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 72 • Revista Texto Poético | ISSN: 1808-5385 | Vol. 14 (1 o  sem-2013) | p. 72-83 DIAS, A. L . F . “Jogar o jogo - ou Sobre Traduzir”. Entrevista com Paulo Henriques Britto “JOGAR O JOGO — OU SOBRE TRADUZIR” Entrevista com Paulo Henriques Britto André Luiz de Freitas  DIAS 1 Paulo Henriques Britto nasceu no Rio de Janeiro em 1951. Poeta, contista, ensaísta, professor e u m dos principais tradutores brasileiros da língua inglesa, formou-se em português e inglês pela PUC-Rio. É professor de tradução, criação literária e literatura brasileira na PUC-Rio, onde também defendeu mestrado em língua portuguesa. Em 2002, recebeu o título de Notório Saber na mesma instituição. Morou nos Estados Unidos em dois períodos, no começo dos anos 1960, ainda menino, e no começo dos anos 1970, quando estudou cinema em San Francisco. Como poeta, estreou em 1982, com Liturgia da matéria. Depois, vieram os volumes de poesia Mínima lírica (1989), Trovar claro (Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Fundação Biblioteca Nacional, 1997), Macau (Prêmio Portugal Telecom, 2004), Tarde (2007) e Formas do Nada (2012). Publicou também os contos de Para ísos artificiais  (2004) e Eu quero é botar meu bloco na rua (2009), sobre a música de Sérgio Sampaio. Ainda em 2012, publicou o livro  A traduç ão literária. Já traduziu cerca de cem livros, entre eles volumes de poesia de Byron, Elizabeth Bishop e Wallace Stevens, e romances de William Faulkner (O som e a fúria). Recebeu o Prêmio Paulo Rónai da Fundação Biblioteca Nacional (1995) pela tradução de  A mecânica das águas (Companhia das Letras), de E. L. Doctorow . 1 Doutorand o (bolsista Cnpq). Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Con- temporaneidade . Faculdade de Letras, PUC-Rio. [email protected]

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  • 72 Revista Texto Potico | ISSN: 1808-5385 | Vol. 14 (1o sem-2013) | p. 72-83

    DIAS, A. L. F. Jogar o jogo - ou Sobre Traduzir. Entrevista com Paulo Henriques Britto

    JOGAR O JOGO OU SOBRE TRADUZIR

    Entrevista com Paulo Henriques Britto

    Andr Luiz de Freitas DIAS1Paulo Henriques Britto nasceu no Rio de Janeiro em 1951. Poeta, contista, ensasta, professor e um dos principais tradutores brasileiros da lngua inglesa, formou-se em portugus e ingls pela PUC-Rio. professor de traduo, criao literria e literatura brasileira na PUC-Rio, onde tambm defendeu mestrado em lngua portuguesa. Em 2002, recebeu o ttulo de Notrio Saber na mesma instituio. Morou nos Estados Unidos em dois perodos, no comeo dos anos 1960, ainda menino, e no comeo dos anos 1970, quando estudou cinema em San Francisco. Como poeta, estreou em 1982, com Liturgia da matria. Depois, vieram os volumes de poesia Mnima lrica (1989), Trovar claro (Prmio Alphonsus de Guimaraens da Fundao Biblioteca Nacional, 1997), Macau (Prmio Portugal Telecom, 2004), Tarde (2007) e Formas do Nada (2012). Publicou tambm os contos de Parasos artificiais (2004) e Eu quero botar meu bloco na rua (2009), sobre a msica de Srgio Sampaio. Ainda em 2012, publicou o livro A traduo literria. J traduziu cerca de cem livros, entre eles volumes de poesia de Byron, Elizabeth Bishop e Wallace Stevens, e romances de William Faulkner (O som e a fria). Recebeu o Prmio Paulo Rnai da Fundao Biblioteca Nacional (1995) pela traduo de A mecnica das guas (Companhia das Letras), de E. L. Doctorow.

    1 Doutorando (bolsista Cnpq). Programa de Ps-Graduao em Literatura, Cultura e Con-temporaneidade. Faculdade de Letras, PUC-Rio. [email protected]

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    DIAS, A. L. F. Jogar o jogo - ou Sobre Traduzir. Entrevista com Paulo Henriques Britto

    1 A primeira vez que vi voc fora do livro, foi em uma aula inaugural na UFJF. Ali, de muitos modos, j mostrava um circuito de opinies muito diversas sobre traduo e poesia; tambm um modo de enxergar as funes dessas matrias, tanto na prtica escrita [criativa, tradutria] quanto na posio de professor. Nessa aula inaugural, voc dizia ter comeado a traduzir, do portugus para o ingls, poemas de Fernando Pessoa e as letras dos msicos Tropicalistas, especialmente Caetano, para mostrar aos amigos nos Estados Unidos. Poderia falar um pouco mais desse perodo e, ao voltar para o Brasil, como se deu sua entrada profissional no

    campo da traduo?

    Fui para a Califrnia com o objetivo oficial de estudar cinema, mas, na verdade, era mais um pretexto para ir embora do Brasil, num momento 1972 em que vivamos um clima irrespirvel, ps-AI5; no fundo eu pensava em me radicar nos Estados Unidos, imaginando que, por falar ingls desde a infncia e ter conhecimento prvio da cultura norte-americana, eu me aclimataria sem problemas. Nada ocorreu como o previsto; ainda que eu frequentasse crculos contraculturais semelhantes aos que conhecia no Rio, e fizesse algumas amizades slidas, eu me sentia um peixe fora dgua, tinha saudades do Rio, da lngua portuguesa, da famlia, dos amigos, de tudo. E embora eu estudasse cinema, meu interesse cada vez mais se concentrava na literatura e na lingustica. Assim, depois de seis meses de Los Angeles e um ano de San Francisco, o banzo me trouxe de volta ao Brasil. Aprendi alguma coisa de cinema, sem dvida; o mais importante, porm, foi que atualizei meu ingls, descobri a gramtica gerativa voltei para o Rio decidido a me tornar linguista , travei contato com a obra de vrios escritores, inclusive um poeta que veio a se tornar importante para a minha formao, Wallace Stevens, e tambm adquiri alguma prtica na traduo literria e no s por traduzir poemas e letras de canes do Brasil para mostrar aos amigos americanos. Como eu pretendia ficar nos Estados Unidos,

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    DIAS, A. L. F. Jogar o jogo - ou Sobre Traduzir. Entrevista com Paulo Henriques Britto

    comecei a escrever um livro de contos em ingls, e, com a volta ao Brasil, tive que traduzir o que j havia escrito para o portugus.Quando voltei para o Rio em carter definitivo, em meados de 1973, comecei a lecionar ingls no IBEU, e para aumentar a renda comecei a fazer tradues. Na verdade, meus primeiros trabalhos foram de revisor, na editora Imago; e comecei a fazer tradues comerciais, tanto do ingls para o portugus, quanto vice-versa. Minha primeira traduo literria, alguns anos depois, foi para a Nova Fronteira: Voss, romance do australiano Patrick White, que conquistou o Nobel de literatura de

    1973. Minha insegurana era total. No sabia que forma de tratamento adotar: o romance era passado no sculo XIX, e eu no sabia se usava tu ou voc; no sabia quando usar o senhor. No tinha a menor experincia, no tinha ningum que pudesse consultar no conhecia nenhum tradutor literrio. Por no ter bons dicionrios, eu no saa da biblioteca do IBEU; como no sabia nada sobre a Austrlia, passei uma tarde inteira l lendo o imenso verbete referente Austrlia da Enciclopdia Britnica, tomando notas. Foi assim que aprendi a traduzir literatura: na marra. Entreguei a traduo para a editora, o tempo foi passando e acabei me esquecendo dela. Quase dez anos depois que o livro foi publicado no me pergunte por qu. A essa altura, eu j estava trabalhando para outras editoras.

    2 H mudanas significativas, em termos de profissionalizao

    [de editores e editorial de tradutores], de quando voc comeou, para o quadro atual? Quais seriam? O aprimoramento terico da prtica tradutria, oferecido pelos cursos universitrios, tem peso nessa mudana?

    Muita coisa aconteceu de meados dos anos 70 para c, no Brasil e no mundo, no campo da traduo. A Associao Brasileira de Tradutores foi fundada em 1973 eu estava presente sesso de fundao, quietinho

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    DIAS, A. L. F. Jogar o jogo - ou Sobre Traduzir. Entrevista com Paulo Henriques Britto

    num canto, enquanto falavam Aurlio Buarque de Holanda, Paulo Rnai e outros nomes importantes que at ento eu s conhecia dos livros; da ABRATES nasceu depois o Sindicato dos Tradutores; e, no final dos anos

    80, finalmente a profisso de tradutor foi legalmente reconhecida. Os cursos universitrios do qual o mais antigo o da PUC-Rio, fundado ainda no final dos anos 60 tambm foram relevantes, lanando no

    mercado profissionais que j tinham tido algum embasamento terico e, mais importante ainda, muita prtica tradutria. Mas talvez o mais significativo de tudo seja a mudana de atitude das editoras, que at ento davam muito pouco valor ao papel do tradutor. Aos poucos os editores foram se dando conta de que uma m traduo pode matar um livro, que pagar mais para um bom tradutor e um bom revisor resultava num produto final que permaneceria no mercado por muito mais tempo, tendo reedies sucessivas. Enquanto isso, o campo dos estudos da traduo surgiu e cresceu de modo extraordinrio nas ltimas dcadas do sculo passado. E, claro, o advento dos microcomputadores e da internet facilitaram imensamente o trabalho de traduo, permitindo mais rapidez e melhor acabamento.

    3 No campo da traduo, algumas das suas posies tericas

    so bastante conhecidas. Culminaram, recentemente, na publicao do livro A traduo literria. Nesse livro voc abre algumas frentes que, a meu ver, so bastante interessantes. A reviso, necessria, de certa perspectiva do senso comum sobre o trabalho do tradutor; a relativizao de determinados posicionamentos tericos, principalmente da corrente da desconstruo; da necessidade de avaliao qualitativa das tradues j indicada, anteriormente, em um ensaio seu sobre as tradues de Donne, realizadas por Paulo Vizioli e Augusto de Campos. Poderia nos falar um pouco mais sobre essas ideias e, naturalmente, como elas so atuadas em sala de aula? Como esse pensamento tem repercutido, uma vez que voc, ao que parece, no se incomoda muito de manter uma posio

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    mais conservadora em relao teorizao desconstrucionista, por exemplo?

    A desconstruo se tornou muito influente no Brasil, principalmente nos anos 90, e independentemente do que possa ser dito a seu favor ou contra, no mbito da filosofia e dos estudos literrios, na rea de traduo ela foi responsvel pela instaurao de um divrcio entre a atividade prtica da traduo e os estudos tericos. Levados s ltimas consequncias, os princpios da desconstruo tornam insustentveis todos os conceitos que proporcionam os alicerces da empresa tradutria: original, correspondncia, fidelidade, transparncia, etc. Por mais que

    concordemos com muito do que afirmado por esses tericos, como sua defesa de uma viso antiessencialista da linguagem, as concluses tiradas por eles vo de encontro s prticas da traduo como forma de vida, para usar um conceito de Wittgenstein (um autor, alis, cuja viso da linguagem, tambm antiessencialista, me parece bem mais til para fundamentar o trabalho de traduo). Ora, sei perfeitamente que o

    significado de um texto no uma entidade estvel, a respeito da qual possa haver um consenso absoluto; que traduo alguma pode reproduzir com exatido o significado de um texto e, no caso do texto literrio, os seus efeitos de forma ; que no h uma nica traduo correta de um dado texto. Mas, para quem tem a obrigao profissional de traduzir um determinado texto, necessrio partir dos pressupostos de que h um determinado significado e determinados efeitos de forma que so cruciais para um dado texto; que possvel reproduzir no idioma-meta essas propriedades do texto original com um grau razovel de preciso; e que, dadas duas tradues de um texto, possvel afirmar-se, com base em argumentos razoveis, fundados em propriedades do original e da traduo, que uma melhor ou pior que a outra, ou de qualidade comparvel a ela. So essas as regras que vigoram nesta forma de vida que a traduo; sabemos que so apenas regras, mas sem elas no se joga o jogo de traduzir.

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    DIAS, A. L. F. Jogar o jogo - ou Sobre Traduzir. Entrevista com Paulo Henriques Britto

    Vou dar um exemplo, que creio ter includo no livro: imagine-se que, no meio de uma partida de futebol, um jogador segura a bola com as mos e corre com ela em direo ao gol do time adversrio. O rbitro

    ento saca o carto vermelho, claro. O jogador, que seguidor de Derrida, resolve argumentar que as regras do futebol no so verdades transcendentais, criadas por Deus e inscritas nas realidades da bola e do campo; que elas no refletem nenhuma essncia eterna, ou seja, podem mudar e mudam de fato, quando a FIFA decide que uma mudana necessria; que os juzos do rbitro no exprimem verdades absolutas. O rbitro, se for um bom leitor de Wittgenstein, responder: Tudo

    que voc afirma verdade; mas as regras do futebol em vigor probem qualquer contato entre as mos e a bola. Se voc pega a bola com a mo no meio do jogo e no goleiro, no est mais jogando futebol. Como voc v, minha rejeio das posies desconstrucionistas no se deve a algum conservadorismo da minha parte. Quem traduz se orientando pelos princpios da desconstruo, acreditando que no tem acesso ao sentido do original, o qual totalmente instvel; que o texto que est produzindo no pode corresponder ao sentido do original, e, portanto, pode dele afastar-se o quanto quiser; e que o produto de seu trabalho no melhor nem pior do que qualquer outro texto que seja produzido por algum a partir do mesmo original, j que todos os juzos humanos so relativos e falhos quem age assim no est mais traduzindo, e sim fazendo outra coisa qualquer, que pode at ser interessante, mas pelos critrios atualmente adotados pela grande maioria das pessoas traduo no .4 Se tomarmos a famosa colocao de Harold Bloom acerca da

    influncia, os irmos Campos te geraram algum tipo de angstia

    no ato de traduzir? Voc costuma dizer que as categorias criadas por eles, como transcriao, transluciferao etc.; no passam de nomes pomposos para tradues muito bem feitas que, na

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    DIAS, A. L. F. Jogar o jogo - ou Sobre Traduzir. Entrevista com Paulo Henriques Britto

    verdade, guardam mais aproximaes com os originais do que com a inveno. Como voc viu, na poca, a discusso entre Bruno Tolentino e Augusto de Campos, acerca da traduo de Hart Crane? Voc v, de algum modo, a necessidade de reavaliar as posies, ainda hegemnicas, do pensamento dos Campos para a traduo?

    O pensamento de Haroldo de Campos, por mais fascinante e influente que seja, na minha opinio, pe nfase excessiva na autonomizao do texto traduzido em relao ao texto original. Ele chega a afirmar que em

    ltima anlise o tradutor literrio quer usurpar o lugar do original. Ora, no vejo como tal coisa poderia se dar. Por melhor que seja a traduo de Homero feita por Haroldo, ela s ter real valor para os leitores lusfonos e, talvez, tambm para tradutores de outros idiomas, na medida em que as solues encontradas por ele podem lhes apontar caminhos interessantes. O fato que, para a parcela da humanidade que no fala portugus, o ponto de partida ser sempre o conjunto de textos gregos recolhidos sob o nome de Homero; nenhuma traduo pode usurpar tal lugar. O mximo que o tradutor pode pretender realizar a recriao, na lngua-meta, daqueles elementos de sentido e de forma do original que, de acordo com a sua leitura, so os mais importantes, dentre os que podem ser recriados na lngua-meta em questo. Querer mais que isso hybris. Mas a prtica tradutria de Haroldo e de Augusto de Campos, felizmente, no vai nesse caminho. Pelo menos com base no que posso avaliar as tradues que eles fizeram do ingls ou de lnguas que leio, com mais ou menos desenvoltura, como o italiano e o francs o trabalho deles quase sempre muito respeitoso com o original, tanto no plano do significado quanto no do significante. Quanto angstia de que fala Bloom, jamais me ocorreu que minhas tradues pudessem ser comparveis em qualidade, para dar s um exemplo, ao Hopkins de Augusto; para mim, eles so mestres que devem ser emulados, e que para mim, ao menos permanecem insuperveis.

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    DIAS, A. L. F. Jogar o jogo - ou Sobre Traduzir. Entrevista com Paulo Henriques Britto

    A controvrsia entre Bruno Tolentino e Augusto de Campos, como todas as controvrsias provocadas por Tolentino, no coisa que possa ser discutida com seriedade. Ele tinha o gosto por polmicas, nas quais fazia afirmaes muitas vezes estapafrdias como a de que

    Augusto de Campos no conhecia bem o ingls afirmaes essas

    que, em mais de uma ocasio, contradiziam o que ele havia afirmado pouco antes. Como tradutor, Tolentino est muito aqum do nvel de Augusto. Seu comportamento errtico e agressivo, associado s posies arquiconservadoras que defendia, acabaram tendo um efeito negativo sobre o reconhecimento de sua obra potica, o que uma pena. Sua ltima produo, A imitao do amanhecer, merecia ser mais lida e comentada; a meu ver um excelente livro.5 Um dos enfoques da sua produo ensastica d nfase a

    uma leitura mais formalista do texto potico. Como exemplos, podemos observar sua leitura sobre o desvio do pentmetro ingls e o decasslabo portugus na traduo de poemas; tambm, mais recentemente, a busca de uma tipologia para o verso livre no Brasil, tomando como partida algumas tradues conhecidas de um mesmo poema de T.S. Eliot [A Love Song of Alfred J. Prufrock]. Embora a partida dos textos esteja vinculada traduo, so bastante interessantes para pensar a dinmica do verso de maneira mais geral. Como observa essa afirmao? Poderia nos falar um

    pouco mais sobre a direo dessas pesquisas?

    Sim, estou interessado na questo do verso tal como tem sido utilizado no Brasil, principalmente a partir do modernismo. Um curso recente que dei na PUC-Rio foi justamente sobre isso a histria do verso do modernismo at agora; dei uma verso compacta desse curso, indo s at as neovanguardas dos anos 1950-60, na UFPE, h duas semanas. Nesse primeiro momento, estou enfatizando o chamado verso livre, que, na verdade, toda uma constelao de formas, e o decasslabo,

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    mas a ideia ir expandindo, pegando mais poetas e mais formas. Creio que peguei a ideia com Saintsbury, que escreveu um tratado longussimo trs volumes alentados sobre a histria do verso ingls, desde os primrdios at a poca dele (logo antes da ecloso do modernismo). Acabei de ler o livro recentemente, e estou tentando no cair nos erros de Saintsbury: trabalhar com termos no definidos (ele jamais define

    p, por exemplo) e valer-se do achismo, fazer afirmativas categricas sem dar nenhum lastro emprico a elas.6 notvel seu interesse sobre a poesia contempornea no

    Brasil. So exemplares, os cursos que privilegiam a leitura de poetas no muito conhecidos, como Edimilson de Almeida Pereira ou Rubens Rodrigues Torres Filho; uma extensa leitura da potica de Claudia Roquette-Pinto, para a coleo Ciranda da Poesia; orelhas ou apresentaes de livros, como, por exemplo, Lucas Viriato, Marcello Sorrentino, Mariano Marovatto e Iacyr Anderson de Freitas. Qual balano pode ser feito, se balano h, sobre a poesia brasileira contempornea?

    Ainda falta estudar muita coisa, mas j d para tirar algumas concluses. A primeira que, ao contrrio do que certos crticos afirmam, estamos vivendo um bom momento na poesia brasileira (para no falar na portuguesa, que tambm est em tima fase); h muitos poetas excelentes em atividade. A segunda uma obviedade: no h mais tendncias bem definidas, e nada que possa ser rotulado de movimento. Se h experimentao, trata-se principalmente de retrabalhar ou avanar nas conquistas formais do modernismo ou seja, dialoga-se mais com as vanguardas do incio do sculo do que com as neovanguardas, embora estas tambm tenham tido um impacto importante, principalmente o concretismo. A terceira que, embora haja uma pluralidade de versos, a forma mais popular hoje em dia o que venho chamando, por falta de nome melhor, de novo verso livre:

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    um verso curto, fortemente enjambado, que nas mos dos melhores poetas usado para estabelecer um contraponto entre o verso sonoro (que muitas vezes ignora a fronteira entre os versos grficos) e o verso

    grfico (que muitas vezes no tem autonomia sonora).

    7 H um poema seu, no Formas do Nada, chamado Ps que ensaia, a meu ver, uma resposta ou incio de discusso com as vanguardas e certo posicionamento sobre a produo potica hoje, alm da aberta citao ao Ps-Tudo de Augusto de Campos. O terceiro poema, da srie Oficina, salvo engano, brinca com a

    funo da msica do poema em Joo Cabral de Melo Neto um soneto mobilizado por tera-rima e fechado em um dstico com uma potente paronomsia. Ricardo Domeneck, j h algum tempo, escreveu sobre certa inconsistncia em usar formas histricas do poema, como o soneto. Toma, inclusive, uma famosa srie de sonetos seus [at segunda ordem], como exemplo, elogioso, do bom uso da forma. Como v essa afirmao? Qual sua relao com a

    tradio e a produo potica recente na sua poesia?

    Ao contrrio de Ricardo Domeneck, no acredito que o uso do soneto implique uma determinada viso do mundo, fatalmente ultrapassada. No creio que s o novo verso livre corresponda ao nosso tempo, como nunca acreditei que o uso do sistema harmnico de Bach-Rameau remetesse necessariamente ao passado e todo compositor tivesse que utilizar o mtodo serial, como era moda dizer at mais ou menos a dcada de 1970. Como diz Antonio Cicero, as vanguardas pensam que esto demolindo formas antigas, mas o que acabam fazendo revitaliz-las e criar novas formas, aumentando o repertrio. Stravinsky criou uma forma nova na Sacr du printemps e revitalizou a harmonia tradicional em Pulcinella; Bandeira foi um dos criadores do verso livre entre ns, mas soube tambm retrabalhar de modo magnfico o octosslabo em Boi morto, entre tantas outras formas. interessante observar que

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    DIAS, A. L. F. Jogar o jogo - ou Sobre Traduzir. Entrevista com Paulo Henriques Britto

    a suposta obsolescncia das formas, e mesmo do verso, uma ideia que nunca foi levada muito a srio pelos poetas de lngua inglesa. Stevens, Frost, Eliot, Pound, Yeats e Auden para citar apenas os seis maiores poetas modernos do idioma todos trabalharam com formas tradicionais.Se formos estender a lgica de Domeneck segundo a qual o soneto, por exemplo, est fatalmente ligado concepo de mundo da poca em

    que surgiu onde vamos parar? O verso tout court no estaria ligado ao passado, como diziam os concretistas nos anos 50 e 60? Haroldo de Campos pelo visto j no acreditava mais nisso quando publicou um longo poema em tera-rima na ltima fase de sua carreira. A lngua portuguesa no estaria comprometida irremediavelmente com o passado distante, o tempo de sua formao, fazendo-se necessrio que crissemos uma lngua brasileira? Mario de Andrade e outros chegaram perto de afirmar tal coisa nos anos 20, mas depois voltaram atrs. Ou muito me engano ou Domeneck, nas prximas dcadas, vai descrever um percurso semelhante...

    A meu ver, no h como um artista no dialogar com a tradio repeti-la servilmente e romper com ela de modo radical so duas maneiras extremas de faz-lo, e nenhuma das duas me atrai. Meu mtodo predileto tomar formas tradicionais e tension-las no soneto, por exemplo, usando decasslabos com uma pauta acentual incomum e colocando forma e sentido em contraste, como Domeneck observou com sua costumeira argcia na sua anlise do meu poema; ou ento alterar a forma, interferindo nas regras do soneto, criando sonetoides e sonetetos. Mas onde no pode haver volta atrs, do meu ponto de vista, na linguagem: o idioma do poema no pode ser marcado por um vocabulrio precioso e uma sintaxe arrevesada. A conquista do coloquial, operada por Bandeira e os modernistas, me parece definitiva.

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    DIAS, A. L. F. Jogar o jogo - ou Sobre Traduzir. Entrevista com Paulo Henriques Britto

    8 Paulo, pra fechar a tampa, os livros sobre versificao no

    Brasil no so muito numerosos e, em sua maioria, no tratam do verso livre ao menos, no de modo satisfatrio. Podemos esperar uma publicao, nos mesmos termos de A traduo literria?

    Gostaria muito de reelaborar meus artigos esparsos, acrescentar alguma coisa talvez muita coisa e fazer um livro, sim.