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TEMAS DE DIREITO CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO

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  • TEMAS DE DIREITOCONSTITUCIONAL TRIBUTRIO

  • www.lumenjuris.com.br

    EDITORESJoo de Almeida

    Joo Luiz da Silva Almeida

    CONSELHO EDITORIALAlexandre Freitas CmaraAmilton Bueno de CarvalhoArtur de Brito Gueiros SouzaCezar Roberto BitencourtCesar FloresCristiano Chaves de FariasCarlos Eduardo Adriano JapiassElpdio DonizettiEmerson GarciaFauzi Hassan ChoukrFirly Nascimento FilhoFrancisco de Assis M. TavaresGeraldo L. M. PradoGustavo Snchal de GoffredoJoo Carlos SoutoJos dos Santos Carvalho FilhoLcio Antnio Chamon JuniorManoel Messias PeixinhoMarcellus Polastri LimaMarco Aurlio Bezerra de MeloMarcos Juruena Villela SoutoNelson RosenvaldPaulo de Bessa AntunesPaulo RangelRicardo Mximo Gomes FerrazSalo de CarvalhoSrgio Andr RochaSidney GuerraTrsis Nametala Sarlo JorgeVictor Gameiro Drummond

    CONSELHO CONSULTIVOlvaro Mayrink da CostaAntonio Carlos Martins SoaresAugusto ZimmermannAurlio Wander BastosElida SguinFlvia Lages de CastroFlvio Alves MartinsGisele CittadinoHumberto Dalla Bernardina de PinhoJoo Theotonio Mendes de Almeida Jr.Jos Ribas VieiraLuiz Paulo Vieira de CarvalhoMarcello CiotolaOmar Gama Ben KaussRafael BarrettoSergio Demoro Hamilton

    RRiioo ddee JJaanneeiirrooCentro Rua da Assemblia, 10 Loja G/HCEP 20011-000 CentroRio de Janeiro - RJ Tel. (21) 2531-2199 Fax 2242-1148

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  • RICARDO LODI RIBEIRODoutor em Direito e Economia pela UGF,Mestre em Direito Tributrio pela UCAM,

    Coordenador e Professor de Direito Tributrio da FGV-DIREITO-RIOe do CEJ 11 de Agosto,

    Advogado no Rio de Janeiro

    TEMAS DE DIREITOCONSTITUCIONAL TRIBUTRIO

    EDITORA LUMEN JURISRio de Janeiro

    2009

  • Copyright 2009 by RICARDO LODI RIBEIRO

    Categoria: Direito Constitucional e Direito Tributrio

    PRODUO EDITORIALLivraria e Editora Lumen Juris Ltda.

    A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.no se responsabiliza pelas opinies emitidas nesta obra por seu Autor.

    proibida a reproduo total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto s caractersticas

    grficas e/ou editoriais. A violao de direitos autorais constitui crime (Cdigo Penal, art. 184 e , e Lei no 10.695,

    de 1o/07/2003), sujeitando-se busca e apreenso e indenizaes diversas (Lei no 9.610/98).

    Todos os direitos desta edio reservados Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

    Impresso no BrasilPrinted in Brazil

  • Ao Rodrigo e ao Bruno, as maiores alegrias daminha vida, com a gratido por todos os momentosfelizes que vocs me proporcionam.

  • Sumrio

    Apresentao .............................................................................................................. xiii

    I A Constitucionalizao do Direito Tributrio .............................................. 11) Introduo ................................................................................................. 12) O Direito Tributrio nos Dispositivos Constitucionais .......................... 2

    2.1) As Declaraes de Direitos dos Contribuintes ................................ 22.2) As Reparties de Competncias Tributrias .................................. 5

    3) Os Valores Constitucionais Tributrios................................................... 73.1) O Ressurgimento da Capacidade Contributiva como Elemento

    Legitimador do Ordenamento Tributrio ........................................ 73.2) Os Valores Constitucionais Aplicados Lei Tributria .................. 11

    4) Concluso .................................................................................................. 21

    II Globalizao, Sociedade de Risco e Segurana ............................................. 25

    III A Segurana dos Direitos Fundamentais do Contribuinte na Sociedadede Risco ........................................................................................................... 431) Introduo: O Processo Histrico e a Segurana Jurdica...................... 432) A Sociedade de Risco................................................................................ 533) Direitos dos Contribuintes, Ambivalncia Fiscal e Legalidade.............. 604) Concluso: A Segurana Jurdica Plural e suas Conseqncias no Di-

    reito Tributrio ......................................................................................... 65

    IV Da Legalidade Juridicidade Tributria ....................................................... 69

    V A Tipicidade Tributria.................................................................................. 811) Determinao e Abstrao ....................................................................... 812) Os Conceitos de Direito ........................................................................... 86

    2.1) Os Conceitos Abstratos ..................................................................... 882.2) Os Tipos ............................................................................................. 91

    3) A Hiptese de Incidncia Tributria e o Tipo ........................................ 96

    VI Conceitos Indeterminados, Discricionariedade e Tributao...................... 1051) O Direito e a Impreciso Conceitual ....................................................... 1052) Conceitos Indeterminados e Discricionariedade .................................... 1073) Reserva Legal Tributria e os Conceitos Indeterminados ...................... 1164) Os Limites Atribuio Normativa ao Regulamento Tributrio .......... 124

    VII A Funo da Lei Complementar Tributria.................................................. 129

    VIII A Medida Provisria em Matria Tributria ................................................ 139

    vii

  • IX O Princpio da Irretroatividade Tributria ................................................... 1431) A Retroatividade das Leis e a Retroatividade Tributria ....................... 1432) A Irretroatividade e o Fato Gerador Complexivo................................... 1493) A Retroatividade no Direito Tributrio .................................................. 151

    3.1) As Leis Interpretativas ...................................................................... 1523.1.1) A Interpretao Autntica na LC n 118/05 ......................... 155

    3.2) A Norma Tributria Sancionatria................................................... 1573.3) As Leis que Estabelecem Novos Critrios de Apurao e Fiscaliza-

    o do Tributo ................................................................................... 159

    X O Princpio da Proteo Confiana Legtima No Direito Tributrio ....... 1631) O Princpio da Proteo Confiana Legtima no Direito Tributrio.. 1632) A Proteo confiana e a Mudana na Interpretao Administrativa .. 1663) A Proteo Confiana nos Atos Administrativos sem Fundamento

    Legal e na Valorao dos Fatos ................................................................ 1683.1) A Proteo Confiana e os Benefcios Fiscais de ICMS sem

    Convnio............................................................................................ 1724) A Proteo Confiana e o Controle da Constitucionalidade da Lei

    Tributria................................................................................................... 1735) Os Efeitos Prospectivos de Deciso sobre a Constitucionalidade de Lei

    Tributria................................................................................................... 178

    XI O Princpio da Anterioridade Tributria ...................................................... 1831) Introduo ................................................................................................. 1832) Temporariedade, Anualidade e Anterioridade ....................................... 1833) A Evoluo no Brasil: da Anualidade Anterioridade........................... 1864) O Princpio da Anterioridade Tributria na Constituio de 1988....... 1895) A Anterioridade Nonagesimal ................................................................. 1926) A Noventena Constitucional.................................................................... 1937) A Anterioridade e as Emendas Constitucionais...................................... 1958) A Revogao de Iseno e a Anterioridade............................................. 200

    XII O Princpio da Capacidade Contributiva ...................................................... 2031) Introduo ................................................................................................. 2032) Breve Histrico da Capacidade Contributiva.......................................... 2053) Fundamento, Contedo e Extenso do Princpio da Capacidade Con-

    tributiva..................................................................................................... 2114) Conflitos da Capacidade Contributiva com Outros Interesses Almeja-

    dos pela Tributao................................................................................... 2225) A Capacidade Contributiva como Princpio Interpretativo................... 2266) Concluses................................................................................................. 231

    XIII Competncia Tributria ................................................................................. 2351) Conceito .................................................................................................... 2352) Competncia Tributria e Sujeio Ativa. Indelegabilidade.................. 2363) Classificao .............................................................................................. 236

    viii

    RossiRealce

    RossiRealce

  • 3.1) Competncia Exclusiva ..................................................................... 2373.2) Competncia Comum........................................................................ 2373.3) Competncia Residual....................................................................... 2383.4) Competncia Extraordinria............................................................. 239

    4) Critrios para Partilha da Competncia Tributria ................................ 2394.1) Nos Impostos Fato Gerador ........................................................... 239

    4.1.1) Impostos da Unio art. 153................................................. 2404.1.2) Impostos dos Estados art. 155............................................. 2404.1.3) Impostos dos Municpios art. 156 ...................................... 240

    4.2) Nos Tributos Vinculados Competncia para a Atividade Estatal . 2405) Conflitos de Competncia ........................................................................ 241

    5.1) Bitributao........................................................................................ 2426) Competncia Tributria e Federalismo Fiscal......................................... 244

    XIV Federalismo Fiscal e Reforma Tributria ...................................................... 2491) Introduo ................................................................................................. 2492) Federalismo: Evoluo Histrica ............................................................. 2503) Federalismo: Conceito e Elementos Constitutivos ................................. 2514) Formas de Federalismo no Estado Contemporneo ............................... 2545) Federalismo Fiscal e a Distribuio de Rendas e Atribuies................ 2566) Federalismo e Centralizao Fiscal no Brasil .......................................... 2597) Concluso .................................................................................................. 266

    XV A Interpretao da Lei Tributria ................................................................. 2671) Introduo ................................................................................................. 2672) Os Mtodos de Interpretao e sua Evoluo Histrica......................... 267

    2.1) A Jurisprudncia dos Conceitos e o Mtodo Sistemtico ............... 2682.2) A Jurisprudncia dos Interesses e o Mtodo Teleolgico ............... 2702.3) A Jurisprudncia dos Valores e a Pluralidade Metodolgica.......... 275

    3) A Interpretao no Direito Tributrio Brasileiro ................................... 284

    XVI A Eliso Fiscal e a Clusula Geral Antielisiva .............................................. 2891) Introduo ................................................................................................. 2892) O Combate Eliso e a Teoria do Abuso de Direito .............................. 289

    2.1) Conceito e Requisitos do Abuso de Direito..................................... 2892.2) O Abuso de Direito no Direito Tributrio....................................... 290

    2.2.1) Requisitos da Eliso Abusiva ................................................. 2902.2.2) Distino entre Abuso de Direito e Simulao..................... 2922.2.3) Modalidades de Eliso Abusiva ............................................. 2932.2.4) Abuso de Direito e Licitude................................................... 296

    3) O Combate Eliso e as Clusulas Antielisivas ...................................... 2973.1) As Clusulas Antielisivas no Direito Comparado............................ 298

    4) As Clusulas Antielisivas no Brasil .......................................................... 3014.1) A Clusula Geral Antielisiva do Pargrafo nico do Artigo 116 do

    CTN .................................................................................................... 301

    ix

  • 4.2) A Ausncia de Regulamentao da Clusula Geral Antielisiva...... 3045) Concluses................................................................................................. 304

    XVII A Natureza Interpretativa do Art. 129 da Lei n 11.196/05 e o Combate Eliso Abusiva na Prestao de Servios de Natureza Cientfica, Arts-tica e Cultural ................................................................................................. 3071) Introduo ................................................................................................. 3072) A Prestao de Servios Cientficos, Artsticos e Culturais e a Tutela

    Trabalhista................................................................................................. 3083) O Combate Eliso Abusiva e seus Limites............................................ 3114) O Art. 129 da Lei n 11.196/05: Legitimidade, Alcance e Aplicao .... 3155) Concluso .................................................................................................. 318

    XVIII O Fato Gerador da Obrigao Tributria como Acoplamento Estruturalentre o Sistema Econmico e o Sistema Jurdico ......................................... 3191) Introduo ................................................................................................. 3192) O Direito e a Economia na Teoria dos Sistemas Autopoiticos............. 3203) O Fato Gerador da Obrigao Tributria como Acoplamento Estrutu-

    ral entre o Direito Tributrio e a Economia ........................................... 3214) Concluso .................................................................................................. 338

    XIX Os Elementos Constitutivos da Definio de Imposto .................................... 3391) Introduo ................................................................................................. 3392) Breve Histrico ......................................................................................... 3403) Conceito de Imposto e os Elementos Constitutivos da Definio ......... 342

    A) Elementos Comuns Definio de Tributo....................................... 346B) Elemento de Distino em Relao a outras Espcies Tributrias: o

    Fato Gerador......................................................................................... 347C) O Elemento de Legitimao: a Capacidade Contributiva ................. 348D) O Elemento Finalstico: a Destinao do Produto da Arrecadao do

    Imposto................................................................................................. 353

    XX A No-CCumulatividade do PIS e da Cofins................................................... 3571) Introduo ................................................................................................. 3572) A No-Cumulatividade e a Tributao sobre o Faturamento ................ 3573) A No-Cumulatividade das Leis 10.637/02 e 10.883/03 e o Princpio da

    Isonomia .................................................................................................... 3604) O Creditamento das Despesas Necessrias: o Caso da Mo-de-Obra das

    Pessoas Fsicas ........................................................................................... 3675) Concluso .................................................................................................. 369

    XXI A Prescrio e a Decadncia do Crdito Tributrio..................................... 3711) Introduo ................................................................................................. 3712) Decadncia e Prescrio e os seus Conceitos na Teoria Geral do Di-

    reito............................................................................................................ 3723) A Decadncia e a Prescrio no Direito Tributrio................................ 3774) A Decadncia Tributria no Direito Brasileiro....................................... 380

    x

  • 5) A Prescrio Tributria no Direito Brasileiro......................................... 3835.1) Causas de Suspenso da Prescrio .................................................. 384

    5.2) Causas de Interrupo da Prescrio ..................................................... 3865.3) A Prescrio Intercorrente ..................................................................... 3886) Concluses .................................................................................................. 388

    XXII Tratamento Diferenciado para as Microempresas e os Regimes Simplifi-cados na Constituio..................................................................................... 3911) Introduo ................................................................................................. 3912) Fundamento Constitucional do Tratamento Diferenciado para as Mi-

    croempresas e Empresas de Pequeno Porte ............................................ 3933) Vedaes Legais Adeso ao Regime Simplificado................................ 3954) Excluses do Regime Simplificado .......................................................... 3985) O Regime Unificado e a Federao ......................................................... 4006) Concluses................................................................................................. 401

    xi

  • Apresentao

    Destina-se este livro a reunir a minha produo acadmica de artigos elabora-dos ltimos anos, que se encontra espalhada por vrias revistas e obras coletivas.Alguns artigos j foram publicados, outros foram atualizados e modificados, almde alguns ainda inditos.

    Embora cada um deles trate de um tema especfico, h um fio condutor emtodos: a abertura do direito tributrio aos valores e princpios constitucionais, rom-pendo a barreira marcada pelo positivismo jurdico que o isolava dos outros ramosdo direito ptrio e das outras escolas tributaristas.

    Dedico-o aos meus mestres, com a gratido pelas suas lies, em especial aAdilson Rodrigues Pires, Antnio Celso Alves Pereira, Aurlio Seixas Filho, CarlosRoberto Siqueira Castro, Flavio Bauer Novelli, Gustavo Tepedino, Jos MarcosDomingues, Jos Ribas Vieira, Lus Roberto Barroso, Marco Aurlio Greco eRicardo Lobo Torres.

    Dedico ainda aos meus queridos alunos, em especial aos da FGV/DIREITO-RIO e do CEJ 11 de AGOSTO.

    Rio de Janeiro, 22 de fevereiro de 2008.

    Ricardo Lodi Ribeiro

    xiii

  • IA Constitucionalizao do Direito Tributrio

    Sumrio: 1) Introduo. 2) O Direito Tributrio nos Dispositivos Constitucionais. 2.1) AsDeclaraes de Direitos dos Contribuintes. 2.2) As Reparties de Competncias Tribu-trias. 3) Os Valores Constitucionais Tributrios. 3.1) O Ressurgimento da CapacidadeContributiva como Elemento Legitimador do Ordenamento Tributrio. 3.2) Os ValoresConstitucionais Aplicados Lei Tributria. 4) Concluso.

    1) Introduo

    A relao entre o direito tributrio e a Constituio comporta duas dimensesbem distintas. Numa primeira, de ndole mais formal, seria revelada a preocupaodo legislador constitucional na previso de institutos de direito tributrio, notada-mente a repartio das receitas tributrias e os direitos dos contribuintes. Nessaseara o Texto Constitucional brasileiro apresenta uma abundncia que no encon-tra paralelo no direito comparado, fenmeno bastante festejado pela doutrinaptria, pioneira do estudo do tema.1

    Em uma outra dimenso, mais substancial, a constitucionalizao do direitotributrio se traduz na consolidao dos valores constitucionais como elementoslegitimadores do ordenamento tributrio, bem como no adequado manejo dosprincpios constitucionais, notadamente os ligados idia de justia, pelos tribunaise pela doutrina quando da aplicao da lei tributria. Nesse campo material, a rea-lidade brasileira ainda deixa muito a desejar.

    Porm, nos ltimos anos, a doutrina ptria, e aos poucos tambm a jurispru-dncia, vm associando as relaes jurdicas tributrias com a pauta de valores con-sagrada constitucionalmente, a partir de uma nova concepo da idia de seguran-a jurdica e legalidade tributria e do ressurgimento do princpio da capacidadecontributiva, animado pelo resgate da justia fiscal, o que vai desaguar em uma ver-dadeira constitucionalizao do direito tributrio.2

    A Constituio de 1988, contempornea desse resgate da justia fiscal, simbo-liza a tendncia com a restaurao do princpio da capacidade contributiva, que,previsto na Constituio de 1946, havia sido expurgado dos textos constitucionaisimpostos pelos militares, desde a Emenda Constitucional n 18/65.

    1

    1 Aliomar Baleeiro, com Limitaes Constitucionais ao Poder de Tributar (Rio de Janeiro: Forense, 1951), eGeraldo Ataliba, com Sistema Constitucional Tributrio Brasileiro (So Paulo: Revista dos Tribunais: 1968),produziram importantes obras num perodo em que o tema era pouqussimo estudado aqui e alhures.

    2 Melhor exemplo dessa tendncia a obra de Ricardo Lobo Torres, Tratado de Direito ConstitucionalFinanceiro e Tributrio, Vol. II (Rio de Janeiro: Renovar, 2005).

  • O escopo deste trabalho a anlise das relaes entre essas duas dimenses(formal e material) do que se convencionou denominar de direito constitucionaltributrio.

    2) O Direito Tributrio nos Dispositivos Constitucionais

    A previso de dispositivos nas constituies em relao ao direito tributriovem aumentando bastante desde a segunda metade do sc. XX, o que alimentadono s pelo desenvolvimento extraordinrio do estudo da disciplina durante operodo em questo, como tambm pelo fenmeno da constitucionalizao dasrelaes sociais, a que esse ramo do direito no se manteve insensvel. Em conse-qncia, as constituies elaboradas mais recentemente tendem a dar uma maiorateno ao tema, do que a brasileira o exemplo mais eloqente, em diametral con-traste com a bicentenria constituio norte-americana, que quase nenhuma pre-viso traz sobre a tributao.

    Nesse contexto, modernamente, as constituies estabelecem basicamente:a) o rol de direitos dos contribuintes;b) a repartio de receitas e competncias tributrias.

    2.1) As Declaraes de Direitos dos Contribuintes

    No primeiro grupo, encontram-se as declaraes de direitos dos contribuin-tes. O marco histrico da primeira declarao de direitos contra a tributao arbi-trria exigida pelo monarca foi a Magna Charta, em 1215, ocasio em que osbares feudais ingleses impuseram ao Rei Joo Sem Terra, a exigncia de aprova-o pelo Commune Consilium Regis para haver a cobrana de tributos, excetoquando estes fossem destinados ao pagamento do resgate do rei, caso este cassecativo em suas guerras; para armar seu filho primognito como cavaleiro e parapagar o dote de casamento de sua filha mais velha, mas desde que cobrados emmedida razovel (art. XII, da Magna Charta). As excees se justificavam por jestar sedimentado pelo costume o pagamento de tributos em tais casos.3 A despei-to de se traduzir numa afirmao oligarca da nobreza sobre o rei, no doloroso pro-cesso de transio descentralizadora do regime feudal para a formao do EstadoNacional, a declarao coroou historicamente a luta dos contribuintes contra oarbtrio do poder de tributar estatal, muito antes, historicamente, da consolidaodo princpio da legalidade como decorrncia da soberania popular, o que s ocor-reu aps a Revoluo Francesa.

    Ricardo Lodi Ribeiro

    2

    3 UCKMAR, Victor. Princpios Comuns de Direito Constitucional Tributrio. Traduo: Marco AurlioGreco. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 13.

  • Data dessa poca o surgimento dos princpios do consentimento e da tempo-rariedade, 4 germens dos princpios da legalidade e da anualidade. A necessidade deconsentimento do prprio contribuinte para que seja legtima a tributao consti-tui conseqncia direta da perda do carter excepcional dos tributos e do agiganta-mento das despesas estatais. Se no auge do perodo feudal as contribuies eramvoluntrias, com o absolutismo, o consentimento surge como contraponto ao car-ter impositivo dos tributos, se revelando pela prvia aprovao pelos representan-tes da aristocracia feudal, o que posteriormente se universalizou para os demaisestratos sociais.

    A temporariedade se caracterizava pela limitao temporal dessa autorizao,que precisava renovar-se regularmente e que se coadunava perfeitamente com ocarter provisrio dos tributos. O artigo XIV da Magna Charta preconizava que afixao de tributo, afora os casos previstos no art. XII, onde se dispensava a autori-zao, deveria ser objeto de convocao do Concilium pelo rei, com antecednciade 40 dias.5

    Assim, no sendo, at o fim do Estado Patrimonial, os tributos responsveispelo custeio das despesas ordinrias do Reino, necessria a autorizao para a suacobrana por perodo certo de tempo. Sendo os tributos temporrios, a idia deautorizao pelo parlamento (legalidade) se confundia com a aprovao da cobran-a por certo tempo (temporariedade), pois poca no havia a dicotomia posterior-mente verificada entre a lei instituidora do tributo e a lei de oramento, que inexis-tia, como hoje o conhecemos, at as revolues liberais dos sculos XVII e XVII.6

    Somente na Idade Moderna, quando os tributos deixaram de ser responsveisapenas por despesas extraordinrias, passando a ser a principal fonte de receita doEstado, que podemos conceber a tributao em sua atual feio, ou seja, destina-da a custear genericamente as despesas pblicas.7

    Com o advento do Estado Fiscal, feio financeira do Estado Democrtico, e apartir do desenvolvimento do capitalismo, as despesas pblicas passam a ser finan-ciadas por tributos (ingressos derivados), especialmente por impostos, alm deemprstimos pblicos, em substituio explorao do patrimnio do prncipe,que caracterizava o Estado Patrimonialista, provido por ingressos originrios.8

    Temas de Direito Constitucional Tributrio

    3

    4 NOVELLI, Flvio Bauer. O princpio da anualidade tributria. Revista Forense 267: 75-94, p. 77.5 Ibidem, p. 78.6 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributrio, vol. V. 2. ed. Rio

    de Janeiro: Renovar, 2000, p. 3.7 Para TORRES: intil procurar o tributo antes do Estado Moderno, eis que surge ele com a paulatina

    substituio da relao de vassalagem do feudalismo pelos vnculos do Estado Patrimonial, com as inci-pientes formas de receita fiscal protegidas pelas primeiras declaraes de direitos (A Idia de Liberdadeno Estado Patrimonial e no Estado Fiscal, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 1991, p. 2).

    8 TORRES, Ricardo Lobo. Ibidem, p. 97.

  • A consolidao do Estado Fiscal tornou os tributos permanentes, ocorrendo ofortalecimento do princpio da legalidade tributria, como princpio da reserva delei, que, a partir do final do sculo XVIII e ao longo de todo o sculo XIX, ganhoucarter universal, na esteira da Revoluo Francesa e da independncia dos EstadosUnidos da Amrica. de se destacar que a consagrao da legalidade como princ-pio supremo se deu num ambiente de afirmao da burguesia revolucionria con-tra a opresso dos monarcas do antigo regime. Assim, inevitvel sua configuraocomo um princpio de vis nitidamente individualista.

    Modernamente, no Estado Democrtico e Social de Direito, os governos soexercidos por representantes diretos do povo, tal como ocorre com o parlamento.Porm, como vimos, foi no contexto histrico em que se produziram as aspiraesiluministas que se fortaleceu a idia de que s os representantes do povo, reunidosno parlamento, poderiam criar obrigaes, e de que o poder executivo seria ummero executor das polticas por eles definidas.9

    Em conseqncia, nesse novo contexto que ora se mostra dominante, o prin-cpio da legalidade passou a ter, como afirma Prez Royo,10 um vis plural, comomeio de garantir a democracia no procedimento de imposio das normas de repar-tio tributria, bem como a igualdade de tratamento entre os cidados e a unida-de do sistema jurdico.

    Assim, a segurana jurdica no mais se coaduna com um regime legal que dproteo mxima para que um indivduo (contribuinte) deixe de dar cumprimentoa uma norma, em detrimento dos outros indivduos, a partir de sua menor ou maiorastcia na manipulao das formas jurdicas, pois a legalidade tributria se traduz,hoje, como assinala Tipke,11 na segurana diante da arbitrariedade da falta deregras, uma vez que a segurana jurdica a segurana da regra. A certeza na apli-cao da norma tributria para todos os seus destinatrios que garante a aplicabi-lidade e imprio da lei.

    A adoo do princpio da legalidade tributria pela nossa Constituio Federal que longe de representar uma peculiaridade nacional, como parecem sustentaralguns, brota como fruto da evoluo da cincia do direito em todo o globo12 no desprestigiada pela superao das teorias ligadas ao positivismo formalista querecomendam a vinculao absoluta do aplicador do direito norma.

    Na verdade, a maior prova de que essa to propalada legalidade tributria abso-luta no deriva da Constituio brasileira o exame dos textos constitucionais dos

    Ricardo Lodi Ribeiro

    4

    9 ARAGO, Alexandre Santos de. Princpio da Legalidade e Poder Regulamentar no EstadoContemporneo, Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro 53, 2000, p. 42.

    10 PREZ ROYO, Fernando. Derecho Financiero y Tributario Parte General. 10. ed. Madrid, 2000, p. 42.11 Rechtsetzung durch Steuererichte und Steuervewaltungsbehrden? Steuer und Writschaft 58 (3): 194,

    1981, apud TORRES, Ricardo Lobo (Legalidade Tributria e Riscos Sociais, cit., p. 179).12 Vide UCKMAR, Vitor (Ob. cit., p. 24), onde o autor revela que o princpio da legalidade tributria ado-

    tado em todos as constituies vigentes.

  • pases que adotam outros paradigmas na interpretao da lei tributria. Tais consti-tuies, a exemplo da nossa, tambm consagram o princpio da reserva legal.13

    Na verdade, o que diferencia a Constituio Brasileira de 1988 dos textosconstitucionais supracitados uma minuciosa repartio de competncias entre osentes federativos, o que s indiretamente pertinente matria da legalidade. Naverdade, o tema da competncia se prende muito mais delimitao do poder detributar entre os entes federativos, do que forma, mais ou menos casustica oudetalhada na definio do fato gerador. Buscar na repartio constitucional dascompetncias tributrias o arcabouo constitucional para uma metodologia herme-nutica formalista extrair da Constituio uma sistemtica que no s nela no prevista, como contraria todos os princpios por ela consagrados.

    Mas se a Constituio brasileira no apresenta qualquer peculiaridade emrelao ao direito comparado no que tange consagrao do princpio da legalida-de tributria, vamos encontrar na doutrina uma construo por demais formalista,embalada por razes mais ideolgicas que cientficas. Como bem observado porRicardo Lodo Torres,14 a utilizao das expresses tipicidade fechada, legalidadeestrita, e reserva absoluta de lei, no derivam da nossa Constituio, mas deconstruo de nossa doutrina.

    2.2) As Reparties de Competncias Tributrias

    Na repartio de competncias tributrias entre os entes da federao o cons-tituinte brasileiro estabeleceu uma disciplina sui generis, a partir de um detalha-

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    13 Nos EUA, o art. 1, Seo VIII da Constituio de 1787, atribui ao Congresso Nacional a criao de tri-butos. Na Alemanha, o artigo 105 da Constituio de 1949 garante que os impostos sero objeto da com-petncia legislativa exclusiva da Federao ou dos Landers (Estados). Na Constituio Espanhola de1978, embora o artigo 31.3 admita a possibilidade de instituio de prestaes patrimoniais ou pessoaisna forma da lei, o art. 133.1 dispe que a potestade de estabelecer tributos exercida mediante lei. Porsua vez, a Constituio Francesa de 1958, em seu artigo 34, cumprindo o compromisso firmado pelopovo francs desde a Declarao dos Direitos do Homem de 1789, garante que a lei deva fixar os impos-tos, taxas e as modalidades de sua cobrana. Na Argentina, a Constituio de 1994, em seu art. 4, deter-mina que todas as contribuies ingressas no Tesouro sero impostas pelo Congresso Nacional. NoUruguai, a Constituio de 1966, em seu artigo 10, tambm subordina a criao de tributos lei. A exce-o fica por conta da Itlia, que por prever um dispositivo genrico para todas as prestaes pessoais epatrimoniais, adota, no artigo 23 da Constituio de 1947, o princpio da legalidade em sentido amplo,a partir da clusula em virtude do disposto em lei. Mas nem por conta dessa previso constitucional, adoutrina italiana admite a criao de tributos por outro instrumento que no a lei, e nem a delegao autoridade administrativa da fixao dos elementos da obrigao tributria. Pela necessidade de lei defi-nindo todos os elementos da obrigao tributria mesmo em face do art. 23 da Constituio Italiana, videGIANNINI, A. D. (Instituzioni di Diritto Tributario. 3. ed. Milano: Giuffr [194_], p. 12), PUGLIESE,Mario (Instituciones de Derecho Financiero. Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1939, p. 116) eMICHELI, Gian Antonio (Curso de Direito Tributrio. Traduo: Marco Aurlio Greco e Pedro LucianoMarrey Jr. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1978, p. 19).

    14 Direitos Fundamentais do Contribuinte. In MARTINS, Ives Gandra da Silva. Direito Fundamentais doContribuinte. Pesquisas Tributrias Nova Srie n 6. So Paulo: Revista dos Tribunais, 167-186, 2000,p. 185.

  • mento que s encontra paralelo, ainda que distante, na Lei Fundamental daRepblica Federal Alem. De fato, a regra, na maioria dos textos constitucionaisdos pases europeus, uma despreocupao em relao diviso de competnciasentre o poder central e o local, o que se explica pela natureza do regime unitrioadotado na grande maioria desses.15

    Porm, mesmo entre as federaes do continente americano, a repartio dopoder tributrio entre Unio e Estados no explicitada nos textos constitucionais.Nos EUA, a seo 8 do artigo 1 da Constituio de 1787 apenas define as compe-tncias materiais da Unio, enquanto a Emenda XVI, de 1913, reserva a competn-cia para tributao da renda Unio. No Mxico, a Constituio de 1917 limita-se,no art. 131, a atribuir a tributao do comrcio exterior Unio, no reservandocompetncias privativas aos Estados. J a Constituio da Argentina, reformada em1994, no prev qualquer repartio tributria entre os entes federativos, o que,alis, tem sido a regra mesmo entre os regimes federativos.

    De fato, na Repblica Federal Alem que vamos encontrar uma repartiode competncias tributrias entre a Unio e os Landers (Estados-membros), nosartigos 106 a 108, de 1949. Mas mesmo no texto tedesco, no se verifica a rigidezda diviso brasileira, sobretudo por uma significativa competncia concorrentepara tributos relevantes em termos de arrecadao, como os impostos sobre arenda, sobre as sociedades e sobre a cifra dos negcios (art. 106, 3). Na Alemanha,assim como no Brasil, a preocupao em definir as competncias constitucionaistributrias na constituio, visa a tutelar a federao, e no a conferir maior prote-o segurana jurdica dos contribuintes.

    No Brasil, como por todos sabido, a repartio de competncias tributrias mais rgida, estabelecendo atribuies privativas a cada um dos entes federativos.Tal caracterstica, que longe de ser uma inovao da Constituio de 1988, traduz-se em longa tradio republicana que vem desde a Constituio Federal de 1891,pode ser atribuda necessidade de se proteger os poderes tributrios locais contraa usurpao do poder central, o que se justifica numa federao que nasceu da divi-so centrfuga de um Imprio unitrio. A necessidade da rigidez na diviso dospoderes tributrios se acentuou ainda mais na Constituio de 1988, que conferiuao municpio brasileiro uma autonomia federativa sem igual na nossa histria cons-titucional. que com o peculiar federalismo tripartite, a repartio dos poderes tri-butrios passou a ser justificada como uma exigncia do princpio da conduta amis-tosa entre os entes federativos.

    Em conseqncia dessa rgida repartio de competncias tributrias entreUnio, Estados, Distrito Federal e Municpios, qualquer alterao da repartio de

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    15 Sobre a imposio de tributos pelos entes locais na Itlia, Portugal e Espanha, vide RIBEIRO, RicardoLodi. Federalismo Fiscal e Reforma Tributria. Disponvel na Internet em www.mundojuridico.adv.br.Acesso em 13/05/06.

  • receitas, tambm prevista expressamente pela Constituio, deve ser resultado deum grande consenso nacional, capaz de superar os elevados quruns para alteraoconstitucional, o que por vezes significa um certo imobilismo na adoo das gran-des decises, a depender de uma adequada diviso do bolo financeiro entre os entesfederativos.

    3) Os Valores Constitucionais Tributrios

    Se a Constituio brasileira d ao direito tributrio um destaque que noencontra exemplo em outras naes, nem por isso a constitucionalizao das rela-es entre o Estado e os contribuintes se deu de forma automtica por aqui. que,como assevera Humberto vila, a normatividade de uma constituio parece serinversamente proporcional quantidade de textos constitucionais.16

    Assim, longe de se manifestar pela abundncia de regras constitucionais, aconstitucionalizao do direito tributrio surge do trabalho doutrinrio de resgatedos valores ticos, vinculados justia. Tais idias, desenvolvidas pela jurisprudn-cia dos valores, de Larenz,17 ganharam fora com a virada kantiana, fomentada porRawls.18

    A abertura do direito tributrio idia de justia mediante a sua aproximaocom a segurana jurdica, promove a ponderao entre esses dois valores, desenca-deando uma convivncia pacfica entre os princpios deles decorrentes, em especialo da legalidade e o da capacidade contributiva.19

    A ponderao entre a justia fiscal e a segurana do contribuinte se apresentaem dois planos. No primeiro, no mbito da legitimao do ordenamento, justifican-do regras tributrias que promovam a melhor aplicao possvel aos dois interesses.No segundo plano, no da aplicao da lei, a ponderao se oferece como importan-te instrumento na interpretao da lei.20

    3.1) O Ressurgimento da Capacidade Contributiva como ElementoLegitimador do Ordenamento Tributrio

    No mbito da legitimao do ordenamento tributrio, com o resgate do prin-cpio da capacidade contributiva, a segurana jurdica do contribuinte supera uma

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    16 VILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributrio. So Paulo: Saraiva, 2004, p. 561.17 LARENZ, Karl. Metodologia da Cincia do Direito. Traduo de Jos Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundao

    Calouste Gulbenkian, 1997.18 RAWLS, John. Uma Teoria da Justia. So Paulo: Martins Fontes, 1997.19 TORRES, Ricardo Lobo. Legalidade Tributria e Riscos Sociais. Revista de Direito da Procuradoria-

    Geral do Estado do Rio de Janeiro 53: 178-198, 2000, p. 179.20 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justia, Interpretao e Eliso Tributria. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 89.

  • tutela meramente individual do direito do contribuinte, uma vez que este no mais visto como uma figura mitolgica desligada da realidade ftica e nem oEstado mais aquele monstro orgnico de Hobbes, a ameaar a liberdade docidado de Locke, num maniquesmo em completo descompasso com umtempo onde a figura do Estado-Nao vai cedendo terreno e que a soberania flexibilizada.

    Nesse contexto, contemporneo da sociedade de risco, diagnostica-se ofenmeno da ambivalncia, com a resoluo de determinados problemasgerando outros.21 Nessa lgica ambivalente, cada medida adotada para a solu-o de problemas de determinado grupo de pessoas traz em si mesma a criaode problemas para outro grupo de pessoas.22 Em conseqncia, a liberdadecrescente de uns pode representar, ou at mesmo ser a causa, de uma maioropresso para outros.23

    Diante da insuficincia dos modelos binrios,24 to caros primeira moderni-dade, o desafio na sociedade de risco conviver com a ambivalncia, a partir deuma atitude calculista em relao s possibilidades de ao,25 e do controle dos ris-cos pela probabilidade.26 Assim, pelo conhecimento da realidade passada, os agen-tes sociais assumem os riscos e procuram se precaver em relao possibilidade deocorrncia dos perigos previstos por meio do seguro.

    Se no Estado Liberal o seguro era limitado segurana dos negcios privados,no Estado Social evolui para a idia de seguridade social, a prevenir os riscos advin-dos da doena, da velhice, do desemprego etc. Em qualquer desses cenrios, o papeldo segurador, seja a empresa seguradora a proteger os negcios privados, seja oWelfare State a tutelar os cidados em relao s misrias sociais, o de redistri-

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    21 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Ambivalncia. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1999, p. 227.

    22 BECK, Ulrich. A Reinveno da Poltica: Rumo a Uma Teoria da Modernidade Reflexiva. IN: GID-DENS, Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernizao Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reim-presso. So Paulo: UNESP, 1997, p. 29.

    23 GIDDENS, Risco, Confiana e Reflexidade, IN: GIDDENS, Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott.Modernizao Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpresso. So Paulo: UNESP, 1997, p. 223.

    24 GIORGI, Raffaele de. Direito, Democracia e Risco Vnculos com o Futuro. Trad. Cristiano Paixo,Daniela Nicola e Samantha Dobrowolski. Porto Alegre: Sergio Antnio Fabris Editor, 1998, p. 197:Nessa situao, portanto, a razo clssica, sustentada pela lgica binria, vai desarmada de encontro aotempo. Nem a regularidade, nem a calculabilidade podem socor-la. A precariedade da razo deve serassumida como ponto de partida. O risco, dessarte, uma modalidade secularizada de construo dofuturo. J que a perspectiva de risco torna plausvel pontos de vista diferentes da racionalidade, na con-dio de que estes sejam capazes de rever os prprios pressupostos operativos e na condio de que, hajatempo para efetuar esta reviso, esta perspectiva tpica da sociedade moderna.

    25 GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Trad. Plnio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,2002, p. 33.

    26 LASH, Scott. A Reflexividade e seus duplos: Estrutura, Esttica, Comunidade, IN: GIDDENS,Anthony, BECK, Ulrich e LASH, Scott. Modernizao Reflexiva. Trad. Magda Lopes. 2. reimpresso. SoPaulo: UNESP, 1997, p. 170.

  • buir os riscos entre os integrantes do sistema. Assim, enquanto a empresa segura-dora vai, a partir do clculo de probabilidade de sinistro, distribuir o custo dasindenizaes pelos seus clientes, o Estado ir distribuir o custo das prestaessociais pelos contribuintes.27

    Nesse diapaso, a idia de segurana jurdica ganha uma nova dimenso, supe-rando o modelo do Estado Liberal, onde representou a proteo do cidado contra opoder do Estado, com a idia de segurana jurdica, e do Estado Social, em que, naeterna busca da Justia Social, ganhou a feio de seguridade social. No EstadoDemocrtico e Social, marcado pela sociedade de risco, a segurana se traduz em segu-ro social.28 De acordo com essa nova dimenso da segurana, o Estado garante prote-o aos cidados contra os riscos sociais, a partir de uma nova comunho de respon-sabilidade entre o cidado e o Estado, ou uma nova comunho de riscos e chances.29

    Como destaca Perez Luo, nos dias atuais, a segurana dos direitos do cidado muito mais ameaada pela falta de resposta do Estado aos seus misteres sociais doque pela sua hipertrofia, como ocorria antes do advento do Estado Social.30 A inse-gurana social gerada pela ausncia de cumprimento das prestaes estatais vincu-ladas ao mnimo existencial permanente motivo de crise que pe em risco o pr-prio regime democrtico.31 Assim, a liberdade individual s pode ser produto dotrabalho coletivo.32

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    27 GIDDENS, Anthony. Mundo em Descontrole O que a Globalizao Est Fazendo de Ns. Trad.Maria Luiza Borges. 4. ed., Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 35: O welfare state, cujo desenvolvi-mento pode ser retraado at as leis de assistncia social elisabetanas na Inglaterra, essencialmen-te um sistema de administrao de risco. Destina-se a proteger contra os infortnios que antes eramtratados como desgnio dos deuses doena, invalidez, perda do emprego e velhice.(...) Os que for-necem seguro, seja na forma do seguro privado ou dos sistemas estatais de seguridade, essencialmen-te esto apenas redistribuindo risco.

    28 Ibidem: Os riscos e a insegurana da sociedade hodierna no podem ser eliminados, mas devem ser alivia-dos por mecanismos de segurana social, econmica e ambiental. A solidariedade social e a solidariedade dogrupo passam a fundamentar as exaes necessrias ao financiamento das garantias da segurana social.

    29 SILVA NETO, Francisco e IORIO FILHO, Rafael M. A Nova Trade Constitucional de ErhardDenninger. In: DUARTE, Fernanda e VIEIRA, Jos Ribas (org.), Teoria da Mudana Constitucional Sua Trajetria nos Estados Unidos e na Europa. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 282: Esta diferena setraduz na figura de um cidado ativo no processo de deciso poltica e administrativa e na sua vigiln-cia e responsabilidade na co-participao da efetiva proteo e tutela dos princpios basilares do ordena-mento jurdico e dos princpios inviolveis da pessoa.

    30 PREZ LUO, Antonio-Enrique. La Seguridad Jurdica. 2. ed. Barcelona: Ariel Derecho, 1994, p. 22.31 BERCOVICI, Gilberto. Constituio e Estado de Exceo Permanente A Atualidade de Weimar. So

    Paulo: Azougue Editorial, 2004, p. 179: A nova geopoltica monetria e a concentrao de deciso sobreinvestimentos, segundo Fiori, torna a sua capacidade de retaliao econmica o fundamento ltimo dasoberania no que diz respeito s polticas econmicas dos Estados perifricos. Isto gera, no mdio e nolongo prazos, a deslegitimao democrtica, o esfacelamento do Estado e formas cada vez mais sofistica-das de autoritarismo. Com a globalizao, a instabilidade econmica aumentou, e o recurso aos poderesde emergncia para sanar as crises econmicas passou a ser mais utilizado, com a permanncia do esta-do de emergncia econmico.

    32 BAUMAN, Zygmunt. Em Busca da Poltica. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1999, p. 15.

  • No campo da repartio dos encargos tributrios, a tendncia individualista,baseada no positivismo liberal, ainda mais acentuada, a partir da mitificao daidia de direitos do contribuinte, como se todas as empresas e pessoas tivessemsempre interesses coincidentes. A iluso se completa com a difuso do mito de queos interesses de todos os contribuintes se contrapem ao Estado, opressor da liber-dade individual.

    Porm, se as despesas estatais so custeadas por receitas pblicas, emespecial os tributos, que por sua vez ho de ser, no Estado capitalista, inexo-ravelmente suportados pela sociedade, a questo passa a ser quem vai pagar, equanto cada um vai pagar. Assim, a concesso de um benefcio fiscal para umdeterminado grupo de contribuintes vai representar um aumento de nuspara aqueles que no foram beneficiados pela medida, pois se a despesa pbli-ca no diminuda pela desonerao fiscal, o Estado vai ter que escolherentre dois caminhos: buscar o aumento de receita em outro segmento, oufrustrar prestaes estatais que provavelmente tero como beneficiriasoutras pessoas.

    Por outro lado, como o peso dos tributos tem uma imensa significao nopreo dos bens e servios oferecidos na economia, o afastamento do pagamento deuma exao em relao a um integrante de determinado setor econmico, seja pormeio do planejamento fiscal, de deciso judicial ou da simples sonegao, tercomo conseqncia a reduo significativa do seu preo em detrimento dos seusconcorrentes, que certamente perdero parcelas expressivas de mercado ou atmesmo desaparecero.

    Essas situaes bastante corriqueiras em nossa realidade mostram que ointeresse de um contribuinte passa a ser distinto do interesse do outro, caben-do ao Estado arrecadar de todos eles, na forma definida na lei, que se pressu-pe uma representao de consenso entre os mais variados segmentos sociais eeconmicos.

    Logo, no h mais como crer no mito de que existe um direito do contribuin-te em contraposio ao interesse do Estado, pois a grande questo do direito tribu-trio no mais a relao vertical entre fisco-contribuinte, mas uma relao hori-zontal entre os vrios contribuintes de uma mesma sociedade. Na verdade, a lei fis-cal apresenta uma natural ambivalncia encontrada nos efeitos colaterais que umamedida positiva para determinados contribuintes, representar ao direito de outroscontribuintes.

    Por essa razo, a segurana jurdica do contribuinte ganha uma dimenso plu-ral, baseada na aferio da adequao dos critrios legislativos justia fiscal e repartio dos riscos e custos sociais. Em conseqncia, isonomia e capacidade con-tributiva no mais se contrapem legalidade, que deve assegurar o cumprimentoda diviso dos encargos fiscais pelo critrio legal definido de acordo com o plura-

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  • lismo poltico com a participao decisiva da opinio pblica e dos meios de comu-nicao33 e com a razo comunicativa.34

    Como conseqncia desse novo panorama, a transparncia fiscal exige medi-das legislativas de combate evaso e eliso fiscal, como as Leis Complementaresn 104, que introduziu a clusula geral antielisiva,35 e n 105, que flexibilizou o sigi-lo bancrio em relao fazenda pblica.

    3.2) Os Valores Constitucionais Aplicados Lei Tributria

    Com o equilbrio entre os princpios da legalidade e da capacidade contributivase estabelece uma nova valorao neste ramo do direito, que longe de apresentar pecu-liaridades em relao aos outros ramos, prestigia a igualdade, com a adoo de frmu-las para coibir as prticas abusivas tendentes a burlar a obrigao de pagar tributos ede mecanismos que vo alm das normas com inteno meramente arrecadatrias.

    No plano da aplicao da lei, a ponderao se pode dividir em trs passos. Oprimeiro se traduz na definio do grau de insatisfao de um dos princpios. Nosegundo passo se define a importncia da satisfao do princpio que se encontraem sentido contrrio. Por fim, no terceiro passo se deve definir se a importncia dasatisfao do princpio contrrio justifica a afetao ou a no-satisfao do outro.36

    No direito tributrio, possuindo a segurana e a justia o mesmo peso na tbuaconstitucional de valores, caso o intrprete verifique a coliso entre eles, deverpesquisar o peso especfico que a legalidade e a capacidade contributiva possuemno caso concreto.

    Em conseqncia, ser revelada uma norma tributria que ser interpretada deacordo com a manifestao de riqueza do contribuinte, a partir de uma atividade valo-rativa, e no meramente cognitiva, do aplicador do direito, no tendo cabimento solu-es formalistas como as que limitam o fenmeno jurdico aos conceitos fechados.37

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    33 CASS, Jos Osvaldo. Derechos y Garantas Constitucionales Del Contribuyente A Partir delPrincipio de Reserva de Ley Tributaria. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2002, 317.

    34 A razo comunicativa, segundo Habermas, se traduz na capacidade humana dirigida ao entendimento,em oposio ao instrumental, dirigida obteno de objetivos. Deste modo, a pretenso de verdadedo proponente deve ser defensvel a partir de argumentos que possam superar as objees de possveisoponentes, e, ao final, contar com a aprovao de um acordo racional da comunidade (HABERMAS,Jrgen. Direito e Democracia Entre Facticidade e Validade. Vol. I. Trad. Flvio Beno Siebeneichler.Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 32).

    35 Sobre o tema, vide RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justia, Interpretao e Eliso Tributria. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2003.

    36 ALEXY. Eplogo a La Teoria de Los Derechos Fundamentales. Traduo de Carlos Bernal Pulido.Madrid: Centro de Estdios Constitucionales, 2004, p. 49.

    37 Sobre a distino entre conceitos fechados e tipos abertos: RIBEIRO, Ricardo Lodi: LegalidadeTributria, Tipicidade Aberta, Conceitos Indeterminados e Clusulas Gerais. Revista de DireitoAdministrativo 229: 313-33, 2002.

    RossiRiscado

    RossiRiscado

  • No entanto, em que pese a imperiosidade da constitucionalizao do direitotributrio a partir do ressurgimento do princpio da capacidade contributiva comonorte da aplicao da lei tributria, em nossa doutrina ptria ainda prevalece umaposio formalista, a partir da adoo da segurana jurdica como princpio absolu-to do direito tributrio, mediante a ntima convico de que esse ramo possuiriacaractersticas peculiares que sequer seriam encontradas no direito penal, o quereflete, como bem destaca Jos Marcos Domingues de Oliveira,38 uma posio ideo-lgica de privilegiar a liberdade vinculada ao patrimnio em detrimento da liber-dade vinculada pessoa.

    A consagrao da teoria da tipicidade fechada na doutrina brasileira represen-tou o triunfo de uma peculiar opo, fora do contexto histrico mundial e semparalelo em outros ramos do direito ptrio, da segurana jurdica como valor abso-luto e insuscetvel de ponderao com qualquer outro.39

    E justamente pelo fato de a doutrina brasileira passar ao largo das discussessobre justia, no sabendo como dar aplicao ao princpio da capacidade contribu-tiva, a jurisprudncia segue a mesma orientao, limitando-se a perceber o fenme-no jurdico tributrio por meio das regras, desconhecendo os valores e princpios.

    Por outro lado, durante as ltimas quatro dcadas, o legislador tributriobrasileiro, resignado com o fortalecimento do positivismo formalista, aprofundaa tendncia de adotar como paradigma para a escolha dos fatos geradores dos tri-butos, no a manifestao de riqueza, mas a menor suscetibilidade da lei tribut-ria ao planejamento fiscal, se afastando da pauta axiolgica adotada constitucio-nalmente.

    Tal fenmeno faz com que a legislao tributria revele um quadro bem dis-tante dos comandos constitucionais vinculados idia de justia. Embora aConstituio de 1988 volte a consagrar expressamente o princpio da capacidadecontributiva, a legislao tributria encontra dificuldade em efetivar o dispositivoque melhor traduz idia de justia e igualdade fiscal.

    Com isso, se estabelece uma grave contradio axiolgica a pr em xeque aconstitucionalizao do direito tributrio, desaguando em um dos sistemas tribut-

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    38 Direito Tributrio e Meio Ambiente: Proporcionalidade, Tipicidade Aberta e Afetao de Receita. 2. ed.Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 114.

    39 Observe-se que os prprios seguidores da doutrina formalista reconhecem o carter peculiar dessa opono panorama do direito comparado. Por todos, vide COELHO, Sacha Calmon Navarro (O Controle daConstitucionalidade das Leis e do Poder de Tributar na Constituio de 1988. Belo Horizonte: Del Rey,1992, p. 335) e MARTINS, Ives Gandra da Silva (Direitos Fundamentais do Contribuinte. In Martins.Ives Gandra da Silva (coord.). Direito Fundamentais do Contribuinte. Pesquisas Tributrias Nova Srie n 6. So Paulo: Revista dos Tribunais, 45-81, 2000, pp. 77 e 79), que justifica a necessidade de o con-tribuinte brasileiro ter maior proteo do que conferido em outros pases, em virtude da ganncia doEstado brasileiro, e do subdesenvolvimento das instituies nacionais, despreparadas para a utilizao demecanismos de combate eliso adotados alhures, numa apreciao que obviamente extrapola os limi-tes da cincia do Direito.

  • rios mais inquos do mundo, onde os mais pobres suportam a maior parte da cargatributria, e os mais ricos, utilizando-se do planejamento fiscal, no raro baseado naeliso abusiva, desbotam o texto constitucional que elegeu os princpios da isonomiae da capacidade contributiva como principais veculos da justia fiscal.40

    Alheios ao fenmeno, nossos tribunais e juristas, no af de defender o contri-buinte da forma mais simples, se apegam aos aspectos formais do direito tributrio,permitindo que passem despercebidas as maiores violaes aos princpios vincula-dos justia.

    No entanto, como j se observou, o formalismo positivista, aqui com algumatraso, vai cedendo lugar a uma viso que concebe o direito tributrio de umaforma mais condizente com o princpio da unidade da ordem jurdica, com a reu-nio dos valores da segurana jurdica e da justia, e a ponderao dos princpios dalegalidade e da capacidade contributiva, abrindo-se a uma interpretao axiolgicae atenta ao fenmeno da constitucionalizao da disciplina. Dentro desse novocontexto, ganham flego os questionamentos teoria da tipicidade fechada, permi-tindo-se ao legislador a adoo de descries que melhor traduzem a manifestaode riqueza do contribuinte, sendo possvel a adoo de conceitos indeterminados eclusulas gerais pela lei definidora do fato gerador, bem como a introduo emnosso ordenamento de clusulas antielisivas genricas e especficas.41

    Mas no s a legalidade que ganha novos contornos com a constitucionali-zao do direito tributrio, uma vez que a principal conseqncia desta tendncia o ressurgimento do princpio da capacidade contributiva, em uma nova roupa-gem, bem distante de suas cores fiscalistas do auge no Estado Social.

    Durante o perodo de retomada formalista, nos anos 60, o princpio da capa-cidade contributiva sobreviveu como mera vedao arbitrariedade, ou seja, comolimite a distines que no fossem razoveis. No resta dvida que nessa fase olegislador passou a ter uma maior liberdade para a definio dos fatos geradores, eo princpio da capacidade contributiva entrou em crise.42

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    40 O fenmeno, que no uma exclusividade brasileira, foi descrito com grande felicidade por CasaltaNabais: A falta de uma efetiva e eficaz fiscalizao de tais declaraes efetivamente a que se estabele-am, entre ns, na prtica dois tipos de contribuintes: os que pagam os impostos determinados (combase) na lei (maxime, os trabalhadores dependentes), e os que pagam os impostos determinados, ao fime ao cabo, com base no que eles desejam declarar (maxime, os profissionais liberais e as empresas), valen-do assim para estes uma autotributao muito especial (j que, por um lado, direta e individualmenteexercida e, por outro, concretizada na inteira liberdade na fixao do quanto dos impostos) e que, a nossover, suscita a questo de saber se no se est, de algum modo, perante uma manifestao, sui generis, dalei sociolgica de G. Gze (segundo a qual a classe ou as classes detentoras do poder tendem a desone-rar-se dos impostos) se e na medida em que estes contribuintes dominem o Parlamento (e o Governo)em termos de constiturem o (verdadeiro) suporte duma ausncia de adequada articulao entre a lei fis-cal, preocupada com a tributao do rendimento real, e a correspondente fiscalizao praticvel(NABAIS, Jos Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 391).

    41 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justia, Interpretao e Eliso Tributria. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.42 HERRERA MOLINA, Pedro M. Capacidad Econmica y Sistema Fiscal Anlisis del ordenamiento

    espaol a la luz del Derecho alemn. Barcelona: Marcial Pons, 1998, p. 77.

  • A reduo do princpio da capacidade contributiva a mera vedao arbitra-riedade degenerou no Tribunal Constitucional Alemo na simples exigncia defundamentao. Assim, qualquer justificativa para o afastamento do referido prin-cpio era aceita, como, por exemplo, a necessidade financeira do Estado, a tradiodo direito tributrio alemo, a convico do legislador e a pacincia do contribuin-te. Fenmeno no muito diverso se deu nas jurisprudncias constitucionais espa-nhola e italiana, em que a simples finalidade extrafiscal do tributo era motivo sufi-ciente para o afastamento da capacidade contributiva.43

    A inocuidade do princpio da capacidade contributiva perante o TribunalConstitucional alemo levou ao seu descrdito frente doutrina daquele pas. Aposio ctica de Kruse constitui o melhor exemplo dessa situao. De acordo como citado autor tedesco, no existem critrios objetivos para ordenar a tributao,mas apenas necessidades financeiras que precisam ser atendidas.44

    Mas se o princpio da capacidade contributiva, em sua viso causalista, entrouem colapso no final da dcada de 50 na Alemanha, comearam a surgir, no come-o dos anos 60, na Itlia, novas obras sobre o tema, com uma viso significativa-mente diferente da adotada pela escola funcionalista. A mais importante delas ade Emilio Giardina,45 datada de 1961, onde o autor buscou dar alguma aplicabili-dade prtica ao dispositivo do art. 53 da Constituio italiana que consagra o prin-cpio, at ento tido como programtico pelos tribunais, a partir do afastamento dostributos confiscatrios e aqueles que gravam as rendas mnimas e da graduao pro-gressiva do sistema tributrio. A partir da, vrios autores italianos publicaramobras que buscam dar uma maior efetividade ao citado dispositivo constitucional:Manzoni (1965),46 Maffezoni (1970)47 e Frascesco Moschetti (1973).48 SegundoMoschetti, a capacidade contributiva no se confunde com qualquer manifestaode riqueza, mas se traduz, to-somente, na real fora econmica do contribuinteque seja idnea a concorrer s despesas pblicas.49

    As dcadas de 1980 e 1990 foram palco da reabilitao do princpio da capa-cidade contributiva, no s na jurisprudncia dos tribunais constitucionais comona doutrina europia. So juristas como Tipke, Vogel e Lang, na Alemanha;Moschetti, Tosi e Fantozzi, na Itlia; e Calvo Ortega, Ferreiro Lapatza e Falcn y

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    43 Ibidem, p. 78.44 Apud HERRERA MOLINA, Ob. cit., p. 78.45 Le Basi Teoriche Del Princpio della Capacit Contributiva. Milano: Giuffr, 1961, p. 439.46 MANZONI, Ignazio. Il Princpio della Capacit Contributiva nellOrdinamento Costituzionale Italiano.

    Torino: G. Giappichelli, 1965.47 MAFFEZONI, Federico. Il Princpio della Capacit Contributiva nel Diritto Finanziario. Torino: UTET,

    1970.48 MOSCHETTI, Francesco. Il Princpio della Capacit Contributiva. Padova: Cedam, 1973.49 Ibidem, p. 238.

  • Tella, na Espanha, que do ao referido princpio uma nova dimenso, que vai bemalm da vedao ao arbtrio na escolha dos fatos geradores.50

    Nessa nova diretriz, a capacidade contributiva representa no s um limitenegativo que exclui os fatos que no revelam manifestao de riqueza, como cons-titui critrio indispensvel para a repartio da carga tributria pelos cidados. Essareabilitao do princpio no apenas superou o ceticismo formalista, como foi bemalm do causalismo economicista, buscando contedo no valor da igualdade, e nodireito fundamental de pagar tributo na mesma proporo daquele que possui amesma riqueza.

    Contudo, o princpio no , como foi considerado na poca da jurisprudnciados interesses, absoluto, devendo ser ponderado com outros interesses buscadospela tributao, tais como a extrafiscalidade e a praticidade administrativa.51 Assim e aqui que os juristas modernos superam o argumento dos cticos que enxerga-vam no fenmeno da extrafiscalidade a negao da capacidade contributiva comoprincpio cogente , no basta a alegao de que determinada norma tributriabusca um fim econmico diverso da arrecadao para se driblar o princpio dacapacidade contributiva. preciso que tais motivos sejam justificados, luz doprincpio da proporcionalidade.

    Vale reprisar que, ao contrrio do que ocorria na fase urea das teses causa-listas, a capacidade contributiva, conforme se entende hoje, busca seu fundamen-to em valores, como o da igualdade, e no mas numa viso economicista, vincu-lada necessidade de o Estado angariar recursos para promover as prestaesestatais garantidoras da justia social. essa caracterstica que difere a justia tri-butria, na teoria da interpretao econmica do fato gerador, da sua acepo nafase ps-positivista.

    Nota-se a uma mudana de paradigma. No vale mais pesquisar quanto oEstado vai gastar para se atingir o ideal de justia social, e qual ser o quinho decada cidado para atingir esse montante, como na era da jurisprudncia dos inte-resses. Ao contrrio, o ideal da justia fiscal, hoje, se realiza na investigao dequanto cada cidado pode contribuir com as despesas pblicas,52 luz dos valorese princpios reatores do Estado Democrtico e Social. Portanto, as despesas pbli-cas devem se limitar ao somatrio da capacidade contributiva de cada um, sob penade as prestaes estatais serem realizadas s custas de parcelas indispensveis vidadigna do homem. Resta-nos, assim, concluir que a justia um valor que j deve

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    50 HERRERA MOLINA. Ob. cit., pp. 73-77.51 Ibidem.52 Segundo TIPKE: O princpio da capacidade contributiva no investiga o que o Estado e comunidades

    podem fazer pelo cidado isolado, seno o que o cidado isolado, com base na sua capacidade contribu-tiva, pode fazer por seu Estado e sua comunidade (Sobre a Unidade da Ordem Jurdica Tributria. In:SCHOUERI, Luiz Eduardo/ZILVETI, Fernando Aurlio (Coordenadores). Direito Tributrio. Estudosem Homenagem a Brando Machado. So Paulo: Dialtica, 1998, pp. 60-70, p. 64).

  • ser concretizado no momento de se arrecadar o tributo, e no somente medianteprestaes pblicas, viabilizadas com os recursos tributrios.

    Ora, legitimar a tributao onde no h manifestao de riqueza, em nome dasprestaes estatais, por mais relevantes que sejam, constitui uma iluso, poismesmo que o Estado preste servios pblicos que venham a suprir as necessidadesbsicas do cidado, o que nem sempre ocorre, o elevado custo da administraoestatal representa uma diminuio do direito prestao. Assim, mais vale deixarque o indivduo tenha recursos para atender suas prprias necessidades bsicas, doque tributar suas parcas rendas a fim de custear o atendimento dessas pelo Estado.

    Isso no significa, no entanto, que no Estado Democrtico e Social de Direitono seja imperioso que o Estado tribute a capacidade contributiva de alguns paraatender as necessidades bsicas de outros que, com seus prprios recursos, nopodem suport-las.

    Convm lembrar que, modernamente, o princpio da capacidade contributivagoza de aplicao universal, seja como uma derivao do princpio da igualdade,previsto em todas as constituies, 53 seja por meio de clusulas constitucionais quedeterminam a tributao proporcional ou mesmo de previses expressas.54 Noplano normativo, o princpio foi implicitamente consagrado na Constituio revo-lucionria francesa, de 1791, como decorrncia do princpio da igualdade.55 E dessetambm se extrai a capacidade contributiva na Constituio Alem. J na Argen-tina, o princpio tambm aparece, implicitamente, no artigo 4 da Constituio de1994, que prescreve que os tributos sero institudos eqitativa e proporcionalmen-te. No Mxico, a Constituio de 1917 adotou modelo semelhante, em seu art. 31,com a determinao de que os mexicanos contribussem em medida proporcionale equnime. Na Espanha, o princpio da capacidade contributiva est expressamen-te previsto no art. 31.1 da Constituio; o mesmo se d no art. 53 da carta consti-tucional italiana.56

    No Brasil, a Constituio Federal de 1946, em seu artigo 202,57 consagrava demodo expresso, o princpio da capacidade contributiva, que no entanto, j integra-va nosso ordenamento, implicitamente, desde a Constituio de 1824 (art. 179,

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    53 UCKMAR, Victor, Ob. cit., p. 53.54 Como salienta Klaus Tipke: Muitas constituies citam expressamente o princpio da capacidade con-

    tributiva como parmetro. Mas mesmo quando isso no ocorra, o princpio da capacidade contributiva o nico princpio justo no mbito tributrio; portanto o nico parmetro justo de comparao paraa aplicao do princpio da igualdade. Todas as constituies dos estados democrticos reconhecem oprincpio da igualdade (Sobre a Unidade..., cit., p. 64).

    55 PREZ ROYO, Fernando. Derecho Financiero y Tributario Parte General. 10. ed. Madrid, 2000, p.35.

    56 Para uma viso mais ampla da capacidade contributiva nas constituies de vrios pases vide UCKMAR,Victor (Ob. cit., pp. 66/67).

    57 Constituio Federal de 1946, art. 202: Os tributos tero o carter pessoal sempre que isso fr possvel,e sero graduados conforme a capacidade econmica do contribuinte.

  • XV).58 Embora ausente nos textos autoritrios da Constituio de 1967 e da EC n1/69, aps ser suprimido pela EC n 18/65, a capacidade contributiva era extradado prprio princpio da isonomia.59 Hoje, o princpio ressurge no art. 145, 1, daConstituio Federal de 1988.60

    Com a previso constitucional expressa do princpio da capacidade contribu-tiva na Carta de 1988, no h mais como justificar o ceticismo formalista da dou-trina brasileira que, diante das dificuldades em definir um contedo substantivopara a justia, agarra-se segurana jurdica com se esta fosse o nico valor funda-mental na cincia do direito.

    Como se viu, o princpio da capacidade contributiva constitui-se em umadecorrncia da igualdade,61 na medida em que todos devem contribuir para as des-pesas pblicas, em razo de suas possibilidades econmicas. Assim, de acordo comesta diretriz, somente so legtimas as distines que se baseiem na diferena entreas riquezas que vrios contribuintes manifestam.62

    Como bem assinala Tipke,63 a igualdade, ao contrrio da identidade, semprerelativa, pois o que completamente igual idntico. H que se inquirir em rela-o a que as coisas so iguais e, a partir da, averiguar se as distines encontradasjustificam, de fato, a atribuio de um tratamento diferenciado pelo legislador tri-butrio. As distines que devem ser levadas em considerao pela lei so as que sebaseiam numa diferente manifestao de riqueza, salvo se presente outro funda-mento a se ponderar com a capacidade contributiva, como a extrafiscalidade e apraticidade administrativa.

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    58 Constituio Imperial de 1824, art. 179, XV: Ningum ser exempto de contribuir para as despezas doEstado em proporo dos seus haveres.

    59 FALCO, Amlcar. Fato Gerador, cit., p. 68. BALEEIRO extraa o princpio do art. 153, 36, da EC n1/69, que prescrevia: A especificao dos direitos e garantias expressos nesta Constituio no excluioutros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princpios que ela adota. (Limitaes..., cit., p.687).

    60 Constituio Federal de 1988, art. 145, 1: Sempre que possvel os impostos tero carter pessoal esero graduados segundo a capacidade econmica do contribuinte, facultado administrao tributria,especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuaise nos termos da lei, o patrimnio, os rendimentos e as atividades econmicas do contribuinte.

    61 TIPKE, Klaus. Princpio da Igualdade e a Idia de Sistema no Direito tributrio. In: BrandoMachado (coord.). Estudos em Homenagem ao Prof. Ruy Barbosa Nogueira. So Paulo: Saraiva, 1984,p. 517. No mesmo sentido: LEHNER, Moris. Consideraes Econmicas e Tributao conforme aCapacidade Contributiva. Sobre a possibilidade de Uma Interpretao Teleolgica de Normas comFinalidades Arrecadatrias. In: SCHOUERI, Luiz Eduardo/ZILVETI, Fernando Aurlio (Coordena-dores). Direito Tributrio. Estudos em Homenagem a Brando Machado. So Paulo: Dialtica, 1998,pp. 143-154, p. 151.

    62 No que sejam impossveis distines baseadas em outros critrios diversos da capacidade contribu-tiva, mas so as distines baseadas na manifestao de riqueza as que se fundamentam no princpioem estudo.

    63 Princpio da Igualdade..., cit., p. 519.

  • Durante muito tempo uma viso exclusivista do princpio da capacidade con-tributiva, que lhe concebia como uma orientao de carter absoluto, levou crisedo princpio diante da ocorrncia de alguns fenmenos, como a extrafiscalidade. Oscontornos normalmente fixados pela doutrina para a formulao da capacidadecontributiva, no pareciam suficientes para a explicao do fenmeno da tributa-o extrafiscal. Nesse contexto, o princpio em tela reduziu-se mera proibio doarbtrio,64 e embora fosse at levado em considerao pelos tribunais, poderia serafastado diante de qualquer alegao fundamentada.

    No entanto, no suficiente a simples aluso a um objetivo extrafiscal ou praticidade da arrecadao para afastar, como num passe de mgica, a aplicao dacapacidade contributiva. A contradio entre esta e outros valores caros ao direito resolvida mediante a ponderao de interesses e a aplicao do princpio darazoabilidade.

    Tais conflitos, como assinala Pedro Herrera Molina, podem se dar entre os pr-prios elementos integrantes da capacidade contributiva, como, por exemplo, a apli-cao de uma progressividade que afete o princpio da renda lquida, o que o referi-do autor denomina de conflito interno; ou entre a capacidade contributiva e outrosprincpios jurdicos e objetivos almejados pelo legislador, como a extrafiscalidade ea praticidade administrativa, configurando os denominados conflitos externos.

    Os conflitos internos podem aparecer at mesmo entre o distanciamento dapreviso abstrata da norma que concebia determinado critrio de distino comorelevante, do ponto de vista da manifestao de riqueza, e a sua adequao aos fatosconcretos.65 Exemplo desse conflito se dar na legislao do IPTU progressivo, quevenha a determinar uma diferenciao de alquotas em razo da localizao doimvel (art. 156, 1, da CF , com redao dada pela EC n 29/00). Se tal diferen-ciao se traduzir em uma alquota majorada para os bairros mais nobres, a aplica-o desta alquota aos imveis de baixo valor, ainda que localizados nesses bair-ros,66 revelar-se- desastrosa capacidade contributiva. A soluo desse conflito,nesse exemplo, se daria pelo afastamento da progressividade.

    Podem, por vezes, esses conflitos internos ser resolvidos por meio de uma hie-rarquizao dos elementos internos da capacidade contributiva. Deste modo, umaprogressividade no poder dar tributao um carter confiscatrio, do mesmomodo que a proporcionalidade no pode atingir o mnimo existencial. Em taisexemplos fica fcil perceber tal hierarquizao, pois tanto a vedao ao confisco

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    64 HERRERA MOLINA. Ob. cit., p. 77.65 Ibidem, p. 158.66 Vide o caso das favelas localizadas nos morros da Zona Sul do Municpio do Rio de Janeiro: se adotado

    o regime progressivo em razo da localizao do imvel, de acordo com o bairro, teriam os imveis alilocalizados uma alquota maior do que imveis bem valorizados da Zona Norte da cidade, estabelecen-do-se uma verdadeira regressividade. Registre-se que, at o momento, o Municpio do Rio de Janeirono adotou a progressividade do IPTU na forma da EC n 29/00.

  • como tambm a imposio de respeito ao mnimo existencial, constituem limites capacidade contributiva. No entanto, no mais das vezes, tais facilidades no seapresentam na prtica, devendo o aplicador resolver o impasse pela ponderaoentre os elementos em jogo no caso concreto.

    Os conflitos externos ocorrem entre a capacidade contributiva e outros prin-cpios e normas do nosso sistema constitucional. A justia e a igualdade, concreti-zadas pelo princpio da capacidade contributiva, podem entrar em tenso com ovalor da segurana jurdica e com o princpio da legalidade. A ponderao entrecapacidade contributiva e legalidade, sem que a priori se possa defender a preva-lncia de qualquer delas, no d margem para que o juiz possa tributar o contri-buinte apenas com base na capacidade contributiva, sem que haja previso legal dotributo. A capacidade contributiva que ser tributada estar prevista na lei, em res-peito segurana jurdica. Por sua vez, o legislador definir o fato gerador do tri-buto de acordo com a capacidade contributiva, e o aplicador do direito ir inter-pretar a lei de acordo com o referido princpio. As clusulas antielisivas e a adoode conceitos indeterminados e de clusulas gerais na definio de fato geradores detributos constituem exemplos da tendncia ponderao entre legalidade e capa-cidade contributiva, pelo prprio legislador, com a primeira cedendo espao lti-ma. J a vedao ao uso da analogia para a criao de tributo pelo 1 do art. 108,do CTN, constitui exemplo de prevalncia da segurana jurdica sobre a capacida-de contributiva.

    Os conflitos externos tambm aparecem no fenmeno da extrafiscalidade,tenso muitas vezes no compreendida pela doutrina. Muitos autores, ainda hoje,defendem o afastamento da capacidade contributiva em nome do estabelecimentode uma poltica extrafiscal nos campos social, econmico, ambiental, e da sade pormeio da tributao.67 E foi justamente essa tendncia que ocasionou o desprestgiodo princpio da capacidade contributiva nos anos 60 e 70. No entanto, como quaseconsenso na moderna doutrina, no se pode afastar a aplicao da capacidade con-tributiva diante de um mero objetivo extrafiscal. preciso, ao contrrio, que oobjetivo extrafiscal seja razovel,68 e que prevalea diante de um juzo de pondera-o de valores entre a igualdade e a capacidade contributiva,69 a fim de que nosejam criados privilgios odiosos sob o pano da extrafiscalidade.70

    Em nosso pas, o Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de reconhecera necessidade do objetivo extrafiscal ser razovel, no transbordando para o arb-trio, no julgamento onde se discutia a constitucionalidade do critrio temporal dedistino, promovida pelo art. 6, do Decreto-Lei n 2.434/88, para a concesso de

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    67 Por todos: CARRERA RAYA. Ob. cit., p. 94.68 PEREZ ROYO. Ob. cit., p. 37.69 HERRERA MOLINA. Ob. cit., p . 100. 70 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributrio. 10. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002,

    p. 86.

  • iseno do IOF incidente sobre as operaes de cmbio vinculadas s importaescujas guias tivessem sido expedidas at determinada data.71

    De fato, a quebra do tratamento igualitrio conferido pelo legislador aos querevelam a mesma capacidade contributiva s pode se dar em funo da finalidadeextrafiscal, como observa Ferreiro Lapatza,72 caso estejam presentes os requisitosmnimos do referido princpio e quando os fins extrafiscais almejados sejam tam-bm amparados pela Constituio.

    Ainda h que se observar que os fins extrafiscais almejados, num regime fede-rativo, devem estar inseridos na competncia do ente da Federao para promoveraquela poltica pblica, no lhe sendo lcito invadir a esfera de atribuies mate-riais dos demais entes. Por isso, inconstitucional a adoo pelos Estados-membrosde alquotas diferenciadas para o IPVA em funo da origem estrangeira do vecu-lo, uma vez que o objetivo extrafiscal presente no caso a proteo indstrianacional matria da competncia da Unio.

    Outra fonte de conflito externo aparece com as normas de simplificao dalegislao tributria, baseadas no interesse da fiscalizao em combater a eliso fis-cal, reduzir os custos da arrecadao e do contribuinte, e simplificar o procedimen-to de recolhimento, arrecadao e fiscalizao dos tributos.

    No se confundindo, modernamente, a justia tributria com os interesses daarrecadao, a legitimidade de tais normas depender da proporcionalidade dessasmedidas vista sob o ngulo do princpio da capacidade contributiva. No entanto,pouco adianta uma definio legal que abstratamente seja fiel capacidade contri-butiva efetiva, mas que, no entanto, dada a complexidade na apurao da base tri-butvel, seja de difcil controle pela Administrao. E diante de tal dificuldade, mui-tos contribuintes podero deixar de recolher seus tributos, o que provocar umainjusta repartio das despesas pblicas e uma violao do princpio da isonomia.

    A rigor, sendo o princpio da capacidade contributiva uma decorrncia dovalor da igualdade, uma norma simplificadora que daquele se afaste em algunscasos individuais, mas que venha a garantir a prevalncia da isonomia (que pode-ria ser violada pela facilidade no descumprimento da legislao tributria peloscontribuintes, ou pelo alto custo para a sociedade na adoo de medidas que impe-am esse descumprimento), no atenta contra o referido princpio.

    que, como ressalta Pedro Herrera Molina, o prprio princpio da capacida-de contributiva violado se no h possibilidade de se estabelecer mecanismos decontrole do cumprimento das obrigaes tributrias pelos contribuintes menosimbudos do dever de contribuir para as despesas pblicas ou quando o alto custodesses controles suportado por toda a sociedade.73

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    71 STF, 1 Turma, AGRAG n 142.348-1/MG, rel. Min. Celso de Melo, DJ de 24/03/95, p. 6.807.72 Curso de Derecho Financiero..., cit., p. 62.73 Defende Pedro Herrera Molina: Ahora bien, la ineficcia administrativa lleva consigo uma aplicacin

    deficiente del sistema fiscal, y sta supone necesariamente un reparto desigual de las cargas fiscales en

  • No entanto, tais medidas simplificadoras no podem descambar para uma tri-butao que, na maioria dos casos, no reflita a capacidade contributiva de cada umdos contribuintes, e nem impingir a qualquer deles uma carga tributria radical-mente distinta da que seria devida caso no houvesse a medida simplificadora.74

    H mais uma vez que se analisar a razoabilidade da medida simplificadora. Emprimeiro lugar, deve-se verificar se a mesma realmente necessria para assegurara manuteno da isonomia tributria no cumprimento das obrigaes pelos contri-buintes, ou se a tributao pela capacidade efetiva j no seria suficiente para atin-gir esse objetivo.

    Quanto adequao, deve-se perquirir se a medida simplificadora realmenteresulta em vantagens, no que tange isonomia e capacidade contributiva, a par-tir do cumprimento das obrigaes tributrias por todos os contribuintes, em rela-o tributao pela riqueza efetiva, considerando que as dificuldades de controlelevariam a uma grande evaso fiscal.

    Por fim, num exame de proporcionalidade em sentido estrito, resta verificarse na maioria dos casos a capacidade contributiva efetiva atendida pela medida desimplificao e se nenhum contribuinte ser tributado em valor significativamen-te maior do que o determinado pela capacidade efetiva.75

    preciso ainda estabelecer uma relao de custo/benefcio, a fim de evitar quea tributao pela capacidade efetiva se revele to cara para o Estado, e em ltimaanlise para o conjunto dos contribuintes, que acabe por comprometer uma sistem-tica que pouco ir distinguir-se, em termos quantitativos, do regime simplificado.

    4) Concluso

    Ao longo desse estudo procurou-se demonstrar que, nos dias atuais, a consti-tucionalizao do direito tributrio, longe de ser garantia pela abundante previsode dispositivos legais que contemplem institutos tributrios, vai se revelar pelo res-gate dos princpios tico-jurdicos que informem a relao fisco-contribuinte, emque o ideal de justia tributria no se limita a uma mera figura de retrica a ilus-trar o discurso do legislador constituinte. Ao contrrio, a justia o valor que, aolado da segurana jurdica, deve alicerar todo o ordenamento jurdico.

    Esse ideal de justia vai se realizar, no pela fixao de regras de ouro, mas pormeio da abertura do direito tributrio aos valores e princpios da igualdade, dacapacidade contributiva e da generalidade, a partir de uma interpretao, que longe

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    beneficio de aquelloe menos honrados o con menos possibilidades de defraudar. A sensu contrario, laeficacia del control administrativo constituye una condicin necessaria (no suficiente) del sistema tri-butario justo (Ob. cit., p. 161).

    74 Ibidem, p. 162.75 Ibidem.

  • de se basear em premissas preestabelecidas, vai dar efetividade a esse arcabouoaxiolgico.

    Assim, o ideal de justia fiscal e a efetividade do princpio da capacidade con-tributiva no vo se revelar apenas pela adequada configurao legal do fato gera-dor da lei tributria, vista no plano abstrato da norma. Ao contrrio, o triunfo detais idias passa necessariamente pelo resgate tico da vida tributria nacional, apartir de um eficaz combate no s evaso fiscal, mas principalmente elisodesarrazoada, praticada por meio do abuso de direito, em suas mais variadas nuan-ces. Tal combate pode ser efetivado por meio da atividade hermenutica, e aindada atividade legislativa que promova o fechamento das brechas legais e estabeleaclusulas antielisivas.

    Cumpre enfatizar que, a despeito da eterna busca pela segurana, a incertezacausada pelos riscos sociais no se combate pela iluso de que a norma ir prevertodas as possibilidades que o mundo real pode oferecer. Muito ao contrrio. A segu-rana jurdica no se revela pelo fechamento da linguagem do legislador, com a uti-lizao de tipos fechados ou conceitos classificatrios, que, se j no se mostravamremdios adequados primeira modernidade, hoje se revelam absolutamenteincompatveis com a variedade e imprevisibilidade dos perigos, que caracterizam aambivalncia da sociedade de risco.

    A insegurana gerada pela ambivalncia fiscal se combate com um conjuntode regras jurdicas extradas de solues dialogais, e que sejam capazes de preservaros direitos fundamentais de todos os contribuintes.

    No campo fiscal, a segurana jurdica, sob um vis plural, visa a consolidar umsistema baseado na transparncia, que seja apto a dar resposta aos anseios de toda asociedade, e no de uma pequena parcela que tem acesso justia e ao planejamen-to fiscal.

    A transparncia fiscal exige do fisco, por sua vez, medidas moralizadoras decombate corrupo, de simplificao da arrecadao tributria e de impessoalida-de na fiscalizao, o que ainda demanda muitos avanos legislativos em nosso pas.Alis, a nica forma, que possa ir alm da abstrao da norma, de conferir efetivi-dade isonomia e capacidade contributiva, uma administrao tributria eficien-te e que trate a todos da mesma forma.

    Por outro lado, os riscos da bancarrota do Estado e do desequilbrio concor-rencial entre os agentes econmicos de um mesmo mercado, so combatidos poruma administrao eficiente e por uma legislao que dificulte as iniciativas elisi-vas por meio da elaborao de regras de incidncia que evitem o detalhamento des-necessrio aos objetivos fiscais e extrafiscais da tributao, que s se prestam fugada incidncia.76

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    76 COSTA, Valds. Instituciones de Derecho Tributrio. Buenos Aires: Depalma, 1996, p. 127.

  • Nesse sentido, abandonada a iluso acalentada pelo positivismo formalista, anorma tributria poder lanar mo de tipos, que por natureza so necessariamen-te abertos, e conceitos indeterminados.77 Nestes, a lei no abre espao para umaescolha subjetiva do aplicador, muito embora caream sempre de um preenchi-mento valorativo. No que exista uma nica soluo legal,78 mas nos conceitosindeterminados h, como explica Engisch,79 uma valorao objetiva, a partir dasconcepes dominantes no corpo social.

    No entanto, em nome da legalidade tributria baseada no pluralismo poltico,no poder o legislador tributrio utilizar-se de conceitos discricionrios, em que olegislador atribua ao administrador a possibilidade de escolher entre os vrioscaminhos a seguir, a partir de uma valorao subjetiva do aplicador do direito, deacordo com suas convices pessoais. A discricionariedade confere autoridadeadministrativa o poder de determinar por ela prpria, de acordo com o seu modode pensar, o fim prprio de sua atuao,80 o que se mostra incompatvel com o prin-cpio da reserva legal tributr