, o estudo do “estatuto” feminino perceptível nas fontes épicas e budistas, permitirá afastá-las temporalmente.

72 K. Sivaraman, “God as Will and Being” in Śaivism in Philosophical Perspective: A Study of the Formative Concepts, Problems and Methods of Śaiva Siddhānta, Delhi, Motilal Banarsidass, 2001, pp. 185-186 e ss.

73 K. Sivaraman, “God as Will and Being” in Śaivism in Philosophical Perspective: A Study of the Formative Concepts, Problems and Methods of Śaiva Siddhānta, Delhi, Motilal Banarsidass, 2001, pp. 177-179.

74 K. Sivaraman, “God as Will and Being” in Śaivism in Philosophical Perspective: A Study of the Formative Concepts, Problems and Methods of Śaiva Siddhānta, Delhi, Motilal Banarsidass, 2001, p. 181.

75 K. Sivaraman, “God as Will and Being” in Śaivism in Philosophical Perspective: A Study of the Formative

26

de Durgā-Kālī, deusas poderosas que representam a ideia de Mahādevī (grande deusa), bem como o

tempo (kāla-) e a morte.76

A designação kālī significa a “negra” e é um dos epítetos de Durgā e uma das sete linguagens ou

chamas do fogo.77 Durgā por sua vez é aquela de “acesso difícil”, “perigosa”, etc., esposa de Śiva

(substituindo o nome de Śakti, Umā e Pārvatī).78 À semelhança de Hera, Durgā-Kālī está mais

relacionada com a ideia de “esposa” do que de “mãe”, representando sempre o perigo, tópico que se

intensificará com a literatura tântrica.79 Śakti representa igualmente a ideia abstracta do não-tempo e

da não-criação, sendo chamada Ādyakāli, “primeiro tempo/estação”, referindo-se a ela como a

“causa de todas as causas”.80

Contrariando a leitura de opostos que se faz sobre a relação homem-mulher, Śakti representa a

inexistência de opostos, bem como aquilo que está além do deus, do esposo e do homem, reunindo

as polaridades em si mesma: «Quando tudo derrete (se dissolve) eu não sou mulher, nem homem,

nem hermafrodita.»81 Ela é aquela que segura e mantém o mundo, é chamada “rainha do universo”,

e a alma que reside em todas as coisas.82 É com frequência comparada com Sārasvatī, Lakṣmī e

Pārvatī, as deusas da trimūrti (tríade hindu),83 o que permite entender Śakti como a criadora, a

preservadora e a destruidora. Śakti na forma de Durgā-Kālī é entendida como a “forma do tempo”, a

“fonte do tempo”, o “poder do tempo” e a “destruidora do tempo”, representa o poder mundano nas

formas de mahā-mohā (grande ocultadora) e mahā-vidyā (grande reveladora).84 Nos épicos

representa com frequência a fonte do poder, da verdade e do conhecimento.85

Śakti é uma deusa muito relacionada com a guerra, estando presente no tópico de guerra entre

devas e asuras, que tem o seu expoente máximo no confronto Indra-Vṛtra, no confronto feminino

Devī-Mahiṣa, presentes em especial no Devībhāgavata Purāṇa e no Devīmāhātmya.86 A sua relação

com a guerra poderá ter que ver com a ideia da entrada das śaktis (poderes) dos deuses na batalha

cósmica e a restituição de soberanias divinas, já que os deuses lançam a sua mahā-śakti (energia

Concepts, Problems and Methods of Śaiva Siddhānta, Delhi, Motilal Banarsidass, 2001, p. 178.76 Wendell C. Beane, “The Cosmological Structure of Mythical Time: Kālī-Śakti”, HR, 13/1, 1973, p. 54.77 “kāla-” in DSF.78 “dur-ga-” in DSF.79 Wendell C. Beane, “The Cosmological Structure of Mythical Time: Kālī-Śakti”, HR, 13/1, 1973, pp. 56-57; 67-

68.80 Devībhāgavata Purāṇa 5.33.55; apud Wendell C. Beane, “The Cosmological Structure of Mythical Time: Kālī-

Śakti”, HR, 13/1, 1973, pp. 57-58.81 Devībhāgavata Purāṇa 3.6; apud Wendell C. Beane, “The Cosmological Structure of Mythical Time: Kālī-Śakti”

in History of Religions, 13, 1, 1973, p. 58.82 Wendell C. Beane, “The Cosmological Structure of Mythical Time: Kālī-Śakti”, HR, 13/1, 1973, p. 58.83 Wendell C. Beane, “The Cosmological Structure of Mythical Time: Kālī-Śakti”, HR, 13/1, 1973, pp. 60-61.84 Wendell C. Beane, “The Cosmological Structure of Mythical Time: Kālī-Śakti”, HR, 13/1, 1973, pp. 61 e 64-65.85 Wendell C. Beane, “The Cosmological Structure of Mythical Time: Kālī-Śakti”, HR, 13/1, 1973, p. 74.86 Veja-se igualmente: ṚV 1.32; 10.48; ŚpBr 1.1.3.4; 6.3.1-17; MBh 1.17-19; Wendell C. Beane, “The Cosmological

Structure of Mythical Time: Kālī-Śakti”, HR, 13/1, 1973, p. 78-80.

27

destruidora, poder e força) contra os asuras (poder desordenado, inimigos dos deuses).87

Śakti representa assim aquilo que o deus ou o esposa possuem, o seu poder criador, a sua vontade

e acção, conceito que sendo feminino acabou por se estender e permanecer até aos nossos dias

referente a todas as figuras divinas femininas, bem como às esposas e mães.

1.3.2. O arremesso e a posse de Śakti

Em sânscrito, śakti, derivada da raiz IE kh ank- “ramo” e “arar”, significa primariamente “lança” e

“poder”88, bem como “potência”, “força”, “capacidade” e “haste”.89 Designação que como vimos foi

antropomorfizada na deusa Śakti, o “princípio feminino” e sobretudo símbolo do poder que a

esposa dá ao seu marido.90 Tendo em conta as significações de śakti enquanto “lança”, “poder”,

“esposa” e “princípio feminino”, podemos unir com alguma facilidade a ideia de Śakti à do

arremesso da lança, relação etimologicamente presente no IE,91 que representa ritualmente a justa

declaração de guerra. Outras relações com o feminino serão possíveis, tendo em conta a designação

grega chaîos “vara do pastor de vacas” deriva do IE gh hais-ó-s “lança de arremesso”,92

subentendendo uma relação entre a “lança” e a proteção de gado, bem como a raiz IE meh1ros-

“amplo”, “grande” e “crescer”, que é aplicada à lança,93 permitindo comparar a ideia de

“abundância”, “prosperidade” e “crescimento” da terra (designações presentes em Śrī-Lakṣmī) com

Śakti.94 A importância da lança está bem atestada nos épicos, sendo uma arma que, juntamente com

a espada, representa a marca do guerreiro na maioria das tradições IE.95 Por outro lado, é também

um objecto simbólico e de prestígio, já que uma lança e um escudo eram passados de pai para filho,

como herança simbólica do estatuto de guerreiro, em várias das comunidades IE,96 símbolo de poder

régio e de soberania, transferido através de uma linhagem, comparável ao ceptro na Ilíada.97

Desta forma, o arremesso de uma lança contra o inimigo, terá ganhado certamente contornos

metafóricos, podendo ainda estar presente no rapto da mulher, tópico comum aos IE, em que a

87 Wendell C. Beane, “The Cosmological Structure of Mythical Time: Kālī-Śakti”, HR, 13/1, 1973, pp. 81-83.88 “Branch” e “Comparative Mythology” in EIEC. Há ainda uma grande proximidade entre o “machado” e a

“lança”, recebendo em inúmeros exemplos a mesma designação. Cf. “Ash1” in EIEC, ambas armas atribuídas aos deuses do trovão. Cf. “Sword” in EIEC.

89 Da raiz sânscrita śak- “capacidade”, “poder”. Cf. “śak-” e “śakti-” in DSF. A designação encontra reflexo no sânscrito em śila- “semente”, śaṅkuḥ “estaca” e śākhā “ramo”, que remontarão certamente a uma raiz PIE. Cf. “śákti” in KEWA; “Spear” in EIEC; “k© ā� k-” in IEW. Veja-se igualmente a raiz do IE akh en-, de onde deriva ákōn, -ontos (da forma mais antiga ákōn, *-onos) “lança”. Cf. “ak© -,ok© - (*hekʷ-)” in IEW.

90 Veja-se: “Consort Goddess” in EIEC. Śakti é ainda comparável à māyā (ilusão, aparência) de Brahmā, que se manifesta no topo dos Himalaias. Cf. Devī Gītā 1.1. Com o sentido de centro ou elevação, na acção criadora do deus.

91 Cf. “Throw” e “Spear” in EIEC.92 “Spear” in EIEC.93 “Large” in EIEC.94 Cf. “śrī-”, “śri-”, “śrā-”, “śrīmant-”, “lakṣmī-”, “lakṣa-” e “lakṣman-” in DSF; “lakṣ-” e “lakṣma” in KEWA III.95 Cf. “Warriors” in EIEC.96 Cf. “Age Set” in EIEC.97 Il. 2.100-108.

28

lança (aqui símbolo da mulher) que é ritualmente arremessada para dentro das muralhas do povo

inimigo, gera um ponto de interesse além-fronteiras, possibilitando o seu regresso no final da

guerra. Para suportar esta relação, o melhor exemplo que temos é o romano, em que a guerra era

declarada pelo Cônsul no Templo de Marte, através do acto cerimonial de apontar e agitar uma das

lanças sagradas de Marte, na direcção do inimigo.98 O mesmo ritual estava presente entre os Feciais

(Fetiales), sacerdotes romanos a quem de entre as suas várias funções, competia a declaração da

iustum bellum (guerra justa), num processo ritualístico que culminava com o indictio belli, que

consistia no arremesso de uma lança para dentro do território inimigo, de modo a declarar a guerra.

Títo Lívio descreve o processo do indictio belli como antigo, em que o principal sacerdote do

colégio dos Feciais (o pater patranus) levava uma lança com a ponta de ferro marcada de sangue99

até à fronteira do território inimigo, e diante de não menos que três homens, recitava a declaração de

guerra, definindo publicamente a vontade do Senado e do povo de Roma.100 Chegava-se a este

procedimento quando a diplomacia estava esgotada e a guerra não podia ser evitada com um reino

vizinho. A importância deste ritual é ainda atestada pela narração mítica do momento em que os

Romanos, querendo cumprir o ritual do arremesso da lança antes de iniciar a guerra com Pirro, se

viram confrontados com o facto de o território inimigo ficar do outro lado do Adriático. Desta forma

obrigaram um dos soldados de Pirro a comprar terra no Circo Flamínio (periferia de Roma), de

modo a ser declarada guerra em território inimigo.101 Estes rituais tinham como principal objectivo

tornar a decisão bélica pública.102 Veremos que a mesma declaração pública será necessária no rapto

justo (casamento rākṣasa) de uma noiva na legislação indiana, com reflexos óbvios nos épicos, e o

seu incumprimento motivo justificado para o contra-rapto.

O facto de as portas do templo de Jano estarem abertas durante o período de guerra, e fechadas

durante o de paz,103 subentende que algo sai (é arremessado?) do seu território em direcção ao

território inimigo, demonstrando, até certo ponto, que durante a guerra a força do governo e da

comunidade não estavam centralizados na cidade, mas sim na sua periferia, tal como no arremesso

98 Veja-se por exemplo: John Stamper, The Architecture of Roman Temples: From Republic to Middle Empire, Cambridge, Cambridge University Press, 2005, p. 140. Em frente ao templo de Bellona (deusa da guerra) no Circo Flamíno, era igualmente arremessada uma lança para um recinto designado de “território inimigo”.

99 «hastam ferratam aut praeustam sanguineam». Cf. Coleman Phillipson, “The Fetials: Ius Fetiale, and its Relation to the Roman Law of War and Peace” in The International Law and Custom of Ancient Greece and Rome, II, London, Macmillan and Co., 1911, p. 339.

100 David J. Bederman, “Making War: the commencement and conduct of hostilities in ancient times” in International Law in Antiquity, Cambridge, Cambridge University Press, 2001, p. 232; Coleman Phillipson, “The Juridic Genius of Rome: Ius Naturale, Ius Gentium, and Kindred Conceptions” in The International Law and Custom of Ancient Greece and Rome, vol. I, London, Macmillan and Co., 1911, pp. 94-99.

101 David J. Bederman, citando Sérvio (Comentário sobre a Eneida 9) e Ovídio (Fastos 333-335) em: “Making War: the commencement and conduct of hostilities in ancient times” in International Law in Antiquity, Cambridge, Cambridge University Press, 2001, pp. 237-238.

102 David J. Bederman, “Making War: the commencement and conduct of hostilities in ancient times” in International Law in Antiquity, Cambridge, Cambridge University Press, 2001, p. 239.

103 Cf. Kurt Raaflaub (ed.), War and Peace in the Ancient World, Malden, Blackwell Publishing, 2007, p. 260.

29

da lança, ou no rapto da mulher enquanto casus belli. Do pouco que se pode deduzir do modo como

seria levada a cabo a guerra IE, sabe-se que seria em certos casos ritualizada, e por vezes feita à

distância através de armas de arremesso, de forma a impedir danos físicos graves,104 mas não é fácil

traçar uma relação entre esta realidade IE e a prática romana.

Contudo, a relação IE-Roma entre a lança e a mulher mantém-se, por exemplo, no último

elemento da preparação da noiva para o casamento, o hasta caelibaris, que consistia na separação

do cabelo da rapariga com a ponta de uma lança (a lança do celibato) no chamado estilo seni crines,

de forma a recordar o primeiro casamento dos Romanos (com as Sabinas), realizado após uma

guerra. Como a lança era o símbolo do poder (neste caso do poder que o marido exerce sobre a

mulher), esta era cerimonialmente utilizada no cabelo da mulher, que era visto como o seu elemento

mais sensual e também, simbolicamente, mais fértil.105

Estas relações permitem subentender uma compreensão IE de arremesso, roubo e guerra, que une

a mulher à lança (àquilo que é lançado/roubado) e que terá estado na causa das narrações de rapto e

contra-rapto, tão importantes à fundação civilizacional, em especial no caso da Grécia (com Helena)

e de Roma (com as Sabinas).

1.4.1. Hera

Existem várias deusas IE que desempenham um papel real e que estão directamente relacionadas

com o casamento, como é o caso de Hera e Śakti, mas sem paralelo directo num modelo PIE.106 A

«senhora/rainha Hera com olhos de vaca» («boō� pis pótnia Hḗrē») como lhe chama Homero107, terá

influências orientais, traçando semelhanças com Hathor e com Śiva, bem como com o animal

sacrificado a Zeus. Relaciona-se em especial com a designação IE para mulher que apresentámos:

gwénha “mulher” e gwou-/gwṓus “vaca”108, representando uma percepção IE da mulher cujo trabalho é

interno (dentro de casa), tal como o acto de ruminar da vaca, aquela que alimenta as crias e os

homens, e cujo trabalho ou resultado deverá ser “branco” e puro como o leite, tendo ainda relação

com a iluminação nocturna da lua, etc.109 A ligação de Hera com a vaca coloca-a ainda mais em

relação com o feminino, tornando-a numa deusa das mulheres, mesclando-se entre elas, como no

caso da sacerdotisa de Argos, Io, que não deixa de ser uma forma de Hera, condenada à sua forma

de vaca e a “fugir” do mundo grego para o egípcio.110 Ou no caso das filhas de Preto que vagueiam

104 “Warfare” in EIEC.105 Cf. Plut., Róm. 15.5; Judith Sebesta, Larissa Bonfane, The World of Roman Costume, Wisconsin, The University

of Wisconsin Press, 2001, pp. 60-61.106 “Consort Goddess” in EIEC.107 Por exemplo: Il. 1.551.108 Cf. “Woman” e “Cow” in EIEC. 109 O som provocado pelos bovinos é igualmente interno e nasal (“m”). Podendo ser fonética e remotamente

assemelhado ao “m” labial utilizado no IE para mãe, méhatēr e māt tēr.110 Ps. Apolod., Bib. 2.5-9.

30

pelo Peloponeso na forma de vacas,111 ou mesmo da Europa que é raptada por Zeus em forma de

touro e trazida do Oriente para o Ocidente, etc., permitindo até certo ponto entender Hera presente

em várias das mulheres com quem Zeus se relaciona fora do casamento. Hera é a deusa dos

casamentos e bodas, sendo cultuada principalmente com base no mito do Dolo de Zeus,112 que seria

cerimonialmente imitado. Hera é igualmente a “conselheira do casamento”, “aquela que une” e a

“perfeita”.113 Representa as três fases da mulher, que são reflexo das três estações do ano: a criança

(paîs); a completa, matrona ou esposa (teleía); e a viúva (chḗra),114 esta tripartição compara-a com

as Meras, e em última análise com qualquer sistema triádico. Pötscher vê em Hera a “noiva” ou

aquela que está “pronta para se casar”, isto porque está relacionada com os ciclos, e o ciclo

(iniciação) feminino é marcado essencialmente pelo casamento.115 A par do seu papel central de

“esposa”, cabe-lhe igualmente o de deusa perigosa, má e implacável, que causa sofrimento aos seus

inimigos,116 o que a aproxima de Kālī (Durgā), ocupando essencialmente um papel central nos

momentos de crise. A destruição da oposição, está presente no mito em que Hera se zanga com Zeus

e o abandona, Zeus enfeita uma boneca de madeira de forma a assemelhar-se a uma noiva (ilusão) e

anuncia que vai casar-se com ela. Hera ao saber disto regressa e rasga-lhe as roupas. Depois de se

aperceber do engano, a boneca é queimada. Este relato revela tanto a destruição e o sacrifício dos

rivais (e até certo ponto das raparigas que vão casar-se) como o constante avanço e recuo face a

Zeus, afastando-se e regressando a ele, mas nunca de forma pacífica,117 o que acompanha o seu

conhecido papel de esposa ciumenta. Hera “divorciada” ou “viúva” (Hḗra chḗra), simboliza o

inverno e o período da não-fertilização dos terrenos, representados pelo seu afastamento de Zeus.118

Pelo facto de também presidir ao casamento e de certa forma à “criação”, podemos entendê-la num

paralelo a Śakti, que cria, mantém e destrói, regressando e afastando-se de Zeus. Ela está

igualmente presente na idealização de uma transfuncionalidade IE, já que incorpora as funções

político-religiosa (rainha e deusa do casamento), guerreira (combate) e agrícola (gera os “trabalhos”

e preside sobre as estações do ano).

111 Ps. Apolod., Bib. 2.26.112 Il. 14.153-353.113 Walter Burkert, “Hera” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,

1993, pp. 266-267.114 “Consort Goddess” in EIEC; Veja-se igualmente: Paus. 8.22.2. Ou a “rapariga”, a “perfeita” e a “divorciada”.

Walter Burkert, “Hera” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 268; Nicole Loraux, “Qu'est-ce qu'une déesse?” in Georges Duby, Michelle Perrot, Histoire des Femmes en Occident, vol. 1: L'antiquité, Paris, Perrin, 2002, p. 47.

115 Rheinisches Museum, CIV, 1961, p. 302 e ss., apud Jean Haudry, “Héra et les Héros”, EIE, 12, 1985, p. 3.116 Walter Burkert, “Hera” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,

1993, pp. 268-269.117 Walter Burkert, “Hera” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,

1993, p. 271.118 Lewis R. Farnell, “Hera” in The Cults of the Greek States, vol. I, London, Oxford at Clarendon Press, 1896, p.

190.

31

O nome de Hera (Hḗra) é traduzido por “madura para o casamento”, “senhora” e “vitela”, e está

relacionado com hṓra, “ano” e “estação do ano”, tornando-a na “deusa do ano”.119 Da palavra Hḗra,

deriva a designação de “herói” (hḗrōs), o que subentende “de Hera”, sendo ainda possível a

aproximação, pelo menos fonética, com ḗranos “protector” e “mestre”. Também Héracles deriva o

seu nome da deusa (Hērakléēs/-klē� s, de Hḗras kléos “em honra de Hera”).120

Hera, tal como Śakti, é a “actividade vigorosa” e o herói (hḗrōs) “a personificação da actividade

vigorosa”, designações que derivam do IE kwer- “fazer” e “construir”.121 Desta forma podemos

entender que os heróis são aqueles que agem em nome de Hera, ou através de Hera (no sentido em

que a incorporam em si). A mesma ideia está presente no universo mitológico indiano na raiz kṛ-

“fazer”, a qual várias personagens fazem eco, como Kṛṣṇa e Draupadī (a Kṛṣṇā), entre outros,

subentendendo uma “acção divina” (devakārya) no mundo.122

Ainda que Hera surja inicialmente na literatura como inimiga de Héracles123 (ou aparente sê-lo),

a verdade é que é Hera quem decreta as provas a Héracles, permitindo que este se cumpra como

herói e ganhe um lugar entre os deuses. Hera não é, por este motivo, uma inimiga, mas sim aquela

que o torna divino.124

Do nome de Hera derivarão várias expressões, como as “horas” e a “hereditariedade”, sempre

com o sentido de limite temporal.125 O deus IE é por definição imortal, sendo que em Héracles a

morte é o culminar do mito, transformando o herói num deus, e é Hera quem demarca este ciclo de

“vida-morte-vida” no caminho dos heróis.126 De acordo com textos micénicos, existia na

Antiguidade a noção de “triplo-herói”,127 que reflecte as três formas de Hera (a jovem, a mulher e a

viúva), representando os três tempos (estações) do ano, e desta forma o herói poderá igualmente

representar três fases.128 Se Hera representa as três, ou quatro, estações do ano, Héracles representa

os doze meses do ano (através dos doze trabalhos estipulados nas métopas do Templo de Zeus em

Olímpia), tal como as aventuras de Ulisses que se dividem em doze episódios,129 subentendendo que

o herói cumpre o ciclo estipulado por Hera. Hera protege e auxilia pessoalmente os heróis em

119 Walter Burkert, “Hera” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 263; Jean Haudry, “Héra et les Héros”, EIE, 12, 1985, p. 4; “Ἥρᾱ” in DELG.

120 Jean Haudry, “Héra et les Héros”, EIE, 12, 1985, p. 2; Cf. “Ἥρᾱ” in DELG.121 “Make” in EIEC.122 Cf. “KṚ-” e “kṛta-” in DSF; Madeleine Biardeau, Le Mahābhārata: Un recit fondateur du brahmanisme et son

interpretation, 2 volumes, Paris, Editions du Seuil, 2002, pp. 221, 277.123 Ps. Apolod., Bib. 2.62; 2.72; 2.101, etc.124 O mesmo sucede na Eneida, entre Juno (Hera) e Eneias.125 Cf. Jean Haudry, “Héra et les Héros”, EIE, 12, 1985, p. 1-2.126 Cf. Joan O'Brien, “Hera Argeia” in The Transformation of Hera: A Study of Ritual, Hero, and the Goddess in

the Iliad, Maryland, Rowman & Littlefield, 1993.127 M. Ventris, J. Chadwick, Documents in Mycenean Greek, Cambridge, Cambridge University Press, 1973, p.

172, apud, Jean Haudry, “Héra et les Héros”, EIE, 12, 1985, p. 7.128 Jean Haudry, “Héra et les Héros”, EIE, 12, 1985, p. 7.129 Jean Haudry, “Héra et les Héros”, EIE, 12, 1985, p. 21.

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batalha, o que a assemelha a Atena e a Afrodite, que não hesitam em intervir no combate em favor

dos seus protegidos.130 Será interessante recordar que são estas as três deusas presentes no

Julgamento de Páris, representando uma trindade de deusas intervenientes na batalha.131

Hera seria largamente venerada como Grande Deusa e é ela que transporta a “cúpula” dos

deuses, o pólos, “eixo”, que toma a forma de um pilar em Argos,132 o que a remete para a ideia de

centro. Os templos de Hera, além de serem os mais antigos, encontram-se geralmente fora das

cidades,133 o que a relaciona com as regiões próprias à pastorícia e com a terra “estrangeira”. Hera

representará a soberania que vai além “fronteiras”, isto porque, ainda que Zeus tenha muitas

relações, só Hera se senta no trono e empunha o ceptro, sendo a única deusa com direito legítimo a

Zeus, e vice-versa, bem como a representação do ciúme e da zanga no casamento. Esta relação com

Zeus e com o poder é afirmada no momento em que Hera oferece o poder real a Páris.134

O “casamento” épico de Zeus e Hera, no momento em que esta engana (seduz) Zeus através do

cinto de Afrodite, unindo-se a ele e permitindo que este deixe de vigiar a batalha no mundo, 135 faz

com que a terra deixe de germinar. Com a ajuda de Afrodite, Hera embeleza-se, pedindo-lhe o amor

e o desejo, pois tem por objectivo ir aos limites da terra, para fazer com que se unam Oceano e

Tétis, há muito separados um do outro,136 de seguida pedirá ao Sono que adormeça Zeus logo depois

de que ela se tenha unido a ele.137 Hera vai ter com Zeus ao Ida, despertando nele o desejo, um dolo,

e este criou uma nuvem dourada em seu redor para que ninguém os visse unidos, adormecendo

depois em deleite.138 Entretanto, o Sono vai avisar Posídon de que Zeus não está a controlar a

batalha, pois havia-se unido em amor com a sua esposa Hera, e desta forma os deuses puderam agir

contra a sua vontade.139 Este “casamento” é semelhante ao que acontece na união entre Śiva e Śakti,

em que a vida no mundo é criada e preservada na sua união, e gradualmente destruída à medida que

Śiva se afasta de Śakti.140 Neste sentido, e aplicando o exemplo ao casal grego, podemos entender

esta união entre Hera e Zeus como uma marca da “resolução” ou de um termo à crise no mundo,

130 Jean Haudry, “Héra et les Héros”, EIE, 12, 1985, p. 2.131 Poemas Cíprios, Arg. 1, in GEF.132 Walter Burkert, “Hera” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,

1993, p. 264.133 Walter Burkert, “Hera” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,

1993, pp. 264-265.134 Walter Burkert, “Hera” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,

1993, p. 265; Nicole Loraux, “Qu'est-ce qu'une déesse?” in Georges Duby, Michelle Perrot, Histoire des Femmes en Occident, vol. 1: L'antiquité, Paris, Perrin, 2002, 50 e ss.

135 Il. 14.153-353.136 Il. 14.197-210.137 Il. 14.233-241.138 Il. 14.341-353. Veja-se igualmente: Walter Burkert, “Hera” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica,

Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 266.139 Il. 14.354-360. Aqui Posídon está do lado dos Aqueus, mas depois da guerra, será inimigo de muitos,

principalmente de Ulisses.140 Cf. Alice Boner, “Śaiva Images” in Principles of Composition in Hindu Sculpture, Delhi, Motilal Banarsidass,

1990, p. 228 e ss.

33

crise que culminou com a guerra de dez anos em Tróia.

Também o mito originário de Samos, em que uma imagem de culto da deusa havia sido roubada

de noite por piratas – rapto mal sucedido, pois a imagem teria sido abandonada na praia e

descoberta de dia – revela a sua capacidade de se afastar na crise e regressar ou trazer a ordem da

vida normal.141 Este rapto e abandono na praia revela a ocorrência do acto, em que o rapto seria

praticado por piratas que levavam a mulher pelo mar,142 mas também a sua relação com Afrodite,

que nasce da espuma do mar, como o planeta Vénus que desaparece de noite e se levanta no

horizonte com a manhã, momento em a imagem da deusa foi descoberta e resgatada para o templo.

A deusa representativa dos ciclos, que desaparece de noite e é descoberta de dia, não deixa de

encaixar ainda nos mitos de fertilidade agrícola, em que uma semente desaparece (morre) no

inverno para surgir noutra forma durante a primavera, ideia que persiste no seu carácter cíclico de

morte e renascimento.143

1.4.2. Hera como “limite”

No mundo IE, deuses e homens funcionam como dois pólos de uma mesma realidade, existindo

entre eles várias classes de seres, como os heróis. É desta forma que os heróis desempenham o papel

de intermediários entre os mortais e os imortais144, numa tríade temporal tão própria à Antiguidade,

como aquela que levou Dumézil à sua teoria da trifuncionalidade IE. Esta temporalidade está

expressa no imaginário indiano, por exemplo: «os deuses começaram por ser mortais; e só quando

alcançaram o ano se tornaram imortais; porque o ano é tudo, e a imortalidade representa o todo».145

Aqui vemos que o ano representa o todo, ideia semelhante à de Hera e à do caminho do herói. Da

mesma forma com que Śakti simboliza o poder do rei, do homem e do herói, Hera representa a

delimitação das provas do herói e o seu caminho, o período de tempo e o espaço em que o herói se

move, sendo por isto que os heróis são os “filhos”, a “fama” e a “honra” de Hera,146 porque é a

deusa quem os protege, como protegeu os Aqueus que combateram em Tróia. Os heróis significam

assim os homens pré-divinos que atingem no fim dos seus trabalhos a imortalidade, num caminho

que se faz da mortalidade à imortalidade, i.e., do mundo dos homens ao dos deuses.147 Na Índia, os

três Ṛbhus (artesãos divinos) são os regentes das três estações do ano, o que revela uma ideologia

141 Cf. Walter Burkert, “Hera” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, pp. 270-271; e Lewis R. Farnell, “Hera” in The Cults of the Greek States, vol. I, London, Oxford at Clarendon Press, 1896, pp. 185-186.

142 Compare-se com a racionalização do rapto de Io em Hdt. 1.1.3-4; 2.41.2.143 Para a questão da vida e da morte presente em mitos agrícolas gregos, veja-se em especial: Nuno Simões

Rodrigues, “O Trigo como Metáfora da Vida e da Morte na Antiguidade Clássica”, Máthesis, 17, 2008, pp. 97-106.144 Jean Haudry, “Héra et les Héros”, EIE, 12, 1985, p. 8.145 ŚpBr 11.1.2.12a: «martyā ha vā agre devā āsuḥ sa yadaiva te saṃvatsaramāpurathāmṛtā āsuḥ sarvaṃ vai»146 Jean Haudry, “Héra et les Héros”, EIE, 12, 1985, p. 9147 Cf. Joan O'Brien, “Hera Argeia” in The Transformation of Hera: A Study of Ritual, Hero, and the Goddess in

the Iliad, Maryland, Rowman & Littlefield, 1993.

34

IE.148 Os Ṛbhus, semelhantes a Hefesto pelo seu trabalho do ferro (dão a juventude aos velhos,

ressuscitam vacas e produzem objectos relacionados com o poder de Indra e dos Aśvins) e a Hera

pelo ciclo anual, numa determinada tradição, acabam por encaixar no imaginário grego pelo facto

de Hera ter gerado Hefesto por si mesma, sem intervenção masculina.149 Hefesto transforma-se

assim numa expressão de Hera, uma expressão mais real do que a deusa, pelo facto de Hefesto ter

sido lançado para o mundo,150 e por ser o deus trabalhador, sendo por isso o mais próximo dos

homens.

Hera conquista o ano, ou conquista as três partes do ano,151 da mesma forma, é dela que precede

o ano e consequentemente a vida, porque sem período de tempo não há manifestação física ou

criação. Desta forma, o ano é puramente terreno, representando um estádio humano e não divino.

Da mesma forma o culto dos heróis parece ser ctónico, porque tratam um mortal que se altera e

evolui através de provas (das provas de Hera!), ganhando de forma individual a imortalidade,

tornando-se assim num deus.152

A origem do herói parece ter começado pelo uso de epítetos na poesia oral, como no caso de

Zeus Agamémnon, e Afrodite Helena (ou Éos Helena).153 Esta relação subentende mais uma vez a

manifestação mundana de um deus, i.e., um deus representa determinada totalidade que se

manifestará em seres mortais divisos, que cumprindo provas, regressarão à sua origem.

Os heróis estarão igualmente relacionados com o tópico IE dos “guerreiros de fronteira”, onde os

guerreiros são, por algum motivo, expulsos do seu reino, regressando mais tarde a ele para o

reconquistar (ou reconquistar o seu lugar). Estes poderão ser entendidos como os heróis que

geralmente “ultrapassam fronteiras” ou “limites”. Fronteira, do IE h4erh2os, que gera no hitita arha

(“fronteira” e “limite”) e no latim ora (“fronteira”),154 poderá ter alguma relação com Hera e a sua

faculdade de delimitar.

Hera, correspondendo à ideia de poder e vitalidade, representará algo interno, no entanto

manifesta-se no mundo na forma dos heróis que agem em seu nome, impondo limites e ciclos, que

são no fundo os ciclos e os limites da vida, bem como os da estruturação social.155 Esta idealização

deve ser aplicada a outras deusas e a heroínas, que acabam por representar um reflexo da deusa no

mundo. Pegando nos exemplos gregos, verificamos que os limites de Ulisses são Penélope (da qual

148 Jean Haudry, “Héra et les Héros”, EIE, 12, 1985, p. 11; “Elf” in EIEC.149 Walter Burkert, “Hefestos” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste

Gulbenkian, 1993, p. 330; “Elf” in EIEC.150 Il. 18.394-397.151 Jean Haudry, “Héra et les Héros”, EIE, 12, 1985, pp. 13-14.152 Cf. Jean Haudry, “Héra et les Héros”, EIE, 12, 1985, p. 29.153 Jean Haudry, “Héra et les Héros”, EIE, 12, 1985, p. 37.154 “Border” in EIEC.155 Para a questão dos limites no âmbito das diferenças masculino/feminino e cultura/natureza, veja-se: Nuno

Simões Rodrigues, “Ainda Clitemnestra, A «Mulher de Máscula Vontade»”, Cadmo 20, p. 399 e ss.

35

parte e à qual regressa), bem como Helena o será para os Gregos, que partem quando ela parte, vão

ao seu encontro e regressam no seu regresso. O facto de a mulher viver no oîkos, e o seu mundo ser

essencialmente interior, lugar do qual o homem sai e ao qual regressa ciclicamente, poderá estar na

origem da delimitação e ciclicidade presentes na rainha do céu, Hera, aquela que parece marcar o

próprio ritmo de Zeus.

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Capítulo II

As esposas celestes: Śrī e Afrodite

2.1. Introdução

Como vimos no capítulo anterior, é até certo ponto possível resumir a pluralidade das deusas a

uma divindade central, interpretando-a como “princípio feminino”. Princípio este que se expressa

essencialmente na ideia de deusa-esposa, um poder interno (ou legitimador), imprescindível ao seu

detentor, o seu marido. Estas divindades, como Śakti e Hera, são mais conceptuais e ideológicas do

que manifestações reais, agindo na passividade como significação de acontecimentos, e não tanto

como forças activas na acção divina e mundana. Será neste sentido que permitem o surgimento de

grandes deusas, mais próximas à realidade mundana, mais activas e transferíveis, como Śrī e

Afrodite, que por sua vez se desenham num meio termo entre o que seria a “deusa”, e as mortais

que passam a influenciar directamente. Se Hera é o ideal da mulher, Afrodite passará a representar

os estados, influências e comportamentos femininos, tanto positivos como negativos, encarnando

aqui e ali, por meio de comparações, em determinadas mulheres poderosas, como Penélope e

Helena, cuja acção no mundo é exemplo para todas as outras mulheres mortais ao longo dos

séculos. No caso indiano, Śakti é o ideal de esposa e não a esposa real, esse papel será assumido por

deusas como Śrī e depois Lakṣmī, que agem sobre as mortais e encarnam no mundo com finalidades

muito específicas e “sombrias” (como são as das heroínas épicas), que por sua vez definem a

conduta ideal a ser adoptada pelas mortais, de forma tão intensa que a sua influência dura até ao

Presente.

Esta idealização e categorização das deusas, que descem de uma posição conceptual e mais

elevada, até uma mais concreta e real, está de resto atestada no imaginário IE, como bem viu Martin

West, que ao subdividir as deusas védicas em quatro categorias: entidades naturais com nomes

femininos (como Pṛthivī, Uṣas, Rātrī, Āpaḥ, e o rio Sarasvatī); personificações abstractas do género

feminino (como Aditi, Vāc, Śraddhā, Śrī-Lakṣmī); esposas ou associadas a deuses masculinos

(como Sūryā, Rudrāṇī, Varunāṇī e Agnāyī); e deusas terrenas (como as ninfas apsarās e

Araṇyānī),156 permite compreender os vários domínios da sua actuação, bem como a forma como

uma deusa celeste desliza na senda temporal até se tornar numa esposa divina ou numa mortal. O

primeiro grupo deverá ser visto como tipicamente IE, o segundo como uma formulação tardia,

muito semelhante de resto, ao que acontece com a Grécia e Roma, e o terceiro poderá ser uma

influência externa à Índia.157 No entanto, os deuses IE são sempre concebidos de forma

156 “Gods and Goddesses” in IEPM, p. 139.157 “Gods and Goddesses” in IEPM, pp. 139-140.

37

antropomórfica,158 alterando a sua significação, mais ou menos abstracta, mas mantendo sempre a

sua proximidade ao mundo dos mortais, funcionando como reflexo e exemplo.

No caso de Śrī-Lakṣmī e Afrodite, ambas deusas da beleza e do amor, revelam-se como uma

formulação tardia pelo facto de não se ter encontrado nenhuma evidência da existência de uma

deusa do amor no panorama PIE, sendo no universo IE que esta vai desempenhar um papel

extremamente importante,159 representando a criação, a protecção e a destruição. Estas deusas

ocupam o lugar de deusas-esposa, mas por representarem um ideal feminino, mesclam-se com a

ideia das deusas-mãe. Estas deusas já não significam o mundo ou o grande céu (como por exemplo

Śakti e Hera), mas sim os dois espaços e a sua interação amorosa.

2.2. Śrī

A deusa pré-ariana da fertilidade,160 Śrī, tem sido entendida como um composto de origem

drāvíḍica, Siri-Mā,161 e estaria presente nas culturas autóctones do subcontinente indiano numa fase

anterior à chegada dos povos IE. A deusa ter-se-á posteriormente mesclado com os conceitos

invasores, representando o “poder”, a “legitimação” e a “força” do marido, tornando-se num reflexo

de Śakti, que pode ter já estado presente na sua formulação drāvíḍica.162 Śrī, que é conhecida na

literatura védica como Indrāṇī ou Śacī (esposa de Indra), foi mais tarde chamada de Lakṣmī, nome

pelo qual é ainda hoje venerada, deixando gradualmente de ser esposa de Indra e passando a ser a

esposa de Viṣṇu.163 Ainda que a deusa Śrī-Lakṣmī não apareça na literatura védica inicial, a

designação śrī- aparece com frequência nos hinos, portando as designações que viriam mais tarde a

ser atribuídas à deusa, “capacidade” e “poder”, bem como as qualidades externas de “beleza”,

“brilho”, “glória”, e “luxo”.164 Na literatura védica tardia o termo śrī- é utilizado para “poder régio”,

“domínio” e “majestade” dos reis, representando sempre um poder adquirido pelos soberanos. Este

poder estaria mais relacionado com o ofício governativo do que com o governante em si.165 A deusa

158 “Gods and Goddesses” in IEPM, p. 138.159 “Love Goddesses” in EIEC.160 Alf Hiltebeitel, “World Sovereignty”, in The Ritual of Battle: Krishna in the Mahābhārata, New York, State

University of New York Press, 1990, p. 143; veja-se também Jan Gonda, “Śrī, the goddess”, in Aspects of Early Viṣṇuism, Delhi, Motilal Banarsidass, 1993 (reimpressão de 1954), p. 213.

161 Sukumari Bhattacharji, “The Mother Goddess” in The Indian Theogony: A Comparative Study of Indian Mythology from Vedas to the Purāṇas, London, Cambridge University Press, 2007, pp. 161-162.

162 David R. Kinsley, “Śrī-Lakṣmī” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition, London, University of California Press, 1988, p. 20; Alf Hiltebeitel, “Śrī and the Source of Sovereignty”, in The Ritual of Battle: Krishna in the Mahābhārata, New York, State University of New York Press, 1990. As origens de Śrī remontarão provavelmente ao período pré-védico, onde é comum encontrarmos deusas relacionadas com o poder régio.

163 Sukumari Bhattacharji, “Gods of the Visnu Group” in The Indian Theogony: A Comparative Study of Indian Mythology from Vedas to the Purāṇas, London, Cambridge University Press, 2007, p. 296.

164 David R. Kinsley, “Śrī-Lakṣmī” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition, Londres, University of Califórnia Press, 1988, p. 19. É por este motivo que decidi separar Śrī de Lakṣmī, geralmente apresentadas como uma única deusa, na designação de Śrī-Lakṣmī.

165 David R. Kinsley, “Śrī-Lakṣmī” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious

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estava de tal forma relacionada com o poder régio, que foi identificada com o trono (ou a almofada

do trono) em que o rei (ou um deus, em especial Brahmā) se senta, simbolizando a constância do

poder ainda quando o seu representante (rei) muda.166 A designação śrī- refere num sentido lato a

“riqueza física”, a “prosperidade material”, a “beleza dos corpos” e a “majestade dominante”.167 A

designação śrī- “beleza”, “esplendor”, “prosperidade”, etc., deriva da raiz śrā-, “ferver” e “cozer”

(cerâmica), podendo subentender que a deusa e o conceito representam algo que ganha forma e que

se materializa (o autor do ŚpBr une/confunde propositadamente os dois conceitos śrī- e śrā-, aqui

com o sentido de cozinhar168). Independentemente disto, śrī- porta tantas qualidades que se tornou

mais tarde num título honorífico colocado antes do nome de um deus ou homem eminente, presente

também na designação śrīmant “superior”, “importante”, “rico”, etc.169 A Ceres latina derivará da

mesma raiz IE que śrī-,170 mantendo as suas qualidades terrenas. No ŚpBr a palavra śrī- é por vezes

a excelência,171 a prosperidade,172 a fortuna,173 o esplendor,174 as perfeições,175 a beleza,176 e a força

física do homem (que se encontra nos ossos, que são da mesma natureza que as pedras).177 Toda esta

prosperidade, poder e beleza, confundem-se nos mitos com a ideia de amor e paixão que a deusa

transporta. Provavelmente, o primeiro mito de Śrī enquanto deusa é aquele que nos conta como

nasceu das austeridades de Prajāpati. A deusa nasceu com tantas qualidades que os outros deuses a

invejaram, roubando-as.178 Estas dez qualidades roubadas à deusa são as suas personificações e

estão associadas em particular com a realeza:179

Prajāpati tornou-se quente, enquanto criava seres vivos. Dele, [então] cansado e fervoroso, nasceu Śrī (a Fortuna e a Beleza). Ela permaneceu ali resplandecente, brilhando e vibrando. Os deuses, vendo-a assim resplandecente, brilhando e vibrando, focaram-se nela. Eles disseram a Prajāpati: “Deixa-nos matá-la e tirar-lhe tudo isto dela.” Ele disse: “É certo que Śrī é uma mulher, e as pessoas não matam uma mulher, mas pelo contrário, roubam-na

Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, p. 19.166 David R. Kinsley, “Śrī-Lakṣmī” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious

Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, p. 19; Jan Gonda, “śrī-” in Aspects of Early Viṣṇuism, Delhi, Delhi, Motilal Banarsidass, 1993 (reimpressão de 1954), p. 188; J. Gonda “Paraphernalia; officials” in Ancient Indian Kingship from the Religious point os view, Leiden, Brill, 1969 (reedição), p. 45; sobre as características do trono veja-se: ŚpBr 12.8.3.4 e ss.

167 David R. Kinsley, “Śrī-Lakṣmī” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, pp. 19-20. Por exemplo, é o arco de Rāma o que lhe permite ganhar “śrī” (legitimidade). Cf. Rām. 3.18.14.

168 ŚpBr 1.6.4.7; 8.1.17.169 Cf. “śrī-”, “śri-”, “śrā-” e “śrīmant-” in DSF.170 Sukumari Bhattacharji, “The Mother Goddess” in The Indian Theogony: A Comparative Study of Indian

Mythology from Vedas to the Purāṇas, London, Cambridge University Press, 2007, p. 162.171 ŚpBr 1.4.5.5; 2.1.2.8; 10.5.5.8; 6.1.1.4.172 ŚpBr 2.6.3.2; 11.4.2.10-11.173 ŚpBr 2.4.4.6.174 ŚpBr 2.1.1.7.175 ŚpBr 7.5.2.3.176 ŚpBr 13.2.6.16.177 ŚpBr 10.2.6.18. O que nos permite imaginar outra leitura para a presença dos ossos e cana no mito de Prometeu.178 ŚpBr 11.4.3.1 e ss.179 David R. Kinsley, “Śrī-Lakṣmī” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious

Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, p. 20

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(deixando-a) viva.” Agni tirou-lhe a comida, Soma o seu poder real, Varuṇa a sua soberania universal, Mitra a sua nobreza, Indra o seu poder, Bṛhaspati o seu brilho sagrado, Sāvitrī a sua autoridade, Pūṣan a sua riqueza, Sarasvatī a sua prosperidade, e Tvaṣṭṛ as suas belas formas.180

Depois de roubada, Śrī invocará os dez deuses pedindo-lhes de volta as suas qualidades, que

estes restituirão. A invocação de cada deus porta já o epíteto da qualidade roubada: 1) Agni, que se

alimenta de comida, senhor da comida; 2) Soma, rei e senhor dos reis; 3) Varuṇa, a soberania

universal, senhor de todas as soberanias; 4) Mitra, o kṣatra (nobre, guerreiro) e senhor dos

kṣatriyas; 5) Indra, o poder e o senhor do poder; 6) Bṛhaspati, o brāhmaṇa e senhor dos brāhmaṇas;

7) Sāvitrī, o reino e a senhora dos reinos; 8) Pūṣan, riqueza e senhor da riqueza; 9) Sarasvatī, a

prosperidade e senhora da prosperidade; 10) Tvaṣṭṛ, criador das formas e senhor das formas.181

Além deste roubo definir as qualidades de Śrī, porta igualmente a ideia do “rapto” da mulher, do

poder e da legitimidade, que persistirão nas mortais que farão reflexo dela, principalmente Sītā e

Draupadī. De forma não menos interessante, o roubo permite-nos compreender as principais

qualidades dos outros dez deuses védicos, todas elas originárias de Śrī, e se pretendermos uma

interpretação mais profunda, entendemos que o “poder” (śrī-) inseparável na forma de Śrī, se

subdivide ou expande em dez partes ou deuses, que serão provavelmente as dez formas de aplicar

esse mesmo poder no mundo, poder esse que regressa (ou subentende uma ligação) à sua origem.

Será ainda interessante dar alguma importância à presença do número dez neste mito, e à sua

sequência: o número zero (que será Śrī) nasce do deus criador, e o número dez nasce das qualidades

da criação contidas em Śrī, o número zero (Prajāpati e Śrī) é o acto criativo e o “centro”, que se

alastra até à criação e periferia dessa criação, mantendo uma ligação à sua origem. Desta forma,

quando um rei (ou reino) possui ou põe em prática as dez qualidades de Śrī, torna-se ele mesmo na

união e presença de Śrī, o que nos pode ajudar a compreender o porquê de Śrī representar o reino, a

legitimidade, o bom governo, a prosperidade e o amor, etc. O facto de Śrī se manifestar na literatura

épica em Draupadī, e esta se casar com cinco heróis (os Pāṇḍavas), pode implicar a mesma ideia de

união, o que é perceptível nas qualidades de cada um dos seus maridos: 1) Yudhiṣṭhira representa a

alimentação e a realeza; 2) Bhīma mantém e representa a soberania e a nobreza; 3) Arjuna o poder e

prática sacerdotal; 4) Nakula o reino e riqueza; 5) Sahadeva a prosperidade e beleza/formas.182 É

também possível compreender que os heróis “manifestam” ideais celestes (deuses, leis) em ideias

180 ŚpBr 11.4.3.1-3: «prajāpatirvaiprajāḥ sṛjamāno'tapyata tasmāchrāntāttapānāchrīrudakrāmatsā dīpyamānā bhrājamānā lelāyantyatiṣṭhatāṃ dīpyamānāmbhrājamānāṃ lelāyantīṃ devābhyadhyāyan / teprajāpatimabruvan hanāmemāmedamasyā dadāmahā iti sahovāca strī vāeṣā yachrīrna vai striyaṃ ghnantyuta tvāasyā jīvantyā evādadata iti / tasyā agnirannādyamādatta somo rājyaṃ varuṇaḥ sāmrājyammitraḥ kṣatramindro balambṝhaspatirbrahmavarcasaṃ savitārāṣṭrampūṣā bhagaṃ sarasvatī puṣṭiṃ tvaṣṭā rūpāṇi»

181 Cf. ŚpBr 11.4.3.4-17.182 Para uma compreensão geral (ainda que muito completa) das qualidades e epítetos de cada um dos Pāṇḍavas

veja-se em especial: “Yudhiṣṭhira”, “Bhīma”, “Arjuna”, “Nakula” e “Sahadeva” in Sören Sörensen, An Index to the Names in the Mahābhārata, London, Williams & Norgate, 1904-1925.

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terrenas (acção), logo, dualidades, que se podem estruturar da seguinte forma: 1) alimentação/reis, o

rei gera toda a alimentação para o povo; 2) soberania/nobreza, a soberania só existe entre os nobres;

3) poder/brāhmaṇas, só os sacerdotes conferem um poder celeste aos reis; 4) reino/riqueza, só um

reino pode gerar riqueza; 5) prosperidade/formas, a prosperidade gera a criação e a beleza das

“formas”. O número dez volta a aparecer nos dez avatāras de um único deus (Viṣṇu, que virá a ser

o esposo de Śrī-Lakṣmī), o ṚV divide-se em dez partes (livros), ou noutros exemplos menos seguros

como os dez meses lunares da gravidez de uma mulher, os dez anos da guerra de Tróia e do regresso

de Ulisses, etc., persistência numérica que deverá ter na sua origem um significado.

Na literatura védica encontramos o hino Śrīsukta, anexo ao livro V do ṚV, em honra de Śrī, onde

ela é referida como aquela que traz a fama, a prosperidade, a abundância, a riqueza, a comida, o

gado e os cavalos, e aquela que deverá banir a sua irmã Alakṣmī (também chamada Jyeṣṭhā), a

“desgraça”.183 Ela é “radiante como o ouro” e “luminosa como a lua”, a “humidade” e “perceptível

através do odor”, “abundante na colheita” e “existente no estrume da vaca”.184 Śrī é associada com o

lótus185 (tal como será a deusa Afrodite186), recebendo por isto as designações de Padmā e Kamalā,

bem como com o elefante.187 Śrī está assim, desde a sua origem, intimamente ligada à realeza e às

virtudes régias, e presente nas três/quatro rainhas que participam no sacrifício do cavalo, o

aśvamedha,188 e Lakṣmī, por sua vez, representando a fertilidade, dará o nome à fêmea do cavalo 183 Para a dualidade veja-se: Julia Leslie, “Śrī and Jyeṣṭhā: Ambivalent role models for women” in Roles and

Rituals for Hindu Women, Delhi, Motilal Banarsidass, 1992.184 Cf. David R. Kinsley, “Śrī-Lakṣmī” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious

Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, p. 20; veja-se para a actualidade do culto à deusa no estrume da vaca: Upendra Nath Dhal, Goddess Lakṣmī: Origin and Development, Delhi, Oriental Publishers, 1978, p. 178 e ss. Note-se ainda a possível comparação com o tópico do escaravelho egípcio que transforma lama ou estrume numa bola compacta que faz girar sobre o solo, símbolo do sol sobre o mundo.

185 Existem representações desta deusa do período Gupta, portando a cornucópia e o lótus (símbolo indiano para beleza) nas mãos. Sukumari Bhattacharji, “The Mother Goddess” in The Indian Theogony: A Comparative Study of Indian Mythology from Vedas to the Purāṇas, London, Cambridge University Press, 2007, p. 162. O lótus, para além da sua relação com a criação do mundo e com o órgão sexual feminino (Curt Maury, Folk Origins of Indian Art, New York, Columbia University Press, 1969, pp. 110-111 e ss.), representa, pelo facto de nascer da lama fechado e só abrir as suas pétalas quando totalmente acima da água, a pureza espiritual, sendo por este motivo que os deuses na iconografia hindu e budista são recorrentemente representados sentados ou de pé sobre um lótus, símbolo da autoridade espiritual sobre aquilo que é mundano (água). David R. Kinsley, “Śrī-Lakṣmī” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, p. 21. No caso de Śrī-Lakṣmī, que está relacionada com o poder real, podemos entender o lótus como um “trono” onde a deusa se senta, ou um “barco” que navega sobre as águas, esta última bem atestada por Draupadī, que é muitas vezes referenciada como “barco” dos Pāṇḍavas, (MBh 2.72.1-3) ou seja, “barco da realeza/linhagam real”.

186 Agnieszka Fulińska, “Iconography of the Ptolemaic Queens on Coins: Greek Style, Egyptian Ideas?”, Studies in Ancient Art and Civilization, 14, 2010, p. 80 e ss.; C. Lorber, “The lotus of Aphrodite on Ptolemaic bronzes”, Revue Suisse de Numismatique, 80, 2001.

187 Símbolo da prudência e inteligência. A representação mais popular de Śrī-Lakṣmī, é chamada Gaja-Lakṣmī, em que ela se encontra flanqueada por dois elefantes que deitam água das trombas, simbolizando as águas que fertilizam a terra, para além de serem um animal utilizado na guerra, e animal no qual o rei se deslocava nas procissões cerimoniais. Na cerimónia do rājasūya, o ritual abhiṣekha, em que o rei era consagrado com a asperção de água, pode estar relacionado com a imagem dos elefantes a lançar água sobre Śrī. Cf. David R. Kinsley, “Śrī-Lakṣmī” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, pp. 21-22.

188 Cf. ŚpBr XIII, 2, 6, 1-7; Esta ideia aproxima-a ao mesmo tempo da tripartição de Hera no ano. A mitologia indiana continuará a atribuir a ideia de soberania à deusa Śrī-Laksmī. Cf. Alf Hiltebeitel, “World Sovereignty”, in The

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sacrificado no aśvamedha.189

Mais tarde Śrī-Lakṣmī foi associada com o deus Soma (lua), sendo a sua esposa, isto porque

Soma representa a autoridade régia, e onde está o “poder” está sempre Śrī.190 Por outro lado Soma,

representando a ciclicidade, relaciona-se facilmente com a ideia de “poder” (e feminilidade) da

deusa, que é cíclico, passando de um governante ao outro, de uma dinastia a outra. Noutras fontes

Śrī é associada com a lei e o sagrado, o dharma (enquanto conceito e deus), e representada como a

sua esposa.191 No entanto, a relação entre Śrī e o rei dos deuses, Indra, é a mais desenvolvida e

também aquela que mais nos interessa quanto à literatura épica, onde Śrī é o símbolo da “autoridade

régia”, que pertence ao soberano.192 No MBh diz-se que enquanto Śrī habita com os demónios Bali e

Prahlāda, estes reinam de acordo com o dharma, mas quando ela abandona Prahlāda, a pedido de

Indra, o demónio perde todas as suas qualidades de rei.193 Bali por sua vez, na presença de Śrī, reina

sobre os três mundos virtuosamente.194 Quando Śrī se sentou perto de Indra, a chuva surgiu e os

campos geraram grandes culturas, as vacas ficaram cheias de leite e toda a terra floresceu,195 até

certo ponto é possível comparar com o momento em que Hera e Zeus se uniram no topo do Ida,

formando-se uma nuvem dourada.196 A relação Śrī-Indra, parece ser uma versão tardia da relação

Pṛthivī-Dyaus,197 uma relação entre a terra e o céu, que é sustentada também pelo facto de Indra ser

associado com o “arado” e Śrī com a fertilidade dos terrenos.198 A relação de Śrī com a natureza e a

riqueza fizeram com que fosse igualmente associada a Kubera (região do Norte e a riqueza199), o

senhor dos Yakṣas, seres selvagens que habitam nas florestas, estando relacionados com a fertilidade

da natureza.200 Compreendemos desta forma que a riqueza dos terrenos agrícolas estaria certamente

relacionada com a riqueza do reino, permitindo mais tarde uma percepção filosófica que reúne o

bom e recto (no caso do arado) trabalho agrícola com o bom governo.

Ritual of Battle: Krishna in the Mahābhārata, New York, State University of New York Press, 1990, pp. 143-149.189 Samir Nath, Dictionary of Vedanta, Delhi, Ivy Publishing House, 2002, pp. 283-284.190 David R. Kinsley, “Śrī-Lakṣmī” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious

Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, p. 23.191 David R. Kinsley, “Śrī-Lakṣmī” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious

Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, p. 23; com base na ideia de que o dharma gera a prosperidade (Śrī-Lakṣmī), veja-se por exemplo: Upendra N. Dhal, Goddess Lakṣmī: Origin and Development, Delhi, Oriental Publishers and Distributors, 1978, pp. 68-69.

192 David R. Kinsley, “Śrī-Lakṣmī” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, p. 23; Cf. Bandana Saraswati, History of the Worship of Śrī in North India to Cir. 550 A.D., London, University of London, 1971, pp. 138-147.

193 MBh 12.124.45-47.194 MBh 12.216.16.195 MBh 12.221.14 e ss.196 A erva brotou na terra. Para toda a narrativa veja-se: Il. 14.153-353.197 David R. Kinsley, “Śrī-Lakṣmī” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious

Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, p. 25.198 ṚV 2.21.1; 6.20.1, etc.199 Cf. “kubera-” in DSF.200 David R. Kinsley, “Śrī-Lakṣmī” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious

Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, pp. 25-26.

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Śrī terá sido associada a Viṣṇu a partir do período védico tardio (c. 500 a.C.) como a sua esposa,

passando a desempenhar essencialmente o papel de “modelo feminino” para a mulher hindu, função

que durou até à actualidade, continuando no entanto associada à prosperidade, ao bem-estar, ao

poder real e ao brilho.201 No ViPur a sua associação com Viṣṇu dá-lhe um carácter de mãe do

mundo, bem como de penetração, preservação e existência no seio de todas as coisas,202 e são estes

atributos que mais perduraram ao longo do tempo. Aqui Śrī é igualmente esposa de Yama, de

Varuṇa,203 e de Śiva, é as esposas dos Progenitores (Pitṛs), a eterna fonte de alimento, Śrī é o céu e

Viṣṇu o espaço que se estende debaixo dele.204 Śrī é o “princípio do movimento no mundo”, e Viṣṇu

o vento que sopra em toda a parte, Viṣṇu é o oceano e Śrī a costa.205 Śrī é o exército celeste,206 o

ceptro, a oposição e a resistência, a luz, a mãe, a videira rastejante que sobe pela árvore que é Viṣṇu,

é a noite, a noiva, e tudo aquilo que é feminino.207 Śrī é o discurso, a prudência, o intelecto, a

devoção, toda a criação, a terra, a vontade, a invocação dos deuses, o altar, o fogo sacrificial e o tom

do canto dos hinos sagrados.208 O facto de a deusa ser associada com tantos seres masculinos, deu-

lhe um carácter inconstante,209 e só a partir do momento da sua quase exclusividade a Viṣṇu e aos

seus avatāras é que ganha alguma estabilidade.210

Śrī habita nas mulheres devotas ao marido, à verdade e ao decoro,211 não existindo diferença

entre as striyaḥ (esposas virtuosas) e as śriyaḥ (deusas da fortuna).212 É principalmente por este

motivo que ela encarna em heroínas como Draupadī, Sītā e Sāvitrī, que são poderosos ecos na

concepção do feminino na Índia ao longo dos séculos. Śrī-Lakṣmī não se limita ao universo indiano,

combinando em si as características de Deméter-Perséfone, bem como as de Afrodite,213 tendo ainda

um filho relacionado com o amor e a paixão, Kāmadeva (ou Madana), “deus do desejo”, bem

semelhante a Eros.214 201 David R. Kinsley, “Śrī-Lakṣmī” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious

Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, p. 19.202 ViPur 1.8.16.203 ViPur 1.8.26-28.204 ViPur 1.8.23-24.205 ViPur 1.8.25.206 ViPur 1.8.28. É este atributo que mais a compara com Devī, a “divindade feminina” ou “deusa”, que representa

a sabedoria, o poder bélico e a concepção. Esta divindade, que parece ser um conceito, inclui em si várias deusas como Śrī-Lakṣmī, e nasceu da luz que emanou do corpo dos principais deuses do panteão indiano, assim, Devī pôde salvar o mundo dos inimigos dos deuses, o que a compara com Śrī da qual foram roubados os atributos por vários deuses, bem como com Pandora, a portadora de “todos os dons”. Cf. “Transfunctional Goddess” in EIEC, p. 595.

207 Cf. ViPur 1.8.29-35.208 ViPur 1.8.17-22.209 MBh 12.220.44-46.210 Esta relação contudo já está presente na agitação do oceano de leite, de onde nasce Śrī-Lakṣmī. David R.

Kinsley, “Śrī-Lakṣmī” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition , London, University of Califórnia Press, 1988, pp. 26-27.

211 MBh 13.11.10.212 ManuS 9.26b: «striyaḥ śriyaś ca geheṣu na viśeṣo'sti kaścana»213 Sukumari Bhattacharji, “The Mother Goddess” in The Indian Theogony: A Comparative Study of Indian

Mythology from Vedas to the Purāṇas, London, Cambridge University Press, 2007, p. 162.214 “Love Goddess” in EIEC; Sukumari Bhattacharji, “The Mother Goddess” in The Indian Theogony: A

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Um dos mitos mais famosos relacionados com Śrī é a Agitação do Oceano de Leite (samudra-

manthana),215 cujo objectivo foi o de produzir, através do remeximento do leite, a coalha ou a

imortalidade (amṛta), que foi dada aos deuses. Para este grande trabalho tiveram de se unir deuses e

demónios. Utilizando a montanha Mandara como vara de remexer, apoiada sobre a carapaça do rei

das tartarugas, e a serpente Vāsuki como corda (os asuras pegaram-lhe pela cabeça e os devas pela

cauda), e tendo recebido a aprovação do oceano, agitaram violentamente as suas águas, como no

acto de coalhar. Desta grande agitação: primeiro nasceu soma (lua, bebida) de raios frescos, depois

Śrī vestida de branco, depois surā (vinho), e o cavalo branco Uccaiḥśravas (lit. “de poderoso

relinchar”), estes três últimos colocam-se em torno de Nārāyaṇa (Viṣṇu); depois surgiu o médico

divino Dhanvantari com um jarro com a ambrósia (amṛta) que os asuras reclamaram para si; depois

nasceu o elefante branco com quatro presas, o qual foi imediatamente montado por Indra; e por fim

o veneno Kālakūṭa que envolveu a terra de fogo, mas que por ordem de Brahmā, Śiva bebeu o

veneno e salvou o mundo, recebendo o nome de Nīlakhaṇṭha “que tem a garganta azul/negra”.216 Os

asuras tentaram roubar a amṛta e Śrī (o que permite comparar a deusa com a “imortalidade”) mas

Nārāyaṇa tomou a sua forma feminina, Mohinī (“aquela que engana”), e os asuras, iludidos, dão a

amṛta a Nārāyaṇa-Mohinī que a devolveu aos deuses. O demónio Rāhu tentou beber a amṛta mas

Nārāyaṇa, alertado pelo sol e pela lua, decapitou o demónio com o seu disco. É a primeira vez que

um corpo sem cabeça cai na terra. Rāhu, cuja cabeça se torna num planeta inimigo, passará a ser

aquele que causa os eclipses solares e lunares. Os demónios e os deuses entraram num violento

combate pela posse da amṛta, no qual combateram principalmente Nara com o seu arco e Nārāyaṇa

com o seu disco (reflexo do que virá a ser Arjuna e Kṛṣṇa no MBh), e Indra deu a Kirīṭin (o

“coroado”, epíteto de Arjuna-Nara) a função de guardar a amṛta.217 Vemos assim a deusa Śrī a

nascer da agitação do Oceano de Leite, da mesma forma com que Afrodite nascerá da espuma do

mar, o que representará de certa forma a vida que sai das águas e que se torna orgânica,

relacionando-se ainda o nascimento com um momento de batalha e definição de soberanias (de um

lado entre deuses e demónios, do outro entre Úrano e Crono). O culto do nascimento de Śrī-Lakṣmī

através da agitação das águas está muito ligado ao “arado” e ao crescimento do cereal na Índia,

especialmente na zona de Bengala, talvez seja por este motivo que Sītā (encarnação de Śrī) nascerá

de um terreno no momento em que este é arado. Śrī-Lakṣmī ao ser relacionada com o lótus (sendo-

Comparative Study of Indian Mythology from Vedas to the Purāṇas, London, Cambridge University Press, 2007, p. 163.215 MBh 1.17-19; esta narrativa repete-se no ViPur 1.9.92-103.216 As cores no sânscrito não correspondem exactamente às nossas ocidentais, como é o caso, em que se englobam

as duas cores na mesma palavra. Note-se que a designação latina venenum “veneno”, é um derivado de venus “desejo”, “amor”, “veneração”, deusa correspondente a Śrī. Cf “venēnum”, “venus” in EDL.

217 MBh 1.17-19. O facto de amṛta e a deusa Śrī serem desejo de roubo por parte dos asuras, permitindo ver em Śrī a imortalidade dos deuses, e pelo facto de Kirīṭin ser Arjuna, dá-nos alguma luz sobre o modo como Arjuna ganha Draupadi e como a protege das tentativas de “roubo” por parte dos Kaurava (que são encarnações de demónios), bem como a relação de Nara (Arjuna) com Nārāyaṇa (Kṛṣṇa) neste episódio, permitem enriquecer muito a leitura do MBh.

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lhe comparada, portando-o na mão e elevando-se sobre um lótus que sai das águas) está relacionada

com o acto simbólico de sair das águas, sejam estas materiais ou celestes, e com a beleza das pétalas

intactas do lótus que se elevam sobre a água/lama. A deusa é também representada entre dois

elefantes (poder real e militar) que jorram água das trombas sobre ela, com o sentido de “chuva

fertilizante”, “matéria” e “criação”.218 Śrī-Lakṣmī é atraída pelas diferentes formas de Viṣṇu, os seus

avatāras, e sendo Viṣṇu a “totalidade” da criação, o “povo” e a “vida”,219 permite-nos entender a sua

esposa divina como aquela que “fertiliza”, ama e habita o espaço preenchido por Viṣṇu.

No presente é mais comum a deusa ser chamada simplesmente Lakṣmī do que Śrī ou Śrī-Lakṣmī.

Lakṣmī começou por ser um epíteto (em especial de Śrī), lakṣmi-, com a significação de “sorte”,

“prosperidade”, “dignidade do rei”, “fortuna real”, etc., sem personificação, da raiz lakṣ-, presente

nas designações lakṣa- e lakṣman- “marca”, “meta”, “signo”, etc.,220 libertando-se pouco a pouco de

Śrī e ganhando um lugar de destaque nos cultos contemporâneos. Śrī ou Lakṣmī, é hoje uma das

deusas mais famosas do panteão hindu, desempenhando um importante e extenso papel no corpus

mitológico indiano, sendo a mãe e a esposa por excelência, que dá o exemplo ou o ideal a seguir, às

mulheres indianas, representando sobretudo o “amor” e a “prosperidade”.

2.3. Afrodite

Afrodite, deusa do amor e da beleza, cujo trabalho é o casamento,221 (o reflexo grego da deusa

Śrī, que é à sua semelhança o ideal de mulher e de beleza222) desenvolve-se etimologicamente em

aphrodísia “festa de Afrodite” e aphrodisiázein “acto sexual”, estando essencialmente relacionada

com a consumação da sexualidade e do prazer.223 A designação arcaica para o desejo sexual érōs,

torna-se no seu filho Eros, que é geralmente acompanhado por Hímero, de hímeros “ânsia”,

“desejo”,224 e que é um reflexo de Kāmadeva (“deus do amor”, filho da deusa Śrī e casado com Ratī

“prazer”). Afrodite será a “muito brilhante”, do grego aphro (PIE abhor- “muito”) e dítē (PIE dhei-

218 David R. Kinsley, The Goddesses' Mirror: Visions of the Divine from East and West, New York, State University of New York Press, 1989, pp. 56 e ss.

219 Cf. “Víṣṇuḥ” e “viṣ-” in KEWA III.220 “lakṣmī-”, “lakṣa-” e “lakṣman-” in DSF; “lakṣ-” e “lakṣma” in KEWA III; Thomas B. Coburn, Devī-Māhātmya:

The Crystallization of the Goddess Tradition, Delhi, Motilal Banarsidass, 2002 (reimpressão de 1984), pp. 157-158; Swami Parmeshwaranad, “Lakṣmī” in Encyclopaedic Dictionary of Purāṇas, vol. 2, Delhi, Sarup & Sons, 2001, p. 413. Lakṣmī recebe vários epítetos como sāra, “essência do leite”, māyā, “ilusão”, amalā, “sem-lugar”, “puro”, “brilhante”, da mesma raiz que amara “imortal” e “cordão umbilical”, jyeṣṭhā-lakṣmī, “senior”, “marca”, “centro”, piṅgala, “amarelo”, “dourado”, “brilhante”, etc. Cf. Monier Williams, A Sanskrit-English Dictionary, Delhi, Motilal Banarsidass, 2005 (reimpressão de 1899), pp. 81, 330, 427, 625, 811. Também o sindūra (cor vermelha) e a bindu, a pinta vermelha colocada na testa pelas mulheres, representam o “poder” da deusa Lakṣmī e de Śakti. Cf. Constantina Rhodes, Invoking Lakshmi: The Goddess of Wealth in Song and Ceremony, New York, State University of New York Press, 2010, p. 11.

221 Il. 5.429; Cf. Od. 20.74.222 Paus. 3.23, etc. 223 Walter Burkert, “Afrodite” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste

Gulbenkian, 1993, pp. 300-301; “Ἀφροδίτη” in DELG.224 Walter Burkert, “Afrodite” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste

Gulbenkian, 1993, p. 301.

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“brilho”), e este “brilho” faz com que esteja logicamente associada à aurora, sendo comparada a

várias divindades IE (também Śrī estava associada a Viṣṇu, que começou por ser uma divindade

solar secundária). No entanto, seria popularmente compreendida como a “nascida da espuma”, de

aphrós e dýtē,225 por aproximação etimológica e com base no mito que conta o seu nascimento dos

genitais castrados de Úrano, por Crono, que caíram na espuma revolta do mar.226 Este nascimento

compara-a tanto com Śrī como com as ninfas IE que geralmente habitam nas águas, em especial

com as apsarās que nascem do samudra-manthana (“agitação do oceano”). Os paralelos com

nascimento de Satyavatī são inegáveis, mito no qual o sémen do seu pai Vasu cai ao rio Yamunā e é

engolido por um peixe, que é na realidade uma apsarā chamada Adrikā (lit. “da montanha”), que

gerará Satyavatī.227 Satyavatī será a esposa de Kuru (rei fundador da dinastia dos Kurus). A origem

de Afrodite é obscura, podendo remontar ao Próximo Oriente, em particular à deusa Ištar

mesopotâmica e à Astarte mediterrânea, a esposa divina do rei, a rainha do céu e a metera, que se

reflectem na Afrodite ouranía (“celeste”).228 Foi igualmente comparada à Milita da Assíria, a Mitra

da Pérsia, e à Alilat arábica,229 à Hathor egípcia,230 Argimpasa dos Cítios231 e à Vénus romana,232

comparações que vão permitindo uma interpretação mais completa da deusa.

O nome de Afrodite, se formado de aphrós “espuma”, subentenderá outra leitura que coloca a

deusa em relação com África (Aphrikḗ), incluindo a ideia de “negra”,233 o que se atesta num dos

epítetos atribuídos à deusa, melainís, a “negra” ou “nocturna”,234 característica que a aproxima da

deusa Durgā-Kālī pelo seu carácter “sombrio”, bem como da heroína Draupadī, a kṛṣṇā (“negra”).

No caso indiano esta designação de kṛṣṇā (masc. kṛṣṇa-), que subentende a cor “negra/azul”, tem

sido apontada por alguns autores como uma prova da origem não-ariana de alguns deuses, devido ao

facto de serem kṛṣṇāḥ (negros), assim como pelo facto de estarem geralmente relacionados com a

terra e o pastoreio,235 no entanto este carácter “negro” define usualmente a acção das personagens no

mundo, que é “sombria” (i.e., causadora da morte física, dinástica, temporal, etc.), e não

propriamente a cor da pele.236 No caso de Afrodite, ainda que a sua origem possa ser afro-asiática,

225 “Love Goddess” in EIEC.226 Hes. Teog. 190.227 MBh 1.63.228 Walter Burkert, “Afrodite” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste

Gulbenkian, 1993, p. 301; “Love Goddess” in EIEC; Ésq., Sup. 547 e ss.; Paus. 1.14.6; Hdt. 1.105.229 Hdt. 1.131.230 Hdt. 2.41.231 Hdt. 4.59; 67.232 Por exemplo: Cic., Da Natureza dos Deuses 2.27.233 Como no culto da Afrodite Negra. Cf. Paus. 9.27.5.234 Veja-se por exemplo: Paus. 2.2.235 D. D. Kosambi, “The Autochthonous Element in the Mahābhārata”, JAOS, 84/1, 1964, p. 35.236 Esta relação entre a cor sombria e a sua acção no mundo será uma constante ao longo do MBh, estando estas

personagens também relacionadas com a ideia de “barco” que salva o dharma (“lei”, “sagrado”, etc.), permitindo que ele passe sobre as águas do mundo. A mulher relacionada com a cor sombria e o barco, não deixa de encontrar também reflexo em Afrodite e Helena. Cf. Madeleine Biardeau, Le Mahābhārata: Un recit fondateur du brahmanisme et son

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ela está mais relacionada com o “brilho” do que com a “sombra” ou com aquilo que é negro. No

entanto, Afrodite também é identificada com a noite, tal como Śrī, e é representada com a pele

escura,237 portando igualmente características telúricas (a terra, e não apenas no imaginário IE, é

com frequência negra), começando pelo facto de nascer no mar e dirigir-se para terra, bem como a

sua qualidade protectora, como faz com o cadáver de Heitor238 que ela protege, como protege a terra

um corpo no caso de sepultamento, repetindo a ideia de “protecção” presentes em Ísis, Hathor e Śrī.

Um dos mitos mais famosos relacionados com Afrodite é precisamente o seu nascimento, o

momento em que Crono cortou os membros de Úrano, retirando-lhe a virilidade e a soberania, e as

gotas de sangue que caíram na terra geraram as Erínias, bem como os «grandes Gigantes com

reluzente armadura, portando longas lanças nas suas mãos»,239 e as Ninfas que são chamadas de

Mélias.240 Quando os genitais caíram no mar agitado, eles foram levados pelo mar, gerando “espuma

branca” (leukòs aphrós) em torno da carne imortal do deus, surgindo daqui a deusa. Afrodite foi

primeiro para Citera e daí para Cipro,241 «e a erva cresceu em torno dela, debaixo dos seus bem

modelados pés»,242 frase que aponta a sua relação com a “fertilidade” da natureza. A “espuma” era

de resto relacionada com o “sémen”243, e desta forma permite-se entender Afrodite nascida da

espuma, como Afrodite nascida do sémen de Úrano, ou seja, nasceu da vitalidade criadora de uma

antiga soberania, agora destruída por Crono:

A ela os deuses e os homens chamaram de Afrodite, e deusa nascida da espuma e ricamente coroada κυθέρεια (de Citera), e kyprogenéa porque nasceu [no mar revolto de] Cipro, e philommedḗs (amante de genitais) porque nasceu dos genitais [de Úrano].244

De onde derivará philommeidḗs (amante do riso).245 Este parece ser aliás um tópico relacionado

com o planeta Vénus, já que certa vez o astro, na forma de Kāvya Uśanas, roubou Kubera que

protegia um tesouro de grande estima para todos os deuses que estavam a Norte, e o lesado,

reconhecido pela sua austeridade e bondade, foi-se queixar a Śiva, que de imediato engoliu Uśanas.

Mais tarde, e como um castigo nunca é eterno, Śiva permitiu que Uśanas voltasse à liberdade interpretation, 2 vols., Paris, Editions du Seuil, 2002, pp. 201-202. Para a questão veja-se igualmente: Martin Bernal, Black Athena: The Afroasiatic Roots of Classical Civilization, 3 vols., New Jersey, Rutgers University Press, 1987-2006.

237 Cf. Carl Olson, The Book of the Goddess, past and Present: an introduction to her religion , New York, Crossroad, 1983, p. 141 e ss.

238 Il, 23.185.239 Hes. Teog. 185-186: «krateràs megálous te Gígantas, teúchesi lampoménous, dolích᾽ énchea chersìn échontas».

Aqui mais uma vez surge o tópico da “lança” associado a uma deusa.240 Hes. Teog 178-187.241 Hes. Teog. 188 e ss.242 Hes. Teog. 194-195: «amphì dè poíē possìn hýpo rhadinoîsin aéxeto»243 Cf. Aristóteles, História dos Animais, 736a, 14 e ss. 244 Hes. Teog. 195-200: «tḕn d᾽ Aphrodítēn aphrogenéa te theàn kaì eustéphanon Kythéreian kiklḗiskousi theoí te

kaì anéres, hoúnek᾽ en aphrō� i thréphthē: atàr Kythéreian, hóti prosékyrse Kythḗrois: Kyprogenéa d᾽, hóti génto polyklýstōi enì Kýprōi: ēdè philommēdéa, hóti mēdéōn exephaánthē.»

245 Walter Burkert, “Afrodite” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 305.

47

através do seu sémen, e este passou a ser chamado Śukra, o “brilhante”. Por esta razão, o planeta

Vénus passou a ser chamado “filho de Śiva”,246 o que poderá continuar a ser comparado com outros

mitos, como por exemplo com a criação-ejaculação do deus egípcio Atum. Afrodite torna-se assim

na própria criação do mundo.

Noutras versões Afrodite nasce de um ovo, mito que terá recebido influências do nascimento de

Astarte,247 já que à excepção do hino homérico a Afrodite não há referência a este mito na literatura

homérica, na qual ela é filha de Zeus e Dione.248 As tradições mais antigas tomam-na por filha de

Crono e Eurínome ou de Úrano e Hemera,249 etc.

Afrodite foi igualmente relacionada com várias personagens masculinas, ainda que sendo casada

com Hefesto, o qual ela traiu com Ares,250 traição a partir da qual se tornou mãe de Fobo, Deimos e

Harmonia, e de acordo com outras versões de Eros e Antero.251 A deusa relacionou-se igualmente

com Dioniso, Hermes e Posídon, tornando-se mãe de Priapo, de Baco, de Hermafrodito, de Rodo e

de Herófilo. O facto de Afrodite (tal como Śrī) se relacionar com vários deuses e mortais,

representará alguma semelhança com o motivo pelo qual Zeus (ainda que casado com Hera) se

relaciona com tantas deusas e mortais ao longo dos seus mitos, não significando meramente a

traição (que terá motivos simbólicos específicos a cada situação), mas também a interacção entre

características divinas, bem como com realidades terrenas. Esta ideia estará bem atestada na relação

da deusa com Ares, um relacionamento amoroso entre a criação e a destruição, o amor e a guerra,

etc. Ares, o deus da guerra gerada pelas “divisões” entre os homens, ao relacionar-se com Afrodite,

dá à deusa a qualidade de “harmonizar” e “reunir” os elementos dispersos e divididos, ou seja,

aquilo que a guerra afasta, o amor, i.e., Afrodite, reúne. Não será ao acaso que do concurso

provocado pela Discórdia, será Afrodite a vencedora sobre deusas poderosas como Hera e Atena,

porque ela parece ser capaz de “harmonizar” determinada realidade gerada pela discórdia e tirar

partido dela. Por outro lado, e de acordo com Dumézil, Afrodite (a função agrícola) sai vencedora,

em detrimento das funções soberana (Hera) e guerreira (Atena), devido à escolha errada de Páris,

gerando a guerra de Tróia.252 Este “erro” de Páris será simbólico, na medida em que exalta uma

deusa sobre as outras, e a terceira função sobre as duas primeiras, subentendendo uma mudança de

paradigma na sociedade homérica, que terá gerado uma crise que é tanto terrena quanto celeste. No

entanto, Afrodite não perde o seu valor simbólico de harmonização nesta acepção. E é desta forma

246 Cf. MBh 12.278.16; Stella Kramrisch, “The Refusal to Procreate and the Encounters with Death” in The Presence of Śiva, New Jersey, Princeton University Press, 19922, pp. 142-145.

247 Ps. Hig., Fáb. 197.248 Il 5.370; 20.105; Eur., Hel. 1098; Apolod. 1.13, etc.249 Cic. de Nat. Deor. 3.21; 250 Od. 8.266-270 e ss.251 Hes. Teog. 934; Il. 13.299; 4.440; Cic. de Nat. Deor. 3.23. 252 Cf. Georges Dumézil, “Introduction: Il était trois fois...” in Mythe et Épopée I, II, III, Paris, Gallimard, 1995, pp.

15-16, 608-614.

48

que Ares necessita de Afrodite no seu trabalho, tal como os dois amantes necessitam de Hefesto, que

longe de simbolizar apenas o marido enganado, representa também aquilo que pode unir

definitivamente dois conceitos dificilmente conjugáveis (guerra e amor), e aquilo que os pode

separar.253 Hefesto, ao aprisionar Afrodite e Ares na sua cama, não está a fazer mais do que a mantê-

los unidos, que é mais do que uma prova do “crime” para mostrar aos outros deuses, já que esta

acção tem o carácter especial de unir a guerra à sua legitimação, ou se preferirmos, a guerra ao

amor. Afrodite parece igualmente representar, através da sua relação com Hefesto (deus que une e

fabrica objectos relacionados com a soberania e a guerra) e Ares (a guerra e a conquista), os dons

propostos a Páris por Atena (vitória na guerra) e Hera (o reinado sobre o mundo) no concurso do

pomo do ouro,254 sendo possível ver na deusa vencedora uma reunião das três deusas, Hera, Atena e

Afrodite, que não nos deverá ser alheia, da mesma forma, aliás, com que Helena parece representar

as ofertas das três deusas (significando a vitória, o reino e a beleza). O mito conta que Páris,

ignorando (como seria de esperar) o bom-senso, escolheu a “beleza” (fertilidade agrícola, a terceira

função) em vez da soberania ou vitória,255 no entanto, quem possui Helena (que como veremos é a

soberania dos Helenos) possui tanto a soberania como a força bélica para a vitória, mas ainda mais

importante que isto, é o que nos diz dissimuladamente o mito sobre um mundo tomado pela

Discórdia, em que as deusas Hera, Atena e Afrodite estão separadas e entram numa contenda que só

a deusa da beleza e do amor (e aqui, face ao resultado, poderíamos entender “harmonia”) poderá

vencer, representando assim o seu “poder” sobre as demais. É a vitória de Afrodite sobre Atena e

Hera (que é também a vitória de Zeus) aquilo que resolve a questão colocada pela Discórdia, bem

como a causa da guerra de Tróia, tornando-se aqui, aparentemente, numa deusa mais poderosa do

que Atena e Hera:

Celeste, sorridente Afrodite, exaltada em muitos hinos, nascida no mar, venerada deusa geradora, tu que te deleitas com a longa noite e unes os amantes de noite, ó intrigante mãe da necessidade. Tudo provém de ti; tu uniste o mundo e controlas os três reinos, tu deste origem a tudo, a tudo no céu, na terra fecunda, e nas profundezas do mar, ó venerável companheira de Baco.»256

Esta deusa, que é responsável por provocar a paixão nos deuses, incluindo em Zeus, será punida

pelo chefe do Olimpo, que a faz apaixonar-se por um mortal, Anquises (este não é o único mortal

por quem Afrodite se apaixona; também Adonis, que a deusa dividia com Perséfone, faz parte do

seu séquito amoroso257). No entanto, nas reformulações mitológicas posteriores, será desta união que

nascerá Eneias, sobrevivente troiano e futuro herói fundador de Roma, reforçando, segundo a leitura

aqui apresentada, a sua legitimidade em Afrodite. O seu carácter plural, confundindo-se com outras

253 Cf. Od. 8.266 e ss.254 Cf. Poemas Cíprios, Arg. 1, in GEF.255 Georges Dumézil, “Introduction: Il était trois fois...” in Mythe et Épopée I, II, III, Paris, Gallimard, 1995, p. 15.256 HO 55.1-7.257 Ovíd. Met. 10.300 e ss.

49

divindades, está bem presente no Hino Homérico a Afrodite, no momento em que Anquises vê a

deusa, dirigindo-se a ela desta forma:

Saudações senhora, quem quer que de entre os abençoados tenha vindo a esta casa, quer sejas Ártemis, ou Leto, ou a dourada Afrodite, ou a nobre Témis, ou Atena de olhos brilhantes. Ou talvez sejas uma das Graças que aqui chegou, que acompanham os deuses e são chamadas de imortais, ou então uma das Ninfas que habitam nas agradáveis florestas, ou daquelas que habitam esta amável montanha e as nascentes dos rios e os prados verdejantes.258

Sequência de questões que se repete no MBh e no Rām. Afrodite é uma deusa responsável por

unir o céu com a terra, já que provoca o amor dos deuses pelas mortais, e das deusas pelos

mortais.259 Afrodite, ao deter o poder sobre todos os mortais e todos os imortais (à excepção de

Atena, Ártemis e Héstia260), levou Zeus a puni-la com a paixão por Anquises.261 Relação da qual

nascerá Eneias, o “terrível” (ainós), isto porque a deusa sentiu uma dor terrível quando se deitou na

cama de um mortal.262 Trata-se não de uma perda de poder por parte de Afrodite, mas sim de uma

descida desse poder ao mundo, na forma de Eneias, o que é algo que provoca sofrimento à deusa, ter

de se unir a um mortal. O facto de o mito jogar com o absurdo, obriga-nos a ler neste género aquilo

que ele não nos conta (ou que nos esconde), neste sentido, a deusa que se deita na cama de um

mortal e sofre, representará a necessidade de uma forma de poder divino descer ao mundo, que

gerará um poder mundano, criado e implantado através do sofrimento. Também Prometeu sofrerá

agrilhoado por trinta anos por ter implantado no mundo algo celeste, o fogo divino. Da mesma

forma, o pomo dado a Afrodite representará o mundo ou a natureza, que ela governa através da

“beleza” e do “amor” (i.e., através da sexualidade, fertilidade, ctonismo e agricultura, a terceira

função IE), após a discórdia que separou os deuses anteriormente reunidos nas bodas de Peleu e

Tétis, que é um reflexo da “criação”, com todos os seus tópicos de união, separação e organização.

Isto aproxima-a obviamente de Hefesto, que une os dois mundos através da sua queda, relação com

o trabalho e aspecto físico pouco divino. De um ponto de vista social, ele é fisicamente feio (kakós)

258 HH 5.92-99: «chaîre, ánassÔ ᾽, hḗ tis makárōn táde dṓmath᾽ hikáneis, Ártemis ḕ Lētṑ ēè chryséē Aphrodítē ḕ Thémis ēygenḕs ēè glaukō� pis Athḗnē, ḗ poú tis Charítōn deûr᾽ ḗlythes, haíte theoîsi pâsin hetairízousi kaì athánatoi kaléontai, ḗ tis Nympháōn, haít᾽ álsea kalà némontai ḕ NymphōE n, haì kalòn óros tóde naietáousi kaì pēgàs potamō� n, kaì písea poiḗenta.» De forma idêntica, no Rām. (3.44.16), Rāvaṇa questiona Sītā: «Quem és tu, mulher dourada vestida com traje de seda amarelo, usando uma amável coroa de lótus, tu que és semelhante a um lago de flores de lótus? Serás tu a deusa da Modéstia (Hrī) ou da Fama (Kīrti)? Ou Serás Śrī, ou a amável Lakṣmī, ou talvez uma Apsarā (ninfa), amável senhora?” Poderás ser tu a Prosperidade (Bhuti), bela senhora, ou o fácil Prazer (Rati)?» Esta parece ser, aliás, uma fórmula comum de questionar estas mulheres “desconhecidas”, já que o mesmo acontece com Draupadī. MBh 3.265.2. Note-se que no Hino Homérico Afrodite disfarçada de “rapariga” (parthénōi) é comparada a sete divindades (cinco deusas, às Ninfas e às Graças), no Rām. Sītā (encarnação de Śrī) é igualmente comparada a sete divindades (seis deusas e uma ninfa), já Draupadī será comparada apenas com cinco divindades, no entanto, uns versos antes é questionada da mesma forma onde se acrescentam às cinco comparações mais duas: devakanyā (filha de um deus) e māyā (ilusão dos deuses), perfazendo um total de sete. MBh 3.264.10a.

259 HH 5.45-52.260 HH 5.6-32 e ss.261 HH 5.53-57 e ss.262 HH 5.198-199.

50

porque simboliza aqueles que trabalham, ao contrário dos aristocratas, que eram por isso kaloí

(“belos”). É provavelmente este tópico de união que faz dos dois marido e mulher, pois reflectem-se

um ao outro, da mesma forma com que o fiar do destino (Mera da morte) e dolo de Penélope se

assemelha à astúcia de Ulisses. Os Romanos aproveitarão bem esta descida do poder que gerará

Eneias (Afrodite que desce a Anquises), tornando-o num herói fundador de Roma. Este carácter de

união presente na deusa expressa-se essencialmente através do amor e do desejo, que não terão uma

significação meramente física, mas também ideológica:

Amada e amiga dos homens, dadora do nascimento e da vida, com os teus inebriantes encantamentos amorosos unes os mortais, e muitas raças de animais, em descontrolada paixão.263

Isto porque ela é «visível e invisível»,264 não apenas por ser uma deusa, mas provavelmente

porque une os aspectos visíveis e invisíveis do mundo, unindo homens em amantes, famílias em

dinastias, cidades em cidades-estado, cidades divididas pelo o mar, etc. O facto de a deusa ser

igualmente responsável por retirar a fertilidade aos homens,265 poderá nesta acepção subentender

que para além de unir e dar legitimidade, também a retira, o que lhe volta a dar um carácter sombrio

e perigoso.

A deusa está igualmente relacionada com a cidade em si, já que domina sobre as cidades

amuralhadas de Cipro, ilha rodeada pelo mar.266 Esta ideia de ilha rodeada de mar, ou espuma do

mar, pode estar relacionada com a própria deusa e o seu nascimento, subentendendo que o seu

nascimento da espuma do mar seria, até certo ponto, um mito camuflado da criação de uma ilha ou

cidade, provavelmente Cipro, onde a deusa nasceu. Afrodite é igualmente responsável por proteger

a cidade de Tebas,267 o que lhe dá mais uma vez um carácter guerreiro e protector, que ela parece

não possuir por si só na literatura homérica, mas apenas como resultado da sua união com Ares.268

O principal animal sagrado para Afrodite é a pomba, no entanto na forma de Afrodite ouranía é-

lhe atribuída a tartaruga, e na formulação de Afrodite pándēmos, o carneiro.269 A tartaruga

representará a modéstia e provavelmente algo que se “oculta”. É interessante notar que o samudra-

manthana é realizado com a ajuda de uma tartaruga que serve de suporte e centro para “agitar” as

águas através de uma montanha, o que tornará o oceano de leite em coalha, sendo um animal que

representa o caminho pelas águas, já que é um ser que pode deslocar-se no mar por grandes

distâncias.270 O carneiro por sua vez representará a virilidade, a força e o abrir de caminho, próprios

263 HO 55.12-14.264 HO 55.10.265 Cf. Hdt. 1.105.266 HH 6.1-3; 10.4-5; HH 10.1.267 Ésq., Sete contra Tebas 87 e ss.268 Este carácter guerreiro, em que a deusa é representada com uma lança ou espada, será continuado em Roma na

sua forma de Venus Victrix.269 Cic. de Nat. Deor. 3.20; Ov. Fast. 4.90.270 Cf. Nanditha Krishna, Sacred Animals Of India, Delhi, Penguin Books, pp. 241-245.

51

aos cidadãos, na Índia védica é o animal atribuído ao deus do fogo, Agni.271

Talvez seja este carácter congregador (e também bélico, i.e., activo) presente em Afrodite que

gera, na concepção do séc. IV, uma Afrodite pándēmos, de “todo o povo”, tendo clara relação com a

ideia política, o vínculo e solidariedade necessários à existência do estado,272 ou seja, a união dos

“cidadãos” em torno do estado.273 Por oposição à Afrodite pándēmos, temos a Afrodite ouranía

“celeste”, o que subentende uma existência ou campo de acção tanto celeste quanto terreno, que se

unem na deusa, que recebe igualmente o epíteto de migōntis, “união”. O seu filho Eros representará

ele mesmo, naturalmente, esta união, através do amor: «Eros aprisiona, com laços tornados severos

por Afrodite».274 Tal como Afrodite e Hefesto são responsáveis por “aprisionar” e “unir”: Afrodite

une/aprisiona através da união amorosa e Hefesto através do engenho. Este tipo de relação entre os

dois artesãos, aquela do amor e casamento, e aquele da arte, engenho, artesanato, etc., reflectir-se-á

noutras relações amorosas, como a de Ulisses e Penélope, ele o engenhoso e ardiloso e ela a tecelã,

sendo a relação em si contida em Afrodite, a «tecelã dos artifícios»,275 bem como em Helena que

une através de Páris, Oriente e Ocidente. Claro que a relação entre Hefesto e Afrodite tem tanto de

características comuns à organização daquela sociedade grega quanto de concepção teológica, como

se subentende em Ésquilo:

O Sagrado céu anseia por ferir a terra, e assim desejando, aprisiona a terra para se unir a ela em matrimónio; as chuvas, caídas dos amorosos céus, impregnam a terra, e isto gera para a humanidade o alimento dos rebanhos e das manadas e os presentes de Deméter; e do húmido casamento-ritual os bosques florescem. De todas estas coisas eu (Afrodite) sou a causa.276

O casamento de Afrodite e Hefesto desenha-se, até certo ponto, num concurso (típico aos

casamentos épicos como veremos), em que Hefesto oferece a Hera um trono dourado, que esta

aceita ficando aprisionada, até ao momento em que Hefesto, pressionado pelos outros deuses, liberta

a sua mãe do trono, e esta de forma a apaziguar a sua zanga, organiza o casamento de Hefesto com

Afrodite. 277 Hefesto demonstra aqui mais uma vez a sua capacidade de aprisionar. Aprisiona a

rainha dos deuses, Hera, ao seu trono dourado, bem como Afrodite a Ares, no momento em que

Hefesto se vê “traído” pela sua bela esposa. No entanto, não será tanto o ciúme ou uma zanga

271 Aqui a utilização do carneiro não deixa de colocar certas questões, por um lado sendo o animal do deus do fogo védico, Agni, recorda-nos necessariamente do deus do fogo grego, Hefesto, mas por outro lado, o carneiro, do grego arḗn traça semelhanças no mínimo sonoras com Ares (Árēs), reflectindo as duas principais relações amorosas de Afrodite, com o seu marido Hefesto e o seu principal amante Ares. A designação sânscrita para carneiro é uraṇa-, o que nos recorda igualmente o epíteto de ouranía. Cf. “ἀρήν” in DELG.

272 Cf. Walter Burkert, “Afrodite” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 306.

273 Paus. 1.22.274 Anacreonte, Fragmento 346, trad. Campbell.275 Teognis, Fragmento 1.1386 e ss. Existe ainda um concurso de costura entre Afrodite e Atena. Cf. Nonnus,

Dionisiaca 24.261 e ss. O que a compara ainda mais com Penélope.276 Ésq., Frag. 25. (trad Smyth.)277 Ps. Hig., Fab. 166 (trans. Grant).

52

pessoal que levam Hefesto a aprisionar a sua esposa e a sua mãe, porque a união entre Afrodite e

Ares será simbólica pelos conceitos que faz unir, bem como o aprisionamento de Hera, que

representando a legitimidade de Zeus, fica aprisionada ao trono dourado (semelhante à deusa Śrī

que representa o trono do rei), passando este a ser um dos seus símbolos. O amor fica aprisionado à

guerra (ou a criação à destruição), à custa de Hefesto, da mesma forma que a rainha dos imortais

fica aprisionada ao trono de Zeus, depois de desprezar o deus-ferreiro. Para todas estas uniões é

necessária a existência e engenho (e sacrifício?) de Hefesto, o deus coxo, trabalhador e feio, que

pelo facto de ser coxo, poderá subentender um movimento ziguezagueado, como é o de um raio, ou

dos pontos de uma agulha num trabalho de costura. Da relação de Ares com Afrodite nascem o

medo, o pânico e a harmonia, esta última será conceptualmente o resultado mais visível da união.

O motivo pelo qual parece existir um “divórcio” entre Afrodite e Hefesto, já que Hefesto reclama

os presentes de casamento que ofereceu,278 é profundamente simbólico e vai além da simples ideia

de separação, isto porque Hefesto sendo o artesão, representa a “criação”, enquanto Ares ao ser o

deus da guerra representa a “destruição”. Neste sentido, compreendemos que no contexto da guerra

de Tróia, bem como no mundo de Homero, pareça haver um plano de “destruição” que levará a uma

harmonia final, podendo ser este o motivo pelo qual Afrodite se desvincula de Hefesto (criação,

construção), e une-se a Ares (destruição e morte).279

Afrodite, ao ter nascido (como Śrī-Lakṣmī) das águas, pode ser entendida como uma

representação da natureza que se transforma em amor, criação, e na própria humanidade, gerando a

ideia de prosperidade relacionada com o “poder” que se eleva de determinadas águas ou massas.

Ambas as deusas parecem reflectir, à semelhança do que acontece com a ideia de deusa IE, uma

força inspiradora ou oculta na natureza, que será através da acção masculina (dos deuses com quem

se relacionam) activada e posta em prática no mundo. Śrī ficará ao serviço de Indra (o rei dos

deuses), e Afrodite ao de Hefesto (ferreiro dos deuses). Esta ideia de inspiração da deusa está

presente, por exemplo, no cinto mágico que Afrodite dá a Hera e que inspirará o amor em Zeus,280

ou no facto de inspirar Páris a raptar Helena, inspirando no fundo toda a guerra de Tróia. A ideia de

poder (śakti) relacionada com a lança está igualmente presente em Afrodite que recebe os atributos

de Ares, juntamente com o escudo, a armadura, etc., o que permite colar estas deusas gregas aos

seus maridos e entendê-las enquanto “poder interno”, já que Hefesto une e forja os metais em

objectos de poder, de grande beleza e capazes de aprisionar os deuses, arte que não deixa de ser

compatível com a sua esposa Afrodite, como se Hefesto utilizasse Afrodite (enquanto conceito) no

seu trabalho. Esta realidade estará presente noutros exemplos de casais gregos, como Zeus (o deus

278 Cf. Od. 8.317-319.279 Ares, deus da guerra, derivará de arḗ e áros “desgraça” e “perda”, e Hefesto, deus do fogo e ferreiro dos deuses,

porta um nome obscuro, significará o “fogo”. Cf. “Ἄρης” e “Ἥφαιστος” in DELG.280 Il. 14.214 e ss.

53

com maior número de relações amorosas) e Hera (deusa patrona do casamento), Perséfone (o

resultado da criação terrena) e Hades (deus da morte, a finalidade), etc.

Afrodite, além de ter um poder divino sobre algumas mortais, é com frequência símbolo de

beleza com a qual aquelas são comparadas, como Briseida,281 Cassandra,282 Helena,283 Penélope,284 e

Alcmena,285 etc. No caso indiano é relativamente mais simples compreender quando um deus age

sobre um mortal, do que no caso grego, porque os deuses gregos não têm por hábito encarnar no

mundo, logo, os reflexos divinos em personagens mortais é compreendido sobretudo pelas

comparações poéticas e epítetos, o que nos levará ao capítulo seguinte.

281 Il. 19.282 e ss.282 Il. 24.699 e ss.283 Od. 4.14.284 Od. 17.37; 19.54.285 Hesíodo, Escudo de Héracles 6 e ss.

54

Capítulo III

As deusas que “descem”: o nascimento das heroínas épicas

3.1. Introdução

As heroínas épicas reflectem, com uma frequência impossível de ignorar, as deusas com as quais

são comparadas, ou pelas quais são guiadas, encarnando-as. A heroína que é comparada a uma

deusa, encarna a beleza divina (que será a pureza) e imprime no mundo sobretudo a ideia de ser-se

deus personificada.286 É desta forma que a interpretação do feminino que avançámos nos capítulos

anteriores se aplica também às mulheres épicas, que simbolizam o poder dos seus maridos e das

suas casas, bem como a sua legitimação. A mulher épica não ocupa apenas o papel de vítima

passiva, nem se desenvolve num carácter propriamente marginal, isto porque a esposa chega a ser

superior ao seu marido, ganhando inclusivamente um papel mais activo e congregador ao longo da

narrativa (como é o caso de Helena!). É por este motivo que são raros os exemplos em que a mulher

representa algum género de mal ou que é de alguma forma criticada ou diminuída face ao homem.

Quando tal acontece (de forma concreta na épica indiana) devem considerar-se interpolações.287

No entanto, a mulher épica parece representar continuamente «a passividade num universo de

acção heróica»,288 estando confinada ao seu papel de esposa e de mãe. Quando não assumem este

papel traduzem-se por mero objecto de vitória, prazer, troca, ou sacrifício, possuindo ainda assim

uma profundidade estética e patética (emotiva), que se ampliará no género trágico.289

A mulher, culturalmente entendida como passiva, não toma lugar na acção heróica, sendo

exemplo desta realidade a crítica que recebe Afrodite por parte de Zeus, por ter entrado na guerra,290

e Ambā que para matar Bhīṣma tem de renascer como homem (Śikaṇḍin).291 Desta forma, somos

levados a crer que a única acção feminina no género épico é a de suportar os homens e sofrer devido

a eles, não deixando nunca, no entanto, de depender das decisões do mundo masculino. Este sentido

não-autónomo da mulher reflecte-se nos símbolos de poder que a definem como uma coluna, uma

lança, um altar, o interior da casa, etc. No entanto, ao longo da narrativa épica vemos que a mulher

coloca o homem à prova, critica e questiona-o sobre questões delicadas, e é neste sentido que damos

ao género feminino maior importância do que aquela que aparentemente possui, isto porque um

286 Para a questão das deusas que se assemelham a mortais, e as mortais que se assemelham a deusas, veja-se: Nicole Loraux, “Qu'est-ce qu'une déesse?” in Georges Duby, Michelle Perrot, Histoire des Femmes en Occident, vol. 1: L'antiquité, Paris, Perrin, 2002, p. 49 e ss.

287 Cf. Sita A. Raman, “Mothers and Wives in the Smriti Texts” in Women in India: A Social and Cultural History, vol. I, Santa Barbara, Praeger/ABC-CLIO, 2009, p. 53.

288 Claudine Leblanc, “Femmes épiques: le mythe, les pleurs, et le droit. Perspectives sur la fonction des personnages féminins dans l’épopée guerrière archaïque (Iliade, Mahâbhârata)”, Synergies Inde 2, 2007, p. 264.

289 Claudine Leblanc, “Femmes épiques: le mythe, les pleurs, et le droit. Perspectives sur la fonction des personnages féminins dans l’épopée guerrière archaïque (Iliade, Mahâbhârata)”, Synergies Inde 2, 2007, p. 263.

290 Il. 5.428-430.291 Cf. MBh 5.186.

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trabalho interno (como é o da mulher) não deixa de ser a chave para todo o trabalho externo, e aqui

o melhor exemplo será o de Penélope na Odisseia. As mulheres, não sendo importantes para a

guerra, acabam por significar a qualidade mais interna e mítica dos épicos, no sentido em que a voz

feminina representa uma consideração sobre a batalha e os próprios actos masculinos, permitindo

articular a visão dos homens com a dos deuses.292 No MBh o casal real da casa dos Kurus revela

claramente este papel da mulher. Dhṛtarāṣṭra, o criticado rei cego (metáfora do rei que não governa

correctamente)293 é etimologicamente “aquele que mantém a realeza”, e a sua esposa Gāndhārī, que

venda os olhos por compaixão pelo marido (aquela que vê internamente, ou desde dentro?) significa

“suster firmemente”, “suportar” e “contar”,294 o que nos permite entender o papel da mulher como

um suporte da realeza, da casa, da dinastia e do marido. Este suporte é nítido no caso das mulheres

poderosas dos épicos gregos e indianos.

3.2. Sītā

A princesa épica, Sītā, que continua ainda hoje a inspirar o ideal feminino (mais concretamente o

de esposa) nas comunidades hindus, é, à semelhança de Helena, vítima de um rapto que a mantém

aprisionada na cidade inimiga enquanto decorre a guerra em seu nome, até ao momento em que é

contra-raptada. Contudo, mais do que uma heroína e a esposa de Rāma, Sītā é uma composição de

várias divindades, estando directamente relacionada com a fecundidade da terra, as plantas e os

animais, bem como os locais não-civilizados e selvagens. Esta relação com a natureza está já

presente desde a sua origem védica, onde representa o “sulco” e é a esposa de Indra e Parjanya,

ambos deuses da chuva.295 Sītā começou por ser uma divindade agrária, como nos é apresentada no

hino ao kṣetrapati (“senhor do terreno”) do ṚV296, onde é invocada como “sulco” (reflectindo-se

noutros hinos onde é mencionada como deusa que preside à agricultura). Exemplo que merece a

pena ser citado na íntegra pelos símbolos que comporta:

Através do Senhor do terreno, nosso amigo e protector, possamos nós cativar a vaca e o cavalo. Que ele tenha compaixão de nós. Senhor do terreno, dá-nos a prosperidade, semelhante ao leite da vaca leiteira, da onda de mel que destila nas gotas de pura claridade do hidromel. Que os Senhores da verdade tenham compaixão por nós.

292 Claudine Leblanc, “Femmes épiques: le mythe, les pleurs, et le droit. Perspectives sur la fonction des personnages féminins dans l’épopée guerrière archaïque (Iliade, Mahâbhârata)”, Synergies Inde 2, 2007, p. 270.

293 Poderá existir um significado semelhante àquele que fará de Édipo um rei cego.294 Claudine Leblanc, “Femmes épiques: le mythe, les pleurs, et le droit. Perspectives sur la fonction des

personnages féminins dans l’épopée guerrière archaïque (Iliade, Mahâbhârata)”, Synergies Inde 2, 2007, p. 268.295 Madhu Bazaz Wangu, “Female Images in Ancient Art and Scriptures” in Images of Indian Goddesses: Myths,

Meanings ans Models, Delhi, Abhinav Publications, 2003, p. 41. A ideia de “sulco” ou “rego”, é igualmente traduzível como “traço feito pelo arado” (sītā). Cf. David R. Kinsley, “Sītā” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, p. 65. No Kauśikasūtra do Atharvaveda, Sītā é esposa de Parjanya e no Pāraskarasūtra (2.17.119) esposa de Indra. Cf. David R. Kinsley, “Sītā” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, p. 66.

296 4.57.

56

Possam os solos, o Céu e as Águas estar cheios de mel para nós; e cheio de felicidade o reino interior. Que o Senhor do terreno se encha de felicidade para nós. Possamos nós caminhar de acordo com ele e em segurança. Possam os animais de tracção ser prósperos, e prósperos os homens que os guiam. Com prosperidade possam eles puxar o arado. Com prosperidade sejam os regos delimitados, com prosperidade possam eles (os animais) ser incitados. Aceita esta prece, próspero arado e próspera relha, tal como produzes o leite no céu. Com esse leite fertiliza-nos a Terra. Auspicioso sulco (sītā) aproxima-te de nós. Nós veneramos-te. Sê-nos favorável, para que possamos ser muito prósperos. Que possa Indra abrir um sulco, que Pūṣan (o sol) o guie (ao sulco) na direcção correcta. Possa ele, cheio de leite, dar rendimentos ano após ano. Com prosperidade possam os arados arar a Terra. Com prosperidade possam os nossos agricultores cavar com os seus bois. Seja próspero o deus da chuva (Parjanya) com leite e mel. Prósperos arado (Indra) e relha (Pūṣan), mantenham em nós aquilo que é próspero.297

Esta ideia de “sulco” num terreno tem implicações sexuais directas com o órgão feminino, mas

também com a “organização” e “fundação” do lugar ritual. Por exemplo, no Vājasaneyisaṃhitā298

Sītā é invocada quando quatro sulcos são traçados durante um ritual em torno da vedi299, e está bem

presente na prática ritual, quando durante a fundação de um altar, o terreno onde este será

construído é arado antes da construção, e são traçados vários sulcos em várias direcções, formando

um quadrado, que é depois acrescentado por mais sulcos, relativos aos deuses, meses do ano, etc.300

A ideia de prosperidade e de sacrifício estão presentes na deusa Sītā, aproximando-a em muito de

Śrī. Será por este motivo que na sua formulação épica, mais tardia, a heroína continuará a ser

comparada com a deusa Śrī, bem como com a vedi. Como lemos no momento em que Sītā

repreende o seu raptor:

No momento em que me raptaste, ó vergonha de entre os rākṣasas, a condenação caiu sobre ti, e isto só pode acabar com a destruição dos rākṣasas, das tuas mulheres e de ti próprio. Um pária não pode profanar um altar de sacrifício, adornado com conchas e outros utensílios, e santificado pelos hinos dos sacerdotes.301

Esta relação de Sītā com o altar de sacrifício vai aproximá-la em muito, como veremos, do

nascimento de outra heroína, Draupadī, que nasce de um ritual de fogo. A sua relação com o altar

não a afasta nunca da sua posição central de divindade do terreno arado,302 da organização e

delimitação do terreno e da sua prosperidade, tal como nos é apresentada nos Vedas. E ainda durante

o épico, quando desce a uma forma humana (contudo aqui a encarnação de Śrī!), nascerá de um

297 ṚV 4.57.1-8. Tradução do inglês de David Frawley, Wisdom of the Ancient Seers: Mantras of the Rig Veda, Utah, Morson Publishing, 1992, pp. 240-244: «kṣetrasya patinā vayaṃ hiteneva jayāmasi / ghām aśvam poṣayitnv ā sa no mṛḷātīdṛśe // kṣetrasya pate madhumantam ūrmiṃ dhenur iva payo asmāsu dhukṣva / madhuścutaṃ ghṛtam iva supūtam ṛtasya naḥ patayo mṛḷayantu // madhumatīr oṣadhīr dyāva āpo madhuman no bhavatv antarikṣam / kṣetrasya patir madhumān no astv ariṣyanto anv enaṃ carema // śunaṃ vāhāḥ śunaṃ naraḥ śunaṃ kṛṣatu lāṅghalam / śunaṃ varatrā badhyantāṃ śunam aṣṭrām ud iṅghaya // śunāsīrāv imāṃ vācaṃ juṣethāṃ yad divi cakrathuḥ payaḥ / tenemām upa siñcatam // arvācī subhaghe bhava sīte vandāmahe tvā / yathā naḥ subhaghāsasi yathā naḥ suphalāsasi // indraḥ sītāṃ ni ghṛhṇātu tām pūṣānu yachatu / sā naḥ payasvatī duhām uttarām-uttarāṃ samām // śunaṃ naḥ phālā vi kṛṣantu bhūmiṃ śunaṃ kīnāśā abhi yantu vāhaiḥ / śunam parjanyo madhunā payobhiḥ śunāsīrā śunam asmāsu dhattam //» Compare-se com ṚV 7.35; 10.66; AV 2.8.5, 3.17.5.

298 12.69-72.299 Parcela de terra elevada, base ou altar. Cf. “vedi” in DSF.300 Cf. ŚB 7.2.2.1-19.301 Rām. 3.54.17-18: «māṃ pradhṛṣya sa te kālaḥ prāpto'yaṃ rākṣasādhama / ātmano rākṣasānāṃ ca

vadhāyāntaḥpurasya ca // na śakyā yajñamadhyasthā vediḥ srugbhāṇḍamaṇḍitā / dvijātimantrasaṃpūtā caṇḍālenāvamarditum //»

302 Cf. Kauśika Sūtra 106.

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rego. A agricultura e o trabalho agrícola que a deusa-heroína representa são tanto uma metáfora da

vida espiritual como da vida política, no sentido em que organiza e desenvolve a natureza,

produzindo riqueza, através do trabalho da terra. No hino ao kṣetrapati, os animais utilizados na

prática agrícola poderão ser equiparados aos sentidos, bem como às opiniões e ideias, que são

guiados na direcção certa, i.e., são guiados pelo ideal (o sol) que através da realeza (Indra) abre um

caminho (Sītā) gerador de prosperidade. O facto de Sītā ser associada a deuses da chuva, como

Indra e Parjanya, que respeitam o princípio masculino de fecundação, tem como base a ideia da

interacção entre os dois princípios (céu/terra e masculino/feminino), aqui referentes à sua

idealização agrícola (lavrar e semear), entre os poderes latentes na terra e os efeitos celestes.303 O

leite que fecundará o terreno referido no hino (talvez uma comparação da terra e do sulco com a

vaca), sendo também símbolo do sagrado,304 poderá aqui revelar a “verdade” e a “justiça”, bem

como a legitimação do poder real (chuva/Indra) que vem do céu. Isto porque Indra que “abre um

rego”, ou que penetra na terra, gerando Sītā, é claramente uma metáfora do poder celeste que

justifica o poder terreno e o legitima, já que o terreno em que se abre um rego (outrora virgem) é o

mundo manifestado caótico (a natureza) que é ordenado e civilizado por um poder celeste. Esta

ordenação, a par do sulco criado, é mencionada com carácter ritualista noutro hino:

Coloque-se as relhas, e marque-se bem os traços: quando o ventre (sulco) é delimitado, depositam-se nele as sementes. Através do canto (dos hinos) possamos nós encontrar a plenitude: para perto do cereal crescido aproxima-se a foice.305

Aqui o “sulco” está presente na ideia de “ventre” (yonau), o que projecta alguma luz concreta

sobre o nascimento de um sulco da princesa no Rām., inspirado na Sītā védica. Nas palavras do seu

pai Janaka (“pai”, “progenitor”306) podemos ler:

Certa vez, enquanto eu estava a lavrar um terreno, uma rapariga surgiu de trás do meu arado. Encontrei-a enquanto limpava (purificava) um terreno, e ela é desde então conhecida pelo nome de Sītā (sulco). Surgida da terra, ela foi criada como minha filha, e como não nasceu de um ventre, a minha filha foi guardada como aquela cujo dote é a força.307

Este acto de limpar um terreno poderá subentender o trabalho num terreno selvagem, não-

civilizado, sendo Sītā o resultado dessa civilização e limpeza. Geralmente o espaço externo e

selvagem é também entre os Gregos classificado como feminino, através de associações a deusas e

303 Cf. David R. Kinsley, “Sītā” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, p. 66.

304 Tome-se como exemplo a importância da Agitação do Oceano de Leite no MBh (1.17-19), mito de origem que funcionará como espelho aos conflitos terrenos do épico.

305 ṚV 10.101.3 (Griffith): «yunakta sīrā vi yughā tanudhvaṃ kṛte yonau vapateha bījam / ghirā ca śruṣṭiḥ śabharā asan no nedīya it sṛṇyaḥpakvameyāt //».

306 Cf. “janaka” in SED. Existe uma semelhança fonética com a designação grega para rei: wanaka, (w)anax, ánax, “pai”, “senhor”, “mestre”. Cf. “ἄναξ” in DELG.

307 Rām. 1.65.14-15: «atha me kṛṣataḥ kṣetraṃ lāṅgalād utthitā mama / kṣetraṃ śodhayatā labdhvā nāmnā sīteti viśrutā // bhūtalād utthitā sā tu vyavardhata mamātmajā / vīryaśulketi me kanyā sthāpiteyam ayonijā //»

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cultos femininos, enquanto que o espaço cívico é masculino.308 Desta forma os actos de “construir”

e “fundar” também representam “limpar um terreno”, “cultivar” e “desenvolver a terra”, tratando-se

essencialmente de uma transformação da terra selvagem num domínio humano.309

Este episódio do nascimento é repetido e completado nas palavras de Sītā:

Um dia, ele estava com um arado na mão, a lavrar um conjunto (círculo) de terrenos de onde eu surgi – é o que conta a história – tornando-me na filha do rei. O rei Janaka estava a lançar sementes de cereal com a mão quando me viu, o meu corpo cheio de terra, e ele ficou fascinado. Ele não tinha filhos na altura, e como se compreende, com as duas mãos pegou-me ao colo com afecto. “Ela deverá ser a minha filha”, disse, e tratou-me com carinho. Do céu, dizem, surgiu uma voz que disse – uma voz humana mas diferente de todas as que já se ouviram: “Que assim seja, senhor dos homens. Por direito a criança é tua”. (...) O senhor da terra ganhou grande riqueza, foi o que sentiu, ao ficar comigo.310

Noutra versão do Rām., Janaka havia avistado a bela apsarā Menakā que voava no céu, e por

esse motivo ejaculou sobre a terra, de onde nasceu Sītā.311 A comparação com a Afrodite é óbvia, a

deusa nascida da espuma (ou sémen) de Úrano, é vítima de uma tentativa de rapto em que Zeus,

desejando unir-se à sua filha, a persegue, sem no entanto a conseguir apanhar, acaba por fecundar a

terra com o seu próprio sémen, dando origem à raça dos Centauros.312 Tanto na versão grega como

na indiana, encontramos a ideia de um elemento celeste masculino (chuva) que fecunda a terra (ou o

seu ventre) através da força. De um lado é Zeus que persegue, do outro é Janaka que “limpa” um

terreno,313 que sem grande dificuldade encaixa na ideia de Indra, que pela força abre um rego no

hino ao kṣetrapati. Desta forma, a Sītā épica que personifica a ideia de “sulco” e “terreno” deixa de

ser apenas uma heroína, para de certa forma continuar a ser a deusa védica original.314 O facto de ser

308 Jeremy McInerney, “On the Border: sacred land and the margins of the community” in Ralph M. Rosen, Ineke Sluiter, City, Countryside, and Spatial Organization of Value in Classical Antiquity, Leiden, Brill, 2006, p. 33.

309 Jeremy McInerney, “On the Border: sacred land and the margins of the community” in Ralph M. Rosen, Ineke Sluiter, City, Countryside, and Spatial Organization of Value in Classical Antiquity, Leiden, Brill, 2006, p. 38. A terra inabitada é associada a Afrodite e Ártemis (deusa da caça) e as terras estrangeiras (especialmente nas montanhas) são o local onde Dioniso se une às Bacantes. Jeremy McInerney, “On the Border: sacred land and the margins of the community” in Ralph M. Rosen; Ineke Sluiter, City, Countryside, and Spatial Organization of Value in Classical Antiquity, Leiden, Brill, 2006, pp. 39-41.

310 Rām. 2.110.27-31: «tasya lāṅgalahastasya karṣataḥ kṣetramaṇḍalam / ahaṃ kilotthitā bhittvā jagatīṃ nṛpateḥ sutā // sa māṃ dṛṣṭvā narapatir muṣṭivikṣepatatparaḥ / pāṃśu guṇṭhita sarvāṅgīṃ vismito janako 'bhavat // anapatyena ca snehād aṅkam āropya ca svayam / mameyaṃ tanayety uktvā sneho mayi nipātitaḥ // antarikṣe ca vāg uktāpratimā mānuṣī kila / evam etan narapate dharmeṇa tanayā tava // (...) avāpto vipulām ṛddhiṃ mām avāpya narādhipaḥ //» Compara-se ainda com Rām. 6.103-106; MBh 3.258.9. Provavelmente, Janaka estaria a cumprir um ritual que traria fertilidade à terra, quando Sītā nasceu, a personificação da fertilidade. Cf. David R. Kinsley, “Sītā” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, p. 68; ViPur 4.5.28.

311 Cf. nota Rām. 1.65.11. No Rāmāyaṇa-Mañjarī 344-346 de Kṣemendra, o rei Janaka, ouve uma doce voz vinda do céu, e vê a apsarā Menakā, e revela-lhe o seu desejo em ter uma filha, e quando ele vê uma criança surgir de um sulco da terra, a mesma voz diz-lhe que a criança é sua filha e de Menakā. S. Singaravelu, The Ramayana Tradition in Southeast Asia, Kuala Lumpur, University of Malaya Press, 2004, p. 207; S. Singaravelu, “Sītā's Birth and Parentage in the Rāma Story”, AFS, 41/2, p. 235.

312 Cf. Nonno, Dionisíaca 5.611 e ss.; 14.193 e ss.; 32.65 e ss. (trad. Rouse)313 Aqui, o acto de “limpar um terreno” pode indicar a memória dos fogos provocados pelos Ários nos terrenos

impróprios para cultivo, representando a civilização que chega à natureza, ao território do outro, implementando a agricultura. Noutra leitura, este processo simboliza a purificação do terreno antes da construção de um altar de fogo. Cf. nota Rām. 2.110.27.

314 Cf. nota Rām. 1.65.14; S. Singaravelu, “Sītā's Birth and Parentage in the Rāma Story”, AFS, 41/2, p. 235.

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um rei quem está a lavrar um conjunto de terrenos não deixa de ser simbólico, isto porque os actos

justos ou injustos do rei IE estão directamente relacionados com a fertilidade da terra, com as

chuvas, e com a saúde dos habitantes do seu domínio.315 A designação védica rājan-, “rei”, encontra

reflexo no grego arēgṓn “aquele que defende”, e no latim rego “guio a direito”, “regulo”, e regius

“régio”,316 o que permite definir a forma de governo IE como um acto que deveria ser justo e recto,

comparável desde a sua origem à prática agrícola. Esta metáfora presente na etimologia IE projecta

alguma luz sobre a acção de Janaka, bem como sobre o nascimento de Sītā, enquanto governo e o

resultado desse bom governo. Martin West explora a importância da ideia de reinar, relacionada

com a de “fazer direito” e de “rectidão”, uma pista quanto à função do rei e à natureza do reino,

como fazer fronteiras direitas, levar algo em linha recta e governar de forma recta ou correcta.317

Sītā designa um “sulco”, sītā, da mesma raiz que sāt yaka- “espada” e senā “exército”, “lança”, e

prasiti- “ataque”, encontrando relação com a forma latina de sero “gerar” e “produzir”, bem como

semen “semente” e “sémen”.318 Estas relações permitem aproximar a agricultura não apenas da arte

política, mas também da arte bélica, o que reproduzirá a relação existente entre a agricultura, a

defesa dos territórios férteis e a guerra com os povos vizinhos.319 Sītā assemelha-se em muito a

Perséfone, e em especial ao par Deméter-Perséfone, no seu tópico de “fertilidade”, e no seu

nascimento da terra (pṛthivī),320 e ainda com Afrodite, como vimos. O tópico da terra arada surge

igualmente em Perséfone, quando Ovídio escreve:

Ceres (Deméter) foi a primeira a abrir com recurvo arado o solo; a primeira a amadurecer as culturas e os produtos da terra, a primeira a dar-nos as leis; todas as coisas são a dádiva de Ceres.321

De forma ainda mais interessante, a designação sītā foi também utilizada no Arthaśāstra para

designar “terra com soberania real” ou “terra pertencente à coroa”,322 bem como a “produção

agrícola” dessa mesma terra,323 dando-lhe o carácter do “reino” que é adquirido (pela força!) pelo

rei. Neste sentido, será mais óbvia a relação da deusa-heroína com a implementação do “poder” de

um povo sobre determinado espaço (terreno), do que propriamente com uma prática ritual (que no

315 Cf. “King and Hero” in IEPM, pp. 422-424.316 “King and Hero” in IEPM, pp. 412-413.317 “King and Hero” in IEPM, p. 413.318 No mesmo conjunto de raízes IE, relacionadas entre si, encontramos com frequência o significado de “fim”,

“descanso”, “morte” e “eternidade”. Cf. “sē(i)- : səi- : sī-, sē- : sə-, sei- : si-” in IEW; As designações śākhā “ramo” e śakti “lança” derivam da mesma raiz IE que “arado”, com uma antiguidade que remontará aos PIE, sendo que a relação do arado com a madeira, reflecte o material utilizado na sua construção. “Branch” in EIEC. Da raiz agh - “levar”, “guiar o gado”, deriva o grego ógmos “sulco”. Cf. “ag© -” in IEW.

319 Cf. “Warfare” in EIEC.320 Relação já observada por Patrick Colm Hogan e Lalita Pandit (Eds.) em: “Sita, Hermione and Proserpina” in

Literary India: Comparative Studies in Aesthetics, Colonialism and Culture, Nova Iorque, State University of New York Press, 1995.

321 Ov., Met. 5.341-343 (trad. A. S. Kline): «Prima Ceres unco glaebam dimovit aratro / prima dedit fruges alimentaque mitia terris / prima dedit leges; Cereris sunt omnia munus.»

322 ArthaŚ 2.6.3.323 ArthaŚ 2.15.1-2.

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entanto a fundamenta), já que a Sītā épica é directamente comparada ao poder324 e tida como a

possessão de quem é consagrado:

Com a terra, com Vaidehī (Sītā) e com a majestade, com estas três posses ficará Rāma, touro entre os homens, assim que for consagrado.325

Pelo facto de, como vimos, o seu dote ser a força (vīrya),326 que nasce do terreno e não de uma

mulher (nasce do “ventre” da terra), é uma clara metáfora à conquistada do reino através do uso da

força, que é antes de mais a principal qualidade da classe guerreira. De forma idêntica os

casamentos rākṣasa (através do rapto) e svayaṃvara (a “escolha pessoal” da noiva) são praticados

através de um acto de força, estando o último nos épicos sempre relacionado com o uso da força (o

concurso do arco), fazendo cada um dos tipos kṣātra (“próprio dos kṣatriyas”).327 Se unirmos esta

ideia de “força” à acção celeste sobre o terreno expressa no hino ao kṣetrapati, compreendemos o

motivo pelo qual o terreno dos Kurus (kurukṣetra), onde se desenrolará a batalha central do MBh, é

chamado de dharmakṣetra.328 Por outro lado, o facto de ser Indra (o deus rei e guerreiro por

excelência) quem abre pela força um “sulco” no terreno, permite-nos unir mais uma vez a ideia de

“lavrar de um terreno” à prática bélica,329 ideia que parece estar presente no imaginário IE, como

damos conta na Odisseia, quando, por exemplo, Ulisses disfarçado diz a Eurímaco:

Eurímaco, quem me dera que tu e eu pudéssemos competir na primavera, quando chegam os dias compridos, num descampado cheio de erva; eu teria na mão uma foice recurva e tu outra igual; e que houvesse muita erva para nos pormos à prova, em jejum até chegar a escuridão da noite. Ou então que houvesse bois para conduzir, os melhores; fulvos e grandes, ambos bem alimentados de ervas, da mesma idade, com igual força que ainda não esmorecera; e que houvesse um campo de quatro hectares, com solo fértil: então verias se eu sou ou não capaz de arar (abrir um sulco) a direito! Ou então que o Crónida atirasse contra nós uma guerra (...)330

Ulisses demonstra assim a sua força. Desejando a competição com recurso à foice, ao arado e à

324 Rām. 3.59.22; 5.14.23.325 Rām. 2.39.12: «pṛthivyā saha vaidehyā śriyā ca puruṣarṣabhaḥ / kṣipraṃ tisṛbhir etābhiḥ saha rāmo 'bhiṣekṣyate

//»326 Cf. Rām. 1.65.15.327 Para a questão veja-se sobretudo: Georges Dumézil, “Les Modes du Mariage Indien” in Mariages Indo-

Européens, suivi de Quinze Questions Romaines, Paris, Payot, 1979.328 MBh 6.25.1: “campo da justiça/sagrado”, precisamente o primeiro verso da BhG.329 A imagem do arado e da clava é no imaginário indiano associada a Balarāma, o irmão de Kṛṣṇa, e divindade

agrícola, unindo a ideia de agricultura à de combate. Para maior detalhe veja-se: N. P. Joshi, Iconography of Balarāma, Delhi, Abhinav Publications, 1979, pp. 54-57. Balarāma que é no MBh abreviadamente chamado de Rāma, o nome do esposo de Sītā, funciona claramente como um espelho ao herói. Notem-se ainda as comparações possíveis entre Balarāma e Héracles, bem como com o mito de Héracles-Kṛṣṇa na Índia (Megástenes, Indica, frag. 1 in Diodoro 2.39) e da sua filha Pandaia (geradora da raça dos Pāṇḍavas) com a Sītā épica. Vejam-se as importantes considerações sobre estas comparações em: Asko Parpola, “Πανδαιη and Sītā: On the Historical Background of the Sanskrit Epics”, JAOS, 122/2.

330 Od. 18.366-376: «‘Eurýmach᾽, ei gàr nō� ïn éris érgoio génoito hṓrēi en eiarinē� i, hóte t᾽ḗmata makrà pélontai, en poíēi, drépanon mèn egṑn eukampès échoimi, kaì dè sỳ toîon échois, hína peirēsaímetha érgou nḗsties áchri mála knéphaos, poíē dè pareíē. ei d᾽ aû kaì bóes eîen elaunémen, hoí per áristoi, aíthōnes, megáloi, ámphō kekorēóte poíēs, hḗlikes, isophóroi, tō� n te sthénos ouk alapadnón, tetrágyon d᾽eíē, eíkoi d᾽ hypò bō� los arótrōi: tō� i ké m᾽ídois, ei ōE lka diēnekéa protamoímēn. ei d᾽aû kaì pólemón pothen hormḗseie Kroníōn.» A metáfora do “arado” volta a surgir em contexto de batalha na Ilíada 13.703-708. Sobre o “tópico do trabalho” na Odisseia, veja-se o comentário aos versos 15.317-324 e 18.366-386 in NCO.

61

guerra, simboliza continuamente a ideia de “limpar um terreno”, tanto em termos agrícolas como

bélicos, que será aliás o seu principal desejo em Ítaca: limpá-la dos Pretendentes! O acto de abrir

um sulco parece estar invariavelmente relacionado com a ideia de “força” no imaginário IE,

subentendendo igualmente a fertilização do terreno com a vitória na “guerra”, i.e., e no caso de

Ítaca, fertilizá-la com o sangue dos Pretendentes.

Rāma, enquanto avatāra de Indra, torna-se ele mesmo na imagem védica do arado que abre um

sulco (sītā), formando com Sītā um “casal agrícola” onde a ideia da força que os une (além da

utilizada no seu casamento) não está esquecida, como nos dá conta o épico:

Ele (Rāma) é o rei do mundo inteiro, como Vāsava (Indra) é para todos os deuses. É a sua força que protege Vaidehī (Sītā).331

O rei depende da fertilidade da terra, e a fertilidade da terra depende do rei, já que o seu papel

político estaria intimamente ligado com a promoção da fertilidade da terra.332

As versões mais tardias do nascimento de Sītā projetam na personagem novas interpretações,

como a obra do séc. V d.C., Vasudevahiṇḍi, onde Sītā é filha de Rāvaṇa (o seu raptor). Aqui os

astrólogos prevêem que a primeira filha de Rāvaṇa e Mandodarī irá destruir a sua linhagem. Por

este motivo Sītā será abandonada e enterrada dentro de uma urna, a grande distância (no reino do rei

Janaka), onde será descoberta e adoptada pelo rei. Noutras versões, Sītā continua a ser filha de

Rāvaṇa (sempre enquanto encarnação de Śrī-Lakṣmī), com o propósito de causar a destruição da

linhagem do rākṣasa, mantendo-se na maioria dos casos como nascida de um sulco, ou

(principalmente nas versões tardias do Sueste Asiático) encontrada nas águas de um rio por Janaka,

onde foi abandonada e estando sempre ligada à agricultura.333 No sul da Índia, Sītā não é

considerada uma encarnação divina, porque nasceu da terra.334

A relação de Sītā com a natureza é notável, principalmente durante o seu exílio na floresta (uma

situação especialmente difícil para uma princesa), na qual ela se integra contra todas as

expectativas. Por exemplo, quando o cocheiro regressa à cidade e descreve aquilo que viu na

floresta, diz:

Sītā fez da floresta o seu lar, embora este seja um local inóspito, como se estivesse em sua casa,335

331 Rām. 3.35.13b-14a: «rājā sarvasya lokasya devānām iva vāsavaḥ // kathaṃ tvaṃ tasya vaidehīṃ rakṣitāṃ svena tejasā /» Diz-nos Sheldon Pollock que o verso 14a (“é a sua força que protege Vaidehī”), poderá ser igualmente traduzido como: «É a força de Vaidehī que a protege (a ela mesma)». Veja-se: nota Rām. 3.35.14.

332 David R. Kinsley, “Sītā” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition, London, University of Califórnia Press, 1988, p. 67; Jan Gonda, Ancient Indian Kingship from the Religious Point of View, Leiden, Brill, 1969, pp. 68, 129. Para a questão veja-se igualmente o mito de Indra e Vṛtra, onde a ideia parece já estar presente, bem como o tópico IE do sacrifício/destruição da serpente ou dragão e que fertiliza a terra.

333 Cf. S. Singaravelu, “Sītā's Birth and Parentage in the Rāma Story”, AFS, 41/2, pp. 235-240.334 Monika Thiel-Horstmann, Rāmāyaṇa and Rāmāyaṇas, Weisbaden, Otto Harrossowitz, 1991, p. 81.335 Rām. 2.54.7a: «vijane 'pi vane sītā vāsaṃ prāpya gṛheṣv iva»

62

Como se pertencesse àquele local e tivesse rapidamente renunciado ao seu lugar de princesa e

futura rainha:

Não vi em Vaidehī qualquer sentimento de desespero, nem o mais breve sinal dele. Ela pareceu-me já acostumada às dificuldades do exílio. (...) Mesmo agora desprovida de jóias por amor a ele (Rāma), a bela Vaidehī move-se graciosamente como se dançasse com cachos melodiosos [nos tornozelos]. Na floresta, quando vê um elefante, um leão ou um tigre, ela adormece nos braços de Rāma e não sente medo.336

Ainda que se possa afirmar que Sītā age desta forma por não possuir um “destino pessoal”, i.e.,

por se limitar a seguir o seu marido Rāma (sendo comparada ao que Rohiṇī faz com a lua337), a

verdade é que a descrição do casal na floresta é de tal forma simpática, que quase custa a crer que

este seja um local desolado, já que o exílio em pouco se diferencia de um passeio em torno do

palácio da capital do reino, o que demonstra a relação que a heroína tem com a natureza, ainda com

aquela inabitada e cheia de perigos. A própria referência à dança, que tem como primeiro objectivo

demonstrar a naturalidade com que Sītā se move neste local, imprime à cena um carácter de

“harmonização” que ela própria protagoniza. Nunca nos podemos esquecer de que estamos perante

a civilização do Norte a marchar sobre a barbárie do Sul, i.e., civilizando-a.338 Esta facilidade com

que Sītā se move em território inóspito, relaciona-a naturalmente com Śrī e Afrodite, ambas deusas

da agricultura e da “terra estrangeira” (a qual parecem civilizar), representando a capacidade

feminina de sair da sua delimitação. Um exemplo desta capacidade é o facto do sulco (sītā) ser uma

das formas da deusa Āryā (“a nobre”, a deusa Durgā) no Harivaṃśa339, divindade directamente

relacionada com os Ários e obviamente com a sua invasão de terras estrangeiras, em especial o

território indiano.

Podemos entender Sītā enquanto qualidade terrena que continua a representar um princípio

feminino, bem reflectido na Sītā Upaniṣad do AV, em que a deusa representa uma “totalidade”: Sītā

é Prakṛti, Praṇava, e Māyā,340 sustém o universo e todos os seres, é a causa primeira:341

No mundo ela é todos os Vedas; todos os deuses; todos os mundos; toda a fama; toda a virtude; todo o solo, efeito e causa; a grande Beleza do Senhor dos deuses. Ela toma diferentes formas que são uma única. Ela é a essência do inteligente e do inerte342

Sītā assume três formas: “o poder do desejo”, “o poder da acção” e “o poder do

conhecimento”.343 Contendo em si Śrī, Bhūmī e Nīlā, e assumindo a forma lunar, Sītā rege sobre 336 Rām. 2.54.8; 16-17: «nāsyā dainyaṃ kṛtaṃ kiṃ cit susūkṣmam api lakṣaye / uciteva pravāsānāṃ vaidehī

pratibhāti mā (...) nūpurodghuṣṭaheleva khelaṃ gacchati bhāminī / idānīm api vaidehī tadrāgā nyastabhūṣaṇā // gajaṃ vā vīkṣya siṃhaṃ vā vyāghraṃ vā vanam āśritā / nāhārayati saṃtrāsaṃ bāhū rāmasya saṃśritā //»

337 Cf. Rām. 1.1.24. Rohiṇī, a quarta casa lunar, é considerada a esposa preferida da lua. Cf. nota Rām. 1.1.24.338 Claro que a par desta situação temos sempre aquela de que é o dever da esposa seguir o seu marido, ainda que

para a morte. Cf. Rām. 2.109.21-28.339 2.3.14.340 SU 2-3.341 SU 7-8.342 SU 10.343 SU 11.

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toda a natureza, satisfazendo os deuses e os animais.344 Ela é chamada Śrī e Lakṣmī,345 e

«manifesta-se ou oculta-se, sendo chamada de poder manifesto porque lhe compete a ela trazê-lo,

através do fechar e abrir da criação, sustentação, repressão, supressão e promoção».346

A Sītā épica aproxima-se de Helena também pelo facto de a sua conduta ser suspeita, no

momento em que é resgatada o seu marido irá negar da sua fidelidade, e manda-a embora, 347 e

perante tal situação, todos ficaram pálidos como se estivessem mortos, e os deuses, incluindo o seu

pai morto, vendo o que sucedera, acorreram em massa para garantirem a Rāma que Sītā havia sido

fiel, ordenando-lhe que aceite Sītā.348

3.3. Helena

Helena, a mais famosa heroína grega, é em Tróia simultaneamente a esposa de Menelau e de

Páris, reflectindo tanto a ideia de “união” de povos e dinastias, quanto a deusa que a guia, Afrodite

(por sua vez casada com Hefesto e amante de Ares). O seu nome (Helénē) está etimologicamente

relacionado o sol (hḗlios)349 e derivará da raiz PIE sṷel- “queimar”. Desta forma Helena é aquela

que queima (ou queimada, de tez negra?), sendo por este motivo que Eurípides, nas Troianas350, diz

que a beleza de Helena “queima casas”.351 O seu nome poderá ainda derivar de heílē ou hélē, “calor

do sol” e “sol”.352 Há, nesta análise etimológica uma comparação com Pirra (Pýrra, “cor de

fogo”)353, bem como duas comparações óbvias com o universo indiano, com as ninfas aquáticas, as

apsarās, símbolo da beleza e dos raios (ou grãos) do sol,354 e com Draupadī, nascida de um ritual de

fogo e portadora de uma tez escura ou sombria (kṛṣṇā).355 O nome de Helena encontra ainda relação

344 SU 12-13.345 SU 16.346 SU 34.347 Cf. Rām. 6.103-106.348 MBh. 3.291.10-17 e ss. Esta versão do MBh tem sido vista como a original, da qual terá nascido a versão do

Rām. tal como a conhecemos. Cf. Peter Scharff, Rāmopākhyāna – The Story of Rāma in the Mahābhārata, Londres, Routledge Curzon, 2003; e John Brockington, The Sanskrit Epics, Leiden, Brill, 1998. Na versão do Rām. ela é expulsa e no final engolida pela terra de forma a comprovar a sua lealdade ao marido.

349 “Divine Twins” in EIEC.350 893-894.351 O nome de Afrodite, se formado de aphrós “espuma”, subentenderá outra leitura que coloca a deusa em relação

com África (Aphrikḗ), incluindo a ideia de “negra” ou “nocturna”. Cf. Paus. 2.2. Para a questão veja-se: Martin Bernal, Black Athena: The Afroasiatic Roots of Classical Civilization, 3 vols., New Jersey, Rutgers University Press, 1987-2006.

352 “Goddesses” in EIEC. Também a deusa do lar e do fogo doméstico, Héstia, terá origem em h1eus “queimar”. Cf. “Fire Cult” in EIEC.

353 Note-se ainda que Pirra, será a fundadora, com Deucalião, da raça humana após o dilúvio (Hesíodo, Catálogo das Mulheres, Frag. 82), dilúvio que por sua vez foi comparado às correntes do regresso dos heróis da guerra de Tróia (Quinto Smirneu, Queda de Tróia 14.654 e ss.). Esta ideia de criação atribuída a Pirra, encontra-se igualmente presente no nome de Helena, a geradora (ou representante) dos Helenos. Cf. Ciprias, Arg. 5, in GEF.

354 Cf. ŚpBr 9.4.1.8.355 Cf. D. D. Kosambi, “The Autochthonous Element in the Mahābhārata”, JAOS, 84/1, 1964, p. 35; Madeleine

Biardeau, Le Mahābhārata: Un recit fondateur du brahmanisme et son interpretation, 2 vols., Paris, Editions du Seuil, 2002, pp. 201-202.

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com sélas “brilho” e selḗnē “lua”, sendo que a forma mais antiga do seu nome deverá ter sido

swelénā, o que corresponde ao IE swel-, presente no védico suvar/svar (“sol” e “céu”) e svarati

(“brilho”).356 Helena parece estar igualmente relacionada com Selene, já que Helena aparece num

altar representada como Selene,357 desta forma, o seu rapto e consequente guerra pode ser

relacionado com o rapto de Tārā por Soma.358 Para os Pitagóricos, Helena simbolizava a alma

humana, que no passado havia estado na lua (tal como os homens), tendo depois caído no mundo.

Desta forma, a pátria de Helena (bem como a sua reunião com Menelau) é a lua,359 exemplos que

ajudam a compreender a relação entre Helena e o nosso satélite, tal como o seu nascimento de um

ovo, que poderá subentender a ideia de um planeta. Soma, o deus da lua védico, representa o poder

e legitimação régios, dando uma característica à heroína que a confundem naturalmente com Hera e

Afrodite, que parecem ter tido esta função legitimadora. Esta relação dupla de Helena, com o sol e

com a lua, está presente nos seus dois irmãos, os Dioscuros (que são um paralelo grego dos Aśvins),

que representam o dia e a noite, dando a Helena um carácter de deusa solar, ou filha do sol, já que

ela seria cultuada como deusa na Lacónia e em Rodes.360 Por outro lado, na literatura védica o Sol

tem um lado brilhante e outro sombrio, porque durante a noite ele caminha invisível de Ocidente

para Oriente.361 Dualidade que pode explicar a significação de Helena, que é raptada às escondidas

por Páris de noite e de Ocidente para Oriente, e trazida de volta, contra-raptada de forma legítima

pelo Aqueus (e por isso visível), de Oriente para Ocidente, reflectindo assim um Sol visível diurno,

e um Sol invisível nocturno. O nome de Helena sugere igualmente a ideia de “roubo”, na

designação heleîn, “tirar”, “levar”, “aprender”, “manter” e “escolher”,362 atestando a ideia de rapto

bem como a escolha de Páris no Julgamento (ou a sua própria escolha de seguir com Páris). O

epíteto de Helena, helép(t)olis “que conquista cidades”, utilizado por Ésquilo,363 que é também a

designação de uma máquina de guerra de assalto, juntamente com hélōr “prender” e “conquistar”,

dá a Helena uma conotação bélica,364 que acrescenta à sua formulação etimológica características

muito próprias daquilo que seria a heroína épica. Por outro lado, a designação helénion, “abaixo”,

356 “Sun and Daughter” in IEPM, p. 231.357 Cf. Samuel B. Platner, Thomas Ashby, “Lacus Iuturnae” in A Topographical Dictionary of Ancient Rome,

London, Oxford University Press, 1929.358 HV 1.25.24-50; ViPur 4.6.8-33.359 M. Detienne, “La Légende Pythagoricienne d'Hélène”, RHR, 152, 1957, pp. 131-136 e ss. Sendo Afrodite

(Vénus) a deusa que guia Helena (nesta acepção algo que cai da lua na Terra), podemos entender uma doutrina (pitagórica ou não) dos Antigos que coloca as divindades em Vénus, os homens naturalmente na Terra, e os nossos antepassados na lua, o que poderá explicar o motivo pelo qual a lua é no imaginário IE a legitimação régia, porque espelha a ideia de tradição, origem dinástica (como no caso indiano) e princípio, o facto do satélite estar próximo à terra poderia envolver os Antigos na acepção de uma certa vigilância sobre as acções políticas terrenas.

360 “Sun and Daughter” in IEPM, p. 230.361 “Sun and Daughter” in IEPM, p. 209.362 “Take” in EIEC.363 Ésq. Agamémnon, 689.364 “Ἑλένη” in DELG.

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que é também o nome de uma énula e de outras plantas,365 relacionam-na com a natureza, a terra e

aquilo que é regra geral entendido como estando “abaixo” do céu.

Helena recebe o epíteto de argiva, da cidade de Argos (Árgos), que reflecte igualmente as

designações de “branca”, “brilhante” e “rápida” (argós), correspondendo ao latino argentum,

“prateado”, e ao sânscrito arjuna- “branco”, “claro”, “brilhante”,366 e ainda que esta última relação

não esteja etimologicamente atestada, deve ser tida em conta pelas relações que a Il. e o MBh

comportam.

Das várias versões sobre o nascimento de Helena, a mais famosa será aquela em que Leda se

deitou, na mesma noite, com Tíndaro e com Zeus, tendo gerado de Tíndaro, Castor e Clitemnestra, e

de Zeus, Pólux e Helena.367 Segundo outra versão do mesmo mito, os Dioscuros eram filhos de

Tíndaro, e Helena de Zeus.368 Noutra versão, Zeus deitou-se com Leda na forma de um cisne, o que

levou Leda a pôr dois ovos, de um nasceu Helena e do outro nasceram os Dioscuros.369 Este

nascimento de um ovo aproxima-a imediatamente da deusa Afrodite370 e de Astarte. Helena é a

única filha de Zeus com uma mortal, o que lhe dá um carácter especial, podendo mesmo ser

entendida como divindade. Noutra versão, Helena nasceu da união entre Zeus e Némesis, em que

esta foi tomando várias formas enquanto fugia de Zeus, até se transformar em ganso, e Zeus,

transformando-se em cisne, uniu-se a ela, e Némesis gerou um ovo do qual nasceu Helena.371 Além

de existirem raros registos de híbridos entre o ganso e o cisne,372 sabemos de antemão que o ganso

revela um comportamento sexual agressivo, e que o cisne prima pela sua beleza, sendo até certo

ponto perceptíveis os papéis que adoptam os deuses nas suas metamorfoses. Estes são ainda animais

que surgem com alguma frequência na literatura, como no exemplo em que Penélope cuida de vinte

gansos e sonha com eles,373 sendo ainda um animal consagrado a Afrodite.374 No Egipto, o ganso

primordial (Gengen ou Negeg) foi responsável por gerar o “ovo do mundo”.375 Na Índia, o haṃsa

(género de ganso) ganha a capacidade sagrada de separar o leite (espiritual) da água (material).376

Estes exemplos permitem entender o nascimento de Helena de um ovo, bem como a relação cisne-

ganso, num contexto extra-grego. Comparativamente a Sītā, ainda que numa acepção meramente

365 Cf. “Ἑλένη” in DELG.366 Cf. “Ἄργος” e “ἀργός” in DELG; “arjuna-” in DSF; “Introduction” in Eurípides, Helen, (Trad. Robert E.

Meagher), Amherst, University of Massachusetts Press, 1986, p. xix.367 Higino, Fábulas, 77; Apolodoro, 3.10.7.368 Od. 11.298 e ss.; Il. 3.426.369 Il. 3.237; 426.370 Pseudo-Higino, Fábulas 197.371 Ciprias, frag. 10-11, in GEF.372 Por exemplo: John Phillips, “Another 'Swoose' or Swan x Goose Hybrid”, in A Swan-Goose Hybrid, 45, 1928.373 Od. 19.536 e ss.374 Veja-se EIEC, p. 236.375 Geraldine Pinch, “Birds” in: Egyptian Mythology: A guide to the gods, godesses, and traditions of Ancient

Egypt, Oxford, Oxford University Press, 2002, p. 120.376 ṚV 1.74.91.

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visual, o ovo, sendo redondo, não deixa de traçar uma correspondência com o “círculo de terrenos”

(kṣetramaṇḍalam)377 que o pai de Sītā estava a lavrar no momento em que esta nasceu. Noutro

sentido, sendo o ovo símbolo recorrente da criação, podemos admitir que o ovo é, até certo ponto,

uma representação do mundo físico, e neste sentido, Helena não deixa de nascer da terra. O

nascimento de um ovo, permite também que a compreendamos como uma “ave”, facilmente

comparável a Penélope (relacionável com as aves marinhas, pēnélopes).378

Helena tem sido comparada com deusas da aurora ou ligadas ao sol, como fizeram Martin West e

Wendy Doniger,379 em especial a Sūryā, a forma feminina de Sūrya (o Sol), em que os Dioscuros

são comparáveis aos irmãos de Sūryā, os Aśvins.380 Bem como a Saraṇyū, em que esta desaparece

com Vivasvant, e os deuses substituem-na por uma imagem,381 etc. Contudo, embora devam ser

tidas em conta, as comparações de Helena com as deusas da aurora per se revelaram-se irrelevantes

e não têm auxiliado na compreensão do mito do rapto,382 pelo facto de colocarem a heroína num

patamar celeste, demasiado afastado da sua verdadeira função e significação (que é terrena!383). A

sua relação com os Dioscuros (originalmente esposa e não irmã) colocam-na, contudo, num

presumível patamar de deusa PIE.384 Quando comparamos Helena (que será, até certo ponto, a

forma mortal de Afrodite, relacionada com o planeta que anuncia a aurora, Vénus) com Sītā e

Draupadī (ambas encarnações de Śrī), a ideia da aurora que traz um determinado sol ou era, poderá

auxiliar-nos bastante na sua leitura enquanto legitimação divina, signo ou marca de um poder

terreno, ideia que ajudará a entender o motivo do rapto de Helena para Tróia, e a mobilização

massiva dos Aqueus no seu contra-rapto.

Helena não nasce de um terreno, como Sītā, mas a sua origem aproxima-se invariavelmente da

natureza quando a vemos raptada por um pastor frígio, Páris, o que não deixa de ser contraditório

pelo facto de ser um príncipe de Tróia. Aqui poderá estar presente a ideia de que o príncipe Páris

377 Rām. 2.110.28.378 Pierre Chantraine desacredita a relação de Penélope com estas aves marinhas, pelo facto de ser comum na

Antiguidade dar nomes de aves às mulheres (“Πηνελóπεια” in DELG), contudo, no caso de Penélope e não concordando com o autor, admito que a devemos levar em conta, pelo simples facto de esta ter sido encontrada no mar, o que a relaciona com aves marinhas. Para a relação entre Penélope e os pássaros, veja-se em especial: Paul Faure, “Ulysse ou le Petit Prince. Au royaume d'Idoménée” in Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant J.-C.), Paris, Fayard, 1980, pp. 22-26.

379 “Sky and Earth” in IEPM, p. 185 e ss.; Wendy Doniger, “The Shadow Sita and the Phantom Helen” in Splitting the Difference: Gender and Myth in Ancient Greece and India, Chicago, University of Chicago Press, 1999, p. 8 e ss. Onde se defende uma semelhança entre Saraṇyū, Sītā e Helena, baseada na questão dos gémeos e da aurora.

380 Douglas Frame, The Myth of Return in Early Greek Epic, New Haven, Yale University Press, 1978, pp. 139-140.381 ṚV 10.17.1-2. Note-se que também Rāma fará uma imagem de Sītā quando esta morre. (Rām. 7.89.4)382 Estas comparações foram de resto admitidas como improdutivas e obscuras por Lowell Edmunds, “Helen's

Divine Origins”, Electronic Antiquity, 10,2.383 Note-se o facto de Helena ser relacionável, a partir dos seus epítetos, à natureza e à fecundidade, bem como

Menelau, que poderá ser relacionado com uma árvore (Pausânias 8.23.4 e ss.). Para a questão veja-se igualmente: Linda L. Clader, “Helen's Divine Nature outside of Homeric Poetry” in Helen: The Evolution from Divine to Heroic in Greek Epic Tradition, Leiden, Brill, 1976, p. 71 e ss. Helena foi morta e pendurada numa árvore, por mulheres vestidas como Erinas, por esse motivo em Rodes existe um santuário a Helena numa árvore. Cf. Pausânias 3.19.10.

384 “Goddesses” in EIEC.

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(primeira função IE) não reúne as qualidade da soberania, pelo que ele escolherá simbolicamente

ser pastor (terceira função IE), função que lhe será mais aplicável, dado que o erro do príncipe

gerará uma guerra de dez anos. Contudo, também Janaka (que é um rei) estava a lavrar um terreno

quando encontrou Sītā, e desta forma, podemos admitir novamente que a prática agrícola, aliada à

da pastorícia, servirá de metáfora ao governo. Também o soberano Ulisses será recebido por um

porqueiro. Todas estas narrativas terão por objectivo unir as funções, i.e., o rei (e a casa real)

àqueles que trabalham. Sītā nasce da recta prática agrícola ou política, e Helena é raptada numa

escolha, contenda ou discórdia que se resolve na pastorícia, com implicações políticas que

comparam o pastor ao pai do povo, ao governante. Neste caso Helena terá igualmente uma função

de “origem”, isto porque, tendo em conta que tanto Heródoto como Tucídides começam as suas

Histórias com a guerra de Tróia e Helena, permite-nos entendê-la como a “fundação” da história

dos Helenos e da destruição dos Troianos, da mesma forma com que Sītā é a fundação da história da

invasão ária, e da destruição e assimilação dos povos do Sul da Índia.

Além de unir mundos, o Oriente e o Ocidente, levando-os a combater em Tróia devido ao seu

rapto, Helena funciona igualmente como um centro entre os homens e as mulheres, entre as troianas

que trabalham ao tear dentro de casa e os homens que combatem no exterior, como no momento da

teichoskopía, “a visão desde a muralha”385, representando ainda a barreira ou o ponto de viragem

para os heróis que deixam de ser simplesmente homens, para passarem a combater em nome de uma

mulher, morrendo jovens e alcançando a imortalidade e a fama, como Aquiles.386 Helena leva assim

os homens à união, tal como Afrodite, isto porque se Briseida provoca a divisão entre Aquiles e

Agamémnon (entre os Aqueus), que se reunirão devido à morte de Pátroclo, também os Gregos e os

Troianos se unirão em Tróia devido ao rapto de Helena, e, no final da guerra, unir-se-ão uns às suas

famílias que deixaram durante dez anos na pátria, outros aos seus antepassados no mundo dos

mortos. Afrodite, ao relacionar-se com Ares, não deixa de projectar um reflexo em Helena que une e

separa os heróis na guerra e na morte. A relação de Helena com Afrodite é muito extensa e

conhecida, no entanto, alguns elementos serão aqui indispensáveis, o facto de Helena ser chamada

de “pomba”,387 que é o animal sagrado de Afrodite (poderíamos dizer, a representação e presença

física de Afrodite no mundo), ajuda-nos a compreender a herança, bem como a encarnação que a

heroína faz da deusa. Todo o rapto é provocado por Afrodite, quer por sugerir a Páris casar-se com a

mais bela mulher do mundo (Helena) e o levar a consumar o rapto, quer devido a outras versões, em

que Menelau, ao prometer uma hecatombe a Afrodite como preço de casamento, não a tendo

385 Cf. Il. 3.161-170 e ss.386 Mihoko Suzuki, “The Iliad” in Metamorphoses of Helen: Authority, Difference, and the Epic, New York,

Cornell University Press, 1989, pp. 18-20; 35-37 e ss.387 Licofron, Alexandra 86 e ss.

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cumprido, foi castigado por Afrodite com o rapto da sua esposa, Helena.388 A versão mais conhecida,

diz-nos que foi Zeus quem provocou as guerras de Tebas e de Tróia, porque a Terra se havia

queixado do peso dos homens, pois eram várias as raças que deambulavam pelo mundo.389 Este é o

“plano de Zeus” que provoca o casamento de Tétis com um mortal e o nascimento de Helena,

gerando assim a guerra, retirando a culpabilidade a Helena, e dando-lhe um carácter de plano divino

para o massacre, muito semelhante ao motivo do nascimento de Draupadī.

3.4. Draupadī

Draupadī, a famosa esposa dos Pāṇḍavas, e provavelmente a mais complexa heroína épica

indiana, nasce de um ritual de fogo (nascimento que é uma encarnação de Śrī) com o objectivo de

destruir os Kauravas (primos e inimigos dos Pāṇḍavas) e os kṣatriyas (facção guerreira). Certa vez,

um brāhmaṇa contou aos Pāṇḍavas que se iria realizar um casamento do tipo svayaṃvara (escolha

pessoal da noiva) da filha de Yajñasena, o rei dos Pañcālas, e conta-lhes sobre o seu nascimento.390

Drupada, o pai de Draupadī queria um filho que matasse o seu antigo inimigo Droṇa.391 Desta forma

realizou um ritual de fogo, do qual primeiro nasceu um rapaz (com o propósito de matar Droṇa)

chamado Dhṛṣṭadyumna, portando uma espada na mão, um arco e flechas, e um coroa na cabeça.392

Do mesmo fogo, surgiu depois Draupadī:

Então surgiu do centro do altar de sacrifício uma filha, chamada Pāñcālī (de Pañcāla), abençoada com um excelente destino e uma extraordinária beleza.393

Ela tinha uma pele negra, cabelo negro e encaracolado, unhas muito belas e brilhantes, o seu

perfume natural era como o do lótus e ninguém na terra superava a sua beleza.394 No momento em

que ela nasceu uma voz divina disse do céu:

Esta rapariga de pele negra será a melhor das mulheres, e será a causa da destruição dos kṣatriyas.395 Esta rapariga de cintura delgada irá a seu tempo cumprir o trabalho dos deuses. Dela brotarão muitos perigos para os valentes guerreiros.396

Aproximando-a de Helena, cujo nascimento é um plano para terminar com a raça dos heróis,

bem como com os Troianos. Esta é uma pretensão divina que inspira as acções humanas. Pelo facto 388 Ptolomeu Hefesto, (Trad. Pearse)389 Ciprias, frag. 1, in GEF. 390 MBh 1.168.7 e ss.391 Cf. MBh 1.169.392 MBh 1.169.39-40; 43.393 MBh 1.169.44: «kumārī cāpi pāñcālī vedimadhyāt samutthitā / subhagā darśanīyāṅgī vedimadhyā

manoramā //». O culto em torno do seu nascimento mantém-se: Cf. Madeleine Biardeau, “Draupadī aux deux poteaux” in Histoires de Poteaux: Variations védiques autour de la Déesse hindoue, Paris, École Française d'Extrême-Orient, 1989.

394 MBh 1.169.45-47.395 MBh 1.169.48b: «sarvayoṣidvarā kṛṣṇā kṣayaṃ kṣatraṃ ninīṣati //»396 MBh 1.169.49: «surakāryam iyaṃ kāle kariṣyati sumadhyamā / asyā hetoḥ kṣatriyāṇāṃ mahad utpatsyate

bhayam //»

69

de a rapariga ter uma cor negra (kṛṣṇā), foi chamada de Kṛṣṇā,397 representando o seu carácter

sombrio, já que será causadora de morte. Também Kṛṣṇa o “negro”, a encarnação de Viṣṇu, terá no

mundo uma “acção” (da raiz kṛ-) sombria e mortífera. Esta foi a história contada aos Pāṇḍavas, que

ainda antes de terem visto a princesa, se sentiram atraídos por ela:

Os filhos de Kuntī, ao terem ouvido isto, pareciam ter sido atingidos por um dardo (śalya).398

Aqui surge novamente a ideia de dardo, que, como se verá, continuará a ser um tópico para as

heroínas épicas. Também Kārttikeya, o filho de Śiva, nasceu de um ritual de fogo, sendo chamado

śaktidhara, “portador da lança”. Draupadī é irmã gémea de Dhṛṣṭadyumna, que nasce directamente

do fogo, ela por sua vez nasce do centro do altar de sacrifício (a vedi, que representa a terra e a

realeza terrena). Desta forma, os dois representam a encarnação dos deuses védicos Agni (o fogo

sacrificial) e Śrī (realeza, prosperidade).399 Draupadī tem uma cor de pele negra, formando um grupo

com outras personagens igualmente negras, como Vyāsa, Droṇa, Kṛṣṇa e Arjuna, todos eles

representam a acção dos deuses (devakārya) no mundo, num momento de crise, e uma obra de

mortandade que farão cumprir na terra, que é a função avatārica por excelência.400

Tal como Helena parece representar os Helenos e a sua força ou poder, também Draupadī tem

sido interpretada como a representação da Índia protegida pelo Rei Dharma (Yudhiṣṭhira, um dos

seus maridos).401 Draupadī, tal como Helena, tem dois irmãos, Dhṛṣṭadyumna e Śikhaṇḍin, que

combaterão em Kurukṣetra, e tal como os Dioscuros representam uma dualidade, dia-noite, também

estes dois irmãos representam a dualidade humana, já que um deles é efeminado pelo facto de ser

uma encarnação da princesa Āmbā.

O nome de Draupadī, que deriva do nome do seu pai Drupada, poderá ter que ver com dru- e

pāda- “machado de madeira”, de dru- “madeira”. Encontra comparação com o grego drymós

“floresta” e “árvore”, e com dóry “lança”, “tronco de árvore”, “dardo” (em Homero: dourós).402

Também Penélope será por vezes confundida com a ninfa Dríope “face de carvalho/árvore”.403

Sobre a sua origem Indra dirá a Yudhiṣṭhira:

Ó Yudhiṣṭhira, ela é Śrī, que tomou a forma de Draupadī para teu bem, tornando-se humana sem ter nascido de

397 MBh 1.169.54.398 MBh 1.170.1a: «etacchrutvā tu kaunteyāḥ śalyaviddhā ivābhavan» A EC (1.156.1d) acrescenta a este verso:

«manasā draupadīṃ jagmur anaṅgaśarapīḍitāḥ», “pensando em Draupadī, foram atingidos pela flecha de Anaṅga (Kāma: deus do amor)”. (tradução minha)

399 Madeleine Biardeau, Le Mahābhārata: Un recit fondateur du brahmanisme et son interpretation, vol. 1, Paris, Editions du Seuil, 2002, pp. 276-277.

400 Madeleine Biardeau, Le Mahābhārata: Un recit fondateur du brahmanisme et son interpretation, vol. 1, Paris, Editions du Seuil, 2002, p. 277.

401 Kunhan Raja, “Appendix V: The Message of the Naimiṣāraṇya” in ABORI, 24, 1-2, 1943, p. xxix.402 Cf. “deru-, dō� ru-, dr(e)u-, drou-, dreu~ ə- : drū-” in IEW.403 “δρῦς” in DELG; “Dríope” in DMGR.

70

um ventre, amada pelo mundo, ela que cheira bem404

Tal como Sītā. De um ponto de vista popular, Draupadī representa essencialmente a esposa

devota, casta, religiosa e ligada ao dever, de uma integridade e fidelidade admiráveis, procurando

continuamente agradar aos seus maridos, servindo-os não apenas a eles mas também às suas

esposas.405 No entanto, ainda que Draupadī represente o protótipo da mulher e esposa indiana, ela

não tem nada de convencional. O facto de estar casada com cinco príncipes (situação que não volta

a suceder na literatura indiana) é exemplo suficiente desta realidade.

Draupadī, tal como Helena, nasce para causar a morte dos guerreiros, e serão as más acções

praticadas pelos Kaurava sobre Draupadī que levarão à grande guerra, que terminará com a sua

morte. Tal como sucede com Sītā e Helena, somos levados a crer que estas mulheres geradoras da

guerra representam a legitimidade do seu povo, bem como um plano divino que visa estabelecer

uma ordem num mundo epicamente representado em crise.

3.5. Penélope

A rainha de Ítaca, Penélope (ou Penelopeia), representação homérica da mulher fiel, seria, de

acordo com Dídimo, também chamada de Ameirace e Arnácia (ou Arneia), tendo sido encontrada

(outra tradição conta que foi lançada) pelos seus pais no mar, onde foi salva e alimentada por aves

marinhas (pēnélopes), derivando daí o seu nome.406 A designação derivará ainda de pḗnē e lépō (ou

lopós), “agulha e linha”, “tecelagem”, ou de pēnós e ópē “face brilhante”.407

É essencialmente a partir do seu nascimento, unido das comparações com a deusa, que a ligamos

a Afrodite, permitindo criar uma acção terrena dual em Afrodite: Helena e Penélope, que porventura

se reflectirá na dualidade pándēmos (de todo o povo) e ouranía (celeste), i.e., Afrodite infiel e

amante (em Helena) e Afrodite casta e casada (em Penélope). O nascimento de Penélope no mar,

além de reflectir a deusa nascida da espuma do mar, reflecte igualmente outros nascimentos

simbólicos como os de Helena (que nasce de um ovo, ou da terra), Sītā (de um sulco, da terra) e

Draupadī (de um ritual de fogo, do centro da vedi, da terra), porque o nascimento ou surgimento no

mar dá a entender um nascimento sem mãe, oriundo do seio da própria terra, que obedece com

404 MBh 18.4.9: «śrīr eṣā draupadīrūpā tvadarthe mānuṣaṁ gatā / ayonijā lokakāntā puṇyagandhā yudhiṣṭhira //». Cf. MBh 3.273.5-6.

405 Cf., Vanamala Bhawalkar, Eminent Women in the Mahabharata, Delhi, Sharada Publishing House, 2002, p. 142 e ss.

406 Cf. “Penelope” in DGRBM III. O seu nome derivará de pēnélops (cerceta ou pato pequeno). Cf. “Πηνελόπεια” in DELG. As personagens femininas com quem Ulisses se relaciona, Penélope, Circe e Calipso (onde poderemos incluir as Sereias), representarão, de acordo com Paul Faure, uma única mulher-pássaro. Cf. Paul Faure, “Ulysse ou le Petit Prince. Au royaume d'Idoménée” in Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant J.-C.), Paris, Fayard, 1980, pp. 22-23.

407 Cf. Marcy George-Kokkinaki, “Literary anthroponymy: decοding the characters of Homer’s Odyssey” in Antrocom, 4/2, 2008, p. 146; Cf. Paul Faure, “Ulysse le Fameux, ou le Roi au loin” in Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant J.-C.), Paris, Fayard, 1980, pp. 230-231. A possibilidade de “face brilhante” aplicada ao nome de Penélope, compara-a igualmente com Afrodite e Helena.

71

frequência a um ideal ou plano divino. O facto de tanto Afrodite como Penélope nascerem no mar,

seguindo depois para terra firme numa ilha, subentenderá igualmente uma origem estrangeira, que

chega à costa de uma comunidade autóctone.

Penélope é filha de Icário e Peribeia de Esparta,408 o nome da sua mãe significa perì boûs, “à

volta do gado”, “cerca” ou aquela “a quem é dado o gado”,409 o que a relaciona com a ideia de

protecção periférica e com os poderes telúricos. Por sua vez, Icário aprendeu a arte da produção de

vinho a partir do deus Dioniso.410 Assim, ao relacionar-se com Peribeia, poderá subentender a

relação entre comunidades pastorícias e agrícolas. Por sua vez, o nascimento de Penélope

representaria o comércio marítimo.

Penélope é casada com o rei de Ítaca, Ulisses (Odysseús), o “terrível” ou aquele que tem “ódio”.

Ainda que a etimologia correcta do nome de Ulisses seja ignorada,411 é possível perceber um

carácter “sombrio” na personagem homérica, mais que não seja pelo extermínio de bárbaros que ele

protagoniza.412 Por consequência, Penélope, pelo facto de tecer uma mortalha para Laertes (para a

sua morte!), simbolizará o destino e a mortalha dos pretendentes mortos pelo seu marido.

Outras conclusões, quando lê-mos os mitos posteriores a Homero como um todo, poderão surgir

quanto à significação de Penélope. Penélope, quer pelo facto de se encontrar no universo feminino,

quer pelo seu nascimento originário no mar, está relacionada com aquilo que é terreno, o que será

atestado por outras relações que lhe são atribuídas, já que em Higino, por exemplo, ao casar-se com

Mercúrio (Hermes) dá origem ao deus-bode Pã,413 deus representativo da natureza, da não-

civilização e daquilo que é mais natural/animal no homem.414 Noutra versão, diz-se que Penélope,

por ter sido seduzida por Antínoo, foi devolvida pelo marido, Ulisses, ao seu pai Icário. Desta

forma, quando ela chegou a Mantineia na Arcádia (onde se encontrava o seu túmulo415), deu à luz

Pã, do deus Hermes.416 Esta relação entre Penélope e Hermes reflectir-se-á até certo ponto naquela

entre Afrodite e Hermes.417 Hermes, de hermē� s e hermeîa (amontoado de pedras, altar, estaca),

408 Od. 1.329; 3.10.409 Robert Graves, The Greek Myths, New York, Penguin Books, 1992, p. 774; James Redfield, The Locrian

Maidens: Love and Death in Greek Italy, New Jersey, Princeton University Press, 2003, p. 90.410 Cf. “Icarius” in DGRBM II.411 “Ὀδυσσεύς” in DELG; “Hate” in EIEC.412 Veja-se por exemplo: Michel Austin, Pierre Vidal-Naquet, “Os poemas homéricos enquanto fonte histórica” in

Economia e Sociedade na Grécia Antiga, Lisboa, Edições 70, 1986, p. 48.413 Higino, Fabulas, 224; Cf. Maria M. Alves Dias, “O que Penélope Dizia quando em Silêncio Tecia”, Cadmo 16,

2006, p. 223. Penélope terá sido igualmente entendida como deusa em Esparta, que originalmente presidia aos casamentos. Cf. Paul Faure,“Ulysse l'Endurant, ou la Crète du XIIIe siècle av. J.-C.” in Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant J.-C.), Paris, Fayard, 1980, p. 100; “Ulysse le Fameux, ou le Roi au loin” in Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant J.-C.), Paris, Fayard, 1980, p. 233.

414 Walter Burkert, “Os deuses «menores»” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993,p. 338.

415 Paus. 8.12416 Ps. Apolod., Biblioteca E7.39, (trad. Aldrich); Hdt. 2.153.1. 417 Ps. Hig., Astronómica 2.16 (trans. Grant)

72

denotará a marcação e delimitação de territórios,418 representando ele mesmo uma distância entre o

mundo natural e o mundo civilizado. Neste sentido, a relação de Penélope com Hermes (Penélope

que se relaciona com a delimitação e marcação) não é muito diferente daquela com Ulisses, já que o

herói diferencia, anula e marca os locais selvagens por onde passa. Esta marcação e anulação

presentes em Ulisses evidencia-se de forma muito clara na estaca que ele usa para cegar Polifemo.419

O facto de Penélope se relacionar com Hermes (altar, etc.), compara-a com Draupadī que nasceu do

centro de um altar, o que lhe dá um carácter de sacrifício (cumprido na morte dos pretendentes) e de

centro, limite. Noutra versão, ao casar-se com Telégono, Penélope gerará Ítalo, o território da

Itália.420 Relação que une novamente Penélope à ideia de terra e de território. As comparações de

Penélope com Ártemis e Afrodite na Odisseia421 dão-lhe novamente um carácter dual da civilização

e da não-civilização. É principalmente a partir da comparação com Ártemis que compreendemos

alguma sensibilidade poética da relação épica da heroína com a natureza, e com Afrodite uma

relação com a civilização. O nome de Penélope ou Penelopeia é dado a uma ninfa driádica do

Monte Cilene (na Arcádia, no sul da Grécia). Aqui é a filha do rei Dríope, “face de

carvalho/árvore”,422 novamente com o sentido de estaca ou marca. A princesa Dríope, do monte Eta,

foi seduzida por Apolo na forma de uma tartaruga, e tornou-se mãe de Pã.423 É importante lembrar

que a Afrodite, na sua forma de ouranía (celeste), é-lhe consagrada a tartaruga,424 o que se reflecte

nesta união de Apolo com Dríope. Esta ninfa confunde-se com Penélope através da equivalência

etimológica, o que levou Penélope a ser comparada com outras ninfas, como Sose425 e Timbris,426 da

mesma forma referidas como mães do deus Pã. Da sua relação com Ulisses, teve apenas um filho,

Telémaco, que o seu pai deixou em Ítaca muito novo, quando foi para a guerra de Tróia.427 Em

Homero ela é tratada essencialmente como significação da mulher casta e fiel, que terá inspirado as

mulheres gregas durante os séculos seguintes.

O tópico dos dois irmãos volta a surgir na heroína. Penélope é a irmã de Alizeu e Leucádio, que

governaram com o seu pai Icário na Acarnânia. Estes dois irmãos de Penélope correspondem às

cidades de Alizeia e Leucas.428 Como vimos, Helena e Draupadī têm igualmente dois irmãos, e a

418 Cf. “Ἑρμῆς” in DELG; Walter Burkert, “Hermes” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, pp. 307-308. As raízes IE térmṇ e térmōn, geram no grego térma (“fronteira” e “final”) e no sânscrito tarman- (“local de sacrifício”). Em Roma, na Grécia e na Índia, existiam postes ou pedras de fronteira que tinham um carácter delimitador sagrado. Cf. “Border” in EIEC.

419 Od. 9.380-384 e ss.420 Cf. Higino, Fábulas, 127.421 17.36-37.422 “δρῦς” in DELG; “Dríope” in DMGR.423 Antoninus Liberalis, Metamorphoses 32 (trans. Celoria) (HH 19, a Pã). 424 Cic. da Nat. dos Deuses 3.20; Ov. Fast. 4.90.425 Nonnus, Dionisíaca 14.67 e ss. (trans. Rouse) 426 Apolod. 1.22. 427 Od. 11.447; 21.158.428 Alcméon 5 in GEF.

73

princesa Sītā, ainda que não tendo irmãos, não deixa de os encontrar quando parte em exílio com o

seu marido e o seu cunhado. Provavelmente o tópico da figura feminina acompanhada de dois

irmãos poderá significar a centralidade que o autor épico lhe quer dar, bem como a protecção da

qual ela necessita, mais que não seja, imageticamente. Veremos adiante que os gémeos Aśvins serão

importantes na legitimação da noiva e do casamento, participando activamente na entrega da noiva

ao seu marido. Legitimidade esta, que é preservada igualmente pela visibilidade pública, que está

simbolicamente presente no fogo que guia o cortejo nupcial.429 Neste sentido, os gémeos ou irmãos

associados a uma mulher, terão um papel legitimador e protector na sua acção feminina,

representando uma transferência da rapariga do pai para o marido e da infância para a idade adulta,

que ganha maior relevo quando aplicada a mulheres poderosas e exemplares como são Penélope e

os seus reflexos IE. Noutra versão, Icário e Peribeia tiveram cinco filhos: Toas, Damásipo,

Imeusimo, Aletes e Perileo, e uma filha, Penélope.430 O que a compara a Draupadī e aos seus cinco

maridos (os Pāṇḍavas), simbolizando no exemplo indiano os cinco fogos sacrificiais, três principais

e dois secundários (três filhos de Kuntī e dois filhos de Mādrī, a esposa secundária de Pāṇḍu).431 Na

Odisseia, também Nausícaa tem cinco irmãos (dois casados e três solteiros).432 Noutros exemplos, o

melhor porco, com cinco anos, é sacrificado em honra do estrangeiro (Ulisses) por Eumeu,433 no dia

em que chega a Ítaca. E finalmente, no momento em que Ulisses visita Autólito, é morto um touro

com cinco anos, sendo nesta visita que Ulisses é ferido por um javali, que lhe deixará a cicatriz

(uma marca divina e uma marca da realeza?) através da qual é reconhecido por Euricleia.434

Exemplos suficientes para atestarem a importância do valor numérico no caso da legitimação, ou

marco de determinado acontecimento que se revelará importante. Aliás, o contrário parece

representar o secretismo (e a ilegitimidade), já que um espião dos Troianos, Dólon, que era o único

irmão de entre cinco irmãs, de aspecto “feio” mas veloz de pés, tinha por objectivo expiar os

Aqueus durante a noite (invisibilidade), mediante recompensa.435

3.6. A mulher e o pilar

A relação de Penélope com a marcação, o centro e a coluna merece ser explorada de forma mais

exaustiva, comparando-se com exemplos que possam dar uma leitura mais completa e significativa

à relação. Como vimos, Penélope ao relacionar-se com Hermes (o que se reflecte em Ulisses) passa

429 Cf. ṚV 10.85.430 Apolod. 3.10.6.431 Cf. Madeleine Biardeau, Le Mahābhārata: Un récit fondateur du brahmanisme et son interprétation, vol. 1,

Paris, Éditions du Seuil, 2002, pp. 282-283.432 Od. 6.62-63.433 Od. 14.414-419.434 Od. 19.413-420 e ss. Na Ilíada (2.402 e ss.; 7.314-315) um boi de cinco anos é igualmente sacrificado a Zeus

por Agamémnon.435 Cf. Il. 10.314-318 e ss.

74

ela mesma a incorporar as características de “marco”, “pilar” e delimitação entre o que é selvagem e

civilizado. Da mesma forma, Sītā e Draupadī, ao nascerem de elementos naturais (de um sulco num

terreno e do centro de um altar de um sacrifício de fogo, respectivamente), representam elas

mesmas uma transformação da natureza aparentemente desorganizada (da não-civilização) em

organização (civilização). Também Helena, pelo facto de levar os Ocidentais ao Oriente, reflecte ela

mesma a ideia da civilização que anula, demarca e assimila a não-civilização (i.e., o inimigo). O

facto de nascer de um ovo, como vimos, poderá dar-lhe um carácter terreno.

A coluna parece representar o centro da casa, que é facilmente transferível para a ideia de um

centro do reino, isto porque os elementos de poder são recorrentemente encostados à coluna, sejam

as lanças, rainhas ou deusas. Quando Atena chega à presença de Telémaco, encosta a sua lança

contra uma coluna.436 Também Telémaco encostará a sua lança a uma alta coluna.437 Quando

Penélope vai ter com os Pretendentes, para se mostrar a eles, como objecto de “desejo” e de

“disputa”, fá-lo geralmente acompanhada de duas servas (no centro) e com um véu brilhante a

tapar-lhe o rosto,438 e encostando-se à coluna do tecto.439 Imageticamente, Penélope entre as duas

servas, é como Telémaco entre dois galgos,440 colocando as personagens numa posição de intervalo

ou centro, entre aquilo que as define (de um lado o trabalho dentro da casa, do outro, a caça fora da

casa). Também a rainha Aretê está em relação com a coluna. Nausícaa aconselha Ulisses a dirigir-se

rapidamente ao palácio de seu pai Alcínoo, e entrar na grande sala, onde encontrará a sua mãe:

ela senta-se à lareira, à luz do fogo, e fia lã, purpúrea como o mar, maravilha de se ver!, reclinada contra uma coluna. As servas sentam-se à sua volta. Aí, contra essa mesma coluna, está o trono de meu pai, onde se senta como um imortal a beber o seu vinho.441

E aconselha-o a dirigir a palavra primeiro à rainha Arete e não ao rei.442 O trono do rei encostado

à coluna contra a qual a rainha se reclina não deverá passar despercebido, tratando-se certamente de

uma metáfora dos símbolos do poder, em que a coluna ou pilar legitima/apoia o trono, ou seja, é a

partir do poder feminino centralizado que se mantém o poder masculino. Nausícaa encosta-se a uma

coluna perto da ombreira da sala, enquanto olhava para Ulisses,443 subentendendo a legitimidade da

princesa ou o reconhecimento de Ulisses. Também o aedo cego na corte de Alcínoo (que poderá ser

436 Od. 1.127. Helena será chamada de nora de homens lanceiros, o que poderá ter o mesmo sentido. Il. 3.48-50.437 Od. 17.29. Telémaco vai ter com os pretendentes com uma lança na mão. Od. 2.10; 20.145.438 Veja-se por exemplo: Od. 1.331-334.439 Od. 1.333; 16.415-416; 18.209; 21.64. Também Sītā se encosta a uma árvore, por exemplo: Rām. 5.26, 20. 440 Od. 2.11; 20.145.441 Od. 6.305-309: «hē d᾽ hē� stai ep᾽ eschárēi en pyròsÔ augē� i, ēlákata strōphō� sÔ ᾽ halipórphyra, thaûmaidésthai, kíoni

kekliménē: dmōaì dé hoi heíat᾽ ópisthen. éntha dè patròs emoîo thrónos potikéklitaiautē� i, tō� i hó ge oinopotázei ephḗmenos athánatos hṓs.»

442 Od. 6.310-315.443 Od. 8.457-460

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Homero) canta recostado contra uma alta coluna,444 e depois senta-se recostando-se a uma outra,445

episódio que levará Ulisses a ser reconhecido por Alcínoo. Depois de matar os pretendentes, Ulisses

encosta-se finalmente à coluna de sua casa,446 o que, seguindo este raciocínio, não deixa de

subentender a sua conquista do poder e da mulher.

A mulher ganha assim uma conotação de “centro” ou “eixo”, da raiz IE haeḱs-, que refere

igualmente “base da coluna”.447 A coluna estará assim relacionada com o centro, mas também (de

forma imagética) com a sustentação e união daquilo que está em cima com aquilo que está em

baixo, permitindo (pelo menos aos nossos olhos) entender o uso da coluna como metáfora à

implantação de um reino celeste no reino terreno, à sua união e ao reflexo de um no outro, etc. Um

pilar ou uma coluna, podem ainda ser compreendidos como símbolos da geração e linhagem, que

têm geralmente uma origem celeste. Sendo a coluna o centro, representará a união da qual tudo

prossegue, permitindo que as lanças e as mulheres, ao serem encostadas à coluna, revelem elas

mesmas um objecto de “poder”. O significado da coluna poderá remontar a uma maior antiguidade

dado que é comparável aos obeliscos e menires. Talvez seja por este motivo que Zeus escolhe os

ossos no ritual de Mecone, porque representam a dureza no mundo, o poder.448 Ainda no mito de

Prometeu, também a férula onde o titã traz o fogo poderá ser símbolo deste poder, já que de facto é

na cana (ossos, pilar) que está o poder mental e centralizador que os homens irão receber. E

Prometeu agrilhoado a uma alta coluna (em Hesíodo) ou a uma rocha (em Ésquilo) representará a

mesma ideia. Pensa-se que os primeiros altares (de bōmós, “plataforma elevada”) surgiram da

amontoação de ossos num determinado local de sacrifícios tido como sagrado, que ao estarem

agrupados acabaram por originar uma elevação e um centro, o que terá levado os Antigos a

repetirem o acto no mesmo local.449 Desta forma, os ossos podem ter entrado no imaginário

mitológico como algo sagrado, relacionado com os altares e a coluna.

Noutro exemplo, Páris atinge Diomedes encostando-se a uma coluna no túmulo de Ilo,

disparando uma flecha que lhe acerta no pé direito.450 Neste momento ainda é Páris quem detém

Helena, encostando-se por isso à coluna, como faz Ulisses ao matar os pretendentes. Por sua vez,

Ulisses é amarrado de pé contra uma “coluna” (o mastro do navio), para que se mantenha na sua

rota, não cedendo à tentação do canto das sereias.451 O mastro no navio terá o mesmo valor que uma

coluna dentro de casa, representando esse centro ao qual se é fiel.

444 Od. 8.66445 Od. 8.472-473446 Od. 23.90447 “Axle” in EIEC. 448 Cf. Hes., Teog. 534-557449 Cf. Walter Burkert, “O Altar” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste

Gulbenkian, 1993, pp. 185-186.450 Il. 11.369-377451 Od. 12.178-179.

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Existe igualmente uma relação entre a mulher e a petrificação. Numa narrativa semelhante à de

Anfitrião e Alcmena,452 Indra, sabendo da ausência de Gautama (que se encontrava a praticar

austeridades na floresta), tomou a forma de Gautama e dirigiu-se à esposa deste, Ahalyā. “Indra”

seduziu-a, e ela, ainda que sabendo tratar-se de Indra disfarçado, consentiu.453 Depois de se unirem,

Indra abandonou Ahalyā, mas no percurso encontrou Gautama, e este, vendo o deus com a sua

forma, compreendeu o que se havia passado e amaldiçoou-o a ficar desprovido dos seus testículos

(como um eunuco).454 Quanto à sua mulher, Gautama amaldiçoou-a a permanecer por vários

milhares de anos transformada num espectro.455 Noutras versões Ahalyā fica sem carne e sem

ossos,456 ou é transformada em pedra,457 até que Rāma a resgate. O facto de ficar transformada em

pedra aproxima-a da esposa de Lot e de Rambhā. Também a Medusa transforma quem olha para ela

em pedra,458 tal como quem olha para Sodoma no momento em que esta é destruída, transformando-

se num pilar de sal.459 Este tópico da morte pelo olhar está igualmente presente no paládio de Atena

que cegará Ilo, porque a estátua não deveria ser vista pelos mortais.460 A pedra está relacionada com

o poder noutros exemplos, como naquele em que Crono engole uma pedra em vez do pequeno

Zeus,461 permitindo-se assim que Zeus se torne no rei dos deuses. Mito de tal forma simbólico, que

em Roma serão feitas promessas em nome de Jupiter lapis, segurando uma pedra na mão e

lançando-a no final da promessa.462

Compreendemos assim que a relação das heroínas épicas não se limita à matéria e ao mundo,

mas também aos símbolos de sustentabilidade e centralidade, que permitem uma interpretação que

as aproxime da idealização de poder e legitimação, da qual necessita o homem, em concreto o seu

marido.

452 Cf. Apolod. 2.4.6-8; Od. 11.266-268.453 Rām. 1.47.1-19.454 Rām. 1.47.26. Os testículos ser-lhe-ão restaurados com os “testículos de um carneiro” (meṣa-vṛṣaṇau). Cf. Rām.

1.48.1-11. O facto de os antigos sacrificarem carneiros castrados, consagrando os testículos a Indra, pode estar na origem deste mito. O carneiro está relacionado com cultos de virilidade e fertilidade na Índia. Note-se ainda que o filho de Indra (Arjuna) tornar-se-á igualmente num eunuco no livro IV do MBh.

455 Rām. 1.47.28-30.456 Padmapurāṇa 54.33-34.457 Adhyātmarāmāyaṇa 1.6.14.458 Apolod. 2.4, 2-3.459 Gn 19.26.460 Pseudo-Plutarco, Histórias Paralelas da Grécia e de Roma 17.461 Hes. Teog. 485 e ss.462 Políbio, Histórias 3.25.

77

Capítulo IV

As esposas épicas: tipos de casamento e metáforas à legitimação

4.1. O casamento no mundo indo-europeu

Ainda que não seja possível estabelecer a partir dos mais antigos hinos IE, os Vedas, uma

teorização dos tipos de casamento praticados, pode-se, a partir dos épicos e dos śāstras, em que nos

são apresentadas sistematicamente classificações dos “casamentos com uma mulher” (strī-vivāhān),

subentender um modelo de matrimónio IE,463 que com frequência se estrutura em oito tipos464:

1) brāhma (de Brahman ou deus primordial): a noiva é dada como presente a um sacerdote conceituado;2) daiva (dos devas ou deuses): a noiva, filha de um sacerdote, é dada como presente a um oficiante; 3) ārṣa (dos ṛṣis ou iluminados): a noiva é dada a um pretendente em troca de gado; 4) prājāpatya (de Prajāpati ou deus criador): a proposta de casamento parte do marido e o pai dá-lhe a esposa; 5) āsura (dos asuras ou demónios): casamento por compra; 6) gāndharva (dos gandharvas ou músicos celestes): casamento por mútuo acordo e sem consentimento parental; 7) rākṣasa (dos rākṣasas ou demónios raptores): casamento por rapto; 8) paiśāca (dos piśācas ou demónios-vampiros): casamento por violação.

Ainda que transferíveis,465 os casamentos subdividem-se pelas três funções IE, a político-

religiosa, a guerreira e a económica. Os quatro primeiros tipos de casamento são marcados pela

maior passividade do marido, que recebe do sogro a mão da sua futura mulher, naquilo a que se

pode chamar de uma “oferta da noiva” (kanyā-dāna), sendo estes os casamentos mais apreciados e

próprios para a primeira função, os brāhmaṇas. Os tipos gāndharva (união livre e de mútuo acordo,

nascida do desejo das duas partes)466 e rākṣasa (rapto violento e público!) são, de acordo com o

ManuS, os mais apreciados e “correctos” (dharmyau) para a segunda função, os kṣatriyas. Aqui o

pai da noiva torna-se ele mesmo na figura passiva, face aos interesses do casal ou do noivo:

Para os kṣatriyas, estes dois rituais mencionados, o gāndharva e o rākṣasa, quer separados ou em conjunto, são permitidos pela tradição sagrada.467

O modo āsura (união resultante da compra) é especialmente aplicável à terceira função, os

vaiśyas, enquanto o último tipo, o paiśāca (união secreta a uma mulher tomada pelo sono, bebida ou

463 Para a questão veja-se em especial: Georges Dumézil, Mariages Indo-Européens, suivi de Quinze Questions Romaines, Paris, Payot, 1979, em que a partir de uma comparação da legislação matrimonial, sobretudo latina e indiana, se traça um molde da prática entre os IE; e Johann Jakob Meyer, “Marriage: To Whom and How is the Maiden to be Married” in Sexual Life in Ancient India, Delhi, Motilal Banarsidaa Publishers, 1989.

464 Esta listagem é-nos dada no ManuS (3.20-34) e no MBh (1.73.8-13; 1.102.6-12, etc.).465 Cf. Georges Dumézil, Mariages Indo-Européens, suivi de Quinze Questions Romaines, Paris, Payot, 1979, p.

45.466 Note-se que o casamento do tipo gāndharva parece subentender-se entre Nausícaa e Ulisses.467 ManuS 3.26: «pṛthak pṛthag vā miśrau vā vivāhau pūrvacoditau / gāndharvo rākṣasaś caiva dharmyau

kṣatrasya tau smṛtau //» O mesmo é dito no MBh 1.67.13a: «gāndharvarākṣasau kṣatre dharmyau tau mā viśaṅkithāḥ /» e no Gṛhastharatnākara, Vivāhabhedāḥ, 20.2b: «gāndharvvo rākṣasaścaiva dharmmau kṣatrasya tau smṛtau //». Ainda que se aplique a todos os guerreiros, é especialmente atribuído ao rei (rājan), o patamar mais elevado da classe guerreira. Cf. Georges Dumézil, Mariages Indo-Européens, suivi de Quinze Questions Romaines, Paris, Payot, 1979, p. 37 e ss.

78

loucura), sendo naturalmente negativo não se aplica directamente a nenhuma das funções, devendo

a sua prática ser evitada.468 Assim, poder-se-á propor sete casamentos legalmente aceites, deixando

o último tipo de fora.469 A par desta legislação dos oito tipos de casamento, há outro, de grande

importância nas epopeias, e que raramente é mencionado nestas definições, o svayaṃvara (a

“escolha pessoal” da noiva), que parece derivar do modo prājāpatya, em que o pai dá a filha ao

genro dizendo “que os dois cumpram o dever em conjunto” (sahobhau caratāṃ dharmam).470

Contudo, pelo facto de nos épicos a cerimónia do svayaṃvara se realizar a par de um acto de

“força” que precede a escolha pessoal da noiva (como é o habitual concurso do arco), aproxima-o

do tipo gāndharva e de certa forma do rākṣasa, já que este último é por vezes tido como um rapto

“consentido” pela esposa.471 Alguns autores têm no entanto apresentado a designação de vīryaśulkā

svayaṃvara472 para este tipo de casamento nos épicos, como uma derivação ou acrescento ao

svayaṃvara, acompanhado do concurso ou teste de capacidades (“força”) entre os pretendentes,473

no entanto as diferenças entre os dois são apenas superficiais, pelo que lhe chamaremos apenas

svayaṃvara.474 O svayaṃvara tem a característica de poder ser entendido como um casamento em

que a esposa se dá a si mesma, sem que dependa da vontade de terceiros,475 permitindo ver na

esposa aquela que tem a capacidade de “dar” e de “dar-se”, conferindo ainda uma certa

superioridade às mulheres que casavam segundo este tipo. O svayaṃvara, bem como o rākṣasa, são

os modos de casamento que mais nos interessam, isto porque Draupadī, Damayantī, Penélope e

Helena (e até certo ponto Sītā) casam de acordo com um svayaṃvara, ao qual se seguirá mais tarde

(no caso de Helena e Draupadī) um rapto (rākṣasa), persistindo sempre a ideia do emprego da força

(vīrya) na obtenção, rapto e contra-rapto de uma esposa. É-nos dito que o quinto modo de

casamento no MBh (o svayaṃvara) é o preferido pelos reis, contudo, a melhor esposa é aquela

roubada pela força.476 O casamento do tipo rākṣasa é aqui substituído pelo nome de kṣātra (próprio

468 Cf. Georges Dumézil, “Les Modes du Mariage Indien” in Mariages Indo-Européens, suivi de Quinze Questions Romaines, Paris, Payot, 1979.

469 Esta subdivisão dos modos de se casar em sete tipos em vez de oito, ainda que contrariando o número apresentado pela fonte, revela-se útil quando relacionado com o tópico do número sete na Antiguidade. Relação e interpretação que não será aqui abordada.

470 Cf. R. Pischel, Vedische Studien I, 1889, p. 30 apud Georges Dumézil, Mariages Indo-Européens, suivi de Quinze Questions Romaines, Paris, Payot, 1979, p. 33

471 Georges Dumézil, Mariages Indo-Européens, suivi de Quinze Questions Romaines, Paris, Payot, 1979, pp. 33-34.

472 A expressão vīryaśulkā é a utilizada para o casamento de Sītā. (Rām. 1.67.7)473 Cf. Heramba N. Chatterji, “Marriage by Self-Selection of Women-Svayaṃvara” in Studies in the Social

Background of the Forms of Marriage in Ancient India, vol. II, Calcutta, Sanskrit Pustak Bhandar, 1974.474 Cf. Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, p. 245-

246. Já que, por exemplo, Karṇa ganhará o concurso do arco, antes de Arjuna, mas na sua vitória Draupadī dirá «não escolherei um cocheiro» (MBh 1.189.23: «nāhaṃ varayāmi sūtam»), mantendo-se a ideia original de svayaṃvara.

475 Stephanie W. Jamison, “Giver or Given?: Some Marriages in Kālidāsa” in Laurie L. Patton (ed.), Jewels of Authority: Women and Textual Tradition in Hindu India, New York, Oxford University Press, 2002, p. 76.

476 MBh 1.102.11-12.

79

“dos kṣatriyas”).477

Embora se torne óbvio, pelos exemplos que se seguirão ao longo deste estudo, que o rapto é um

tipo de casamento profundamente IE, o nome que lhe é dado, rākṣasa, próprio “dos rākṣasas”, não

deixa de levantar algumas questões, já que esta é a designação dada a uma raça de demónios/titãs

maioritária e mitologicamente presente no Sul da Índia, reflectindo as culturas autóctones (os

Drāviḍas) que foram combatidas/assimiladas pelos povos IE. Contudo, se atentarmos na função do

pai, do irmão e do marido em relação a uma mulher, que é a de assegurar a sua “protecção”,478 bem

como a do rei assegurar a “protecção” do seu reino e povo,479 entendemos facilmente o emprego

deste nome. A designação rākṣasa, “demoníaco”, demónio nocturno, etc., deriva da raiz rākṣ-

“guardar”, “proteger” e “evitar”, e rākṣā- “protecção”,480 o que dá uma outra conotação a este tipo

de casamento, quer pela ideia de “protecção”, quer pelo seu carácter “nocturno”, que estará

provavelmente na origem dos casamentos por rapto (levados a cabo de noite e em secretismo!). Este

tipo de casamento será o escolhido pelo mais famoso raptor dos épicos indianos, Rāvaṇa, o rei dos

rākṣasas, quando decide raptar a princesa Sītā. Rāvaṇa é aquele que “faz gritar”481 (através do

rapto?), e que não deixa de encontrar eco no mais famoso raptor da literatura grega, Páris, que na

sua forma de Alexandre subentende “aquele que protege”.482

Observemos agora a descrição do casamento de Sūryā no ṚV483 que poderá projectar alguma luz

sobre o que seria o casamento IE:

Belas eram as vestes de Sūryā [quando] ela foi levada para aquele adornado pelo gatha (verso). O pensamento era a almofada do seu assento, a visão a pintura dos seus olhos, o seu tesouro era a terra e o céu, no momento em que Sūryā foi encaminhada até ao seu marido. Os hinos eram as barras cruzadas da haste [do carro], a métrica do kurika enfeitava o carro. Os padrinhos eram o par de Aśvins e o carro era guiado por Agni (o fogo).484

A descrição do momento em que Sūryā é levada em procissão para casa do seu marido, o deus

Soma, no carro dos Aśvins guiado por Agni, é valiosa, porque além da referência aos hinos (da sua

métrica) que adornam o carro, que subentendem os louvores cantados aquando desta cerimónia em

que se levava a esposa, também o fogo que guia o carro, lembra as tochas utilizadas no casamento

grego que acompanhavam a noiva até casa do seu marido, dando-lhe um carácter de “visibilidade”

pública, que se une à protecção dos padrinhos, o par de Aśvins, os Dioscuros indianos, aqui

477 Georges Dumézil, Mariages Indo-Européens, suivi de Quinze Questions Romaines, Paris, Payot, 1979, p. 38 e ss.; Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, p. 244 e ss.

478 ManuS 9.3-4.479 ManuS 9.253; 255.480 Cf. “rākṣ-” e “rākṣasa” in DSF. rākṣā (da sua relação com lākṣā) significa igualmente “lago”. “lākṣā” in KEWA.481 “rāvaṇa” in DSF. 482 Aléxandros, de aléch- (de aléxō) “proteger”, “guardar” e “repelir”, e -andros (de anḗr) “homem”. Cf. “ἀλέξω” e

“ἀνήρ” in DELG.483 10.85.484 ṚV 10.85.6b-8: «sūryāyābhadramid vāso ghāthayaiti pariṣkṛtam // cittirā upabarhaṇaṃ cakṣurā abhyañjanam /

dyaurbhūmiḥkośa āsīd yadayāt sūryā patim // stomā āsan pratidhayaḥ kuriraṃ chanda opaśaḥ / sūryāyāaśvinā varāghnirāsīt puroghavaḥ //»

80

representantes do noivo que protegem a rapariga durante todo o seu cortejo. Sendo estes os deuses

da aurora e do crepúsculo, subentendem que a cerimónia começa de dia e termina de noite,

reflectindo o período em que o cortejo da noiva grega se cumpria, geralmente ao final do dia.485 A

“transferência” da noiva tem início com a doação por parte do seu pai ao noivo:

Foi Soma quem cortejou a rapariga, os padrinhos eram os Aśvins, quando o deus do sol Savitṛ deu a sua [filha] Sūryā, que consentiu, ao seu novo senhor. O seu espírito era o carro de noivado, a cobertura era o céu. Brilhantes eram ambos os bois que o puxavam, quando Sūryā chegou à casa do seu marido. (…) A pompa nupcial de Sūryā, que Savitṛ iniciou, seguiu o seu caminho.486

Noutro lugar, são os Aśvins quem leva a esposa até Soma,487 e também os Aśvins serão

pretendentes de Sūryā, bem como outros deuses, que se casarão com ela,488 e aqui, Sūryā será levada

aos seus maridos pelo seu pai Savitṛ.489 Sūryā é no ṚV a esposa ária, a representação ideal da

esposa.490 Sūryā foi entendida como a luz do sol que é emprestada à lua, e por este motivo o seu

esposo é Soma.491

Estes Aśvins, que acompanham ou guiam a noiva, serão noutro mito (do qual nos chegou pouca

informação) os contra-raptores de Kamadyu, esposa que Vimada havia ganho, e que foi depois

raptada por outros pretendentes.492 Podemos assim supor uma origem do casamento e do contra-

rapto na figura dos gémeos, que acompanham a noiva e a resgatam, reflectindo-se invariavelmente

na figura dos irmãos que resgatam as raparigas, como os Dioscuros, Menelau e Agamémnon, Rāma

e Lakṣmaṇa, entre outros exemplos. Isto não subentende no entanto que as raparigas raptadas, bem

como os seus contra-raptores, devam ser associadas com divindades da aurora, mas sim com a

imagem de dois irmãos, que impõe alguma legitimação ao acto. Esta legitimação matrimonial está

presente de forma exemplar no casamento grego, como damos conta no exemplo de Menandro, em

que o filho legítimo é o propósito (mais do que o resultado) do casamento:

Eu dou-te esta mulher para a geração de filhos legítimos.493

Os filhos ilegítimos por sua vez, gerados numa situação prévia ao casamento, terão estado na

485 Mary Ebbott, “Where the Girls Are: Parthenioi and Skotioi” in Imagining Illegitimacy in Classical Greek Literature, Oxford, Lexington Books, 2003, pp. 21-23 e ss.

486 ṚV 10.85.9-10; 13a: «somo vadhūyurabhavadaśvināstāmubhā varā / sūryāṃyat patye śaṃsantīṃ manasā savitādadāt // mano asyā ana āsīd dyaurāsīduta chadiḥ / śukrāvanaḍvāhavāstāṃ yadayāt sūryā bṛham // (…) sūryāyā vahatuḥ prāghāt savitā yamavāsṛjat /»

487 ṚV 6.62.5.488 ṚV 10.85.14 e ss.489 ṚV 10.85.20.490 ṚV 2.31.5.491 Cf. Bhagwat Saran Upadhya, “The Transcendent Woman” in Women in Rgveda, Benares, Benares Hindu

University Press, 19412, p. 20.492 Cf. ṚV 1.116.1.493 Menandro, Perikeiromene 1013-1014: «Taútēn gnēsíōn paídōn ep'arótōi soi dídōmi» apud Mary Ebbott,

“Where the Girls Are: Parthenioi and Skotioi” in Imagining Illegitimacy in Classical Greek Literature, Oxford, Lexington Books, 2003, p. 9.

81

origem do mito de Dánae (que concebe um filho de Zeus), rapariga atirada ao mar pelo seu pai

Acrísio, juntamente com o seu filho dentro de uma caixa.494 O mesmo acontece com Kuntī, que ao

conceber de Sūrya (o sol) quando ainda não era casada, lança o filho ao rio numa caixa.495 O facto

de Kuntī ter invocado o deus do sol por “curiosidade” (desejo) feminina, pode revelar

indirectamente a “curiosidade” da mulher em conceber de forma ilegítima antes do casamento.

Desta forma, a legitimidade do filho só pode ser assegurada quando o kýrios (o “guardião”, o pai)

da mulher a dá em casamento ao marido.496 O thálamos (quarto) subterrâneo onde Dánae é

aprisionada de forma a não conceber o filho que Acrísio teme, poderá representar a sua “prisão” e

protecção antes de ser dada em casamento.497 Dánae, tal como a mulher na Antiguidade, vale

sobretudo pelo seu poder criativo, servindo essencialmente para gerar filhos,498 por este motivo, não

deixa de ser curioso compreendê-la num quarto subterrâneo, «katà gē� s, hypò gē� n»,499 como Sītā

debaixo da terra, antes de o seu pai ter aberto um sulco num terreno, e decretar a “força” como o seu

dote. Desta forma, o momento em que Sītā sai do solo (ou uma rapariga do tálamo), é o momento

em que está “livre” para casar-se, sendo depois dada pelo seu pai ao marido. Ao contrário de Sītā, é

suposto que Dánae nunca se case, no entanto a sua “libertação” não deixa de ser semelhante. A

forma com que Indra (deus da chuva) abre um sulco (sītā) num terreno,500 não deixa de traçar

semelhanças com Zeus que fecunda Dánae na forma de chuva dourada, imprimindo um carácter

agrícola e de fecundação aos dois mitos.501 A mesma ideia está presente na arca onde Dánae será

colocada (quando o seu filho é descoberto), representando de novo o lugar de onde a mulher sai

para “se casar”.502 As metáforas aplicadas ao casamento e à sua legitimidade nos dois exemplos,

asseguram a importância que esta acção tinha no imaginário IE, e tal como no rapto, que só é

legítimo se publicitado, ou seja, se “visível”, o mesmo é necessário à legitimação de um filho, por

isto, aqueles que não nascem de uma relação visível, mas de uma invisível, são chamados de skótioi

494 Cf. Mary Ebbott, “Where the Girls Are: Parthenioi and Skotioi” in Imagining Illegitimacy in Classical Greek Literature, Oxford, Lexington Books, 2003, p. 10 e ss. Este nascimento que Acrísio não deseja, poderá até certo ponto representar a “ilegitimidade” de um filho, que um elemento masculino (o pai e o marido da noiva) não deseja que aconteça. Para o mito de Danae veja-se: “Danae” in DGRBM I.

495 MBh 1.111.18-22.496 Mary Ebbott, “Where the Girls Are: Parthenioi and Skotioi” in Imagining Illegitimacy in Classical Greek

Literature, Oxford, Lexington Books, 2003, p. 11.497 Mary Ebbott, “Where the Girls Are: Parthenioi and Skotioi” in Imagining Illegitimacy in Classical Greek

Literature, Oxford, Lexington Books, 2003, p. 12.498 Mary Ebbott, “Where the Girls Are: Parthenioi and Skotioi” in Imagining Illegitimacy in Classical Greek

Literature, Oxford, Lexington Books, 2003, pp. 13-14; Nuno Simões Rodrigues “A Mulher na Grécia Antiga” in Maria Clara Santos (org.), A Mulher na História: Actas dos colóquios sobre a temática da mulher (1999-2000), Moita, Câmara Municipal da Moita/Departamento de Acção Sócio-Cultural, 2001, p. 83 e ss.

499 Mary Ebbott, “Where the Girls Are: Parthenioi and Skotioi” in Imagining Illegitimacy in Classical Greek Literature, Oxford, Lexington Books, 2003, p. 14.

500 ṚV 4.57.501 Ps. Apolod., Biblioteca 2.26.34 (trad. Aldrich).502 Cf. Mary Ebbott, “Where the Girls Are: Parthenioi and Skotioi” in Imagining Illegitimacy in Classical Greek

Literature, Oxford, Lexington Books, 2003, pp.16-17.

82

“escuros” na Ilíada,503 com o mesmo sentido de parthénioi “gerados fora do casamento” (as duas

designações subentendem “ilegítimo”).504 Existem dois elementos públicos no casamento grego que

expressam a ideia de “visibilidade”: a engýē, cerimónia de noivado em que é publicamente

observado o acordo entre pai da noiva e noivo; e a ékdosis, a transferência da esposa do pai para o

marido, que a leva “protegida” (por elementos masculinos amigos do noivo) e acompanhada por

tochas (levadas por mulheres) até à sua casa, e depois para o quarto nupcial. Esta cerimónia tem de

ser obrigatoriamente testemunhada e publicitada, situação presente nas tochas que dão uma

visibilidade simbólica ao casamento.505 Podemos entender o nascimento de Draupadī do centro de

um altar onde se cumpria um ritual de fogo, como a “visibilidade” que lhe pertence, e como tal, a

sua legitimidade pública. A mesma ideia, aqui relativa à “invisibilidade”, está presente no rapto de

Creusa por Apolo, um casamento krýptō “escondido” e realizado através de bía “força”.506

Neste sentido, valerá a pena compreender o trajecto que o herói faz do mundo obscuro e

feminino até ao visível e masculino, que está presente nas figuras de Arjuna e Aquiles, que a

determinada altura se vêem disfarçados de “mulher”. No sistema de idades de Creta, um rapaz

move-se gradualmente para o mundo dos homens, começando por estar ligado à mãe e ao espaço da

mulher, entrando gradualmente no espaço dos homens, contudo permanece “invisível”, agindo

como servo, mais tarde terão a oportunidade de ser conhecidos como kleinoí “aqueles que têm

fama”, entrando assim na masculinidade dos adultos.507 Estes rapazes são chamados skótioi (como

os nóthoi de Atenas), nome aplicado aos rapazes que ainda não transitaram para o mundo dos

homens e como tal são mantidos em casa (o oîkos) com as mulheres, longe da visibilidade pública.

Por este motivo os skótioi são associados às suas mães e ao espaço das mulheres (gynaikō� n), bem

como ao seu estatuto.508 A legitimação de um filho dá-se quando a mulher saí das zonas escuras,

próprias da mulher (daí a representação da sua pele branca por oposição à negra dos homens na

cerâmica grega509), para um casamento público e iluminado por tochas, regressando depois ao seu

503 6.23-24.504 Mary Ebbott, “Where the Girls Are: Parthenioi and Skotioi” in Imagining Illegitimacy in Classical Greek

Literature, Oxford, Lexington Books, 2003, pp. 20-21.505 Cf. Mary Ebbott, “Where the Girls Are: Parthenioi and Skotioi” in Imagining Illegitimacy in Classical Greek

Literature, Oxford, Lexington Books, 2003, p. 21-24.506 Eurípides, Ion, 11.73; Veja-se: Mary Ebbott, “Where the Girls Are: Parthenioi and Skotioi” in Imagining

Illegitimacy in Classical Greek Literature, Oxford, Lexington Books, 2003, p. 24-26, onde o autor apresenta várias referências à “escuridão” desta união, bem como na de Agamémnon e Cassandra nas Troianas de Eurípides.

507 Mary Ebbott, “Where the Girls Are: Parthenioi and Skotioi” in Imagining Illegitimacy in Classical Greek Literature, Oxford, Lexington Books, 2003, pp. 28-29.

508 Estes espaços são “negros”, ou seja, não-públicos. Cf. Mary Ebbott, “Where the Girls Are: Parthenioi and Skotioi” in Imagining Illegitimacy in Classical Greek Literature, Oxford, Lexington Books, 2003, p. 28-30.

509 Esta diferenciação cromática (presente essencialmente na arte minóica e egípcia) não se deverá apenas a uma convenção artística, mas sim ao facto de a mulher passar mais tempo dentro de casa, com o corpo coberto, e o homem no exterior, com o corpo a descoberto. Cf. Gustave Glotz, “The Physical Type” in The Aegean Civilization, London, Taylor & Francis, 1997, pp. 60-61 e ss.

83

espaço dentro do oîkos, relacionando a mulher com os locais escuros e escondidos.510

Aquiles e Arjuna são no universo em que actuam o símbolo do herói por excelência, sendo

aclamados tanto pela sua capacidade belicista quanto pela sua virtude e sacrifício dificilmente

comparáveis, e a par da sua existência no universo heróico intemporal, e do seu merecido lugar de

destaque, outras semelhanças aproximam os heróis, de entre elas, o facto de ser dos dois que

depende a vitória na batalha, já que tanto Arjuna em Kurukṣetra como Aquiles em Tróia,

desempenham um papel central, sendo dito várias vezes, e comprovado, que o seu lado só sairá

vencedor com a sua presença, o que se reflecte pelo facto de a determinado momento, quando estes

heróis se afastam do centro da batalha, a sua facção, naturalmente fragilizada, começa a perder. Os

dois regressam à batalha (ou ao centro da batalha, no caso de Arjuna) devido à morte de um ente

querido que os imita (e simultaneamente a personagem trágica do épico), Arjuna perde o seu filho

Abhimanyu, que ao tentar utilizar uma técnica de guerra que só Arjuna sabia usar, acaba por ser

morto à traição pelos guerreiros Kauravas,511 e Aquiles que volta à guerra movido pela ira devido à

morte de Pátroclo, após este ter entrado no campo de batalha com a armadura de Aquiles.512 Além

disto, estes heróis parecem ceder, aqui e ali, ao estado feminino, e por isso mais frágil. Arjuna deixa

cair o arco antes de a guerra começar por não querer combater os seus familiares na facção inimiga

e Aquiles desiste de combater porque Agamémnon lhe tira Briseida. A par destas situações, os dois

são auxiliados por figuras divinas, os dois têm ascendência divina, mas a par destas e muitas outras

comparações, talvez a mais notória e também menos compreendida enquanto conceito, seja a

feminilidade que os dois sustentam, já que Aquiles é escondido no meio das mulheres para não ir

para a guerra,513 e Arjuna transforma-se em eunuco, igualmente escondido no meio das mulheres,

para não ser descoberto durante o último ano de exílio.514 A verdadeira identidade dos dois heróis

será depois descoberta devido à força bélica.

Quando Aquiles tinha nove anos, Calcas disse que Tróia não podia ser tomada sem o seu auxílio,

desta forma, Tétis (noutra versão Peleu) sabendo que a guerra seria fatal para o seu filho, enviou-o

para a corte de Licomedes na ilha de Ciros, onde foi mascarado de rapariga e escondido nos

aposentos das mulheres, vivendo entre as virgens, e onde recebeu o nome de Pirra, devido ao seu

cabelo dourado. Quando os gregos descobriram onde Aquiles se encontrava enviaram uma

embaixada a Licomedes, a fim de o levar para a guerra, mas não o encontraram, tendo sido Ulisses

quem o descobriu através de um estratagema, colocando no pátio do palácio objectos femininos

510 Mary Ebbott, “Where the Girls Are: Parthenioi and Skotioi” in Imagining Illegitimacy in Classical Greek Literature, Oxford, Lexington Books, 2003, pp. 34-36.

511 MBh 7.45-48.512 Il. 16-17.513 “Achilles” in DGRBM.514 MBh 4.

84

(material de tecelagem) juntamente com um escudo e uma lança, levando Aquiles a agarrar nas

armas. Outra versão diz que Ulisses fez soar o clarim anunciando a guerra, levando Aquiles a despir

as roupas de rapariga e a pegar na lança e no escudo, pensando que o inimigo atacava, sendo

descoberto pelos Aqueus.515 Contudo a natureza masculina de Aquiles não parece ter sido afectada

pelo facto de ele se ter mascarado de mulher, já que uma das raparigas, filha de Licomedes, ficou

grávida de Aquiles, dando à luz Pirro ou Neoptólemo.516 O nome de Pirra aplicado a Aquiles, não

deixa de encontrar reflexo no nome de Arjuna, já que os dois reflectem a designação da sua “raça”

ou “dinastia”, Arjuna “prateado” representa a Dinastia Lunar, e Pirra, o “dourado” (ou mais

propriamente a cor do fogo), aproxima-se da criação protagonizada por Pirra e Deucalião. Calíope

deu a Aquiles o poder de cantar, de forma a animar os banquetes dos seus amigos517 (o que o

aproxima ainda mais de Arjuna como veremos), estando ele igualmente relacionado com a dança,

através da relação entre o nome Pirra com a Dança Guerreira ou a Dança do Fogo (pyrríchē),

inventada pelos Curetes, os quais guardaram Zeus no Monte Ida em Creta, fazendo soar os escudos

para que Crono não ouvisse o choro da criança.518 Esta dança, também chamada pýrrichos seria uma

dança guerreira que consistia em fazer soar a lança contra o escudo, e de acordo com Aristófanes

esta era usada nas piras fúnebres (pyrrós) de grandes heróis caídos em batalha, e por isso chamada

dança do fogo.519 A dança é em primeira instância marcada pelo ritmo e pelo movimento gerado a

partir desse mesmo ritmo, não deixando nunca de possuir um carácter sagrado, organizativo e

harmonizador do espaço, o mesmo sucede com o canto. Neste sentido, o herói que aprende a dançar

como Arjuna, ou a cantar como Aquiles, representa a aplicação de uma vontade sobre o espaço,

delimitando-o. Podemos dizer que o homem que se constrói a ele mesmo como herói, edifica-se no

mundo, da mesma forma com que os deuses dançam para edificar ou destruir o mundo (como Śiva e

Zoroastro). Esta passagem de Aquiles do mundo da mãe, para o mundo da mulheres e depois para a

guerra (mundo dos homens), representará o seu crescimento e adquirição de masculinidade, que não

deixa de estar marcado pelo facto de durante esse período se tornar pai.

No Virāṭaparvan do MBh, o quarto livro do épico, conta-se a história do último ano de exílio dos

Pāṇḍavas, o qual estes passarão disfarçados na corte de Virāṭa, na cidade de Matsya.520 A construção

carnavalesca e irónica do livro, não nos impede no entanto de prestar atenção aos importantes 515 Cf. Paul Faure,“Ulysse l'ingénieux, ou les Crétois en mer Égée” in Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant J.-C.),

Paris, Fayard, 1980, pp. 105-106.516 Ciprias, Frag. 19, in Comentário à Ilíada, 19, 326, in GEF, pp. 97-99; Filóstrato o novo, Imagines 1. Elder

Philostratus, Younger Philostratus, Callistratus. Translated by Fairbanks, Arthur. Loeb Classical Library Volume 256. London: William Heinemann, 1931; Hig. Fáb. 96; Estácio, Aquileida 1.560 e ss.; Apolod. 3.4.3, etc.; Dioniso, em jovem, foi igualmente mascarado de rapariga.

517 Filóstrato, Heroicus 19.2. (John Fitzgerald (ed), Society of Biblibal Literature: Writings from the Greco-Roman World, vol. I: Flavius Philostratus: Heroikos, Atlanta, Society of Biblical Literature, 2001.)

518 Apolod. 1.4; Calimaco, hinos, 42. 519 Estrabão, 10.4.17; “πυρρός” in DELG.520 “Peixe”. Matsya é o primeiro avatāra de Kṛṣṇa, representando por isso um “início” ou renascimento.

85

episódios que aqui se desenham, em que os cinco irmãos se disfarçam de forma ridícula:

Yudhiṣṭhira de jogador de dados profissional; Bhīma de cozinheiro; Nakula de tratador de cavalos;

Sahadeva de boieiro; mas o mais ridículo papel está destinado a Arjuna, que se apresenta como

eunuco, com o irónico nome de Bṛhannalā, que significa “cana grande”.521 Arjuna, devido a uma

maldição de Urvaśī, teve de viver durante um ano como eunuco e professor de dança entre as

mulheres,522 aparecendo assim na corte de Virāṭa disfarçado de algo que não chegamos a entender

muito bem, pois recebe o nome de eunuco/hermafrodita (ṣaṇḍha)523 e pertencente ao terceiro sexo

(tṛtīyāṃ prakṛtim).524 Arjuna comportar-se-á como uma mulher, dizendo que trabalhou como serva

de Draupadī, desejando ensinar as raparigas do palácio a cantar, a dançar e a tocar música,525 em

especial a filha do rei, Uttarā.526 Ele, esconderá as marcas da corda do arco que tem nos braços

através de braceletes, portará uma longa cabeleira, etc.527 Permanecerá incógnito até ao momento

em que os Kauravas atacarão a cidade de Matsya, aqui Bṛhannalā oferecer-se-á para ser cocheiro de

Uttara (filho de Virāṭa), levando-o sozinho para a batalha.528 Neste momento dá-se uma inversão da

Bhagavad Gītā, em que Arjuna (Bṛhannalā) faz o papel de Kṛṣṇa e Uttara o de Arjuna em

Kurukṣetra, já que Uttara foge do campo de batalha. É neste momento que alguns guerreiros

Kauravas, ao verem Bṛhannalā riem-se e questionam a sua figura,529 no entanto reconhecem-no

através do seu arco Gāṇḍivā,530 tal como o reconhecimento de Aquiles e Ulisses, através das suas

armas. Há uma comparação entre as armas e os instrumentos musicais, em que Uttara diz a

Bṛhannalā:

Faz o teu arco soar entre o inimigo como uma vīṇā: as suas extremidades são os suportes almofadados, a corda é o acorde, o arco é a trave para as cordas, e as flechas são as suas elevadas notas musicais.531

Depois de Arjuna-Bṛhannalā vencer, nesta pré-batalha de Kurukṣetra, os Kauravas, em vez de os

matar, rouba-lhes as roupas para as oferecer a Uttarā, para que esta as use nas suas bonecas.532

521 Além da possível ironia, esta ideia de “cana” subentenderá igualmente um local de passagem, como será aquela que usa Prometeu para transportar o fogo, dando a este Arjuna transformado um carácter de discípulo.

522 Cf. MBh 3.46.523 MBh. 4.2.25a524 MBh. 4.2.27a. A designação tṛtīya subentende “homossexual”, “neutro” e “terceiro”, enquanto que prakṛti

significa “mulher”, “eunuco”, “deusa” e “género”. Cf. “tṛtīya” e “prakṛti” in SED.525 MBh 4.2.21-26.526 MBh 4.11.8-9.527 MBh 4.2.25-32. Esta situação receberá várias críticas de Draupadī, a sua esposa, que aponta várias vezes o

ridículo da situação, veja-se por exemplo: MBh 4.19.14-29.528 MBh 4.37.23 e ss.529 MBh 4.38.33-34.530 MBh 4.45.29-32.531 MBh 4.35.16: «pāśopadhānāṃ jyātantrīṃ cāpadaṇḍāṃ mahāsvanām / śaravarṇāṃ dhanurvīṇāṃ śatrumadhye

pravādaya //»532 Uttarā, que veste as suas bonecas com as roupas dos Kauravas vencidos em batalha, reflecte a ideia do seu

futuro, já que ela casar-se-á com o filho de Arjuna, e será mãe de um rei Kuru. Cf. Alf Hiltebeitel, “Śiva, the Goddess, and the Disguises of the Pāṇḍavas and Draupadī”, HR, 20, 1/2, 1980, p. 166.

86

Todo o livro é um interregno no MBh e um compêndio de símbolos difíceis de decifrar.533 No

entanto, perante este mito de inversão, compreendemos que Arjuna se transforma naquilo que um

herói ou rei nunca deve ser, Arjuna torna-se ele mesmo no símbolo da impotência, juntamente com

os seus irmãos que viviam como se tivessem regressado ao ventre,534 num mundo às avessas que

subentende um intervalo ou renascimento. A mesma ideia parece estar presente na épica grega, em

Ulisses que desce aos infernos a meio da sua viagem de regresso, ou em Aquiles que recebe a visita

do fantasma de Pátroclo entre a sua inacção bélica e a sua ira, etc., interregnos que marcam uma

preparação para uma acção destrutiva que se seguirá. Estes momentos irreais dos épicos, como a

transformação momentânea de Arjuna (dura um ano), o fantasma de Pátroclo e a descida aos

infernos de Ulisses, aliados de outros momentos secundários como o sonho de Penélope, a noite

alongada por Atena, ou o espirro de Telémaco, etc., parecem ter o objectivo de demarcar um certo

limbo entre duas acções ou circunstâncias, um momento de viragem ou de finalização que não deve

ser ignorado, porque atribui uma certa melodia ou ritmo à totalidade da narrativa.

No caso do casal Draupadī-Arjuna, que se assemelha ao par Śiva-Śakti, permite-nos ler na figura

de Draupadī, não apenas uma encarnação de Śrī-Lakṣmī, mas também de Śakti, à qual temos

comodamente chamado de “princípio feminino”, dando ao par um carácter destruidor.535

Esta transformação de Arjuna representa o herói no seu estado de efebo. No entanto, é mais do

que isto. Arjuna, o eunuco (ṣaṇḍha),536 representa igualmente a capacidade de hermafroditismo

(ṣaṇḍha subentende igualmente hermafrodita) do herói enquanto conceito divino, dado que Arjuna é

um homem que tem a capacidade de se tornar temporariamente feminino. Por outro lado,

Bṛhannalā, de bṛhant- “grande”, “forte” e “abundante”, e nala- “cana” e “progenitor”, permite

também a leitura de “grande progenitor” na forma de um hermafrodita (pai-mãe celeste), o que não

deixa de ser simbólico e plausível.537

Desta forma, os disfarces que os Pāṇḍavas adoptam revelam a sua mais profunda identidade e

função para todo o épico.538 De forma semelhante, Wendy Doniger interpretou o facto de Arjuna ser

o arqueiro ambidestro, como metáfora à sua condição bissexual,539 poderíamos dizer, à sua condição

dual, incorporando em si as forças masculina e feminina. Se um rei necessita, no universo IE, de

533 Para a questão simbólica do quarto livro veja-se em especial: Madeleine Biardeau, Le Mahābhārata: Un récit fondateur du brahmanisme et son interprétation, vol. 1, Paris, Éditions du Seuil, 2002, pp. 763-856.

534 MBh 4.13.12.535 Alf Hiltebeitel, “Śiva, the Goddess, and the Disguises of the Pāṇḍavas and Draupadī”, HR, 20, 1/2, 1980, p. 153.536 MBh. 4.2.25a: Arjuna “disse 'eu serei um eunuco/hermafrodita'”, «ṣaṇḍhako 'smīti».537 Cf. “bṛhant-” e “nala-” in DSF; “nala” in SED; M. Biardeau desenvolve ainda a hipótese de tradução: “homem

grande”. Cf. Madeleine Biardeau, Le Mahābhārata: Un récit fondateur du brahmanisme et son interprétation, vol. 1, Paris, Éditions du Seuil, 2002, p.785.

538 Alf Hiltebeitel, “Śiva, the Goddess, and the Disguises of the Pāṇḍavas and Draupadī”, HR, 20, 1/2, 1980, p. 148.539 Wendy Doniger, “Bisexual Transformations” in Splitting the Difference: Gender and Myth in Ancient Greece

and India, Chicago, University of Chicago Press, 1999p. 281.

87

uma rainha para governar,540 e Arjuna, ainda que nunca venha a ser rei, já recebe o epíteto de kirīṭin

(coroado),541 subentende que ele não necessita de uma mulher para ser rei, pois já o é, incorporando

em si a força feminina (śakti). Por sua vez, Aquiles nunca chegará a ser rei, no entanto ao receber o

nome de Pirra (vermelho), que deriva de pŷr “fogo” e “tocha”,542 subentende a legitimidade da qual

parece não necessitar. Também o facto de Aquiles manter a fama (kléos) e não a vida,543 subentende

essa legitimidade ou aclamação, que poderá ter um sentido de soberania. A designação kléos

subentende “clamor”, “reputação”, “glória”, etc.,544 que aliado da visibilidade da designação Pirra,

lhe dá um carácter real. Esta ideia pode estar subentendida no facto de Aquiles ser aquele que faz

frente ao rei Agamémnon, apontando-lhe os erros da soberania, no primeiro livro da Ilíada.

Por sua vez a relação de Arjuna com Śiva torna-se evidente na transformação de Arjuna em

eunuco, como Śiva na sua forma de Ardhanārīśvara “o senhor que é metade mulher”.545 O facto de

Arjuna se tornar impotente (já que é eunuco e foi confirmado como tal546), poderá reflectir a falta de

um centro, tendo em conta a relação que existe entre a “firmeza” do falo de Śiva e a sua relação

com o “pilar” ou “vara sacrificial” (sthāṇu) no Sahasranāmastotras,547 e consequentemente a falta

de poder/potência do rei. Não obstante, o seu nome Bṛhannalā (“cana grande”), por muito irónico

que seja, continua a insinuar a existência desta potência e poder na sua personagem. A relação óbvia

dos eunucos com os haréns, tanto indianos como mais tarde muçulmanos, permite ver em Arjuna

alguém de “confiança” que guarda as mulheres (poderes, legitimidades?) do rei de Matsya, que

parece passar todo este tempo a jogar dados na sala do trono.548 Os disfarces dos Pāṇḍavas podem

ainda representar aquilo que Draupadī mais deseja deles, ou seja, Bhīma que lute (já que é

cozinheiro e lutador profissional), Yudhiṣṭhira que saiba jogar dados (visto que perdeu todo o seu

540 “King and Hero” in IEPM, p. 414.541 MBh I, 187, 8.542 Cf. “πυρρός” e “πῦρ” in DELG.543 Il. 9.410-416.544 “κλέος” in DELG.545 Alf Hiltebeitel, “Śiva, the Goddess, and the Disguises of the Pāṇḍavas and Draupadī”, HR, 20, 1/2, 1980, p. 153.

Arjuna como dançarino evoca ainda Śiva Naṭarāja, e o facto do combate de Arjuna ser comparado à dança no campo de batalha, na primeira batalha contra os Kauravas, reflecte a ideia da dança destructiva de Rudra-Śiva. Alf Hiltebeitel, “Śiva, the Goddess, and the Disguises of the Pāṇḍavas and Draupadī”, HR, 20, 1/2, 1980, p. 157. No entanto, todos os Pāṇḍava reflectem comparações com Śiva, como sugere Alf Hiltebeitel, “Śiva, the Goddess, and the Disguises of the Pāṇḍavas and Draupadī”, HR, 20, 1/2, 1980, p. 168 e ss., contudo, é relativamente fácil entender o motivo pelo qual isto acontece, tratando-se de um renascimento, que é a principal qualidade do deus (aquele que destrói e faz renascer). A ligação entre a dança e a guerra está também presente na Ilíada, ainda que as opondo (como é aliás concreto em: Il. 13.730-731; Il, 15.508), quando Helena pede que Afrodite se junte a Páris (após o seu resgate) dizendo: «Não dirias que ali foi ter depois de combater o inimigo, mas a caminho de uma dança (choròn), ou que ali se sentou tendo parado de dançar (choroîo).» (Il. 3.392-394). A transformação de Arjuna poderá ainda ser relaciona com os Alis, transsexuais ou eunucos dos festivais em Kūvākkam, no Sul da Índia. Cf. Vishwa Adluri, Joydeep Bagchee (eds.), “Dying before the Mahābhārata War: Martial and Transsexual Body-Building for Aravāṉ” in When the Goddess was a Woman, Mahābhārata Ethnographies: Essays by Alf Hiltebeitel, vol. II, Leiden, Brill, 2011.

546 MBh 4.11.11-14.547 Cf. Alf Hiltebeitel, “Śiva, the Goddess, and the Disguises of the Pāṇḍavas and Draupadī”, HR, 20, 1/2, 1980, pp.

155-156.548 MBh 4.7.

88

reino num jogo de dados), e Arjuna que seja o sacerdote ideal da deusa, um eunuco (crença comum

na Índia).549 Os deuses, como Śiva e Viṣṇu, quando acompanhados ou “unidos” das suas esposas,

são chamados de andróginos, metade homem metade mulher.550 Tendo em conta que estes episódios

representam o crescimento do herói (mais em Aquiles do que em Arjuna), que está aliado a um

nascimento importante, já Uttarā casar-se-á com o filho de Arjuna, Abhimanyu, cuja união permitirá

o não-desaparecimento da dinastia dos Kurus, esta “passagem” ao mundo feminino torna-se

representativa da legitimidade de que o herói necessita. Se por um lado o governador precisa de se

casar para ser rei (tal como o Pai celeste não pode existir sem esposa)551, e manter a sua linhagem,

também um herói, antes da batalha decisiva parece necessitar de entrar e sair (mantendo e

comprovando a masculinidade através das armas) do mundo feminino, que representa em última

análise o local de onde ele renasce para a idade adulta.

A literatura IE demonstra-nos que um rei se legitima como tal casando-se com uma mulher, a sua

rainha, que é regra geral filha ou viúva de um rei,552 como são os famosos exemplos de Draupadī,

Sītā, Penélope, Helena, Jocasta, etc.,553 que dão aos seus maridos a posição de rei. O casamento com

a rainha legitima a sua posição porque quando o rei que toma a casa real (o espaço feminino) deve

tomar igualmente a figura feminina mais real dentro dessa mesma casa. Estas uniões permitem

ainda a aliança do rei com os reinos vizinhos,554 dando-lhe “força” e “estabilidade”. Desta forma,

unindo a figura da rainha àquela de Śakti (aquela que dá o “poder” ao seu marido), podemos

aproximar a obtenção de uma esposa, da obtenção de um reino. A “legitimidade” que a noiva dá ao

seu marido, encontra-se subentendida, de forma muito clara, nos mitos de Mādhavī e de Mestra, que

se casam com vários reis/pretendentes e regressam ao seu pai, após terem mudado de forma ou

recuperado a virgindade.555

4.2.1. Paradigmas do rapto legítimo: O rākṣasa das princesas de Kāśi, de Subhadrā e de Iole

A história do rapto das três princesas de Kāśi é contado da seguinte forma: quando Vicitravīrya

549 Alf Hiltebeitel, “Śiva, the Goddess, and the Disguises of the Pāṇḍavas and Draupadī”, HR, 20, 1/2, 1980, p. 163.550 Para um estudo destes exemplos veja-se: Wendy Doniger, “La Bisexualité dans la Mythologie de l'Inde

Ancienne”, Diogène, nº 208, 4, 2004.551 Walter Burkert, “A questão do Indo-europeu” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação

Calouste Gulbenkian, 1993, p. 55.552 “King and Hero” in IEPM, p. 414; Nuno Simões Rodrigues “A Mulher na Grécia Antiga” in Maria Clara Santos

(org.), A Mulher na História: Actas dos colóquios sobre a temática da mulher (1999-2000), Moita, Câmara Municipal da Moita/Departamento de Acção Sócio-Cultural, 2001, p. 84.

553 Esta realidade também ocorre fora do mundo IE, na literatura semita, com o casamento da filha de Saul com David. Cf. I Sm 18.17-27; Nuno Simões Rodrigues, “Saul e David” in O Rei Saul segundo Flávio Josefo, Lisboa, Edições Colibri, 2000, p. 86 e ss.

554 Cf. “King and Hero” in IEPM, p. 415.555 “King and Hero”, in IEPM, p. 416; Dumézil aproxima o nome de Mādhavī de madhu (bebida intoxicante,

hidromel e que é comparável ao soma védico, bebida relacionada com a realeza). Cf. Georges Dumézil, “Mādhavī” in The Destiny of a King, Chicago, The University of Chicago Press, 1973, p. 81 e ss.

89

chegou à idade de se casar, Bhīṣma, o seu irmão e aquele que organiza grande parte dos casamentos,

encarregou-se de lhe encontrar uma esposa.556 Ao ter conhecimento do triplo svayaṃvara das

princesas de Kāśi organizado pelo rei (e para o qual os Kurus não foram convidados), dirigiu-se à

cidade de Kāśi.557 Ao chegar ao local, vendo todos os reis-pretendentes que ali se tinham reunido,

serem mencionados pelo nome, levou a cabo o rapto das três princesas colocando-as no seu carro de

guerra, depois, enumerou aos reis os oito tipos de casamento,558 declarando que a mulher ganha pelo

rapto é a melhor das esposas:

O svayaṃvara é a forma de se casar preferida pelos reis. Mas disseram os sábios que a esposa mais valiosa é aquela raptada pela força, depois de vencidos os oponentes aquando de um concurso de príncipes e reis convidados para um svayaṃvara. É por isto, ó monarcas, que eu rapto estas raparigas pela força. Impeçam-me com toda a vossa força, para vencerem ou serem vencidos. Ó reis, aqui estou eu pronto para o combate.559

Neste momento, os príncipes e os reis prepararam-se para a batalha e perseguiram o carro de

Bhīṣma, gerando-se um grande combate, mas Bhīṣma venceu-os a todos.560 Quando a batalha

terminou, aproximou-se Śālva em defesa das princesas, aquele que parecia ser já a escolha das

raparigas (ou pelo menos de uma delas) que foi igualmente vencido, permitindo assim o regresso de

Bhīṣma.561 Quando se estava a preparar o casamento entre as três princesas de Kāśi e Vicitravīrya, a

mais velha, Ambā (“mãe”562), disse que já havia escolhido no seu coração (e no svayaṃvara) casar-

se com Śālva, união com a qual o pai concordava.563 Desta forma, Bhīṣma reflectiu sobre as suas

palavras e deixou-a partir.564 É importante sublinhar que Ambā não será aceite de volta por Śālva,

ficando como que num limbo, e praticando austeridades de modo a vingar-se de Bhīṣma, acabará

por renascer como homem (ainda que efeminado) e causar a morte de Bhīṣma.565

Veremos que o mesmo está presente em Héracles, que ao ter raptado Iole será morto devido a

uma mulher, Dejanira, a qual ele havia ganho através de um combate.566 Quanto às outras duas

princesas, Ambikā e Ambālikā, casaram-se com Vicitravīrya. Contudo este morreu ao fim de sete

556 MBh 1.102.2.557 MBh 1.102.3-4.558 MBh 1.102.5-7 e ss.559 MBh 1.102.11-12: «svayaṃvaraṃ tu rājanyāḥ praśaṃsantyupayānti ca / pramathya tu hṛtām āhur jyāyasīṃ

dharmavādinaḥ // tā imāḥ pṛthivīpālā jihīrṣāmi balād itaḥ / te yatadhvaṃ paraṃ śaktyā vijayāyetarāya vā / sthito'haṃ pṛthivīpālā yuddhāya kṛtaniścayaḥ //»

560 MBh 1.102.18-29561 MBh 1.102.30-45.562 “ambā-” in DSF.563 MBh 1.102.56-57.564 MBh 1.102.59.565 Ambā, a “mãe” e aquela que provoca a morte a Bhīṣma, não deixa de traçar semelhanças com Circe, que habita

a ilha de Aiaiḗ, que derivará de aïa (“boa mãe”). Cf. Paul Faure, “Ulysse ou le Petit Prince. Au royaume d'Idoménée” in Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant J.-C.), Paris, Fayard, 1980, p. 50. Circe que nas reformulações mitológicas posteriores causará a morte de Ulisses, i.e., ele será morto pelo filho de ambos, Telégono. Recorde-se que é igualmente Circe quem envia Ulisses aos infernos, para uma morte figurada e um renascimento.

566 Apolod. 2.7.5

90

anos, deixando o reino numa crise que não terá fim até à grande batalha.567

Esta narrativa oferece-nos a justificação e a correcta concretização de um casamento por rapto,

típico da função guerreira, que explora os princípios que lhe são próprios, os da “autonomia” e da

“força”.568 Dumézil observa e bem, que o rapto é o modo de casamento mais questionável e

arriscado, sendo por este motivo sido progressivamente afastado dos livros da lei e tornado

ilegítimo, desaparecendo tanto da sistematização dos vários casamentos na legislação romana, como

na indiana, tornando-se adharmya (contrário ao dharma).569 O facto de Bhīṣma o declarar como a

melhor forma de se casar (para um guerreiro), situação que não voltará a ocorrer em mais lugar

nenhum, poderá dar ao episódio uma maior antiguidade do que aquela que é geralmente aceite.

Contudo, compreendemos neste rapto, bem como naquele que fará Arjuna, que este não deve ser

“secreto”, como o de Helena, mas sim, anunciado, de forma a que a família da noiva raptada possa

contra-atacar o raptor, sendo legitimado através do uso da força. É o incumprimento deste anúncio

seguido de batalha que gera a guerra, tanto na Ilíada como no Rām., isto porque tanto Rāvaṇa como

Páris raptam secretamente (naquilo a que poderíamos chamar de “acto cobarde”), as raparigas, que

além de indefesas, estão também casadas.570 Nos raptos épicos ditos legais, como neste das

princesas de Kāśi, as raparigas são solteiras e estão em idade de se casar.

Os rapto das três princesas de Kāśi encontra ainda relação com o aśvamedha, ritual que

legitimava o domínio total do rei. Durante o ritual, no momento em que a esposa principal (mahiṣī)

copulava com o cadáver do cavalo (ou simulava-o, segurando o falo do animal perto de si), as

outras três esposas davam nove voltas ao cavalo enquanto um mantra era proferido:

Ó Ambā! Ó Ambālī! Ó Ambikā! Ninguém me está a guiar (nayati). O cruel cavalo está a dormir.571

E no verso seguinte:

Ó Ambā! Ó Ambālī! Ó Ambikā! Ninguém me está a “comer” (yabhati). O cruel cavalo está a dormir.572

Se a presença da esposa principal durante o sacrifício do cavalo tem o objectivo de dar

prosperidade ao rei que legitima a sua soberania,573 o rapto de Ambā, Ambikā e Ambālikā,

protagonizado por Bhīṣma, poderá simbolizar a legitimação de domínio da qual a corte dos Kurus

567 MBh 1.102.65.568 Georges Dumézil, Mariages Indo-Européens, suivi de Quinze Questions Romaines, Paris, Payot, 1979, p. 79.569 Georges Dumézil, Mariages Indo-Européens, suivi de Quinze Questions Romaines, Paris, Payot, 1979, p. 81.570 Cf. Nuno Simões Rodrigues, “Ainda Clitemnestra, A «Mulher de Máscula Vontade»”, Cadmo 20, p. 395 e ss.571 Taittirīya Saṃhitā 7.4.19, 1a-b: «ambe ambāly ambike / na mā nayati kaś cana / sasasty aśvakaḥ //» tradução de

Stephanie Jamison, Sacrificed Wife/Sacrificer's Wife: Women, Ritual, and Hospitality in Ancient India, Oxford, Oxford University Press, 1996, p. 67

572 Taittirīya Saṃhitā 7.4.19.2h: «ambe ambāly ambike na mā yabhati kaś cana / sasasty aśvakaḥ //» tradução de Stephanie Jamison, Sacrificed Wife/Sacrificer's Wife: Women, Ritual, and Hospitality in Ancient India, Oxford, Oxford University Press, 1996, p. 69. S. Jamison traduz a designação védica yabhati por “fucking”.

573 Roman Zaroff, “Aśvamedha: A Vedic Horse Sacrifice”, Studia Mythologica Slavica 8, 2005, p. 81

91

necessitava.574

O rapto de Subhadrā, por sua vez, diferencia-se do anterior pela sua justificação, aqui parece não

importar a publicitação do acto, ou o combate entre raptor e contra-raptores, mas sim a teorização

sobre o casamento correcto e incorrecto, bem como a honra dos lesados. Durante um grande festival

dos Vṛṣṇis e Andhakas no monte Raivataka,575 para o qual foram convidados muitos reis e heróis,

Kṛṣṇa e Arjuna, que caminhavam juntos pelo recinto, avistaram Subhadrā, a irmã de Kṛṣṇa, e este,

ao reparar que Arjuna havia sido «atingido pelas flechas de Kāma», devido à beleza de Subhadrā576,

disse-lhe quem ela era.577 Depois de conhecer a linhagem da rapariga, e que pertencia à raça dos

Vṛṣṇis, Arjuna, sabendo que com ela ganharia grande prosperidade,578 perguntou a Kṛṣṇa de que

forma poderia casar-se com tão preciosa mulher, e a resposta, muito semelhante à de Bhīṣma, foi:

Ó melhor de entre os homens, o svayaṃvara é o tipo de casamento dos kṣatriyas, mas, ó Pārtha (Arjuna), essa via não é certa, porque não conhecemos o temperamento nem a vontade dela. Os homens sábios nos preceitos religiosos dizem que no caso dos heróicos kṣatriyas, um rapto pela força da rapariga devido à vontade de casar-se é louvável. Ó Arjuna, rapta a minha bela irmã com uso da força, porque quem sabe o que ela poderá fazer no svayaṃvara?579

Desta forma, Arjuna equipou-se com todo o tipo de armas para a batalha, e, guiando o carro de

Kṛṣṇa, aproximando-se de Subhadrā, que estava a regressar a casa (a Dvārakā), e raptou-a.580 Este

rapto não foi legitimado através da sua declaração pública, no entanto, Kṛṣṇa (encarnação de Viṣṇu)

e Yudhiṣṭhira (filho do deus Dharma) consentem-no, e por isso legitimam-no. Alarmado, o séquito

que seguia com Subhadrā acorreu a Dvārakā, colocando todos os oficiais em alvoroço, que se

reuniram de imediato em assembleia.581 Contudo, Kṛṣṇa acalmará os seus compatriotas, explicando

que Arjuna não os insultou com o rapto, pelo contrário, honrou-os, porque tal como Kṛṣṇa, Arjuna

também vê no svayaṃvara uma cerimónia de resultado incerto, e encontrando erros em todos os

tipos de casamento, optou pela melhor forma de casar-se e de honrar uma futura aliança entre os

dois povos,582 Kṛṣṇa pedirá ainda aos Vṛṣṇis que não contra-ataquem Arjuna, porque se Arjuna os

vencer em batalha, isto não lhes trará fama, pelo contrário, mas uma aliança sim.583 Desta forma, os

soldados irão ter com Arjuna, impedindo o seu caminho, e trazem-no a Dvārakā, para os casar 574 Para a questão veja-se: Madeleine Biardeau, Le Mahābhārata: Un récit fondateur du brahmanisme et son

interprétation, vol. 1, Paris, Éditions du Seuil, 2002, p. 220; Alf Hiltebeitel, “The Transitional 'Three Mothers'” in Dharma: Its Early History in Law, Religion, and Narrative, Oxford, Oxford University Press, 2011.

575 MBh 1.221.1 e ss.576 De su- e bhadrā, a “muito brilhante” ou “muito próspera”. Cf. “bhadra-” in DSF.577 MBh 1.221.13-17.578 MBh 1.221.19.579 MBh 1.221.21-23: «svayaṃvaraḥ kṣatriyāṇāṃ vivāhaḥ puruṣarṣabha / sa ca saṃśayitaḥ pārtha

svabhāvasyānimittataḥ // prasahya haraṇaṃ cāpi kṣatriyāṇāṃ praśasyate / vivāhahetoḥ śūrāṇām iti dharmavido viduḥ // sa tvam arjuna kalyāṇīṃ prasahya bhaginīṃ mama / hara svayaṃvare hyasyāḥ ko vai veda cikīrṣitam //» Também Yudhiṣṭhira, consultado sobre o rapto, concordará. Cf. MBh 1.221.24.

580 MBh 1.222.6-8.581 MBh 1.222.9 e ss.582 MBh 1.223.2-6.583 MBh 1.223.8-11.

92

condignamente, cidade onde ele ficará durante um ano.584 Os Vṛṣṇis (aliados dos Andhakas) e os

Pāṇḍavas serão grande aliados, cuja maior aliança já estava previamente definida nos companheiros

Kṛṣṇa e Arjuna. Este rapto virá a provar ser da maior importância, quando este for o único filho

sobrevivente de Arjuna, bem como de todos os Pāṇḍavas, após a grande batalha, permitindo assim a

continuidade da dinastia dos Kurus. Entendemos claramente que uma aliança deste tipo, bem como

o resultado da união entre Arjuna e Subhadrā, não poderia acontecer dentro da normalidade das

outras alianças e casamentos, ganhando assim um papel de destaque, onde importam a “fama” e a

“honra” para ambos os lados. O casamento por rapto de Subhadrā torna-a num oposto a Draupadī

(que casou por escolha),585 e quando Arjuna chega a Indraprastha com Subhadrā, Draupadī faz-lhe

uma cena de ciúmes.586 Contudo, as duas esposas conciliam-se quando Subhadrā se declara serva de

Draupadī. A dualidade entre Draupadī e Subhadrā evoca a dualidade das esposas associadas a Viṣṇu,

já que Śrī-Lakṣmī subdivide-se em Śrīdevī (a força activa) e Bhūdevī (a força passiva).587

Outro exemplo de rapto, que à semelhança do que acontece com Kurus (representados por

Bhīṣma) e com os Romanos (no rapto das Sabinas), que começa devido a uma “rejeição” de

casamento, é o protagonizado por Héracles, com base numa promessa anulada. Héracles, tendo

recebido a promessa da mão de Iole, se vencesse os filhos de Êurito no tiro ao arco, viu os seus

desejos frustrados quando Êurito o recusou.588 Por este motivo, Héracles nada mais pôde fazer senão

pilhar a cidade da Trácia e raptar Iole como “vingança” pela desonra que recebera. Contudo, este

rapto vir-se-á a comprovar fatal, tal como o rapto de Ambā causará a morte de Bhīṣma, também

este fará com que Dejanira, sentindo ciúmes de Iole, aceite utilizar o sangue de Nesso como poção

amorosa, que causarão a morte de Héracles. É interessante notar que Héracles, antes de morrer,

decreta que o seu filho com Dejanira, Hilo, deverá casar-se com Iole,589 como sucederá,590

representando claramente a importância de Iole, que mais do que a sua esposa “principal”, é aquela

que manterá a sua linhagem.

4.2.2. Paradigmas do rapto ilegítimo: O rākṣasa de Helena, de Sītā, de Draupadī e de Dina

O herói IE não parece muito interessado em envolver-se com o sexo oposto, sendo geralmente

representado como solteiro. Contudo, a mulher representa com frequência o motivo para a sua

demonstração de força, através do rapto e do contra-rapto,591 e os melhores exemplos desta realidade

584 MBh 1.223.12-13 e ss.585 “Les mariages d'Arjuna” in EMH III, p. 134.586 MBh 1.221.17-24.587 “Les mariages d'Arjuna” in EMH III, pp. 136-137.588 Apolod., Biblioteca 2.6.1-2.589 Apolod., Biblioteca 2.7.8.590 Apolod., Biblioteca 2.8.3.591 “King and Hero” in IEPM, p. 422.

93

são precisamente os raptos de Helena e de Sītā.

Helena foi vítima de um primeiro rapto, ainda em criança (com doze anos592) e por ser muito

bela, no momento em que oferecia um ritual à deusa Ártemis em Esparta, levado a cabo pelos

aliados Piritoo e Teseu.593 Eles levaram-na para Atenas, mas foram castigados por Zeus, atraídos

para o submundo com o propósito de pedir a mão de Perséfone, ficaram lá até que Héracles os

viesse a libertar. Por sua vez, os Dioscuros contra-raptaram Helena, raptando igualmente Etra e

Fisade, não para se casarem, mas que se tornaram servas de Helena.594 Este rapto servirá de espelho

ao segundo e mais famoso rapto, quer pelo facto de ter sido contra-raptada pelos seus dois irmãos,

como será depois pelo seu marido e pelo seu cunhado, Menelau e Agamémnon respectivamente,

quer pela destruição e saque de uma cidade como consequência do rapto, primeiro o saque da

cidade de Afidna, ou Atenas, na Ática, e depois Tróia.595 Durante este primeiro saque, Castor foi

ferido na coxa por Afidno, de forma algo semelhante àquela com que Aquiles será ferido (morto) no

calcanhar,596 no decurso do contra-rapto de Tróia. Se observarmos os casos na realidade grega,

dificilmente compreendemos o motivo deste ataque às pernas ou ao calcanhar, no entanto,

observando a origem das quatro varṇas indianas no hino a Puruṣa no ṚV:

Quando dividiram Puruṣa quantas porções fizeram? O que chamaram à boca, aos braços? O que chamaram às coxas e aos pés? O brāhmaṇa era a sua boca, os seus braços eram o rājanya. As suas coxas tornaram-se no vaiśya, dos seus pés produziu-se o śūdra. 597

Dividindo-se assim em partes físicas (boca, braços, coxas e pés). Assim, ao vermos Aquiles ser

atacado nos pés, podemos entender um ataque aos śūdras, aqueles que se movem e executam

trabalhos forçados, i.e., à força bruta de uma cidade e à sua movimentação económica. O mesmo se

aplicará às pernas de Castor (à função agrícola, comercial, etc. dos vaiśyas). Aquiles que recebe o

epíteto pódas tachýn “pés velozes”, acaba por se relacionar mais com a ideia de um śūdra, podendo

mesmo representar (pelo menos metaforicamente) a força e as qualidades mais baixas, o que a ser

realidade, estaria presente na distância e contenda entre Agamémnon (qualidade soberana) e Aquiles

(qualidade mista, popular, vulgar?). Por outro lado, os pés estão metaforicamente ligados à matéria,

ou à parte mais densa da matéria, como faz saber a Ilíada:

mas quando viram Heitor a mover-se nas fileiras de homens amedrontaram-se e a alma de todos caiu-lhes aos pés.598

592 De acordo com Diodoro (4.63.2) Helena teria dez anos quando raptada. 593 Apolod. Epit. 1.23; Apolod. 3.10.7; Paus. 3.18.15; 3.24.11.594 Hig., Fáb. 79.595 Poemas Ciprios, Frag. 12, in GEF.596 Apolod. Epit. 5.3; Hig., Fáb. 107. 597 ṚV 10.90.11-12: «yat puruṣaṃ vy adadhuḥ katidhā vy akalpayan / mukhaṃ kim asya kau bāhū kā ūrū pādā

ucyete // brāhmaṇo 'sya mukham āsīd bāhū rājanyaḥ kṛtaḥ / ūrū tad asya yad vaiśyaḥ padbhyāṃ śūdro ajāyata //»598 Il. 15.279-280: «autàr epeì ídon Héktor᾽epoichómenon stíchasÔ andrō� n tárbēsan, pâsin dè paraì posì

káppesethymós.»

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Podendo assim esta morte representar a parte mais física de Aquiles que é atingida. Por outro

lado, se aceitarmos a leitura que Dumézil faz de Páris, que ao escolher Afrodite (por oposição a

Hera e Atena) e raptar Helena escolhe a terceira função,599 entendemos que este, ao atacar os pés de

Aquiles não faz mais do que perpetuar a mesma escolha funcional.

Esta leitura permite aproximar um pouco a ideia de rapto àquela da fragilização económica de

um povo, dado que os dois raptos de Helena geram num dos contra-raptores ferimentos localizados

nas pernas ou nos pés, representando um ataque à capacidade de movimentação e agilidade de

determinada comunidade, neste caso a grega.

Segundo Heródoto, o rapto de Helena nasce da sequência de raptos de mulheres protagonizados

por Gregos e Fenícios, uns contra aos outros, ou se preferirmos, entre Ocidentais e Orientais, raptos

estes que geraram a aproximação bélica entre os dois povos.600 Segundo esta versão dos

acontecimentos, os Fenícios raptaram Io,601 o que fez com que os Gregos raptassem Europa e

Medeia,602 o que gerou o rapto da grega Helena.603 Os Fenícios foram os primeiros a roubar uma

mulher, mas coube aos gregos Gregos o início das hostilidades. Estes raptos representam acima de

tudo as interações entre o Oriente e o Ocidente, que culminaram em violência, com uma guerra que

durou dez anos. O facto de Heródoto considerar insensato fazer guerra devido a um rapto:

Ora, se raptar mulheres, consideram eles, é acto de homens injustos, empenhar-se em vingar tais raptos é de quem não tinha senso. Os homens sensatos não dão importância alguma a tais actos.604

Só prova o valor simbólico e metafórico que o rapto possuía, já que os gregos que ouviram pela

primeira vez o relato de Homero não seriam certamente menos observadores do que os do tempo de

Heródoto, e se Heródoto critica a guerra feita em nome de uma mulher, é óbvio que essa crítica

existiria no seu tempo, e quem sabe anteriormente. Isto porque, como veremos, o rapto e o contra-

rapto épicos estão suportados por uma significação de certas legitimações e poderes régios.

Helena nasce, tal como Draupadī, “destinada” a causar a guerra e a destruição dos heróis:

Zeus conferencia com Témis à cerca da Guerra de Tróia. Quando os deuses se banqueteiam no casamento de Peleu, a Discórdia aparece e causa a disputa sobre a beleza, entre Atena, Hera e Afrodite. Sob a instrução de Zeus, Hermes condu-las até Alexandre no Ida para o julgamento. [Elas prometem dons a Alexandre: Hera diz que se for a preferida, dar-lhe-á o reinado sobre o mundo, Atena prometeu-lhe vitória na guerra, e Afrodite a união com Helena.]605

599 Georges Dumézil, “Introduction: Il était trois fois...” in Mythe et Épopée I, II, III, Paris, Gallimard, 1995, p. 15.600 Hdt. 1.1-4.601 Hdt. 1.1.4.602 Hdt. 1.2.1-3.603 Hdt. 1.3.1.604 Hdt. 1.4.2.: «tò mén nyn harpázein gynaîkas andrō� nadíkōn nomízein érgon eînai, tò dèharpastheiséōn spoudḗn

poiḗsasthai timōréeinanoḗtōn, tò dè mēdemían ṓrēn écheinharpastheiséōn sōphrónōn» Veja-se igualmente: Hdt. 7.20.2.605 Poemas Cíprios, Arg. 1, in GEF: «Zeùs bouleúetai metà tē� s Thémidos perì toû Trōïkoû polémou. paragenoménē

dè Éris euōchouménōn tō� n theō� n en toîs Pēléōs gámois neîkos perì kállous enístēsin Athēnâi, Hḗrai kaì Aphrodítēi. haì pròs Aléxandron en Ídēi katà Diòs prostagḕn hyph᾽ Hermoû pròs tḕn krísin ágontai. [haì dè epangéllontai dō� ra dṓsein

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Alexandre (Páris) escolherá Afrodite como a mais bela, e a recompensa de casar-se com a mulher

mais bela da terra, Helena. Assim, Alexandre vai primeiro para à Lacedemónia e depois a Esparta, e

aqui, quando Menelau se ausenta para Creta, devido ao funeral do seu avô Crateu, Afrodite provoca

a união entre Helena e Alexandre, que fogem durante a noite num barco com muita da propriedade

de Menelau.606 Este rapto, que é todo ele ilegítimo, pelo facto de não ser publicamente anunciado,

disputado, ser feito de noite, e pelo facto de se tratar de uma mulher já casada, provocará

obviamente fenómenos atmosféricos adversos, como acontece no rapto, igualmente ilegítimo, de

Sītā: «Mas Hera enviou uma tempestade sobre eles».607 No entanto, vemos que se trata de um plano

divino, permitindo dar alguma passividade a Páris, já que a Terra, esmagada pelo peso da

humanidade, pede a Zeus para que este alivie o peso (destruindo os homens), foi desta forma que

Zeus provocou a guerra de Tebas e depois a de Tróia. Como vimos, os planos de Zeus começam no

casamento de Tétis e Peleu (e o nascimento de Aquiles608) e no nascimento de Helena. A culpa da

guerra não será de Helena nem de Páris, mas sim da vontade dos deuses.609 E foi para que isto

sucedesse que a Discórdia atirou uma maçã como prémio de beleza, para gerar a contenda entre

Hera, Atena e Afrodite.610 Compreendemos assim, que além da publicitação necessária à justificação

do rapto e do casamento no Mundo Antigo, também a honra/fama, kléos, (cujo alcance é a meta dos

heróis, como vemos em Aquiles) justifica um rapto, mas sobretudo a aliança (união) entre povos,

neste caso entre Aqueus e Troianos.611 Depois do rapto:

Íris levou a Menelau as notícias do que havia sucedido na sua casa. Ele vai [para Micenas] e fala com o seu irmão sobre a expedição contra Ílion. E Menelau vai ter com Nestor, e Nestor divagando conta-lhe como Epopeu seduziu a filha de Licurgo, vendo assim a sua cidade saqueada; também a história de Édipo, e a loucura de Héracles, e a história de Teseu e Ariadne.612

Alezándrōi. Hḗra mèn oûn éphē prokritheîsa dṓsein basileían pántōn, Athēnâ dè polémou níkēn, Aphrodítē dè gámon Helénēs.]» Sobre a Discórdia veja-se o Papiro Oxirrinco (3829.2.9), em que se diz que a esta lançou um pomo de ouro para a festa, provocando a discórdia entre as três deusas, tudo isto foi preparado por Zeus e Témis de forma a punir a raça dos heróis por “impiedade”. Cf. Poemas Cíprios, Arg. 1 e Frag. 1, in GEF, em que Zeus lança sobre os mortais a guerra de Tebas, e depois a de Tróia, com o mesmo fim, “destes dois eventos surgiu a guerra entre gregos e bárbaros”, a fim de destruir os mortais porque estes eram demasiados e faziam muito peso sobre a terra, pelo que Zeus se compadeceu dela.

606 Poemas Cíprios, Arg. 2, in GEF607 Poemas Cíprios, Arg. 2, in GEF: «cheimō� na dè autoîs ephístēsin Hḗra.»608 Peleu foi aconselhado por Quiron a perseguir e agarrar Tétis enquanto esta mudava de forma até ficar na sua

forma original. Poemas Cíprios, frag. 3, in GEF) Quiron deu a Peleu uma lança, feita por Hefesto (Poemas Cíprios, frag. 4, in GEF), o que representa a legitimação, representado na forma de Aquiles.

609 Il. 3.164-5; Od. 23.222-4; Od. 4.261-4.610 Apolod., Epí. 3.2.611 Exactamente a mesma ideia (ou o seu desenvolvimento) de união entre Ocidente e Oriente está presente na fuga

de Io para o Egipto e no rapto de Europa. Cf. Nuno Simões Rodrigues, “Entre Europa e Io: elementos orientais na arte grega arcaica e clássica” in J.A. Ramos, L.M. Araújo, A.R. Santos, Arte Pré-Clássica: Colóquio Comemorativo dos Vinte Anos do Instituto Oriental da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, Instituto Oriental da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2007; Hdt. 1.1-4.

612 Poemas Cíprios, Arg. 4 in GEF: «Îris angéllei tō� i Meneláōi tà gegonóta katà tòn oîkon. ho dè paragenómenos <eis Mykḗnas> perì tē� s ep᾽Ílion strateías bouleúetai metà toû adelphoû, kaì pròs Néstora paragínetai Menélaos. Néstōr dè en parekbásei diēgeîtai autō� i hōs Epōpeùs phtheíras tḕn Lykoúrgou thygatéra exeporthḗthē, kaì tà perì Oidípoun, kaì

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Aqui, Nestor faz várias relações entre o rapto de Helena e outros erros cometidos devido a

personagens femininas, e as suas consequências. Os dois irmãos, Menelau e Agamémnon,

juntamente com os seus aliados Aqueus, vão em busca de Helena, que só terá fim passados dez anos

de guerra. O mesmo tópico está presente nos irmãos Rāma e Lakṣmaṇa, que com os seus aliados

(um exército de macacos/autóctones) vão em busca de Sītā, causando uma guerra de dezoito

meses.613 Contudo noutras versões a culpabilidade de Helena é retirada, não tendo sido ela a raptada,

mas sim uma imagem (ilusão) sua, o mesmo sucede com Sītā, como veremos. Neste caso, Hermes,

o condutor de almas, obedecendo a Zeus, levou Helena para o Egipto, e deu-a a Proteu, rei dos

Egípcios, deixando Páris seguir com um eídōlon (ídolo ou imagem) de Helena, feito de nuvens, para

Tróia.614 Em algumas versões foi Hera quem produziu este ídolo, indignada pelo facto de não ter

sido escolhida como a “deusa mais bela”.615 Sobre a Helena de Homero diz Estesícoro:

Não existe verdade nesta narrativa; nem foste nas naus de belos remos, nem chegaste às muralhas de Tróia.616

Este autor do séc. VI a.C., comprova que a tradição de Helena não ter partido para Tróia é mais

antiga do que a apresentada por Eurípides, sendo esta a versão mais antiga que conhecemos sobre

Helena não se encontrar em Tróia. Desta forma, os Gregos e os Troianos lutaram apenas por um

espectro, um fantasma, pois Helena estaria em Esparta ou no Egipto, o que poderá subentender que

o poder dos Aqueus (ou de Esparta) estaria de alguma forma relacionado com o Egipto. Apolodoro,

do séc. II, também diz que Helena não esteve em Tróia durante a guerra, e que Páris raptou Helena

por dois motivos: devido à vontade de Zeus em que a sua filha fosse famosa por ter ido da Europa

para a Ásia; e para que a raça dos semi-deuses fosse exaltada.617 A fama que recebe Helena não será

mais do que a fama da “aliança” entre os Aqueus, e a dos semi-deuses, provavelmente a fama das

linhagens dinásticas. O facto de Helena não ter ido para Tróia, mas sim o seu fantasma, para além

de assegurar de certa forma a sua “fidelidade” a Menelau e a Esparta, reflecte igualmente a ideia de

que o poder “aqueu” nunca foi transferido para Tróia, apenas uma cópia, uma ilusão, algo que não

se chegou a cumprir (até porque os Troianos sairão perdedores), ou seja, Páris, que embora seja

príncipe está relacionado com a pastorícia (a terceira função). Dumézil entendeu na escolha que

Páris faz no seu Julgamento, uma preferência pela terceira função, isto porque Afrodite, oferecendo

tḕn Hērakléous manían kaì tà perì Thēséa kaì Ariádnēn.»613 Obviamente que o número de anos ou meses é meramente simbólico e não deverá representar a realidade, já que

a guerra celeste entre devas e asuras dura dezoito anos e a de Kurukṣetra dezoito dias. O mesmo se aplicará certamente aos dez anos de Tróia.

614 Apolod. Epí 3.5; Hdt. 2.112-120.615 Eur. Hel. 31-51; 582 e ss., etc.; Eléc. 1280 e ss.616 Estesícoro, Frag. 32, Bergk, apud Platão, Fedro 243a: «ouk ést᾽étymos lógos hoûtos, oud᾽ébas en nēysìn

eusélmois». Veja-se também: Plat. Rep. 9.586c. Estesícoro, tendo difamado Helena nos seus textos, perdeu a visão, como tal, fez esta apologia, defendendo-a da sua condição delicada, e retirando-lhe os crimes. (Platão, Fedro 243a-b)

617 Cf: Apolod., Epit., E, 3, 1.

97

a beleza de Helena (o prazer), é representativa da terceira função, por oposição à primeira (Hera) e à

segunda (Atena).618 E ainda que esta leitura seja apelativa, a verdade é que Páris não cobiça a

terceira função, que ele como pastor já representa, quanto muito ele perpetua esta função,

aplicando-a ao sentido do rapto, i.e., uma acção material e veloz, porventura económica. Aquilo que

Páris ambiciona é a primeira função, a soberania que Helena significa. Helena que é o poder do rei

Menelau e de Esparta, em torno da qual todo o mundo grego se parece organizar com esta guerra, é

esta a cobiça de Páris, e em última análise a cobiça tanto de Gregos como Troianos, os primeiros

que esperam recuperá-la e os segundos que a querem manter, gerando por isto um movimento, o

qual pode ser entendido como próprio da terceira função, ou quarta varṇa indiana (os śūdras),

marcada pelo movimento económico da cidade.619

O rapto de Sītā começa com a “tragédia” de Śūrpaṇakhā, a rākṣasī irmã de Rāvaṇa, que ao se

dirigir a Pañcavaṭī (local na floresta onde viviam os primeiros anos do exílio, Rāma, Lakṣmaṇa e

Sītā) se apaixonou por Rāma. Tendo ido falar com ele, declarou o seu desejo de se casar com ele e

de matar imediatamente Sītā.620 No entanto, num tom trocista, não obstante o trágico desenlace,

Rāma desenhará todo um discurso humorístico, propondo a Śūrpaṇakhā que se case antes com o seu

irmão Lakṣmaṇa, que ainda é solteiro (no entanto sabemos que ele é casado!). Este por sua vez, diz

ser apenas um servo de Rāma, por este motivo, ela deverá antes casar-se com Rāma. Vemos durante

os dois discursos, a figura intensamente trágica de Śūrpaṇakhā, como que num limbo e perdida de

amor, lançando-se ora a um homem ora a outro. Por isto, a humilhada Śūrpaṇakhā tenta atacar Sītā,

mas acabará mutilada por Lakṣmaṇa, que lhe corta as orelhas e o nariz,621 sendo aqui que começam

os problemas. Śūrpaṇakhā irá queixar-se ao seu irmão Khara, que enviará catorze mil rākṣasas para

atacar Rāma, que serão facilmente mortos pela hollywoodesca capacidade bélica de Rāma,622 e que é

uma previsão da vitória final de Rāma sobre os rākṣasas. Com Khara morto, bem como os valentes

generais e guerreiros rākṣasas, Śūrpaṇakhā recorre ao seu mais poderoso irmão, Rāvaṇa, descrito

como o rei portador de dez cabeças e vinte braços.623 Śūrpaṇakhā começará por criticar Rāvaṇa pelo

seu mau governo,624 desenhando de seguida a sua vingança, ao descrever as qualidades de Sītā, que

618 Georges Dumézil, “Introduction: Il était trois fois...” in Mythe et Épopée I, II, III, Paris, Gallimard, 1995, p. 15.619 Cf. ṚV 10.90.11-12. 620 Rām. 3.16.4-24.621 Rām. 3.17.2-22.622 Rām. 3.19-25.623 «De amplo peito, um grandioso rei, ele tinha todos os símbolos da realeza. Ele cintilava com brincos de ouro

polido e usava um pendente brilhante. Os seus braços eram brutais, os seus dentes de um branco brilhante, a sua boca gigantesca, e ele era alto como uma montanha.» Rām. 3.30.8-9, ele: «Como um violador das leis, iria violar as mulheres de outros homens, e usar armas celestes para perturbar os sacrifícios. Foi ele que indo para a cidade de Bhogavatī, venceu Vāsuki e Takṣaka, e roubou a esposa de Takṣaka» Rām. 3.30.12-13. «Ele era Rāvaṇa, “aquele que faz todas as criaturas gemer”, o terror dos três mundos.» Rām. 3.30.20.

624 Rām. 3.31.2-20. Aqui, tal como fará Draupadī e Gāndhārī, vemos uma mulher a argumentar sobre assuntos políticos.

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daria uma excelente esposa para Rāvaṇa, despertando nele o desejo de a raptar.625 Desta forma,

Rāvaṇa irá ter com Mārīca (o único rākṣasa com qualidades humanas e dharmicas), a fim de ter a

sua ajuda no rapto:

Transforma-te num belo e dourado veado, salpicado de pintas prateadas e vai pastar para perto do āśrama (eremitério) de Rāma para que Sītā te veja. Quando Sītā te vir assim transformado em veado, ela irá por certo pedir ao seu marido e a Lakṣmaṇa que te capturem. Então, com os dois ausentes e o sítio deserto, nada me poderá impedir de raptar Sītā, tal como Rāhu, o [planeta que gera o] eclipse, faz com a luz da lua. Depois, com Rāma em agonia devido ao rapto da sua esposa, eu sei que poderei vencê-lo e alcançar o meu maior desejo.626

Mārīca tentará impedir Rāvaṇa mas sem sucesso.627 Mārīca transforma-se então num veado e vai

pastar para perto da entrada do āśrama de Rāma,628 onde é visto por Sītā que encantada com a sua

beleza pede a Rāma que o capture, para que a sua pele possa ser usada numa almofada de palha.629

Rāma, que nunca desilude a sua esposa, cede aos pedidos desta, ainda que se trate de um rākṣasa

disfarçado (como ele acredita ser), deixando-a aos cuidados do seu irmão, Lakṣmaṇa.630 Rāma irá

durante muito tempo atrás do veado mágico, até que por fim o atinge com uma flecha, neste

momento, o veado desaparece, dando lugar a Mārīca, que imitando a voz de Rāma, chamará por

Sītā e Lakṣmaṇa.631 Sītā, ao ouvir a voz aflita de “Rāma”, impele repetidamente Lakṣmaṇa a ajudar

o seu irmão, ainda que este recuse deixá-la sozinha (para além do facto de Rāma já ter dado provas

de que não necessita de ser socorrido em combate, e muito menos o reclame!), até ao ponto que Sītā

acusa Lakṣmaṇa de desejar a morte do seu irmão, para poder casar-se com ela. É neste momento

que Lakṣmaṇa parte, absolutamente impotente face às palavras de Sītā,632 dando a Rāvaṇa a

625 Rām. 3.32.14-18 e ss.626 Rām. 3.34.17-20: «sauvarṇas tvaṃ mṛgo bhūtvā citro rajatabindubhiḥ / āśrame tasya rāmasya sītāyāḥ

pramukhe cara // tvāṃ tu niḥsaṃśayaṃ sītā dṛṣṭvā tu mṛgarūpiṇam / gṛhyatām iti bhartāraṃ lakṣmaṇaṃ cābhidhāsyati // tatas tayor apāye tu śūnye sītāṃ yathāsukham / nirābādho hariṣyāmi rāhuś candraprabhām iva // tataḥ paścāt sukhaṃ rāme bhāryāharaṇakarśite / viśrabdhaḥ prahariṣyāmi kṛtārthenāntarātmanā //»

627 Entre vários presságios, dir-lhe-á: «Sim, verás certamente Laṅkā enleada numa teia de flechas, engolida por chamas ardentes, os edifícios reduzidos a cinza. Tu possuis milhares de mulheres maravilhosas no teu harém, vossa majestade; contenta-te com as tuas mulheres, ó rākṣasa!, e preserva a tua casa. Se queres continuar a usufruir de prestígio, prosperidade, poder político, e da tua preciosa vida, não ofendas Rāma. Mas se – desprezando este conselho urgente que te dou, meu amigo – puseres as tuas mãos de forma violenta sobre Sītā, as tuas forças perecerão, os arcos de Rāma retirar-te-ão a vida, e então tu e os teus familiares descerão à casa de Yama.» Rām. 3.36.25-28.

628 Rām. 3.40.12. A descrição do dolo: «Os chifres do veado tinham pontas feitas de diamantes raros, o seu focinho composto de partes escuras e claras, uma parte era como os lótus rosados e a outra como lótus azuis. As suas orelhas eram como safiras ou lótus azuis, o seu pescoço gentilmente alongado, o seu ventre tinha o brilho da safira. Os seus flancos eram como a pálida, aveludada flor de madhūka, tudo o resto era como os rebentos dourados do lótus, e os seus cascos brilhavam como a pedra olho-de-gato. Ele era magro e delgado nas patas, e de forma brilhante ornamentado com uma cauda tingida com todas as cores do arco-íris. Ele estava cravado com todo o tipo de pedras preciosas que lhe davam uma matiz brilhante e atractiva.» Rām. 3.40.13-16. Note-se que o tópico do veado causador da crise, volta a aparecer no MBh (1.118), no famoso episódio em que Pāṇḍu, por matar um brāhmaṇa disfarçado de veado que copulava com a sua esposa (igualmente disfarçada de veado) na floresta, fica condenado a morrer no primeiro momento que se unir a uma mulher. Para o simbolismo do veado na Índia veja-se: Alexandra van Der Geer, Animals in Stone: Indian Mammals Sculptured Through Time, Leiden, Brill, 2008, pp. 64-73.

629 Rām. 3.40.27; 41.8-20.630 Rām. 3.41.22-49.631 Rām. 3.42.1-19. Rāma caçará outro veado (para cumprir a promessa que fez a Sītā) e põe-se a caminho do

āśrama (Rām. 3.42.21).632 Rām. 3.43.1-37.

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oportunidade de avançar, e este, assumindo o disfarce de um pedinte,633 aproxima-se e começa a

cantar-lhe louvores, colocando-lhe a típica questão indiana para as mulheres:

Quem és tu, mulher dourada vestida com traje de seda amarelo, usando uma amável coroa de lótus, tu que és semelhante a um lago de flores de lótus? Serás tu a deusa da Modéstia (Hrī) ou da Fama (Kīrti)? Ou Serás Śrī, ou a amável Lakṣmī, ou talvez uma Apsarā, amável senhora? Poderás tu ser a Prosperidade (Bhuti), bela senhora, ou o fácil Prazer (Rati)?634

Como Rāvaṇa estava disfarçado de pedinte, Sītā ofereceu-lhe hospitalidade,635 e pergunta-lhe

quem ele é. Este revelar-se-á exprimindo a sua intenção de a raptar.636 Sītā, indignada, apressa-se a

descrever as qualidades do seu marido (como na Teichoskopía de Helena e Draupadī, sem no

entanto o marido estar presente),637 e como resposta, Rāvaṇa identificará a sua linhagem.638 De

seguida agarra em Sītā (com a mão esquerda pelos cabelos e a direita as coxas) e coloca-a no seu

carro voador (que entretanto aparece), raptando-a, com ela aos gritos e a debater-se.639 Vemos que

embora o rapto não seja feito às claras, ou seja, não-testemunhado, Rāvaṇa apresenta-se, bem como

à sua ascendência, revelando um modelo para este tipo de acção. Pelo caminho, Sītā vai gritando à

natureza (animais, rios, árvores, etc.) para que avisem Rāma e Lakṣmaṇa do seu rapto.640 Um abutre,

Jaṭāyus, tentará impedir o rapto, mas sem sucesso.641 Existem igualmente alterações atmosféricas, a

escuridão desce sobre o mundo e toda a natureza sofre e manifesta maus portentos.642 E toda a

narrativa do rapto define longamente Sītā, como na interessante comparação: «Sītā [durante o rapto]

fazia lembrar um cometa no céu»,643 comparando-a com a apoteose de Hersília, a mais nobre das

Sabinas, quando esta é encaminhada por Íris até Rómulo:

Aí, uma estrela cai do céu e despenha-se na terra, e, com os cabelos em chamas pelo fulgor desta, Hersília partiu então pelos ares juntamente com a estrela. Acolhe-a nos braços familiares o fundador da cidade de Roma; e mudando o antigo nome junto com o corpo, chama-lhe Hora: é agora a deusa associada a Quirino (Rómulo).644

Aqui Hersília vai como um “cometa” ter com o marido, enquanto Sītā se afasta do marido como

um “cometa”, tanto uma imagem como a outra conferem um carácter celeste às personagens

633 Rām. 3.44.2-11. Obviamente que a imagem nos remete para Ulisses, com o mesmo sentido de “pedir” em casamento.

634 Rām. 3.44.15-16: «kā tvaṃ kāñcanavarṇābhe pītakauśeyavāsini / kamalānāṃ śubhāṃ mālāṃ padminīva ca bibhratī // hrīḥ śrīḥ kīrtiḥ śubhā lakṣmīr apsarā vā śubhānane / bhūtir vā tvaṃ varārohe ratir vā svairacāriṇī //» Compare-se com o modo como Anquises questiona Afrodite (HH 5.92-99), e Koṭikāśya a Draupadī (MBh 3.265.2).

635 Rām. 3.44.31.636 Rām. 3.45.22-27 e ss.637 Rām. 3.45.29-43; 46.20-23.638 Rām. 3.46.2-14.639 Rām. 3.47.15-21. No MBh Rāvaṇa rapta Sītā de modo diferente: Sītā tenta fugir de Rāvaṇa entrando no

eremitério, mas este bloqueia-lhe a entrada e puxa-a pelos cabelos, raptando-a (MBh 3.279.41-43).640 Rām. 3.47.22-36.641 Rām. 3.48-49.642 Rām. 3.50.9-10; 33-40; 52, 5-13.643 Rām. 3.50.29. E no Rām. 5.15.20: «[Sītā] parecia uma estrela caída dos céus que se havia despenhado na terra,

devido ao seu mérito exausto.» 644 Ov., Met. 14.846-851.

100

femininas, e um carácter terreno a quem as acolhe. Estes mitos de rapto provam a importância para

o imaginário dos Antigos, da interação entre o Rei e a Natureza (bem como os seus fenómenos),

sendo por este motivo que o rei é chamado de bhūpati “senhor da terra”,645 e Sītā representa os seus

poderes, como atesta o seu nascimento. Esta relação da rainha/princesa com a terra e o reino, é-nos

apresentada da seguinte forma:

uma vez que ele a recupere, o Rāghava (Rāma) ficará certamente tão feliz quanto um rei que recupera o seu reino perdido.646

Ainda durante o rapto, Sītā vê cinco grandes macacos no topo de uma montanha, e sem que

Rāvaṇa se aperceba, deixa cair o seu xaile de seda dourado entre eles, bem como os seus

ornamentos, na esperança que eles avisassem Rāma,647 como virá a acontecer. Esta imagem é

sugestiva, pelo facto de Rāma vir a reconhecer estes objectos durante o seu caminho de busca,

representando o caminho que ficou marcado pela passagem de Sītā. Note-se ainda que Rāvaṇa a

leva num carro voador sobre o mar, no entanto:

ela era como um barco em mar aberto fustigado pelos fortes ventos e prestes a afundar.648 foi carregada com o peso da sua dor, como um barco no mar por pesada carga.649

Tal como Helena é raptada pelo mar, e ainda, como Draupadī que é várias vezes chamada de

“barco dos Pāṇḍavas”.650 Quando finalmente chegam a Laṅkā, Sītā declara novamente a sua

linhagem e pressagia a destruição da cidade.651 E diz em lamento:

Eu não tocarei nesse caçador nocturno, Rāvaṇa, nem com o meu pé esquerdo, muito menos me apaixonarei por esse desprezível ser! Ele ainda não deve ter compreendido que o rejeitei, nem ele tem a noção daquilo que é nem da sua miserável raça, já que, na sua natureza vil, tenta cortejar-me.652

Sītā irá culpabilizar-se, tal como faz Helena na Odisseia, dizendo:

Certamente foi a própria morte disfarçada de veado que iludiu a desgraçada que sou, no momento em que, tola que sou, mandei o meu marido embora – o irmão mais velho de Lakṣmaṇa – e o irmão mais novo de Rāma também.653

645 David R. Kinsley, “Sītā” in Hindu Goddesses: Visions of the Divine Feminine in the Hindu Religious Tradition, Londres, University of Califórnia Press, 1988, p. 70.

646 Rām. 5.14.23: «asyā nūnaṃ punar lābhād rāghavaḥ prītim eṣyati / rājā rājyaparibhraṣṭaḥ punaḥ prāpyeva medinīm //»

647 Rām. 3.52.1-4.648 Rām. 3.53.4.649 Rām. 5.15.3.650 MBh 2.72.3.651 Rām. 3.54.1-12.652 Rām. 5.24.9-10: «caraṇenāpi savyena na spṛśeyaṃ niśācaram / rāvaṇaṃ kiṃ punar ahaṃ kāmayeyaṃ

vigarhitam // pratyākhyātaṃ na jānāti nātmānaṃ nātmanaḥ kulam / yo nṛśaṃsasvabhāvena māṃ prārthayitum icchati //» Contudo, Rāvaṇa nunca tem contacto físico com ela, nem pode ter, porque numa vida passada, ele ao violar a ninfa Rambhā, foi amaldiçoado a parecer nesta, caso obrigue uma mulher a unir-se a ele contra a sua vontade (MBh. 3.280.59-60).

653 Rām. 5.26.10: «nūnaṃ sa kālo mṛgarūpadhārī mām alpabhāgyāṃ lulubhe tadānīm / yatrāryaputraṃ visasarja mūḍhā rāmānujaṃ lakṣmaṇapūrvakaṃ ca //»

101

E tal como Helena, também Sītā é protegida por uma forma ilusória, um fantasma. O

Kūrmapurāṇa diz que Sītā não vai para o Laṅkā, mas que lançando o seu corpo ao fogo, apenas

chega a Laṅkā a sua forma mágica (māyā-Sītā),654 o que é mais uma vez a forma épica de expressar

que o “poder” nunca foi para a cidade inimiga, neste caso Laṅkā, mas apenas uma imitação sua, que

é suficiente para gerar a destruição dessa ambição inimiga.655

Ela (Sītā) era como a delicada reputação destruída, como a verdade traída, como a sabedoria perdida, e como a esperança quebrada. Ela era como o futuro destruído, como uma ordem desobedecida, como um céu em chamas aquando de uma catástrofe, e como um culto divino mal feito. Ela fazia lembrar um lago de lótus destruído ou um exército cujos heróis haviam sido derrotados; ela era como a luz rodeada pelas sombras ou um rio seco. Ela era um altar sacrificial corrompido, uma chama extinta; ela era como uma noite de lua cheia em que o orbe lunar havia sido eclipsado por Rahu.656

O rapto de Sītā representa todo ele a desordem universal, portanto igualmente um carácter

sacrificial (incorrecto), que culminará com a morte dos raptores, os rākṣasas.

Por sua vez, o rapto de Draupadī desenha-se dentro da narrativa comum do rapto, durante o

período de exílio, os Pāṇḍava vão caçar “nas quatro direcções” a partir do centro, o āśrama

(eremitério), onde deixam Draupadī, acompanhada pelo sacerdote Dhaumya.657 Neste momento,

aparece Jayadratha de Sindhu, que ao passar perto do local com a comitiva fica profundamente

impressionado com a beleza de Draupadī,658 chegando a declarar que todas as outras mulheres,

depois de ele ter visto Draupadī, se parecem com macacos.659 E todos os que o acompanhavam se

questionam:

Será ela uma apsarā, ou filha de um deus, ou uma ilusão criada pelos deuses?660

Face a isto, Koṭikāśya, às ordens de Jayadratha, irá questionar Draupadī, da forma com a qual já

nos habituámos,661 depois do habitual kā tvaṃ “quem és?”, diz-lhe:

654 KūPur 2.33.117-124.655 Para a comparação entre o fantasma de Sītā e de Helena, veja-se: Wendy Doniger, “The Shadow Sita and the

Phantom Helen” in Splitting the Difference: gender and myth in ancient Greece and India, Chicago, The University of Chicago Press, 1999.

656 Rām. 5.17.10-13: «sannām iva mahākīrtiṃ śraddhām iva vimānitām / prajñām iva parikṣīṇām āśāṃ pratihatām iva // āyatīm iva vidhvastām ājñāṃ pratihatām iva / dīptām iva diśaṃ kāle pūjām apahṛtām iva // padminīm iva vidhvastāṃ hataśūrāṃ camūm iva / prabhām iva tapodhvastām upakṣīṇām ivāpagām // vedīm iva parāmṛṣṭāṃ śāntām agniśikhām iva / paurṇamāsīm iva niśāṃ rāhugrastendumaṇḍalām //»

657 MBh 3.264.4-5. Concretamente é-nos dito adiante que Yudhiṣṭhira vai para Norte, Bhīma para Sul, Arjuna para Oriente e os gémeos para Ocidente (MBh 3.266.7). Esta caçada que se expande nas 4 direcções do espaço, para além da sua recorrência nas situações de busca e conquista, é, neste caso, ainda mais plena de significado, já que Draupadī fica no centro. Quando a mesma situação acontece no livro II, é Yudhiṣṭhira quem fica no centro com Draupadī, pois ele detém o poder da sua cidade, nesta situação de exílio, pelo contrário, a única coisa que resta do “poder” é a própria Draupadī, ficando por isso sozinha.

658 MBh 3.264.5-15.659 MBh 3.267.2-3.660 MBh 3.264.10a: «apsarā devakanyā vā māyā vā devanirmitā»661 Não será por um acaso, que esta história do Rapto de Draupadī por Jayadratha é imediatamente seguida pela

narração da história de Rāma e do rapto da sua esposa Sītā (MBh 3.273-291), com o claro propósito de traçar um paralelo entre as duas.

102

Uma estranha amabilidade adorna-te. Como podes não ter medo estando tu na floresta? Serás tu uma deusa, uma yakṣī, uma dānavī, uma apsarā, ou uma ninfa daitya?662

Draupadī apressa-se a identificar-se, bem como aos seus maridos que foram caçar e despede-se

rapidamente dele,663 que dará a notícia a Jayadratha, que em vez de partir, entra ele mesmo no

eremitério, «como um lobo num covil de leões»664 e propõe-lhe que esta case e vá viver com ele,665

obviamente ela recusa de toda a forma possível, criticando-o, mas Jayadratha rapta-a colocando-a

na sua carroça.666 Este não é um rapto heróico, como lhe diz Dhaumya, em protesto face ao rapto:

Tu não a podes raptar sem teres vencido os guerreiros! Atenta na antiga lei dos kṣatriyas, Jayadratha!667

Aqui, reforça-se a ideia já presente no rapto das princesas de Kāśi, a legitimação deste acto deve

acontecer na presença dos protectores da mulher raptada, de forma a que a possam contra-raptar.

Mais uma vez, cumprido o rapto, toda a natureza denuncia que algo de mau se passou, levando os

Pāṇḍavas (que já se tinham reunido depois de uma próspera caçada) a regressar rapidamente ao

āśrama.668 Os Pāṇḍavas saberão da notícia através de uma serva de Draupadī que encontram pelo

caminho669 e atacarão Jayadratha e os seus homens.670 Neste momento Draupadī, perante os

Pāṇḍavas que se aproximavam para atacar, descreve a Jayadratha, a seu pedido, os seus cinco

maridos, de forma muito semelhante (apenas mais intimidativa) àquela com que Helena nas

muralhas de Tróia descreve a Príamo os Aqueus que vieram lutar em seu nome.671 Vencido,

Jayadratha liberta Draupadī e foge.672 Yudhiṣṭhira achou por bem que não se matasse Jayadratha,

contudo Draupadī ficou furiosa com esta ideia e reclamou a sua morte,673 de seguida Bhīma e Arjuna

partem em busca do raptor e fugitivo.674 É interessante notar que Bhīma deseja a sua morte, para

honrar Draupadī, mas é Arjuna que compassivamente o impede,675 tal como Yudhiṣṭhira recusa os

pedidos de Draupadī. Bhīma, não podendo matá-lo, cortou o cabelo de Jayadratha, até ficarem

apenas 5 tufos de cabelo, depois, decretou que ele deveria dizer nas cortes e assembleias que era

662 MBh 3.265.2: «atīva rūpeṇa samanvitā tvaṃ na cāpyaraṇyeṣu bibheṣi kiṃ nu / devī nu yakṣī yadi dānavī vā varāpsarā daityavarāṅganā vā //»

663 MBh 3.266.664 MBh 3.267.8.665 MBh 3.267.10-20.666 MBh 3.268.1-24.667 MBh 3.268.25: «neyaṃ śakyā tvayā netum avijitya mahārathān / dharmaṃ kṣatrasya paurāṇam avekṣasva

jayadratha //»668 MBh 3.269.2 e ss.669 MBh 3.269.9-20. 670 MBh 3.271-272.671 MBh 3.271.4 e ss. A comparação com a teichoskopía de Helena (Il. 3.161-244) foi de resto levada a cabo por

Stephanie W. Jamison em: “Draupadī on the Walls of Troy: Iliad 3 from an Indic Perspective”, CA, 13/1, 1994, pp. 5-16.672 MBh 3.271.32 e ss.673 MBh 3.271.43-46.674 MBh 3.271.47 e ss.675 MBh 3.271.59; 272.6 e ss.

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escravo dos Pāṇḍavas, e este, humilhado, obedeceu.676 Depois, juntamente com Arjuna, levou-o até

Yudhiṣṭhira e Draupadī, e depois de criticado pelo seu acto, foi libertado como homem livre.677 No

momento em que os Kaurava tentam ficar com Draupadī, deu-se um terrível furacão da maior

violência, meteoros caíram do céu, deu-se um eclipse, as bandeiras caíram na terra, etc.678

Estes raptos não se dão apenas no mundo IE, como é exemplo o de Dina,679 filha de Jacob e Lia,

cuja narrativa evoca o mito do rapto de Helena.680 Jacob teve doze filhos (representação das doze

tribos de Israel) e uma filha chamada Dina, de uma das suas esposas, Lia.681 O rapto e ultraje sobre a

figura de Dina estão relacionados com os conflitos entre o povo do Sul (Jacob-Israel) e o povo do

Norte (Amorritas e Siquemitas).

Dina, a filha que Lia dera a Jacob, saiu para travar conhecimento com as raparigas do país. Tendo-a visto Siquém, filho de Hamor, o heveu, governador do país, raptou-a e apoderou-se dela, violando-a.682

Dina, tal como Helena, parece aceitar voluntariamente Siquém,683 sem Hamor, o pai de Siquém,

aceita o casamento (legitima-o) e tentará convencer Jacob e os seus filhos para casar Dina com

Siquém. Contudo, eles não aceitarão por este ser incircunciso. Desta forma, chegaram a acordo,

para que as filhas de Hamor se casassem com os filhos de Jacob, e para que as filhas de Jacob se

casassem com os filhos de Hamor, todos os homens da cidade governada por Hamor tinham de ser

circuncidados, e eles aceitaram.684 Mas ao terceiro dia, aproveitando o facto de os homens de

Siquém estarem fisicamente debilitados (devido à circuncisão), os filhos de Jacob, Simão e Levi,

irmãos de Dina, vendo a injustiça praticada contra a sua irmã, marcharam sobre a cidade e mataram

todos os varões, incluindo Siquém e Hamor.685 Saquearam a cidade, roubaram gado e propriedade,

raptaram mulheres e crianças, e contra-raptaram Dina, que estava em casa de Siquém.686 Noutra

versão conta-se que:

676 MBh 3.272.9-12.677 MBh 3.272.15-24.678 MBh 2.81.18-24.679 O seu nome não deixa de recordar, de forma meramente fonética, o dina sânscrito, “dia”. 680 Sobre a comparação estrutural, análise e origem dos dois mitos, veja-se em especial: Nuno Simões Rodrigues,

“O Tema de Helena de Tróia na Bíblia”, in José Vicente Bañuls, et al., O Mito de Helena de Tróia à Actualidade, vol. 1, Coimbra, Universidade de Coimbra, Universita di Foggia, Universidad de Granada, Universitat de Valência, 2007.

681 Gn 29.31 – 30.24; 35.21-26.682 Gn 34.1-2.683 Nuno Simões Rodrigues, “O Tema de Helena de Tróia na Bíblia”, in José Vicente Bañuls, et al., O Mito de

Helena de Tróia à Actualidade, vol. 1, Coimbra, Universidade de Coimbra, Universita di Foggia, Universidad de Granada, Universitat de Valência, 2007, p. 330.

684 Gn 34.13-24.685 N.S. Rodrigues compara a confiança que os Aques ganham dos Troianos, através do estratagema do cavalo de

madeira, com os irmãos de Dina que convencem os siquemitas a praticarem a circuncisão («o cavalo de Tróia da Bíblia»), situação que permite a destruição da cidade inimiga. Cf. Nuno Simões Rodrigues, “O Tema de Helena de Tróia na Bíblia”, in José Vicente Bañuls, et al., O Mito de Helena de Tróia à Actualidade, vol. 1, Coimbra, Universidade de Coimbra, Universita di Foggia, Universidad de Granada, Universitat de Valência, 2007, p. 330.

686 Gn 34.25-29; Cf. Nuno Simões Rodrigues, “O Tema de Helena de Tróia na Bíblia”, in José Vicente Bañuls, et al., O Mito de Helena de Tróia à Actualidade, vol. 1, Coimbra, Universidade de Coimbra, Universita di Foggia, Universidad de Granada, Universitat de Valência, 2007, p. 319 e ss.

104

Enquanto Jacob e os seus filhos estavam ocupados com o estudo da Torah, Dina saiu de casa para ver as dançarinas e cantoras, as quais tinham sido contratadas por Siquém para atrair Dina, quando Siquém a viu, raptou-a pela força e violou-a.687

Noutra versão, semelhante à do mito de Perseu, Jacob por não querer casar a sua filha com Esau,

escondeu-a numa arca, e Javé castigou-o, fazendo com que a sua filha fosse vítima de um rapto e

violação por parte de um homem incircunciso.688 O contra-rapto é novamente cumprido por dois

irmãos, que neste caso se aproximam de Rāma e Lakṣmaṇa, bem como Menelau e Agamémnon, até

porque Simão se casará com Dina.689 Este rapto judaico evocará, tal como o grego, uma tradição

anterior,690 onde a mulher raptada corresponde a um mito arquetípico e a uma significação próxima

à da legitimidade, e poderio de um povo sobre outro.

4.2.3. A legitimação do rapto ilegítimo: O rākṣasa das Sabinas, de Perséfone e de Tārā

O rapto das Sabinas, ainda que comparável, desenha-se noutros moldes. Como no rapto de

Subhadrā começará num rapto aquando de um festival e terminará com uma aliança, contudo o acto

violento que se torna gradualmente “legítimo” é bem mais demorado e combatido. A narrativa

começa com o motivo para o rapto: a falta de mulheres na cidade. Desta forma, Rómulo procurou

junto das cidades vizinhas (legalmente!) adquirir mulheres mas, sem sucesso, viu-se obrigado a agir

pela força. Realizou assim os jogos em honra do deus Conso (consualia), convidando os Latinos e

os Sabinos, raptando aqui as mulheres (que não eram casadas à excepção de Hersília) e tomando-as

por esposas.691 Os familiares das mulheres raptadas regressaram e fizeram guerra contra os

Romanos, perdendo consecutivamente (perdendo também o direito às mulheres). O maior e último

combate (entre o rei sabino Tito Tácio e Rómulo) foi terminado pelas Sabinas, que reconciliaram os

seus pais com os seus maridos-raptores, e estes não só terminaram a guerra como fizeram aliança,

unindo-se como um único país. Todo o processo condiz com a legalidade empregada por Bhīṣma no

rapto das princesas de Kāśi, em que a facção não convidada/desejada (e por isso insultada!) para se

casar com as filhas dos povos vizinhos, provoca um rapto, neste caso não no terreno inimigo, mas

no seu próprio espaço. Assim, o rapto violento que pode ser visto como um género de união sine

manu (a noiva continua a pertencer ao pai), já que os pais continuam a lutar pelo regresso das filhas,

687 Cf. Louis Ginzberg, Legends of the Jews, vol. 1, Philadelphia, The Jewish Publication Society of America, 198815, p. 395.

688 Louis Ginzberg, Legends of the Jews, vol. 1, Philadelphia, The Jewish Publication Society of America, 198815, p. 396.

689 Louis Ginzberg, Legends of the Jews, vol. 2, Philadelphia, The Jewish Publication Society of America, 198813, pp. 37-38.

690 Cf. Nuno Simões Rodrigues, “O Tema de Helena de Tróia na Bíblia”, in José Vicente Bañuls, et al., O Mito de Helena de Tróia à Actualidade, vol. 1, Coimbra, Universidade de Coimbra, Universita di Foggia, Universidad de Granada, Universitat de Valência, 2007, pp. 326-330.

691 Cf. “Hersilia” in DGRBM II.

105

dá progressivamente origem ao que viria a ser a confarreatio, o usus e a coemptio (i.e., com

aceitação da união pelos pais, e testemunhado)692, já para não mencionar que dentro da legislação

indiana, este foi praticado conforme a lei, testemunhado e com uso da força (à excepção do anúncio

de rapto que parece não existir!), sendo, por isto, desde a sua origem legítimo. Neste famoso

exemplo entende-se que o rapto das mulheres não só assegura a continuidade do reino raptor, como

assimila aquele que foi vítima do rapto (porque perdeu a legitimidade?) em torno da acção das

mulheres que por escolha pessoal, após o confronto das duas partes (não diferente de um

svayaṃvara seguido de competição entre os pretendentes), se mantêm com os seus maridos,

levando à aceitação do casamento pelos pais e povo ao qual pertenciam. Há assim uma

oportunidade de escolha dada a estas mulheres (que não são apenas despojos de guerra desprovidos

de opinião) que legalmente geraram a ordem entre estes povos, assimilando-os. A mesma

capacidade de escolha está presente no rapto das princesas de Kāśi, já que Bhīṣma dá a

oportunidade a Ambā, que diz já ter escolhido o seu esposo, podendo por isso voltar em liberdade.

Estas intrigas épicas e mitológicas, porque não foram seguidas pela evolução das realidades

sociais que as procederam, sendo até rejeitadas, revelam uma estrutura “pré-histórica” intacta.693

Neste sentido, em concreto no caso do MBh, estes actos de rapto parecem estar alheados da

estrutura hiper-dharmica que envolve o épico, levando a crer que se tratarão aqui mais de símbolos

ou arcaísmos do que propriamente de uma realidade social, como é bem perceptível no mais famoso

dos raptos, o de Helena, onde as suas qualidades (e reflexo de Afrodite) se misturam com a ideia de

um erro cometido pela rapariga. Bhīṣma, que é ao longo do MBh a representação da lei na corte,

comete (aparentemente) um acto incorrecto no momento em que rapta as princesas de Kāśi, o que é

atestado pelo facto de ele vir a ser morto por Ambā na sua forma masculina de Śikhaṇḍin.694

A história do rapto de Perséfone, muito semelhante ao de Sītā, diz-nos que esta, encontrando-se

numa clareira «recolhendo violetas ou radiantes lírios, enquanto que com ternura feminina enchia as

pregas da sua veste, e a sua cesta»695 foi vista por Hades, que se apaixonou por ela, raptando-a de

imediato. A deusa assustada grita pela mãe, enquanto Hades a leva no seu carro, e como o seu

vestido se rompeu, as flores que havia recolhido vão caindo pelo caminho. Cíane, vendo-o raptar

Perséfone tentou impedi-lo, mas sem sucesso, enquanto Hades se dirigia pela terra perfurada

(poços) até ao Tártaro.696

692 Cf. Georges Dumézil, “Mariages Épiques: Romulos et les Sabines” in Mariages Indo-Européens, suivi de Quinze Questions Romaines, Paris, Payot, 1979.

693 Georges Dumézil, Mariages Indo-Européens, suivi de Quinze Questions Romaines, Paris, Payot, 1979, p. 82.694 Cf. MBh 5.173-185; Para um comentário ao “erro” de Bhīṣma veja-se: Madeleine Biardeau, Le Mahābhārata:

Un récit fondateur du brahmanisme et son interprétation, vol. 1, Paris, Éditions du Seuil, 2002, pp. 1091-1097.695 Ov. Met. 5.391-394.696 Ov. Met. 5.395-424; HH 2.2-33; Claudiano De Raptu Proserpine. (Claudian. Translated by Platnauer, Maurice.

Loeb Classical Library Volumes 135 & 136. Cambridge, MA. Harvard Univserity Press. 1922. )

106

Também Sītā, que sendo filha da terra (nasce de um sulco) se aproxima de Perséfone (filha de

Deméter), será no final da vida engolida pela terra.697 Ambas as deusas parecem representar uma

metáfora ao trabalho agrícola e à ideia de que a semente tem de morrer/desaparecer para gerar

frutos. A busca que faz Deméter pela sua filha é tão demorada (em termos literários) como a que faz

Rāma, já que tanto a ilha de Laṅkā como o Hades são locais de difícil acesso, e igualmente

representativos do outro (mundo dos demónios e mundo dos mortos). De forma idêntica à do rapto

de Sītā, a natureza altera-se com o rapto de Perséfone, contudo, com o desaparecimento da filha de

Deméter a alteração da natureza é aparentemente mais violenta, cessando de prosperar. Depois de

Deméter ter perdido a sua filha, e de muito procurar por toda a terra, questionou Hélio (que observa

tudo o que se passa na terra),698 e este disse-lhe que Zeus tinha dado a sua filha como esposa a

Hades, que a havia raptado na floresta, levando-a na sua carruagem, enquanto ela gritava e se

lamentava.699 Então Deméter, na sua dor, vagueou pelas cidades dos homens durante muito tempo, e

nenhum homem a podia reconhecer,700 isto porque estava disfarçada entre eles, assemelhando-se a

uma mulher velha (palaigenéï).701 Perséfone passará dois terços do ano com a sua mãe e um terço

com o seu marido Hades,702 representando a organização do ano em estações, bem como da vida em

geral, já que é óbvio que a filha da terra tem uma ligação ao submundo, pois tudo o que é terreno

morre. Esta ordenação do ano em três partes, gerada pelo rapto (e pelo consumo do bago de

romã703), não deixa de subentender a deusa Hera, a deusa do ano e a rainha dos deuses, aquela que

organiza o ano em três fases,704 subentendendo que a ideia da ciclicidade vida-morte-vida (que

subsistirá nos Mistérios de Elêusis705) é essencialmente feminina, i.e., interna e passiva. Também

Sītā parece ter sido roubada com a finalidade de ordenar o mundo, i.e., para levar a civilização até à

barbárie, do Norte para o Sul da Índia. Estes raptos expressam essencialmente a ordem (kósmos)

sobre a aparente desordem (cháos), o que terá gerado metáforas agrícolas para a vida e o pós-vida.

A relação da morte com a deusa estabelece-se a partir da ideia de que a semente tem de morrer para

gerar fruto, o que está atestado pela relação do par Deméter-Perséfone com o cereal (em especial o

697 MBh. 3.291.10-17.698 HH 2.63-73.699 HH 2.75-87.700 HH 2.93-95.701 HH 2.101; 113, sendo por isto chamada de “velha mãe” (“maîa”, forma de vocativo para mulheres velhas). Cf.

HH 2.147. Mais tarde, Deméter chega a Elêusis (HH 2.99) e manda toda a sua população construir um templo (HH 2.270-72), perdendo de seguida a sua forma de velha, retomando a sua forma original e divina, com aspecto jovem, sobrenatural, e com uma fragrância divina, provocando o medo nos que contemplaram a sua epifania. HH 2.275-279. Também Afrodite se disfarça de mulher velha. Cf. Il. 3.386.

702 Cf. HH 2.370 e ss.703 HH 2.380.704 Walter Burkert, “Hera” in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,

1993, p. 263; Jean Haudry, “Héra et les Héros”, EIE, 12, 1985, p. 4; “Ἥρᾱ” in DELG.705 Cf. Nuno Simões Rodrigues, “O Trigo como Metáfora da Vida e da Morte na Antiguidade Clássica”, Máthesis

17, 2008, p. 99.

107

trigo) na Antiguidade.706 Por este motivo, quando Perséfone está junto a sua mãe, a natureza floresce

e os campos prosperam, pelo contrário, quando se encontra com o deus da morte (quando ela

mesma passa a ser a rainha dos mortos), a natureza morre,707 subentendendo igualmente uma

ordenação e uma desorganização cíclicas no mundo. O facto de o trigo ser dourado, pode ter

sugerido aos Antigos a ideia de realeza ou divindade, o que se aplicaria ao pós-morte da

semente/homem e a um estado de felicidade no além. A ansiedade em que viveriam os Antigos face

à sua subsistência e à possibilidade da natureza se esgotar, tê-los-á levado a sobrevalorizar

metaforicamente o cereal.708 No entanto, seria de todo perceptível que aquilo que entra na terra (o

cadáver e a semente) aliado da fertilidade dos campos, permitiu entender a morte como um

desaparecimento momentâneo e ilusório, sugerindo um novo ciclo.709 Também a fertilidade da terra

que se compara à da mulher, geradoras de vida, se traduziu no casal da mãe Deméter e da filha

Perséfone.710

A relação das raparigas raptadas com a destruição é notável, e no caso concreto de Perséfone

revela-se no seu próprio nome (Persephónē), o qual traça uma relação obscura com phónos

“morte”.711 Ainda que ela não seja uma deusa da morte, o facto de casar-se com Hades permite uma

relação fácil com a ideia de morte. A sua relação com a morte basear-se-á, provavelmente, no ciclo

das estações e no ciclo vida-morte-vida. O rapto de Perséfone não será representativo da passagem

de filha para esposa (da mãe para o marido), como têm visto alguns autores,712 pelo facto de que

uma esposa não casa e descasa ciclicamente, como fará Perséfone se interpretada desta forma, nem

é pertença da sua mãe, mas sempre de um elemento masculino. Pelo contrário, quando comparada

com Sītā, torna-se claro que representa a ciclicidade da natureza e a sua destruição igualmente

cíclica. Hades que recebe (rapta) a filha da terra e depois a devolve momentaneamente à sua mãe,

representará mais facilmente uma teoria da transmigração, quer da alma quer dos elementos físicos

em geral, do que uma rapariga que se torna esposa de um marido que representa a morte.

Pelo facto de este ser um rapto ilegítimo, pois não foi anunciado, Perséfone deve regressar à mãe,

706 Nuno Simões Rodrigues, “O Trigo como Metáfora da Vida e da Morte na Antiguidade Clássica”, Máthesis 17, 2008. pp. 98-99.

707 Nuno Simões Rodrigues, “O Trigo como Metáfora da Vida e da Morte na Antiguidade Clássica”, Máthesis 17, 2008. p. 101.

708 Nuno Simões Rodrigues, “O Trigo como Metáfora da Vida e da Morte na Antiguidade Clássica”, Máthesis 17, 2008. p. 102.

709 Nuno Simões Rodrigues, “O Trigo como Metáfora da Vida e da Morte na Antiguidade Clássica”, Máthesis 17, 2008. p. 102.

710 Nuno Simões Rodrigues, “O Trigo como Metáfora da Vida e da Morte na Antiguidade Clássica”, Máthesis 17, 2008. pp. 104-105.

711 Cf. “Περσεφóνη” in DELG.712 Por exemplo: Maryline Parca, Angeliki Tzanetou, Finding Persephone: women's rituals in the ancient

Mediterranean, Indianapolis, Indiana University Press, 2007; Evangelia A. Laoutides, Eros and Ritual in Ancient Literature: Singing of Atalanta, Daphnis, and Orpheus, New Jersey, Gorgias Press, 2005, p. 355 e ss.; Barbara Miller, Tell It On The Mountain: The Daughter Of Jephthah In Judges 11, Minnesota, Liturgical Press, 2005, p. 90 e ss.

108

no entanto, por ter consumido um bago de romã (que é um fruto afrodisíaco relacionado com a

deusa casamenteira, Hera713) pertencente a Hades, no Mundo Inferior, podemos considerar que ela

se relacionou fisicamente com o raptor, pelo que ela mesma não pode ser “legalmente” contra-

raptada.714 Este é um rapto, que à semelhança daquele praticado contra as Sabinas, se vai

legitimando, com base na acção da rapariga.

Soma, o deus da lua, depois de cumprir o ritual rājasūya,715 apaixonou-se pela deusa Tārā

“estrela”, a esposa de Bṛhaspati (o planeta Júpiter), e não obstante o facto de ele próprio já ter vinte

sete estrelas-esposas, raptou Tārā. Vários deuses uniram-se numa voz contra o rapto, reclamando a

sua devolução a Bṛhaspati. Soma recusou-se a fazê-lo, gerando uma grande guerra entre

“demónios” e “deuses” que se dividiram entre o apoio a Soma e Bṛhaspati, respectivamente,716 a

qual recebeu o nome de tārakāmaya “guerra [pelo regresso] de Tārā”.717 Brahmā, vendo as

proporções catastróficas que a guerra tomava, pôs ele mesmo fim à contenda e devolveu Tārā ao seu

marido. No entanto com o passar do tempo, a gravidez de Tārā é denunciada e dará à luz Budha

(que passa a representar o planeta Mercúrio), que depois de muita averiguação (e de tanto Soma

como Bṛhaspati desejarem que o filho lhes pertencesse) comprovar-se-á ser filho de Soma, que o

recebe nos braços,718 e do qual se gera a Dinastia Lunar,719 da qual farão parte os Kurus. Este rapto,

além de ser de certa forma semelhante ao roubo do fogo por Prometeu, poderá representar um

protótipo do próprio rapto IE, isto porque acontece no mundo dos deuses e não dos homens, com

um carácter fundador. Soma é o deus da realeza e da legitimidade régia,720 o rapto de Tārā após o

ritual de rājasūya representará uma conquista do rei, que embora ele venha a perder, gera os seus

frutos, na fundação de uma dinastia mítica.

Este rapto de Tārā encontra reflexo no Rām., no roubo de outra Tārā, a esposa de Sugrīva. No

momento em que Rāma se lamenta do rapto de Sītā, depois de reconhecer as jóias que Sītā havia

lançado aos cinco símios que viu durante o seu rapto, Sugrīva (o rei dos símios) conta-lhe que

também a sua esposa, Tārā, foi roubada pelo seu irmão Vālin.721 Certa vez, Vālin e Sugrīva haviam

perseguido um asura, Māyāvin, até uma gruta onde este se escondeu, Vālin pediu a Sugrīva que

esperasse à entrada da gruta, enquanto ele matava o seu inimigo. Passou-se um ano inteiro e Vālin

não saia da gruta, até que Sugrīva ouviu os gritos do seu irmão e viu sangue a sair pela entrada da

713 Efthymios G. Lazongas, “Side: Personification of the pomegranate”, in Emma Stafford, Judith Herrin, Personification in the Greek World: From Antiquity to Byzantium, London, Centre for Hellenic Studies, 2005, p. 106.

714 HH 2.380; Apolod., Biblio. 1.5.3; 715 HV 1.25.24-27. A história é igualmente contada no ViPur 4.6.8-33.716 HV 1.25.30-33.717 HV 1.25.35. 718 HV 1.25.43 e ss.719 HV 1.25.50.720 De acordo com uma inscrição em Harihara: «Soma tornou-se o primeiro rei nos três mundos» Cf. Walter Elliot,

“Hindú Inscriptions”, The Journal of the Royal Asiatic Society of Great Britain and Ireland, 4, 1837, p. 26.721 Rām. 4.7-8.

109

gruta, julgando o seu irmão morto, bloqueou a entrada da gruta com uma rocha e regressou ao seu

reino. Sugrīva será consagrado rei, e cumprirá o seu dever até ao dia em que Vālin regressa, e

pensando que o seu irmão o tinha aprisionado propositadamente na gruta, expulsou-o do reino para

um exílio e retirou-lhe à força a sua esposa Tārā.722 Depois de ouvir a história, Rāma decide-se a

ajudar Sugrīva, matando Vālin e recuperando tanto Tārā como o seu reino, sendo daqui que nasce a

aliança entre Rāma e Sugrīva.723 O facto de no momento chave do “reconhecimento” de Sītā através

das suas jóias, que estão na posse de Sugrīva, este se lamente de uma igual perda, a do roubo/rapto

de uma esposa, e que daqui em diante se desenhe tanto a recuperação de um reino, como a maior

das alianças, entre homens e símios, ou entre ários e autóctones, contra os demonizados Drāviḍas do

Sul da Índia, porque é a própria Sītā quem permite todas estas alterações de extrema importância

para o épico, dando à personagem um carácter legitimador. Será igualmente interessante lembrar

que Arjuna utilizará no seu carro de guerra em Kurukṣetra a bandeira com a representação de

Hanuman, o maior dos heróis ao serviço de Sugrīva.

Ainda no Rām. encontramos o curioso rapto da vaca Śabalā, que funciona como mito de

fundação, e o seu interesse recai sobre a imagética do rapto e contra-rapto que criam sete raças

novas no mundo, que no fundo, seriam as raças que representariam alguma ameaça à Índia durante

o período épico (sécs. VI-III a.C.). O rei Viśvāmitra governava o mundo e vagueava pela terra com

um vasto exército, e certo dia encontrou o belo heremitério de Vasiṣṭha, onde o anfitrião chamou a

vaca Śabalā (vaca que cumpria todos os desejos) para que esta preparasse comida em abundância e

tudo o que Viśvāmitra desejasse, de modo a fazer uma boa recepção ao hóspede.724 Quando

Viśvāmitra estava saciado tentou comprar Śabalā mas Vasiṣṭha rejeita-o,725 o que leva Viśvāmitra a

roubar Śabalā pela força. Contudo, Śabalā consegue escapar e regressa até Vasiṣṭha, que escutando

os conselhos da vaca, lhe pedirá um exército para destruir Viśvāmitra.726 Com isto, a vaca Śabalā

criou sete exércitos/raças: 1) do seu ventre foram criados os Kāmbojas; 2) dos seus úberes vieram os

Pahlavas (da Pártia ou Pérsia); 3) da sua vulva vieram os Yavanas (Jónios, Gregos); 4) do seu ânus

os Śakas (Cítios); 5) e dos poros da pele, os Mlecchas (“bárbaros”), os Hārītas (grupo tribal

relacionado com o Turquistão) e os Kirātas (tribo de aborígenes do norte da Índia), exércitos que

darão a vitória a Vasiṣṭha.727

O mito de Śabalā poderá recordar-nos do rapto de Io, a sacerdotisa de Argos transformada em

vaca por Zeus, e que vive condenada a divagar por várias regiões até chegar ao Egipto.728 Estas

722 Rām. 4.9-10.23.723 Rām. 4.10.27-29 e ss.724 Rām. 1.51.21-23.725 Rām. 1.52.8-15.726 Rām. 1.53.17.727 Rām. 1.53-54. 728 Ésq. Prom. Agri. 561 e ss.

110

terras estrangeiras por onde Io passa (os nómadas Cítios, os Calibes, as Amazonas, etc.) terão um

sentido semelhante às raças que Śabalā cria, representando raças e povos inimigos dos Gregos. O

facto de Héracles ser descendente de Io e representar um perigo para o seu pai, Zeus,729 sustentará

esta hipótese.

4.3.1. O tópico da “legitimação” no svayaṃvara de Penélope e no rājasūya de Ulisses

Penélope é a esposa do marido ausente e o arquétipo da esposa casta. A rainha de Ítaca será

provavelmente o melhor exemplo de como um svayaṃvara tipicamente épico (que se define pela

“escolha pessoal” da noiva a partir de uma demonstração de força entre os seus pretendentes), se

torna rapidamente numa legitimação e “reconhecimento” do rei. O primeiro casamento de Penélope,

todo ele uma previsão do seu segundo casamento, é marcado pela decisão do seu pai, Icário, em

realizar na estrada Afetaida uma corrida entre os pretendentes, da qual saiu vencedor Ulisses,

ganhando a mão de Penélope.730 Este casamento poderá ser lido como uma “escolha pessoal” (um

svayaṃvara) de Penélope, a partir do momento em que Icário, após ter dado a sua filha a Ulisses,

tenta convencer o noivo a permanecer na Lacedemónia, mas, face à sua recusa, dirige o mesmo

pedido à sua filha Penélope, para que esta fique e não acompanhe Ulisses, no entanto, Penélope

recusa-se a permanecer com o pai e segue Ulisses, pois esse era o seu desejo.731 Este episódio tem o

claro objectivo de demonstrar a escolha pessoal de Penélope em casar-se com Ulisses, que vai além

do prémio da vitória na corrida dos pretendentes, isto porque, quando Ulisses, ouvindo os pedidos

do seu pai, dá a escolher a Penélope, ficar ou partir com ele para Ítaca:

(...) ela não lhe respondeu, mas cobriu o seu rosto com um véu como resposta à questão, então Icário, compreendendo que ela desejava partir com Ulisses, deixou-a ir (...).732

O segundo casamento de Penélope será o mais interessante, bem como o mais debatido, e é neste

estudo aquele que serve de molde a muitos dos casamentos que serão abordados. Para a

compreensão do segundo casamento de Penélope como um svayaṃvara tipicamente épico, o artigo

de Stephanie Jamison733 merece a pena ser sublinhado como provavelmente o mais feliz pelas suas

conclusões, artigo que não tenciono fazer espelho aqui, referindo apenas os pontos de maior

interesse. A primeira questão a colocar é certamente “porque é que Penélope tem de se casar?”, e a

resposta, como viu a autora,734 torna-se relativamente simples quando arrancada da sua

individualidade grega e colocada em paralelo com a da legislação indiana, isto porque, o ManuS, no

729 Ésq. Prom. Agri. 768-774.730 Paus., 3.12.2. Veremos que também Menelau ganha a mão de Helena através de um concurso.731 Paus., 3.20.10-11732 Paus., 3.20.11733 Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999.734 Cf. Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, p. 235.

111

seu nono capítulo dedicado à mulher, diz-nos que em primeiro lugar:

um homem que tenha negócios pode partir depois de assegurar a protecção da sua esposa.735

Dando ao marido a responsabilidade da protecção da esposa, porque as mulheres, sendo

transferidas como propriedade do pai para o marido, caso percam a “protecção” ficam numa

situação de limbo, tanto na Grécia quanto na Índia.736 No entanto, se esta protecção não for

assegurada, a mulher deverá encontrar um meio de subsistência, que está camuflado em Penélope, e

que se estenderá de forma generalizada às mulheres na Antiguidade:

Se ele (marido) partir numa viagem depois de assegurar [a protecção da esposa], a esposa deve sujeitar-se a restrições no seu dia-a-dia, mas se ele partir sem assegurar [a sua protecção], ela deverá subsistir do irreprimível trabalho manual.737

Este “irreprimível trabalho manual”, aliado à “não-protecção” e vulnerabilidade da mulher, não

encontra melhor reflexo do que na figura de Penélope, que faz e desfaz a mortalha de Laertes, não

para subsistir, mas para se proteger dos pretendentes.738 A mortalha que Penélope tece é para quando

o destino se abater sobre Laertes, e embora a desfaça de noite às escondidas, podemos entender,

tendo em conta a importância das tochas para a legitimação do casamento, alguma “legitimação” do

acto, pelo facto de o fazer à luz de tochas:

Daí por diante trabalhava de dia ao grande tear, mas desfazia a trama de noite à luz das tochas.739

A mulher, além de poder subsistir através do seu trabalho manual, que substitui a “protecção”

oferecida pelo marido, é igualmente protegida pela legislação indiana, já que no caso do seu marido

não regressar a casa, ela tem um período de tempo no qual deve aguardar o seu regresso, bem como

permanecer protegida das pretensões de outros homens:

Se o marido saiu para algum dever sagrado, ela deve esperar por ele oito anos, se ele foi para aprender ou adquirir fama (guerra), seis anos, se foi para prazer, três anos.740

Nenhum episódio se enquadra tão bem aqui quanto o de Penélope (ainda que Ulisses lhe tenha 735 ManuS 9.74a: «vidhāya proṣite vṛttiṃ jīven niyamam āsthitā»736 Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, p. 231.737 ManuS 9.75: «proṣito dharmakāryārthaṃ pratīkṣyo'ṣṭau naraḥ samāḥ / vidyārthaṃ ṣaḍ yaśo'rthaṃ vā kāmārthaṃ

trīṃs tu vatsarān //» Na arte grega as mulheres épicas, principalmente durante o Período Clássico, são representadas em cenas pacatas de trabalhos femininos e o ambiente doméstico, o que marcaria o imaginário da época. Cf. Diana Buitron-Oliver; Beth Cohen, “Between Skylla and Penelope: Female Characters pf the Odyssey in Archaic and Classical Greek Art” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side: Representing the Female in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, p. 38.

738 Veremos ainda que o trabalho manual, em especial ligado a um “tecido”, está bem presente no momento de crise para qualquer uma das mulheres épicas vítimas de rapto.

739 Od. 2.104-110: «éntha kaì ēmatíē mèn hyphaínesken mégan histón, nýktas d᾽allýesken, epeì daḯdas paratheîto.» Para a questão da tecelagem na Antiguidade veja-se: Paul Faure, “Ulysse l'Endurant, ou la Crète du XIIIe siècle av. J.-C.” in Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant J.-C.), Paris, Fayard, 1980, pp. 84-85; “Ulysse l'ingénieux, ou les Crétois en mer Égée” in Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant J.-C.), Paris, Fayard, 1980, p. 114 e ss.

740 ManuS 9.76: «saṃvatsaraṃ pratīkṣeta dviṣantīṃ yoṣitaṃ patiḥ / ūrdhvaṃ saṃvatsarāt tv enāṃ dāyaṃ hṛtvā na saṃvaset //»

112

dito para se casar no momento em que a barba de Telémaco aparecesse741), já que após os dez anos

da guerra de Tróia, Penélope ficará à espera de Ulisses, sem saber se está vivo ou morto, mais dez

anos, no entanto, durante os seis primeiros anos do desaparecimento de Ulisses, ela não é

importunada por pretendentes. Será apenas a partir do sexto ano que Penélope verá a sua casa

invadida de pretendentes durante quatro anos.742 Se analisarmos a ausência de Ulisses de acordo

com a legislação indiana, percebemos que ele desapareceu numa situação de “aquisição de fama”,

i.e., guerra. Após estes seis primeiros anos, Penélope deixa de estar protegida (pela lei?), vendo a

sua casa invadida de pretendentes. O facto de Telémaco não ser ainda um “homem” que se possa

libertar do espaço de Penélope (do espaço feminino) ou decida o destino que esta deve tomar (antes

da viagem que representará a sua passagem à idade adulta), a par do fazer/desfazer da mortalha de

Laertes, permitem a Penélope manter-se protegida durante mais três/quatro anos, sem se casar. O

motivo pelo qual Penélope se encontra protegida pela mortalha de Laertes, o pai de Ulisses,

permite-nos entender que ela estava (ou desejaria estar) protegida por uma figura masculina (neste

caso pelo pai de Ulisses) face à ausência do marido e à imaturidade do filho. No entanto Laertes tem

pouco protagonismo ao longo do épico743 e não parece oferecer muita protecção a quem quer que

seja. Se esta protecção existir, será sem dúvida simbólica. Provavelmente, como bem entendeu

M.M.A. Dias, Penélope pretende apenas vincular-se à linhagem de Ulisses, assumindo-se como

rainha, e até certo ponto, adquirindo o poder de Ítaca para si (tecendo-o?).744 No entanto, Penélope

põe em prática este dolo da tecelagem para se proteger a si mesma, bem como ao oîkos de Ulisses, e

isto é tão importante para o épico que o episódio é narrado três vezes.745 É assim que Penélope

engana durante três anos os pretendentes, fiando uma mortalha para o Laertes, pai de Ulisses, a qual

fiava durante o dia e desfiava durante a noite, até ser descoberta, no início do quarto ano, quando

uma serva revelou aos pretendentes o segredo de Penélope, tendo sido obrigada a terminar a

mortalha contra a sua vontade.746

As vestes, ou mais concretamente os “tecidos” e os “remendos”, parecem relacionar-se com a

ideia de “lança” no imaginário IE, o que permite unir o episódio de Penélope ao conceito de śakti

(“lança”, “poder”), unindo o trabalho da rainha de Ítaca ao daquele que exerce um governador ou

um guerreiro. A partir da raiz IE kéntr/n- “remendo” e “veste remendada” (que está presente no

sânscrito kanthā, “farrapo” e “veste remendada”), estabelece-se uma relação com a raiz kh ent-,

741 Od. 18.269-270.742 Od. 2.105-109.743 Cf. Maria M. Alves Dias, “O que Penélope Dizia quando em Silêncio Tecia”, Cadmo 16, 2006, pp. 222-223.744 Cf. Maria M. Alves Dias, “O que Penélope Dizia quando em Silêncio Tecia”, Cadmo 16, 2006, p. 223.745 Od. 2.94-110; 19.138-156; 24.129-146. Veja-se igualmente: Seth L. Schein, “Female Representations and

Interpreting the Odyssey” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side: Representing the Female in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, p. 22.

746 Od. 2.85-110.

113

“afiado” e “lança”. Também o grego kéntrōn “roupa remendada”, encontra relação com kh ent- (no

grego kentéō: “picada”, “alfinete” e “ponto”).747 O acto de tecer é ainda comparado à construção de

casas (devido ao uso de “estacas”), bem como à colagem de versos,748 o que nos encaminha

novamente para a ideia de “protecção”, como a de uma muralha.749 A tecelagem surge no imaginário

IE tardio como metáfora recorrente ao “movimento rápido” e ao “movimento para a frente e para

trás”,750 o que nos lembra obviamente os avanços e recuos de Penélope (insegurança face ao

regresso de Ulisses e à inevitabilidade do seu casamento?751), expressos nas palavras que Telémaco

dirige a Mentes-Atena:

Por seu lado, ela (Penélope) nem recusa o odioso casamento nem põe termo à situação752

Ou seja, nem se casa nem deixa de se casar. Estes avanços e recuos (ou tecelagem) expressam-se

igualmente na sua acção ao longo do épico, já que Penélope é quem mais trabalha na teia social de

relações entre todos os seus membros, entre o mundo público e o privado,753 ao contrário de Ulisses,

o rei sempre-ausente,754 que trabalha na teia de relações entre o mundo civilizado e incivilizado. O

acto de “tecer” é ainda utilizado em concordância com as ideias de “destino” e de “riqueza”,755

como bem expressam as Meras, e sendo a tecelagem um ofício feminino, subentende, no uso que

faz dela Penélope, a ideia de um “estratagema”, semelhante ao que diz Atena, que tecerá juntamente

com Ulisses, um estratagema para os pretendentes,756 isto é, o seu negro destino. Este fiar e desfiar

no ciclo dia-noite, sugere uma realidade semelhante àquela do fígado de Prometeu, consumido de

747 “Clothing” e “Sharp” in EIEC.748 Cf. “Craft, Craftsman” e “Poetry” in EIEC.749 Compare-se com a construção da muralha pelos Aqueus, para sua protecção e das suas naus, abrindo fora da

muralha uma vala na qual colocaram estacas. (Il. 7.435-441) Esta muralha será depois destruída por Posídon, no final da batalha, para que permaneça apenas a fama das muralhas da cidadela de Tróia, construidas por ele e Apolo. (Il. 7.446-463) Tal como o dolo de Penélope, estas muralhas são uma construção que não durará eternamente, servindo apenas o propósito da protecção momentânea: «Mas quando morreram os melhores dos Troianos e quando muitos dos Argivos ou tinham morrido ou partido, e a cidade de Príamo foi saqueada no décimo ano e os Argivos partiram nas naus para a amada terra pátria, foi então que Posídon e Apolo tomaram a decisão de varrer de lá a muralha, reunindo o caudal dos rios que das montanhas do Ida fluíam para o mar: o Reso e o Heptáporo e o Careso e o Ródio; o Grenico e o Esepo e o divino Escamandro e o Simoente, onde muitos escudos de pele de boi e muitos elmos tinham caído na poeira, assim como a raça de homens semi-divinos.» (Il. 12.13-23)

750 “Insects” in EIEC.751 Cf. Maria M. Alves Dias, “O que Penélope Dizia quando em Silêncio Tecia”, Cadmo 16, 2006, p. 222.752 Od. 1.249-250a: «hē d᾽oút᾽arneîtai stygeròn gámon oúte teleutḕn poiē� sai dýnatai». Compare-se com Od.

16.126-127.753 Cf. Helene P. Foley, “Penelope as Moral Agent” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side: Representing the Female

in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, p. 107; Nuno Simões Rodrigues “A Mulher na Grécia Antiga” in Maria Clara Santos (org.), A Mulher na História: Actas dos colóquios sobre a temática da mulher (1999-2000), Moita, Câmara Municipal da Moita/Departamento de Acção Sócio-Cultural, 2001, p. 86.

754 Cf. Paul Faure, “Introduction” in Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant J.-C.), Paris, Fayard, 1980, p. 10. A primeira vez que Ulisses aparece não está em Ítaca, mas nos Dardanelos, diante de Tróia, e sabemos que também não morrerá em Ítaca. Cf. Paul Faure, “Ulysse ou le Petit Prince. Au royaume d'Idoménée” in Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant J.-C.), Paris, Fayard, 1980, p. 19.

755 “Textile Preparation” in EIEC.756 Od. 13.303; 386. Cf. Sheila Murnaghan, “The Plan of Athena” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side:

Representing the Female in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, p. 64.

114

dia pela águia de Zeus e regenerado de noite, representando um “poder” que é consumido e que se

regenera ciclicamente, expresso factualmente nas fases da lua e na sua influência sobre as marés,

que serviu de metáfora óbvia, como vemos no deus védico da realeza, Soma, da ascensão e queda

de dinastias e soberanias. Este movimento ritmado será importante, como qualquer outro avanço-

recuo utilizado na literatura épica, porque é uma metáfora à não-concretização, semelhante aos

avanços e recuos dos Aqueus durante guerra de Tróia (quando combatiam sem Aquiles), bem como

aos avanços e recuos de Ulisses, impossibilitado de regressar a casa. Os avanços e recuos dos

pretendentes, bem como o surgimento e desaparecimento de Penélope perante eles, representam um

elo que ata e desata as tramas sociais, contudo, pela inexistência de um rei (Ulisses), Penélope

pouco mais faz do que construir para destruir, até ao momento em que ela é “obrigada” a terminar a

mortalha. O término desta mortalha coincide com o ano em que regressa Ulisses e Telémaco, ou

seja, o governante e o seu sucessor, representando a chegada a um ponto crítico e decisivo do épico.

A mortalha para Laertes (rei que passou o seu poder a Ulisses) feita por Penélope (esposa de

Ulisses, mãe de Telémaco e rainha), ganha uma significação de “governo” e “linhagem”, que

Penélope não pode cumprir sozinha, terminando-a por isso no momento certo, quando o rei e o

príncipe herdeiro já se encontram em Ítaca. Tal como na resposta do oráculo de Tebas à teia de

aranha luminosa no templo de Deméter:

a teia tecida é a desgraça para um e a bênção para outro757

Também esta finalização “obrigada” da mortalha representa em última análise a destruição dos

pretendentes e a re-legitimação de Ulisses. Esta “mortalha” poderia estar relacionada com o “poder”

na Antiguidade, como vemos nas palavras de Isócrates:

a realeza é uma mortalha gloriosa758

No sentido em que o rei deverá dar a sua vida por ela, mas também aplicá-la (lançá-la) sobre os

seus inimigos. A “mortalha” transporta igualmente uma significação sombria e a sua presença no

épico está intimamente ligada com o destino final (aqui com carácter nocturno e destruidor) dos

pretendentes, quando Teoclímeno diz:

Ah, desgraçados! Que mal sofreis? A noite encobre as vossas cabeças, os vossos rostos, e até os vossos joelhos por baixo! Ardem os gritos de dor, cheias de lágrimas estão as vossas faces, e manchadas de sangue as paredes e o tecto. O adro repleto de fantasmas; repleto está o pátio; para a escuridão do Érebo se precipitam e o sol desapareceu do céu e tudo cobre a bruma do mal.759

757 Diod. Síc., Biblio. 17.10.3.758 Isócrates, Archidamus 6.44 Isocrates. Isocrates with an English Translation in three volumes, by George Norlin,

Ph.D., LL.D. Cambridge, MA, Harvard University Press; London, William Heinemann Ltd. 1980.759 Od. 20.351-357: «â deiloí, tí kakòn tóde páschete? nyktì mèn hyméōn eilýatai kephalaí te prósōpá te nérthe te

goûna. oimōgḕ dè dédēe, dedákryntai dè pareiaí, haímati d᾽ errádatai toîchoi kalaí te mesódmai: eidṓlōn dè pléon próthyron, pleíē dè kaì aulḗ, hieménōn Érebósde hypò zóphon: ēélios dè ouranoû exapólōle, kakḕ d᾽ epidédromen

115

Telémaco, que até atingir a idade adulta não tem legitimidade para definir um destino para a sua

mãe, regressará da viagem que realizou em busca da “fama” e em busca do seu pai, como um

homem bem inserido no seu mundo masculino e externo, sendo também por este motivo que

Penélope apresentará o concurso do arco de forma aparentemente “apressada” e obrigada.760 É

Atena quem envia Telémaco numa viagem em busca do pai, para que ganhe glória entre os

homens,761 e subentendendo claramente uma “passagem” para a idade adulta, diz-lhe:

Telémaco, de futuro nem cobarde nem vil serás, se na verdade a coragem de teu pai se insuflou em ti.762

Esta viagem, marcando a passagem de Telémaco à idade adulta, revelar-se-á absolutamente

fundamental para o desenlace do épico, já que Telémaco, representando a continuidade dinástica de

Ulisses, regressará homem, depois de sobreviver às provas do mar e dos pretendentes que o tentarão

matar numa cilada durante o seu regresso,763 coincidindo com a chegada do seu pai a Ítaca.

Telémaco irá assim para Pilo e Esparta, numa viagem que parece não servir para mais nada senão

para que ganhe fama, sendo o seu percurso iniciático pelo mar um processo intimamente ligado ao

seu crescimento, que se reflectirá no seu regresso, em que passará a dar ordens à sua mãe, bem

como a participar na batalha ao lado do seu pai, delineando o seu caminho de príncipe e futuro rei

de Ítaca. Telémaco, mais do que o filho que cresce sem pai, é muito provavelmente a imagem

arquetípica do príncipe na Antiguidade, que crescendo no espaço feminino não tinha contacto com o

mundo dos homens, e só depois de ultrapassadas as provas que o iniciavam na masculinidade,

entraria nesse mundo,764 sendo por este motivo que ele cresce sem Ulisses, e só o reencontra no

achlýs.»760 Penélope dirá: «Ártemis, deusa excelsa, filha de Zeus! Quem me dera que agora atirasses uma seta contra o meu

peito; ou então que me arrebatasse uma tempestade e me levasse pelos caminhos cheios de brumas até à foz do Oceano, o rio que flui em sentido contrário. Também as tempestades arrebataram as filhas de Pandáreo.» (Od. 20.61-66) Uma metáfora à situação de Penélope, as filhas de Pandáreo ficaram órfãs no palácio, sendo depois arrebatadas pelas tempestades, tornando-se servas das Fúrias. (Od. 20.67-78) As tempestades serão os pretendentes, a orfandade a “viuvez” de Penélope, e o serviço às Fúrias o sofrimento em casa alheia. A escolha apressada, e aparentemente irracional, com que Penélope organiza o concurso, levam-nos a crer que ela teria a capacidade de reconhecer Ulisses, ou pelo menos, conhecer o desfecho do concurso, já que não é de todo óbvio que mesmo desmascarada a sua artimanha da mortalha, “desistisse” tão facilmente de esperar pelo marido, e isto num momento em que até os sonhos lhe davam a entender que o marido estava vivo e prestes a regressar. A realidade é que também a presença de Ulisses provoca um aceleramento nas acções de Penélope, levando-a a escolher o momento acertado para o concurso do arco, como se se tratasse de uma capacidade extra-sensorial.

761 Od. 1.93-95; 273-305. Atena é a filha perfeita de Zeus e aquela que mais se assemelha a seu pai. Mas ao contrário dos seus irmãos, não ameaça substituí-lo: porque é mulher e porque é virgem (não gera linhagem). Será por este motivo que a deusa mistura em si traços femininos e masculinos. (Sheila Murnaghan, “The Plan of Athena” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side: Representing the Female in Homer's Odyssey, Nova Iorque, Oxford University Press, 1995, p. 62) Tem na batalha um papel mais importante do que Afrodite (que o tenta mas é ferida), e é ela quem permite a Ulisses regressar à sua esposa. Neste sentido Atena é também “reconciliação” entre os dois sexos, simbolica que se repete no seu caracter harmonizador: a vitória da civilização sobre a barbárie, que expressa na figura de Atena Níkē.

762 Od. 2.270-271: «Tēlémach᾽, oud᾽ópithen kakòs ésseai oud᾽anoḗmōn, ei dḗ toi soû patròs enéstaktai ménos ēý»763 Od. 4.663-672.764 Para a questão veja-se: Mary Ebbott, “Where the Girls Are: Parthenioi and Skotioi” in Imagining Illegitimacy in

Classical Greek Literature, Oxford, Lexington Books, 2003, pp. 28-29

116

momento em que sobreviveu às provas. Note-se ainda que será Helena a reconhecer Telémaco,765

neste episódio comparada a Ártemis766 (aquela que habita nas terras estrangeiras/selvagens), e tendo

em conta que é Helena quem dá, através do casamento, a legitimidade de “rei” a Menelau (isto

porque era mais novo que o seu irmão Agamémnon, não podendo por isso tornar-se rei), e sendo ela

a reconhecedora de “heróis” por excelência (quer na teichoskopía,767 quer nos episódios em que

Ulisses entra disfarçado na cidadela de Tróia,768 e os Aqueus se encontram escondidos dentro do

cavalo de madeira,769) podemos subentender que Telémaco precisa de fazer a viagem a fim de ser

“reconhecido” como filho de Ulisses por Helena, i.e., ser exteriormente reconhecido como príncipe

herdeiro de Ítaca. Esta legitimação ou śakti (“poder”, “lança”) na figura da esposa, Helena, está

subentendido no momento em que se diz do seu marido:

Menelau, famoso pela sua lança770

Penélope torna-se assim comparável a Helena, no reconhecimento de Ulisses aquando do teste

do leito nupcial, o que nos permite entender que neste imaginário épico Helena e Penélope não

seriam claramente colocadas em oposição, representando o mesmo “reconhecimento” do qual o rei

necessita. É ainda neste momento do teste de Ulisses que a Odisseia mais glorifica Helena,

deixando a dúvida sobre a culpa real da Argiva na guerra de Tróia, como constatou Seth L.

Schein.771 Na arte clássica parece haver um contraste entre Helena e Penélope enquanto “esposas”,

comparando-se com frequência as suas decisões nos épicos, uma acertada e outra errada, no entanto

este contraste é fisicamente inexistente, já que as duas são representadas em posição sentada, com

vestes semelhantes, com um braço a suster a cabeça e o outro a envolver o corpo.772

A figura de Telémaco, enquanto “filho” e “príncipe” em Ítaca merece algumas considerações e

comparações. Na Odisseia o filho representará um caminho importante entre o reino do pai e a sua

continuidade, isto porque Ulisses “viaja” para manter e proteger a honra dos Gregos. Telémaco por

sua vez viaja para ganhar essa honra que “protegerá” a honra de seu pai. O mesmo parece acontecer

com Agamémnon e Orestes, sempre com a figura feminina (a esposa e a mãe) localizada num

centro. O caso de Ulisses e de Agamémnon é muito semelhante neste sentido, porque: “abandonam”

765 Od. 4.140 e ss.766 Od. 4.122.767 Il 3.161-244.768 Od. 4.244-251.769 Od. 4.68-75.770 Od. 15.52b: «dourikleitòs Menélaos» 771 Seth L. Schein, “Female Representations and Interpreting the Odyssey” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side:

Representing the Female in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, p. 26. O facto de Helena reconhecer Telémaco e contar a história de Ulisses em Tróia, bem como Penélope reconhecer Ulisses e mencionar Helena, poderá representar a “união” entre famílias protagonizada pelas mulheres nesta sociedade homérica.

772 Diana Buitron-Oliver; Beth Cohen, “Between Skylla and Penelope: Female Characters of the Odyssey in Archaic and Classical Greek Art” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side: Representing the Female in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, p. 47.

117

a esposa devido à guerra quando o filho é ainda pequeno; e regressarão num momento em que o

filho se torna ele mesmo homem através de uma demonstração de força e de vingança (que até

então não tinham tido legitimidade para cumprir).773

Desta forma, o movimento entre o Homem e a Mulher será o próprio Filho, comparando-se de

certa forma ao tear de Penélope, que se aproxima e afasta de Ulisses, bem como à infidelidade de

Clitemnestra, que se aproxima e afasta do marido na medida em que permite a presença de Egisto

na sua casa e na sua cama. O facto de Telémaco abandonar a sua mãe, bem como Ítaca, e regressar

como “homem” no momento em que Ulisses se prepara para entrar no palácio, dá-lhe um carácter

de protecção que Orestes não pôde dar ao seu pai. Todo este movimento de Telémaco no épico é

uma construção do herói, ou se preferirmos do homem, que está presente igualmente em Aquiles:

caminhando para trás e para a frente, mas sem combater.774

Contudo, o trágico final de Agamémnon não terá que ver apenas com o seu filho, mas sim com

os erros cometidos em Tróia, já que ele prefere Criseida (relação com a qual Crises, pai da rapariga,

não concorda) a Clitemnestra, sua esposa legítima. Com isto, e após Crises se dirigir a Apolo

pedindo vingança, o exército aqueu foi fustigado pelas flechas do deus durante nove dias,775 e será o

adivinho Calcas, quem no décimo dia explica o motivo da ira de Apolo, a não-libertação de

Criseida.776 E Agamémnon dirá:

pela donzela Criseida eu não quis aceitar o glorioso resgate, visto que decidi em vez disso ficar com ela em minha casa. Prefiro-a a Clitemnestra, minha esposa legítima, pois em nada lhe é inferior, nem de corpo, nem de estatura, nem na inteligência, nem nos lavores. Mas apesar disso restituí-la-ei, se for isso a coisa melhor. (…) Mas preparai para mim outro prémio, para que não seja só eu entre os Argivos que fico sem prémio, pois tal seria indecoroso.777

Isto faz com que Agamémnon envie Criseida ao seu pai, mas que roube a Aquiles Briseida, que

lhe havia calhado em prémio.778 Aquiles só voltará a combater depois de receber Briseida de

Agamémnon, em quem o rei nunca tocou.779 O que poderá subentender que Aquiles necessita de

Briseida para combater, ainda que seja devido à morte de Pátroclo que ele regressa ao combate,

alterando completamente o rumo da batalha.780

Os filhos têm uma grande importância para os kṣatriyas, que está bem presente nos épicos, como 773 Durante a guerra Agamémnon dirá aos companheiros: «As nossas esposas e os nossos filhos pequenos estão

sentados nos palácios à nossa espera.» Il. 2.136-137.774 Il. 2.779: «phoítōn éntha kaì éntha katà stratòn oudè máchonto.»775 Il. 1.50 e ss.776 Il. 1.93-10.777 Il. 1.111-119: «hoúnek᾽egṑ koúrēs Chrysēḯdos aglá᾽ápoina ouk éthelon déxasthai, epeì polỳ boúlomai autḕn

oíkoi échein: kaì gár rha Klytaimnḗstrēs probéboula kouridíēs alóchou, epeì oú hethén esti chereíōn, ou démas oudè phyḗn, oút᾽àr phrénas oúté ti érga. allà kaì hō� s ethélō dómenai pálin ei tó g᾽ámeinon: (…) autàr emoì géras autích᾽hetoimásat᾽óphra mḕ oîos Argeíōn agérastos éō, epeì oudè éoike.»

778 Il. 1.182-186; 308-350.779 Il. 19.258-263.780 Cf . Il. 20.42 e ss.

118

no MBh em que se diz que não existe nada melhor do que um filho,781 e que:

uma esposa é chamada de “esposa” (jāyā), porque nela ele (o marido) nasce de novo.782

No momento em que Telémaco se prepara para embarcar, Atena derrama o sono sobre os

pretendentes,783 e a partida de Telémaco é feita durante a noite, na obscuridade pública, em segredo,

pois não é publicitada,784 e embora ele regresse a Ítaca na mesma obscuridade, a verdade é que

chega com o nascimento da aurora,785 o que poderá representar metaforicamente a sua passagem da

“escuridão” da infância e do espaço feminino, para a “luminosidade” do espaço masculino e da

idade adulta. Representando a partida e a chegada desta viagem, entre a noite e o dia, a ideia de um

intervalo entre o que se passou até então em Ítaca, e aquilo que virá a suceder de forma violenta a

partir deste momento. Esta ideia de “intervalo”, ou seja, de uma mudança brusca, está latente no

décimo ano da Odisseia, no momento em que Penélope tem de terminar contra a sua vontade a

mortalha de Laertes no início do quarto ano,786 naquele em que Telémaco (sem um motivo ou

objectivo literário aparente!) espirra,787 e a chegada de Ulisses entre o quarto minguante e a lua

nova,788 estes dois últimos episódios, aliados ao da mortalha, parecem não ter outro objectivo senão

o de prever uma súbita e violenta mudança em Ítaca. Porém, toda esta precipitação, a chegada de

Ulisses, Telémaco e o anúncio do concurso do arco, levar-nos-á a supor que Penélope sabia estar na

presença de Ulisses, porque da mesma forma com que Sītā reconhece Hanumān como mensageiro

de Rāma, através de um anel, também Penélope acreditará no Ulisses-pedinte quando este descreve

a pregadeira que Ulisses teria usado no seu caminho para Tróia,789 no entanto, será a obtenção da

maturidade por Telémaco que dá a oportunidade (ou obrigação) a Penélope de propor um concurso

do qual sairá vencedor o seu futuro esposo, concurso este que consistia na armação do arco e no tiro

da flecha por entre doze machados, como fazia em tempos Ulisses.790 A dificuldade presente na

armação do arco, quer na Grécia quer na Índia, poderá de certa forma ser explicada pela designação

sânscrita dharma-, que significa “dever”, “moral”, “lei”, “marca” e “arco”,791 significações que

estão estritamente relacionadas com o rei, dando a entender que o concurso do arco, serve em última

instância para reconhecer um “rei” e não apenas um marido. Ulisses entrará na cidade disfarçado de

781 MBh 3.10.5.782 Aitareya Brāhmaṇa 7.13, o que deve ser entendido como: “ele renasce através do filho que ela lhe dá”. Cf.

Kevin McGrath, Strī: Women in Mahābhārata, Boston, Ilex Foundation, 2009, pp. 33-34.783 Od. 2.394-398.784 Od. 2.388-389.785 Od. 15.495 e ss.786 Od. 2.110.787 Od. 17.541-543.788 Od. 19.307.789 Od. 19.225-231 e ss.790 Od. 19.571-581.791 Cf. “dharma” in DSF.

119

mendigo, através do artifício de Atena,792 e seguirá primeiro ao encontro do porqueiro Eumeu, por

quem será muito bem recebido como viajante.793 É aqui que o seu filho virá ter após a sua viagem e

onde os dois se reconhecerão. Ulisses ocupa durante toda a Odisseia o papel de “estrangeiro”, quer

seja durante as suas deambulações marítimas, aportando a novas terras e ao Hades, e em particular

quando se identifica perante Polifemo como oûtis “ninguém”,794 ou em Ítaca, sendo assim chamado

por Atena,795 mantendo-se no anonimato ou na ilegitimidade. Este carácter socialmente “obscuro” e

“escondido”, poderá subentender Ulisses como uma figura de acção sombria, i.e., que invoca a

morte, neste caso, aquele que traz a morte aos pretendentes. Esta ideia está bem presente no MBh,

em que Draupadī e Kṛṣṇa são descritos como “sombrios”, porque são aqueles que trazem a morte

aos inimigos, bem como o fim da Era.796 A cor “negra”, ou “sombria”, está relacionada com a

“noite” e o fim do dia, com “fantasma”, “sombra” e de forma generalizada com os lugares

sombrios, bem como com aquilo que está “escondido”, “ocultado” e “disfarçado”.797 As designações

IE para “estrangeiro” derivam da raiz “dar” (haei- e deh3-), e também, conforme notou Benveniste,

de “tirar” (da raiz nem-), que se desenvolve no grego némō “distribuir” e em xénos “estrangeiro”.

Esta relação de “dar-receber”, poderá representar em termos sociais as relações senhor-cliente, em

todos os seus sentidos.798 Podendo ser relacionada com o comércio, mais do que com a invariável

questão da hospitalidade no Mundo Antigo. Contudo, um “hóspede” pode rapidamente transformar-

se num “inimigo”, representativo deste exemplo será sem dúvida Páris.799

Da mesma forma com que um cão (o deus Dharma transformado) acompanha Yudhiṣṭhira no

livro XVII do MBh até ao topo dos Himalaias, onde este será guiado por Indra até ao céu, ficando o

cão aqui pelo facto de não poder entrar no céu, também o cão de Ulisses recebe com entusiasmo o

seu dono quando este regressa a casa, morrendo nesse momento devido à sua velhice.800 O cão

chama-se Argos, estando relacionado com a “vigilância”, que é atestado pela sua significação de

“brilhante”, e se quisermos, “visível”, o que se assemelha de certa forma à ideia de Dharma

792 Od. 13.430-440.793 Od. 13.226 e ss.794 Od. 9.366.795 Od. 13.237; 248.796 Para a questão no MBh veja-se o comentário ao nascimento de Draupadī: Madeleine Biardeau, Le

Mahābhārata: Un récit fondateur du brahmanisme et son interprétation, vol. I, Paris, Éditions du Seuil, 2002, p. 276 e ss.

797 Cf. “Night”, “Shadow”e “Cover” in EIEC.798 “Give” in EIEC. 799 A passagem de “convidado” (IE ghostis), a “estrangeiro” e a “inimigo”, está presente no desenvolvimento da

aplicação do termo em latim (hostis “inimigo” e “estrangeiro”, e hospes “convidado”, também relativo à relação de “troca”) mais do que em qualquer outra realidade IE. Cf. “Guest” in EIEC. A relação entre o “comércio” e o “estrangeiro” torna-se ainda mais clara no caso da civilização de Harappa, a cuja região os Acádios (que faziam comércio com ela) haviam dado o nome de Meluḫḫa, que tem sido comparado a mleccha, uma expressão védica para “bárbaro” e “estrangeiro”. Cf. “Harappan Culture” in EIEC.

800 Od. 17.291-327.

120

enquanto acto legítimo, correcto, etc.801 Argos, que reconhece o seu dono ao fim de vinte anos, é a

protecção necessária durante a ausência de Ulisses, sendo provavelmente por este motivo que ele

morre no momento que Ulisses regressa, deixando de ser necessário, por outro lado, representará

essa mesma falta de “segurança” e “lealdade” que Ulisses encontrará em Ítaca. Vemos que mesmo

após Ulisses legitimar a sua identidade através do concurso do arco e da chacina dos pretendentes, a

própria Penélope continua a colocá-lo à prova. Quando novas cracias (domínios ou poderes), bem

como os súbditos do governante rodeiam o poder instituído pretendendo tomá-lo pela força, tudo o

que resta é a “esposa” (esse poder central) que guarda o local, ela própria protegida pelo governante

(Ulisses) que permite manter-se no poder quando unido à (honrando a?) sua ascendência (Laertes) e

descendência (Telémaco), já que cada um por si não possui a força necessária para o fazer. Ulisses,

representando de certa forma o herói grego que regressa a casa depois da guerra de Tróia, Telémaco

o filho dos heróis que combateram e pereceram em batalha contra a alteridade, e Laertes o herói que

já não teve lugar nesta guerra, representarão a organização régia grega que se “protege” contra os

abusos das possíveis novas “classes” ou interesses que agora se levantam contra o poder instituído.

A mesma ideia poderá estar presente em Agamémnon, que terá um fim bem menos honrado do que

o de Ulisses, no entanto, a sua linhagem é mantida e honrada pelo seu filho Orestes. Estes novos

poderes reger-se-iam provavelmente pela tirania, já que Telémaco se dirige a eles dizendo:

pretendentes de minha mãe, homens de força e violência802

A mesma ideia, aliada de um sentimento negativo face à era que se vivia, está presente nas

palavras que Mentor dirige aos pretendentes:

Doravante não seja manso e bondoso de sua vontade nenhum rei detentor de ceptro, nem pense coisas justas, mas seja áspero e pratique actos de maldade, visto que ninguém se lembra do divino Ulisses entre o povo que ele regia, bondoso como um pai. Não levo a mal aos orgulhosos pretendentes o facto de praticarem a violência na má vontade da sua mente. (…) É o resto do povo que censuro, o modo como todos vos sentais em silêncio, evitando abordá-los com discursos que os refreassem, sendo vós muitos, e eles poucos803

Ulisses distancia-se assim dos pretendentes, não agindo pela força ou arrogância, mas

caminhando como um mendigo. Tanto no casamento de Penélope como no de Draupadī, aquele que

sairá vitorioso do casamento é um “estrangeiro” e um “pedinte” que não se enquadra no estatuto de

801 Existem na Odisseia várias referências a cães representativos da “vigilância”, os cães de Circe (Od. 10.212-219), os cães de Eumeu, que ladram a Ulisses (Od. 14.29-36), que recebem bem Telémaco (Od. 16.4-5) e que gemem com a visão de Atena (Od. 16.162-163). Tudo isto se resolve no cão de Ulisses, Argos (Od. 17.291-327), que representa a parte leal a Ulisses dentro do oîkos. Cf. NCO, p. 177.

802 Od. 1.368: «mētròs emē� s mnēstē� res hypérbion hýbrin échontes» 803 Od. 2.230-236; 239-241: «mḗ tis éti próphrōn aganòs kaì ḗpios éstō skēptoûchos basileús, mēdè phresìn aísima

eidṓs, all᾽aieì chalepós t᾽eíē kaì aísyla rhézoi: hōs oú tis mémnētai Odyssē� os theíoio laō� n hoîsin ánasse, patḕr d᾽hṑs ḗpios ē� en. All᾽ē� toi mnēstē� ras agḗnoras oú ti megaírō érdein érga bíaia kakorraphíēisi nóoio (…) nŷn d᾽állōi dḗmōi nemesízomai, hoîon hápantes hē� sth᾽áneōi, atàr oú ti kathaptómenoi epéessi paúrous mnēstē� ras katapaúete polloì eóntes.» Os vv. 230-234 serão repetidos pela voz de Zeus em: Od. 5.8-12.

121

guerreiro nem de pretendente, situação que em ambas as obras revoltará os pretendentes.804 O facto

de tanto Ulisses como os Pāṇḍavas andarem a pedir “esmola” no momento que precede o

casamento, foi definitivamente bem entendido por Jamison. Quando Arjuna e Bhīma apresentam

Draupadī à sua mãe como “esmola”, ela decretará que dividam a “esmola” entre os cinco,805

Jamison, interpreta este acto como uma metáfora da “recepção” e “doação” da mão da esposa como

tópico central das problemáticas IE sobre o casamento, assente num sistema de “troca”, como no

caso de Arjuna em que ele ganha a esposa para a partilhar com os seus quatro irmãos. O acto de

pedir algo será vergonhoso para um kṣatriya, já que este deve preferir dar do que receber, neste

sentido, Arjuna e Ulisses são resguardados da posição vergonhosa de guerreiros “pedintes”, que é a

dos pretendentes, porque Arjuna e Ulisses são aqueles que pedem devido à sua “profissão” de

pedintes (devido à vontade dos deuses), e não aqueles que se sujeitam a essa posição devido ao

desejo de ganhar uma esposa, o que lhes dá alguma imunidade e os distancia dos pretendentes,

ganhando a esposa de uma forma à qual poderíamos chamar “acidental”.806 No entanto,

representando eles mesmos o acto de pedir a mão da esposa, fazem-no de forma passiva e obscura,

ou seja, não se incluem entre aqueles que disputarão a noiva, porque de forma aparente não são

guerreiros nem têm a força suficiente para o concurso, logo, só mostrarão a sua verdadeira natureza

no momento da prova, e não durante o tempo de espera ou cerimónia. Vimos que também durante o

rapto, o herói não se inclui entre os pretendentes, pelo contrário, age apenas no momento de mostrar

a sua força, daqui podemos concluir que a posição de pretendente (aliada dos sentimentos de

arrogância, vaidade e esperança) seria de certa forma imprópria para um herói. Algo que deverá ser

igualmente compreendido, é o facto de Ulisses também ter entrado em Tróia disfarçado de

“pedinte”,807 sendo esta a única forma de entrar na cidadela, incluindo matar Troianos que não o

reconheceram, da mesma forma com que Arjuna, Bhīma e Kṛṣṇa entrarão em Girivraja e matarão

Jarāsandha, disfarçados de pedintes.808 Esta morte é essencial para que Yudhiṣṭhira reine

“universalmente”, da mesma forma que a entrada na cidadela de Tróia o é para a sua conquista,

representando ainda a tomada do “poder”, a partir do momento em que ele rouba o paládio de

Atena, da qual Tróia depende para se manter segura.809

Depois do tiro com o arco, em que Ulisses se revela, haverá uma batalha com lanças que

demonstra claramente a superioridade de Ulisses, já que as suas lanças atingem mais vezes o alvo

804 Od. 21.323-329; MBh 1.180.5-6; Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, p. 253.

805 MBh 1.193.1-2.806 Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, p. 257-258.807 Od. 4.244-249.808 MBh 2.20.22 e ss.809 Cf. A Pequena Ilíada, Arg. 4, in GEF, p. 123.

122

do que as dos pretendentes.810 Tendo em conta o que vimos sobre a importância metafórica da lança,

podemos afirmar que estamos perante um confronto de forças e poderes, em que o lado de Ulisses,

ainda que inferior em número, se revela mais eficaz. As lanças no mundo homérico são igualmente

utilizadas de forma cerimonial, quando os homens saem dos seus aposentos,811 tendo um claro

sentido de “legitimidade”. Por exemplo, quando Telémaco abandona o palácio de Menelau, não é

referida nenhuma lança,812 e subentendemos que ele não portava nenhuma, ao contrário do que

acontece em Ítaca, o que reflecte a “ilegitimidade” de Telémaco fora do seu espaço, no entanto,

quando Telémaco está prestes a regressar a Ítaca, recebe a lança de Teoclimo e coloca-a no seu

barco, recebendo-o igualmente como convidado,813 o que não deixa de ser simbólico, já que é

comum ao senhor do oîkos, na recepção de um hóspede, receber a sua lança.814 Também o resultado

do “murro” de Ulisses815 é descrito de forma semelhante àquele das feridas mortais provocadas

pelas lanças na Ilíada.816 O nome de Ulisses por sua vez, Odysseús (“terrível”817), como Bhīma no

MBh, é um epíteto semelhante àqueles que recebe uma lança ou uma flecha homérica, encontrando

relação tanto com “ódio” como com “estrangeiro”, derivando directamente da raíz IE h3ed- “ódio”,

e kh ehades- “inquietação” e “medo”, no grego kē� dos, “cuidado” e “inquietação”, e no sânscrito ri-

śādas, “cuidar de um estrangeiro”.818 A própria designação grega para “rei” ánax (do IE u̯elbh- (“útero”, “ventre”) e b (ṇ)nátks),

presente na designação dos Dioscuros, chamados ánakes, tem relação com o sânscrito rakṣas-,

“injúria”, “demónio” e “protecção”. Podendo ainda ter relação com a ideia de “outro”, a raiz IE

h1ónteros gera em sânscrito ana- “isto”, “aquilo”, anya- “outro”, sempre relativo à ideia de “duplo”,

e do IE haélḭos, “outro” como no grego állos, “outro”, e no sânscrito ari- “estrangeiro” e arya-

“senhor hospitaleiro”.819 Se a ideia de ódio remete Ulisses para a prática bélica, a ideia de “outro”

remete-nos para o seu disfarce na chegada a Ítaca, levando-nos a concluir que a sua origem IE se

810 Os pretendentes atiram as suas lanças mas todas elas falham, batendo nas paredes e nas portas, (Od. 22.255-259) por sua vez, Ulisses, auxiliado por Atena, e os seus três companheiros (Telémaco, Eumeu e Filoteu) atiram as quatro lanças que atingem o alvo (Od. 22.265-271), de seguida os pretendentes voltam a arremessar as suas lanças, algumas delas falham outras acertam no alvo (Od. 22.272-280), Ulisses e os seus homens arremessam novamente as lanças e todas acertam no alvo (Od. 22.281-292) etc. A guarda pessoal do rei na Índia deve ser composta por lanceiros (ArthaŚ 1.21.1). Cf. Susheel K. Sharma; Vinod K. Singh, "Indian Idea of Kingship", The Indian Journal of Political Science, 71, 2, 2010, p. 390, o que pode explicar o facto dos quatro utilizarem lanças.

811 Od. 2.10; 20.127.812 Od. 15.60-62.813 Od. 15.222-283.814 A sequência é a seguinte: O hospede aguarda à porta; é visto pelo anfitrião, que se levantou do seu assento e foi

na sua direcção; este cumprimenta-o e recebe a sua lança; dá-lhe as boas vindas; convida-o a entrar e guarda a sua lança; e oferece-lhe um lugar para se sentar. Cf. Irene de Jong, A narratologial Commentary on the Odyssey, Cambridge, Cambridge University Press, 20042, p. 20.

815 Od. 18.96-99.816 Il. 5.291-6, 305-310; 16.345-350.817 Cf. “Ὀδυσσεύς” in DELG.818 “Hate” in EIEC. Paul Faure apresenta quatro etimologias para Ulisses: o ódio dos deuses, o queixume do

sofrimento, o infortúnio e a desgraça. Cf. “Ulysse ou le Petit Prince. Au royaume d'Idoménée” in Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant J.-C.), Paris, Fayard, 1980, p. 32.

819 “Hate”, “King” e “Other” in EIEC.

123

relacionará com alguém (um rei) que veio de fora (do estrangeiro) provocando a guerra em

determinado local, ou alguém que saiu para o estrangeiro para fazer guerra, sendo as duas teorias

facilmente reconhecíveis em Ulisses.

A importância de Telémaco para o concurso revela-se igualmente no facto de ser ele, o membro

mais novo da família, a anunciar aos pretendentes o concurso e o seu prémio.820 Esta situação

encontra paralelo com o svayaṃvara de Draupadī, onde o seu irmão, Dṛṣṭadyumna, anuncia o

concurso aos pretendentes.821 Este concurso coloca-nos não apenas perante um acto de força, mas

também de habilidade, que encontramos repetido nos casamentos de outras mulheres épicas. E tal

como nos seus paralelos indo-europeus, também aqui nenhum dos pretendentes consegue armar o

arco, até que Ulisses disfarçado se aproxima e com toda a calma, arma o arco:

após ter levantado o grande arco e de o ter examinado, tal como um homem conhecedor da lira e do canto822

E dispara a flecha pelos doze orifícios dos machados.823 Da mesma forma que o acto de abrir um

sulco a direito é símbolo do bom governo (um governo harmonioso), também o tiro do arco e o seu

caminho recto (bem como a comparação com a lira e o canto) estarão certamente relacionados com

a política e o recto ofício do governante, daí esta ser uma acção que requer força e destreza.824 O

tipo de prova apresentada neste concurso permite a Penélope escolher um marido que seja no

mínimo semelhante em força e destreza ao seu marido legítimo, Ulisses. No entanto, como não

existia ninguém semelhante a Ulisses, podemos supor que Penélope nunca cedeu face aos desejos

dos pretendentes, pelo contrário, apontou-lhes um limite ao qual nenhum deles, à exceção do seu

marido, poderia chegar, ao mesmo tempo que dá uma oportunidade gloriosa a Ulisses de se revelar

em Ítaca, através de um acto de força que revela a sua supremacia sobre os pretendentes, qualidade

aliás requerida várias vezes para aquele que ganharia a mão de Penélope.825

Penélope, por sua vez, possui a mesma inteligência ou ardil de Ulisses, comprovada no episódio

em que pede a Euricleia para lhe preparar a cama (léchos) fora do leito nupcial.826 Ao que Ulisses

lhe responde, comprovando a sua identidade:

Mulher, na verdade disseste uma palavra dolorosa! Quem é que mudou o lugar da minha cama? Difícil seria até

820 Od. 21.106-117. É também Telémaco que descreve ao seu pai o catálogo de pretendentes, que perfazem um total de cento e dezoito. Cf. Od. 16.245-257.

821 MBh 1.186.34-36. Comparação já analisada por Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, p. 251.

822 Od. 21.405-406: «autík᾽epeì méga tóxon ebástase kaì íde pántē, hōs hót᾽anḕr phórmingos epistámenos kaì aoidē� s»

823 Od. 21.404-423.824 Para a descrição deste arco veja-se: Od. 21.11–41; bem como Irene de Jong, A narratologial Commentary on the

Odyssey, Cambridge, Cambridge University Press, 20042, pp. 506-508.825 Od. 2.87-105; 4.770 e ss.; 18.285-289; 19.524-529; 20.341 e ss.; “King and Hero” in IEPM, p. 434.826 Od. 23.176-180; Seth L. Schein, “Female Representations and Interpreting the Odyssey” in Beth Cohen (ed.),

The Distaff Side: Representing the Female in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, p. 22.

124

para quem tivesse grande perícia, a não ser que tenha vindo um deus, que facilmente a colocou noutro lugar. Mas não há homem vivo entre os mortais, ainda que jovem, que fosse capaz de tirar de lá a cama, pois um sinal notável foi incorporado na cama trabalhada que eu (e mais ninguém!) fiz. Dentro do pátio crescia uma oliveira verdejante, forte e vigorosa, cujo tronco se assemelhava a uma coluna (pilar). Em torno dela construí o quarto nupcial, até que o completei com pedras bem justas e por cima pus um telhado. Acrescentei depois portas duplas, bem ajustadas. Em seguida desbastei a folhagem da oliveira verdejante; acertei o tronco desde a raiz e alisei-o, utilizando a enxó com grande perícia, endireitando-o por meio de um fio. Foi assim que fiz a cabeceira. Depois tudo perfurei com trados. Tendo assim começado, passei ao relevo artístico, adornando a cama com ouro, prata e marfim. Pendurei ainda uma correia de cabedal, brilhante de púrpura. 827

A cama de Ulisses, toda ela recorrendo a símbolos régios, parece ser a representação do centro

do poder do oîkos que só ele pode conhecer e através do qual é reconhecido, é o local onde Ulisses e

o poder do seu oîkos (Penélope) se unem e reúnem. A característica mais distintiva desta cama é a

sua imobilidade, parecendo ter sido colocada naquele local para durar toda uma eternidade. O facto

de portar uma “marca” ou “sinal”, bem como essa marca ser uma oliveira (árvore de Atena)

semelhante a um pilar, pode revelar com alguma facilidade um “centro” do poder que é legitimado

pelos deuses, neste caso Atena, a grande protectora de Ulisses, centro a partir do qual tudo procede.

O alisar do tronco através de uma enxó, não deixa de ser semelhante ao acto de abrir um sulco a

direito, protagonizado por Janaka, estando relacionado com a “recta acção” do rei. Esta cama, estará

no centro de vários círculos que obedecem à topografia social da habitação,828 e aos vários círculos

sociais que se organizam em seu redor. Tendo sido este quarto e esta cama construídos por altura do

casamento entre Ulisses e Penélope, representarão a fixação de um centro simbólico de poder no

momento em que o rei se une (no ritual do leito) ao seu poder/esposa, uma relação que se quer

igualmente inamovível, como é o casamento. Perante a hipótese da movimentação/destruição da

cama, somos levados a crer que isto representa a infidelidade de Penélope,829 assim, esta cama, ou o

centro do poder do oîkos, dependem tanto de Penélope quanto de Ulisses, já que é Penélope que

protege a cama, bem como a fidelidade ao seu marido, ao construtor da cama. A mudança de local,

mais do que representativa de uma infidelidade, representa uma mudança deste centro para outro

local, ou seja, o poder do oîkos de Ulisses que é assumido na sua periferia ou noutro oîkos, através

de um acto de força de um grupo de homens ou de um deus.830 Vemos que ao contrário do que faz

827 Od. XXIII, 183-201: «ō� gýnai, ē� mála toûto épos thymalgès éeipes: tís dé moi állose thē� ke léchos? chalepòn dé ken eíē kaì mál᾽epistaménōi, hóte mḕ theòs autòs epelthṑn rhēïdíōs ethélōn theíē állēi enì chṓrēi. Andrō� n d᾽oú kén tis zōòs brotós, oudè mál᾽hēbō� n, rheîa metochlísseien, epeì méga sēE ma tétyktai en léchei askētō� i: tò d᾽egṑ kámon oudé tis állos. thámnos éphy tanýphyllos elaíēs hérkeos entós, akmēnòs thaléthōn: páchetos d᾽ē� n ēÿ%te kíōn. tō� i d᾽egṑ amphibalṑn thálamon démon, óphr᾽etélessa, pyknē� isin lithádessi, kaì eû kathýperthen érepsa, kollētàs d᾽epéthēka thýras, pykinō� s araryías. kaì tót᾽épeit᾽apékopsa kómēn tanyphýllou elaíēs, kormòn d᾽ek rhízēs protamṑn amphéxesa chalkō� i eû kaì epistaménōs, kaì epì státhmēn íthyna, hermîn᾽askḗsas, tétrēna dè pánta terétrōi. ek dè toû archómenos léchos éxeon, óphr᾽etélessa, daidállōn chrysō� i te kaì argýrōi ēd᾽eléphanti: ek d᾽etányssa himánta boòs phoíniki phaeinón.» Para a questão veja-se: Paul Faure, “Ulysse l'ingénieux, ou les Crétois en mer Égée” Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant J.-C.), Paris, Fayard, 1980, pp. 127-128.

828 Froma I. Zeitlin, “Figuring Fidelity in Homer's Odyssey” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side: Representing the Female in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, p. 119.

829 Froma I. Zeitlin, “Figuring Fidelity in Homer's Odyssey” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side: Representing the Female in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, p. 121-122.

830 Od. XXIII, 184 e ss.

125

Afrodite,831 Pénelope honra a cama de Ulisses, protegendo-a.832 Este carácter central da cama, é

compreensível a partir do momento em que a entendemos enquanto local de onde tudo se gera, já

que é aqui que naturalmente Ulisses deverá acordar todos os dias, bem como, gerar os seus filhos (a

continuidade de Ulisses). É interessante notar que a concepção de “cama” no mundo IE e PIE está

relacionada com as ideia de “deitar-se” e “espalhar” (a partir de um centro?), do IE léghes- gera-se o

grego léchos, que tanto significa “cama” como “esquife”, da mesma forma que lóchos “cama” e

“emboscada”, léktron “cama” e “leito nupcial”, e álochos “esposa”.833 O que nos permite entender o

significado da cama no imaginário dos Antigos como o local do corpo que dorme, do corpo que se

une à esposa, e onde repousa na morte (antes de ser enterrado ou cremado), ao mesmo tempo que

representa a própria esposa, assim, podemos dizer que Ulisses mais do que aquele que reconhece a

cama, é aquele que reconhece a esposa (e que é reconhecido por ela!). Existe igualmente no IE

l(o)iseha- uma relação entre “sulco”, “terreno” e “cama”,834 o que para além de nos recordar do

nascimento de Sītā, imprime à cama o merecido carácter de lugar da “fertilidade”, o lugar da

esposa. A partir do momento em que Ulisses reconhece a cama (ou Penélope) gera-se todo um ritual

matrimonial, começando com Penélope que atira os braços à volta do pescoço de Ulisses,835 acção

curiosamente semelhante, como bem notou Jamison,836 à escolha do marido que a mulher faz no

svayaṃvara, como fazem por exemplo Draupadī837 e Sūryā838, colocando uma coroa de flores à

volta do pescoço do noivo, já para não mencionar o facto de estar igualmente rodeada de

pretendentes.839

Rompendo em lágrimas, correu para o marido: em torno do seu pescoço atirou os braços (as “mãos”) e beijou-lhe a cabeça (…) Mas agora não te encolerizes nem te enfureças contra mim porque, ao princípio, quando te vi, não te abracei logo. (…) Abraçando-lhe o pescoço, não desprendeu os alvos braços.840

Este acção marcará certamente a “escolha” que a noiva faz do homem que deseja ter por marido.

E a escolha é feita com base na marca (de realeza?) de Ulisses, quando Penélope diz:

Mas agora que já enumeraste com clareza os sinais (marcas) da nossa cama, que nunca nenhum mortal viu, além de ti e de mim e de uma só criada (…) agora convenceste o meu coração, antes tão incrédulo.841

831 Od. 8.269. Quando Hefesto aprisiona Afrodite e Ares na sua cama, não está a fazer mais do que a mantê-los unidos, sem hipótese de escapar, e mais do que uma prova do “crime” para mostrar aos outros deuses, esta acção tem um carácter especial de unir a guerra à sua legitimação, ou se preferirmos, a guerra ao amor.

832 Od. 16.75; 19.527. 833 Cf. “Bed” in EIEC.834 Cf. “Furrow” in EIEC.835 Od. 23.207-208.836 Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, p. 253.837 MBh 1.179.22.838 ṚV 10.85.37.839 Cf. Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, p. 245.840 Od. 23.207-208; 213-214; 240: «dakrýsasa d᾽épeit᾽ithỳs drámen, amphì dè cheîras deirēE i báll᾽OdysēE ï, kárē d᾽

ékysÔ ᾽ (…) autàr mḕ nŷn moi tóde chṓeo mēdè neméssa, hoúneká s᾽ou tò prō� ton, epeì ídon, hō� d᾽agápēsa. (…) deirē� s d᾽oú pō pámpan aphíeto pḗchee leukṓ.»

841 Od. 23.225-227; 230: «nŷn d᾽, epeì ḗdē sḗmat᾽ariphradéa katélexas eunē� s hēmetérēs, hḕn ou brotòs állos

126

A este momento segue-se o da consumação do casamento:

Mas agora, minha mulher, vamos para a cama842

Também as tochas que as mulheres portam durante o cortejo matrimonial grego, indispensáveis à

“publicitação” do acto, aparecem nesta cena:

Entretanto Eurínome e a ama tinham feito a cama com macios lençóis, à luz de tochas ardentes. (…) Mas Eurínome, criada do tálamo (espaço feminino), conduziu-os para o leito, segurando na mão uma tocha. Depois de os levar para o quarto, retirou-se. E eles de seguida chegaram felizes ao ritual do leito conhecido.843

É no ritual do leito que eles se reconhecem finalmente e mutuamente, local onde Penélope fará

questão de ouvir todas as aventuras de Ulisses.844 A narrativa da Odisseia resolve-se com a união no

leito de Ulisses e Penélope, ao contrário dos enganos e afastamentos ao seu destino quando este se

deita com outras personagens femininas, representa aqui o fim da sua busca, bem como a sua

legitimação enquanto marido e governante.845 Será neste momento que Atena atrasa o início do dia,

para que o casal permaneça mais tempo junto,846 naquilo que parece ser um acto de caridade divina

para com os longos vinte anos em que o casal se encontrou separado, mas que na realidade nos

coloca novamente perante um “intervalo”, ou seja, simbolizando uma nova era (um novo dia/ano)

que surge após uma noite mais longa do que o habitual, como acontece todos os anos no solstício de

Inverno, marcando o “intervalo” entre o fim de um ano e o inicio de outro. Não deixa de ser

interessante que este prolongamento nocturno coincida com a união entre o interior (Penélope) e o

exterior (Ulisses) do oîkos, sob a égide de Atena, marcando a plenitude da soberania em Ítaca.

A Ilíada inicia ela mesma com uma contenda em torno de uma mulher, sobre a “cama” onde

Criseida, filha de Crises, se há-de deitar,847 e a qual Agamémnon não pretende libertar:

Não libertarei a tua filha. Antes disso a terá atingido a velhice em minha casa, em Argos, longe da pátria, enquanto se afadiga ao tear e dorme na minha cama.848

Se a mulher representa o “poder”, ou a legitimidade régia, este discurso de Agámemnon diz-nos

que ele não terá de facto poder em Argos, como tal, necessita deste “poder” raptado (Criseida) que

envelhecerá na sua casa (que se cumprirá no seu reino), no tear (destino, política), dormindo na sua

opṓpei, all᾽oîoi sý t᾽egṓ te kaì amphípolos mía moúnē (...) peítheis dḗ meu thymón, apēnéa per mál᾽eónta.»842 Od. 23.254: «all᾽ércheu, léktrond᾽íomen, gýnai, óphra kaì ḗdē»843 Od. 23.289-290; 293-296: «tóphra d᾽ár᾽Eurynómē te idè trophòs éntyon eunḕn esthē� tos malakē� s, daḯdōn hýpo

lampomenáōn. (…) toîsin d᾽Eurynómē thalamēpólos hēgemóneuen erchoménoisi léchosde, dáos metà chersìn échousa: es thálamon d᾽agagoûsa pálin kíen. hoi mèn épeita aspásioi léktroio palaioû thesmòn híkonto»

844 Od. 23.247-287.845 Cf. Seth L. Schein, “Female Representations and Interpreting the Odyssey” in Beth Cohen (ed.), The Distaff

Side: Representing the Female in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, p. 21.846 Od. 23.241-246.847 Il. 1.20-21 e ss.848 Il. 1.29-31: «tḕn d᾽egṑ ou lýsō: prín min kaì gē� ras épeisin hēmetérōi enì oíkōi en Árgeï tēlóthi pátrēs històn

epoichoménēn kaì emòn léchos antióōsan»

127

cama (centro, trono). Esta cama-trono pode representar o lugar da esposa, i. e., o lugar “do poder”,

na qual o rei se deita. Esta cama épica é no entanto mais o lugar da esposa do que do homem,

porque Penélope e Clitemnestra dormem nela com ou sem o marido, sendo este o seu lugar

constante, no entanto, Agamémnon e Ulisses, só dormem nessa cama acompanhados, é exactamente

a mesma ideia do rei que só governa na posse de uma rainha. Na sequência que nos apresenta

Agamémnon para Criseida temos: a periferia (casa), o intervalo (tear), e o centro (cama), que

demarca exactamente o espaço da mulher, do centro ao seu limite, unidos pelo “ir” e “vir” da

tecelagem, que se traduz na figura do filho (a principal função ou “produto” da mulher),

principalmente na de Telémaco.

A relação de Ulisses com Penélope poderá ainda ser compreendida enquanto ritual de

legitimação quando comparada aos dois principais rituais régios indianos, o rājasūya e o

aśvamedha.849 Estes dois rituais, que são os mais complexos, próprios da segunda função,

perpectuam a relação/união entre as quatro varṇas indianas, ou se preferirmos (porque não se limita

às relações terrenas), entre o rei e a totalidade de todas as coisas. O ritual de consagração régia, o

rājasūya,850 referido desde os Vedas, consiste numa cerimónia anual em que rei, representante do

cosmos, é recriado tal como o universo, e o seu trono entendido como o centro/topo do mundo, num

sentido cosmogónico, de onde tudo procede.851 O ritual divide-se em três partes: digvyāsthāpana

“conquista” dos cinco orientes (direcções); abhiṣeka “unção” com água e outros líquidos; e o jogo

de dados final. Nos quais o rei representa sempre a síntese das quatro varṇas, encontrando-se nas

três partes do ritual no centro de quatro direcções/representantes das quatro varṇas.852 Na última

parte da cerimónia, o jogo de dados simbólico, o rei senta-se no trono tendo em sua posse cinco

dados, que representam as cinco direcções do espaço (os quadrantes e o seu zénite), jogando com 849 O caminho que o rei faz devido a uma mulher, nos mitos de contra-rapto e de regresso, serve essencialmente

para lhe dar “fama” e legitimidade régia, funcionando como uma iniciação/prova, que o rei teria de cumprir e cuja antiguidade é difícil de limitar. Estas viagens tinham um carácter simbólico e representavam o rei como um ser protegido pelos deuses, ao mesmo tempo que ele protege a população. Isto envolve a ideia de “eleição” mais do que “descendência”, devendo ser comuns os confrontos entre os pretendentes ao trono. Cf. Javier Alvarado Planas, El Pensamiento Juridico Primitivo, Madrid, Editorial Nueva Acropolis, 1986, pp. 138-139. Os rituais vêm trazer alguma legitimação ao rei face a possíveis pretendentes, a política que se desenvolveu durante o I milénio a.C. na Índia, em torno de governantes (as janapadas) que detinham um poder sobre determinado território e cuja autoridade vinha do apoio dos kṣatriyas subordinados e da legitimação dada por sacerdotes. Foi daqui que nasceram as primeiras monarquias, em que os reis eram sujeitados a rituais e ao acompanhamento de cortesãos e servos reais. Burton Stein (ed. David Arnold), “Ancient India”, in A History of India, colecção The Blackwell History of the World, West Sussex, Wiley-Blackwell, 20102, p. 53.Os três maiores rituais eram o rājasūya (o rei é embutido de poder divino), o vājapeya (esse poder é renovado) e o aśvamedha (esse poder é alargado aos reinos vizinhos). Cf. Burton Stein (Ed. David Arnold), “Ancient India”, in A History of India, colecção The Blackwell History of the World, West Sussex, Wiley-Blackwell, 20102, pp. 53-54.

850 Para o rājasūya veja-se Susheel K. Sharma; Vinod K. Singh, "Indian Idea of Kingship", IJPS 71/2, 2010, p. 388.851 Don Handelman, David Shulman, “Generating the Expected: The Rājasūya Dice Game and The Modeling of the

Cosmos” in God Inside Out: Śiva's Game of Dice, Oxford, Oxford University Press, 1997, pp. 61-62.852 Daniel Dubuisson, “Le Roi Indo-Européen et la Synthèse des Trois Fonctions”, Annales, Économies, Sociétés,

Civilisations, 33, 1, 1978, pp. 22-23; Veja-se igualmente: Roman Zaroff, “Aśvamedha – A Vedic Horse Sacrifice” in Studia Mythologica Slavica, 8, 2005. A designação rājasūya derivará de rāja-sū “criação de um rei”, cf. Hartmut Scharfe, “The Consecration of a King” in: The State in Indian Tradition, Leiden, Brill, 1989, p. 80-81 e ss.

128

outras quatro pessoas, um brāhmaṇa, um kṣatriya, um vaiśya e um śūdra.853 Aqui o rei não joga

directamente, mas é sempre o vencedor da partida, caso perca em alguma jogada, é considerado um

acto imprevisto e deve ser anulado.854 Será interessante recordar que Yudhiṣṭhira, após o seu

rājasūya, jogará dados acompanhado pelos seus quatro irmãos, o que é um claro reflexo deste

ritual,855 mas aqui ele perderá tudo, e sendo o jogo uma representação do cosmos, a derrota

representará a desordem (que será ordenada na guerra). Este jogo tem como objectivo unir o rei aos

seus súbditos, o que repete aquilo que acontece no ritual do sacrifício do cavalo (aśvamedha), que

estabelece relações de lealdade ao rei por parte dos reinos vizinhos.856 O aśvamedha, de aśva-

“cavalo” e madhos (madhu) “embriagado” (ou “forte”),857 o mais famoso dos rituais, consistia em

associar o rei à conquista de todas as direcções, neste caso, o cavalo do rei era de modo ritual

colocado em liberdade, permitindo-lhe que vagueasse livremente durante o período de um ano,

sempre acompanhado pelo exército, e onde quer que o cavalo parasse, era proclamada a soberania

do rei, e se necessária, feita guerra. Ao fim desse ano, o cavalo era morto e a rainha principal,

chamada mahiṣī, copulava com o cadáver do animal.858 Se o jogo de dados que finaliza o rājasūya,

bem como o caminho do cavalo antes de ser sacrificado, representam o cosmos, bem como o seu

movimento e ordenação (através da figura régia), não deixa de representar igualmente a ideia de

“destino” (daiva-) e “lei” (dharma-), que age como dados lançados sobre o tabuleiro do mundo

(pelos devas? os “deuses”). Por muito bizarra que a acção da rainha no aśvamedha possa parecer, o

facto é totalmente carregado de simbolismo, já que o poder do rei (representado pela sua esposa,

śakti) advém das suas vitórias, do vigor ou sangue dos inimigos vencidos em batalha, que ela

própria recebe e mantém. Este cavalo que caminha livre durante um ano, simbolizando a

supremacia do rei ao qual pertence, ao longo de todos os locais para os quais o destino o leve, e que

depois é sacrificado, representa de certa forma o caminho de Ulisses depois da guerra, viajando

“arbitrariamente” por vários locais, nos quais declarar-se-á a sua supremacia, i.e., a sua fama, e

quando Ulisses regressa e vence os pretendentes, a sala dos banquetes do palácio (o espaço da

mulher) fica toda ela manchada de sangue,859 limpando e vingando o tempo que Penélope se

sujeitou à presença dos pretendentes.

853 Don Handelman, David Shulman, “Generating the Expected: The Rājasūya Dice Game and The Modeling of the Cosmos” in God Inside Out: Śiva's Game of Dice, Oxford, Oxford University Press, 1997, p. 62.

854 Don Handelman, David Shulman, “Generating the Expected: The Rājasūya Dice Game and The Modeling of the Cosmos” in God Inside Out: Śiva's Game of Dice, Oxford, Oxford University Press, 1997, p. 63.

855 Don Handelman, David Shulman, “Generating the Unexpected: The Mahābhārata Dice Game” in God Inside Out: Śiva's Game of Dice, Oxford, Oxford University Press, 1997, p. 68.

856 Don Handelman, David Shulman, “Generating the Expected: The Rājasūya Dice Game and The Modeling of the Cosmos” in God Inside Out: Śiva's Game of Dice, Oxford, Oxford University Press, 1997, p. 64.

857 “Sacred Drink” in EIEC.858 Burton Stein (Ed. David Arnold), “Ancient India”, in A History of India, colecção The Blackwell History of the

World, West Sussex, Wiley-Blackwell, 20102, p. 53-54.859 Od. 22.401 e ss.

129

Qualquer sacrifício é obrigatoriamente cumprido, na Índia Védica, por um “mestre” (pati) que

detenha uma esposa (chamada patnī, “mestra”).860 A mulher deverá ficar presente pelo menos até ao

momento em que se acende o fogo para o sacrifício, sendo depois encaminhada para o exterior, de

onde observa o sacrifício a uma distância de segurança.861 A preparação de uma mulher para a

participação em actos sagrados, como um sacrifício, é muito diferente da do homem. Ela deverá

cumprir as mesmas tarefas do seu dia-a-dia, no seu espaço, i.e., o interior da casa, de forma

sacralizada, como moer grão, moldar o pote sacrificial, etc.862 Durante o ritual toda a sua acção é

simbolicamente sexual (representando a fertilidade do mundo), como se comprova na frase

repetidamente dita nos textos exegéticos:

O que a mulher faz durante o ritual é unir sexualmente.863

A mulher dá ainda “poder” ao seu marido sacrificante (ou ao próprio sacrifício) através do pouco

conhecido anvārambhama, o acto de “observar detrás”. Aqui a acção da mulher consistirá em tocar

o marido ou alguém nas costas, cumprir algo nas costas de alguém ou atrás de algo, ver o ritual atrás

de alguma coisa, ou até, de acordo com Stephenie Jamison, o acto sexual em que a esposa se coloca

de costas olhando para trás.864 Este “observar detrás” poderá representar ainda o “poder” do ritual ou

do sacrifício que regressará a ela, já que a mulher representa o próprio ritual e não apenas uma

participante.865 Esta ideia pode estar presente em Penélope que fica atrás quando Ulisses parte para

a guerra, ou na simples utilização do véu pela mulher, permitindo que esta veja detrás de um véu.

Seja qual for a relação ou origem, a verdade é que subentende sempre uma qualidade feminina,

passiva, que se resguarda da acção.

No ritual varuṇapraghāsa (o “devorar de Varuṇa”) que se dá antes das chuvas, o marido

questiona a esposa sobre quem é o seu amado e se ela tem amantes, ela deverá nomeá-lo a ele ou

demonstrar que tem amantes. Se ela não tiver amantes garante o sucesso do ritual.866 Vemos que

Ulisses procurará igualmente compreender se Penélope se manteve casta durante a sua ausência. O

facto de Penélope ser casta leva à morte dos culpados e ao reconhecimento de Ulisses, por outro

860 Stephanie Jamison, “Roles for Women in Vedic Śrauta Ritual” in Arvind Sharma (ed.), Goddesses and Women in the Indic Religious Tradition, Leiden, Brill, 2005, pp. 2-3.

861 Stephanie Jamison, “Roles for Women in Vedic Śrauta Ritual” in Arvind Sharma (ed.), Goddesses and Women in the Indic Religious Tradition, Leiden, Brill, 2005, p. 3.

862 Stephanie Jamison, “Roles for Women in Vedic Śrauta Ritual” in Arvind Sharma (ed.), Goddesses and Women in the Indic Religious Tradition, Leiden, Brill, 2005, p. 5.

863 ManuS 3.7.9: «yad vai patnī yajñe karoti tan mithunam» tradução de Stephanie Jamison, “Roles for Women in Vedic Śrauta Ritual” in Arvind Sharma (ed.), Goddesses and Women in the Indic Religious Tradition, Leiden, Brill, 2005, p. 6.

864 Stephanie Jamison, “Roles for Women in Vedic Śrauta Ritual” in Arvind Sharma (ed.), Goddesses and Women in the Indic Religious Tradition, Leiden, Brill, 2005, p. 7.

865 Stephanie Jamison, “Roles for Women in Vedic Śrauta Ritual” in Arvind Sharma (ed.), Goddesses and Women in the Indic Religious Tradition, Leiden, Brill, 2005, p. 8.

866 Stephanie Jamison, “Roles for Women in Vedic Śrauta Ritual” in Arvind Sharma (ed.), Goddesses and Women in the Indic Religious Tradition, Leiden, Brill, 2005, pp. 9-10.

130

lado, Clitemnestra, ao ser infiel, provoca a morte do seu marido Agamémnon.867 O sangue dos

pretendentes com sentido ritual, está presente também no momento em que Draupadī lava os seus

cabelos com o sangue de Duḥśasana no fim da guerra,868 devido a este a ter arrastado pelos cabelos

para o sabhā numa altura em que ela não podia aparecer em público, por estar no período de

menstruação.869 O aśvamedha, que termina ao fim de um ano, é semelhante ao jogo de dados que

finaliza o ano do rājasūya, é um sacrifício que anula a jogada que poderia destronar o rei.870 Muitas

comunidades IE revelam a evidência do sacrifício do cavalo, sendo a forma mais clara deste

sacrifício encontrada na Índia, aqui o cavalo é morto por sufocamento, e através de uma lança em

Roma.871 O aśvamedha é o principal ritual régio do universo IE, comparável ao october equus

romano (em honra de Marte) e ao feis (festa de Tara).872 No segundo dia do festival das Antestérias,

o dia das “libações” (choaí), a basilissa ateniense, acompanhada de catorze mulheres, cumpria um

ritual de casamento com Dioniso, deus da fertilidade:873

Esta mulher (rainha) oferecia um sacrifício secreto pelo bem da cidade; ela viu aquilo que nem um não-Ateniense deveria ver; essa mulher entrou no quarto onde nenhum dos outros Atenienses podia entrar, mas apenas a esposa do rei; ela cumpriu o juramento da mulher venerável, que assiste aos actos sagrados; ela foi dada a Dioniso como esposa; ela cumpriu os antigos costumes perante os deuses pelo bem da cidade, muitos costumes secretos e sagrados. 874

A rainha relacionava-se sexualmente com o deus Dioniso, que podia ser representado por um

homem (provavelmente o arconte basileus), por uma estátua, ou por um animal (um bode ou

touro),875 traçando claras correspondências com a relação de Minos com a rainha Pasífae, bem como

com o aśvamedha.876 O rei na Índia Antiga, representante máximo da segunda função, cumpria

alguns rituais que tinham por principal objectivo relacioná-lo com as outras duas funções. O rei

867 Ainda que a literatura pós-homérica subentenda que as mulheres terão vindo a perder a sua autoridade e autonomia, as esposas legítimas continuarão a participar nos rituais religiosos, como as Tesmoforias (reservado às mulheres) e os funerais. Cf. Nuno Simões Rodrigues “A Mulher na Grécia Antiga” in Maria Clara Santos (org.), A Mulher na História: Actas dos colóquios sobre a temática da mulher (1999-2000), Moita, Câmara Municipal da Moita/Departamento de Acção Sócio-Cultural, 2001, p. 91.

868 MBh 10.16; Para a interpretação deste episódio veja-se: Alf Hiltebeitel, “Thighs and Hair” in The Cult of Draupadī, vol. 2, Chicago, The University of Chicago Press, 1991.

869 MBh 2.67.27-33.870 Don Handelman, David Shulman, “Generating the Expected: The Rājasūya Dice Game and The Modeling of the

Cosmos” in God Inside Out: Śiva's Game of Dice, Oxford, Oxford University Press, 1997, p. 64.871 Cf. "Horse Sacrifice" in EIEC. 872 Calvert Watkins, “The Aśvamedha or Horse Sacrifice: An Indo-European liturgical form” in How to Kill a

Dragon: Aspects of indo-european poetics, New York, Oxford University Press, 1995, p. 265. 873 Cf. Gerard van Hoorn, Choes and Anthesteria, Leiden, E. J. Brill, 1951, pp. 22-27 e ss.874 Demóstenes, 59.73: «kaì haútē hē gynḕ hymîn éthye tà árrēta hierà hypèr tē� s póleōs, kaì eîden hà ou prosē� ken

autḕn horân xénēn oûsan, kaì toiaútē oûsa eisē� lthen hoî oudeìs állos Athēnaíōn tosoútōn óntōn eisérchetai all᾽ḕ hē toû basiléōs gynḗ, exṓrkōsén te tàs geraràs tàs hypēretoúsas toîs hieroîs, exedóthē dè tō� i Dionýsōi gynḗ, épraxe dè hypèr tē� s póleōs tà pátria tà pròs toùs theoús, pollà kaì hágia kaì apórrēta.» Tradução de Walter Burkert, “Anthesteria” in Homo Necans: The Anthropology of Ancient Greek Sacrificial Ritual and Myth, California, University of California Press, 1983, p. 234.

875 Walter Burkert, “Anthesteria” in Homo Necans: The Anthropology of Ancient Greek Sacrificial Ritual and Myth, California, University of California Press, 1983, p. 234.

876 “King and Hero” in IEPM, pp. 417-418.

131

unia-se à função sacerdotal através do ritual brahmacarya, que incluía o estudos dos Vedas, a

castidade e o ascetismo. O brahmacarya dava a capacidade ao rei de se tornar ele mesmo em

Prajāpati (repetindo os seus feitos), o deus criador e virāj- (aquele que “governa amplamente”).877

Unia-se à terceira função através do ritual yaṣṭikākarṣaṇa “puxar uma corda”, que era puxada de um

lado pelo rei e a nobreza, e do outro pelos vaiśyas, terceira função. O lado do rei deveria sair

vencedor, comprovando o seu domínio sobre o poder da natureza e a fertilidade do solo.878 Os rituais

servem de um modo geral para purificar as acções do rei, aproximando-as da dos deuses,879 já que o

rei tem uma obrigação para com a “lei” (conceito que se desenvolveu temporalmente em ṛta,

dharma e daṇḍa), sendo inferior a ela.880 O rei possui várias qualidades que ganha através da

educação, bem como da protecção da classe sacerdotal (o que se aplica igualmente à rainha).881 O

rei permanece um estudante celibatário (brahmacārī) até aos dezasseis anos, idade em que deverá

casar-se, contudo a sua educação continua para lá do seu casamento e consagração (daí a

importância da relação kṣatriya-brāhmaṇa).882 Além disto, o arco que recebe o rei no rājasūya, é

muito semelhante à recuperação do arco por Ulisses.883 O arco de Ulisses, como outros símbolos de

poder, desempenha o papel de relacionar o herói com a memória do mundo de outros heróis, já que

foi oferecido por um amigo-anfitrião,884 e como o arco não será a arma grega mais comum para o

concurso, reflecte de certa forma um costume das sociedades asiáticas, presente em especial na

simbólica régia indo-iraniana,885 traçando correspondências com a consagração real indiana, dando

877 J. Gonda, “Rites, Ceremonies, Festivals, etc.” in Ancient Indian Kingship from the Religious Point of View, Leiden, Brill, 1969 (reedição de 1956-57), p. 71.

878 J. Gonda, “Rites, Ceremonies, Festivals, etc.” in Ancient Indian Kingship from the Religious Point of View, Leiden, Brill, 1969 (reedição de 1956-57), p. 73.

879 O rei é considerado no ManuS (7.3-4) uma encarnação das oito divindades guardiãs (lua, fogo, sol, vento, Indra, Varuṇa, Kubera e Yama), contudo não é entendido como um deus na terra, nem como um representante de deus na terra (como entendemos com alguma facilidade na literatura épica), mas sim, aquele cujas acções são (devem ser!) semelhantes à dos deuses. Susheel K. Sharma; Vinod K. Singh, "Indian Idea of Kingship", IJPS 71/2, 2010, p. 384.

880 Conforme as suas acções, um rei é considerado divino, movido pela paixão ou demoníaco. Susheel K. Sharma; Vinod K. Singh, "Indian Idea of Kingship", IJPS 71/2, 2010, pp. 384-385.

881 Cf. Susheel K. Sharma; Vinod K. Singh, "Indian Idea of Kingship", IJPS 71/2, 2010, p. 386 e ss. De acordo com o ArthaŚ (6.1.1) o estado divide-se em sete elementos: rei; ministros; território; forte/muralha; tesouro; exército; e amigos. Estando estes sete em relação com o corpo humano: o rei é a cabeça, os ministros os olhos, os amigos os ouvidos, o tesouro a boca, o exército o cérebro, a muralha os braços, o território (e população) as pernas, sendo ao rei que cabe o “enriquecimento” destes elementos que dependem da sua conduta. Cf. Susheel K. Sharma; Vinod K. Singh, “Indian Idea of Kingship”, IJPS 71/2, 2010, p. 383. A ideia de vitalidade, força e poder (śri), são requisitos do rei. Ele deve agir energeticamente, de forma a que os seus subordinados o imitem, isto porque só a vitalidade gera prosperidade. Contudo, existe um cordão, o bem-estar do reino depende do rei, e o bem-estar do rei depende do sacerdote. Susheel K. Sharma; Vinod K. Singh, "Indian Idea of Kingship", IJPS 71/2, 2010, pp. 389-390.

882 Susheel K. Sharma; Vinod K. Singh, “Indian Idea of Kingship”, IJPS 71/2, 2010, p. 387. 883 Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, p. 258-259.884 Froma I. Zeitlin, “Figuring Fidelity in Homer's Odyssey” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side: Representing

the Female in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, p. 118. Também as armas de Aquiles lhe dão legitimidade régia, já que foram produzidas por Hefesto, responsável pela criação de outros objectos relacionados com a legitimidade.

885 G. Germain Genèse de l'Odyssée, referido em Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, 258; Cf. Bernard Sergent, “Arc” in Mètis: Anthropologie des Mondes Grecs Anciens, 6, 1/2, 1991, pp. 233-234.

132

ao combate com os pretendentes as características da recuperação ritual de um reino.886 Ainda que o

rājasūya dure um ano, os principais eventos passam-se nos últimos dias, sendo o clímax o momento

em que o rei é aspergido com água de vários locais e proclamado rei em frente a várias testemunhas

que lhe são subordinados, nesse momento ele segura na mão o arco e três flechas:

Tendo dito, “Este é o nosso rei, ó Bharatas”, ele [sacerdote] dá o arco ao sacrificante [rei] dizendo “Tu és a clava de Indra” e “Eles são os teus opressores rivais”, com três flechas.887

Este arco (símbolo ritual do reinado) juntamente com as três flechas, será facilmente

correspondido na Odisseia por Ulisses e os seus três companheiros em combate, contra os

pretendentes. O arco representa a coragem e a força (vīrya),888 relacionando o rei com a sua família,

em especial com o filho herdeiro, sempre na presença da sua esposa (que legitima o acto) que é um

intermediário entre o rei e o príncipe.889 Existe ainda uma relação interessante, apresentada por

Jamison, entre a recorrência literária do acto de “dar” o arco ao concorrente, tanto no panorama

grego como no indiano,890 que será comparável ao “dar” a esposa no casamento. O arco é

ritualmente passado do pai para o filho como herança, representando a força e capacidade da

linhagem face aos outros,891 como é sugerido na Odisseia, em que pai e filho combatem lado a lado.

O mesmo acto é feito para a mulher, em que o rei coloca o arco nas mãos da esposa,892 e esta ideia

poderá estar presente quanto Hanumān salta sobre o oceano para entrar na cidade de Laṅkā, a fim de

procurar Sītā que foi raptada e propor a paz, sendo comparado a uma flecha lançada por Rāma,893

rapto este que começou com Rāma, de arco e flecha, atrás de um veado que Sītā deseja para si.

Quando Héracles se relacionou com uma criatura feminina, metade mulher, metade serpente, e esta

gerou três filhos, este deu-lhe um arco, para que aquele que de entre os seus três filhos o usasse, se

tornasse no rei. Aquele que usará o arco é Cítio, do qual todos os reis Cítios descenderão. Este é o

mito de fundação dos Cítios, onde mais uma vez vemos o papel do arco na decisão da escolha do

rei.894 A flecha na Índia, teve um papel mais metafórico do que real. Na representação da sua origem 886 Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, 259.887 Śrautasūtra de Āpastamba (18.14.10-11): «eṣa vo bharatā rājety uktvendrasya vajro'sīti dhanur yajamānāya

prayacchati satrubādhanā stheti trīn bāṇavataḥ», tradução de Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, 259; veja-se igualmente: J.A.B. van Buitenen, “Introduction” in Mahābhārata, vol. 2, Chicago, University of Chicago Press, 1981, onde a mesma relação é feita.

888 ŚpBr 5.3.5.30.889 Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, p. 260.

Note-se que tanto Telémaco (Od. 21.124-130) como Penélope (Od. 21.42-81) têm contacto com o arco, no caso de Penélope o arco está ligado com o poder da casa: «Pois o arco é aos homens que diz respeito, a mim sobretudo: sou eu quem manda nesta casa.» Od 21.352-353; Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, 262.

890 Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, p. 262.891 Bhaudhāyana Śrautasūtra (XII, 13) apud Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on

the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, p. 263.892 Mānava Śrautasūtra (9.1.3.31-32) apud Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on

the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, pp. 263-264.893 Rām. 5.1.36-37.894 Cf. Hdt. 4.9-10; veja-se Bernard Sergent, “Arc” in Mètis: Anthropologie des Mondes Grecs Anciens, vol. 6, 1/2,

133

divina, certa vez, Indra lançou o vajra (eixo, trovão) contra Vṛtra, o vajra subdividiu-se em quatro:

uma espada de madeira, um poste sacrificial, uma carroça, e por fim uma flecha que caiu na terra. A

espada e o poste passaram a ser utilizados pelos brāhmaṇas, enquanto que a carroça e a flecha pelos

kṣatriyas.895 Há aqui uma comparação clara entre a espada de madeira e o carro, ao mesmo tempo

que o poste sacrificial e a flecha, permitindo uma leitura metafórica (provavelmente filosófica) do

uso das armas, unindo ao facto da flecha ser a única a cair na terra, o domínio humano (feminino).896

Talvez não seja por acaso que o arco e a flecha tenham sido vistos como uma arma “efeminada”,

utilizada pelo gýnnidos toxótou («arqueiro efeminado»897), por ser usada por personagens femininas

como Ártemis, Atalanta e as Amazonas,898 bem como por evitar um combate corpo-a-corpo, estando

na Grécia relacionada com os efebos e aqueles que se iniciavam na arte bélica. O arco é a arma que

usa Páris,899 o que lhe permite evitar o combate directo. De forma semelhante, Páris rapta Helena

evitando Menelau,900 e em Tróia evita o duelo com Menelau evadindo-se (através de Afrodite),901 o

que lhe dá um carácter (efeminado?) de efebo e de cobarde.

Neste sentido, o uso do arco e da flecha representam uma passagem, dando um carácter de

discípulo ao seu utilizador, bem como de efebo,902 a mesma ideia estará em Ártemis,903 que preside à

iniciação feminina, bem como em Apolo que preside à masculina.904 Da mesma forma, Teseu,

Perseu e Héracles são arqueiros, pois toda a sua aventura se resume a provações.905 Há uma imagem

da “perda do arco” relacionada com a perda da soberania e consecutiva recuperação, quando Arjuna

deixa cair o arco Gāṇḍivā por não querer combater, e que depois o recupera para começar a guerra,

e Ulisses que não o leva para Tróia, recuperando-o no seu regresso.

Os símbolos régios do rājasūya em Ulisses, não se ficam por aqui, também na forma como ele é

reconhecido por Euricleia, devido à cicatriz provocada por um javali,906 leva-nos a comparar o seu 1991, pp. 224-225.

895 ŚpBr 1.2.4.1-2. Os tipos de guerra IE dividem-se em três grupos: o exército que segue o rei (geralmente mais novos, solteiros, sem-terra, pertencentes a tribos ou “selvagens”) utilizado sobretudo para conquistar território; os ataques a gado, um modo rápido de riqueza; e as muralhas, cujo saque conferia a maior honra ao herói (que em Homero recebem o epíteto de ptolíporthos “saqueador de cidades”), envolvendo o “cerco” atestado etimologicamente. Cf. “Arms and the Man” in IEPM, pp. 448-454.

896 O arco e a flecha foram para os Indianos, Cítios e Persas, as armas mais nobres do guerreiro e do rei. Bernard Sergent, “Arc” in Mètis: Anthropologie des Mondes Grecs Anciens, vol. 6, 1/2, 1991, pp. 227-228. Esta importância é atestada pela arqueologia, no uso da flecha na Índia desde pelo menos o séc. XVII a.C. Bernard Sergent, “Arc” in Mètis: Anthropologie des Mondes Grecs Anciens, vol. 6, 1/2, 1991, p. 227.

897 Plut., Apophthegmata Laconica 234e, (Plutarch. Moralia. with an English Translation by. Frank Cole Babbitt. Cambridge, MA. Harvard University Press. London. William Heinemann Ltd. 1931. 3.)

898 Bernard Sergent, “Arc” in Mètis: Anthropologie des Mondes Grecs Anciens, vol. 6, 1/2, 1991, p. 230.899 Por exemplo: Il. 6.322.900 Poemas Cíprios, Arg. 2, in GEF901 Il. 3.121-138.902 Cf. Bernard Sergent, “Arc” in Mètis: Anthropologie des Mondes Grecs Anciens, vol. 6, 1/2, 1991, pp. 234-235.903 Que até certo ponto se manifesta em Penélope e Helena, que são comparadas com a deusa. Cf. Od. 17.36-37;

19.53-54; 4.121-122.904 Bernard Sergent, “Arc” in Mètis: Anthropologie des Mondes Grecs Anciens, vol. 6, 1/2, 1991, p. 235.905 Bernard Sergent, “Arc” in Mètis: Anthropologie des Mondes Grecs Anciens, vol. 6, 1/2, 1991, p. 235.906 Od. 19.392-394. Também o rei Édipo é assim reconhecido. Cf. Sóf. OT 1032-1033.

134

banho (em que ele é reconhecido!) com o aspergir de água sobre o rei no ritual indiano.907 A cicatriz

provocada pelo javali será uma “marca” do poder real, quando Ulisses o perseguiu com uma lança,

isto porque no rājasūya o rei recebe um par de sandálias de javali (sūkara-, animal sacrificado a

Indra908) que ele calça, antes de subir para o carro de guerra, que simbolicamente irá guiar,

transferindo a força do javali para o rei.909 Pelo facto de Ulisses ao chegar a Ítaca ter um contacto

especialmente importante com Eumeu, que cuida de porcos (com o mesmo termo que para javali:

sŷs), pode subentender a importância da criação de animais para o mantimento do “reino”,910 e pelo

facto destes porcos serem comidos pelos pretendentes, representarão o “reino” (ou a “legitimação”

de Ulisses) que vai sendo consumido (pelos pretendentes) na ausência de Ulisses.

A designação IE pŕ� kh eha- (sulco) tem relação com o PIE pórkh os “porco”, aquele que abre um

sulco na terra enquanto a revolve,911 do IE sūt s (e súhxs), “porco” e “semear”, no grego hŷs e sŷs. A

mesma designação IE para “porco” ter-se-á originado de seuhx- “trazer” e “gerar”, estando ainda

relacionada com a agricultura.912 O porco é, no imaginário IE, associado com o mundo dos mortos, e

entendido como um prenúncio da morte. Eumeu que recebe Ulisses poderá sugerir um prenúncio da

morte no épico. Também o facto de o porqueiro dar «o melhor dos porcos» aos pretendentes,913

poderá na realidade representar a “melhor das mortes” para aqueles que têm devorado os bens de

Ítaca. Na mitologia grega o porco, sendo um animal sagrado de Deméter, continua a estar

relacionado com a agricultura e também com o mistério do trigo (o ciclo vida-morte-vida)914. No

festival das Tesmoforias, o lamento da descida de Perséfone ao sub-mundo, era realizado apenas por

mulheres que lançavam leitões para grutas subterrâneas (ou poços), para que eles escavassem a terra

ou fossem comidos por serpentes.915 De acordo com a mitologia, um porqueiro, Eubuleu, foi o

primeiro a informar Deméter do rapto de Perséfone,916 tal como Ulisses é informado, ao chegar a

Ítaca, por um porqueiro. O lançamento de javalis para poços ou grutas representaria o rapto de

Perséfone pelo deus Hades, dando ao porco também uma conotação sexual.917 A relação do porco

907 Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, p. 265.908 O javali é igualmente entendido como uma figuração de Vṛtra, o inimigo de Indra. Cf. Jan Gonda, “Viṣṇu”, in

Aspects of Early Viṣṇuism, Delhi, Motilal Banarsidass, 1993 (reimpressão de 1954), p. 137.909 Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, p. 265 e ss.910 Stephanie W. Jamison, “Penelope and the Pigs: Indic Perspectives on the Odyssey”, CA, 18/2, 1999, p. 267.911 “Furrow” in EIEC.912 “Pig” in EIEC. Cf. Paul Faure,“Ulysse l'Endurant, ou la Crète du XIIIe siècle av. J.-C.” in Ulysse le Cretois

(XIIIe siècle avant J.-C.), Paris, Fayard, 1980, pp. 80-81.913 Od. 14.108: «syō� n tòn áriston»914 Walter Burkert, “The Myth of Kore and the Pig-Sacrifice” in Homo Necans: The Anthropology of Ancient Greek

Sacrificial Ritual and Myth, California, University of California Press, 1983, p. 257; Veja-se ainda: Nuno Simões Rodrigues, “O Trigo como Metáfora da Vida e da Morte na Antiguidade Clássica”, Máthesis 17, 2008.

915 Walter Burkert, “The Myth of Kore and the Pig-Sacrifice” in Homo Necans: The Anthropology of Ancient Greek Sacrificial Ritual and Myth, California, University of California Press, 1983, pp. 257-259.

916 “Pig” in EIEC.917 Walter Burkert, “The Myth of Kore and the Pig-Sacrifice” in Homo Necans: The Anthropology of Ancient Greek

Sacrificial Ritual and Myth, California, University of California Press, 1983, p. 259.

135

com o sulco no vocabulário IE, permite-nos unir mais uma vez Perséfone e Sītā (que nasce de um

sulco), até porque as Tesmoforias se realizavam imediatamente antes de se semear a terra,918 i.e.,

antes de se abrirem sulcos. O porco estaria igualmente relacionado com os mistérios de Elêusis,

onde aquele que se queria iniciar levaria consigo um porco para sacrifício,919 o que subentende

igualmente um renascimento, a semente que morre e que renasce na forma de cereal.920

O porco/javali provavelmente representava a segunda função IE, relacionado com a protecção e

fertilidade.921 O facto de o javali ser um animal inteligente, combater feroz e “corajosamente”, e ser

o animal que a seguir aos primatas mais se assemelha ao homem, pode ter levado os Antigos a dar-

lhe um carácter superior e simbólico.922

Se transferirmos a ideia de Janaka, que abre um sulco de onde nasce Sita, para Ulisses e para o

javali (que abre sulcos), podemos entender a cicatriz de Ulisses provocada por um javali como uma

marca, um “sulco”, na sua perna, o que, tendo em conta o reconhecimento por Euricleia, poderá

representar o reconhecimento do rei através de uma marca.923

Buddha que morre devido a uma ingestão de javali, ele que era um príncipe, pode representar a

sua marca de “realeza” ou a sua “consagração”, no sentido em que se torna rei dele próprio,

libertando-se do mundo, e, mantendo-nos no panorama dos avatāras. Ao vermos Cristo ser morto

por uma lança (śakti, “poder”), a leitura poderá tornar-se relativamente semelhante. É um culminar

da realeza (espiritual?) que o levará depois numa viagem sobrenatural (ritual!), tal como Buddha,

sendo depois “reconhecido”.

De acordo com a Telegonia, a morte de Ulisses vem do mar. Quando o filho de Ulisses e Circe,

Telégono, aparece em Ítaca em busca do seu pai, devasta a ilha e mata com uma lança Ulisses,

ignorando quem ele era. Ao entender o erro cometido, Telégono leva Telémaco, Penélope e o

cadáver de Ulisses até à sua mãe Circe, que os torna imortais. Depois, Telégono casar-se-á com

Penélope, e Telémaco com Circe.924 O facto de Ulisses ser morto por um lança (śakti) feita por

Hefesto925 (deus que produz vários objectos relacionados com a realeza e o poder926) não deixa de

918 Walter Burkert, “The Myth of Kore and the Pig-Sacrifice” in Homo Necans: The Anthropology of Ancient Greek Sacrificial Ritual and Myth, California, University of California Press, 1983, p. 261.

919 Walter Burkert, “The Myth of Kore and the Pig-Sacrifice” in Homo Necans: The Anthropology of Ancient Greek Sacrificial Ritual and Myth, California, University of California Press, 1983, p. 256.

920 Para a questão veja-se o artigo: Nuno Simões Rodrigues, “O Trigo como Metáfora da Vida e da Morte na Antiguidade Clássica”, Máthesis 17, 2008.

921 “Pig” in EIEC.922 “Pig” in EIEC.923 Até certo ponto, poderíamos associar o desaparecimento de Ulisses àquele de Perséfone, como uma iniciação

que o governante de Ítaca faz em “grutas”, como aquela do Polífemo. A sua cicatriz representaria o abrir do sulco, e o seu regresso ao porqueiro Eumeu, o momento a partir do qual a semente morta renasce (cereal), completando-se um ciclo. Antes de Ulisses seguir para o submundo os seus companheiros são transformados em porcos por Circe. Od. 10.239 e ss.

924 Telegonia, arg. 1-4, in GEF, pp. 165-169.925 Telegonia, frag. 5, in GEF, p. 171.926 Por exemplo as armas e o escudo de Aquiles: Il. 18.369-617.

136

identificar Ulisses, bem como Telégono, com esse poder. Será provavelmente por este motivo que

perante a morte de Ulisses, quem toma esse mesmo “poder”, i.e., Penélope, seja Telégono e não o

seu filho legítimo Telémaco.

A soberania de Ulisses, que é metaforicamente representada por Penélope, deverá espelhar as

qualidades do seu governante. Penélope deve reflectir, até certo ponto, Ulisses, tornando-se

igualmente famosa e distinta. Este facto comprova-se através da fama que detém Penélope ao longo

da Odisseia, sendo recorrentemente chamada de “sábia/prudente Penélope” (períphrōn

Pēnelópeia),927 bem como de “prudente/discreta Penélope” (echéphrōn Pēnelópeia).928 Ela é um tipo

de mulher do qual nunca se ouviu falar, pois no espírito lhe colocou Atena o conhecimento dos

belos lavoures, o bom senso e a astúcia.929 Ela ganha fama (kléos) principalmente porque recorda

Ulisses durante estes vinte anos.930 Esta fama, relacionada com o poder de um governante (bem com

da sua importância para a prosperidade da terra), encontra-se bem presente nas palavras que o

Ulisses-pedinte diz a Penélope:

Senhora, não há homem mortal em toda a terra ilimitada que te pudesse censurar. A tua fama chegou já ao vasto céu, à semelhança do rei irrepreensível que, temente aos deuses, reina sobre muitos homens valentes e promulga decisões que são justas: a terra escura dá trigo e cevada, as árvores ficam carregadas de fruta e os rebanhos estão sempre a parir crias; o mar proporciona muitos peixes em consequência do bom governo. Sob a sua alçada o povo prospera.931

A fama de Penélope é assim a mesma que receberá um rei justo, comparação que sendo feita por

Ulisses, ele mesmo o rei de Ítaca e esposo de Penélope, não deixa de nos mostrar um reflexo dele

mesmo e de Ítaca. No entanto, sabendo que Ítaca se encontra desprovida de rei há vinte anos,

podemos subentender que é Penélope que tem ocupado (de forma irrepreensível) esse papel de

“rainha”. Ao contrário do que acontece na Ilíada, em que só os heróis são recordados pelo seu valor,

enquanto Helena o é pela negativa, na Odisseia o papel de Penélope é tão importante que ela se

torna no segundo herói do épico, quer pela sua fidelidade quer pelo contraste com outras mulheres

como Clitemnestra e a própria Helena, sendo assim possível comparar a importância do homem que

age de forma heróica na batalha à da mulher que preserva a casa do seu marido, bem entendido na

sua fidelidade a Ulisses.932 Sendo o principal lugar da Odisseia o oîkos (o lugar da mulher), em

927 Por exemplo: Od. 1.329.928 Od. 4.111.929 Od. 2.115-121.930 Od 24.195-197; Cf. Helene P. Foley, “Penelope as Moral Agent” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side:

Representing the Female in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, p. 95.931 Od. XIX, 107-114: «ō� gýnai, ouk án tís se brotō� n ep᾽apeírona gaîan neikéoi: ē� gár seu kléos ouranòn eurỳn

hikánei, hṓs té teu ḕ basilē� os amýmonos, hós te theoudḕs andrásin en polloîsi kaì iphthímoisin anássōn eudikías anéchēisi, phérēisi dè gaîa mélaina pyroùs kaì krithás, bríthēisi dè déndrea karpō� i, tíktēi d᾽émpeda mē� la, thálassa dè paréchēi ichthŷs ex euēgesíēs, aretō� si dè laoì hyp᾽autoû.» Com a mesma ideia nas palavras de Agamémnon (Od. 24.194-198) e nas da mãe de Ulisses (Od. 11.181-185); Veja-se igualmente: Seth L. Schein, “Female Representations and Interpreting the Odyssey” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side: Representing the Female in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, pp. 22-23.

932 Seth L. Schein, “Female Representations and Interpreting the Odyssey” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side:

137

torno do qual a sociedade parece dividir-se entre aqueles que lhe são leais e aqueles que o querem

destruir/tomar, permite-nos compreender a importância que a mulher tem neste épico, maior do que

aquela que recebe, aparentemente, na Ilíada.933 No entanto, se na Odisseia o herói defende o oîkos e

em sequência disso a sua esposa, na Ilíada não deixamos de perceber uma defesa desse mesmo

espaço (da sua “honra” e “poder”), i.e., o oîkos de Menelau, do qual Helena saiu, e o qual ela

própria representa.

A fama de Penélope constrói-se igualmente num processo de diferenciação, em que ela é oposta

às figuras femininas não-humanas (Circe e Calipso) e “estrangeiras” (Helena, Arete e Nausicaa),

todas elas à sua maneira representantes da “esposa”, simbolizando mais do que o perigo feminino, o

perigo dos outros oîkoi, isentos de glória, de “organização”, e principalmente de humanidade.

Assim, a sociedade que se centra em torno do oîkos, como é o caso da sociedade homérica, que está

metaforicamente centrada em torno da mulher que a deverá manter e guardar para o seu marido-

governante. Por sua vez, este “poder” centralizado deverá ser mantido e protegido pelo rei, bem

como “reconhecê-lo”. O oîkos não é no entanto o espaço exclusivamente feminino. Além de ser o

espaço também dos rapazes (que ainda não são homens), é também o de alguns homens, referidos

como habitando o rés-do-chão, separados das mulheres que habitavam o andar de cima,934 como

Penélope que está geralmente nos seus altos aposentos (hyperōióthen).935 Isto permite-nos

compreender que o homem tinha igualmente um papel dentro do oîkos, da mesma forma que o

assumia fora dele, na pólis (“cidade”). A questão da mulher habitar no andar de cima, poderá ter

permitido à epopeia dar à mulher que age no oîkos a significação de ideal (por isto superior) e o

homem como uma forma, ou concretização desse ideal (“inferior”, ao nível do solo e da acção).

Quando Ulisses parte para Tróia, a beleza física (aretḕn eîdós te démas te) de Penélope é

destruída,936 levando-nos a crer, com alguma facilidade, que esta constatação se deve tanto à sua

tristeza quanto ao facto de estar mais velha do que aquilo que era. No entanto, ao percebermos que a

sua qualidade externa é levada com Ulisses, compreendemos que a sua exterioridade (tida como

aparência ou beleza) é o próprio Ulisses, e Penélope o seu centro, isto porque, se aceitarmos que se

trata apenas de beleza física devido à sua condição meramente física, não seria de todo possível

lermos as palavras de Eurímaco:

Se todos os Aqueus da jónica Argos te vissem, terias amanhã ainda mais pretendentes a banquetearem-se no

Representing the Female in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, p. 23.933 Seth L. Schein, “Female Representations and Interpreting the Odyssey” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side:

Representing the Female in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, p. 24.934 Lisa C. Nevett, “Domestic space and ancient Greek society” in House and Society in ancient Greek world,

Cambridge, Cambridge University Press, 1999, p. 4 e ss.935 Por exemplo: Od. I, 328.936 Od. 18.251-253; 19.24-26.

138

vosso palácio, pois superas todas as mulheres em beleza, estatura e excelente entendimento.937

Neste sentido, devemos, mais um vez, compreender que Penélope é o centro do poder de Ulisses,

e ele a sua forma externa. Penélope, tal como a mulher na Índia Védica, seria símbolo da riqueza da

casa à qual pertencia, ideia que mudou apenas com o advento do Budismo em que ela passou a

representar “aquela que dá”.938 Contudo, desde os Vedas que a mulher é tradicionalmente “dadora”,

em especial quando dá comida aos brāhmaṇas pedintes, que é um importante dever da mulher que

guarda a sua casa e a propriedade da casa,939 o que transportado para Ulisses poderá representar uma

prova à “gestão”, mas mais à “protecção”, da casa do seu marido. De acordo com o Gṛhya Sūtra:

um brāhmaṇa deve mendigar com [a palavra] “Senhora” no início: “Senhora, dá-me esmola”. Um rājanya com “Senhora” no meio: “Dá-me, Senhora, esmola”. Um vaiśya com “Senhora” no fim: “Dá-me esmola, Senhora”.940

O papel moralizante de Penélope, tanto para as mulheres como para os homens, é

importantíssimo para a permanência da ética e das normas sociais, como a justiça e a coesão social,

sendo a sua recordação de Ulisses como a recordação de uma tradição que deve ser mantida, ou

reavivada numa nova ordem que se irá instaurar de forma a unir a sociedade em torno de um ideal,

que é o seu marido, Ulisses.941

4.3.2. O svayaṃvara de Draupadī e rājasūya de Yudhiṣṭhira

O primeiro exílio dos Pāṇḍavas (que se dá após os Kauravas tentarem assassiná-los num

incêndio na “casa de cera” e do qual escaparão com vida) opõe-se ao segundo exílio pelo facto de

no primeiro estarem acompanhados pela sua mãe e no segundo pela sua esposa, o que representa um

crescimento dos príncipes, sendo possível comparar esta viagem àquela de Telémaco (que escapa a

uma emboscada, não à partida, mas à chegada). Foi durante este primeiro exílio que todos

encontraram para si uma esposa, que será uma única mulher partilhada pelos cinco, representando

este exílio, numa primeira análise, a passagem da adolescência à idade adulta, e por consequência

uma passagem do mundo feminino para o mundo masculino. Este curioso casamento é explicado

por Vyāsa, quando antes do svayaṃvara conta aos Pāṇḍavas a história de uma rapariga (a vida

anterior de Draupadī) que, devido a um anterior nascimento, era muito desafortunada e não

937 Od. 18.246-249: «ei pántes se ídoien an᾽Íason Árgos Achaioí, pléonés ke mnēstē� res en hymetéroisi dómoisin ēō� then dainýat᾽, epeì períessi gynaikō� n eîdós te mégethós te idè phrénas éndon eḯsas.»

938 Stephanie W. Jamison, “Giver or Given?: Some Marriages in Kālidāsa” in Laurie L. Patton (ed.), Jewels of Authority: Women and Textual Tradition in Hindu India, New York, Oxford University Press, 2002, p. 69.

939 Stephanie W. Jamison, “Giver or Given?: Some Marriages in Kālidāsa” in Laurie L. Patton (ed.), Jewels of Authority: Women and Textual Tradition in Hindu India, New York, Oxford University Press, 2002, pp. 78-79.

940 Gṛhya Sūtra 1.12: «bhavatpūrvayā brāhmaṇo bhikṣeta bhavati bhikṣāṃ dehīti bhavanmadhyamayā rājanyo bhikṣāṃ bhavati dehīti bhavadantyayā vaisyo dehi bhikṣāṃ bhavatīti», tradução de Stephanie W. Jamison, “Giver or Given?: Some Marriages in Kālidāsa” in Laurie L. Patton (ed.), Jewels of Authority: Women and Textual Tradition in Hindu India, New York, Oxford University Press, 2002, p. 79.

941 Para esta ideia veja-se: Helene P. Foley, “Penelope as Moral Agent” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side: Representing the Female in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, pp. 105-108.

139

encontrava marido, tendo por isso iniciado uma severa penitência para agradar a Śiva, até ao

momento em que este lhe disse que ela podia pedir-lhe o que quisesse.942 Assim, tomada pelo

desejo, pediu cinco vezes por um marido, e Śiva explicou-lhe que, ao ter pedido cinco vezes um

marido, teria no futuro cinco maridos.943 Noutra versão diz-se que Indra havia de encarnar cinco

vezes, ou em cinco homens (os cinco Pāṇḍavas), e casar-se com Śrī (Draupadī).944

Sabendo do svayaṃvara de Draupadī, organizado pelo seu pai Drupada, os Pāṇḍavas dirigiram-

se à cidade de Pāñcāla945 disfarçados de pedintes (que foi o disfarce que tiveram durante todo este

exílio) e entraram no palácio sem que ninguém os reconhecesse.946

Yajñasena (Drupada) sempre nutriu o desejo de dar a sua [filha] Kṛṣṇā (Draupadī) ao Pāṇḍava kirīṭin (“coroado”: Arjuna), mas nunca o disse a ninguém.947

Por isso colocou um arco extremamente firme de maneira a que só Arjuna o pudesse armar.948

Note-se que aqui, antes ainda de sair vencedor do concurso, Arjuna é chamado de kirīṭin (coroado),

ainda que ele nunca venha a ser rei, o que nos sugere novamente que o concurso do arco se

destinava sobretudo a ser vencido por um rei, no entanto, não será apenas Arjuna a sair vitorioso, já

que os cinco Pāṇḍavas, ao verem Draupadī (com a qual se casarão), foram atingidos pelas flechas de

Kāma.949 Como é hábito, todos os pretendentes tentaram armar o arco, mas ninguém (à excepção de

Karṇa, que foi excluído por ser filho de um cocheiro950) o conseguiu fazer.951 Então, Arjuna

levantou-se para participar, o que causou admiração, bem como revolta entre os participantes, pois

ele era apenas um brāhmaṇa/pedinte.952 Arjuna armou o arco, e com a cabeça baixa lançou cinco

flechas que derrubaram o objecto colocado no tecto.953 Ao vencer, fez-se ouvir um grande alvoroço

vindo do céu, provocado pelos deuses alegres, que contrastava com o alvoroço da arena, a

indignação dos pretendentes.954 De igual modo, no momento em que Ulisses arma o arco, Zeus

troveja no céu e os pretendentes mostram a sua indignação na terra.955 Quando Arjuna cumpre a

prova sem dificuldade, é o próprio Karṇa que, admirado, dirá que este brāhmaṇa se assemelha a

942 MBh 1.171.6-9.943 MBh 1.171.10-11 e ss.944 Cf. MBh 1.197.945 MBh 1.186.946 MBh 1.187.7.947 MBh 1.187.8: «yajñasenasya kāmastu pāṇḍavāya kirīṭine / kṛṣṇāṃ dadyām iti sadā na caitad vivṛṇoti saḥ //»948 MBh 1.187.9.949 MBh 1.189.12. “Preparando-os” (ou a nós leitores/ouvintes) para o futuro em que partilharão entre eles a mesma

esposa.950 Draupadī é a encarnação de Śrī, por esse motivo só pode casar-se com um kṣatriya e com alguém que esteja

apto a receber a soberania universal, é por isto que ela rejeita Karṇa. Cf. “Les mariages d'Arjuna” in EMH III, p. 128.951 MBh 1.189.18-28.952 MBh 1.190.2-16.953 MBh 1.190.17-21.954 MBh 1.190.22 e ss.955 Cf. Od. 21.412 e ss.

140

Arjuna e a Indra (pai de Arjuna),956 reconhecendo-o. Draupadī, tal como o seu pai Drupada, ficou

feliz ao ver Arjuna sair vencedor. De seguida, colocou a coroa de flores em volta do seu pescoço,

declarando assim publicamente a sua escolha.957 Neste momento os pretendentes decidiram atacar e

matar Arjuna, ao qual se juntaram os outros quatro Pāṇḍavas, gerando-se uma batalha,958 na qual

Arjuna teve a oportunidade, mais uma vez, de comprovar a sua força, saindo vencedor. A

superioridade de Arjuna fez com que os reis ali presentes desistissem do combate e regressassem

aos seus reinos profundamente admirados com aquele “pedinte”.959 Arjuna regressou igualmente a

casa, na companhia dos seus irmãos e da sua esposa. Ao chegar a casa, Arjuna apresenta Draupadī à

sua mãe Kuntī, como a “esmola” que havia recebido nesse dia.960 Kuntī, sem olhar para trás disse-

lhe que partilhasse a “esmola” que ganhara com os seus irmãos, e só quando terminou de falar olhou

para eles e viu Draupadī.961 Como o seu discurso (ou qualquer discurso) não pode ser dito em vão,

os cinco não tiveram outra escolha senão casar-se com Draupadī.962 O casamento colectivo de

Draupadī com os cinco Pāṇḍavas porta a ideia de um reino repartido entre os cinco num tempo de

crise,963 bem como a ideia de sacrifício, já que Draupadī nasceu para causar destruição dos

kṣatriyas, isto porque o facto de Draupadī casar-se com cinco, e não com outro número de maridos,

simbolizará os cinco fogos sacrificiais, três principais e dois secundários (como são os Pāṇḍavas:

três filhos de Kuntī e dois filhos de Mādrī, a esposa secundária).964 Seria comum a um rei ter mais

do que uma esposa, como Arjuna que se casará com outras três mulheres, no entanto será sempre

Draupadī a mahiṣī (esposa principal) dos Pāṇḍavas, representando as quatro esposas necessárias aos

aśvamedha, em que a esposa principal copula com o cadáver do cavalo, mas uma esposa receber

mais do que um marido, não é de forma nenhuma habitual, nem deverá ser lido como prática real.

Ao contrário das outras mulheres no épico, que são silenciosas, Draupadī (ainda que frequente 956 MBh 1.190.19; “Les mariages d'Arjuna” in EMH III, p. 129.957 MBh 1.190.28-29.958 MBh 1.191-192.959 MBh 1.192.30-38. O svayaṃvara de Draupadī será recontado em: MBh 3.231-233.960 MBh 1.193.1.961 MBh 1.193.2.962 MBh 1.193.5-16. É aqui que aparece Kṛṣṇa (MBh 1.193.18), para apaziguá-los nesta situação insólita. Kṛṣṇa

aparece pela primeira vez na cena épica, no momento em que Draupadī deverá escolher Arjuna como marido, aparecendo novamente quando os cinco deverão casar-se com uma única mulher, dando a entender que Kṛṣṇa é fundamental para esta união. “Les mariages d'Arjuna” in EMH III, p. 130 e ss.

963 “Les mariages d'Arjuna” in EMH III, p. 130. Existem cinco povos mencionadas no ṚV, chamados pañca-jana, pañca-kṛṣṭi ou pañca-mānuṣa, das quais as tribos dominantes seriam os Pūrus e os Bharatas (as duas tribos são ancestrais dos Kuru-Pāñcāla). Cf. Upinder Singh, “Tribes and Wars” in A History of Ancient and Early Medieval India: From the Stone Age to the 12th Century, Delhi, Dorling Kindersley, 2009, p. 187 e ss.; George Erdösy, “The Pūru” in The Indo-Aryans of Ancient South Asia: Language, Material Culture and Ethnicity, Berlin, de Gruyter, 1995, p. 328 e ss.

964 Madeleine Biardeau, Le Mahābhārata: Un récit fondateur du brahmanisme et son interprétation, vol. I, Paris, Éditions du Seuil, 2002, pp. 282-283. O MBh apresenta-se como um veículo da lei oficial, bem como de especulações, como aquelas sobre as acções de um anterior nascimento, contudo, só a Draupadī é revelado um acto passado concreto e a sua aplicação na vida presente, o facto de ter cinco maridos se dever a na vida passada ter pedido cinco vezes a Śiva por um marido. Cf. Vishwa Adluri, Joydeep Bagchee (edd.), “Among Friends: Marriage, Women, and Some Little Birds” in: Reading the Fifth Veda, Studies on the Mahābhārata - Essays by Alf Hiltebeitel, vol. I, Leiden, Brill, 2011, pp. 225-228

141

ouvinte) sendo paṇḍitā (erudita) representa muitas vezes uma certa voz da razão, discutindo

directamente com Yudhiṣṭhira, bem como Kṛṣṇa e a sua esposa Satyabhāmā, sobre o dharma.965

Existem seis guṇas (qualidades) da política real e da acção, que poderão ajudar a compreender a

relação entre os Pāṇḍavas e Draupadī, de acordo com o ManuS são: paz; guerra; andar; parar;

estratégia; e aliança.966 Assim, podemos compreender o casamento de Draupadī com os cinco

Pāṇḍavas, num total de seis, como uma metáfora a esta situação, na mesma sequência: Yudhiṣṭhira

(paz); Arjuna (estratégia); Bhīma (guerra); Nakula e Sahadeva (andar e parar); Draupadī (aliança).

Depois deste casamento, o segundo episódio mais importante para Draupadī, dar-se-á após o

rājasūya de Yudhiṣṭhira, em que ela será arrastada pelos cabelos para a sabhā (assembleia) depois

de ter sido perdida num jogo de dados, numa situação que gerará o segundo exílio dos Pāṇḍavas. O

jogo de dados do MBh ter-se-ia tornado num segundo casamento de Draupadī, este não por escolha

pessoal mas por “obrigação”, que não se enquadra directamente em nenhum dos tipos de casamento

IE, já que aqui a princesa seria ganha como “escrava”. Este jogo de dados coincide com a fase final

do ritual de consagração régia (o rājasūya) de Yudhiṣṭhira, pelo que será inteiramente simbólico.

Aqui o jogo de dados é realizado por Yudhiṣṭhira, na presença dos seus quatro irmãos, semelhante

ao rei, que no rājasūya jogava (indirectamente) com outras quatro pessoas (cada uma representando

uma varṇa).967 O facto de o objectivo do jogo de dados ser roubar Draupadī, e de Yudhiṣṭhira jogar

directamente contra os Kauravas, o que contrasta com o ritual na sua forma original, leva-nos a crer

que este rājasūya de Yudhiṣṭhira pode estar relacionado com Arjuna, que joga indirectamente e é

aquele que ganhou a esposa, Draupadī.

Tal como a guerra de Tróia começa com o Pomo da Discórdia lançado durante o casamento de

Peleu e Tétis, situação que gerará a eleição de Afrodite como a mais bela das deusas, também no

MBh toda a discórdia começa com o casamento dos Pāṇḍavas com Draupadī, união que é muito mal

aceite pelos Kauravas (então pretendentes)968 já que permite o rājasūya de Yudhiṣṭhira. Durante o

rājasūya alguns acontecimentos permitem antever os terríveis acontecimentos que se seguirão ao

longo do épico. Primeiro Śiśupāla critica Kṛṣṇa e Yudhiṣṭhira, bem como o rājasūya, acabando por

ser morto,969 depois desperta-se a ira dos Kauravas. Duryodhana e Śakuni ao entrarem no palácio de

Yudhiṣṭhira (construido por Maya, deus da ilusão), confundem cristal com água, paredes com

passagens, etc., cumprindo um conjunto de situações humilhantes que provocam o riso nos

Pāṇḍavas, despertando a ira que só terá fim com a sua morte.970 Duryudhana, com inveja de

965 Vishwa Adluri, Joydeep Bagchee (edd.), “Among Friends: Marriage, Women, and Some Little Birds” in: Reading the Fifth Veda, Studies on the Mahābhārata - Essays by Alf Hiltebeitel, vol. I, Leiden, Brill, 2011, p. 229.

966 ManuS 7.16.967 Cf. Susheel K. Sharma; Vinod K. Singh, "Indian Idea of Kingship", IJPS 71/2, 2010, p. 388.968 MBh 1.190-191.969 MBh 2.37-45.970 MBh 2.47.1 e ss. Isto pode ser entendido como o local onde os outros reis caem (se subjugam e curvam?), sob o

142

Yudhiṣṭhira, queixa-se a Śakuni do tamanho poder que tem o seu rival,971 e Śakuni, que é a constante

representação do mal e do engano, engendrará um plano para derrotar e destruir o poder de

Yudhiṣṭhira. Sendo ele um grande jogador de dados, irá burlar Yudhiṣṭhira através do logro num

jogo.972 Este jogo é um episódio controverso e complexo, que define todo o MBh. Muitos são

aqueles que na corte dos Kurus se opõem ao jogo. No entanto, quando Yudhiṣṭhira, filho do

Dharma, é informado do seu convite para jogar, ainda que ele se oponha à sua realização e esteja

certo da desgraça que sucederá,973 não pode recusar um convite, aceitando o destino que os deuses

lhe tecem.974 Todo o jogo é simbólico e cerimonial, Yudhiṣṭhira rodeado dos seus quatro irmãos,

joga contra Śakuni rodeado pelos Kauravas e Karṇa.975 Em suma, Yudhiṣṭhira irá apostando os seus

bens em vinte jogadas, perdendo sempre, a ordem das apostas durante o jogo é, respectivamente: 1)

um colar de pérolas; 2) cofres cheios de moedas de ouro; 3) um carro de guerra; 4) cem mil jovens

servas; 5) cem mil jovens servos; 6) mil elefantes na época do cio; 7) mil carros de guerra,

juntamente com cavalos obedientes e guerreiros; 8) os cavalos da raça tittiri, kalmāṣā e gāndharvā;

9) milhares de carros de guerra e carroças com vários cavalos, e seis mil guerreiros; 10)

quatrocentos cofres cheios de ouro puro; 11) milhares e milhares de riquezas várias; 12) inúmeros

cavalos, vacas, ovelhas, cabras e vacas leiteiras; 13) a sua cidade, o seu país, o seu território e a

riqueza do seu povo; 14) todos os brincos, colares e adornos; 15) Nakula; 16) Sahadeva; 17)

Arjuna; 18) Bhīma; 19) a ele próprio; 20) e a Draupadī.

Nesta lista podemos ver o interesse que cada bem tem em comparação com os outros, assim, a

esposa é mais importante que ele próprio, embora ele seja mais importante que os seus irmãos, os

seus irmãos mais importantes que os adornos, e os adornos mais importantes que o seu país,

território e riqueza, etc. Ao jogar Draupadī, Yudhiṣṭhira descreve-a de forma peculiar, sem grande

romantismo, descrevendo-a como um “meio-termo”, e definindo provavelmente o que deveria de

ser uma esposa perfeita, e não propriamente Draupadī, contudo, de forma muito semelhante àquela

com que Penélope é descrita, dizendo:

Nem demasiado baixa nem demasiado alta, nem demasiado magra nem demasiado gorda, o seu cabelo é negro e encaracolado – eu aposto Draupadī! Os seus olhos são pétalas de lótus no Outono, a sua fragrância e beleza, também! Ela é a própria deusa da beleza! Ela possui gentileza, uma figura perfeita, uma moral excelente – qualidades que os homens procuram nas mulheres. Amigável e possuidora de todas as virtudes, ela fala graciosamente e é tudo aquilo que um homem pode querer na sua busca pela Justiça, Prazer e Riqueza. Ela é a última a adormecer à noite, e a primeira a acordar com a aurora; ela cuida de todos, até de pastores e vaqueiros. Aspergida pela doçura, e cheia de flores de lótus, a sua face é radiante como o jasmim; os seus olhos são de cobre vermelho; o seu cabelo é longo mas não demasiado luxuriante; a sua cintura é como um altar. Esta mulher

poder de Yudhiṣṭhira. 971 MBh 2.47.23-26.972 MBh 2.48.19 e ss.973 MBh 2.58.1 e ss.974 MBh 2.58.14-16.975 MBh 2.60.1 – 65.39.

143

delicada e de bela cintura, rainha de Pāñcāla, de amáveis formas é agora a minha aposta, Saubala!976

E todos na assembleia se indignaram, só os Kauravas ficaram felizes com o resultado.977 De

seguida, desenhar-se-á um dos mais famosos episódios do épico, bem como de qualquer mulher

épica: Duyodhana, sob a chuva de críticas e presságios de Vidura, manda ir buscar Draupadī,978 Um

mensageiro irá ao encontro de Draupadī. No entanto as complicadas questões que esta lhe coloca,

fazem-no regressar de mãos vazias à assembleia. Esta situação de avanços e recuos repetir-se-á mais

uma vez, em que Draupadī vai ganhando tempo tentando proteger-se.979 Declarando que se

Yudhiṣṭhira se apostou a ele primeiro, então já era um “escravo” quando apostou a sua esposa, desta

forma a jogada deverá ser anulada.980 Face a isto, e porque ninguém consegue responder às questões

que Draupadī envia através do mensageiro, é o próprio Yudhiṣṭhira que envia um mensageiro capaz

até Draupadī, que não conseguirá igualmente trazê-la, porque ela está menstruada e não poderá

apresentar-se publicamente durante três dias.981 É então que Duḥśāsana, sob as ordens do seu irmão

Duryodhana, foi direito aos quartos das mulheres e traz Draupadī pelos cabelos até à assembleia.982

Quando entrou na sala arrastada daquela forma, Draupadī criticou duramente todos os homens

presentes por nada fazerem, no entanto, ninguém lhe respondeu à sua repetida questão983 ou

defendeu,984 ela voltará a criticar e a colocar a mesma questão sobre a legitimidade de Yudhiṣṭhira

em apostá-la, mas ninguém tem resposta para tão delicada questão.985 Continuaria a ser Draupadī

propriedade de Yudhiṣṭhira mesmo depois de este se perder a ele mesmo? De acordo com o

976 MBh 2.65.33-39: «n'aiva hrasvā na mahatī na kṛśā n'atirohiṇī / nīlakuñcitakeśī ca tayā dīvyāmy ahaṃ tvayā // śārad'otpalapatr'akṣyā śārad'otpalagandhayā / śārad'otpalasevinyā rūpeṇa śrīsamānayā // tath'aiva syād ānṛśaṃsyāt tathā syād rūpasaṃpadā / tathā syāc chīlasaṃpattyā yām icchet puruṣaḥ striyam // sarvair guṇair hi saṃpannām anukūlāṃ priyaṃvadām / yādṛśīṃ dharmakām'arthasiddhim icchen naraḥ striyam // caramaṃ saṃviśati yā prathamaṃ pratibudhyate / ā gopāl'avipālebhyaḥ sarvaṃ veda kr, t'akr, tam // ābhāti padmavad vaktraṃ sasvedaṃ mallak'eva ca / vedīmadhyā dīrghakeśī tāmr'akṣī n'atiromaśā // tay'aivaṃvidhayā rājan pāñcāly'ahaṃ sumadhyayā / glahaṃ dīvyāmi cārvaṅgyā draupadyā hanta saubala»

977 MBh 2.65.40 e ss.978 MBh 2.66.1 e ss.979 MBh 2.67.5 e ss.980 MBh 2.67.7-16.981 Cf. nota MBh 2.67.19.982 MBh 2.67.27-33.983 Aqui está um dos vários exemplos em que a questão é colocada: «Até ao meu svayaṃvara, em que eu fui até à

assembleia dos reis, eu nunca havia sido vista em público antes. Nem havia voltado a ser vista até hoje, quando me vi arrastada para esta sala! Eu, a quem nem os ventos ou o sol haviam visto, encontro-me aqui hoje perante todos vós! Eu, a quem os Pāṇḍavas desejam que nem a brisa toque, mesmo dentro do meu palácio, eles permitem agora que seja abusada por este desgraçado! Certamente o Tempo saiu da sua rota! Como podem estes Kurus permitir que a sua filha e nora ser desta forma atormentada! Que maior miséria se poderá abater sobre alguém como eu, uma bela e virtuosa mulher, do que ser forçada a entrar numa sala cheia de homens? O que aconteceu à honra dos reis? É bem sabido que os reis da antiguidade nunca trouxeram mulheres honradas para as suas audiências públicas – os Kauravas destruíram esta virtude ancestral! Como poderei eu entrar na sala dos monarcas, eu que sou esposa dos filhos de Pāṇḍū, irmã de Pārṣata e amiga de Vāsudeva? Será a esposa do Rei Dharma (Yudhiṣṭhira), cujo nascimento e classe rivalizam com os dele, uma escrava? Digam-me, Kauravas, e eu deverei aceitar o vosso julgamento. Este vil desgraçado, desgraça dos Kauravas, abusa de mim – e não o posso aceitar por mais tempo! Pensem bem, nobres reis, se eu fui ganha ou não. Eu quero uma resposta, a qual aceitarei independentemente do vosso veredito.» MBh 2.69.4-13.

984 MBh 2.67.40 e ss. Todos os Kauravas se riam, e Duḥśāsana ia gritando “escrava!”. MBh 2.67.42 e ss.985 MBh 2.67-68.

144

ManuS986 a mulher é dada do pai para o marido como uma transferência de “propriedade”.

Geralmente, é o pai quem oferece a esposa ao marido. No entanto, vemos que quando Arjuna

ganha Draupadī, será Kuntī quem a “dará” aos outros quatro filhos. Vemos que isto seria de alguma

forma possível, já que no Vikramorvasī de Kālidāsa, Mahiṣī (a esposa principal) do rei Purūravas,

dá o rei (e seu marido) à apsarā Urvasī, e este chega mesmo a dizer-lhe:

Tu tens o poder de me dar a outra ou de me tornar escravo.987

Será igualmente possível à mulher, de acordo com ManuS,988 possuir bens que lhe são dados:

aquilo que lhe é dado no casamento; no cortejo; objectos que representem a afeição do seu marido;

o que lhe é dado pelo irmão; pela mãe; e pelo pai. A aprovação do casamento teria de ser dada pelo

pai, no entanto, alguns textos permitem que seja a mãe a dar permissão para o casamento,

principalmente naqueles ditos mais complicados, i.e, nos tipos gāndharva, āsura, rākṣasa e

paiśāca.989 A aprovação materna seria dada não antes do casamento, mas após o casamento, isto

porque representaria a facção parental que mais facilmente perdoaria uma infração ou um

casamento não consentido pelo pai.990

Face à ilegitimidade da aposta de Draupadī, será Dhṛtarāṣṭra (o rei cego) a declarar que a

princesa foi injustamente ganha, porque os cinco maridos de Draupadī já haviam sido apostados.991

Os Kauravas indignam-se e Karṇa diz que uma mulher com cinco maridos só pode ser uma

prostituta, e ordena que tanto os Pāṇḍavas como Draupadī se dispam.992 Os Pāṇḍavas despir-se-ão, e

Duḥśāsana começa a puxar violentamente a túnica de Draupadī em plena assembleia. O “véu” que a

esposa usa, como o avaguṇṭhana, é na índia símbolo da condição de esposa, que só deveria ser

retirado na presença do marido,993 retirar este véu, como no jogo de dados, representará “retirar-lhe”

a condição de mulher casada. Neste momento Draupadī, dirigindo-se aos deuses profere o seu

famoso (e logicamente posterior) mantra:

Govinda! Kṛṣṇa! Tu que tens morada em Dvārakā, adorado pelas gopīs! Será que não vês a humilhação que os Kauravas lançam sobre mim? Senhor! Esposo de Lakṣmī! Senhor do vajra (Indra)! Destruidor de todos os sofrimentos! Janārdana, tira-me do oceano dos Kauravas no qual afundo! Kṛṣṇa! Kṛṣṇa! Grande yogi! Alma do

986 5.152.987 Vikramorvasī 3.14. tradução de Stephanie Jamison, “Giver or Given?: Some Marriages in Kālidāsa” in Laurie L.

Patton (ed.), Jewels of Authority: Women and Textual Tradition in Hindu India, New York, Oxford University Press, 2002, p. 70.

988 9.194.989 Cf. Yājñavalkya Smṛti 1.63, apud Stephanie W. Jamison, “Giver or Given?: Some Marriages in Kālidāsa” in

Laurie L. Patton (ed.), Jewels of Authority: Women and Textual Tradition in Hindu India, New York, Oxford University Press, 2002, pp. 74-75.

990 Cf. Stephanie W. Jamison, “Giver or Given?: Some Marriages in Kālidāsa” in Laurie L. Patton (ed.), Jewels of Authority: Women and Textual Tradition in Hindu India, New York, Oxford University Press, 2002, p. 75.

991 MBh 2.68.11-24.992 MBh 2.68.27-38.993 Stephanie W. Jamison, “Giver or Given?: Some Marriages in Kālidāsa” in Laurie L. Patton (ed.), Jewels of

Authority: Women and Textual Tradition in Hindu India, New York, Oxford University Press, 2002, p. 72.

145

Universo! Criador de todas as coisas! Salva uma alma aflita de se afundar entre os Kauravas!994

E será o próprio deus Dharma (ainda que esta se dirija a Kṛṣṇa) que oculta o corpo da rainha num

tecido infinito que se desenrolou em centenas e centenas de tecidos.995 Draupadī kṛṣṇā, pelo facto de

possuir o mesmo nome que Kṛṣṇa, representa uma amizade entre os dois (sakhā-sakhī), que não

seria facilmente (legalmente!) permitida entre uma mulher casada com um elemento masculino que

não fosse um dos seus maridos. Tendo em conta que o Pāṇḍava preferido de Draupadī, tal como de

Kṛṣṇa é Arjuna, forma-se uma amizade íntima que deve ser tida em conta no épico, em especial na

acção “destruidora” que os três representam.996 Este milagre fez com que Draupadī fosse salva,997

bem como aos cinco Pāṇḍavas, o que é semelhante à mortalha que faz/desfaz Penélope durante três

anos, protegendo-a dos pretendentes. Este erro terrível será proclamado por Vidura, o ministro do

rei:

Certamente o terrível destino, preparado há muito pelos deuses, está agora sobre todos os Bharatas! Vocês jogaram demasiado, filhos de Dhṛtarāṣṭra, disputando uma mulher nesta sala! A vossa prosperidade terminou! Os Kauravas proferiram a linguagem da fraqueza!998

Os Pāṇḍavas em boa verdade, perdem tudo, mas não se perdem a eles mesmos nem à sua esposa.

Depois de os Pāṇḍavas estarem livres, os Kauravas, temendo a ira dos Pāṇḍavas, organizam mais

um jogo de dados, de uma só partida, da qual os perdedores deverão partir em exílio por doze anos,

mais um ano de disfarce,999 e Śakuni vence novamente.1000 Yudhiṣṭhira joga porque não pode recusar

994 MBh 2.68.41-43: «govinda dvārakāvāsin kṛṣṇa gopījanapriya / kauravaiḥ paribhūtāṃ māṃ kiṃ na jānāsi keśava // he nātha he rāmānātha vrajanāthartināśana / kauravarṇavamagnāṃ māṃ uddharasva janārdana // kṛṣṇa kṛṣṇa mahāyogin viśvātman viśvābhāvana / prapannāṃ pāhi govinda kurumadhyevasīdatīm //»

995 MBh 2.68.39-48. Aqui está um dos maiores problemas na análise desta cena, geralmente aponta-se Kṛṣṇa como aquele que salva e oculta Draupadī, quando na verdade é o próprio Dharma (pai de Yudhiṣṭhira) a fazê-lo, ou o próprio Yudhiṣṭhira (aquele que a apostou) a salvá-la. Para a questão veja-se: Vishwa Adluri, Joydeep Bagchee (eds.), “Among Friends: Marriage, Women, and Some Little Birds” in: Reading the Fifth Veda, Studies on the Mahābhārata - Essays by Alf Hiltebeitel, vol. I, Leiden, Brill, 2011, p. 247.

996 Para a discussão do tópico veja-se: Vishwa Adluri, Joydeep Bagchee (edição), “Among Friends: Marriage, Women, and Some Little Birds” in: Reading the Fifth Veda, Studies on the Mahābhārata - Essays by Alf Hiltebeitel, vol. I, Leiden, Brill, 2011, pp. 245-257.

997 Não sofrendo um destino que seria “habitual” para a mulher IE, que era “dada” e “ganha” sem voto na matéria Émile Benveniste, Le Vocabulaire des Institutions Indo-Européenes, vol. I, Paris, Les Éditions de Minuit, 1969, pp. 239-240.

998 MBh 2.71.16b-17: «daiv'erito nūnam ayaṃ purastāt paro'nayo bharateṣ'udapādi // atidyūtaṃ kṛtam idaṃ dhārtarāṣṭrā yasmāt striyaṃ vivadadhvaṃ sabhāyām / yogakṣemo naśyato vaḥ samagrau pāpān mantrān kuravo mantrayanti //». Compare-se com Od. 20.345-357.

999 MBh 2.74.5 e ss.; 76.9-15.1000 MBh 2.76.21-24. As primeiras referências aos jogo de dados encontram-se no ṚV onde se pode ler que: «Os

dados, em verdade, estão armados de aguilhões e ganchos dirigidos, enganando e atormentando, causando dolorosa aflição. Ao homem que vence eles dão frágeis presentes que o destroem, disfarçados do prémio mais justo. Alegremente levam a sua legião, os três e os cinquenta, como Savitṛ o deus, cujos caminhos são justos. Eles não se submetem sequer à grande ira: o próprio Rei presta-lhes homenagem e veneração. Eles rolam para baixo e rapidamente voltam para cima, e sem mãos, forçam o homem munido de mãos a servi-los. Lançados no tabuleiro, como pedaços de carvão, ainda que frios queimam o coração até este ficar em cinzas. A mulher é deixada desamparada e infeliz: a mãe chora o filho que vagueia sem casa. Sempre medroso, devedor, e buscando riquezas, ele vai de noite à casa dos outros. Triste fica o jogador quando vê uma matrona, esposa de outro, e a sua habitação bem cuidada. Ele prepara os cavalos de manhã cedo, e quando o fogo se torna frio ele passa a ser um sem-casta.» (ṚV 10.34.7-11; veja-se também: ṚV 10.27.17. Muitos autores vêem no Aitareya Brāhmaṇa (7.15.33.3) uma referência ao jogo de dados na descrição das quatro Eras, yugas,

146

o pedido, e obviamente, Yudhiṣṭhira não é um tolo que está sempre a ser enganado.1001 Por outro

lado, parece que é ele quem engana os outros, sendo recto, de forma a que o destino se abata sobre

os seus inimigos, e sendo ele filho do Dharma, é seu dever combater tudo o que é adharmico. Da

mesma forma com que Rāma não foi enganado pelo veado dourado, perseguindo-o e perdendo Sītā,

nem terá sido enganada Helena, a verdade é que todos são levados a “errar” por vontade dos deuses,

sempre com o propósito de causar a destruição dos inimigos.

Na Odisseia, da primeira vez que Atena, disfarçada de Mentes, se dirige a Telémaco, Homero

descreve os pretendentes como:

os arrogantes pretendentes que nesse momento se deleitavam com o jogo de dados.1002

Isto poderá representar uma “discórdia” presente em Ítaca, em que os pretendentes (aqui

inimigos do rei) jogam a própria realeza, e perderão o jogo de forma sacrificial. Os dados estão

obviamente relacionados com o “destino” de quem os joga,1003 tal como no rājasūya estão

relacionados com as quatro varṇas. Assim, os pretendentes que jogam dados jogam o seu próprio

destino, que será negro, e não é raro encontrarmos o jogo de dados relacionado com a morte, como

no caso dos Kauravas, bem como no de Pátroclo, que devido a um jogo de dados mata Clitonimo1004

e Anfidamante.1005 O jogo de dados na Odisseia reflectirá assim o mesmo que o jogo de dados no

rājasūya, a confirmação e reconhecimento do poder do rei, Ulisses. O facto de aqui o jogo de dados

estar relacionado com a corte a Penélope desenha-se num esquema sacrificial, a vitória no jogo de

dados, a vitória no concurso do arco e o sacrifício dos outros jogadores (pretendentes à esposa e ao

reino). Draupadī, à semelhança de Penélope, traça correspondências com o próprio reino, e prova

disso é o motivo do jogo de dados, que é retirar a Yudhiṣṭhira o seu poder, bem como a sua esposa, é

por este motivo que só após o seu casamento com Draupadī é que os Pāṇḍavas se tornam

prāptarājyāḥ “possuidores de soberania”,1006 como é comum no imaginário IE, tal como Pāṇḍu, que

ao casar-se pela segunda vez, com a sua co-esposa Mādrī, passou a desejar conquistar o mundo.1007

em que a sua sequência é comparável à sequência do lançamento de dados. Isto pode ser relacionado com a pesagem dos destinos na Ilíada (22.208-213), já que estamos a lidar com um confronto de destinos, onde há um vencedor e um perdedor. E esta parece ser a ideia de todos os confrontos épicos, só um lado pode vencer, e o lado perdedor é totalmente destruído, como no caso dos pretendentes, dos Kauravas e dos rākṣasas.

1001 Cf. “Introdução” in: Mahābhārata II: Sabhāparvan, (trad. Paul Wilmot), col. Clay Sanskrit Library, New York, New York University Press & JJC Fundation, 2006, p. 18.

1002 Od. 1.106-107.1003 Cf. Arist., Ética a Eudemo 8.1247a. 1004 Apolodoro, Biblioteca, 3.13.8.1005 Il. 23.83-88: Quando Pátroclo aparece morto a Aquiles, diz-lhe «não ponhas os meus ossos longe dos teus, ó

Aquiles, mas juntos, já que fomos criados em vosso palácio, quando Menécio me trouxe, criança ainda, de Opunte para a vossa terra, por causa de um homicídio funesto, naquele dia em que eu matei o filho de Anfidamante, na minha estultícia, sem querer, irado no jogo de dados.» Contudo, também existem versões menos dramáticas, como a de Eros e Ganimedes que jogam dados nos jardins do Olimpo (Apolónio de Rodes, Argonáutica, 3.114).

1006 Cf. Kevin McGrath, Strī: Women in Mahābhārata, Boston, Ilex Foundation, 2009, p. 27.1007 MBh 1.105.7.

147

A própria acção da mulher deve ser imitada pelo rei, como nas palavras de Bhīṣma a Yudhiṣṭhira:

um rei deve agir sempre seguindo as mesmas virtudes de uma mulher grávida1008

O que aproxima de alguma forma o rei detentor de poder, da mulher detentora de vida. A questão

de uma esposa de determinada casta ou varṇa ter de se casar com um homem de casta semelhante

pode, de alguma forma, representar na epopeia a forma horizontal com que o poder se move (a filha

de um rei só pode casar-se com um rei), de forma a não existirem injustiças. Assim um homem

recebe o poder/mulher que lhe compete, e o poder/mulher passa a pertencer a um homem ao mesmo

nível. Da mesma forma que sem uma esposa um rei não é de facto rei, também sem filhos o reino

fica ameaçado. Desta forma, o homem necessita da mulher para se cumprir como tal. Draupadī está

presente em muitas situações em que se contam importantes relatos a Yudhiṣṭhira, em especial no

livro III, durante os doze anos de exílio, e em que muitos dos contos são espelhos dela própria,1009 e

que servem principalmente para a educar enquanto rainha.1010 O papel de Draupadī, principalmente

quando acusa Yudhiṣṭhira de nada fazer contra a injustiça provocada pelos Kauravas, coloca-a em

total desacordo com a posição feminina prescrita nos livros legislativos indianos, em que impera a

subordinação,1011 o que nos permite encontrar nela algo que vai muito além da representação da

mulher ou esposa, mas sim, a representação do “poder” e “legitimidade” que o rei necessita de

possuir.

Outros exemplos de svayaṃvara no MBh, ainda que menos simbólicos, poderão dar alguma luz

sobre o que este representava nesta Índia épica. Kuntī, a mãe dos Pāṇḍava, casar-se-á num

svayaṃvara típico,1012 em que é ela quem escolhe o seu noivo, Pāṇḍu:

Kuntī avançou modestamente, tremendo emocionada, e colocou a grinalda de flores (sraj-) em torno do pescoço do rei [Pāṇḍu].1013

Ao contrário de Gāndhārī, mãe dos Kauravas, que será comprada (casamento āsura) para

Dhṛtarāṣṭra.1014 Devido à cegueira de Dhṛtarāṣṭra, o rei de Gāndhāra não quis casar a sua filha, mas

devido à nobreza dos Kurus, consentiu,1015 e Gāndhārī, sabendo da cegueira do seu marido, vendou

os seus próprios olhos,1016 e foi dada a Dhṛtarāṣṭra pelo seu irmão Śakuni.1017 Estas diferenças no

1008 MBh 12.56.44a: «bhavitavyaṃ sadā rājñā garbhiṇīsahadharmiṇā»1009 Cf. Brian Black, “Eavesdropping on the Epic: Female listeners in the Mahābhārata” in Simon Brodbeck, Brian

Black (eds.), Gender and Narrative in the Mahābhārata, London, Routledge, 2007, p. 66.1010 Brian Black, “Eavesdropping on the Epic: Female listeners in the Mahābhārata” in Simon Brodbeck, Brian

Black (eds.), Gender and Narrative in the Mahābhārata, London, Routledge, 2007, p. 67.1011 Angelika Malinar, “Arguments of a Queen: Draupadī's views on kingship” in Simon Brodbeck, Brian Black

(eds.), Gender and Narrative in the Mahābhārata, London, Routledge, 2007, p. 79.1012 MBh 1.112.3.1013 MBh 1.112.7: «tataḥ kāmaparītāṅgī sakṛt pracalamānasā / vrīḍamānā srajaṃ kuntī rājñaḥ skandhe samāsṛjat /»1014 MBh 1.110 e ss.1015 MBh 1.110.11-13.1016 MBh 1.110.14-15.1017 MBh 1.110.17.

148

casamento, poderão subentender uma diferença entre as duas famílias. Kuntī casar-se-á num modo

tipicamente kṣatriya (ainda que não seja o tipo mais heróico) e Gāndhārī casar-se-á conforme

devem casar-se os vaiśyas. Daqui poderíamos supor que a guerra entre Pāṇḍavas e Kauravas é de

facto uma guerra de funções tipicamente IE, em que quem governa justamente, os Pāṇḍavas

(kṣatriyas com apoio dos brāhmaṇas), são destronados pela cobiça e malvadez dos Kauravas

(vaiśyas). Sabemos contudo, que os Kauravas são encarnações de asuras. Nesse sentido, o

casamento de Gāndhārī pelo tipo āsura, poderá ser meramente simbólico da situação dos seus

filhos, no entanto não nos adiantaremos mais neste ponto.

Noutro exemplo, o pai de Damayantī, vendo a puberdade da sua filha chegar, organizou um

svayaṃvara1018 ao qual vieram não apenas reis, mas também deuses.1019 Damayantī (que é mais uma

vez semelhante a Śrī1020) deseja escolher Nala, mas também quatro deuses (Indra, Varuṇa, Yama e

Agni) querem casar-se com ela. Assim, organiza-se um teste, neste caso à mulher, e cinco Nalas

aparecem à sua frente, e só um deles é o verdadeiro.1021 Ela dirá aos cinco Nalas que deseja casar-se

com Nala, comprovando a sua escolha, e pedirá aos deuses que se manifestem.1022 No entanto, ela

conseguiu sozinha distinguir os deuses de Nala, já que as roupas dos deuses eram limpas e as de

Nala estavam com pó, os deuses sentados não tocam com os pés no chão, mas Nala está sentado no

chão e faz sombra, ao contrário dos deuses.1023 Depois de os distinguir, colocou uma coroa de flores

em torno do pescoço do correcto Nala.1024 Também Nala jogará um jogo de dados com o seu irmão,

em que perderá tudo. No entanto, quando o irmão lhe sugere que jogue a sua mulher ele recusa e

parte em exílio.1025 No entanto abandonará a sua esposa pelo caminho, ficando os dois separados por

um longo período de tempo, até que Damayantī pedirá um segundo (embora falso) svayaṃvara,1026

onde o que ela pretende é apenas trazer Nala ao seu encontro. E Nala, vindo ao seu encontro na

forma de um cocheiro chamado Bāhuka,1027 de forma a confirmar a fidelidade da sua esposa, e

ouvindo a sua esposa, e os deuses que confirmaram a sua lealdade, apresenta-se como Nala e

recebe-a como esposa.1028 Além das semelhanças com a história de Ulisses e Penélope, bem como o

efeito de espelho que o conto tem no MBh para com a história de Yudhiṣṭhira, estamos perante um

mútuo reconhecimento: primeiro é Damayantī quem no seu primeiro svayaṃvara reconhece Nala de

entre os cinco Nalas, e preferindo um mortal aos quatro deuses, e depois será Nala a reconhecer a

1018 MBh 3.54.8.1019 MBh 3.54.10 e ss.1020 MBh 3.53.11.1021 MBh 3.57.10.1022 MBh 3.57.17-21.1023 MBh 3.57.24-25.1024 MBh 3.57.27.1025 MBh 3.59-61.1026 MBh 3.71.2.1027 MBh 3.67.2.1028 MBh 3.76.10-41.

149

fidelidade de Damayantī, novamente disfarçado. Será depois deste reconhecimento da fidelidade de

Damayantī, que Nala, tal Ulisses, recuperará todo o seu reino, jogando novamente aos dados, mas

agora ganhando.1029 Mais uma vez estamos perante a necessidade de confirmar a posse sobre a

mulher, bem como a sua lealdade ao marido. É por este motivo que os duplos casamentos se

repetem em tantos episódios.

Outro famoso casamento, é o de Sāvitrī e Satyavāt, que se assemelha à relação entre Orfeu e

Eurídice. O pai de Sāvitrī não conseguia ter filhos e por este motivo passou dezoito anos em

ascetismo, repetindo uma prece, o mantra de Sāvitrī (Sāvitrī é a própria personificação do mantra),

até ao momento em que nasceu a sua filha, da sua rainha mais velha, à qual os brāhmaṇas deram o

nome de Sāvitrī.1030 À semelhança de Draupadī que nasce de um ritual de fogo, e de Sītā que nasce

da terra, Sāvitrī nasce de uma recitação, o que dá a todas estas mulheres uma qualidade “ritual” e

“sacrificial” que não deverá ser ignorada. Quando chegou o momento de se casar, Sāvitrī, que é

comparável à deusa Śrī,1031 partiu em busca de um marido, até encontrar Satyavāt. Assim ela

regressa para dar a notícia a seu pai, o rei, de que escolheu o filho de um rei cego, rei esse que havia

sido enviado para um exílio por um inimigo, e que vivia na floresta, sem poder.1032 Satyavāt é um

rapaz exemplar em todos os aspectos e possui todas as qualidades nobres, com apenas uma

condicionante, o facto de só ter um ano de vida.1033 Entretanto o rei aceita a escolha da filha (dando-

lhe legitimidade), e vai visitar o rei cego, com o qual traça uma aliança.1034 Sāvitrī viveu com

Satyavāt durante aquele ano, cumprindo todas as suas tarefas de esposa honesta e dedicada, até que

chegou o dia fatídico, no qual Satyavāt decidiu ir para a floresta, e Sāvitrī acompanhou-o.1035 A

determinado momento, o marido que se sentia fatigado de caminhar, parou e adormeceu no colo de

Sāvitrī, até que chegou Yama (deus da morte) para o vir buscar.1036 E é aqui que Sāvitrī se aproxima

das outras mulheres épicas, pois conseguirá salvar o marido, quando Yama começa a levar o seu

marido para Sul, Sāvitrī persegue Yama. O deus da morte manda-a voltar para trás mas ela continua

a segui-lo. Isto porque o lugar da mulher é aquele onde o seu marido está, e a partir daqui começa a

discursar sobre o dharma. E o seu discurso é de tal maneira profundo e verdadeiro, que Yama se

volta para trás e promete cumprir-lhe um desejo, mas logo a seguir ela põe-se a persegui-lo

novamente fazendo outro discurso maravilhoso, e Yama acaba por lhe concretizar cinco desejos.1037

E eis o que ela pede, respectivamente: que o pai de Satyavāt volte a ter visão; que o pai de Satyavāt

1029 MBh 3.78.1030 MBh 3.293.5-24.1031 MBh 3.293.25; 29.1032 MBh. 3.294.7-10.1033 MBh. 3.294.22-23.1034 MBh. 3.295.13- 14.1035 MBh. 3.296.17 e ss.1036 MBh. 3.297.6-10.1037 MBh. 3.297.20-64.

150

recupere o reino; que os pais dela possam ter cem filhos para assegurar a continuação da linhagem;

que ela e Satyavāt tenham cem filhos para que as duas linhagens prosperem; e que Satyavāt viva.

Assim, Yama permite que o marido viva e que acorde novamente, para poderem regressar juntos ao

eremitério. Aqui a filosofia e a música tornam-se muito semelhantes, pois a sabedoria (discurso

sobre a lei) da mulher é como a música de Orfeu, permitindo fazer renascer um morto, contudo os

finais são opostos. Eurídice perde-se para sempre, pois Orfeu olha para trás, enquanto que Satyavāt

prosperará, gerando o povo que se chamará Mālavā.1038 O rei que ganha a visão e depois o seu reino,

expressa bem a ideia de que o rei sem reino é cego, ou que um rei pode ser cego a governar, e como

tal entra num exílio. Vemos que Sāvitrī provocará um verdadeiro milagre, pois restitui a visão, o

reino, a vida e a prosperidade, é como se ela própria fosse um protótipo daquilo que deverá ser o

bom governo. Mārkaṇḍeya, que é quem relata esta história a Yudhiṣṭhira dirá:

E tal como Sāvitrī de nobre nascimento, também a virtuosa Draupadī, tão celebrada pelo seu carácter, deverá resgatar-vos a todos.1039

Draupadī faz o mesmo: Depois de Draupadī ter sido desrespeitada no jogo de dados, e depois do

milagre ocorrido com o seu “véu”, Dhṛtarāṣṭra toma uma medida, e começa a partir desse momento

a criticar os Kauravas por terem maltratado Draupadī, a “rainha do dharma” (dharmapatnī)1040 e diz

a Draupadī que escolha um dom. Esta pede para que Yudhiṣṭhira ganhe de novo a liberdade.

Dhṛtarāṣṭra aceita e dá-lhe outro. Desta vez Draupadī pede para que Bhīma, Arjuna e os Gémeos

sejam salvos, Dhṛtarāṣṭra cumpre-o e dá-lhe um terceiro dom, mas ela recusa-o. Face a isto Karṇa

diz:

De todas as mulheres recordadas pelos homens devido à sua beleza, nunca nós ouvimos falar de uma que tivesse cumprido tal acto! Enquanto que os Pārthas (Pāṇḍavas) e Dārtarāṣṭras (Kauravas) estão possuídos por uma grande ira, Draupadī trouxe aos filhos de Pāṇḍū a paz! Enquanto que eles se afundam e afogam em águas profundas, Pāñcālī tornou-se no seu barco, pronta para os levar para a costa.1041

Da mesma forma que Yama fará com o marido morto, também Dhṛtarāṣṭra decidiu então libertar

os cinco maridos de Draupadī, como se o jogo não tivesse acontecido.1042 Esta opção repete as

jogadas em que o rei perdia durante o jogo de dados do rājasūya, e que eram anuladas por serem

imprevistas.

1038 MBh. 3.297.60.1039 MBh. 3.299.15.1040 MBh 2.71.25.1041 MBh 2.72.1-3: «yā naḥ śrutā manuṣyeṣu striyo rūpeṇa saṃmatāḥ / tāsām etādṛśaṃ karma na kasyāś ca na

śuśrumaḥ // krodh'āviṣṭeṣu pārtheṣu dhārtarāṣṭreṣu c'apy ati / draupadī pāṇḍuputrāṇaṃ kṛṣṇā śāntir ih'abhavat // aplave'mbhasi magnānām apratiṣṭhe nimajjatām / pāñcālī pāṇḍuputrānāṃ naur eṣā pārag'abhavat //»

1042 MBh 2.73.2-16.

151

4.3.3. O svayaṃvara de Helena e o reconhecimento dos Aqueus

Se por um lado existem semelhanças entre Helena e Penélope, por outro, também se distinguem,

como na forma com que cada uma delas se casa. Penélope casa-se duas vezes através de uma prova

masculina da qual sairá vencedor o seu marido (dois svayaṃvaras), enquanto Helena é raptada duas

vezes, dois rākṣasas. A esposa que permanece na sua casa recebendo os pretendentes, e aquela que é

raptada para outro local, podem representar dois momentos da História desta Grécia, uma em que os

Gregos são invadidos (Penélope) e outro em que eles saem do seu espaço para atacar um inimigo

estrangeiro (Helena). No entanto, também Helena tem direito ao seu svayaṃvara, o que não permite

fazer uma grande distinção entre as duas mulheres. Antes do svayaṃvara, Tíndaro sacrificou um

cavalo, e obrigou os pretendentes de Helena a permanecer perto das partes do cavalo e a um

juramento, o de o defender a ele e a Helena,1043 este juramento, aliança e reconhecimento do “poder”

presente em Helena não deixa de nos recordar o aśvamedha indiano. O cavalo do aśvamedha que

antes de ser sacrificado caminha pelas terras estrangeiras, onde é proclamada a supremacia do rei,

pode, e antes demais deve, ser também comparado ao cavalo de Tróia, que no final da guerra é

deixado às portas da cidadela de Tróia. Epeios construiu o cavalo de madeira, sob as ordens de

Atena, Ulisses rouba o paládio de Atena do qual a segurança da cidadela de Tróia dependia, e alguns

gregos escondem-se dentro do cavalo, e os Troianos trazem o cavalo para dentro das muralhas e

celebram a vitória.1044 Helena que coloca os Aqueus (que estão dentro do cavalo) à prova, dando três

voltas ao cavalo e depois imitando a voz das suas esposas,1045 traça um paralelo óbvio com a

presença das quatro esposas do rei durante o aśvamedha (três que assistem ao sacrifício e uma, a

esposa principal, que copula com o cadáver do cavalo),1046 representando Helena antes de mais as

esposas de todos os Aqueus. Durante o aśvamedha enquanto a esposa principal copulava (ou

simulava-o, segurando o falo do animal perto de si) com o cadáver do cavalo, as outras três esposas

davam nove voltas ao cavalo, três para a direita, três para a esquerda, e novamente três para a

direita, e um mantra era proferido:

Ó Ambā! Ó Ambālī! Ó Ambikā! Ninguém me está a guiar (nayati). O cruel cavalo está a dormir.1047

Se a presença da esposa principal (mahiṣī) durante o sacrifício do cavalo tem o objectivo de dar

prosperidade ao rei que legitima a sua soberania,1048 então entendemos que a presença de Helena é

fundamental para a vitória dos Aqueus, representando ela mesma as esposas de cada um dos heróis,

1043 Paus. 3.20.9.1044 Pequena Ilíada, Arg, 4-5, in GEF, pp. 123-125.1045 Od. 4.468-475.1046 Cf. ŚpBr 13.4.1.8; 13.2.6.1047 Taittirīya Saṃhitā 7.4.19, 1a-b: «ámbe ámbāly ámbike / ná mā nayati káś caná / sasásty aśvakáḥ //» tradução

de Stephanie Jamison, Sacrificed Wife/Sacrificer's Wife: Women, Ritual, and Hospitality in Ancient India, Oxford, Oxford University Press, 1996, p. 67.

1048 Roman Zaroff, “Aśvamedha: A Vedic Horse Sacrifice”, Studia Mythologica Slavica 8, 2005, p. 81

152

imitando a sua voz.1049 Os Troianos desconfiarão do cavalo, no entanto recebem-no como objecto

consagrado a Atena e celebram a vitória,1050 sendo o desfecho da história bem conhecido. Os ataques

“negativos” (menos nobres) do mundo IE são os nocturnos, aqueles praticados por engano, por

disfarce, segredo ou emboscada, sendo regra geral praticados pelos membros mais novos dos

exércitos.1051 As semelhanças entre o ritual e o cavalo de Tróia permitem que mais uma vez

entendamos em Helena a sua significação de “poder”, bem como aquela que permite esse poder ao

marido/rei, que reaparece de forma curiosa, por exemplo em Ésquilo:

Quem é que deu o nome de Helena àquela esposa da lança (dorígambron) e geradora do conflito?1052

Depois dos pretendentes de Helena jurarem defender Tíndaro e a sua filha Helena,

Ele (Tíndaro) permitiu que a sua filha escolhesse de entre os seus pretendentes aquele para onde a brisa suave de Afrodite a levasse.1053

E Helena escolheu Menelau.1054 Ainda que Afrodite não seja uma deusa casamenteira, estando

esse papel destinado a Hera, a verdade é que o cumpre, como neste caso, e em especial quando se

trata de Helena, a rapariga que mais faz espelho da deusa na terra. Aquiles é por vezes o esposo de

Helena,1055 contudo Pausânias alerta para o facto de que ele não fazia parte dos pretendentes1056 e

não foi para a guerra de Tróia devido a Helena, mas devido a um favor para com os filhos de

Atreu,1057 entendemos uma certa relação de Aquiles com Rāma, Arjuna, Bhiṣma e Ulisses, que não

se misturam directamente com os pretendentes, muito provavelmente para os proteger do papel de

heróis que se sujeitam voluntariamente ao papel de pedintes, e mantê-los no papel de heróis que

raptam pela força ou que são transformados em pedintes profissionais pelo destino e não pela

vontade de casar. Helena foi dada pelo seu pai a Menelau, tal como Penélope a Ulisses, “doação”

que se repetirá (uma reconquista da mulher) de modos diferentes e bem mais trágicos. A questão de

1049 Helena que imita a voz das esposas dos Aqueus no episódio do cavalo de Tróia, que ela contará na Odisseia, está invariavelmente relacionado, como notou Lillian Eileen Doherty , com as Sereias que Ulisses ouve. Dentro do barco Ulisses quer conhecer a história das Sereias, mas não permite que nenhum dos seus homens a oiça, pois trata-se de um conhecimento do passado que é perigoso, e só alguns o podem deter. Dentro do cavalo de pau, Ulisses permite que os seus companheiros oiçam a história, mas não permite que lhe respondam. Cf. Lillian Eileen Doherty, “Sirens, Muses, and Female Narrators in the Odyssey” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side: Representing the Female in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, p. 85 e ss.

1050 O Saque de Ilíon, Arg. 1, in GEF, p.145.1051 “Warriors” in EIEC. Existem quatro tipos de guerra no imaginário IE: 1) A Guerra de Fundação, onde a

primeira e a segunda funções se aliam contra a terceira função 2) O Ataque ao Gado, que é típico da segunda função 3) Os Pecados do Guerreiro, que parte da prática de três erros cometidos pelo guerreiro contra uma ou as várias funções (o regicídio ou ignorar a soberania do rei; a deserção da batalha ou o ataque cobarde; e um regicídio cometido devido a dinheiro ou delito sexual) 4) A oposição e bifurcação de dois heróis. “Warriors” in EIEC. De qualquer forma, nos épicos gregos e indianos o mais importante das batalhas parece ser a “fama”. “Arms and the Man” in IEPM, p. 447.

1052 Ésquilo, Agamémnon, 686-687a.1053 Eur., IA 68-69: «dídōsÔ ᾽helésthai thygatrì mnēstḗrōn héna, hótou pnoaì phéroien Aphrodítēs phílai»1054 Eur., IA 70-71; Hig. Fáb. 78.1055 Paus. 3.19.13; 3.24.10.1056 Paus. 3.24.10.1057 Paus. 3.24.11.

153

existirem para as duas um segundo casamento, poderá simbolizar um “reforço” da sua possessão

pelo marido, ou seja, sendo tomadas pela força, como compete a um guerreiro IE, uma e outra vez.

Numa leitura, poderemos entender as duas possessões que um rei faz do seu reino, aquela em que o

recebe, e aquela em que o reconquista de outros que o usurparam. O reconhecimento do marido

protagonizado pela mulher, sucede igualmente com Helena. A identificação de alguns heróis gregos

desde as muralhas por Helena a Príamo,1058 bem como a batalha entre Menelau e Páris1059 do qual ele

escapa de forma “vergonhosa”, e da qual seria suposto o vencedor receber Helena bem como as suas

posses, são, quando lidas em “separado” dos seus reflexos IE, provavelmente desprovidas de grande

significado, correndo o risco de escorregar mais depressa para o cómico do que para uma prática

real IE. A teichoskopía, “a visão desde a muralha”, dá-se quando Príamo chama Helena para junto

de si, para a confortar, dando o mote para lhe perguntar quem eram os guerreiros Aqueus fora das

muralhas, os guerreiros que são seus familiares ou aliados da sua pátria. Em primeiro lugar pergunta

por Agamémnon, cunhado de Helena, depois por Ulisses, depois por Ajax, e Helena identificou-os a

todos, indicando-lhe ainda Idomeneu, Castor e Pólux, podendo ainda nomear muitos mais.1060

Enquanto Helena estava a tecer uma grande tapeçaria, assemelhando-se assim às outra mulheres

que “estão protegidas” por algum género de tecido em momentos decisivos, Íris veio como

mensageira de Afrodite chamá-la às muralhas, para ver o duelo entre Páris e Menelau, de onde sairá

o seu “marido”.1061 E logo Helena sentiu saudades do primeiro marido, e com lágrimas nos olhos,

acompanhada por duas criadas, foi até às muralhas para ver o que sucedia.1062 Aqui Helena encontra

semelhanças com Penélope que se “encosta” à coluna no palácio de Ítaca, quando vai à presença

dos pretendentes, Helena encosta-se à muralha porque está na periferia, e Penélope encosta-se à

coluna porque está no centro, é desta forma que compreendemos imageticamente onde está o

“objecto de desejo”, para os pretendentes e Ulisses está dentro de casa, para os Aqueus está dentro

das muralhas inimigas.

Em primeiro lugar, não fará muito sentido que Príamo, ao fim de nove/dez anos de batalha não

reconheça os heróis gregos, e a segunda será o porquê de após este reconhecimento dos Aqueus

feito por Helena, se gerar uma batalha tão decisiva quanto à sua posse e resgate (terão existido

outras?) apenas no décimo ano de batalha. Estas questões resolvem-se consideravelmente quando

lemos nelas o seu valor ritualístico, como bem viu Jamison,1063 comparando com o seu paralelo no

MBh. Tendo como base o facto de um casamento por rapto (rākṣasa) só ser legal se levado a cabo a

1058 Il. 3.161-244.1059 Il. 3.313-382.1060 Cf. Il. 3.161-170 e ss.1061 Cf. Il. 3.121-138.1062 Il. 3.139-145 e ss.1063 Stephanie W. Jamison, “Draupadī on the Walls of Troy: Iliad 3 from an Indic Perspective”, CA, 13/1, 1994.

154

par de um combate com a família/marido/protector da mulher, leva-nos a crer que a teichoskopía é

uma tentativa de Príamo legitimar o rapto ilegítimo protagonizado por Páris (que foi realizado em

secretismo e sem combate), aproximando-o dos casos de “rapto legal”, como o das princesas de

Kāśi1064 e de Subhadrā.1065 Raptos que mesmo quando pacíficos, i.e., quando a princesa o “deseja”,

devem ser ritualmente “violentos”, porque o heroísmo e força (vīrya) deverá substituir o dote

(śulka), e o acto deve ser anunciado, testemunhado e assegurado através do combate,1066 como

vemos simbolicamente no casamento romano. Um herói não deve receber uma esposa como

“oferta”, porque é contra o seu código de honra, deverá combater por ela.1067 Quando um rapto é

feito de forma ilegal, a família não o deve aceitar e deve agora raptar ou combater o raptor.1068 Para

combater o rapto ilegal, nada melhor do que agir conforme a lei, e é isto que Helena e Draupadī

fazem, identificando ao seu raptor (no caso de Helena ao pai do raptor) as qualidades daqueles que

a vêm “contra-raptar” e que pertencem à sua família.1069 Jayadratha, à maneira de Páris, não

combaterá até à morte, mas foge, tal como Páris é “resgatado” por Afrodite. No fundo, tanto

Jayadratha como Páris serão humilhados, Páris ao ser levado por uma deusa, age como um

cobarde,1070 já que ele teria morrido, caso Afrodite não o tivesse ocultado no nevoeiro e levado para

o leito nupcial.1071 Depois Afrodite, disfarçada de anciã, vai chamar Helena, que estava na muralha

no meio de troianas, e manda-a (embora Helena não o deseje) ir deitar-se com Páris, criticando-o,1072

no entanto, os dois unir-se-ão1073 enquanto os Troianos e Aqueus tentavam descortinar fora das

muralhas onde se havia metido o perdedor Páris, o que projecta novamente sobre Páris e Helena a

ideia de secretismo.

4.3.4. O “svayaṃvara” de Sītā e o rājasūya de Rāma

Sītā não terá um svayaṃvara típico, ou seja, não nos é dito que a noiva escolhe o seu marido, o

casamento realiza-se mediante o pretendente que vença um exercício de força, independentemente

da vontade da rapariga. E aqui, tal como em Penélope, o tópico dos pretendentes abusadores e a sua

1064 MBh 1.102.1065 MBh 1.221-222.1066 Stephanie W. Jamison, “Draupadī on the Walls of Troy: Iliad 3 from an Indic Perspective”, CA, 13/1, 1994, p.

8.1067 Stephanie W. Jamison, “Draupadī on the Walls of Troy: Iliad 3 from an Indic Perspective”, CA, 13/1, 1994, p.

9.1068 Stephanie W. Jamison, “Draupadī on the Walls of Troy: Iliad 3 from an Indic Perspective”, CA, 13/1, 1994, p.

9.1069 Stephanie W. Jamison, “Draupadī on the Walls of Troy: Iliad 3 from an Indic Perspective”, CA, 13/1, 1994, p.

11 e ss.1070 Stephanie W. Jamison, “Draupadī on the Walls of Troy: Iliad 3 from an Indic Perspective”, CA, 13/1, 1994, p.

16.1071 Il. 3.380-382.1072 Il. 3.390-428 e ss.1073 Il. 3.438-446.

155

consecutiva morte está presente no mito do nascimento e casamento de Sītā, levando Janaka a

definir o dote da sua filha como a “força”, posto em prática num concurso ao qual muitos reis

atenderam, e aqui as palavras de Janaka merecem ser citadas na sua quase totalidade:

“Embora todos os governantes da terra pretendam esta rapariga, (...) eu não dei a minha filha em casamento, e afirmei que o seu preço seria a força. Como tal todos os reis se prepararam, ó touro entre os sábios, e vieram a Mithilā desejosos de testar a sua força. E desejando testar a sua força, eu ofereci-lhes o arco. Mas eles não conseguiram sequer pegar-lhe, muito menos erguê-lo. Deverás compreender, excelente sábio, que quando eu vi que os poderosos reis possuíam pouca força, rejeitei-os a todos. Mas quando a força dos reis foi colocada em questão, ó touro entre os sábios, todos eles tomados pela raiva montaram cerco a Mithilā. Sentindo-se menosprezados, ó touro entre os sábios, eles encheram-se de fúria e invadiram a cidade de Mithilā. Quando um ano inteiro passou, todos os meus recursos foram consumidos, ó excelente entre os sábios, e eu fiquei na miséria. Desde então, eu agradei aos deuses com austeridades, e os deuses deram-me um exército completo com as quatro divisões. Como tal estes reis malvados, cuja força havia sido colocada em questão, foram vencidos. Eles fugiram com os seus oficiais em todas as direcções, privados da sua força enquanto eram mortos.” 1074

As comparações com o concurso do arco preparado por Penélope (naquele que viria a ser o seu

segundo casamento) são óbvias, permitindo unir os tópicos de “esposa”, “terreno” e “força” em

torno da ideia do concurso, que reflecte o desejo da obtenção do poder.

O facto de “todos os governantes da terra” quererem casar-se com Sītā leva-nos mais uma vez a

crer que esta não é uma rapariga comum, estando a sua posse totalmente relacionada com o

exercício de rei. A sua obtenção através da força está em concordância com os outros concursos ou

raptos que analisámos. Também aqui nenhum dos pretendentes consegue armar/elevar o arco, e

neste caso, sentido-se “menosprezados”, decidiram montar cerco à cidade, consumindo os seus

bens. Este episódio permite dar outra compreensão ao mito de Penélope, subentendendo que quando

um rei não consegue, através da força, conquistar uma cidade ou uma mulher, conquista-a por

desgaste, fazendo cerco, dando a estes episódios uma característica bélica, mais do que cerimonial,

que pode ser igualmente aplicada aos pretendentes que cercam Penélope, i.e., o poder que ela

significa.

No episódio de Sītā o arco volta a surgir como objecto de discórdia e de resolução, e este arco,

tal como o de Ulisses,1075 tem uma história. O arco foi feito e dado por Śiva a Devarata, e aquando

do ritual de Dakṣa (filho da mente de Brahmā), que fez oferendas a todos os deuses menos a Śiva, o

seu irmão (também a Discórdia não foi convidada para o casamento de Peleu e Tétis), desta forma,

o deus apontou o arco a todos os deuses e ameaçou-os de morte, o que levou Brahmā a dar-lhe uma

1074 Rām. 1.65.17-25: «teṣāṃ varayatāṃ kanyāṃ sarveṣāṃ pṛthivīkṣitām / vīryaśulketi (...) na dadāmi sutām aham // tataḥ sarve nṛpatayaḥ sametya munipuṃgava / mithilām abhyupāgamya vīryaṃ jijñāsavas tadā // teṣāṃ jijñāsamānānāṃ vīryaṃ dhanur upāhṛtam / na śekur grahaṇe tasya dhanuṣas tolane 'pi vā // teṣāṃ vīryavatāṃ vīryam alpaṃ jñātvā mahāmune / pratyākhyātā nṛpatayas tan nibodha tapodhana // tataḥ paramakopena rājāno munipuṃgava / arundhan mithilāṃ sarve vīryasaṃdeham āgatāḥ // ātmānam avadhūtaṃ te vijñāya munipuṃgava / roṣeṇa mahatāviṣṭāḥ pīḍayan mithilāṃ purīm // tataḥ saṃvatsare pūrṇe kṣayaṃ yātāni sarvaśaḥ / sādhanāni munireṣṭha tato 'haṃ bhṛśaduḥkhitaḥ // tato devagaṇān sarvāṃs tapasāhaṃ prasādayam / daduś ca paramaprītāś caturaṅgabalaṃ surāḥ // tato bhagnā nṛpatayo hanyamānā diśo yayuḥ / avīryā vīryasaṃdigdhā sāmātyāḥ pāpakāriṇaḥ //»

1075 Salvo pelo facto de ser utilizado na guerra. Rām. 3.23.27.

156

parcela das ofertas sacrificiais.1076 Este arco representa por um lado a imposição da justa divisão dos

sacrifícios entre os deuses, e por outro a legitimação do próprio Śiva. Da mesma forma com que

Ulisses ganhará uma marca real (cicatriz provocada pelo javali) através do arco que lhe deu Ífito. 1077

Quando Rāma experimenta o arco, levanta-o com toda a facilidade, mas ao armá-lo partiu o arco

ao meio, fazendo com que todos, menos Janaka, Visvamitra e os dois raghavas, caíssem devido ao

terrível som provocado, ganhando assim a mão de Sītā.1078 No momento do casamento, as linhagens

(vaṃśāḥ), tanto de Rāma como de Sītā foram anunciadas, como é próprio de um casamento.1079

Entretanto, a relação entre os dois reinos deseja-se que seja tão forte, que os quatro irmãos casam-se

com as quatro irmãs: Rāma e Sītā; Lakṣmaṇa e Ūrmilā; Bharata e Māndavī; e Śatrughna e

Śrutakīrtī.1080

Rāma e Sītā cumprirão o ritual do leito, e depois é descrita toda a felicidade que os envolve, em

que Rāma, possuindo esta princesa se encontra adornado por Śrī.1081

Depois de perder Sītā, Rāma precisará de cumprir outro concurso do arco, para que Sugrīva (rei

dos símios que auxiliarão Rāma no contra-rapto de Sītā) aceite a aliança, o qual ele cumpre de

forma extraordinária.1082 Depois deste concurso, Vālin, o inimigo de Sugrīva será morto por Rāma

com este mesmo arco.

4.4. Calipso e Hiḍimbā: Paradigmas de uma soberania destruída

Ulisses passa sete anos na ilha de Ogígia, tendo lá chegado nove dias depois de andar à deriva no

mar, onde é recebido por Calipso que se apaixona por ele.1083 Calipso por sua vez significa “oculto”,

“velado” e “véu feminino”,1084 o que terá relação com Hiḍimbā, que aparece no MBh na altura em

que os Pāṇḍavas se mantinham ocultos durante o primeiro exílio. Calipso terá, no entanto, recebido

influências próximo-orientais, sendo comparável a Siduri, a “virgem” da Epopeia de Gilgameš que

recebe o epíteto de “velada”,1085 bem como a Aia (a “velada”), a deusa mesopotâmica da aurora e

que é sinónimo de “noiva”.1086 Estas personagens não deixam de encontrar algum reflexo em Durgā

(“acesso difícil” e “perigosa”) e em Kālī (“negra”), ambas relacionadas com a função de

1076 Rām. 1.65.5-10 e ss.1077 Od. 21.13-14. O arco, tal como a cama e a cicatriz, subentende o “reconhecimento”. Cf. NCO, p. 508.1078 Rām. 1.66.15-19. A história do casamento de Sītā e do arco será repetida em Rām. 2.110.26-52.1079 Rām. 1.69.17-32; 1.70.3-13.1080 Cf. Rām. 1.72.17-23.1081 Rām. 1.76.11-18.1082 Rām. 4.11.46-50; 12.2-4.1083 Od. 7.244-260.1084 “καλύπτω” in DELG. 1085 Cf. Nuno Simões Rodrigues, “Ulisses e Gilgameš” in Francisco de Oliveira (coor.), Penélope e Ulisses,

Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2003, pp. 95-96.1086 Nuno Simões Rodrigues, “Ulisses e Gilgameš” in Francisco de Oliveira (coor.), Penélope e Ulisses, Coimbra,

Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2003, p. 98.

157

“esposa”.1087 A Calipso homérica, sendo a “velada” (ou aquela que esconde?), poderá remeter para o

facto de ninguém saber se Ulisses estava vivo ou morto, e por isso “ocultado” no mundo, afastado

(escondido) da sua própria identidade.1088 Isto assemelha-o em muito a Aquiles, tanto pelo facto de

os dois aceitarem a sua “mortalidade”, Ulisses prefere regressar a casa do que ser imortal com

Calipso, e Aquiles prefere uma morte heróica em Tróia do que uma vida longa e inglória,1089 ao

mesmo tempo que ambos se encontram algures em situações de “ocultamento”, Ulisses em Ogígia,

e Aquiles na ilha de Ciros. Isto é ainda semelhante a Arjuna ocultado entre as mulheres na corte de

Virāṭa, e Karṇa, “ocultado” da sua irmandade com os Pāṇḍavas, combatendo contra eles, sem

ninguém, tirando a sua mãe e Kṛṣṇa, o saber. Tendo todos eles a semelhança de serem a encarnação

do ideal heróico na narrativa épica. Sendo que é com frequência, a partir destes episódios de

“ocultamento”, como defende Seth L. Schein, que o pré-herói escolhe ser herói, “desvelando-

se”.1090

Ulisses encontra-se igualmente num centro, como revela ser a ilha de Ogígia:

ilha rodeada de ondas no umbigo do mar1091

Este centro remete-nos para um “centro” dos trabalhos de Ulisses, o “centro” do mar ou daquilo

que o mar representa (o perigo e o desconhecido), ou mesmo um determinado centro civilizacional

no imaginário dos Antigos, que poderá ter que ver com o Atlântico, já que Calipso é filha de Atlas:

esse que do mar conhece todas as profundezas e segura ele mesmo as colunas ingentes, que céu e terra separados mantêm.1092

E sendo que Atlas segura o mundo às costas, dando a ideia de alguém que afunda com o mundo,

ou seja, uma civilização que afunda sob o peso de outra, poderíamos entender que os Antigos

procuraram imprimir à figura de Ulisses uma antiguidade considerável, dado que viajou por vários

locais, incluindo aqueles de sociedade utópicas que haviam desaparecido. Homero terá procurado

reunir várias tradições e relatos, próprios dos aedos viajados, nas viagens de Ulisses. Por este

motivo ele deixou de ser cretense, para passar a ser o melhor dos gregos e uma figura universal,1093

tornando-se no modelo do viajante. Mais tarde os estóicos e epicuristas observarão nas personagens

1087 “dur-ga-” e “kāla-” in DSF.1088 Seth L. Schein, “Female Representations and Interpreting the Odyssey” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side:

Representing the Female in Homer's Odyssey, Nova Iorque, Oxford University Press, 1995, p. 201089 Il. IX, 412-416.1090 Seth L. Schein, “Female Representations and Interpreting the Odyssey” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side:

Representing the Female in Homer's Odyssey, Nova Iorque, Oxford University Press, 1995, p. 20.1091 Od. 1.50: «nḗsōi en amphirýtēi, hóthi t᾽omphalós esti thalássēs»; veja-se também: Od. 7.240 e ss.1092 Od. 1.52-54: «hós te thalássēsÔ pásēs bénthea oîden, échei dé te kíonas autòsÔ makrás, haì gaîán te kaì ouranòn

amphìs échousin»1093 Paul Faure, “Ulysse le Divin (theîos, antithéos) ou la survie d'un héros” in Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant

J.-C.), Paris, Fayard, 1980, pp. 240-244.

158

homéricas, como Ulisses, símbolos de virtudes e enganos,1094 ainda que ele tenha começado por

simbolizar o povo cretense e o fim da Idade do Bronze.1095 Também o nome de Ulisses (Odysseús) é

tipicamente cretense,1096 sendo por isto inútil procurar as terras ou ilhas por onde Ulisses caminhou

no Mediterrâneo, mar Negro ou Oceano Atlântico, pois tudo se terá passado em Creta.1097 De

qualquer forma, Ogígia, pelo facto de ser um centro subentende que este local é a emancipação de

alguma coisa, como de um povo, e por isto Ulisses estaria a Ocidente mirando o Oriente:

desejoso de no horizonte ver subir o fumo da sua terra1098

Calipso parece estar relacionada com os povos PIE,1099 e se julgarmos Ulisses como o herói IE,

podemos com alguma facilidade entender o abandono forçado de Ulisses como um abandono a

determinada realidade civilizacional. Contudo, o ponto essencial desta ilha é precisamente o seu

carácter utópico (de lugar nenhum) bem como o perigo que a rodeava de todos os lados, o mar. Ilha:

onde homens cruéis, selvagens, o prendem contra sua vontade.1100

O que nos permite ver em Calipso não uma figura singular, mas sim uma comunidade bárbara e

violenta, em que Ulisses se encontra retido. Calipso pretende ficar com Ulisses e torná-lo no seu

marido imortal, no entanto, existe um prazo para esta “relação”. Ao fim de sete anos, Hermes, às

ordens de Zeus, pedirá a Calipso que liberte Ulisses,1101 o qual estava já desejoso de regressar a casa,

ainda que para uma mortal, Penélope.1102 Sendo Atlas um Titã, que com Calipso representa

determinada comunidade PIE (que habitava no mar?), podemos compreender que Ulisses

permaneceu durante sete anos num mundo de Titãs, da mesma forma com que os Pāṇḍava

permaneceram no centro do mundo dos rākṣasas, a floresta.

Depois do episódio da Casa de Cera, de onde os Pāṇḍavas e a sua mãe Kuntī escaparam à morte

preparada pelos Kauravas,1103 estes escondem-se na floresta (naquele que é o seu primeiro exílio que

culminará com o casamento entre os Pāṇḍavas e Draupadī) deixando todos os seus familiares em

Hastināpura (salvo Vidura, o conselheiro que havia recebido uma mensagem secreta) a pensar que

eles tinham sido mortos pelas chamas. De entre as muitas aventuras que se sucederão durante esta

viagem que os Pāṇḍavas fazem pela floresta, e que não deixa de ser semelhante àquela que faz

1094 Paul Faure, “Introduction” in Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant J.-C.), Paris, Fayard, 1980, p. 11.1095 Paul Faure, “Épilogue” in Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant J.-C.), Paris, Fayard, 1980, pp. 271-275.1096 Paul Faure, “Introduction” in Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant J.-C.), Paris, Fayard, 1980, p. 9.1097 Paul Faure, “Ulysse ou le Petit Prince. Au royaume d'Idoménée” in Ulysse le Cretois (XIIIe siècle avant J.-C.),

Paris, Fayard, 1980, p. 42.1098 Od. 1.57-58: «autàr Odysseús,hiémenos kaì kapnòn apothrṓiskonta noē� sai»1099 Seth L. Schein, Reading the Odyssey. Selected Interpretive Essays, New Jersey, Princeton University Press,

1996, p. 147.1100 Od. 1.198-199: «chalepoì dé min ándres échousinágrioi, hoí pou keînon erykanóōsÔ ᾽ aékonta»1101 Od. 5.97-115.1102 Od. 5.81-84; 215-224.1103 MBh 1.141-151.

159

Ulisses depois da guerra, uma delas é o Hiḍimbabadha-parva (a morte de Hiḍimba). Os Pāṇḍavas

haviam parado de caminhar e deitaram-se para dormir na floresta, momento em que um rākṣasa

chamado Hiḍimba estava com fome e à procura de humanos para caçar, ao sentir o odor a humanos

pediu à sua irmã Hiḍimbā que os matasse e os trouxesse como alimento.1104 No entanto, quando

Hiḍimbā chegou ao local onde Kuntī e quatro Pāṇḍavas dormiam enquanto Bhīma estava de vigia,

esta apaixonou-se de imediato por Bhīma,1105 assumindo assim a forma humana de uma bela mulher

bem ornamentada e foi ter com ele.1106 Explicou-lhe o que foi ali fazer e que ao vê-lo não o pôde

matar, pois foi atingida pelas flechas de Kāma, desejando agora casar com ele.1107 Entretanto,

Hiḍimba vendo que a sua irmã não regressava, foi ele mesmo ao local, e ao ver a sua irmã

transformada em mulher, criticou-a e tentou matá-la.1108 Este episódio dá a oportunidade a Bhīma de

demonstrar mais uma vez o seu carácter cavalheiresco ao proteger a rākṣasī. Bhīma não permite que

o rākṣasa Hiḍimba mate a sua irmã, gerando-se entre os dois um violento combate, que acordou os

Pāṇḍavas.1109 E enquanto combatiam, Kuntī, a mãe dos Pāṇḍavas, ficou muito impressionada com a

beleza de Hiḍimbā, e quis saber quem ela era.1110 É aqui que Hiḍimbā lhe conta a história que já

conhecemos e lhe diz duas vezes que escolheu Bhīma como o seu marido.1111 Até certo ponto

podemos entender um svayaṃvara de Hiḍimbā, que escolhe ela mesma o seu marido (de entre os

cinco Pāṇḍavas), momento ao qual se segue uma prova (combate), entre a figura masculina que tem

poder sobre ela (o seu irmão, o rākṣasa Hiḍimba) e o seu “noivo” Bhīma. Estando Hiḍimba

morto,1112 Hiḍimbā pedirá a Kuntī e a Yudhiṣṭhira que permitam que Bhīma se case com ela.1113

Yudhiṣṭhira aceitará e decretará que ela poderá passar o dia com Bhīma, mas que à noite o deverá

devolver à sua mãe e irmãos.1114 Bhīma aceita casar-se com ela, confirmando pela palavra que ficará

com ela até que esta lhe gerasse um filho. Acordo que ela aceitou.1115 Desta forma, ao fim de um

ano, Hiḍimbā gerou um filho de Bhīma, o qual se tornou rapidamente um magnífico guerreiro,

chamado Ghaṭotkaca. Nascimento que marcou o momento em que Bhīma os abandonou.1116 Pensa-

se que Hiḍimbā seria originalmente uma deusa dos Himalaias, bem como uma deusa em Manali.1117

1104 MBh 1.154.1-11.1105 MBh 1.154.18.1106 MBh 1.154.22-23.1107 MBh 1.154.28-29.1108 MBh 1.155.1-20.1109 MBh 1.155.45. Cf. Madeleine Biardeau, Le Mahābhārata: Un récit fondateur du brahmanisme et son

interprétation, vol. 1, Paris, Éditions du Seuil, 2002, pp. 260-263.1110 MBh 1.156.1 e ss.1111 MBh 1.156.9 e 11.1112 MBh 1.156.32.1113 MBh 1.157.5-15.1114 MBh 1.157.16-18.1115 MBh 1.157.19-21.1116 MBh 1.157.22-42.1117 Shiva C. Bajpai, “Hibimba”, in Lahaul-Spiti – A Forbidden Land in the Himalayas, Delhi, Indus Publishing

Co., 1987, p. 79.

160

Os Himalaias, sendo elevados, de difícil acesso e a morada de alguns deuses (como Śiva),

representam eles mesmos um centro (que alguns gregos confundiram com o Cáucaso1118). De forma

semelhante, Calipso, filha de Atlas, representa ela mesma um centro no mar. Esta ideia de centro

está de resto presente no próprio habitat dos rākṣasas, a floresta, os locais inacessíveis, incivilizados

e desconhecidos. O centro nas duas narrativas terá um objectivo literário e temporal para a acção do

épico, já que este primeiro exílio dos Pāṇḍavas na floresta representa o início das hostilidades com

os Kauravas que marcarão toda a narrativa. Da mesma forma, Homero inicia a narrativa de Ulisses

com o seu exílio em Ogígia. Hiḍimba(ā) derivará de hi- “lançar”, “meter em movimento” e de

ḍimba- “pânico”, “bola”, “ovo”, “útero”, etc.,1119 o que relaciona o casal rākṣasa tanto com o pânico

como com o início ou centro de algo.

Os rākṣasas, que representam os perigos da floresta, são também uma “raça”mais antiga e PIE,

entendidos como tribos do território indiano.1120 O mar por sua vez, no imaginário grego, não deixa

de ser semelhante à floresta no imaginário indiano, um local desconhecido, perigoso, indomável e

dominado por monstros, que são em última análise povos bárbaros. Os Titãs da Grécia

correspondem sem dificuldade aos rākṣasas indianos, já que são arqui-inimigos dos deuses,

representando uma “raça” pré-existente que foi dominada e extinta pelos deuses e heróis de uma

nova raça, provavelmente IE, reflectindo de ambos os lados o domínio sobre os povos PIE, ou

autóctones. No MBh Bengali, conta-se que aquando do ritual rājasūya de Yudhiṣṭhira, Draupadī e

Hiḍimbā reclamaram ser a esposa principal (mahiṣī) dos Pāṇḍavas, o que provocou uma querela

entre elas, levando-as a amaldiçoar-se uma à outra. Draupadī amaldiçoou Hiḍimbā, declarando que

o seu filho seria morto por Karṇa, e Hiḍimbā que todos os filhos de Draupadī seriam mortos por

Aśvatthāmā, o que não deixa de ser uma justificação para as mortes destes heróis no épico.1121 Outra

narrativa que faz eco da anterior, é a de Leto e Níobe. Níobe proclamou superioridade maternal

sobre Leto (por ter mais filhos que ela), como tal, Apolo e Ártemis, os dois filhos de Leto, mataram

os seus doze filhos (seis rapazes e seis raparigas).1122

Também as mães Tétis e Éos (a Aurora) se medem, quando os seus dois filhos combatem na

guerra de Tróia: Aquiles (filho de Peleu e Tétis) e o gigante etíope Mémnon (filho de Titono e da

Aurora). Memnón (tal como o filho de Bhīma e Hiḍimbā, Ghaṭotkaca) veio para auxiliar os

Troianos, e segundo uma das tradições, veio dos montes do Cáucaso com um exército de Etíopes e

Indianos, até Tróia,1123 o que não deixa de o relacionar com os Himalaias de Hiḍimbā. A morte de

1118 Arriano 5.3.1-4; Estrabão 11.5.5. 1119 “HI-” e “ḍimba-” in DSF. 1120 D. P. Mishra, Studies in the Proto-History of India, Delhi, Orient Longman, 1971, p. 20.1121 Cf. Amaresh Datta, “Mahābhārata: Adaptacion – Bengali”, in The Encyclopedia of Indian Literature, vol. I,

Delhi, Sahitya Akademi, 1987.1122 Il. 24.602-609.1123 Dictis Cretense 4.4.

161

Mémnon marcaria a aproximação da morte de Aquiles, logo a morte de uma estava relacionada com

a do outro.1124 De forma semelhante, Ghaṭotkaca surgiu na batalha para auxiliar os Pāṇḍavas, sendo

morto por Karṇa, momento que assinala a morte de Karṇa, aqui porque foi obrigado a utilizar a

única arma mágica (a lança de Indra) que poderia derrotar os Pāṇḍavas, contra Ghaṭotkaca.1125 De

acordo com uma tragédia perdida de Ésquilo, quando Mémnon e Aquiles combatem, as respectivas

mães acorrem a Zeus, implorando cada uma pela vitória do seu filho. Desta forma Zeus pesa o

destino de ambos, e sendo o de Mémnon mais pesado, a vitória será de Aquiles.1126

O herói ário Bhīma, e o grego Ulisses (que são de resto comparáveis em vários episódios

relativos a figuras monstruosas1127), entram no mundo de uma raça anterior, de um poder bárbaro,

onde se relacionam amorosamente com uma representante feminina desse mesmo grupo,

representando ela mesma o “centro” desse poder, subentendendo a “impregnação” de um novo

poder no antigo. Isto será uma representação do homem civilizado que entra no mundo tribal e o

renova, controlando-o e implementando a sua lei. Hiḍimbā e Calipso têm um tempo pré-definido

para estarem com estes heróis, e tanto uma como a outra sofrem com a partida, enquanto que Bhīma

e Ulisses seguem o seu caminho sem o desejo de passar mais tempo com estas figuras femininas,

pelo contrário, eles estão mais preocupados com o seu regresso. No caso de Ulisses, o seu regresso à

esposa principal, no caso de Bhīma, o casamento que se seguirá com Draupadī.

1124 Cf. “Eos” e “Memnon” in DGRBM; Etiópicas, Arg. 2-3, in GEF.1125 Cf. MBh 7.153-183.1126 Para a questão veja-se: Nuno Simões Rodrigues, “Um Tema egípcio na Ilíada: a Kerostasia”, in Estudos em

Homenagem ao Professor Doutor José Amadeu Coelho Dias, vol. II, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006.

1127 Algumas comparações foram tratadas por Emily Blanchard West, “An Indic Reflex of the Homeric Cyclopeia”, Classical Journal 101.2, 2005-6.

162

Conclusão

O que é uma heroína épica? Qual o papel da rainha no reconhecimento e preservação das

soberanias? O que é uma esposa e o que é uma rainha? Foram estas as questões que nos levaram a

reflectir sobre o tema específico da Mulher e a Soberania.

Ocultada num universo de acção heróica, a passividade feminina vai desvelando a estrutura

épica, a sua legitimidade, o centro congregador, o sacrifício heróico e a masculinidade simbólica,

mais do que a sua própria definição. Os elementos épicos femininos estruturam-se em torno e

reagem aos masculinos, proporcionando assim à narrativa épica os desequilíbrios que permitem à

sua acção equilibrar-se rumo a uma finalidade e a uma ordem ideológica.1128

Vimos ao longo deste estudo que as soberanias, poderes e legitimações, não se distinguem em

géneros, nem geram a sua separação, pelo contrário, congregam-nos. Por este motivo não nos

ocupámos neste estudo apenas da desgraça feminina, da sua dependência a um elemento masculino,

da ausência do reconhecimento e da liberdade de expressão intelectual e amorosa, da sua fragilidade

e vulnerabilidade, tal como os absorvemos da literatura dos Antigos, porque nos levaria a novas e

inúmeras questões, às quais não nos propusemos a dar resposta. Para além disto, daquilo que será a

conceptualização masculina e tardia da mulher e do feminino na Antiguidade, procurámos

interpretar comparativamente o carácter legitimador que este mesmo feminino adopta na narrativa

épica, o que nos conta e o que nos oculta nas entrelinhas, e acima de tudo, o que simboliza aliada do

masculino, e não alheada dele. Não procurámos apenas uma leitura de opostos, mas sim de

congregações. Não procurámos o confronto de ideias, mas sim a sua unidade conceptual, que

alcançámos através de um método comparativo, estruturalista e psicanalítico.

Certamente que este estudo expõe mais questões do que respostas e mais dúvidas do que

certezas. As conclusões que foram sendo apresentadas ao longo deste estudo, baseiam-se sobretudo

numa reflexão a partir das fontes e bibliografia consultadas. Outras obras teriam acrescentado

valiosos elementos, outras fontes valiosas reflexões, motivo pelo qual o nosso estudo se apresenta

como uma especificidade de um universo demasiado amplo para um trabalho deste género, abrindo

espaço a outras interpretações e a outros trabalhos.

O facto de a literatura épica grega e indiana não nos dar uma reflexão sistemática da mulher ou

do feminino, como viremos a receber do período clássico em ambos os espaços culturais, permitiu-

nos estudar a mulher que não é colocada em directa oposição ao homem, como virá a ser

posteriormente, mas sim, aquela que permite a acção masculina, o seu reconhecimento e a sua

legitimação. Por este motivo, centrámos o nosso estudo na apresentação das idealizações do

1128Nicole Loraux vê esta ideia presente nas deusas. Cf. “Qu'est-ce qu'une déesse?” in Georges Duby, Michelle Perrot, Histoire des Femmes en Occident, vol. 1: L'antiquité, Paris, Perrin, 2002, p. 79.

163

feminino estruturadas na sua função e no seu espaço, que servirão de molde para as definições

institucionais futuras, sobre as quais não nos detivemos em demasia. A narrativa épica é sobretudo

uma fonte de ideologias que forma a posteriori uma tradição, um modelo e um impulso social. Ao

estudarmos o feminino: o princípio, a deusa, a mulher, a esposa, a noiva, a mãe, a filha e a

sacerdotiza, começámos pelas evidências indo-europeias, que nos permitiram entender as estruturas

etimológicas e ideológicas (a partir de uma uniformidade conceptual) do feminino, e a sua relação

com a legitimação e o reconhecimento de soberanias.

É possível identificar as origens linguísticas de determinado espaço, mas não será de todo

possível identificar a origem de panteões divinos e de conceitos culturais, contudo, ideias

semelhantes preservaram-se em locais diferentes, permitindo que as comparemos e interpretemos. A

par da grande semelhança entre o sânscrito védico e o grego homérico,1129 que se repercute de forma

subtil no grego e sânscrito clássicos, existe uma irmandade entre as estruturas culturais da

Antiguidade Clássica e da Índia. Para analisar e comparar estas estruturas, a forma mais segura, e

aquela que apresentámos neste estudo, é a partir do vocabulário indo-europeu, onde nos foi possível

antever estruturas de valores, formas religiosas e estratificações sociais. Não procurámos no

entanto, negar que possa ter existido uma influência directa e horizontal de um lado ao outro. Já que

a Índia terá tido contacto com os povos a Ocidente desde pelo menos 3000 a.C. (como com a

Mesopotâmia), praticado trocas comerciais com o Egipto que datarão do V milénio a.C., etc.1130 No

entanto, não é certo que as semelhanças se devam a influências, mas sim a uma origem indo-

europeia comum. Foi a partir desta origem que desenvolvemos as conclusões apresentadas.

Seguindo este percurso comparativo, chegámos a quatro ideias principais:

1) As deusas indo-europeias estruturam-se por funções mais ou menos específicas, mas

correspondem em última análise a um princípio feminino. Este princípio feminino não se alheia do

masculino, nega a subdivisão e corresponde a uma determinada unidade ideológica, prevendo uma

hierarquização.

2) Esta unidade, princípio ou ideal, que se subdivide em divindades e sub-princípios, age e reage

às heroínas e heróis épicos, que por este motivo passam a ser reflexo de deuses e de ideias que

conduzem toda a acção narrativa. Trata-se de uma plasmação ou conceptualização dos princípios,

expressos, por exemplo, por Hera e Śakti.

3) A passividade feminina age aliada da masculina e representa as qualidades épicas mais subtis,

1129 Cf. Walter Burkert, "A questão do Indo-europeu" in Religião Grega na Época Clássica e Arcaica, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, p. 49.

1130 Para além do Norte Ocidental deste território actualmente indo-paquistanês ter travado contactos com outros povos, também o Sul, e em especial toda a zona costeira, se deu a estes contactos, incluindo aqueles com os povos do Mediterrâneo, desde remota Antiguidade. Cf. Burton Stein (Ed. Por David Arnold), “Introduction”, in A History of India, 2ª edição, colecção The Blackwell History of the World, West Sussex, Wiley-Blackwell, 2010, pp. 8-11.

164

que são a legitimidade, o reconhecimento, a linhagem e o poder, etc. Esta relação, que se congrega e

se afasta, está presente no casamento, no rapto e no contra-rapto, revelando uma estrutura de

legitimações.

4) O facto de as mesmas estruturas, símbolos e princípios serem observáveis em diferentes

espaços: Grécia, Índia, Roma, etc., permitiu-nos colocar a descoberto algumas questões referentes

ao feminino na literatura épica, bem como antever um unidade greco-ariana dentro da unidade indo-

europeia, que nos sugere respostas impossíveis de encontrar quando a reflexão se centra num único

espaço e contexto.

Foi igualmente observado que, tanto nos épicos gregos quanto nos indianos, as vozes femininas

veiculam os valores sociais, colocando-os à prova, em torno de uma narrativa onde «o poder

feminino é canalizado no reestabelecimento da ordem patriarcal», reafirmando esses mesmos

valores.1131 Este papel feminino nos épicos, será na tragédia grega atribuído ao coro, o que nos

permite compreender a mulher épica como uma busca interna do épico pela ordenação e percepção

do mundo factual masculino. A rainha épica é aquela que «conhece o detalhe», discutindo de forma

eloquente os temas do reino e da sociedade.1132 Este facto terá levado alguns autores a

desenvolverem a ideia, como M.L. West,1133 de que a mulher terá sido aquela a iniciar as epopeias,

i.e., cujo lamento na hora da morte dos familiares masculinos, permitiu um “cantar dos feitos”

daqueles que viriam a ser os heróis para as sociedades vindouras. Independentemente de esta ideia

ser acertada ou não, a verdade é que reflecte o papel fulcral e central que a mulher desempenhou ao

longo de toda a História da humanidade, estando presente nos momentos mais importantes da vida

do homem, isto porque encontramos a mulher a cuidar do nascimento, da morte, da honra, da casa,

da educação do homem, numa sociedade que se mantém, provavelmente desde a sua origem,

patriarcal. Uma prova da importância do feminino é precisamente a necessidade de uma princesa,

de uma rainha, como vimos ao longo deste estudo, porque um rei para governar tem de possuir uma

esposa, e um homem só se pode tornar rei, casando com a sua futura rainha. O casamento é um

ritual que permite ao clã ou tribo sobreviver e florescer, permitindo uma sequência dinástica e

genética.1134 Estas mulheres são epicamente retratadas sobre três veículos: o amor, a partir do qual se

estabelece a sua lealdade, ética e protecção; o poder, que representam e o qual está ameaçado,

fomentando toda a intriga épica; a actividade, trabalhando internamente, i.e., dentro de um espaço

fechado, tecendo as relações sociais internais e externas de determinada realidade, e a mobilidade

1131 Cf. Sheila Murnaghan, “The Plan of Athena” in Beth Cohen (ed.), The Distaff Side: Representing the Female in Homer's Odyssey, New York, Oxford University Press, 1995, p. 63.

1132Cf. Kevin McGrath, Strī: Women in Mahābhārata, Ilex Foundation, Boston, 2009, p. 179. 1133 IEPM, pp. 415-419.1134 Cf. IEPM, pp. 415-419; Kevin McGrath, Strī: Women in Mahābhārata, Ilex Foundation, Boston, 2009, pp. 27,

183-187.

165

expressa na transferência matrimonial e no processo de rapto e contra-rapto.

Seguindo a nossa proposta, procurámos expor o processo hierárquico no qual desliza a

feminilidade, tanto divina como heróica, retratando, a partir de vários exemplos indo-europeus, um

quadro geral da mulher e da soberania. Num estudo que não valerá somente pelas respostas que

encontrou, mas sobretudo pelas questões que foram levantadas e que ficaram por responder,

funcionando como plataforma para futuras reflexões.

166

ANEXOS

Mapa I

167

Mapa II

168

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