revista segurança publica & cidadania vol.2 n.1

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egurança pública

idadania

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Revista Brasileira de Segurança Pública & CidadaniaRevista da Academia Nacional de Polícia (ANP)

Brasília, v. 2, n. 1, p. 1 - 163, jan./jun. 2009.ISSN 1983-1927

Copyright 2008- ANP

Editor rEsponsávEl

Célio Jacinto dos Santos

Comissão Editorial

Célio Jacinto dos Santos, Eliomar da Silva Pereira, Emerson Silva Barbosa, Gilson Matilde Diana,

Manuela Vieira de Freitas, André de Almeida Oliveira.

ConsElho Editorial

Adelar Anderle (CGCSP), André Luiz Diniz Gonçalves Soares (DLOG), Anísio Soares Vieira (ANP), Carlos An-

tônio da Silva (COGER), Cláudio Araújo Reis (UnB), Helvio Pereira Peixoto (DITEC), Fernando de Jesus Souza

(SR-GO), Getúlio Bezerra (DFIN/DCOR), Lásaro Moreira da Silva (DPF), Marcello Diniz Cordeiro (CGPRE), Marlon

Jacinto Reis (TJ/MA), Mirânjela Maria Batista Leite (SR-TO), Paula Dora Aostri Morales (CGDI), Rodrigo Carneiro

(DCOR), Sinomar Maria Neto (CGPI), Virgínia Vieira Rodrigues (DIREX), Washington Wives Filho (ANP).

Ministério da Justiça

Ministro: Tarso Fernando Herz Genro

Departamento de Polícia Federal

Diretor-Geral: Luiz Fernando Corrêa

Diretoria de Gestão de Pessoal

Diretor: Joaquim Cláudio Figueiredo Mesquita

Academia Nacional de Polícia

Diretor: Anísio Soares Vieira

Célio Jacinto dos Santos

Coordenador da CAESP

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egurança pública

idadania

Segurança Pública & Cidadania, v. 2, n. 1, jan. /jun. 2009.

ISSN 1983-1927

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Revista Brasileira de Segurança Pública & CidadaniaRevista da Academia Nacional de Polícia (ANP)

Brasília, v. 2, n. 1, p. 1 - 163, jan. /jun. 2009.ISSN 1983-1927

Os conceitos e idéias emitidos em artigos assinados são de inteira responsabilidade dos autores, não representando, neces-

sariamente, a opinião da revista ou da Academia Nacional de Polícia.

Todos os direitos reservados

Nos termos da Lei que resguarda os direitos autorais (de acordo com a Lei nº 9.610 de 19 de fevereiro de 1998 - Lei dos

Direitos Autorais), será permitida a reprodução parcial dos artigos da revista, sempre que for citada a fonte, .

Correspondência Editorial

Revista Segurança Pública & Cidadania

Rodovia DF 001 - Estrada Parque do Contorno, Km 2

Setor Habitacional Taquari, Lago Norte-DF

CEP - 71559-900 - Brasília-DF

E-mail: [email protected]

Publicação Semestral

Tiragem: 1.000 exemplares

Projeto Gráfico e Capa: Gilson Matilde Diana e Gleydiston Rocha

Editoração: Gilson Maltilde Diana e Gleydiston Rocha

vvvvvDados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Biblioteca da Academia Nacional de Polícia

Segurança Pública & Cidadania - Revista Brasileira de Segurança Pública e Cidadania/Aca-

demia Nacional de Polícia. - v. 2, n. 1 (jan./jun. 2009). Brasília: Academia Nacional de Polícia,

2009.

163p.

ISSN 1983-1927

Semestral

1. Segurança Pública - Periódico. 2. Cidadania. I. Brasil. Ministério da Justiça. Departamento de

Polícia Federal. Academia Nacional de Polícia.

351.759.6

R 454

Copyright 2008- ANP

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SUMÁRIOARTIGOSO Papel da Estatística em Laudos Periciais Criminais de Entorpecentes - Estudos de Caso ............. 13

Fernando Fernandes LimaA Polícia Federal e o Estado Policial ............................................................................................................................................................23

Marcelo Eduardo Freitas O Papel da Polícia Judiciária no Estado Democrático de Direito .....................................................................................39

Vanessa Pitrez de Aguiar CorrêaProblemas Relativos ao Princípio da Proporcionalidade na Lei de Crimes Ambientais ............................55

Luiz Carlos Nóbrega NelsonA Tortura no Direito Internacional e no Direito Interno. .............................................................................................................69

Tony Gean Barbosa de Castro Redução da Violência Policial Baseada na Interagencialidade da Polícia com a Comunidade..............83

Leandro Miranda ErnestoAtribuições Concorrentes para a Investigação de Crimes Eleitorais .......................................................................... 97

Miguel de Almeida Moura SennaO Cotidiano de Adolescentes Cumprindo Medida Socioeducativa de Internação: Penalizar ou Educar? .. 119

Tatiana Dassi & Maria José Reis

RESENHASEnsaios de Antropologia e de Direito, de Roberto Kant de Lima. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, 289 pp. . ................................................................................................................................................................................................................139

Resenhado por Manuela Vieira de Freitas

JURISPRUDÊNCIATráfico de Drogas e Combinação de Leis Incriminadoras - 2 ..........................................................................................147

Interrogatório por Videoconferência - 2 ...............................................................................................................................................148

Decreto de Expulsão e Direito à Progressão de Regime - 1 ..............................................................................................148

Policial Cedido: Atividade Policial e Tempo de Serviço ....................................................................................................... 149

Prisão Civil e Depositário Infiel - 3 ..............................................................................................................................................................150

Prisão de Depositário Judicial Infiel e Revogação da Súmula 619 do STF ..............................................................151

Proposta de Súmula Vinculante e Acesso do Advogado a Elementos de Prova já Documentados ....151

Desarquivamento de Inquérito Policial e Excludente de Ilicitude - 1 ..........................................................................153

Desarquivamento de Inquérito Policial e Excludente de Ilicitude - 2 ........................................................................ 154

ADI N. 3.817-DF ............................................................................................................................................................................................................... 155

Competência. STJ. HC. Local. Custódia. Transporte. Viatura. ........................................................................................... 156

Magistrado. Parcialidade........................................................................................................................................................................................ 156

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CONTENTSARTICLESThe role of statistics in drugs examinations - study of a real case ............................................................................. 13

Fernando Fernandes LimaThe Federal Police and the Policial State ................................................................................................................................................23

Marcelo Eduardo Freitas The Role of Judiciary Police in the Rule of Law ................................................................................................................................39

Vanessa Pitrez de Aguiar CorrêaProblems Concerning Principle of Proportionality in the Law of Environmental Crimes .........................55

Luiz Carlos Nóbrega NelsonThe Torture in International an National Law .......................................................................................................................................69

Tony Gean Barbosa de Castro Decreasing of Policing Violence Based on the Police-Neighborhood Interaction ..........................................83

Leandro Miranda ErnestoConcurrent Responsibility to Investigate Election Crimes.................................................................................................... 97

Miguel de Almeida Moura SennaThe Daily Routine of Young Offender: punish or educate? ..............................................................................................119

Tatiana Dassi & Maria José ReisBOOK REVIEWSEssays on Anthropology and Law, by Roberto Kant de Lima. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, 289 pp.. ...................................................................................................................................................................................................................................139

Reviewed by Manuela Vieira de Freitas JURISPRUDENCEDrug Trafficking and combination of Criminal Laws - 2 ........................................................................................................147

Interrogation by Videoconference - 2 ....................................................................................................................................................148

Decree for Expulsion and the Right to Progression Scheme ............................................................................................148

Assigned Police Officer: Police Activity and Length of Service ................................................................................. 149

Civil Prison and Unfaithful Trustee .............................................................................................................................................................150

Prision of an Unfaithful Judicial Trustee and Repealing of the STF Sumula 619 ...............................................151

Proposal for a Binding Abridgement and Lawer Access to Already Documented Evidence .......................151

Reopening of the Police Inquiry and Excluding of Illegality - 1 ........................................................................................153

Reopening of the Police Inquiry and Excluding of Illegality - 2 ..................................................................................... 154

ADI N. 3.817-DF ............................................................................................................................................................................................................... 155

Competence. STJ. HC. Local. Custody. Transportation. Vehicle. .................................................................................. 156

Magistrate. Partiality. ................................................................................................................................................................................................ 156

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Brasília, v. 2, n. 1, jan./jun. 2009.

Editorial

A Academia Nacional de Polícia apresenta à comunidade policial e aos pesquisadores o terceiro número da Revista Brasileira de Segurança Pública e Cidadania, mantendo o propósito de fomentar reflexões e pes-quisas voltadas para o conhecimento multidisciplinar sobre a violência e o sistema criminal, e conseqüentemente, proporcionar metodologias e ferramentas mais apropriadas para desenvolvimento de políticas públicas para a área.

A receptividade desta revista tem sido ótima, principalmente no seio dos policiais, nos indicando que o seu projeto pode ser fortalecido com ampliação de colaboradores do público-leitor.

Os temas tratados neste número possuem abordagem sócio-jurí-dica, sócio-política e técnica, mas não se distanciam do sadio apontamen-to de solução para problemas enfrentados pelos policiais e pelos gestores da área de segurança pública.

Nos artigos A Polícia Federal e o Estado Policial, O Papel da Polícia Judiciária no Estado Democrático de Direito, Problemas Relativos ao Princípio da Proporcionalidade na Lei de Crimes Ambientais, A Tortura no Direito Internacio-nal e no Direito Interno, Redução da Violência Policial Baseada na Interagenciabili-dade da Polícia com a Comunidade, Atribuições Concorrentes para a Investigação de Crimes Eleitorais, os autores apresentam breves, mais ricos, ensaios sobre novas concepções para a atividade policial, as quais buscam a concretiza-ção da segurança pública como direito do cidadão sem perder de vista a defesa intransigente do Estado Democrático de Direito.

O artigo O Papel da Estatística em Laudos Periciais Criminais de Entor-pecentes – Estudo de Caso, apresenta metodologia para perícias de entorpe-centes, baseada em fundamentos científicos ligados à estatística.

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Brasília, v. 2, n. 1, jan./jun. 2009.

As colaboradoras Tatiana Dassi e Maria José Reis no artigo O Co-tidiano de Adolescentes Cumprindo Medida Socioeducativa de Internação: Penalizar ou Educar?, em um Centro de Internamento, explicita a necessidade de implantação de mudanças nas instituições públicas de acolhimento de adolescentes em conflito com a lei.

A resenha deste número reflete a linha conceitual da revista: a variedade de abordagem epistemológica da atividade policial. Ela cuida da obra Ensaios de Antropologia e de Direito, de autoria de um dos maiores pesquisadores na área de segurança pública, o professor Roberto Kant de Lima, e por isso, é uma obra essencial para os policiólogos ou de qualquer pesquisador que queira incursionar nesta rica seara da Ciência Policial.

Conta ainda o presente número de revista com material jurispru-dencial de tribunais superiores, que tratam de temas ligados a faina po-licial.

Com uma leitura agradável mais ao mesmo tempo reflexiva, es-pera-se que o terceiro número da Revista Brasileira de Segurança Pública e Cidadania proporcione enriquecimento da massa crítica sobre a atividade policial.

CÉLIO JACINTO DOS SANTOS

Editor Responsável

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ARTIGOSARTIGOS

ARTICLESARTICLES

O papel da estatística em laudos periciais criminais de entorpecentes – estu-do de caso .......................................................................................................................................................................... 13

A PF e o Estado Policial .........................................................................................................................................23

O Papel da Polícia Judiciária no Estado Democrático de Direito ...................................39

Problemas Relativos ao Princípio da Proporcionalidade na Lei de Crimes Am-bientais ..................................................................................................................................................................................55

A Tortura no Direito Internacional e no Direito Interno. Criminalização e a Juris-prudência Brasileira na Dimensão da Justiça Reparadora. Breves Considerações.......................................................................................................................................................................................................69

Redução da Violência Policial Baseada na Interagencialidade da Polícia com a Comunidade ......................................................................................................................................................................83

Atribuição Concorrente para a Investigação de Crimes Eleitorais ...............................97

O Cotidiano de Adolescentes Cumprindo Medida Socioeducativa de interna-ção: penalizar ou educar? ....................................................................................................................................119

The role of statistics in drugs examinations - study of a real case ........................... 13

The Federal Police and the Policial State ..............................................................................................23

The Role of Judiciary Police in the Rule of Law ..............................................................................39

Problems Concerning Principle of proportionality in the Law of Environmental Crimes ....................................................................................................................................................................................55

The Torture in International an National Law .....................................................................................69

Decreasing of Policing Violence Based on the Police-Neighborhood Interaction ............................................................................................................................................................................83

Concurrent Responsibility to Investigate Election Crimes...................................................97

The Daily Routine of Young Offender: punish or educate? ............................................119

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13ISSN 1983-1927

Brasília, v. 2, n. 1, p. 13-22, jan./jun. 2009.Recebido em 5 de setembro de 2008.Aceito em 2 de janeiro de 2009.

o papEl da Estatística Em laudos pEriciais criminais dE EntorpEcEntEs – Estudo dE caso

Fernando Fernandes de Lima

D

RESUMO

Errar é humano, diz o ditado popular. De fato, não há processo isento de falha, quando o ser humano está envolvido. Contudo, a ciência permite controlar estas falhas e este artigo objetiva mostrar como efetuar este controle, garantindo a segurança do processo decisório de todos os envolvidos em laudo pericial criminal, sejam eles peritos, delegados, juízes ou membros do mi-nistério público.

Palavras-chave: Laudo. Estatística. Erro. Decisão. Controle. Perícia.

introdução

Tem sido objeto de constante discussão no meio pericial federal a questão da segurança ou certeza nos resultados apresentados em laudos periciais.

Como qualquer outro ramo da ciência, a análise química está su-jeita a erros, os quais podem se refletir nos laudos periciais. Cabe aos peritos e aos Institutos de Criminalística buscar maneiras de minimizar estes erros, seja por meio do uso de técnicas consagradas pela comunida-de científica e pelos sistemas de gestão de qualidade, seja pela sujeição de seus procedimentos à verificação.

Estes procedimentos levam a uma segurança maior na decisão judicial. Mas, para melhor entender os resultados dos laudos periciais, devem seus usuários – delegados, promotores e juízes – compreender os

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O Papel da Estatística em Laudos Periciais Criminais de Entorpecentes – Estudo de Caso

limites da ciência, bem como os conceitos que possam ter significados diferentes no mundo do direito e no mundo da ciência aplicada.

Dentre as ferramentas para esta compreensão dos fenômenos está a estatística. Freqüentemente mal-compreendida, trata-se de fundamental apoio para a investigação, principalmente no que diz respeito às análises em entorpecentes, quando as quantidades a serem examinadas são grandes e tornam inviável o exame do todo. Neste caso, a estatística reveste-se de importância para explicar o todo através da análise da parte.

O objetivo deste trabalho é apresentar resultados relativos a uma apreensão de cocaína feita na Superintendência Regional do Departamen-to de Polícia Federal no Ceará, mostrando que efetivamente o retrato dado pela estatística é fiel ao todo sobre o qual foram feitos questionamentos.

rEvisão BiBliográfica

Relata Greco (2003; 2004):

[...] as questões de fato pareciam quase inteiramente alheias ao mundo do direito (jus litigatoris), como se fossem objeto [...] de um sofisticado saber científico, revelado enigmaticamente pelo perito, investido de uma confiança cega e incontestável [...].

Porém o autor continua e afirma que a sociedade atual não per-mite mais uma reconstrução qualquer dos fatos, uma vez que a exatidão desta reconstrução é pressuposto das decisões justas. Questiona, ainda:

como é possível assegurar que todos os juízes direcionem os seus esforços para defi-nir de modo consistente os fatos, [...] sem definir qual é o método mais apropriado, quais são os seus poderes e as suas limitações?.

Lembra ainda que a presunção da inocência e a relevância hu-manitária da liberdade humana exige grande rigor na prova dos fatos incriminadores, podendo-se inclusive – em certos casos – admitir provas ilícitas em benefício da defesa, mas jamais o contrário.

Ao prosseguir em seu estudo, o autor nos compara a concepção

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legal das provas com a concepção meta-jurídica:

A concepção meta-jurídica se distancia das provas legais porque, enquanto estas são um sistema fechado, que submete o juiz às regras da lei, aquela é um sistema aberto, em que o juiz deve recorrer aos métodos e critérios de todas as outras áreas de conhecimento, porque o direito não é capaz, por si só, de fornecer-lhe os meios e as diretrizes para definir com segurança os fatos.

Indo mais além, o mesmo autor imputa ao juiz a necessidade de deter-se na questão epistemológica da verdade, sendo que

[...] essa verdade, em grande parte, é objeto do conhecimento alcançado em outras ciências, como a biologia, a física, a química e tantas outras especialidades, mui-tas vezes resultante de experimentações, estimativas probabilísticas de base estatística, inferências, escolhas e valorações humanas. (grifo nosso)

Mas, devido à constante evolução dessas ciências, a verdade cien-tífica acaba por ser relativa e contingente. Por isso, considerando-se as imposições a que se sujeita a investigação científica, não deve tornar-se o processo numa busca incessante pela verdade absoluta. Até porque a ciência ilimitada, completa e infalível faz parte de uma ótica positivista que não merece prosperar. (Campello, 2005)

Afinal, conforme Campello (2005), hoje prospera a visão pós-positivista da ciência, que a define como limitada, incompleta e falível. Bem parafraseia a autora quando cita Tonini (2004): “o conhecimento da margem de erros é o índice de que uma teoria foi testada seriamente”.

E é com o objetivo de aferir a credibilidade das provas periciais que a Suprema Corte dos Estados Unidos da América começou a es-tabelecer critérios de avaliação destas provas. Passar-se-ia a controlar o conhecimento científico exposto em laudos periciais, observando e ana-lisando sua correção e consistência científicas. (Greco, 2003; 2004)

Campello (2005) cita o caso Frye vs. United States, onde surge pela primeira vez o critério de que a técnica científica só seria admitida en-quanto confiável e relevante para a comunidade científica. Porém ainda critica-se este modelo, pois ele deixa de lado métodos e princípios que

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não são aceitos por ainda serem novos, mas que podem esclarecer fenô-menos até então ocultos.

No caso Daubert vs. Merrel Dow Pharmaceuticals, Campello (2005) cita que

[...] a validade científica deve levar em consideração vários critérios como: a con-trolabilidade e falsificação da teoria ou da técnica que estão à base das provas; o percentual de erro notório ou potencial e o respeito pelos padrões relativos à técnica empregada; a circunstância que a teoria ou a técnica em questão são objetos de publicação científica e, portanto, há controle da parte e de outros profissionais; e, o consenso geral da comunidade científica interessada.

matErial E métodos

Apreendidas em flagrante no Aeroporto Internacional Pinto Martins em Fortaleza – CE, foram encaminhadas para exame vinte e uma malas, dentro das quais foram encontrados 1.952 potes de hidratante. Nestes potes foram encontrados invólucros plásticos contendo substân-cia em pó, de cor branca e odor característico.

Desta população de 1.952 potes foi selecionada uma amostra ale-atória de 46 potes, 100% dos quais apresentavam os referidos invólucros plásticos.

A primeira questão que se coloca a respeito desta população é: encontraremos invólucros em todos os potes? Ou, de forma mais abran-gente: em quantos potes encontraremos invólucros? Tal questão reveste-se de importância ao antecipar um movimento da defesa, a qual pode alegar que não havia invólucros em todos os potes.

Ademais, considerando que cada invólucro contém quantidade variá-vel da substância, é possível estimar com segurança quantidade total dela?

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Estas respostas podem ser dadas sob a ótica da estatística, sem necessariamente examinar a totalidade da população.

Teste de Hipóteses

Para responder à primeira pergunta, podemos utilizar uma técnica conhecida como “teste de hipótese”. Uma hipótese estatística pode ser definida como uma assertiva ou conjectura a respeito de uma ou mais populações. Sua veracidade nunca será conhecida com absoluta certeza, a não ser que se examine a população inteira, o que pode ser inviável em muitas situações. Porém a hipótese pode ser rejeitada ou aceita, obser-vando-se amostras aleatórias da população e que fornecerão subsídios para tal rejeição (Walpole, Myers e Myers, 1998).

Walpole, Myers e Myers (1998) ressaltam ainda que a aceitação da hi-pótese significa meramente que a amostragem não deu evidências suficien-tes para rejeitá-la. Em outras palavras, quando se fala em testes de hipóteses, uma conclusão é mais segura quando a hipótese formulada é rejeitada.

Assim, as hipóteses são construídas no sentido de rejeitá-las e – rejeitando-as – comprovar o que se deseja. Por exemplo, se um médico deseja comprovar que uma doença é provocada por um determinado agente, ele formula a hipótese de que a doença NÃO é provocada pelo agente. Ao rejeitá-la, fica comprovado o contrário.

Passemos, portanto ao nosso primeiro questionamento: quantos potes de hidratante possuem invólucros em seu interior? A princípio, arbitramos que a probabilidade de que cada pote contenha ou não invó-lucro é de 50%, pois não sabemos antecipadamente se existe invólucro. É como lançar uma moeda e verificar se saiu cara ou coroa.

Como hipótese alternativa, testaremos se 99,9% dos potes con-tém invólucros. O valor 99,9% foi escolhido arbitrariamente, podendo ser adotado qualquer valor que se deseje testar. Formulamos então a se-guinte hipótese estatística:

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O Papel da Estatística em Laudos Periciais Criminais de Entorpecentes – Estudo de Caso

• Ho (hipótese nula): “a probabilidade de que um pote contenha invó-lucro é igual a 50% (p=0,50)”;

• H1 (hipótese alternativa): “a probabilidade de que um pote contenha invólucro é igual a 99,9% (p=0,999)”.

Procuraremos evidências para rejeitar a hipótese nula e, por con-seqüência, aceitar a hipótese alternativa. A priori, arbitramos que a hipó-tese nula será rejeitada se encontrarmos 44 ou mais potes com invólucro em nossa amostra. Aqui temos as seguintes possibilidades:

• RejeitarH0 quando ela é verdadeira (erro tipo I);

• AceitarH0 quando ela é falsa (erro tipo II);

Vamos determinar a probabilidade de cometer um erro do tipo I, comumenteconhecidocomoα:

P(α)=P(X≥44comp=0,50)=0,000000002%

Ou seja, se forem encontrados invólucros em 44 ou mais potes de uma amostra de 46, é possível, ao nível de significância de 0,000000002%, rejeitar a hipótese nula. Como no nosso caso, encontramos 46 potes com invólucros, rejeitamo-la e ficamos com a alternativa, que nos diz que “a pro-babilidade de que um pote contenha invólucro é igual que 99,9%”.

Interpretando de outra forma o resultado, pode-se dizer que, se repetíssemos esta experiência 100.000.000.000 de vezes, em apenas 2 das repetições esta conclusão estaria errada. Para efeito ilustrativo, tal fato é mais difícil que ganhar na Mega-Sena.

Agora determinamos a probabilidade de cometer um erro do tipo II,conhecidocomoβ:

P(β)=P(X<44comp=0,999)=0,015%

Além deste valor ser bastante baixo, lembramos que tal erro be-neficiaria o investigado, uma vez que, caso ele seja cometido, a hipótese nula seria aceita, contrariando o que se deseja comprovar.

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Com este resultado pode-se afirmar que a quantidade esperada de potes com invólucro é de 1.950. No caso em particular, após a amostra de 46 potes, todos os demais potes foram abertos e foram encontrados invólucros em 1.949 potes, isto é, apenas 3 potes estavam vazios. Verifica-se que o valor previsto pela estatística e o valor real são muito próximos.

Fazendo um exercício de imaginação, vamos supor que na fase processual seja alegado que só havia cocaína nos 46 potes amostrados e que todos os demais potes encontravam-se vazios. Considerando-se a hipótese alternativa (P=0,999), a probabilidade de tal fato acontecer é de 1 10-5856. Para efeitos práticos, seria possível afirmar que é igual a zero.

Importância da amostragem

Façamos, ainda um outro exercício: suponhamos que – ao invés de 46 potes – tivéssemos amostrado apenas 10 potes. Qual o efeito desta redução no nosso nível de segurança?

Neste caso a probabilidade do erro tipo I subiria para 0,098% e a probabilidade do erro tipo II subiria para 0,0045%. Relembramos aqui que o erro mais grave para nosso caso é o do tipo I. Nesta suposição, apesar do valor absoluto da probabilidade do erro tipo I ser ainda bas-tante pequena, é 63,5 milhões de vezes maior do que com a amostragem de 46 potes. Já a probabilidade de cometer o erro do tipo II, de menor gravidade, aumenta apenas 3 vezes.

Quantidade de droga

Passamos a responder à segunda questão, que trata da quantidade de cocaína efetivamente existente nos invólucros.

Primeiramente trataremos da massa bruta. A amostra de 46 potes apresentou massa bruta média (incluindo o invólucro) de 17,58g, com desvio padrão de 0,55g. Sendo M a massa bruta média da população, esta

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O Papel da Estatística em Laudos Periciais Criminais de Entorpecentes – Estudo de Caso

amostra nos permite afirmar, com 99,9% de certeza, que:

Assim, é possível afirmar, com 99,9% de certeza, que a massa bruta total está entre 33.796,08g e 34.845,58g. Utilizando-se o valor médio, che-gamos ao total de 34.320,83g. Posteriormente, a população inteira teve sua massa bruta determinada, tendo sido encontrado o valor de 34.418,70g, portanto dentro do intervalo determinado e muito próximo do valor mé-dio. A diferença, de 97,87g, representa apenas 0,28% da massa total.

Isso nos leva à convicção de que a mesma técnica pode ser ado-tada na determinação da massa líquida, com o mesmo nível de certeza. A amostra de 46 potes apresentou massa líquida média de 15,86g e desvio

padrão de 0,56g. Sendo P a massa média da população, esta amostra nos permite afirmar, com 99,9% de certeza, que:

Ou seja, temos 99,9% de certeza de que a massa média da popula-ção não é inferior a 15,59g. Adotando-se o valor médio, podemos afirmar que a massa líquida total da população é de 30.965,51g.

Ressaltamos que esta certeza pode ser de tanto quanto se deseje: 99,9%, 99,99% e assim por diante. O valor 99,9% foi arbitrado por sim-ples conveniência.

conclusão

A estatística é uma ferramenta indispensável para a criminalística. Analisar todo um sistema em busca da informação exata pode ser invi-

Fazendo um exercício de imaginação, vamos supor que na fase processual seja

alegado que só havia cocaína nos 46 potes amostrados e que todos os demais potes

encontravam-se vazios. Considerando-se a hipótese alternativa (P=0,999), a probabilidade de

tal fato acontecer é de 5856101 −⋅ . Para efeitos práticos, seria possível afirmar que é igual a

zero.

Importância da amostragem

Façamos, ainda um outro exercício: suponhamos que – ao invés de 46 potes –

tivéssemos amostrado apenas 10 potes. Qual o efeito desta redução no nosso nível de

segurança?

Neste caso a probabilidade do erro tipo I subiria para 0,098% e a probabilidade do

erro tipo II subiria para 0,0045%. Relembramos aqui que o erro mais grave para nosso caso é

o do tipo I. Nesta suposição, apesar do valor absoluto da probabilidade do erro tipo I ser ainda

bastante pequena, é 63,5 milhões de vezes maior do que com a amostragem de 46 potes. Já a

probabilidade de cometer o erro do tipo II, de menor gravidade, aumenta apenas 3 vezes.

Quantidade de droga

Passamos a responder à segunda questão, que trata da quantidade de cocaína

efetivamente existente nos invólucros.

Primeiramente trataremos da massa bruta. A amostra de 46 potes apresentou

massa bruta média (incluindo o invólucro) de 17,58g, com desvio padrão de 0,55g. Sendo M a

massa bruta média da população, esta amostra nos permite afirmar, com 99,9% de certeza,

que:

85,1731,1746

27,346

27,3 ≤≤⋅+≤≤⋅− MMσµσµ

Assim, é possível afirmar, com 99,9% de certeza, que a massa bruta total está

entre 33.796,08g e 34.845,58g. Utilizando-se o valor médio, chegamos ao total de

34.320,83g. Posteriormente, a população inteira teve sua massa bruta determinada, tendo sido

encontrado o valor de 34.418,70g, portanto dentro do intervalo determinado e muito próximo

do valor médio. A diferença, de 97,87g, representa apenas 0,28% da massa total.

Isso nos leva à convicção de que a mesma técnica pode ser adotada na

determinação da massa líquida, com o mesmo nível de certeza. A amostra de 46 potes

apresentou massa líquida média de 15,86g e desvio padrão de 0,56g. Sendo P a massa média

da população, esta amostra nos permite afirmar, com 99,9% de certeza, que:

14,1659,1546

27,346

27,3 ≤≤⋅+≤≤⋅− PPσµσµ

Ou seja, temos 99,9% de certeza de que a massa média da população não é

inferior a 15,59g. Adotando-se o valor médio, podemos afirmar que a massa líquida total da

população é de 30.965,51g.

Ressaltamos que esta certeza pode ser de tanto quanto se deseje: 99,9%, 99,99% e

assim por diante. O valor 99,9% foi arbitrado por simples conveniência.

Conclusão

A estatística é uma ferramenta indispensável para a criminalística. Analisar todo

um sistema em busca da informação exata pode ser inviável, ainda mais quando o tempo é

fator importante para a decisão a ser tomada com base nestas informações.

Assim, esta ciência permite descrever um sistema ou fenômeno em certos níveis

de segurança que podem ser estabelecidos e verificados, com o uso de amostras viáveis do

ponto de vista da exeqüibilidade e do tempo.

Acreditamos que estas ferramentas devem ser colocadas à disposição da justiça,

permitindo aos usuários dos laudos periciais criminais tomarem decisões com bases seguras e

– ao mesmo tempo – aumentando a produtividade dos peritos criminais.

Este estudo de caso mostra como a Estatística nos dá um retrato fiel da realidade,

em níveis de segurança que são previamente estabelecidos. Portanto, verifica-se a importância

de que a amostragem de entorpecentes seja realizada com absoluto rigor científico, evitando

questionamentos jurídicos que possam vir a anular os efeitos de um trabalho que envolve

muitas pessoas e começa muito antes dos exames laboratoriais.

Neste aspecto, observamos que o Departamento de Polícia Federal, através do

Instituto Nacional de Criminalística, tem avançado a passos largos. Em julho de 2006 foi

editada uma Instrução Técnica regulando os exames químico-analíticos no âmbito da Perícia

Federal e normatizando as técnicas aqui exploradas. A amostragem de 46 potes, que permitiu

os níveis de segurança do resultado aqui apresentado, é fruto das técnicas adotadas pelo

Departamento de Polícia Federal.

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Fernando Fernandes de Lima

ável, ainda mais quando o tempo é fator importante para a decisão a ser tomada com base nestas informações.

Assim, esta ciência permite descrever um sistema ou fenômeno em certos níveis de segurança que podem ser estabelecidos e verificados, com o uso de amostras viáveis do ponto de vista da exeqüibilidade e do tempo.

Acreditamos que estas ferramentas devem ser colocadas à dispo-sição da justiça, permitindo aos usuários dos laudos periciais criminais tomarem decisões com bases seguras e – ao mesmo tempo – aumentan-do a produtividade dos peritos criminais.

Este estudo de caso mostra como a Estatística nos dá um retrato fiel da realidade, em níveis de segurança que são previamente estabeleci-dos. Portanto, verifica-se a importância de que a amostragem de entor-pecentes seja realizada com absoluto rigor científico, evitando questiona-mentos jurídicos que possam vir a anular os efeitos de um trabalho que envolve muitas pessoas e começa muito antes dos exames laboratoriais.

Neste aspecto, observamos que o Departamento de Polícia Fe-deral, através do Instituto Nacional de Criminalística, tem avançado a passos largos. Em julho de 2006 foi editada uma Instrução Técnica regu-lando os exames químico-analíticos no âmbito da Perícia Federal e nor-matizando as técnicas aqui exploradas. A amostragem de 46 potes, que permitiu os níveis de segurança do resultado aqui apresentado, é fruto das técnicas adotadas pelo Departamento de Polícia Federal.

Com isto os usuários dos laudos periciais da Polícia Federal po-dem ter certeza de que suas decisões serão sempre embasadas em técni-cas modernas e que conferem elevados níveis de segurança.

Colaboraram com este artigo os Peritos Criminais Federais Igor Carvalho da Rocha, José Carlos Lacerda de Souza, Maria das Graças Ra-malho Leite, Mônica de Brito Costa, Simone Cavalcante do Nascimento XaviereVilmaVieiradePaulaPestana,todosdoSETEC/SR/DPF/CE.

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O Papel da Estatística em Laudos Periciais Criminais de Entorpecentes – Estudo de Caso

Agradecemos ainda a colaboração do Perito Criminal Federal Adriano OtávioMaldaner,doINC/DITEC/DPF.

FERNANDO FERNANDES DE LImA

Perito Criminal Federal, Engenheiro Civil e mestre em Recur-sos Hídricos, lotado no SETEC/SR/DPF/CE.

E-mail: [email protected]

ABSTRACT

It is human to mistake something, says the people. In fact, there is no fail-safe process when-ever a human being is involved. However, science is able to control the possible failures and this article aims to show how to do it, making the decisory process safer to all personell involved with a forensics exam, experts, investigators, judges or prossecutors.

Keywords: Exam. Forensics. Statistics. Error. Decision. Control.

rEfErências

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23ISSN 1983-1927

Brasília, v. 2, n. 1, p. 23-37, jul./dez. 2008.Recebido em 7 de agosto de 2008.Aceito em 15 de dezembro de 2008.

a polícia fEdEral E o Estado policial

Marcelo Eduardo Freitas

D

RESUMO

A atuação da PF nas operações policiais de âmbito nacional, em face dos envolvidos presos, trouxe a lume o debate em torno do Estado Policial, especialmente em razão do uso de algemas e da exposição midiática. Mas o que vem a ser Estado Policial? Eventuais falhas ocorridas quando do cumprimento de buscas e prisões têm o condão de afetar a prova, até então produzida em juízo absolutamente competente? Quais são as reais intenções do pseudo-discurso jurídico em torno do Estado Policial? A função da Polícia moderna ultrapassa interesses de grupos, ainda que hegemôni-cos. Aperfeiçoar nos trabalhos, sempre. Alterar o curso das águas, jamais.

Palavras-chave: Polícia Federal. Violência. Estado Policial. Michel Foucault. Vigiar e Punir. Pri-sões. Labeling approach. Constitucionalismo moderno. Reserva de jurisdição.

Exporei primeiramente, nestas meditações, os mesmos pensamentos pelos quais me persuado de haver chegado a um certo e evidente conhecimento da verdade, a fim de ver se, pelas mesmas razões que me persuadiram, poderei também persuadir outros. DESCARTES (Ouvres Philosophiques, t. II, pp. 393)

introdução

Apesar dos surpreendentes avanços que o homem conseguiu através das descobertas científicas, a compreensão humana ainda não conseguiu, até hoje, desenterrar o misterioso núcleo da violência do ho-mem contra o homem, em quaisquer de suas formas.

Neste texto, procuraremos desenvolver algumas reflexões sobre os mecanismos ideológicos utilizados pelo poder para imiscuir-se de res-

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A Polícia Federal e o Estado Policial

ponsabilidades e dominar, encobrindo os reais e efetivos interesses que motivam as ações políticas e econômicas, assim como a construção de um pseudo-discurso jurídico, em torno, especialmente, das ações policiais em desfavor da criminalidade organizada (em especial colarinho branco - whitecollarcrime,naacepçãolata/ampladotermo),atéentão,invisívelaos olhos dos menos atentos.

concEito, origEm, causas da violência

Inicialmente, é preciso esclarecer em que circunstâncias encon-tram-se presente a violência. Adotaremos, neste estudo, a definição pro-posta pela Rede de Informação Tecnológica Latino-americana (RITLA), em seu Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros - 2008 (www.ritla.net). Assim, considera-se presente a violência

... quando, em uma situação de interação, um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou a mais pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, seja em sua integridade moral, em suas posses, ou em suas participações simbólicas e culturais.

Definida em breves considerações o que vem a ser violência, qual a sua origem? Ela é intrínseca ao indivíduo ou é formada em razão do seio social?

Hádiversastesessobreasquestões:NaobraO Homem Delinqüen-te, de César Lombroso (1907, p. 22), ele retrata a classificação de Ferri, segundo a qual os criminosos natos seriam aqueles que apresentariam, em maior número, as anomalias orgânicas e psíquicas descobertas pela antropologia criminal. Precoces, reincidentes no crime, estariam prefe-rencialmente entre os assassinos e os ladrões, arrastados por tendências congênitas. Distinguir-se-iam pela ausência ou fraqueza hereditária do senso moral, pela não repugnância à idéia e a ação delituosa antes de cometê-la, pela falta de remorso após a execução, pela imprevidência das conseqüências de seus atos, pela imprudência, pela impulsividade, deter-minando a precocidade, a reincidência e, finalmente, a incorrigibilidade.

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Marcelo Eduardo Freitas

Neste pensamento de Ferri, a origem da violência estaria nos ge-nes dos seres humanos, que impulsionados pelo seu organismo levaria a delinqüir, sem medir as conseqüências.

Para César Lombroso, na mesma obra (1907, p. 160), a violência surge da própria fisionomia dos seres humanos, ou seja, o homem crimi-noso tem a sua anatomia diferenciada dos seres normais como: esquele-tos volumosos, baixos e grossos; cabeça assimétrica, achatada de diante para trás, com proeminência dos maxilares e exigüidade do crânio; testa baixa e coberta; tórax, bacia e membros muitas vezes deformados pelo raquitismo; pele de um branco pardo ou amarelado, enrugada, sem pêlos, salvo no couro cabeludo que tem cabelos castanhos os quais nunca enca-necem; orelhas desviadas da cabeça; dentes mal implantados e facilmente cariáveis. Estas são as características de um criminoso para este teórico.

Preferimos, entretanto, tratar a violência e o criminoso em seu aspecto social.

OHomem,nahistória,temsidooqueasuasociedadeé.Seelaapresenta injusta para o homem, ele torna-se injusto; Se ela (a sociedade) é violenta ele torna-se, também, violento.

Nilo Odalia na obra O que é Violência (1983, p. 38-91), defendeu este pensamento sobre a origem da violência, pois a partir do momento em que o homem passou a viver em sociedade pode-se definir que a violência é social.

Citado autor coloca, ainda, toda violência como social, isto por-que se trata de um fenômeno intrínseco ao ser humano, por vivermos em sociedade. Assim, combate-se a violência, na visão daquele autor, com a adoção de um sistema governamental que invista em Políticas Pú-blicas em prol da melhoria da distribuição de renda, educação em tempo integral e moralização na alocação de recursos, entre outros: O ato de violência é também uma forma de privação.

Se com relação à origem da violência há divergências ontológicas, pensamos que, com relação às causas, as divergências não se sustentam.

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A Polícia Federal e o Estado Policial

A violência é, em nossa ótica e de modo bastante sintético, um fenômeno muito complexo do universo social e por isso levantamos algu-mas de suas causas, iniciando com as da violência urbana:

1) Falta de uma assistência imediata ao menor abandonado; 2) Falta de uma política de educação integral para todos; 3) Falta de um planejamento familiar; 4) O congestionamento da Justiça Penal e da Polícia Judiciária de um sem número de processos e inquéritos que estão a tomar a atenção, o cuidado e o tempo de toda a engrenagem judiciária, em detrimento daquelas hipóteses criminais que merecem a atenção pronta, imediata e eficaz dos órgãos afetos ao sistema de defesa social; 5) Falta de um maior Policiamento Ostensivo, com policiais mais bem treinados e instruídos, com salários condizentes; 6) Impunidade; 7) Inchação das grandes cidades; 8) Bolsões de misérias; 9) Abuso de drogas licitas e ilícitas; 10) Discri-minação racial; 11) Discriminação social.

A violência rural, por sua vez, apresenta as suas causas, como:

1) Grandes latifúndios improdutivos; 2) Má distribuição de renda; 3) Oferta irregular, ou mesmo falta de serviços médicos; 4) Falta de trabalhos, para suprir as necessidades mínimas do indivíduo; 5) Falta de investimentos maciços na agri-cultura e pecuária; 6) Falta de uma política integral voltada para o homem do campo; 7) A negação dos direitos fundamentais ao Trabalho (quando se tem, por vezes, é análogo ao escravo), à Moradia, à segurança, à Justiça, etc.

Nestas duas relações (da violência urbana e rural), as causas são fundamentalmente de cunho social e por demais complexa a sua solução imediata, mas, se não forem tomadas as devidas providências, através dos meios democráticos, haverá certamente o caos da sociedade.

Até aqui, tratamos da violência e do criminoso como algo visível, facilmente perceptível aos olhos do homem comum. Mas a violência mo-derna, embutida nas organizações criminosas, via de regra, arraigadas no aparelho estatal, é um pouco mais... Às vezes, como dito, invisa aos olhos dos menos atentos.

Nas palavras do Professor e Juiz Federal Ivan Lira de Carvalho:

Violento não é só a ação do ladrão, do estuprador, ou do homicida, que num rasgo de primarismo ceifa a vida do seu semelhante, muitas vezes por questões diminutas... violento também é a ação do governante inescrupuloso, que não ter-giversa em lançar mão de recursos públicos para ornar jardins suntuosos de suas

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Marcelo Eduardo Freitas

mansões, abarcando para si a verba que saciaria a fome de milhares de crianças carentes ou retiraria dos corredores infectos dos hospitais os miseráveis que têm a desgraça de cair em doença...

É neste contexto, portanto, que somos acionados ao exercício do discurso frontal sobre o combate a todas as formas de criminalidade. A violência visível ecoa mais forte que a violência invisível, tornando esta ainda mais oculta. Nós, entretanto, não percebemos que a violência invi-sa é a mãe daquela, ou seja, da violência visível. Assim, discursos daqueles que são diretamente responsáveis pela violência invisível, como dito, mãe de todas as formas de violência, ganha eco nas vozes de alguns, na visão do Escritor carioca Rodrigo Constantino (2004), “ignorantes úteis, incapazes de perceber a realidade por trás da encenação”.

Não é por demais ressaltar as palavras de Nunes (1987), para quem, com razão,

a Justiça penal se exerce sobre tipos tradicionais, delitos convencionais, mas sua atuação é virtualmente inoperante em relação aos autores de atos gravemente prejudiciais para a coletividade que se estruturou na organização política e eco-nômica, por falta de tipificação penal adequada e pelas dificuldades probatórias, de tais comportamentos, derivados da habilidade de atuação de seus autores e da própria complexidade dos delitos econômico – financeiros...

É evidente que, em se tratando de crimes organizados, não há como se negar: São crimes que, para serem perpetrados, carecem de vários sujeitos, muitos com amplo prestígio social e político, com fácil trânsito em todas as áreas governamentais. Gomes & Cervini (1997), es-clarecem que

o crime organizado, indiscutivelmente, é um dos maiores problemas da sociedade contemporânea. Não é novo, mas nos dias atuais, em razão sobretudo da inter-nacionalização das relações, da economia, dos meios de comunicação, das finanças etc., ganhou dimensão e projeção jamais imaginadas. A Ciência Jurídica, por sua vez, só recentemente começou a discipliná-lo. A Lei 9.034/95 é apenas o ponto de partida para a real e verdadeira normatização do assunto, que é reconhecida-mente complexo e atual.

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A Polícia Federal e o Estado Policial

o Estado policial

Diante de várias prisões de ilustrados cidadãos pela Polícia Fede-ral, muito se tem falado sobre o surgimento de um Estado Policial. Até mesmo o presidente da mais alta Corte de justiça do Brasil, em mani-festações à imprensa, tem feito um pré-julgamento sobre a utilização de algemas nos pulsos do colarinho-branco (white collar crime), rechaçando a atuação policial federal.

Essa argumentação tem sido recorrente quando a rede do Estado pega não só os “bagres”, mas também os “tubarões”.

A par do momento histórico por que passa o nosso país, é ne-cessária uma análise contextualizada do que vem a ser o Estado Policial, especialmente a partir da visão de Michel Foucault (1926-1984), sem con-siderações, ainda que superficiais - incabíveis nesta ocasião-, da conturba-da personalidade de referido autor, visão essa exteriorizada, entre outros, em Vigiar e Punir (1975), em que aborda com razoável senso crítico, o secular problema da resposta social ao crime, mostrando a evolução hu-mana na forma de tratar o criminoso e o delito.

Em linhas gerais, denomina-se Estado Policial ao tipo de organi-zação estatal baseado fortemente na vigilância e controle da população e, principalmente, de opositores, dissidentes e da mídia, por meio da polícia política, das Forças armadas, de guardas civis e outros órgãos de patru-lhamento e repressão política.

Em seu Vigiar e Punir (1975), Michael Foucault fez constar:

O ministério dos magistrados e oficiais de polícia é dos mais importantes; os ob-jetos que ele abarca são de certo modo indefinidos, só podemos percebê-los por um exame suficientemente detalhado: o infinitamente pequeno do poder político.

E para se exercer, esse poder deve adquirir o instrumento para uma vigilância permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo visível, mas com a

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condição de se tornar ela mesma invisível. Deve ser como um olhar sem rosto que transforme todo o corpo social em um campo de percepção: milhares de olhos postados em toda parte, atenções móveis e sempre alerta, uma longa rede hierar-quizada... E essa incessante observação deve-se acumular numa série de relatórios e de registros; ao longo de todo o século XVIII, um imenso texto policial tende a recobrir a sociedade graças a uma organização documentária complexa. E ao contrário dos métodos de escrita judiciária ou administrativa, o que é assim re-gistrado são comportamentos, atitudes, virtualidades, suspeitas - uma tomada de contas permanente do comportamento dos indivíduos.

Ora, é preciso notar que esse controle policial, se está inteiro ‘na mão do rei’, não funciona numa só direção. É na realidade um sistema de entrada dupla: tem que responder, ligando o aparelho de justiça às vantagens imediatas do rei; mas é também capaz de responder às solicitações de baixo; em sua imensa maioria, as famosas cartas de prego, que foram muito tempo símbolo do arbítrio real e que po-liticamente desqualificaram a prática da detenção, eram na realidade solicitadas por famílias, mestres, notáveis locais, habitantes de bairros, curas de paróquia e tinham por função fazer sancionar com um internamento toda uma infrapena-lidade, a da desordem, da agitação, da desobediência, do mau comportamento; o que Ledoux queria expulsar de sua cidade arquiteturalmente perfeita, e que chamava os ‘delitos de falta de vigilância’. Em suma, a polícia do século XVIII, a seu papel de auxiliar de justiça na busca aos criminosos e de instrumento para o controle político dos complôs, dos movimentos de oposição ou das revoltas, acrescenta uma função disciplinar. Função complexa, pois une o poder absoluto do monarca às mínimas instâncias de poder disseminadas na sociedade; pois, entre essas diversas instituições fechadas de disciplina (oficinas, exércitos, escolas), estende uma rede intermediária, agindo onde aquelas não podem intervir, discipli-nando os espaços não disciplinares; mas que ela recobre, liga entre si, garante com sua força armada: disciplina intersticial e metadisciplina. ‘O soberano, com uma polícia disciplinada, acostuma o povo à ordem e à obediência’.”

Vale lembrar, por necessário, que suas observações quanto à vigi-lância são, na verdade, uma historicização de como se deram as transfor-mações nos modelos de punição para os criminosos, dos suplícios até o surgimentodosistemaprisionalnoséculoXIX,passandopelomodelodo panóptico, do filósofo utilitarista inglês Jeremy Bentham (1748-1842), em que o observador central vê tudo e todos, enquanto os prisioneiros apenas vêem a torre de observação.

O termo Panóptico é utilizado na obra Vigiar e Punir, de Michel Foucault, acima visto, para tratar também da sociedade de controles, e

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A Polícia Federal e o Estado Policial

pelosteóricosdasnovastecnologias,comoPierreLévyeHowardRhein-gold, para designar o possível controle exercido pelos novos meios de informação sobre seus usuários.

Vê-se, de maneira cristalina, especialmente em uma visão impres-cindivelmente contextualizada dos estudos sobre o Estado Policial, que nada se aplica ao moderno e atual Estado Democrático de Direito, quiçá do bem estar social, em que vivemos em nosso país, especialmente nas atu-ações da Polícia Federal. Salta aos olhos, mesmo dos vesgos por opção.

É bem verdade que ao longo de toda a história, as organizações policiais estiveram sempre voltadas para a “proteção do Estado”, contra a sociedade, “em favor do Governo”. Farta documentação histórica de-monstra que o processo de afastamento da polícia, com relação à socie-dade, dá-se desde a fundação das organizações policiais, datada de 1.530, quando da chegada de Martin Afonso de Souza, enviado por D. João III (Fonte: Museu Nacional do RJ).

Ocorre, entretanto, que este é, talvez, o único momento de toda a história do país, em que a Polícia procura atuar com a mais lídima isenção e independência, em detrimento de toda e qualquer organização criminosa, operante em quaisquer esferas de poder, em único e exclusivo benefício da sociedade.

Está-se aqui, dessa forma, rompendo com o cruel sistema da se-letividade (labeling approach), alternando-se, ainda que precariamente, os clientes do sistema penal: agora, já não são somente os pretos, os pobres, as prostitutas, os ladrões, os traficantes. A lei penal passa a vigorar para todos, sem distinções. Não somente, por óbvio, em razão da atuação isolada da PF, mas também do Ministério Público, de ONG’s, Associa-ções não-governamentais, da coletividade em geral e, principalmente, do Poder Judiciário, efetivo responsável pela decretação das medidas, na atu-alidade não tão bem representado pela presidência da Suprema Corte, diversas vezes criticada por sua atuação teratológica, tanto pelos seus próprios pares, quanto nos meios acadêmico e jurídico.

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o constitucionalismo modErno

O constitucionalismo moderno se afirmou com as revoluções bur-guesas na Inglaterra, em 1688; nos Estados Unidos, em 1776, e na França, em 1789. Podemos, entretanto, encontrar o embrião desse constituciona-lismo já na Magna Carta de 1215, com a limitação do poder do Estado e a declaração dos direitos fundamentais da pessoa humana, o que a tornou uma referência histórica para alguns pesquisadores (SILVA; 1996).

Assim, percebe-se que o nascimento desse constitucionalismo coincide com o surgimento do Estado liberal, em que a idéia de liberda-de, inicialmente, está vinculada à idéia de propriedade privada e ao afasta-mento do Estado da esfera privada, protegendo-se as decisões individu-ais. Em outras palavras, há liberdade à medida que não há intervenção do Estado na esfera privada e, em segundo lugar, podemos dizer, segundo o paradigma liberal, que os homens eram livres, pois eram proprietários (MAGALHÃES;2005).

A essência do constitucionalismo liberal no seu momento inicial era, destarte, a segurança nas relações jurídicas e a proteção do indivíduo (como dito, proprietário, homem e branco) contra o Estado. Não há, dessa forma, uma conexão entre constitucionalismo e democracia, que somente se unem na segunda fase do Estado liberal.

Assim, em uma análise (crono)lógica, a evolução do constitucio-nalismo moderno coincide com a evolução do Estado moderno.

No Brasil, a nossa primeira constituição de 1824 (no império) e a de 1891 (primeira republicana) são liberais e representam, respectivamen-te, a primeira e segunda fase do constitucionalismo. A fase de transição para o constitucionalismo liberal no Brasil ocorre somente na década de 1920 e a nossa primeira constituição social é a de 1934. A constituição de 1937 representa, sem dúvidas, a influência do social-fascismo no Brasil,

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A Polícia Federal e o Estado Policial

sendo que, em 1946, temos o retorno ao estado social e democrático (de-mocracia representativa), com nova interrupção autoritária em 1964, que buscou legitimar-se, ditatorialmente, com as constituições autoritárias de 1967 e 1969. Essas duas últimas permaneceram com caráter autoritário até a atual constituição de 1988, típica constituição social que introduz, entre nós, o novo conceito de Estado Social e Democrático de Direito.

É importante ressaltar que na história do constitucionalismo mo-derno, entretanto, a democracia foi uma exceção apenas “tolerada” pela eliteeconômica.AhistóriadaAméricaLatinamostrou-nosnoséculoXXcomo, quando o povo de forma organizada e seguindo os mecanismos legais e constitucionais, que estabelecem as regras do jogo da democra-cia representativa majoritária, afetam interesses econômicos desta elite, imediatamente ocorre uma ruptura com a ordem constitucional, numa aliança comum, entre empresários, leia-se elite econômica, e militares, no decorrerdasdécadasde60,70epasmem,80(MAGALHÃES;2005).

As lucubrações acima são para demonstrar, ainda, o quanto, na história recente, tem sido ingrata a luta contra as elites econômicas, po-líticas,culturaise/ousociais.Nãoéporoutrarazão,assim,emumain-terpretação extensiva, que a PF tem sido tão ultrajada por esses mesmos grupos e seus fervorosos defensores, quando estes têm a tranqüilidade e imagem abaladas pela lícita e legítima atuação do Estado no combate às organizações tidas por criminosas.

Finalizando, neste tópico, não é por demais ressaltar as palavras do Professor José Luis Quadros de Magalhães (2005), já mencionado acima:

... Não surge neste momento uma sociedade de homens livres e iguais. A liber-dade e igualdade reinventada permanecem para poucos e ainda hoje é assim na desigualdade de uma sociedade em que muitos passam à margem. Não só para poucos era a liberdade e igualdade, mas para poucos também era a possibilidade de dizer o que era essa liberdade e igualdade e ainda hoje é assim, na desigualdade de uma sociedade em que muitos passam à margem.

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Marcelo Eduardo Freitas

a atuação da pf E a rEsErva dE Jurisdição

É sabido que a prisão, como medida restritiva do direito de liber-dade de locomoção, direito fundamental de primeira geração (CF, art. 5o,XV),afimdesemostrarlegítima,deveatentarparaduasexigências:(a)observânciadareservalegal(CF,art.XXXIXeCP,art.1o)e(b)dareservadejurisdição(CF,art.5o,LXI).

A reserva legal implica, em linhas gerais, na necessidade de pre-visão legal da prisão. A reserva de jurisdição, por sua vez, significa a ne-cessidade de controle jurisdicional sobre a medida restritiva do direito de liberdade. Tal controle jurisdicional, no entanto, mostra-se diferenciado em algumas situações, uma vez que ocorre, preferencialmente e via de regra, antes da decretação da prisão. Na prisão em flagrante, na prisão decretada durante o estado de sítio e o estado de defesa e na prisão mi-litar por transgressão disciplinar, o controle jurisdicional é diferenciado em relação ao momento (posterior).

No caso das prisões efetuadas pela PF, nas operações policiais de âmbito nacional, não há sequer notícias ou informe do descumprimento de qualquer uma das garantias constitucionais acima.

Se é certo que a exposição midiática de presos ou o uso indiscri-minado de algemas são medidas que podem atentar contra a dignidade da pessoa humana (CF, art. 10, III), embora tais argumentações somente sejam recorrentes quando se prendem supostos criminosos de colarinho branco - white collar crime, detentores, como já asseverado, de amplo prestígio social e político, com fácil trânsito em áreas governamentais, mais certo, ainda, é que não há força humana capaz de macular todo um trabalho regu-larmente desenvolvido, com trâmite legal pelo Ministério Público e Poder Judiciário, destinatários que são de toda a investigação criminal.

Não é descabido esclarecer que a PF adota, na atualidade, um ma-nual operacional, que veda claramente a exposição de presos, abastados

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ou não, sendo certo que o uso de algemas fica condicionado à segurança da equipe policial, do próprio preso e de terceiros que com ele mantive-rem contato ou aproximação. Eventuais falhas, efetivamente existentes, estão sendo gradativamente corrigidas.

O que não se pode, entretanto, é buscar nas palavras de GEOR-GES BURDEAU (1949; pág. 378) eliminar o mal, eliminando a vida. Ou seja: Falhas na execução das operações em nada afetam as provas, até então, produzidas perante juízo absolutamente competente, median-te a garantia constitucional da reserva de jurisdição. As atenções devem focar-se no principal não no acessório.

Aos acusados cabem, em especial em razão da recente Lei 11.690/2008,quealterouoartigo156doCPP,aprovadequenãofize-ram os fatos a eles imputados, via de regra, cabalmente demonstrados nosautosdoinquéritopoliciale/ouaçãopenal,eissonãotemocorrido.Estão apenas usando o direito de espernear.

conclusão

A mudança no prisma da investigação criminal tem sido árdua, especialmente diante dos mecanismos ideológicos cada vez mais sofisti-cados e concentrados, insistentes em criar um mundo artificial (Estado Policial), propositalmente encobridor do real (Estado Democrático de Direito). A busca do real (verdade real), as revelações das reais intenções, dos reais jogos de poder, torna-se uma tarefa revolucionária, pois somen-te quando as pessoas forem capazes e tiverem a coragem de buscar o real, podemos efetivamente promover uma mudança permanente, em direção a um outro lugar, a um outro mundo possível e melhor.

Carlo Ginsburg (2001) menciona o estranhamento e o distancia-mento como mecanismos que permitem enxergar o real escondido pelas representações. No estranhamento, a arte ao distorcer a imagem do real revela as relações reais escondidas pela imagem. A pompa do poder, os

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discursos políticos, a cobertura da mídia e sua pretensa isenção, encobrem a falibilidade e a insegurança do humano no poder. A oratória e sua forma escondem a ausência de conteúdo ou um conteúdo que significa o oposto do que diz significar. A isenção da mídia encobre a distorção dos fatos, a manipulação da opinião. Isto nos leva a pensar porque exércitos de pessoas ontem e hoje defendem bravamente interesses que não só não são seus como são contra os seus. O melhor exemplo é o dos cães de guarda do sis-tema, sempre tão explorados pelo próprio sistema: mais ou menos como o policial que dá a vida para proteger a propriedade do latifundiário. A ordem que ele pensa defender não é sua ordem. A ordem que ele pensa defender é contra ele, seus filhos, seus pais, sua mulher e seus sonhos.

A questão que alguns ainda teimam em não ver é que: O cão e o policial, citados por Ginsburg, já morreram há tempos.

A PF de hoje trabalha em favor do Estado, para a sociedade, res-peitadas as garantias constitucionais e legais do cidadão e, sempre, me-diante reserva de jurisdição, em um Estado que acreditamos ser Demo-crático de Direito, para todos.

Só não vê quem não quer, ou no dizer de Ginsburg, aqueles que ainda “distorcem a imagem do real”.

mARCELO EDuARDO FREITAS

Delegado de Polícia Federal (mG), ex-assessor de ministro do STF, pós-graduado em criminologia e Direito Processual, Doutorando em

ciências jurídicas e sociais.

E-mail: [email protected].

ABSTRACT

The performance of the Federal Police nationwide, due to involved prisioners, brought the debate about the Police State, especially in reason of the use of handcuffs and the massive media esposition. But what it comes to the Police State? Possible imperfections occurred on the conduction of searches and seizures have the capacity to affect the evidence, legally

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produced so far? Which are the real intentions of the legal pseudo-speech around the Police State? The function os the modern Police exceed interests groups, depite hegemonic. To improve in the works, always. To alter the course of the waters, never,

Keywords: Federal Police. Violence. Policial State. Michel Foucault. Prision. Labeling Ap-proach. Modern Consitutionalim. Reservation os Jurisdiction.

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39ISSN 1983-1927

Brasília, v. 2, n. 1, p. 39-54, jan./jun. 2009.Recebido em 20 de setembro de 2008.Aceito em 14 de novembro de 2008.

o papEl da polícia Judiciária no Estado dEmocrático dE dirEito

Vanessa Pitrez de Aguiar Corrêa

D

RESUMO

A investigação criminal constitui atribuição exclusiva da polícia judiciária, por disposição expressa da Constituição Federal. A despeito das discussões de gênero, acerca da possibilidade de outros entes estatais praticarem atos de investigação tendentes à apuração de crimes, o presente artigo busca demonstrar a dissonância dessas práticas com o conceito de Estado Democrático de Direito. Para tanto serão analisadas - através de pesquisa doutrinária e legal - as atribuições constitucionais da polícia judiciária, bem como os fundamentos históricos, legais e doutrinários como justificado-res de legitimidade na instrução preliminar por outros entes. Por fim, é analisado o conceito de Estado Democrático de Direito, suas principais características e a inserção da atividade da polícia judiciária nesse contexto como garantidora de um processo penal condizente com a democracia e princípios que a norteiam.

Palavras-chave: Polícia Judiciária. Investigação criminal. Titularidade. Estado Democrático de Direito.

introdução

As instituições policiais, de um modo geral, representam o po-der de polícia do Estado. A carta magna brasileira, em seu artigo 144 e parágrafos, capitula as diversas instituições policiais que compõem a segurança pública estatal em todas suas esferas, definindo expressamen-te suas atribuições. Tal dispositivo constitucional delineia nitidamente a existência de dois tipos de polícia: a administrativa e a judiciária.

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À polícia judiciária compete a apuração das infrações penais (exceto as militares) o que ocorre através do que se denomina investigação prelimi-nar ou investigação criminal, formalizada através do Inquérito Policial.

Não obstante a previsão constitucional (explícita ou implícita) da prática de atos de investigação por outros entes federativos, tal como ocorre nos Inquéritos Policiais Militares, Inquéritos Civis Públicos, Co-missões Parlamentares de Inquérito e Processos Administrativos Disci-plinaresvislumbra-senítidaadivergênciaentreosujeitoe/ouafinalida-de de tais procedimentos e do Inquérito Policial.

Nesta senda é que cabe exclusivamente à polícia judiciária a apura-ção de fatos delituosos e a coleta preliminar dos elementos de prova que sustentarão a viabilidade ou não do subseqüente processo penal - meio instrumentalizador do direito de punir do Estado. Deve, portanto, a fase preliminar do jus puniendi ser realizada por ente imparcial e extrínseco ao futuro processo penal, com a perfeita separação entre o Estado-inves-tigador, Estado-acusador e Estado-julgador, garantindo e preservando o exercício dos direitos fundamentais do cidadão através da salvaguarda de princípios como do Devido Processo Legal e da Segurança Jurídica, norteadores do Estado Democrático de Direito.

o podEr dE polícia do Estado E a polícia Judiciária: BrEvE Evolução histórica

O poder de polícia do Estado tem origem na Idade Média, duran-te o período feudal, onde o príncipe era detentor de um poder conhecido como "jus politiae". Este poder compreendia uma série de normas pos-tas pelo príncipe ao povo, sem haver, no entanto, sua própria subsunção a qualquer regramento1.

1 MORAES, Bismael B. Direito e Polícia (Uma Introdução à Polícia Judiciária). São Paulo, Revista dos Tribunias, 1986.

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Com o surgimento do Estado de Direito - baseado nos princípios do liberalismo - inaugura-se nova fase de organização social, tendo como princípio básico o da legalidade, onde o próprio Estado se submete às leis por ele mesmo impostas.

Nesta seara, o poder de polícia do Estado tem por objetivo man-ter a ordem pública, de acordo com as suas finalidades, estabelecendo restrições que se oponham à política do Estado e atentem contra a or-dem e a segurança da coletividade em geral, quer em caráter preventivo, quer em caráter repressivo.

Vale a lição de Frederico Marques2:

O Estado quando pratica atos de investigação, após a prática de um fato deli-tuoso, está exercendo seu poder de polícia. A investigação não passa do exercício do poder cautelar que o Estado exerce, através da polícia, na luta contra o crime, para preparar a ação penal e impedir que se percam os elementos de convicção sobre o delito cometido.

Entretanto, a consolidação do combate ao crime como atividade eminentemente estatal se deu ao longo de 300 anos, entre os séculos XVIIeXIX.Oápicedesteprocessohistóricoesociológicoocorreucoma criação de desenhos institucionais, onde o poder de polícia, especial-mente no que tange a prevenção e repressão criminal, aparece dissociado da figura direta do representante físico do Estado.

No Brasil a noção de polícia tem surgimento ainda no período colonial com a figura dos alcaides, vinculados aos juízes exerciam as fun-ções de polícia administrativa e judiciária. Ditas funções só foram tomar feiçõesdistintasapartirdoséculoXIX,tendomarcohistóricoacriaçãoda polícia judiciária no ano de 1841 com a promulgação da Lei nº 261 que culminou por criar o cargo de delegado de polícia seguida pelo regu-lamento120/1942quedivideapolíciaemadministrativaejudiciária3.

2 MARQUES, José Frederico. Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1959, p. 76.

3 GONZALES, Sônia; SESTI, Beatriz C. Goularte. Cronologia Histórica da Polícia Civil no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Polost, 2006, p.18.

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HodiernamenteéaConstituiçãobrasileira,emseuart.144,quedefine as funções de polícia administrativa e judiciária, nominando as instituições que as compõem e definindo suas atribuições.

atriBuiçõEs constitucionais dE polícia Judiciária: titularidadE da invEstigação prEliminar

O poder de polícia, a cargo da Administração Pública, é exercido por duas modalidades de polícias distintas: a polícia administrativa e a polícia judiciária. Os objetos dessas polícias são distintamente previstos tanto na carta magna quanto na legislação extravagante. Cada qual per-segue fim diferente, apresentando como traço diferenciador o fato de a polícia administrativa atuar preventivamente - a fim de evitar que o crime aconteça - e a polícia judiciária dirigir a investigação criminal, buscando a elucidação dos delitos já cometidos.

É à polícia judiciária, formada pelas Polícias Civis Estaduais e Federal, que cumpre a repressão à prática de infrações penais, conforme preleciona o art. 144, parágrafos 1º e 4º da Constituição Federal4.

Desta leitura, extrai-se, com clarividência, a ordem constituinte de outorgar poder investigatório – quando voltado para apuração de delitos – com exclusividade à polícia judiciária.

Na mesma linha seguiu a legislação infraconstitucional, especial-mente o Código de Processo Penal em seu Título II (arts. 4 à 23) ao trazer regramento ao Inquérito Policial, instrumento formalizador da in-vestigação criminal. Por toda sua extensão, ao tratar da matéria, mencio-

4 Art. 144 ...§ 1º À polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em

carreira, destina-se a:...IV – exercer com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União;...§ 4º - Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União,

as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

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na o estatuto a figura da autoridade policial, referindo-se ao delegado de polícia, como o representante estatal legitimado a presidir todos os atos investigativos preliminares.

Importa frisar que a investigação preliminar tem por escopo elu-cidarumeventocriminoso,verificandosuarealexistênciae/oumateria-lidade e buscando a identificação de seu autor. Todavia, a atuação da polí-cia judiciária, como pré-processual que é, deve ater-se à coleta de todas as provas necessárias à elucidação do fato, sirvam estas ou não a acusação. Tem por fim, o Inquérito Policial – enquanto instrumento de investiga-ção preliminar - a formação de convicção por parte do Estado-acusador e, de modo determinante, do Estado-julgador acerca da existência ou não de um processo criminal.

Neste sentido preleciona Lopes Júnior:5

Concluindo, para que a razão predomine sobre o poder, é necessário que a denún-cia ou queixa venha acompanhada de um mínimo de provas – mas suficientes para demonstrar a probabilidade do delito e da autoria afirmados – para motivar e fundamentar a decisão do juiz de receber ou não a acusação e nisso reside a im-portância da investigação preliminar: fornecer elementos de convicção para justifi-car o processo ou o não-processo, evitando que acusações infundadas prosperem.

Disseminado o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o Inquérito Policial configura peça meramente informativa, reforçando sua prescindibilidade para instauração da ação penal. Todavia ao longo dos anos a realidade prática vem mostrando que raríssimas são as ações penais interpostas sem o auxílio e provas alcançados pelo IP e inúmeros os julgamentos cuja condenação se baseava, quase com exclusividade, nas provas produzidas pelo caderno investigativo. A nova redação dada aoart.155doCPP,pelaleinº11.690/086, proibindo forma expressa o juiz de condenar exclusivamente com base nas provas produzidas na fase

5 LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 4.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 67.

6 Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

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investigativa (salvo as não repetíveis, antecipadas ou advindas de medidas cautelares) atesta o que a prática - à inexistência de normativa expressa - vinha operando.

A utilidade da investigação preliminar, pela polícia judiciária, tem viés antagônico. É firmada pela proximidade existente entre a atividade policial – por sua essência - e a ocorrência do evento criminoso; e a distância entre o ente administrativo investigador e os demais sujeitos estatais que compõem a futura relação processual-penal.

Por oportuno, observa-se ser a polícia judiciária instituição que mais se aproxima da verdade natural do fato, porquanto é a primeira a ter contato com o crime a partir de sua realização. Destarte possui maiores condições de proporcionar a produção de provas que se aproximem com maior eficiência do discutido7 Princípio da Verdade Real que norteia o processo penal. Isto reforça a importância da prova produzida no Inqué-rito Policial como elemento relevante para levar ao acusador e ao julga-dor as evidências que os ponham em contato com o crime, seus motivos, circunstâncias e seu autor.

No entender de Manoel Pedro Pimentel o inquérito policial não é uma simples peça informativa mas um processo (procedimento) prepa-ratório, em que existe formação de prova, dispondo a autoridade policial de poderes para investigação. Não se apresenta, então, como um procedi-mento estático em que o delegado de polícia se limita a recolher os dados que, eventualmente, cheguem ao seu conhecimento8.

As provas técnicas produzidas no IP, por questão de tempo e oportunidade, não podem ser repetidas em juízo e servem integralmen-te para a instrução do processo penal. Resta para revalidação judicial o

7 Alguns doutrinadores vêm discutindo a existência de uma verdade real no processo penal, sustentando tratar-se de uma construção do sistema inquisitório. A visão garantista de nomes como LUIGI FERRAJOLI, FRANCESCO CARNELUTTI E AURY LOPES JÚNIOR vislumbra a impossibilidade de se reconstruir no processo o fato passado, em sua perfeita realização. Sustentam que a prova no processo penal busca e pode alcançar tão somente uma verdade formal, processual ou o que se denomina “certeza jurídica”.

8 PIMENTEL, Manoel Pedro. Advocacia Criminal - Teoria e Prática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975, p. 3.

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interrogatório, oitiva da vítima e a prova testemunhal, ressalvada, por óbvio, a possibilidade de produção de outros meios de provas úteis na fase instrutória.

Neste diapasão é que a investigação preliminar e seu conteúdo probatório devem servir à análise acerca da viabilidade de concretude do jus puniendi do Estado, motivo pelo qual deve ser conduzido por ente estranho ao processo.

lEgitimação concorrEntE: fatos E fundamEntos

A relevância do poder investigatório na promoção da segurança pública vem sendo tema de acirradas disputas institucionais acerca da legitimidade de seu exercício, nas mais variadas esferas federativas.

A exemplo disso, no Rio Grande do Sul, a Portaria nº 172 da Se-cretariadeJustiçaeSegurança(àépoca),publicadaem16/11/00,aindaem vigor, sob o fundamento de prestação de auxilio à Polícia Civil permi-te que a Brigada Militar lavre Termos Circunstanciados, quando autor do fato e vítima se fizessem presentes no momento do crime e registre ocor-rências dos crimes de menor potencial ofensivo. O TC é procedimento investigativo que visa apuração de infrações penais de menor potencial ofensivo, o que, mesmo sendo fato de pouca gravidade, é atribuição das Polícias Civil e Federal e deve passar pelo crivo da autoridade policial.

Igualmente o registro de ocorrências policiais por milicianos sem a devida formação jurídica, como sói acontecer, prejudica a posterior in-vestigação do fato pela Polícia Civil dadas deficiências de correta tipifica-ção do delito, cadastramento de pessoas (e seu respectivo envolvimento) no sistema de dados integrado, coleta imediata de depoimentos, entre outras mazelas.

Recentemente, ainda no Estado gaúcho, tem a polícia militar le-vantado sua legitimidade para pedidos e cumprimentos de mandados de

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busca e apreensão e lavratura de autos de prisão em flagrante, contra-riando os preceitos constitucionais já mencionados e a própria essência preventiva, inerente às funções de polícia administrativa.

Na mesma linha e de forma mais veemente, longínqua a discus-são acerca do poder investigatório do Ministério Público, no que tange a titularidade da investigação preliminar.

O embate mais recente ganhou notoriedade acadêmica e juris-dicional culminando com numerosas argüições de inconstitucionalida-de tanto via controle difuso, como concentrado. Traz-se a baila, a título ilustrativo, a ADIN 3.309 interposta pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil - ADEPOLBRASIL - alegando a inconstitucionalidade da Lei complementar 75 (Estatuto do MPU) e Resolução 77 de 2004 (que regulamenta o art. 8º do Estatuto o qual dá poderes investigatórios ao MP) – e a ADI 3836, de autoria da OAB - contestando a constitucio-nalidadedaResoluçãonº13/2006doConselhoNacionaldoMinistérioPúblico (CNMP), que legisla sobre matéria processual penal e dá poderes ao “parquet” para conduzir investigações criminais. Ambas ações ainda não foram decididas tendo como última manifestação dos postulantes (nos dois casos), em meados do corrente ano, pedido de preferência ao julgamento dos feitos.

As mais diversas argumentações são utilizadas como justificantes da legitimidade investigatória na apuração de delitos, por instituições di-versas da polícia judiciária.

Busca amparo, a pretensão investigatória pelo Ministério Público, no direito comparado.

O fundamento é ilustrado com legislações de países como Fran-ça e Espanha onde vigora o sistema do juiz instrutor – que coordena a investigação preliminar, bem como Alemanha, Itália e Portugal, onde existe a figura do promotor investigador.

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É o que sustenta Lopes Júnior:9

Atualmente, existe uma tendência de outorgar ao Ministério Público a direção da investigação preliminar, de modo que o promotor investigador poderá obrar pessoalmente e/ou por meio da Polícia Judiciária (necessariamente subordinada a ele). A instrução preliminar a cargo do MP tem sido adotada nos países europeus como um substituto ao modelo de instrução judicial anteriormente analisado (jui-zado de instrução). Neste sentido, a reforma alemã de 1974 suprimiu a figura do juiz instrutor para dar lugar ao promotor investigador. A partir de então, outros países, com maior ou menor intensidade, foram realizando modificações legisla-tivas nessa mesma direção, como sucedeu, v.g, na Itália (1988) e em Portugal (1995). Na Espanha, a Lei Orgânica (LO) 7/88 que instituiu o procedimento abreviado deu os primeiros passos nessa direção, ao outorgar ao fiscal maiores poderes na instrução preliminar.

Verifica-se, todavia, que nos sistemas citados houve notória re-formulação legislativa para atribuição de poder investigatório a outros entes, especialmente ao Ministério Público. Por óbvio tais modificações não afrontam os preceitos constitucionais dos países legitimantes. Ao revés, no Brasil, a Constituição Federal atribui expressamente à polícia judiciária atribuição para investigar a prática de delitos. Não pode, por-tanto, qualquer legislação infraconstitucional dispor de maneira diversa. Acertadamente não o faz o digesto processual pátrio, lei nacional, pre-tendendo fazê-lo, “exempli gratia”, o Estatuto do Ministério Público da União, lei federal, de alcance limitado portanto.

Embasamento diverso, porém destinado ao mesmo fim, encontra guarida na previsão legal de outros procedimentos investigatórios, não atribuídos à polícia judiciária, tais como as Comissões Parlamentares de Inquérito, o Inquérito Policial Militar, o Inquérito Civil Público e os Pro-cedimentos Administrativos Disciplinares.

A sustentação perde espaço porquanto tais procedimentos têm su-jeitos e objetos distintos do Inquérito Policial, não objetivando, precipua-mente, a apuração de infrações penais e sua conseqüente penalização.

9 Op. cit., p. 91-2.

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Às Comissões Parlamentares de Inquérito – CPIs – é atribuído po-der investigatório pelo art. 58, § 3º da CF, diferentemente do que ocorre com o MP. São-lhes conferidos poderes similares aos de autoridade judicial, podendo de plano decretarem quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico. No entanto, tal investigação não objetiva diretamente a apuração de infra-ções penais, mas sim a comprovação de atos de improbidade administra-tiva e quebra de decoro parlamentar, culminando na aplicação de sanções disciplinares como cassação de mandato e perda de direitos políticos. De tal sorte, se no decorrer dos trabalhos a comissão evidencia a prática de in-frações penais os relatórios são enviados à Polícia Federal para que instaure o devido Inquérito Policial, promova diligências e posterior indiciamento.

No que tange aos crimes militares, igualmente por força consti-tucional, possuem as respectivas instituições Justiça própria com promo-tores e juízes militares, tendo suas penas caráter administrativo. Assim a investigação também fica a cargo do ente militar. Vale lembrar, contudo, que se o militar comete crime comum é julgado pela justiça comum – Fe-deral ou Estadual - sendo a investigação presidida pela polícia judiciária, a ação proposta pelo promotor de justiça ou procurador da república e julgada pelo juiz de direito ou federal.

A ação civil pública, constitucionalmente instituída, dá poderes investigatórios ao MP para instauração de inquérito civil e não criminal, com fim de preservação do meio ambiente, patrimônio histórico, artís-tico, cultural e paisagístico e demais interesses difusos e coletivos. Tal procedimento objetiva a elaboração de compromisso de ajustamento de conduta que por sua vez possui natureza civil e não penal10. Destarte não são permitidas, no curso do Inquérito Civil, representações por prisões provisórias ou medidas cautelares de cunho eminentemente investigati-vo-criminal, a exemplo das interceptações telefônicas.

Os processos administrativos disciplinares, por fim, são destina-dos à apuração de infrações disciplinares praticadas por funcionários pú-

10 LOPES, Fábio Motta. “O Ministério Público na Investigação Criminal”. Revista Ibero-Americana de Ciências Penais, Porto Alegre, ano 6, n. 11, jun.-jan. 2005, p. 137-166.

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blicos e sua investigação cabe ao órgão correcional da instituição a qual está vinculado o servidor. A investigação, processo e punição têm caráter exclusivamente administrativo. Se o servidor além de infração disciplinar comete algum crime, tais informações devem ser repassadas a polícia judiciária para respectiva investigação e procedimento policial, a fim de embasar eventual processo-crime.

Pertine lembrar que a nova lei de falências veio a reconhecer a preservação do Inquérito Policial, inexistente no antigo regramento. Foi abolido o famigerado inquérito judicial – uma homenagem ao sistema do juiz instrutor não adotado no Brasil - que permitia ao juiz a produção de provas para julgamento dos crimes falimentares. Preservou o legislador, no entanto, a vis atrativa do juízo falimentar no julgamento dos crimes. A justificativa está no fato de que a apuração de tais delitos não tem como foco único a aplicação da pena, mas também garantir com a comprova-ção da prática criminosa, a declaração do período suspeito, indisponibili-dade de bens e pagamento dos créditos falimentares.

Em suma, evidencia-se em todos os procedimentos investigati-vos mencionados não haver investigação direta de crime comum visando aplicação de sanção penal, uma vez que isso somente cabe à Polícia Ju-diciária.

Não raro, encontra alicerce a busca pelo poder investigatório, es-pecialmente no que se refere ao Ministério Público, na Teoria dos Poderes Implícitos. Invocada para sustentar que, em sendo o “parquet” o titular da ação penal, tendo atribuição para propô-la também possui poderes para dirigir, produzir e instrumentalizar as provas que a embasam, rendendo preito ao jargão jurídico “quem pode o mais, pode o menos”.

Seguisse o ordenamento jurídico-penal tal linha de raciocínio des-necessária as atuações não só da polícia judiciária como também do próprio Ministério Público, permanecendo no cenário processual apenas a figura do juiz. Se indistintamente quem pode o mais pode o menos, corolário lógico aquele que julga poder também investigar e propor a ação penal.

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De outra banda, inaplicável a Teoria dos Poderes Implícitos em ma-téria onde há atribuição de poderes explícitos, como no caso em exame. O texto constitucional é expresso no art. 144, § 1º em dar atribuição exclusiva para apuração de infrações penais à Polícia Judiciária. Igual forma a função do Ministério Público no respeito à instrução preliminar, conferindo-lhe expressamente o art. 129, VIII da mesma carta poder requisitório restrito para postular realização de diligências e instauração de Inquérito Policial, às devidas autoridades, com necessária fundamentação.

Assim é que a explicitude exclui a implicitude, não havendo espa-ço para hermenêutica onde há regramento expresso, claro e definido.

Diante do esposado, entende-se que os argumentos aferidos não encontram amparo na Constituição da República, nos legislatórios infra-constitucionais e tampouco em teorias jurídicas não aplicáveis in casu, restando evidenciada a exclusividade da investigação criminal pela polícia judiciária.

a polícia Judiciária E sua rElEvância no Estado dEmocrático dE dirEito

Muito embora a noção de Estado de Direito tenha sido trazi-da ao ordenamento jurídico brasileiro pela Constituição do Império, foi somente na carta de 1988 que o conceito de Estado Democrático de Direito aparece como norteador da organização e desenvolvimento da sociedade brasileira.

Sendo o Estado de Direito aquele onde vigora o império da lei, não só a sociedade como o próprio Estado deve submeter-se ao regra-mento por ele imposto. Nesta senda, tem como características essen-ciais a unidade do ordenamento jurídico, o primado da lei, a divisão dos poderes estatais e o reconhecimento e proteção dos direitos e garantias fundamentais.

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A divisão pelo Estado dos poderes a ele próprio conferidos é medida fundamental para sua própria limitação conferindo, assim, segu-rança jurídica ao cidadão e garantindo a manutenção do Estado Demo-crático de Direito.

SegundoKonradHesse,pelainterpretaçãohodiernadoprincípioda separação de poderes:11

Objeto da divisão de poderes é, antes, positivamente uma ordem de colaboração humana, que constitui os poderes individuais, determina e limita suas compe-tências, regula sua colaboração e, desse modo, deve conduzir à unidade do poder estatal - limitado. Essa tarefa requer não só um refreamento e equilíbrio dos fatores de poder reais, senão ela é também, sobretudo, uma questão de determi-nação e coordenação apropriada das funções, assim como das forças reais que se personificam nesses órgãos.

O exercício do jus puniendi do Estado vem balizado nesta divisão de poderes, conforme disposições constitucionais expressas. Ao Executi-vo, através da polícia judiciária, cumpre investigar. Ao Ministério Público, titularizar a ação penal. Ao Judiciário, julgar. Tal partição traz inegável segurança jurídica ao cidadão que comete o delito, na certeza de que o poder que investiga não é o mesmo que acusa e nem aquele que julga.

A produção de provas, unilateralmente, em sede preliminar pelo Ministério Público macula tal princípio, uma vez que é órgão acusador e parte no processo. Tal possibilidade fere a garantia constitucional – cláu-sula pétrea - do devido processo penal, cuja essência é preservar todas as garantias do réu, como uma forma e equilibrar a relação entre o Estado - investigador, acusador, julgador - e o cidadão.

Considerando que as provas técnicas produzidas no IP não são repetidas em juízo, como já falado, sua produção unilateral pelo MP, fere sobremaneira o princípio do devido processo legal, o equilíbrio entre os poderes e própria noção de Estado Democrático de Direito.

11 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. (traduzido por Luís Afonso Heck). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 369. Disponível em www.direitonet.com.br/textos/x/81/88/818/DN_Legitimidade_da_funcao_investigatoria_do_Ministerio_Publico.doc. Acesso em 27.08.08.

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Tem a polícia judiciária - como parte do sistema repressivo es-tatal – importante papel a desempenhar na manutenção do Estado De-mocrático de Direito. Como titular da instrução preliminar garante uma investigação imparcial, que busca a verdade e não tendência municiar uma ou outra parte processual, mas sim embasar a viabilidade da própria existência ou não do processo.

Não é permitido ao Estado sujeitar o cidadão ao processo-crime sem um mínimo de indícios que autorizem o início da ação penal. Eis o objetivo do inquérito policial: colher provas da existência do fato, da autoria e de suas circunstâncias, para que possa o dominus litis, formar sua convicção e promover a denúncia ou solicitar o arquivamento do fato perante o Estado-Juiz.

O inquérito policial, como instrumento de investigação da polícia judiciária, configura, em ampla análise, garantia de preservação dos direi-tos fundamentais do indivíduo, não submetendo a pessoa humana, sem fundada razão, aos percalços de uma ação penal.

considEraçõEs finais

O presente trabalho objetivou demonstrar o papel da polícia judi-ciária no ordenamento jurídico brasileiro. À luz da Constituição Federal e legislação extravagante restou evidenciada a titularidade exclusiva da polícia judiciária no que concerne à investigação destinada a apuração de infrações penais.

A despeito das justificativas utilizadas para legitimar outras instituições, mormente o Ministério Público, para proceder à instru-ção preliminar, foram trazidos contra-argumentos substanciais para a preservação da investigação criminal pela polícia judiciária. Destarte, vislumbrou-se no inquérito policial um instrumento de garantia para a correta aplicação da Lei Penal, uma vez que realizado por ente impar-cial e distante da eventual relação processual-penal que derive do fato

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investigado, servindo, primordialmente, para análise de viabilidade da própria formação desta relação.

Por fim, afirmou-se a relevância do poder investigatório na perse-cução criminal e na efetivação do jus puniendi do Estado, ressaltando-se a necessidade da manutenção deste poder-dever na esfera da polícia judi-ciária como forma de assegurar todas as garantias constitucionais daí de-correntes e manter-se a essência do Estado Democrático de Direito.

VANESSA PITREZ DE AGuIAR CORRÊA

Graduada em Direito pela Fundação universidade do Rio Gran-de – FuRG. Especialista em Direito Público pelo CPC e Faculdade Projeção/DF. Delegada de Polícia do Estado do Rio Grande do Sul.

Professora da Academia de Polícia Civil do Rio Grande do Sul.

E-mail: [email protected]

ABSTRACT

The article tries to do an analysis of public security today, before a framework in which the real rulers in the areas federal, state and municipal unable to contain the violence. Even if faced with the problem of crime methods, without there being an effective use of more modern means of technology geared to the intelligence. The result is a police apathetic, disinterested and inefficient due to lack of structure and the distancing of the community, with a negative effect on all sectors of society, which cry out for justice, but ignore the bad conditions under which prisoners are incarcerated, and are absent from discussions about solutions to the serious problems of urban crime.

Keywords: Police. Crime. Community. Public Security. Police Intelligence.

rEfErências

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Brasília, v. 2, n. 1, p. 55-67, jul./dez. 2008.Recebido em 10 de outubro de 2008.Aceito em 3 de fevereiro de 2009.

proBlEmas rElativos ao princípio da proporcionalidadE na lEi dE crimEs amBiEntais

Luiz Carlos Nóbrega Nelson

D

RESUMO

O ordenamento jurídico brasileiro não dá a devida atenção ao bem jurídico ambiental. É flagrante a valoração feita ao bem ambiental em detrimento de outros bens jurídicos. Não foi observado o princípio da proporcionalidade na produção legislativa. Temos um problema de política criminal que conduz a uma crescente violação das normas ambientais. Uma novação legislativa mostra-se categórica para a defesa do meio ambiente.

Palavras-chave: Ambiental. Crimes. Proporcionalidade. Patrimônio. Fauna. Flora. Recursos. Gravidade. Mudança. Legislativa.

introdução

O objetivo deste artigo é apontar alguns problemas relativos ao

princípio da proporcionalidade na Lei de n° 9.605, de 12 de fevereiro de

1998, conhecida como lei de crimes ambientais.

Tal artigo resumir-se-á a um breve apanhado sobre o princípio da

proporcionalidade no campo penal, e após isto, a algumas considerações

analíticas sobre a lei de crimes ambientais.

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o princípio da proporcionalidadE E sEus fundamEntos dE aplicação

Uma primeira indagação a que o operador do Direito se faz quando se apresenta o princípio da proporcionalidade, é saber qual sua razão onto-lógica, ou seja, abstraindo-se de especulações de ordem jurídica, qual seria o fundamento de ordem existencial para a aplicação do princípio da pro-porcionalidade, ou melhor dizendo, qual seria o fundamento para a realiza-ção de um juízo que levasse em conta o critério de proporcionalidade ?

Tal pergunta, mostra-se de fácil resolução na medida em que ra-ciocinarmos sob o prisma do princípio natural de causa e efeito, ou lei da causalidade.

Pois a todo fato ou ato, seja este natural ou humano, que implicou em efeitos de ordem material com a modificação da realidade; teremos então necessariamente uma causa diretamente relacionada a este, e de intensidade proporcional ao efeito gerado.

Assim, no campo dos fatos naturais, temos que uma modificação de qualquer ordem na crosta terrestre é gerada por um fato natural ou um ato humano, diretamente relacionado a este, e de ofensividade e in-tensidade equivalentes.

Desse modo, a proporção ou proporcionalidade é ínsita à natu-reza, pois verbi gratia: uma pequena chuva jamais geraria um oceano, e da mesma forma uma floresta de dimensões continentais não poderia ser derrubada por um único homem agindo sozinho e sem instrumentos que o auxiliassem.

Donde se conclui que a proporcionalidade é decorrente de uma rela-ção categórica de causa e efeito. E da mesma forma, o homem quando atua no meio ambiente que vive, necessariamente para obter êxito em seus objeti-vos, terá que observar e fazer um juízo intelectivo de proporcionalidade.

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Superado este ponto, resta-nos esclarecer agora qual o fundamen-to de ordem deontológica para a proporcionalidade.

Prima facie pode-se dizer que o fundamento para a aplicação da proporcionalidade consiste em atentar para o fato de que na imposição de sanções, o Estado terá que valorar os bens jurídicos tutelados na medi-da de suas importâncias, e fixar penalidades equivalentes e proporcionais aos danos efetivamente causados e suportados pela sociedade.

No magistério de Luigi Ferrajoli "O fato de que entre pena e delito não exista nenhuma relação natural não exime a primeira de ser adequada ao segundo em alguma medida".1

Portanto é inconcebível que o Estado dê o mesmo tratamento jurídico a dois crimes distintos, sendo um de pequeno potencial ofensivo com efeitos diminutos, e um outro delito de proporções multitudinárias, e de gravidade sensivelmente elevada; pois se assim o fizesse, estaria indo contrariamente ao sentimento de justiça social que toda a coletividade necessita de modo a pacificar os ânimos sociais.

Neste raciocínio pode-se então declarar que a aplicação da pro-porcionalidade é decorrência da busca do Estado de se atingir o senti-mento social de justiça, ou ainda que para o sentimento social de justiça ser atingido, faz-se necessário que os operadores do Direito, sejam estes legisladores ou aplicadores de normas, atentem para a moderação e pro-porcionalidade de seus atos.

Ou seja, os significados de grandeza, impacto e escala são ínsitos ao estudo da proporcionalidade seja no campo natural ou jurídico, sendo esta a razão, pela qual, que se mostra incongruente valorar da mesma for-ma, por exemplo, o crime de homicídio ao de genocídio, e tantos outros bens jurídicos de dimensões e valoração sociais distintos.

1 Ferrajoli, Luigi in Direito e Razão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, 2 ed., pág. 366.

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Contudo, para que se afirme que o conceito de justiça é ínsito ao nosso ordenamento jurídico, necessariamente ter-se-á que buscar um fundamento jurídico para tanto.

Os fundamentos relacionados ao conceito de justiça podem ser encontrados na necessidade de pacificação social, gerada pelo sentimento de equânime ponderação na aplicação das leis, ou no campo normativo em nossa carta magna, explicitamente em seu preâmbulo “a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade”, e da mesma forma como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, quando o art. 3° consagra a construção de uma “sociedade justa”; e ainda assim implicitamente em todo o corpo da lei maior a medida em que modera direitos individuais e prerrogativas públicas, reparte direitos e ônus para as diversas pessoas jurídicas, etc., tudo isto buscando e indicando ao le-gislador infraconstitucional a moderação, e proporcionalidade inerentes ao nosso Estado Democrático de Direito.

Por conseguinte, não há que se falar na inexistência do princípio da proporcionalidade em nosso ordenamento jurídico, haja vista os fun-damentos de ordem ontológica, deontológica, e menções expressas tanto no espírito de nossa lei fundamental quanto em seu texto.

Exaurido este ponto, resta-nos analisar o fundamento da exis-tência do princípio da proporcionalidade no Direito Penal, a fim de pos-teriormente adentrarmos em considerações a respeito da lei de crimes ambientais.

A proporcionalidade pode encontrar seu fundamento na garantia do cidadão de que o Estado no seu jus puniendi não exorbite seu poder, aplicando sanção mais severa por conduta praticada por um particular, sendo este um dos principais fundamentos encontrados rotineiramente na doutrina e neste sentido é a orientação elencada por Mariângela Gama de Magalhães Gomes, quando afirma

Do reconhecimento dos direitos fundamentais decorrente desta concepção do Es-tado é possível deduzir que estes, enquanto expressões do direito à liberdade (em

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sentido amplo) dos cidadãos perante o Estado, podem ser limitados pelo Poder Público apenas na medida em que se demonstrar esta indispensabilidade para a tutela dos interesses públicos.2

Outro fundamento para a aplicação do princípio da proporciona-lidade no Direito Penal, como já mencionado anteriormente, consiste na necessidade da busca de uma equivalência entre a pena a ser aplicada e o bem jurídico tutelado “no direito penal, a regra de que a pena ameaçada deve encontrar-se numa relação justa em relação à gravidade do delito e a culpabilidade do réu; não deve ser inteiramente desproporcional perante a conduta proibida”.3 E en-veredando pelo mesmo entendimento o mestre René Ariel Dotti afirma que “vale como indicativo de que também a resposta penal deve ser proporcional à gravidade da ofensa”.4

Ainda com relação à aplicação de tal princípio, há a observância de uma hierarquia de valores a que o legislador deve se submeter, sob pena de fixar reprimendas desproporcionais para diferentes bens jurídicos tutela-dos, como por exemplo fixar uma pena maior para um bem jurídico de me-nor gravidade de que outro de maior gravidade, o que seria desarrazoado

De acordo com esta acepção, o princípio da proporcionalidade comporta um ju-ízo de ponderação entre os interesses individuais dos cidadãos e os interesses da coletividade, a ser efetuado a partir de uma hierarquia de valores que o legislador deve respeitar.5

De forma conclusiva, pode-se então afirmar que o legislador na elaboração da norma, e não somente este, deverá categoricamente ob-servar o critério de proporcionalidade a fim de não exorbitar o direito de punir, deve-se observar uma equivalência entre a reprimenda e o bem jurídico tutelado, e por fim atentar para uma hierarquia de valores entre os diversos bens jurídicos tutelados no ordenamento jurídico.

2 Mariângela Gama de Magalhães Gomes. O princípio da proporcionalidade no Direito Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 23 ed., p. 63.

3 Mariângela Gama de Magalhães Gomes. O princípio da proporcionalidade no Direito Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 23 ed., p. 63.

4 René Ariel Dotti. Curso de Direito Penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 21, p. 64.5 Mariângela Gama de Magalhães Gomes. O princípio da proporcionalidade no Direito Penal. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 23, p. 63.

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Por fim, tornar proporcional uma pena nada mais é do que o legislador obedecer a estes parâmetros na fixação dos limites mínimos e máximos da reprimenda em abstrato, aplicando desse modo o princípio da proporcionalidade na elaboração da norma penal, e ao magistrado aplicar o princípio da proporcionalidade consiste em dosimetrar com jus-tiça e adequação uma pena a um caso concreto, (atentando desse modo ao disposto nos art.s 29 e 59 do Código Penal).

da inoBsErvância do princípio da proporcionalidadE na tutEla dos BEns Jurídicos amBiEntais

Apenas com o caráter esclarecedor, é bom frisar que o objetivo desta ponderação não se destina a possíveis incongruências por parte dos aplicadores do Direito em virtude da não aplicação do princípio da pro-porcionalidade no processamento e julgamento dos crimes ambientais, pois a estes cabem as regras dos artigos 29 e 59 ambos do Código Penal emconsonânciacomosartigos2°e6°daLein°9.605/98.

Neste apanhado destina-se mostrar a incongruência e despropor-cionalidade cristalizada na lei de crimes ambientais pelo legislador frente ao restante do ordenamento jurídico.

Deve-se salientar que o legislador deverá atentar para todos os critérios acima expostos no momento da feitura das normas, guardando uma proporcionalidade entre os diversos bens tutelados, e criando a pena necessária e suficiente à reprimenda do delito, de modo a assegurar a pro-porcionalidade devida e justa entre os jus puniendi e jus libertatis.

Entraremos agora na análise dos crimes ambientais em espécie.

NaLeinº9.605/98,inicialmentesetratadoscrimesespécie,tu-telando os crimes contra a fauna, elencando diversos verbos de modo a reprimir o abate de espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, conforme o artigo 29 da norma em comento. Ocorre que o

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preceito secundário estabelece uma pena de menor potencial ofensivo, de detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa.

Vale salientar que nesse caso o legislador tutela o meio ambien-te, representado aqui pela fauna, portanto um bem de natureza meta-individual, e possivelmente também um bem pertencente ao patrimô-nio da União, Estados-membros, Municípios dependendo do local, ou pertencente à comunidade internacional caso os animais estejam em rota migratória.

Para a análise do princípio da proporcionalidade neste tipo penal, não podemos nos esquecer que a fauna é um bem ambiental, e também de natureza patrimonial; sempre pertencente a um sujeito de direitos ou a sociedade como um todo.

A reprimenda neste caso é por demais irrisória e flagrantemente desproporcional quando comparada a qualquer delito previsto no Códi-go Penal que tutele o patrimônio.

Tomemos como exemplo o crime de furto simples, previsto no art. 155 do Código Penal. Este é praticado sem violência ou grave ame-aça, não atinge, via de regra, diretamente a coletividade, é também via de regra reparável, possuindo uma pena de reclusão de 1 (um) ano a 4 (quatro) anos, e multa.

Note-se que no crime ambiental em comento, poderá haver um abate de milhares de espécies de animais, gerando uma mortandade em massa, com o conseqüente desequilíbrio de todo um ecossistema, dano ao patrimônio de um ente público, prejuízo para pesquisas científicas, e ainda assim a pena não se aproximará da pena de um furto simples.

O que nos leva a enveredar por apenas um destes dois caminhos:

1) ou o legislador atribuiu aos crimes ambientais uma importância irrisó-ria, ferindo o princípio da proporcionalidade de forma flagrante, ou

2) o legislador valora de forma mais grave um dano ao patrimônio parti-

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cular-individual do que um dano à coletividade, o que também consis-te num erro de valoração entre os bens jurídicos tutelados.

Vale salientar ainda que o bem ambiental tutelado poderá após o dano, passar a ter um caráter irreversível, e de efeitos permanentes, en-quanto que o crime contra o patrimônio individual poderá ser ressarcido, revertendo seus efeitos.

Se ainda assim, tomarmos o furto privilegiado, previsto no art. 155, §2°, que estabelece como requisitos que a coisa furtada seja de pe-queno valor (inferior a um salário mínimo) e primariedade do agente, neste caso o juiz poderá reduzir a pena de 1 um a dois terços ou somente aplicar a pena de multa. Ficando desta forma, o crime contra o patrimô-nio ainda com uma pena máxima, na hipótese de redução máxima, de 1 ano e 4 meses, portanto superior ao crime contra a fauna que tem pena máxima de 1 ano.

Propiciando desta forma o seguinte paradoxo: um furto privile-giado de um bem inferior a um salário mínimo com pena máxima maior do que a mortandade para fins comerciais de dezenas de espécimes que podem alcançar no mercado negro valores infinitamente maiores, tais como dezenas ou centenas de milhares de reais.

Vale salientar que, atualmente, as espécimes silvestres brasileiras são disputadas a peso de ouro por laboratórios internacionais ou por zo-ológicos estrangeiros, e o tráfico internacional de animais silvestres é um fato, catalogado e combatido em dezenas de países.

Ainda assim podemos fazer mais um comparativo, qual seja: se a mortandade de animais ocorrer no interior de uma unidade de conserva-ção, teremos então a pena de inicial de seis meses a um ano, aumentada de metade, o que elevaria a pena mínima para 9 meses, e a máxima para 1 ano e 6 meses. Neste caso como se trata de um crime praticado dentro de uma unidade de conservação, sendo portanto um crime que atinge um bem da União ou dos Estados ou Municípios, poderíamos comparar com o crime de dano qualificado, previsto no art. 163, parágrafo úni-

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co, inciso III do Código Penal, o qual tem como vítima o patrimônio da União, Estado ou Município, possuindo como preceito secundário a pena mínima de seis meses, e máxima de três anos.

Neste caso, pode-se ter a seguinte situação anacrônica: o delito ambiental afetar um bem jurídico muito maior, como por exemplo uma mortandade medonha de animais dentro de uma unidade de conservação, não somente implicando em um grande prejuízo para o meio ambiente, mas também um prejuízo econômico elevadíssimo para uma pessoa ju-rídica de direito público, e ainda assim ser delito ambiental de menor potencial ofensivo, e o crime de dano de um patrimônio infinitamente menor não gozar de tal prerrogativa por ter pena máxima de três anos.

Como se nota, temos mais uma incongruência em comento, com uma pena muito menor para um delito de gravidade maior que outro.

Nesta linha, para os que se preocupam com o patrimônio público, a tutela seria bem mais eficaz caso inexistisse a lei de crimes ambientais, e os ilícitos fossem tratados tão somente como crimes contra o patrimô-nio. Afirmação esta de índole muito perigosa sob a ótica da construção de uma política criminal de efeitos concretos, pois seria a negação da criação em nosso ordenamento jurídico de diplomas que protejam os bens ambientais e a negação do princípio da especialidade.

Da mesma forma, quando se analisa o crime de “exportação não autorizadadepeles,couroseanfíbios”(art.30daLeinº9.605/98)emcotejo com o crime de “contrabando” (art. 334 do Código Penal), pode-se chegar à conclusão que o legislador deu à sonegação de produtos ani-mais um tratamento mais benéfico do que a sonegação comum, pois a pena no contrabando é reclusão de um a quatro anos, e no “contrabando ambiental de peles e couros” tal pena é de apenas um a três anos.

Assim, quem exporta ilegalmente uma certa quantia de couro sin-tético terá uma pena menor do que quem agride a fauna nacional, matan-do animais silvestres, e exporta também ilegalmente o mesmo produto, qual seja, o couro mas de animal silvestre.

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O descompasso legislativo aqui é flagrante, pois, no simples con-trabando se viola um único bem jurídico, qual seja, a regularidade tri-butária, e na exportação não autorizada de peles e couros, violam-se a regularidade tributária e o meio ambiente.

Esta desproporcionalidade também aparece nos crimes contra a flora, no qual o legislador estabelece no artigo 39 uma penalidade de detenção de 1 (um)a 3 (três) anos, ou multa para quem cortar árvores em floresta considerada de preservação permanente, crime este que afeta tanto o meio ambiente como um todo, afetando a fauna por via mediata também, e o patrimônio de uma pessoa de direito público por ser uma área de preservação permanente; e ainda assim possui uma pena inferior ao de um furto simples, sendo esta de reclusão 1 (um)a 4 (quatro) anos.

Por fim, outra flagrante violação do princípio da proporcionali-dade na construção dos paradigmas das penas nos delitos ambientais, o qual pode ainda ser melhor comparado a um crime contra o patrimônio éoprevistonoart.55daLein°9.605/98,qualseja,

Executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida: Pena – detenção, de 6 (seis)a 1 (um) ano.

Neste tipo penal, parece-me que o legislador esqueceu todos os garimpos clandestinos existentes neste país, e talvez desconhecesse o montante em pecúnia que estas extrações clandestinas retiram do sub-solo da União. Talvez também o legislador tenha se esquecido do nosso passado histórico do Brasil.

Aqui se tem a hipótese de haver uma extração ilegal de toneladas de ouro ou diamantes, como ocorre notadamente em alguns dos Estados da região norte, e o infrator responder por um delito de menor potencial ofensivo, ferindo frontalmente o princípio da proporcionalidade quando compararmos a inclusive até um furto privilegiado, quando a coisa fur-tada for de pequeno valor, ou seja, inferior a um salário mínimo, o qual possui ainda assim uma pena máxima maior (de 1 ano e 4 meses), portan-to superior ao crime contra a fauna que tem pena máxima de 1 ano.

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Como então conceber que a extração e apropriação de por exem-plo uma tonelada de ouro sem autorização legal possa ser um delito de menor potencial ofensivo? Mesmo se esquecermos a proteção aos bens ambientais como um dos escopos o qual o legislador deveria ter se orien-tado na elaboração da norma, ainda assim, teremos que atentar para en-riquecimento ilícito exarcebado por parte do sujeito ativo do delito, e a perda deste patrimônio por parte da União.

Neste caso da extração ilegal de recursos minerais: 1- tem-se a lesão ao meio ambiente, muitas vezes com derramamento de mercúrio que adentram nos rios, sendo este de proporções difusas e podendo atin-gir inclusive à saúde pública, 2- tem-se o crime contra o patrimônio haja vistaosubsoloserdaUnião,conformeprevistonoart.20,incisoIXdaConstituição Federal, e tendo como sujeito passivo não apenas um parti-cular mas uma pessoa de direito público; e ainda assim a pena é inferior ao do crime de furto, o que vem ainda mais a corroborar a tese de que o legislador infra-constitucional não observou o princípio da proporciona-lidadenafeituradostipospenaisprevistosnalein°9.605/98,restandotão somente ao aplicador do direito adotar uma técnica de hermenêutica que em concurso formal possa capitular o delito ambiental com um cri-me contra o patrimônio.

Como se observa, não se trata aqui de fazer apologia jurídica a uma política criminal mais severa, mas sim de equacionar de forma justa os preceitos secundários de um delito à gravidade e importância dos bens jurídicos tutelados.

Da mesma forma não deve ser esquecido o princípio da insigni-ficância, devendo o aplicador do direito estar sempre atento à adequação social da norma ao delito. Todavia, dar tratamento de menor importância aos bens jurídicos ambientais, com a edição de diplomas legais que não representam penalidades dentro dos critérios de proporcionalidade a gra-vidade dos danos e delitos praticados, implica dizer que os rumos de nos-sa política criminal encontram-se distorcidos e ineficazes, pois também não podemos esquecer o caráter inibitório das normas penais.

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Por conseguinte, poder-se-á afirmar com bastante clareza que para a existência de instrumentos que viabilizem a proteção do meio ambien-te, teremos que passar por uma mudança legislativa muito em breve, de modo a equacionar e tornar proporcional a repressão dos bens jurídicos ambientais em face de outros bens jurídicos tutelados pelo Estado.

LuIZ CARLOS NÓBREGA NELSON

Especialista em Direito Penal e Processual Penal da Faculdade do Amapá. Professor da Academia Nacional de Polícia da disciplina Polícia de meio Ambiente. Delegado de Polícia Federal. Foi Chefe

da Delegacia de Repressão aos Crimes Contra o meio Ambiente e Patrimônio Histórico do Amapá nos anos de 2003 a 2006.

E-mail: [email protected]

ABSTRACT

The Brazilian law does not pay sufficient attention to legal rights environment. What is no-ticeable is the valuation done well to the detriment of environmental other property law. It was not observed the principle of proportionality in legislative output. We have a problem of criminal policy that leads to a growing violation of environmental standards. A novation legislative shows itself to the categorical protection of the environment..

Keywords: Environmental. Crimes. Proportionality. Heritage. Fauna. Flora. Features. Grav-

ity. Change. Legislative Council..

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69ISSN 1983-1927

Brasília, v. 2, n. 1, p. 69-81, jul./dez. 2008.Recebido em 17 de outubro de 2008.

Aceito em 3 de fevereiro de 2009.

a tortura no dirEito intErnacional E no dirEito intErno

Tony Gean Barbosa de Castro

D

RESUMO

Este artigo tem como escopo tecer algumas considerações acerca do tratamento conferido à tor-tura no direito internacional e no ordenamento jurídico brasileiro. Serão expostos breves comen-tários sobre a disciplina concebida pelas Leis 9.455/97 e 9.140/95 que tratam, respectivamente, da criminalização e da reparação às vítimas de atos de perseguição e de tortura praticados durante o regime de exceção democrática.

Palavras-chave: Tortura. Direito. Interno. Internacional. Justiça. Punitiva. Reparadora.

introdução

Em 12 Dezembro de 1997, a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) proclamou oficialmente, o dia 26 de junho como o Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura. Nas palavras do ex-Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, proferida exatamente na-quela data do ano de 2006:

...A proibição da tortura está profundamente enraizada. É absoluta e inequívo-ca. Aplica-se em todas as circunstâncias, quer em tempo de guerra quer em tempo de paz. Também não é permitida a tortura que se oculta por detrás de outros nomes: castigos cruéis e não habituais são inaceitáveis e ilícitos, independentemente dos nomes que lhes queiram atribuir1...

1 Mensagem do Secretário-Geral da ONU Kofi Annan, por ocasião do dia internacional de apoio às vítimas da tortura. Disponível em: <http://www.nossosaopaulo.com.br/Reg_SP/Barra_Escolha/ONU_VitimasTortura.htm>. Acesso em 06.10.2008.

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Acerca da prática degradante em comento, a Corte Suprema Bra-sileira, noHC 70.389/SP,Rel. p.AcórdãoMin.Celso deMello, já semanifestou nos seguintes termos:

...o delito de tortura - por comportar formas múltiplas de execução - caracteriza- se pela inflição de tormentos e suplícios que exasperam, na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam os seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva e inaceitável crueldade...A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete - enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva - um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo...

a tortura no plano intErnacional. BrEvEs considEraçõEs

A proibição contra a tortura está consolidada no direito interna-cional consuetudinário e nos tratados internacionais. Trata-se de prática execrada por todos os povos. Mesmo os países sobre os quais recaem fortes indícios em torno do cometimento de tal atrocidade - segundo informes da Anistia Internacional -, acabam, estes Estados, adotando uma postura pública de não-aceitação do ato cruel em exame, afirmando que executam medidas voltadas à erradicação da aludida prática, o que reforça o reconhecimento universal de que o tratamento desumano por intermédio da tortura apresenta-se intolerável em qualquer comunidade, nação ou cultura.

A vedação do ato desumano em exame, conforme já dito, en-contra-se bem sedimentada no direito internacional costumeiro como jus cogens tendo em vista que constitui norma imperativa internacional2 o respeito a direitos fundamentais da pessoa humana, dentre os quais a não-violação de sua dignidade. E esta violação se verifica quando não se assegura à pessoa, dentre outros direitos, o respeito a sua integridade física ou moral. Nas palavras de Celso D. de Albuquerque Mello, citando

2 Nos termos do artigo 53 da Convenção de Viena sobre os Tratados, “uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza.” (REZEK, 1998, p. 119)

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Carrillo Salcedo, são normas de jus cogens, dentre outras, os direitos funda-mentais do homem (MELLO, p. 75). Trata-se de reconhecer a existência de que alguns direitos são inatos, universais, inalienáveis e imprescritíveis, impondo aos Estados a obrigação não só de respeitá-los como também de assegurar que sejam respeitados.

No plano dos tratados internacionais, impõe-se destacar, inicial-mente, a previsão do artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos do Homem3 cujo comando proibitivo encontra-se assim exarado: "Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante."

Posteriormente à aludida Declaração Universal, a proibição da tor-tura e outros maus-tratos foi incorporada na enorme rede de tratados in-ternacionais sobre direitos humanos tal como, e.g., na Convenção Européia paraaProteçãodosDireitosdoHomemedasLiberdadesFundamentais4, no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos5, na Carta Africa-nadosDireitosHumanosedosPovos6, na Convenção Americana sobre DireitosHumanos7, na Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a

3 A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, representa um dos documentos básicos da ONU, prescrevendo o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações. No seu texto, são enumerados os direitos humanos que não podem ser violados.

4 Também conhecida como Convenção Européia dos Direitos Humanos, foi adotada pelo Conselho da Europa em 1950, entrando em vigor em 1953. Tem por escopo, como a própria denominação sugere, proteger os direitos humanos e as liberdades fundamentais. Para assegurar o efetivo respeito aos direitos humanos e aos demais princípios estabelecidos pela Convenção, foi criado o órgão jurisdicional denominado Corte Européia dos Direitos Humanos (CEDH). Reza o artigo 3º da Convenção que “Ninguém pode ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes”.

5 Adotado pela Resolução 2.200-A (XXI) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 16.12.1966. Aprovado pelo Decreto Legislativo n.º 226, de 12.12.1991. Ratificado pelo Brasil em 24.01.1992. Promulgado pelo Decreto n.º 592, de 6.7.1992. “Artigo 7.º Ninguém será submetido à tortura nem a pena ou a tratamentos cruéis, inumanos ou degradantes. Em particular, é interdito submeter uma pessoa a uma experiência médica ou científica sem o seu livre consentimento.”

6 Aprovada pela Conferência Ministerial da Organização da Unidade Africana (OUA) em Banjul, Gâmbia, em janeiro de 1981, e adotada pela XVIII Assembléia dos Chefes de Estado e Governo da Organização da Unidade Africana (OUA) em Nairóbi, Quênia, em 27 de julho de 1981. Prevê, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, no seu artigo 5º: “Todo indivíduo tem direito ao respeito da dignidade inerente à pessoa humana e ao reconhecimento da sua personalidade jurídica. Todas as formas de exploração e de aviltamento do homem, nomeadamente a escravatura, o tráfico de pessoas, a tortura física ou moral e as penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes são proibidos.”

7 Trata-se do conhecido Pacto de São José da Costa Rica. Assim tem sido denominada a Convenção Americana de

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A Tortura no Direito Internacional e no Direito Interno

Tortura8 e na Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Convenção contra a Tortura9).

A tortura, considerada crime contra a humanidade, também fun-cionacomonormafundamentalparaoDireitoInternacionalHumani-tário(DIH)queregeacondutadaspartesduranteosconflitosarmados.NoâmbitodoDIH,sobrelevaodeverdeprotegeravida,asaúdeeasegurança dos civis e demais pessoas que não estejam em combate, o que inclui soldados rendidos ou capturados que se encontram, de um ou de outro modo, sob autoridade da parte adversa. Para o direito internacional humanitário, o tratamento desumano em apreço apresenta-se, de igual modo, inaceitável10.

direitos Humanos pelo fato de ter sido assinada em San José, Costa Rica, no ano de 1969, por Estados-membros da OEA (Organização dos Estados Americanos). O Brasil aderiu à Convenção no ano de 1992. A proibição da tortura no Pacto está prevista no artigo 5º, itens 1 e 2, com o seguinte teor, verbis: “Artigo 5º - Direito à integridade pessoal 1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.”

8 Aberta à assinatura dos Estados Membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) por ocasião do XV Período Ordinário de Sessões da Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos, que teve lugar em Cartagena das Índias, Colômbia, em 9 de dezembro de 1985. Ratificada pelo Brasil em 20 de julho de 1989, aprovada pelo Dec. Leg. 5/89 e promulgada pelo Dec. 98.386/89, a Convenção fundamenta-se no que já dispõe a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no sentido de que ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, assinalando a justificativa de que, para tornar efetivas as normas contidas nos instrumentos universais e regionais que tratam da tortura, é necessário elaborar uma convenção interamericana que previna e puna aludida prática. Para os efeitos da Convenção, considera-se tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou qualquer outro fim. Concebe-se também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica (art. 2º). Segundo o teor do artigo 9º, os Estados-Membros comprometem-se a estabelecer, em suas legislações nacionais, normas que garantam compensação adequada para as vítimas de delito de tortura.

9 Adotada pela Resolução 39/46, da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1984. Foi ratificada pelo Brasil em 28 de setembro de 1989 e promulgada pelo Decreto no 40, de 15 de fevereiro de 1991. Pelo Decreto nº 6.085, de 19 de Abril de 2007, o Brasil promulgou o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura, adotado em Nova York em 18 de dezembro de 2002, cujo objetivo é estabelecer um sistema de visitas regulares efetuadas por órgãos nacionais e internacionais independentes a lugares onde pessoas são privadas de sua liberdade, com a intenção de prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.

10 São regras fundamentais do Direito Internacional Humanitário aplicáveis nos conflitos armados, as seguintes:“1. As pessoas postas fora de combate e aquelas que não participam directamente nas hostili-dades têm o direito ao respeito das suas vidas e da sua integridade física e moral. Estas pessoa devem ser, em todas as circunstâncias, protegidas e tratadas com humanidade, sem qualquer distinção de carácter desfavorável. (...)

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a tortura no dirEito intErno. criminalização E a Jurisprudência BrasilEira na dimEnsão da Justiça rEparadora. BrEvEs considEraçõEs

Por força do artigo 4º da Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Convenção contra a Tortura), todos os Estados que aderiram à Convenção são obri-gados a tipificar os atos de tortura no âmbito da legislação nacional. No Brasil, embora o País já fosse signatário de diversos tratados e conven-ções que tratam do tema, e a despeito ainda da previsão constitucional de vedação da prática em comento (artigo 1º, inciso III e 5º, incisos III,XLIII,eXLIXdaCR/88),apenasem1997surgeuma lei (Leinº9.455/97),criminalizandoacondutaemdiversasmodalidadesconformea motivação subjacente à prática do ato desumano11.

Registre-se ainda o fato de que no Brasil, a prática da tortura, além de ser equiparada a delito hediondo, é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.

4. Os combatentes capturados e os civis que se encontrem sob a autoridade da parte adversa têm direito ao respeito da sua vida, da sua dignidade, dos seus direitos pessoais e das suas convicções. Devem ser protegidos de todo o acto de violência e de represálias. Terão o direito a trocar notícias com as suas famílias e a receber socorros.

5. Todas as pessoas beneficiarão das garantias judiciárias fundamentais. Ninguém será tido como responsável de um acto que não cometeu. Ninguém será submetido à tortura física ou mental, nem a penas corporais ou a tratamentos cruéis e degradantes.

6. As partes num conflito e os membros das suas forças armadas não possuem um direito ilimitado na escolha dos métodos e meios de guerra susceptíveis de causar percas inúteis ou sofrimentos excessivos.”

Direito Internacional Humanitário: O que é o direito internacional Humanitário (D.I.H.)?, disponível em http://www.gddc.pt/direitos-humanos/direito-internacional-humanitario/sobre-dih.html, acesso em 08.10.2008.

11 Lembra Fernando Capez que “até a edição desse diploma legal, a tortura era objeto apenas do art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), bem como do art. 121, § 2º, III, do Código Penal (homicídio qualificado pela tortura). Para os demais delitos, como o de lesão corporal ou abuso de autoridade, em que poderia haver o emprego de tortura, esta constituía mera circunstância agravante genérica, prevista no art. 61, II, d, do mesmo diploma legal. Neste contexto, a Lei 9.455/97 representou significativa evolução no combate á tortura, coibindo essa prática execrável.” (CAPEZ, 2006, p. 654)

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A Tortura no Direito Internacional e no Direito Interno

Deacordocomoartigo2ºdaLeinº9.455/97,referidodiplo-ma se aplica ainda que o crime não tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira. O artigo em questão traz hipóteses de extrater-ritorialidade de aplicação da lei brasileira. A primeira hipótese, sendo a vítima brasileira, configura a modalidade de extraterritorialidade incon-dicionada. Diz-se incondicionada pelo fato de que a aplicação da Lei nº 9.455/97nãodependedoconcursodenenhumacondição,bastandoquea vítima seja brasileira, independentemente da nacionalidade do sujeito ativo, de o fato também ser punível no país em que foi praticado etc. A segunda, representa a extraterritorialidade condicionada, caso em que a aplicaçãodaLeinº9.455/97,nãosendoavítimabrasileira,ficasujeitaaoingresso do agente, estrangeiro ou não, em local sob jurisdição nacional.

A previsão do artigo 2º, 2ª parte da Lei em comento (encontrar-se o agente em local sob jurisdição brasileira) ajusta-se ao quanto disposto no artigo 7º, inciso II, alínea ‘a’ do Código Penal que, adotando o prin-cípio da justiça universal (ou cosmopolita), determina a aplicação da lei brasileira aos crimes que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir, ainda que cometidos fora do território nacional. A diferença é queaextraterritorialidadecondicionadadaLeinº9.455/97sósesubor-dina a um requisito: encontrar-se o agente em local sob jurisdição brasi-leira. Não se aplicam as demais condições previstas no § 2º, do art. 7º do CP tendo em vista que a extraterritorialidade condicionada do delito de tortura está disciplinada de forma especial na própria Lei sob exame que exclui, sobre o tema, as demais exigências do Código Penal12.

O Brasil, portanto, ao tipificar o crime de tortura, honrou o com-promisso que assumiu na ordem internacional quando ratificou, dentre outros tratados, a Convenção contra a Tortura, punindo o ilícito penal onde quer que tenha sido perpetrado.

12 Nesse sentido Fernando Capez, op. cit., p. 679. Em sentido diverso, entendendo ser hipótese de extraterritorialidade incondicionada toda a previsão do artigo 2º da Lei 9.455/97, Guilherme de Souza Nucci, in Código Penal Comentado, p. 91.

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Paralelamente ao modelo de justiça punitiva, ou melhor, antes mesmodaLeinº9.455/97,jáhaviasidoeditadaumaleireconhecendocomo mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusa-ção de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 05 de outubro de 198813.Trata-sedaLeinº9.140/9514. Com fundamento nesse diploma, parentes de pessoas perseguidas pelo regime de exceção recorreram ao Poder Judiciário, pleiteando indenização para compensação de danos morais, o que ensejou, nas lides instauradas, di-vergências jurídicas de ordem processual e material, conforme se exporá, adiante, ao menos em linhas gerais.

Antes, contudo, cabe uma reflexão preliminar. A Lei em exame objetiva tão-somente reparar uma dívida do Estado com parentes de víti-mas (e com as próprias vítimas) que, em muitos casos, sequer chegaram a conhecer as circunstâncias que envolveram a prisão e o desaparecimento de filhos, pais e demais parentes, pessoas que se lançaram à combativa atuação política e que defenderam idéias consideradas contrárias à vonta-de política imposta pelo grupo detentor do poder e, nesse contexto, fo-ram detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas haja notícias.

O intervalo histórico delimitado pela própria lei faz suscitar a lem-brança de alguns atos típicos de um regime ditatorial: supressão das liber-dades públicas, perseguição política, prisão, tortura, “desaparecimento” e morte, sendo que, em muitos dos casos, sequer se lograva localizar os restos mortais da vítima, peregrinando, seus parentes, numa incessante

13 Com a redação dada pela Lei 10.536/2002, o prazo, que inicialmente compreendia o período de 02 de setembro de 1961 até 15 de agosto de 1979, estendeu-se até a data coincidente com a da promulgação da Constituição da República de 1988.

14 Por força do referido instrumento legal, a União instituiu a Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos Políticos com a atribuição de proceder ao reconhecimento de pessoas desaparecidas, não relacionadas no Anexo da própria Lei; das pessoas que, por terem participado, ou por terem sido acusadas de participação, em atividades políticas, tenham morrido por causas não-naturais, em dependências policiais ou assemelhadas; das que tiveram suas vidas ceifadas em virtude de repressão policial sofrida em manifestações públicas ou em conflitos armados com agentes do Estado e das que tenham falecido em decorrência de suicídio praticado na iminência de serem detidas ou em decorrência de seqüelas psicológicas resultantes de atos de tortura praticados por agentes do poder publico. Tem ainda a Comissão a atribuição de envidar esforços para a localização dos corpos de pessoas desaparecidas caso haja indícios quanto ao local em que possam estar depositados.

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A Tortura no Direito Internacional e no Direito Interno

jornada, a buscar, em repartições públicas, dependências policiais etc, informações sobre os desaparecidos políticos.

Nessecontexto,integra,aLeinº9.140/95,omodelodejustiçareparadora em razão de grave violação de direitos fundamentais.

Feita essa breve digressão, passa-se a discorrer sobre as diver-gênciasdeinterpretaçãoeaplicaçãodaLeinº9.140/95,e,nessesentido,tem-se verificado, em alguns casos, uma discussão em torno do prazo prescricional para o ajuizamento de ações indenizatórias que, segundo a jurisprudência, foi reaberto pelo referido Diploma. Com efeito, a União temsustentadoquetalprazo,apartirdoadventodaLei º9.140/95,éqüinqüenalemobservânciaaoart.1ºdoDecretonº20.910/32,afirman-doaindaqueareaberturadosprazosprescricionaispelaLeinº9.140/95tem como marco inicial a data dos fatos e somente se aplica aos desapa-recidos políticos e não ampara as pessoas (vítimas) que estejam vivas.

O STJ, entretanto, aplicando entendimento diverso, fixa como marcoinicialdoprazoprescricionaladatadepublicaçãodaLei9.140/95,sobofundamentodequesomentecomaediçãodaLei9.140/95équesurgiu o direito público subjetivo a pleitear judicialmente a reparação pelos atos de atrocidade perpetrados durante o regime militar (RESP 524.889 - PR). Também tem afastado ainda a incidência do prazo qüin-qüenaldoDecretonº20.910/32aojuízodeque,emsededeviolaçãode direitos fundamentais, a imprescritibilidade deve ser a regra. Por fim, vementendendo,aCorteSuperior,queaLeinº9.140/95nãolimitouseualcance aos desaparecidos políticos, e sim abrangeu todas as ações inde-nizatórias decorrentes de atos arbitrários cometidos durante a ditadura política brasileira, incluindo-se os que foram submetidos a medidas cons-tritivas de liberdade e sofreram torturas naquele período. Nesse sentido, confiram-se os precedentes abaixo transcritos:

ADMINISTRATIVO. ATIVIDADE POLÍTICA DURANTE A DITADURA MILITAR. PRISÃO E TORTURA. INDENIZA-ÇÃO. LEI Nº 9.140/1995. INOCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. REABERTURA DE PRAZO. I - "Em casos em que se postula a defesa

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de direitos fundamentais, indenização por danos morais decorrentes de atos de tortura por motivo político ou de qualquer outra espécie, não há que prevalecer a imposição qüinqüenal prescritiva. " (REsp nº 379.414/PR, Relator Ministro JOSÉ DELGADO, DJ de 17/02/2003, p. 225)...II - O artigo 14 da Lei nº 9.140/95 não restringiu seu alcance aos desaparecidos políticos, pelo contrá-rio, ele abrangeu todas as ações indenizatórias decorrentes de atos arbitrários do regime militar, incluindo-se aí os que sofreram constrições à sua locomoção e torturas durante a ditadura militar. Em assim fazendo, reabriram-se os prazos prescricionais quanto às indenizações pleiteadas pelas pessoas ilegalmente presas e torturadas durante o período. III - Recurso especial improvido. (REsp 529.804/PR, rel. Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, unânime, julgado em 20/11/2003, DJ de 24/05/2004).

ADMINISTRATIVO. ATIVIDADE POLÍTICA. PRISÃO E TOR-TURA. INDENIZAÇÃO. LEI Nº 9.140/1995. INOCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. REABERTURA DE PRAZO. 1. Ação de danos morais em virtude de prisão e tortura por motivos políticos, tendo a r. sentença extinguido o processo, sem julgamento do mérito, pela ocorrência da prescrição, nos termos do art. 1º, do Decreto nº 20.910/1932. O decisório recorrido entendeu não caracterizada a prescrição. 2. Em casos em que se postula a defesa de direitos fundamentais, indenização por danos morais decorrentes de atos de tortura por motivo político ou de qualquer outra espécie, não há que prevalecer a imposição qüinqüenal prescritiva. 3. O dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respei-to à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais conseqüentes da sua prática. 4. A imposição do Decreto nº 20.910/1932 é para situações de normalidade e quando não há violação a direitos fundamentais protegidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e pela Constituição Federal. 5. O art. 14, da Lei nº 9.140/1995, reabriu os prazos prescricionais no que tange às indenizações postuladas por pessoas que, embora não desaparecidas, sustentem ter participado ou ter sido acusadas de participação em atividades políticas no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e, em conseqüência, tenham sido detidas por agentes políticos. 6. Inocorrência da consumação da prescrição, em face dos ditames da Lei nº 9.140/1995. Este dispositivo legal visa a reparar danos causados pelo Estado a pessoas em época de exceção democrática. Há de se consagrar, portanto, a compreensão de que o direito tem no homem a sua preo-cupação maior, pelo que não permite interpretação restritiva em situação de atos de tortura que atingem diretamente a integridade moral, física e dignidade do ser humano. 7. Recurso não provido. Baixa dos autos ao Juízo de Primeiro Grau. (REsp 379.414/PR, rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, maioria, julgado em 26/11/2002, DJ de 17/02/2003). (grifei)

APELAÇÃO CÍVEL Relator DESEMBARGADOR FEDERAL

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PAES RIBEIRO Órgão Julgador SEXTA TURMA Publicação 23/06/2003 D.J. p. 131 Data da Decisão (07/04/2003). CONSTITUCIONAL, AD-MINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. DITADURA MILI-TAR.PERSEGUIÇÃO POLÍTICA, PRISÃO E TORTURA, ANIS-TIA, DANOS MATERIAIS E MORAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. RELAÇÃO DE CAUSALIDA-DE DEMONSTRADA. CARÊNCIA DE AÇÃO NÃO CARAC-TERIZADA. NÃO-OCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO INDENI-ZAÇÃO DEVIDA. 1. Subsiste o interesse processual dos anistiados políticos de ingressar em juízo, objetivando a reparação por dano material, mesmo após o advento da Lei 10.559/02, prevê o pagamento de indenização em casos tais. Isso porque o legislador, ao condicionar o pagamento, via administrativa, à aceitação do valor da forma legalmente estabelecidos, não teve a intenção (nem poderia fazê-lo) de elidir o interesse desses cidadãos de continuar o pleito na via jurisdicional, com o escopo de obter a indenização no valor que consideram devido. 2. É inaplicável o prazo qüinqüenal previsto no Decreto nº 20910/32 nas ações em que se busca o pagamento de indenização em face de perseguição política, prisão e tortura durante o regime militar. Nesses casos, (...) Da mesma forma, a alegação de prescrição também não merece prosperar. Isso porque, não obstante ter sido apontado o ano de 1970 como sendo o ano do desaparecimento de Marcos Antônio Dias Baptis-ta, sua morte só veio a ser oficialmente reconhecida pela Lei 9.140, publicada no D.O.U. de 05 de dezembro de 1995, o que, pelo princípio da actio nata, obsta o acolhimento dessa prejudicial de mérito, porquanto, antes do reconhecimento oficial da aludida morte, não se poderia computar o prazo prescricional para a propositura da respectiva ação de indenização.

Nesse passo, a prática da tortura, e demais atos arbitrários no contexto do regime de exceção democrática, representou e representa grave atentado a um dos mais expressivos dos direitos fundamentais, uma flagrante ofensa à dignidade da pessoa humana, valor intocável que foi alçado a um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CR, artigo 1º, inciso III) e sem o qual não se assegura o mais elementar atribu-to que se deve conferir ao ser humano que é o de possuir uma existência digna. O entendimento favorável à imprescritibilidade, no plano da justi-ça reparadora em análise, almeja garantir a real observância à prevalência de um direito fundamental universal.

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conclusão

Considerando que a proibição da tortura está profundamente enraizada no direito interno e internacional e representa uma negação ilegítima, arbitrária e inaceitável dos direitos humanos, devem os Esta-dos, paralelamente à proteção que se exercita nos modelos de justiça punitiva e de justiça reparadora, honrar as suas obrigações internacio-nais, respeitar as regras do jus cogens e dos tratados internacionais sobre direitos humanos, adotando as medidas adequadas e suficientes para impedir e reprimir a prática da tortura e minorando, quando já consu-mado o ilícito, as conseqüências causadas por este ato repulsivo, sem olvidar a devida prestação de assistência às vítimas e punição dos in-fratores. Pela pertinência com a linha de exposição que se desenvolve, oportuna a recomendação de Flávia Piovesan, notadamente sobre algu-mas das medidas adotáveis no plano doméstico, confira-se:

...Seja no Brasil, Abu Ghraib ou Guantánamo, a prática da tortura se manterá na medida em que se assegurar a impunidade de seus agentes. Como já disse o então relator especial da ONU, Nigel Rodley, a tortura é um “crime de oportu-nidade”, que pressupõe a certeza da impunidade. O combate ao crime de tortura exige a adoção pelo Estado de medidas preventivas e repressivas, sob o atento monitoramento da sociedade civil. De um lado, é necessária a criação e manu-tenção de mecanismos que eliminem a “oportunidade” de torturar, garantindo a transparência do sistema prisional-penitenciário. Por outro lado, a luta contra a tortura impõe o fim da cultura de impunidade, demandando do Estado o rigor no dever de investigar, processar e punir os seus perpetradores, bem como de reparar a violação. Enquanto persistir a tortura em dependência policial ou prisional e enquanto se tolerar que os condenados a pena privativa de liberdade devam ter uma pena adicional por meio de tortura, maus tratos e condições degradantes, os padrões democráticos e civilizatórios restarão fortemente comprometidos. Isto porque a tortura revela, sobretudo, a perversidade do Estado que, de guardião da legalidade e de direitos, converte-se em atroz violador da legalidade, ao afrontar o direito fundamental à integridade física e mental de toda e qualquer pessoa, lançando-se no marco da delinqüência, no brutal exercício da violência, que avilta a consciência ética contemporânea...15

15 PIOVESAN, Flávia. Combate à tortura. Disponível em: <http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=429&Itemid=2.> Acesso em 12.10.2008.

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O direito de não ser torturado, portanto, é um direito humano fundamental que requer proteção a qualquer tempo e em todas as cir-cunstâncias. E o repúdio a essa odiosa prática - intensamente exercida noperíododelimitadopelaLei nº 9.140/95,mas ainda presente emtempos atuais16 -, deve se materializar de forma ininterrupta e efetiva em todas as esferas, tanto no direito interno dos Estados quanto no Direito Internacional.

TONy GEAN BARBOSA DE CASTRO

Delegado de Polícia Federal e Professor de Regime Jurídico Discipli-nar e de Direitos Humanos na Academia Nacional de Polícia.

E-mail: [email protected]

ABSTRACT

This article has the aim to bring a few comments about the treatment given to torture in international and Brazilian laws. Brief comments will be exposed about the discipline brought by Laws 9.455/97 and 9.140/95, legal instruments that deal respectively with the torture criminalization and model of restorative justice to victims of persecution and torture practiced during the ditatorial regime.

Keywords: Torture. Law. Domestic. International. Justice. Punitive. Restorative.

rEfErências

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16 Assinala ainda, com maestria, Flávia Piovesan que “diversamente da prática da tortura perpetrada durante o regime militar, que era orientada por critérios político-ideológicos, a prática da tortura, na era da democratização, orienta-se fundamentalmente por critérios econômico-sociais, com forte componente étnico-racial, na medida em que suas vítimas preferenciais, conforme relatórios das Ouvidoriais de Polícia, são os jovens, negros e pobres.” PIOVESAN, Flávia. Op. cit.

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83ISSN 1983-1927

Brasília, v. 2, n. 1, p. 83-95, jan./jun. 2009.Recebido em 27 de outubro de 2008.Aceito em 3 de fevereiro de 2009.

rEdução da violência policial BasEada na intEragEncialidadE da polícia com a comunidadE

Leandro Miranda Ernesto

D

RESUMO

O presente trabalho de pesquisa acadêmica tem por escopo investigar, dentre as políticas de segurança pública existentes, o modelo de policiamento comunitário, especificamente no que concerne a redução da violência policial baseada na interação polícia-comunidade, considerando que a implementação de condições efetivas e duráveis de segurança pública depende de ações fundamentalmente democráticas com a parceria da comunidade.

Palavras-chave: Violência. Conflito. Policiamento comunitário. Segurança pública. Polícia.

introdução

Os motivos de ordem teórica e empírica que deram impulso à realização do presente artigo remontam as incessantes violações aos di-reitos dos cidadãos perpetradas pelo Estado, especialmente pela polícia, em nome do “combate à criminalidade”1, ensejando no distanciamento

1 Tipo de violência presente nas organizações policiais militares. É a prática da dominação, decorrente da ideologia do “combate ao inimigo” e disseminada em larga escala entre as organizações policiais, reafirmando a crença de que um verdadeiro Estado de Guerra legitima o uso exorbitante da força em nome da contenção da criminalidade. A esse respeito, em se tratando da organização policial militar do Brasil:

(...) as razões de tal circunstância remontam a história da corporação que, desde a década de 30 é considerada força auxiliar e reserva do Exército. É sabido que, durante a ditadura mili-tar (1964-1985), a Polícia Militar atuou na repressão política e assimilou, radicalmente, a ideologia da segurança nacional. Por conseguinte, o conceito de guerra interna foi transferido para a atividade policial. A repressão à criminalidade comum se contaminou da filosofia de combate ao inimigo, em detrimento do exercício regular da função policial. Desde o inicio da formação dos policiais, o treinamento volta-se para a criação de um sentimento de culpa

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entre essa instituição e a comunidade. Nesse contexto, tem como escopo analisar a aproximação da polícia com a comunidade, inserida dentro de um tipo específico de política pública, a polícia comunitária, policiamen-to comunitário ou polícia cidadã, que, em tese, contribuirá para a redução da violência2 policial. O trabalho se justifica, pela intenção de investigar esse tipo específico de política pública, por meio de uma experiência estrangeira que tem – reconhecidamente – logrado êxito, em termos de satisfação do cidadão, o que, conseqüentemente acarreta a redução da violência policial.

O Estado, principalmente por suas polícias, está tradicionalmente alinhado no centro da análise da violência, vez que ele detém o monopó-lio da violência física. Não obstante, freqüentemente as polícias recorrem à violência com abuso ou excesso, causando uma disfunção desse instru-mento de manutenção da lei e da ordem. Com efeito, a problemática do presente trabalho reside em: de que forma o policiamento comunitário pode reduzir a violência policial no Brasil?

O uso da força por policiais é permitido para o controle da ordem pública e cumprimento da lei. Porém esse uso deve ser moderado e so-frer um rigoroso controle a fim de que sejam evitados o abuso de poder e violações dos direitos fundamentais. Mesmo nos momentos críticos de perturbação da ordem pública, os direitos à vida, à incolumidade física e a liberdade dos cidadãos devem ser preservados. Ao contrário, ações policiais em todo país deixam milhares de mortos e feridos, sem que os responsáveis sejam punidos.

e castigo, que serve para reforçar a metáfora bélica da destruição do inimigo. (TELLES, 1999, p. 292).

2 Preliminarmente, impende ressalvar que em vários momentos do texto o leitor vai se deparar com repetições de palavras, principalmente com o termo “violência” e “policiamento comunitário”, em face de sua precisão terminológica, contida na fonte.

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A violência policial no Brasil se configura como um problema que deve ser de responsabilidade não só da polícia, mas de toda a socie-dade. Nesse contexto, o policiamento cidadão surge como uma alterna-tiva crível na redução da violência policial, já que é um instrumento que tem como conseqüência a interação entre o policial e o cidadão.

Para elaboração do trabalho elegeu-se o método qualitativo de pesquisa no seu desenvolvimento, vez que se buscou diferenciar o ob-jeto pesquisado dos demais, utilizando-se para tanto a comparação. Para Durkhein (apud QUEIROZ, 1992, p. 24), o método comparativo é “(...) o único que convém a sociologia”.

Quanto à metodologia de abordagem, foi utilizado o método de-dutivo. Procedeu-se do geral para o particular. Assim, a lógica seguida no artigo foi organizada, partindo-se do geral para o específico, de modo que cada capítulo traga premissas que permitam chegar à conclusão.

conflito

Preliminarmente, impende esclarecer que as normas são condi-ção sine qua non para a vida em sociedade. Elas ensejam a previsibilidade, vez que a imprevisibilidade engendra o caos. A sociedade se mantém pela ordem. A manutenção da ordem é função essencial do governo e é um critério para verificar se existe ou não governo. A ordem e o conflito são parte da constituição da sociedade. O conflito é uma parte integrante – constituída – da sociedade.

A escassez de bens é natural. Os homens são desiguais e que-rem os bens limitados. Alguns homens conseguem mais bens que outros. Com efeito, nasce o conflito. Nesse diapasão, cabe ressaltar que o confli-to tem importância sociológica, vez que ele produz ou modifica grupos de interesse, uniões, organizações. Por outro lado, é uma forma de socia-

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ção, e até interações negativas advindas do conflito são positivas. Todas as formas sociais aparecem sob nova luz, quando vistos pelo ângulo do caráter sociologicamente positivo do conflito (SIMMEL,1983, p.123).

Não obstante, as causas do conflito são os fatores de dissocia-ção, verbi gratia, ódio, inveja, necessidade. O conflito, dessa forma, está destinado a resolver as divergências, buscando a unidade, mesmo que aniquilando uma das partes.

Para Simmel (1983, p.123), unidade é a soma do consenso com o conflito, da harmonia com a desarmonia, do “com” em face do “contra”. Para ele, a sociedade se constitui pela interação, se constitui de indivíduos em processo de interação. Assim, o conflito é algo positivo. Ele enseja a interação social, amor e ódio. Já a indiferença é negativa, vez que é o fim da interação. Uma sociedade sem conflito é irreal, utópica.

(...) o consenso e a concordância dos indivíduos que interagem, em contraposição a suas discordâncias, separações e desarmonias. Mas também chamados de unidade a síntese total do grupo de pessoas, de energias e de formas, isto é, a totalidade suprema daquele grupo, uma totalidade que abrange tantos as relações estritamente unitárias quanto as relações duais. (MORAES FILHO, SIMMEL,1983, p.125).

Noutro giro, a discordância é oposição. É a síntese total do grupo de pessoas, que tem relações unitárias e duais. Unidade e discordância são formas de interação. O resultado dos dois é a soma.

As pessoas são desiguais, daí torna-se inevitável o conflito. Des-tarte, nem todo conflito acarreta a transformação social, por exemplo, uma briga de casal. Este não vive sem um pouco de desarmonia, vez que é constitutivo da própria união. Nesse contexto, o conflito tem um papel integrador, que é seu papel mais importante – e não a funcionalidade – já que a integração tem a idéia da unidade.

De suma importância é a idéia de se distinguir o conflito da vio-lência. Em rápida análise, pode-se dizer que, basicamente, o que os dis-tingue é a interação que está presente no conflito e ausente na violência. No conflito, permite fazer e refazer. Na violência, é inviabilizada a inte-

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ração, porque ela aniquila o outro. Enfim, a violência será analisada no capítulo a seguir.

violência

Segundo Michaud (1989, p. 07), o termo violência designa fatos e ações e, de outro lado, designa uma maneira de ser da força, do sentimen-to de um elemento natural – violência de uma paixão ou da natureza. No primeiro caso ela opõe-se à paz, à ordem que ela perturba e questiona. No segundo, é a força brutal que desrespeita as regras.

Pela etimologia da palavra, violência é força. Quanto mais apro-ximamos violência da força, cessam os julgamentos de valor para dar lugar à força não qualificada, exagerada. Assim, a força se torna violenta quando passa da medida ou perturba a ordem. A violência é, antes de tudo, uma questão de agressão e maus tratos, por isso ela deixa marcas. Contudo, como as normas que definem violência variam muito, podem haver tantas formas de violência quanto foram as espécies de normas.

É difícil definir a violência, mas nem por isso ela é indefinível. Não obstante, Michaud a definiu como:

Há violência quando, numa situação de interação, um ou mais atores agem de maneira direta ou indireta, maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, seja em sua integridade física, moral, em suas posses ou em participações simbólicas e culturais. (MICHAUD, 1989, p. 10 e 11).

A violência transforma alguém em algo, i.e, objetização. Uma das partes transforma o outro em objeto, considerado como inferior. Na vio-lência não há alteridade, o outro. Passa-se a ver o outro como objeto e, portanto, não há a interação. Podem existir conflitos que acabam em violência e podem existir violências que não se iniciam em conflitos.

Um dos fatores que leva a violência é a imprevisibilidade. Con-tudo, se há qualquer limite à violência, aí já existe um fator socializante, mesmo que somente enquanto qualificação da violência. (MORAES FI-

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LHO,1983,p.132).Aviolênciasurgedafaltadeinteraçãooudafaltadeinteração surge à violência. Ela é a falta de relação social. O diferente é percebido como inferior, de sujeito a objeto.

Como noção de caos, a violência envolve uma idéia de distância das normas. Como ela se distancia das normas, deixa entrever a amea-ça do imprevisível. Ela introduz o desregramento, o caos. Também en-contramos imprevisibilidade na idéia de insegurança. O sentimento de insegurança corresponde à crença de que tudo pode acontecer. Aqui, imprevisibilidade, caos e violência estão juntos.

Hodiernamente,amaioriadasconsideraçõessobreaviolênciaseconcentra na criminalidade, cujo aumento quer denunciar. Na verdade o que vem ocorrendo na prática é a pacificação da sociedade, vez que os costumes se civilizaram. O recrudescimento da insegurança, principal-mente pela opinião pública, não tem ligação com o volume efetivo da criminalidade, mas sim com as normas a partir das quais são concebidos os fenômenos criminosos.

Por outro lado, a criminalidade urbana se relaciona com a brutali-dade da vida, à pobreza e as carências, e também se deve à marginalização dos grupos desenraizados pelas transformações agrárias, as catástrofes naturais e as epidemias.

Sob a égide da experiência histórica, pode-se concluir que o que realmente está ocorrendo é a diminuição da violência criminosa, conse-qüência da crescente civilização dos costumes. Logo, se há aumento da violência, ela não se encontra ao lado da criminalidade. O mais provável é que a sociedade moderna tornou-se sensível demais a uma insegurança, quenuncafoitãofraca(MICHAUD,1983,p.38).

Violência Policial

Os casos de violência policial no Brasil – invariavelmente con-tras as populações mais pobres ou contra grupos discriminados como

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os negros, as prostitutas, os travestis, homossexuais etc. – alcançaram há muito patamares intoleráveis. Ao final deste século, convivemos ainda com a prática da tortura sobre suspeitos ou presos comuns. O emprego da força e o uso de armas de fogo por parte das nossas polícias é, em regra, indiscriminado e abusivo.

Na problemática apresentada, é forçoso analisar um tipo especí-fico de violência, que é a violência política, mais especificamente a vio-lência do poder ou violência de cima. Essa se funda sob o argumento de manutenção da ordem, repressão, terror, tirania, golpes etc. Trata-se da violência para se estabelecer o poder político, mantê-lo ou fazê-lo funcionar. A idéia de violência do poder é mais ampla que a violência de Estado.

Com o progressivo desaparecimento das multidões espontâneas ou procedente de uma comunidade sem identidade afirmada nem obje-tivo claramente político em benefício de grupos definidos profissional e politicamente, sustentando posições determinadas, simultaneamente, a responsabilidade do controle e da repressão passa das Forças Armadas para as polícias. Nesse diapasão, se a violência política é mais organizada, a repressão torna-se mais seletiva e mais adaptada.

Quando a revolta assume uma amplitude que chega a ameaçar o Estado, a repressão torna-se feroz e extensa. A intensidade e a ferocidade da repressão estão, na verdade, ligadas à vontade do Estado de afirmar a sua supremacia e o monopólio no poder. O chicote e o patíbulo foram os principais símbolos do Estado Moderno.

Dente as violências físicas se insere a violência policial, que junto com o roubo, são a maioria das existentes na criminalidade.

O Estado, especialmente por suas polícias, está tradicionalmente no centro da análise da violência, vez que ele detém o monopólio da violência física. Segundo Max Weber (apud WIEVIORKA, 1997, p. 18), o Estado:

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(...) só pode ser definido sociologicamente pelo meio específico que lhe é próprio, assim como a todo grupo político, a saber, a violência física (...). Em nossos dias, a relação entre Estado e violência é particularmente íntima. (...) É preciso conce-ber o Estado contemporâneo como uma comunidade humana que, nos limites de um território determinado (...) reivindica com sucesso para seu próprio benefício monopólio da violência física legítima.

Um dos maiores desafios do controle democrático da violência e, por conseguinte, da instauração do Estado de direito nesta sociedade re-side nesse monopólio estatal de violência física legítima. Isso porque esse desafio se apresenta sobre dupla tarefa: por um lado, o efetivo controle das forças repressivas do Estado – que no controle da ordem pública e da lei pelo uso da violência, não pode deixar de respeitar os direitos humanos do cidadão, nem utilizá-la com abuso de poder – e, por outro, o efetivo controle da violência endêmica da sociedade civil. (ADORNO, 2002, p. 282).

Noutro giro, o Estado, pela intervenção de seus agentes, pode praticar ou encobrir uma violência ilegítima, excessiva, contrária a seu discurso oficial, como acontece, por exemplo, em países democráticos onde existem a tortura, os abusos policiais etc.

Esses excessos policiais, desencadeados por meio da violência po-licial, ensejam em ódio e raiva de quem é paciente dela, pelo forte senti-mento de injustiça, vez que quem deveria protegê-los é quem os atacam. Assim, o uso da força por policiais é permitido para o controle da ordem pública e cumprimento da lei. Destarte, este uso deve ser moderado e so-frer um rigoroso controle a fim de que sejam evitados o abuso de poder e violações aos direitos fundamentais.

Por derradeiro, pode-se dizer que a violência policial, como alhu-res analisado, enseja a ausência e a inviabilidade de interação entre a po-lícia e a comunidade. Reciprocamente, surge uma aniquilação de ambos como ser humano. Deixa de existir alteridade entre eles. Sinalagmatica-mente, o cidadão é visto pela polícia por rótulos, objetivado, transfor-mado em algo e, por outro lado, o cidadão também rotula o policial e o

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objetiva, transformando-o, da mesma forma, num objeto. E por ser uma questão de agressão e maus tratos, ela deixa marcas duradouras.

policiamEnto comunitário

O recrudescimento da violência e a difusão do sentimento de in-segurança assumem proporções endêmicas, em diversas áreas do país, particularmente nos grandes centros urbanos. Com efeito, segurança pú-blica vem se tornando um grande desafio para os governos. A implemen-tação de políticas públicas de segurança pública, nesse sentido pressupõe um conjunto de ações governamentais que não devem se limitar a atua-ção das instituições policiais.

Com a crise do modelo repressivo de gestão da segurança públi-ca, buscou-se novas alternativas focadas na prevenção. Em consonância com o Estado Democrático de Direito e inspirado na doutrina gerencial de administração, surgiu à filosofia da polícia cidadã, policiamento comu-nitário ou polícia comunitária como um modelo moderno e democrático de gerir a segurança pública. Por outro lado, a Constituição Federal de 1988 definiu segurança pública como sendo “dever do Estado, direito e res-ponsabilidade de todos”.3

No policiamento comunitário o cidadão passa a ser visto como cliente dos serviços prestados pelo Estado. Em contrapartida, busca-se uma parceria polícia-cidadão na resolução dos problemas da comuni-dade, em que esse passa a ser co-responsável pela segurança pública. A parceria com a comunidade mobiliza o público a fornecer informações para a polícia, que gera a proatividade dela, ou seja, a antevisão do crime e sua prevenção.

Nesse sentido, o policiamento comunitário surgiu como um “novo paradigma de prevenção criminal, compreendendo uma nova po-lícia, voltada para a satisfação da comunidade, e seguindo princípios éti-cos e democráticos”. (CERQUEIRA, 1998, p. 90).

3 Constituição Federal Brasileira de 1988, art. 144.

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Redução da Violência Policial Baseada na Interagencialidade da Polícia com a Comunidade

A interação entre a polícia e os cidadãos tem como pressuposto, também, a redução do hoje elevado número de mortos e feridos entre policiais e civis no cumprimento do dever.

rEdução da violência BasEada na intEragEncialidadE da polícia com a comunidadE

Interagir significa agir reciprocamente, ou seja, uma ação que se exerce mutuamente entre duas pessoas ou mais coisas, ou duas ou mais pessoas. Com a implementação do envolvimento dos moradores com a polícia, criando uma confiança mútua, essa passa a dispor de competên-cias e recursos não-penais para o exercício de suas funções e, ao mesmo tempo, a ter voz na discussão de políticas públicas, com reflexo, direto ou indireto, sobre a sua esfera de atuação. A constituição de uma rede de prevenção não deve estar necessariamente centrada no eixo policial. Pelo contrário, a polícia é o ator central, mas deve ser vista como parceira de coalizão de sujeitos.

A interagencialidade pressupõe que o tema da segurança pública deixe de ser visto como questão de polícia, para converter-se em questão de política. As disposições a seguir têm por objetivo delimitar o alcance da interação como elemento que diminui a resistência entre a polícia e o cidadão e, conseqüentemente na redução da violência policial contra essa comunidade.

(...) é consenso em todo o mundo que a eficiência da polícia está diretamente ligada a sua proximidade com a população e o alto grau de confiança alcançado junto à comunidade. Em regra geral, projetos de policiamento comunitário emergiram em conseqüência da deterioração da imagem policial frente ao cidadão. (TROJANO-WICZ; BUCQUEROUX, 1994, p. 15).

Essa imagem é ainda mais arranhada quando a polícia se utiliza do monopólio da violência com abuso ou excesso.

O policiamento comunitário muda o papel da polícia. Ela passa a adotar uma postura proativa – intervenção sobre os elementos da in-

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segurança, em que o policial exerce as funções de planejamento, solução das demandas, organização da comunidade em prol do objetivo comum e intercâmbio de informações. Ainda segundo Bayley (2007, p. 120), “(...) nós temos que falar em policiamento inteligente e policiamento inteligente leva ao po-liciamento com respeito ao público, e policiamento com respeito ao público requer res-ponsabilização (accountability)”.

Com a interagencialidade entre a polícia e o cidadão, rompe-se o distanciamento e a hostilidade e se estabelece um estilo de policiamento fundadonaintegraçãoecooperaçãoentreaspartes.Havendoaintera-ção, não há violência, vez que essa é a ausência de interação.

conclusão

Conforme lógica seguida por este estudo, o aspecto fundamental desta conclusão refere-se à aproximação da polícia à comunidade, partin-do do pressuposto que essa aproximação resulta na interação de ambos e, conseqüentemente, não havendo violência abusiva ou excessiva. Não obstante, o que leva a eficiência da polícia é a colaboração do público, para que a polícia possa receber a cooperação social, ao invés da hostili-dade, para que não responda com violência desmedida.

O policiamento comunitário, neste diapasão, traz vários benefí-cios potenciais tanto para a comunidade quanto para a polícia, não só por desenvolver um consenso sobre o uso moderado da força física em cada comunidade, como: coibindo desordens públicas, melhorando a imagem da polícia frente à comunidade, criando a confiabilidade mútua, melho-rando a prevenção do crime, aumentando a atenção ao público por parte da polícia, aumentando a responsabilização da polícia frente à comuni-dade, dentre outros.

Por outro lado, cabe frisar que a linha entre o sucesso do policia-mento comunitário – no sentido de reduzir a violência policial – e o seu absoluto fracasso é demasiadamente tênue, vez que é apoiada nos laços de confiança estabelecidos entre a polícia e a comunidade. O policial

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Redução da Violência Policial Baseada na Interagencialidade da Polícia com a Comunidade

adquire senso de responsabilidade com o público, comprometendo-se a respeitar o cidadão e a suprir suas expectativas. Destarte, a ocisão dessa credibilidade mútua, enfraquece os laços que os une. Cabe observar que, o estreitamento dessa relação de confiança depende, essencialmente, de um amplo processo de reeducação, tanto dos policiais, quanto da co-munidade, o que impõe quebra de paradigmas, como o do “combate ao criminoso”, consolidado no seio das forças policiais.

Por derradeiro, apesar das dúvidas quanto ao sucesso ou não des-se modelo, reconhecendo que ele tem limitações, não encontramos uma política pública de segurança pública tão comprometida com os direitos humanos, com a redução da violência policial, melhora da imagem da po-lícia e com o bem estar do cidadão como o policiamento comunitário.

LEANDRO mIRANDA ERNESTO

Bacharel em Direito pelo Centro universitário de Brasília, concentração em Direito Penal, e Especialista em Segurança Pública e Cidadania pela universidade de Brasília, é Agente de Polícia Federal, lotado na Corregedoria-Geral da Polícia

Federal em Brasília-DF.

E-mail: [email protected]

ABSTRACT

This paper aims at investigating, among the existing homeland security policies, the method of neighborhood policing, specially regarding to the decreasing of policing violence based on the police-neighborhood interaction, taking into account that the implementation of durable and effective homeland security conditions depends upon fundamentally demo-cratic actions with the partnership of the neighborhood..

Keywords: Violence. Conflict. Neighborhood policing> Homeland security. Police.

rEfErências

ADORNO, Sérgio. “Monopólio Estatal da Violência na Sociedade Brasileira Contemporânea”. In: Miceli, S. (org.). O que ler na Ciência Social Brasileira, vol. VI, São Paulo: ANPOCS, Ed. Sumaré; Brasília: CAPES, 2002.

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BAYLEY, D. Somente respeitando o público a polícia vai ser eficaz na prevenção do crime (entrevista concedida a Elizabeth Leeds. In: Revista Brasileira de Segurança Pública, ano 1, Ed. 1. (Estudo Dirigido), 2007.

CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Do patrulhamento ao policiamento comunitário. Textos Fundamentais de Polícia, Coleção Polícia Amanhã, Fundação Ford, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1998.

MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ed. Ática, 1989.

MORAES FILHO, Evaristo; SIMMEL. A natureza sociológica do Conflito. São Paulo. Ed. Ática, 1983.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Reflexões sobre a pesquisa sociológica. 2ª série. São Paulo: CERU, 1992.

TELLES, Maria Eugênia Raposo da Silva. “Proposta para uma nova política de segurança pública”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 16, São Paulo: RT, 1999.

TRAJANOWICZ, Robert; BUCQUEROUX, Bonnie. Policiamento comunitário: como começar. Tradução de Mina Seinfeld de Carakushansky. Rio de Janeiro: Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, ed. Parma, 1994.

WIEVIORKA, Michel. “O novo Paradigma da Violência”. In: Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, São Paulo, 1997.

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97ISSN 1983-1927

Brasília, v. 2, n. 1, p. 97-117, jan./jun. 2009.Recebido em 30 de outubro de 2008.Aceito em 3 de fevereiro de 2009.

atriBuição concorrEntE para a invEstigação dE crimEs ElEitorais

Miguel de Almeida Moura Senna

D

RESUMO

Artigo sobre a atribuição concorrente das polícias judiciárias estaduais e federal para a investigação de delitos eleitorais. É de senso comum o entendimento de que cabe apenas à Polícia Federal a apuração de crimes eleitorais. Quando posta em prática, esta idéia gera uma sobrecarga de de-mandas para a organização que, sem ter como atuar simultaneamente em todos os municípios no período eleitoral, acaba tendo dificuldades no tratamento da questão. No entanto, a legislação e os precedentes dos tribunais, especialmente as Resoluções do Tribunal Superior Eleitoral, têm apontado no sentido de que a Polícia Civil Estadual também tem atribuição para realizar investi-gações sobre crimes eleitorais. Em cima dessas bases jurídicas, razões de caráter político-criminal justificam essa atuação concorrente, especialmente nos municípios em que não há unidade da Polícia Federal. A Polícia Civil, por estar sediada em praticamente todos os municípios, conhece bem a comunidade e tem condições de produzir uma rápida investigação. Por outro lado, a Polícia Federal é uma instituição de âmbito nacional, vocacionada para enfrentar os delitos mais comple-xos, também no âmbito eleitoral. Essa atribuição concorrente dá ao Juiz, ou ao Promotor Eleitoral, a opção de acionar a instituição policial que julgar mais adequada para realizar a investigação criminal no caso concreto.

Palavras-chave: Crimes eleitorais. Atribuição investigativa concorrente. Polícia Federal. Polícia Civil Estadual. Fundamentação legal. Precedentes judiciais.

introdução

Nos dias 04 e 05 de outubro de 2007, o Tribunal Regional Elei-toral do Estado de Minas Gerais (TRE-MG) promoveu o “I Ciclo de Debates: A Participação da Polícia Federal no Processo Eleitoral”.

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Atribuição Concorrente para a Investigação de Crimes Eleitorais

Um dos oradores do evento foi o Delegado de Polícia Federal (DPF) Lázaro Moreira da Silva, que falou com a autoridade de quem trabalhara na Coordenação de Defesa Institucional da Polícia Federal (CGDI), até o início do ano de 2007. Essa coordenação tinha, entre ou-tras atribuições, a responsabilidade de coordenar as ações da Polícia Fe-deral (PF) referentes ao processo eleitoral no Brasil.

Em sua explanação, Lázaro mostrou as dificuldades enfrentadas na repressão aos delitos eleitorais no Brasil, especialmente nos municí-pios que não albergavam órgão da PF:

(...) Aqui é outro detalhe que é tema de discussão sempre. Quando no local da infração não existe órgão da Polícia Federal, e na maioria do País, os municípios não têm Delegacia de Polícia Federal. (...)

E um dos grandes problemas é que a Polícia Federal têm inquérito demais em matéria eleitoral. (...)

Hoje mesmo na palestra da manhã argumentou-se que a Superintendência aqui de Minas Gerais tem uma quantidade imensa de municípios, não sei se 300, para administrar.

Então toda ocorrência eleitoral de Prefeito, Vereador, em todos os municípios essas requisições vem para a Polícia Federal e é muito complicado. Até para nos dedicarmos às operações de combate a crimes eleitorais mais graves. Às vezes até investigação de boca-de-urna e outros crimes menores ficam aí por nossa conta. É outra coisa que tem que ser melhor discutida. (Grifos nossos).

Após identificar o problema, o palestrante ilustrou-o apresentan-do um levantamento estatístico, em que se constatava o aumento do nú-mero de inquéritos relativos a delitos eleitorais nos anos que se seguiam às eleições:

O próximo ponto é a estatística eleitoral. Quando eu estava na CGDI, não foi computada ainda 2005, mas é só para se ter idéia de que em determinados anos os inquéritos diminuem um pouco, depois aumentam e, é lógico, no ano depois das eleições geralmente aumentam. Em 2004, tivemos eleições para Prefeito e Vereador. Em 2005, tivemos o aumento do número de inquéritos. Havia 8.470 notícias de crimes a serem apurados pela Polícia Federal. (...)1

1 A sazonalidade dos crimes eleitorais também foi constatada pelo Coordenador Executivo de Investigações Criminais do FBI James Burrus. Ao dar uma entrevista sobre a atuação FBI nos crimes eleitorais, em 14.04.06, Burrus disse o seguinte:

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Por fim, o orador fez uma convocação para que se fossem debati-das soluções para a questão do excesso de inquéritos eleitorais envolvendo delitos de menor lesividade, conduzidos pela PF, a fim de que o órgão pu-desse investir mais tempo e esforços em ações de maior impacto social:

Então, nós temos que limpar a pauta, diminuir essa quantidade, buscar um meio de diminuir essa quantidade de procedimentos eleitorais para sobrar tempo para essas ações de maior impacto de uma investigação tratando do crime eleitoral.

Ao apresentar sua explanação, o DPF Lázaro Moreira diagnosti-cou com precisão um dos problemas que mais emperram o andamento e prejudicam a qualidade das investigações de crimes eleitorais: o excesso de inquéritos, especialmente aqueles relativos a delitos ocorridos em ci-dades que não são sede de Delegacia da PF.

a ExpEriência profissional

O problema relatado na palestra nos soa bastante familiar.

Durante os cinco anos em que estivemos lotados na Delegacia da Polícia Federal em Ilhéus (BA), fomos responsáveis pela apuração dos delitos eleitorais por um determinado período2. A situação que encontra-mos foi justamente aquela descrita na palestra.

During the 2004 presidential election year alone, we opened more cases than the previous four years combined. We're seeing all types of schemes—double voting, voter intimidation, ballot box stuffing, voting in someone else's name, using false corporate invoices to conceal the actual source of a campaign contribution.

Em uma tradução livre:Apenas no ano de 2004, quando houve eleições presidenciais, nós iniciamos mais investigações que nos quatro anos anteriores somados. Nós temos visto todos os ti-pos de falcatruas: eleitores que votam mais de uma vez, intimidação de eleitores, eleitores que colocam mais de uma cédula na urna, eleitores que votam se passando por outros, uso de doações simuladas de empresas para esconder a verdadeira fonte de financiamento eleitoral.

2 Na Delegacia de Ilhéus (DPF/ILS/BA) era utilizado um sistema de distribuição de inquéritos por especialização, onde cada assunto era tratado por apenas um DPF. Assim, apenas um DPF cuidava de todos os crimes eleitorais, além de outras matérias. No dia da eleição, contudo, todos os policiais trabalhavam nas ocorrências eleitorais.

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A Delegacia de Ilhéus abrangia setenta e quatro municípios das regiões sul e sudoeste do Estado da Bahia, com população de quase dois milhões de habitantes, em uma área de mais de cinqüenta e dois mil quilômetros quadrados3. Para se chegar a certos municípios era necessá-rio trafegar por mais quatrocentos quilômetros de estradas, partindo da Delegacia4.

As dificuldades operacionais da Delegacia eram aquelas já bem conhecidas nas organizações policiais: poucos servidores para o grande número de inquéritos, diversas operações policiais concomitantes, sobre-avisos, flagrantes etc.

A estas dificuldades cotidianas, no período pré-eleitoral, acres-centavam-se as diversas solicitações de atuação da “Federal” pelos candi-datos, partidos políticos, jornais locais e eleitores que provocavam requi-sições de Juízes e Promotores Eleitorais.

De fato, em praticamente todos os municípios da circunscrição a disputa eleitoral era bastante acirrada e despertava grandes paixões nas populações locais. Assim, no período pré-eleitoral havia um grande nú-mero de ocorrências, acusações entre os candidatos e acionamentos da PF. Passada a votação, restava um grande número de expedientes oriun-dos dos Juízos e Ministérios Públicos Eleitorais requisitando instauração de inquérito.

Assim, quando assumimos a presidência dos inquéritos eleitorais, passamos a nos dedicar ao estudo da questão, para encontrar formas de agilizar e melhorar a qualidade das investigações criminais.

Inicialmente constatamos que a maioria dos inquéritos versava

3 Na monografia o artigo “Lotações Críticas de Agentes de Polícia Federal”, publicado no volume 1 da Revista Brasileira de Segurança Pública e Cidadania, podem ser encontrados a população e a área de circunscrição de todas as unidades da PF.

4 A circunscrição de Ilhéus, com 74 municípios, abrangia 52.309,30 Km². A título de comparação, a extensão territorial era maior que a dos Estados de Sergipe 21.910,35 Km², Alagoas 27.767,66 Km², Rio de Janeiro 43.696,05 Km² e Espírito Santo 46.077,52 Km².

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sobre delitos de baixa periculosidade, decorrentes de “excesso de empol-gação” dos candidatos envolvidos. Assim, havia muitos casos de ofensas proferidasporumcandidatocontraooutro(art.326daLein.°4.737/65– Código Eleitoral – CE – pena: detenção até 6 meses), distribuição de panfletos no dia da eleição – “boca de urna” (art. 39, §5º, II da Lei n.º 9.504/95–detençãode6mesesa1ano),carreatanodiadaeleição(art.39,§5º,IdaLein.º9.504/95–detençãode6mesesa1ano),realizaçãode bingos por candidatos (art. 334 CE – pena: detenção de 6 meses a 1 ano), danos a placas de propaganda (art. 331 CE – pena: detenção até 6 meses) etc.

Nesses casos, passado o calor da disputa eleitoral, quando final-mente ouvíamos os supostos ofendidos, muitas vezes eles nos pediam para “retirar a queixa”, pois as forças políticas locais, antes adversárias, já haviam chegado a uma composição pós-eleitoral (composição esta que geralmente durava até o início da campanha eleitoral seguinte).

Somada a essa massa de infrações de menor potencial ofensivo, havia alguns casos de delitos altamente nocivos ao processo eleitoral, tais como a corrupção eleitoral – “compra de votos” (art. 299 CE – pena: reclusão até 4 anos), a falsidade documental (arts. 349 e 350 CE – pena: reclusão até 5 anos), a votação no lugar de outrem (art. 309 CE – pena: reclusão até 3 anos) etc.

Enquanto fazíamos o inventário da situação e realizávamos as apurações dos delitos eleitorais, passamos a perceber que, em alguns mu-nicípios da circunscrição, a Polícia Civil Estadual (PC), realizava um bom trabalho investigativo nessa seara. Especialmente nos delitos de menor potencial ofensivo, a ação célere da polícia local gerava bons resultados na repressão ao delito eleitoral.

Entusiastas da idéia do trabalho compartilhado, pesquisamos os fundamentos jurídicos e político-criminais da ação da PC nos crimes elei-torais, chegando às conclusões que apresentamos a seguir.

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fundamEntação Jurídica

As normas gerais

Segundo a doutrina, crimes eleitorais são aqueles que, tipifica-dos especificamente na legislação eleitoral, buscam atingir as eleições em qualquer de suas fases, isto é, desde o alistamento do eleitor até a diplo-mação do eleito (Rosa, 2008).

O crime eleitoral é uma espécie do gênero crime contra a ordem política e social5. Esse gênero delitivo é aquele em que o bem jurídico ameaçado é a segurança do Estado e a integridade de suas instituições políticas.Nestesentido,valecitaraliçãodeNelsonHungria,paraquem“os crimes eleitorais, exatamente apreciados, são, por conseqüência, cri-mescontraoEstadooucontraaordempolítica”(Hungria,1958).

No mesmo sentido, está o entendimento de Roberto Lyra, para quem “os crimes eleitorais ofendem ou ameaçam a ordem política” (Lyra, 1947).

A Constituição Federal, ao disciplinar as atribuições dos órgãos policiais, incumbiu à Polícia Federal a tarefa de apurar os delitos contra a ordem política e social:

Art. 144 (...) § 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:

I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou interna-cional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; (grifos nossos).

Portanto, se cabe à Polícia Federal apurar os delitos contra a ordem política (gênero), então lhe cabe apurar os delitos eleitorais (espécie).

5 Outros crimes contra a ordem política são aqueles previstos na Lei de Segurança Nacional – Lei n.º 7.170/83.

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No entanto, a legislação infraconstitucional, ao dar eficácia à nor-ma, sinalizou não se tratar de uma atribuição privativa da Polícia Federal.

Essa posição se depreende inicialmente da análise da Lei n.° 9.100/95,que,aoregulamentarasnormasparaarealizaçãodaseleiçõesmunicipais de 1996, deixou claro caber às polícias judiciárias (no plural) auxiliar a Justiça Eleitoral na apuração de delitos eleitorais:

Art. 81 (...) § 2º Para a apuração dos delitos eleitorais, auxiliarão a Justiça Eleitoral, além das polícias judiciárias, os órgãos da receita federal, estadual e municipal, bem como os tribunais e órgãos de contas, tendo os feitos eleitorais prioridade sobre os demais. (Grifos nossos).

Ora, no Brasil existem duas espécies de polícias judiciárias: a Polí-cia Federal e as Polícias Civis Estaduais. Assim, ao usar a expressão “po-lícias judiciárias” no plural, a norma estabeleceu não ser papel de apenas uma polícia judiciária, a PF, a apuração de delitos eleitorais.

Certamente que as polícias judiciárias devem auxiliar a Justiça Eleito-ral atuando no âmbito de sua atribuição legal: a apuração das infrações penais e da sua autoria, nos termos do art. 4º do Código de Processo Penal6.

EnquantoaLein.°9.100/95regulavaapenasadisputaeleitoraldoanoseguinte,aLein.°9.504/97–LeiGeraldasEleições–passouadisciplinar genericamente todos os pleitos subseqüentes. A lei nova apre-sentou texto semelhante à anterior sobre o tema:

Art. 94 (...) § 3º Além das polícias judiciárias, os órgãos da receita federal, es-tadual e municipal, os tribunais e órgãos de contas auxiliarão a Justiça Eleitoral na apuração dos delitos eleitorais, com prioridade sobre suas atribuições regulares. (Grifos nossos).

Assim, mais uma vez o ordenamento jurídico deixou clara a atri-buição concorrente das polícias judiciárias para a apuração dos crimes eleitorais.

6 As disposições do Código de Processo Penal devem ser aplicadas subsidiariamente ou supletivamente no processamento dos crimes eleitorais, conforme estabelece o art. 364 do Código Eleitoral.

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Contudo, há que se reconhecer que a legislação foi lacunosa, não disciplinando o espaço de atuação de cada entidade policial.

Das atribuições de cada polícia judiciária

Deacordocomoart.23,IXdoCódigoEleitoral,oTribunalSu-perior Eleitoral (TSE) possui competência para expedir instruções que auxiliem a aplicação da legislação eleitoral.

No âmbito desse poder de regulamentação, em 28.08.06, o TSE expediu a Resolução n.° 22.376. Essa norma, consolidando reiterada ju-risprudência pretérita, preencheu a lacuna legal, informando que, quando no local do delito não houver órgão da PF, a Polícia Civil Estadual terá atuação supletiva:

Art. 2º A Polícia Federal exercerá, com prioridade sobre suas atribuições regu-lares, a função de polícia judiciária em matéria eleitoral, limitada às instruções e requisições do Tribunal Superior Eleitoral, dos Tribunais Regionais ou dos Juízes Eleitorais.

Parágrafo único. Quando no local da infração não existir órgãos da Polícia Fede-ral, a Polícia Estadual terá atuação supletiva. (Grifos nossos).

A própria jurisprudência explica em que consiste essa atuação su-pletiva. De acordo com os julgados do TSE, o Delegado de Polícia Civil (DPC) possui a mesma autoridade que seu congênere Federal para prati-car todos os atos de polícia judiciária no âmbito eleitoral.

Defato,deacordocomaResoluçãon.°11.218/82doTSE,emnão havendo órgão da PF na localidade, caberá à Autoridade Policial Civil realizar todos os atos de polícia judiciária, tais como instaurar inquérito por requisição da autoridade competente, lavrar termo circunstanciado, efetuar prisão em flagrante, conceder fiança etc.:

A competência legal da Polícia Federal para a instauração de inquéritos policiais de apuração da pratica de ilícito capitulado no Código Eleitoral, por iniciativa do Ministério Público, Juiz ou Tribunal Eleitoral, não exclui a competência, de igual iniciativa, da Autoridade Policial Estadual, em ação supletiva.

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Faltando Autoridade Policial Federal no distrito da culpa, pode a Autoridade Policial Estadual, ex officio, se couber, autuar em flagrante e conceder fiança, por crime eleito-ral, respeitadas as mesmas restrições impostas à Polícia Federal. (Grifos nossos).

OAcórdãon.° 8.476/87doTSE,por suavez, esclarece aindaque a Autoridade Policial Civil deve não apenas instaurar o inquérito (por portaria ou por auto de prisão em flagrante). A ela cabe “realizá-lo”, ou seja, instruí-lo com as diligências necessárias, concluí-lo, remetê-lo à Jus-tiça Eleitoral, administrar a custódia de eventual preso, realizar eventu-ais diligências complementares requisitadas pelo Ministério Público etc., executando todos os atos de polícia judiciária :

Crime Eleitoral. Recadastramento. Denúncia: Descrição de fatos que, em tese, confi-guram crime. Inquérito realizado pela Polícia Estadual: Irrelevância. – se a denúncia descreve fatos que, em tese, configuram crime eleitoral, e o denunciado se defende dos fatos, não há como trancar-se a ação penal, ainda que possa haver má capitulação do tipo penal. - e irrelevante que o inquérito policial - mera peça instrutiva que é - tenha sido realizado pela Polícia Estadual e não pela Federal. (Grifos nossos).

Na vigência da ordem constitucional atual, entendimento seme-lhantefoiapresentadopeloTSEnoAcórdãon.°16.048/00.Assimdizotrecho do julgado que trata do tema:

(...) Irrelevância de o inquérito ter sido realizado pela Polícia Estadual.

A jurisprudência da corte é no sentido de ser irrelevante ter o inquérito sido reali-zado pela Polícia Estadual, se a denúncia preenche os requisitos estabelecidos em lei. Precedente: Acórdão 8.476. (...). (Grifos nossos)

Pacificando a questão, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a atuação da Polícia Civil em crimes eleitorais está em perfeita conso-nância com os princípios da Constituição de 1988. Assim, ao julgar o HábeasCorpusn.°73.424/95,aSupremaCorteresolveuaquestãocomos seguintes argumentos:

O ilustre impetrante entende ser nula a denúncia oferecida pelo Ministério Pú-blico Eleitoral, por achar-se ela "fundamentada, exclusivamente, em inquérito policial procedido por autoridade absolutamente incompetente" (fls. 16), eis que - tratando-se de crime eleitoral - caberia à Polícia Federal, e não à Polícia Civil do Estado, promover a apuração do fato delituoso. Se é certo que a investigação penal dos crimes eleitorais compete, em princípio, à Polícia Federal (CF, art. 144,

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§ 1º, IV), nada impede - especialmente nas localidades que não sediam órgãos do Departamento de Polícia Federal - que as atribuições concernentes à Polícia Judi-ciária Eleitoral sejam desempenhadas, concorrentemente, em caráter excepcional, pela Polícia civil do Estado-membro, consoante esclarece o magistério doutrinário (JOEL JOSÉ CÂNDIDO, "Direito Eleitoral Brasileiro", p. 303, 4ª ed., 1994, EDIPRO) e proclama a jurisprudência do próprio Tribunal Superior Eleitoral: "Crime eleitoral. Recadastramento. Denúncia: descrição de fatos que, em tese, configuram crime. Inquérito realizado pela polícia estadual irrelevância. É irrelevante que o inquérito policial - mera peça instrutiva que é - tenha sido realizado pela Polícia Estadual e não pela Federal." (Boletim Eleitoral do TSE nº 432/399, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO) "A competência legal da Polícia Federal para a instauração de inquéritos policiais de apuração da prática de ilícito capitulado no Código Eleitoral, por iniciativa do Ministério Público, Juiz ou Tribunal Eleitoral, não exclui a competência, de igual iniciativa, da Autoridade Policial Estadual, em ação supletiva. Faltando autoridade policial federal no distrito da culpa, pode a autoridade policial estadual, ex officio, se couber, autuar em flagrante e conceder fiança, por crime eleitoral, respeitadas as mesmas restrições impostas à Polícia Federal (Resolução nº 11.218)." (Boletim Eleitoral do TSE nº 379/76, Rel. Min. CARLOS MADEIRA) Impende observar - tendo presente a natureza eminentemente administrativa da investiga-ção penal realizada pela Polícia Judiciária (RTJ 143/306, Rel. Min. CELSO DE MELLO) - que eventuais vícios concernentes ao inquérito policial não têm o condão de infirmar a validade jurídica do subseqüente processo penal condena-tório (RTJ 89/57 - RTJ 90/39 - RTJ 125/177), eis que, "Sendo o inquérito policial mero procedimento informativo e não ato de jurisdição, os vícios nele acaso existentes não afetam a ação penal a que deu origem" (JÚLIO FABBRINI MIRABETE, "Processo Penal", p. 82, 4ª ed., 1995, Atlas; DAMASIO E. DE JESUS, "Código de Processo Penal Anotado", p. 5, 10ª ed., 1993, Sarai-va; PAULO LÚCIO NOGUEIRA, "Curso Completo de Processo Penal", p. 45, 9ª ed., 1995, Saraiva, v.g.) (...) (grifos nossos).

Cabe considerar também que a Polícia Civil Estadual não só pode, mas deve atuar inclusive em localidade que seja sede de órgão da PF, no intuito de combater o delito eleitoral. Nesse caso, contudo, como bemesclareceaResoluçãon.°2.123/96doTribunalRegionalEleitoraldo Estado da Bahia, sua atuação deverá ser de polícia ostensiva, e não judiciária. Assim, se a Autoridade Policial Civil flagrar alguém cometen-do delito eleitoral, deverá lhe dar voz de prisão, detê-lo e imediatamente conduzi-lo à sede da PF no município para autuação e realização das demais atividades de polícia judiciária7:

7 Fizemos questão de frisar que o inquérito deve não apenas ser iniciado pela Polícia Civil, mas também instruído

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1. O Delegado de Polícia Civil deve instaurar inquérito policial sempre que existir requisição da autoridade competente e no município respectivo inexistir delegacia de Polícia Federal;

2. Em caso de flagrante delito seja qual for o caso, deve, o Delegado da Polícia Civil efetivar a prisão e instaurar inquérito policial, salvo disposição legal em con-trário e se inexistir no respectivo município delegacia da Polícia Federal; se existir, encaminhar o preso a Delegacia de Polícia Federal. (Grifos nossos).

Háquedestacar,noentanto,queconformeoentendimentodoSupremo Tribunal Federal apresentado no julgado apresentado linhas acima, é perfeitamente válido o inquérito realizado pela Polícia Civil, mesmo em município com sede de Polícia Federal. Transcrevendo-se no-vamentepartedoHábeasCorpusn.°73.424/95,vê-sequeaSupremaCorte, ao usar o vocábulo “especialmente”, o fez para destacar a ação da Polícia Civil como polícia judiciária nas localidades em que não haja sede de PF, sem contudo, excluí-la nas outras localidades:

(...) nada impede - especialmente nas localidades que não sediam órgãos do De-partamento de Polícia Federal - que as atribuições concernentes à Polícia Judici-ária Eleitoral sejam desempenhadas, concorrentemente, em caráter excepcional, pela Polícia civil do Estado-membro (...).

Por fim, é importante frisar que a atuação supletiva da Polícia Estadual, também não tem o poder de excluir a atuação (originária) da Polícia Federal. De fato, esta possui circunscrição sobre todo território nacional, inclusive em matéria eleitoral, conforme relembra o art. 2° do Decreto-Lein.°1.064/69:

Art. 2º O Departamento de Polícia Federal ficará à disposição da Justiça Elei-toral, sempre que houver de se realizar eleições, gerais ou parciais, em qualquer parte do Território Nacional8.

até sua conclusão. Com efeito, em alguns estados, as Autoridades Policiais Civis até realizam os flagrantes no dia da eleição nas cidades em que não há sede de Polícia Federal, mas logo depois remetem a esta as peças processuais, juntamente com o preso. Tal procedimento não segue o entendimento jurisprudencial, que determina a realização de todos os atos de polícia judiciária pela Autoridade Policial Estadual.

8 Obviamente que a Polícia Federal ficará à disposição da Justiça Eleitoral para realizar atividades relacionadas a suas atribuições constitucionais. Nesse sentido, estão as Resoluções 8.906 de 05.11.70, 14.623 de 22.06.88 e 21.843 de 22.06.04, todas do TSE.

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Assim, pode a Justiça Eleitoral, se entender cabível, requisitar à Polícia Federal que atue na apuração de determinado delito, caso julgue ser ela a mais apta a investigá-lo, mesmo que o local do crime não seja sede de uma unidade do órgão.

Decerto que, como se verá no tópico seguinte, tal prerrogativa deverá ser usada pela Justiça Eleitoral com parcimônia, sob pena de se comprometer justamente a desejada eficiência das investigações.

fundamEntação político-criminal

Além do aspecto jurídico, razões de política criminal também jus-tificam a atribuição investigativa concorrente entre as instituições.

Com efeito, nas cidades que não são sede de Polícia Federal, a Au-toridade Policial Civil geralmente tem condições de realizar um trabalho investigativo mais célere.

De fato, o Delegado de Polícia Civil usualmente tem como cir-cunscrição apenas o município onde ocorreu o delito eleitoral. Nas ci-dades maiores, sua circunscrição ainda se reduz a alguns bairros. Assim, por conhecer melhor a localidade e seus habitantes, ele tem maior pos-sibilidade de coletar provas, localizar testemunhas, encontrar suspeitos etc. Pelas mesmas razões, tem como chegar mais rapidamente ao local do crime, quando da sua ocorrência. Além disso, especialmente nas cidades pequenas, o DPC acompanha o transcorrer diário da campanha eleito-ral, podendo identificar situações conflituosas e criminosas envolvendo oscandidatoseseuscabos-eleitorais.HáqueseconsideraraindaqueoDelegado Estadual, como Autoridade Policial local, já mantém contato freqüente com o Promotor de Justiça da cidade que, na condição de Mi-nistério Público Eleitoral, é o destinatário primeiro do inquérito policial. Assim, eles têm a capacidade de estabelecer uma maior sintonia na inves-tigação eleitoral.

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Por outro lado, a Autoridade Policial Federal está baseada na cidade onde fica a sede da PF e sua área de circunscrição abrange diversos outros municípios. Em alguns casos, há municípios da circunscrição que distam até centenas de quilômetros da Delegacia da Polícia Federal. Isso prejudi-ca o andamento da investigação eleitoral, pois muitas vezes uma simples intimação leva meses para ser realizada, visto que os Agentes Federais, des-conhecedores da população local, têm dificuldades para identificar ou lo-calizar uma testemunha. Em outras situações, a testemunha é até intimada, mas não tem como se deslocar da sua cidade até a agência da PF por falta de recursos. Além disso, justamente por ter diversos municípios em sua circunscrição, o DPF e sua equipe simplesmente não têm como atuar em todos eles simultaneamente. Desse modo, os delitos eleitorais correm o risco de não ser reprimidos e investigados no momento devido. Essa con-fluência de fatores tende a gerar um fruto indesejável: a impunidade.

A questão é muito bem ilustrada por um Delegado de Polícia Federal que participou do referido evento do TRE-MG. Após a palestra do DPF Lázaro, seguiram-se as perguntas da platéia para os oradores do seminário. Nesse momento, um DPF não identificado na transcrição do seminário fez uma importante colocação, seguida por uma pergunta ao Corregedor do TRE-MG:

(...) Vou dar como exemplo um que ficava na minha mão, requisição, e era uma cidade próxima de Ponte Nova, onde passou um caminhão cheio de eleitores, provavelmente já bêbados, e arrancaram a faixa eleitoral. Um ano depois, isso teria que ser investigado pela Polícia Federal para apurar o culpado. Praticamente impossível. Em contato com o Delegado Civil lá ele me disse que algumas vezes ele atuou em inquérito dessa espécie. Ele me falou que aquilo ele conseguiria matar em 15, 30 dias. É porque numa cidade pequena, o delegado chega num posto de gasolina, numa cooperativa e basta perguntar onde mora o fulano de tal e, às vezes, nem uma intimação é necessária, pede para o sujeito comparecer à delegacia e, rapidinho, ele dá conta.

Então, enquanto aqui às vezes a Polícia Federal fica, como já disse o professor, atulhada de inquéritos sem muita importância, de repente, se houvesse essa ação supletiva da Polícia Civil, a Polícia Federal poderia atuar em crimes que real-mente fossem mais interessantes, porque o Juiz, ao requisitar o Promotor eleitoral,

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evidentemente, quando ele perceber, pela atuação da pessoa, que ele poderá influir no inquérito, ele vai ter o bom senso de, talvez, não deixar na localidade.

Então a minha pergunta dirigida ao Corregedor é o quê que o TRE/MG pode fazer nesse sentido? Vou até adiantar – se tiver alguém do Estado da Bahia aqui para confirmar –, parece-me que lá existe uma resolução9 determinando que a Polícia Civil faça esse trabalho onde não existe Delegacia da Polícia Federal.

Assim, seria até um contra-senso excluir a ação do DPC, agente público com profundo conhecimento das questões municipais, da apura-ção dos delitos eleitorais, usualmente cometidos pelos próprios habitan-tes do município.

Além da ilustração apresentada, vê-se também que o DPF anô-nimo falou ainda sobre a possibilidade de o Juiz, a depender de seu bom senso, escolher se o inquérito deve ser conduzido pela Polícia Civil ou Federal. Justamente a tese que havíamos acolhido em nosso trabalho po-licial, como se mostrará a seguir.

das açõEs implEmEntadas E dos rEsultados oBtidos

De posse desses fundamentos jurídicos e político-criminais, ado-tamos uma estratégia para compartilhar a tarefa investigativa com a Po-lícia Civil.

Visto que pelo aspecto jurídico seria indiferente a apuração ser feita por qualquer das instituições, o fator diferencial residiria justamente em questões de ordem político-criminais.

Deste modo, em não havendo uma autoridade policial superior comum às duas instituições, melhor seria que o Juiz Eleitoral, destinatá-rio final da investigação eleitoral, avaliasse a situação concreta e, depois de ouvido o Ministério Público Eleitoral, decidisse qual instituição deve-ria conduzir o inquérito eleitoral.

9 Resolução 2.123/96 TRE-BA, já transcrita no texto.

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Assim, condensamos os fundamentos acima vistos em uma peti-ção, cujo modelo está transcrito no final deste artigo. Em seguida, reme-temos todos os inquéritos já em andamento, bem como os expedientes a instaurar, para os Juízes Eleitorais respectivos, a fim de que se decidisse que entidade policial deveria apurar o delito.

Dessas remessas, excetuamos os inquéritos relativos ao município de Ilhéus, sede da Delegacia da Polícia Federal, bem como aqueles que envolviam delitos cometidos por prefeitos, de competência originária do Tribunal Regional Eleitoral.

Em relação aos inquéritos e expedientes remetidos, mais de setenta por cento foram efetivamente redistribuídos à Polícia Civil. Na maioria dos casos concretos, Juízes e Promotores Eleitorais concordaram que a Polícia Estadual poderia atuar de forma mais efetiva que a Polícia Federal.

Nos inquéritos devolvidos, os Juízes alegaram que, naqueles ca-sos, o distanciamento da Polícia Federal em relação às questões locais era mais importante que a celeridade, para a investigação.

Desse modo, tanto os inquéritos que permaneceram na Polícia Federal, geralmente os mais complexos, quanto aqueles que foram redis-tribuídos tiveram uma instrução mais célere e eficiente, o que só contri-buiu para o benefício da sociedade.

conclusão

A título de conclusão, é importante frisar, mais uma vez, que essa proposta de compartilhamento do trabalho investigativo entre as Polícias Federal e Civil Estadual é uma decisão de caráter político-criminal, de base constitucional e legal, que tem como principal objetivo combater a impunidade nos delitos eleitorais.

Como dito no texto, tais crimes possuem alcance predominante-mente local, especialmente nas eleições municipais. Tal dado só reforça a

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conclusão de que uma polícia com forte presença em cada município tem amplas condições de realizar um trabalho investigativo muito eficiente.

A Polícia Federal, por sua vez, é uma entidade que deve focar seus esforços no combate aos delitos de âmbito interestadual e internacional, como bem determina o art. 144, I da Constituição, transcrito linhas atrás, aproveitando a sua presença em todo o território nacional e seus vínculos com entidades policiais estrangeiras e internacionais.

No tocante à apuração dos delitos eleitorais, melhor para a socie-dade que a PF, aplicando os métodos que já utiliza com sucesso contra o crime organizado, invista seus esforços na apuração dos crimes comple-xos e danosos, justamente aqueles que ferem mais fortemente a demo-cracia no Brasil.

modElo dE pEtição

Sintetizando os argumentos jurídicos e político-criminais apresen-tados no artigo, apresentamos nosso modelo de petição de decisão sobre qual entidade policial deveria realizar a investigação e o conseqüente en-caminhamento de expediente eleitoral à Polícia Civil, se fosse o caso.

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ ELEITO-RALDAXXXZONA

COMARCA DE YYY

A Autoridade Policial Federal que ao final subscreve esta vem, perante Vossa Excelência, apresentar a seguinte REPRESENTAÇÃO:

DOS FATOS

O expediente em anexo foi encaminhado à Delegacia de Polícia Federal de Ilhéus, em AA.AA.AA, para se apurar suposto delito eleitoral ocorrido na cidade de YYY.

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DO DIREITO

No sistema jurídico brasileiro, a atribuição para a apuração dos cri-mes eleitorais é concorrente entre as polícias judiciárias estaduais e federal:

Defato,aLein.º9.504/97odiz:

Art. 94, §3º - Além das polícias judiciárias, os órgãos da receita federal, estadual e municipal, os tribunais e órgãos de contas auxiliarão a Justiça Eleitoral na apuração dos delitos eleitorais, com prioridade sobre suas atribuições regulares. (Grifos nossos).

Disciplinando o exercício de tais atribuições em nosso Estado, o Tribunal Regional Eleitoral da Bahia, publicou a Resolução n.º 2.123 estabelecendo que é dever da Polícia Civil apurar os delitos eleitorais nas localidades em que não haja sede de Polícia Federal:

1. O Delegado de Policia Civil deve instaurar inquérito policial sempre que existir requisição da autoridade competente e no município respectivo inexistir Delegacia de Policia Federal;

2. Em caso de flagrante delito seja qual for o caso, deve, o Delegado da Policia Civil efetivar a prisão e instaurar inquérito policial, salvo disposição legal em contrario e se inexistir no respectivo município Delegacia da Policia Federal; se existir, encaminhar o preso à Delegacia de Policia Federal. (Grifos nossos).

O entendimento em questão foi normatizado de forma seme-lhante pelo Tribunal Superior Eleitoral, conforme se verifica na Resolu-ção n.º 11.494:

A competência legal da Policia Federal para a instauração de inquéritos policiais de apuração da prática de ilícito capitulado no Código Eleitoral, por iniciativa do Ministério Público, Juiz ou Tribunal Eleitoral, não exclui a competência, de igual iniciativa, da Autoridade Policial Estadual, em ação supletiva.

Faltando Autoridade Policial Federal no distrito da culpa, pode a Autoridade Policial Estadual, ‘ex officio’, se couber, autuar em flagrante e conceder fiança, por crime eleitoral, respeitadas as mesmas restrições impostas a Policia Federal (res. n. 11.218). (Grifos nossos).

A experiência investigativa confirma o acerto de tais Resoluções.

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De fato, a Autoridade Policial Estadual, por estar no distrito da culpa e conhecer melhor a localidade e sua comunidade, tem a capacida-de de coletar provas, localizar testemunhas e supostos autores do delito, com maior celeridade.

Desse modo, evita-se, por exemplo, que a realização de uma sim-ples intimação leve meses, ou até anos para ser efetivada, simplesmente porque os Agentes Federais, desconhecedores da população local, têm dificuldades para identificar ou localizar uma testemunha. Ou ainda, que a testemunha, finalmente intimada, simplesmente não compareça nesta Delegacia em Ilhéus, por não dispor de recursos para pagar a viagem.

Por outro lado, até para as partes envolvidas é muito mais con-veniente e oportuno que apresentem seus esclarecimentos na própria localidade em que vivem, sem terem a necessidade de perder tempo e dinheiro com deslocamentos até esta Delegacia.

Desperdiça-se ainda muito tempo e recursos na tramitação dos autos entre a Delegacia da Polícia Federal em Ilhéus e a sede do Juízo Eleitoral. Assim, muitas vezes, os autos do inquérito passam mais tempo nos cartórios aguardando remessa que sendo efetivamente apreciados pelas autoridades que nele oficiam.

Também pela proximidade no trato diário, a Autoridade Policial Estadual tem condições de realizar sua atividade investigativa em maior sintonia com o Ministério Público Eleitoral da Comarca, destinatário pri-meiro do inquérito policial.

Por fim, não temos receio algum em reconhecer que o Delegado de Polícia Civil responsável pelo Município de YYY, que possui cerca de dez mil habitantes10, terá condições de fazer um trabalho muito mais célere que nós, que temos na circunscrição de nossa Delegacia cerca de

10 As populações de todos os municípios brasileiros podem ser encontradas no endereço eletrônico do IBGE: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2008/estimativa.shtm.

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dois milhões de pessoas11, distribuídas em setenta e quatro municípios e estamos sediados a 350 km dessa cidade12.

Assim, dependendo da decisão judicial, um inquérito que poderia levar anos para ser concluído, poderá ser finalizado em poucas semanas.

DA REPRESENTAÇÃO

Isto posto, representamos a Vossa Excelência que, após ouvido o Ministério Público Eleitoral, encaminhe o presente inquérito para a Autoridade Policial Estadual competente, a fim de que seja realizada a apuração dos fatos narrados nos autos.

A fim de subsidiar a decisão judicial, encaminhamos cópia da de-cisão precedente exarada pelo Juízo Eleitoral da WWW Zona, concor-dando com a representação desta Autoridade Policial, bem como ofício da ZZZ Zona no mesmo sentido.

Por outro lado, caso Vossa Excelência entenda que a Lei n.º 9.504/97easResoluçõesn.º2.123doTribunalRegionalEleitoraldoEs-tado da Bahia e n.º 11.949 do Tribunal Superior Eleitoral não devam ser aplicadas ao caso concreto, solicitamos a devolução do expediente para a regular instauração de inquérito policial nesta unidade.

Nestes termos,

P. deferimento.

Ilhéus, dd de mm de aaaa.

Delegado de Polícia Federal

11 Ver nota 3.12 As distâncias rodoviárias entre quaisquer cidades podem ser obtidas endereço eletrônico do Google: http://maps.

google.com.br/.

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mIGuEL DE ALmEIDA mOuRA SENNA

Delegado de Polícia Federal

Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental – ENAP. Especialista em Ciências Penais – uNISuL / IELF.

E-mail: [email protected]

ABSTRACT

Article about the concurrent obligation of state and federal law enforcement agencies for investigation of election crimes. It belongs to common sense the agreement that the investigation of election crimes is an exclusive responsibility of Federal Police. When put into practice, this idea generates an overload of demands for this police force that, without conditions to work simultaneously in all cities during the electoral period, finishes having difficulties in the treatment of the issue. However, legislation and precedents of courts, especially the Resolutions of the Electoral Superior Court, have decided that state police agencies are also responsible for conducting inquiries on election crimes. Beyond the legal grounds, criminal policy reasons justify this common duty, especially in the cities where there is not Federal Police office. Once that state police forces have stations in almost all cities and towns, their officers know the community very well and have better conditions to produce a prompt investigation. On the other hand, Federal Police is an organization of national scope, with the vocation for dealing with serious crime, also in elections. This concurrent responsibility gives to the Electoral Judge or Prosecutor the option to request the law enforcement agency considered more suitable to carry out the criminal investigation in the concrete case.

Keywords: Election crimes. Concurrent responsibility for investigation. Federal Police. State Police Agency. Legal grounds. Judicial precedents..

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119ISSN 1983-1927

Brasília, v. 2, n. 1, p. 119-136, jan./jun. 2009.Recebido em 31 de outubro de 2008.Aceito em 3 de fevereiro de 2009.

o cotidiano dE adolEscEntEs cumprindo mEdida socioEducativa dE intErnação: pEnalizar ou Educar?

Tatiana Dassi Maria José Reis

D

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo descrever e analisar o cotidiano de adolescentes em conflito com a lei, cumprindo a medida socioeducativa de internação, no Centro de Internamento Provisório, de Itajaí (SC). De acordo com a proposta do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as ins-tituições deste tipo devem funcionar como espaços de ressocialização, que ofereçam condições reais de mudança comportamental dos sujeitos submetidos às condições asilares desta natureza. Assumindo uma perspectiva etnográfica, buscou-se descrever e analisar as condições de interna-ção, a rotina dos adolescentes e funcionários, a interpretação de ambos os grupos sobre a situação asilar e da medida socioeducativa de internação. O trabalho de campo, desenvolvido através de uma convivência prolongada com os sujeitos observados, foi realizado de julho de 2006 a maio de 2007. Para o desenvolvimento da investigação, de acordo com o objetivo e a perspectiva acima referidos, tomamos como marco teórico o conceito de “instituição total”, de Goffman. O autor nos ajudou a compreender e a interpretar as várias implicações da vida asilar para os internos e fun-cionários, assim como os mecanismos de controle da rotina em uma instituição total. A pesquisa constatou que é nítido o distanciamento entre as “proposições” do ECA e a “realidade” vivenciada por estes sujeitos sociais, que longe está das condições ideais apontadas no texto do ECA.

Palavras-chave: Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Adolescente em conflito com a lei. Ato Infracional. Medida socioeducativa de internação. Instituição total.

introdução

A partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescen-te, em 1990, o discurso em torno da figura do adolescente em conflito

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com a lei mudou de tom. Instituído em 13 de julho de 1990, pela Lei n. 8.069, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – foi um marco da legislação brasileira. Seu caráter inovador fica evidente quando lem-bramos que crianças e adolescentes são considerados, pela primeira vez na história do País, cidadãos e sujeitos de direitos específicos, sendo to-dos, família, sociedade civil e Estado, responsáveis pela garantia de tais direitos. O Estatuto adota a doutrina de Proteção Integral1, em contraste evidente com a doutrina de Situação Irregular2 vigente até então. Esta mudança se faz sentir também na questão infracional3.

Em primeiro lugar, no Art 2º, o Estatuto trata da diferenciação entre criança e adolescente. A criança é definida como “pessoa até doze anos de idade incompletos”, enquanto o adolescente é aquela “entre doze e dezoito anos de idade”. Esta distinção entre criança e adolescente é de suma importância, pois é a linha que demarca a aplicação de “medida de proteção” para as crianças, ou “medida socioeducativa” para os adoles-centes, em relação à prática de ato infracional4.

Uma importante característica do Estatuto é que, a partir de sua implementação, a prioridade máxima passa a ser a natureza pedagógica, e não punitiva, das medidas aplicadas aos adolescentes que cometem atos infracionais. Como ressalta D’Agostini (2003, p. 73), “[...] as medidas so-cioeducativas são sanções de caráter pedagógico, sem caráter de pena”.

1 “A doutrina de proteção integral baseia-se na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989); Regras Mínimas das Nações Unidas para a administração da Justiça da Infância e da Juventude – Regras de Beijing (1985); Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade (1986) e diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil – Diretrizes Riad (1988)” (Sandrine, 1997, p. 75).

2 Em 1927, o primeiro “Código de Menores da América Latina” é aprovado no Brasil. Seu traço mais marcante é que este adota a doutrina da “Situação Irregular”, ou seja: “A visão predominante do código era o caráter corretivo, afirmando a necessidade de educar e disciplinar, física, moral e civicamente os filhos de pais irresponsáveis. Com isso, individualizava-se o problema de cada menor, pela ausência dos pais ou sua incompetência, e se passa a ver na internação uma solução para a socialização resignada (Sandrini, 1997, p. 57).

3 O ECA, no seu Art. 103, considera ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal pelo Código Penal.

4 Segundo o art. 104, parágrafo único, no caso de ato infracional deve ser considerada a idade do adolescente à data do fato.

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Além disto, o adolescente que comete ato infracional adquire di-reitos individuais e processuais (Artigos 106 a 111), que até então lhe eram historicamente negados. Entre eles, o direito de que a medida so-cioeducativa aplicada ao adolescente levará em consideração “a sua capa-cidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração” (Brasil, 2005, p. 51).

Quanto à internação, o Estatuto, no seu Art. 124, a fim de assegu-rar o seu caráter educativo, estabelece algumas normas a serem seguidas pela instituição que executa a medida, assim como garante alguns direitos aos adolescentes privados de liberdade, entre os quais gostaríamos de salientar os seguintes:

[...] IV – ser informado de sua situação processual, sempre que solicitar; [...]; V – ser tratado com respeito e dignidade; VI – permanecer na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsável; VII – receber visitas, ao menos semanalmente; [...]; IX – ter acesso aos objetos necessários à higiene e asseio pessoal; X – habitar alojamento em condições adequadas de higie-ne e salubridade; XI – receber escolarização e profissionalização; XII – realizar atividades culturais, esportivas e de lazer; [...]; XIV – receber assistência religio-sa, segundo sua crença, e desde que assim o deseje (Brasil, 2005, p. 56-57).

Em documento publicado em junho de 2006, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE – especifica as característica obrigatórias de uma instituição responsável pelo atendimento socioedu-cativo. Entre as diretrizes estabelecidas no documento destacam-se: a obrigatoriedade da elaboração de um projeto pedagógico para a institui-ção que executa a medida, em consonância com os princípios do ECA e do SINASE; a necessidade da participação dos adolescentes e de suas famílias na elaboração, monitoramento e avaliação das ações socioedu-cativas da instituição; o reconhecimento da disciplina como meio para a realização da ação socioeducativa, por meio de normas e regras bem definidas; o espaço físico da instituição deve estar subordinado ao seu caráter pedagógico e à necessidade de formação continuada para os fun-cionários e gestores da instituição.

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algumas considEraçõEs tEórico-mEtodológicas

Antes de seguir para a descrição etnográfica, cabe ressaltar certas premissas que orientaram nossa pesquisa. Do ponto de vista teórico-metodológico, optamos, em primeiro lugar, por uma perspectiva inter-pretativista, como formulada por Geertz, (apud Reis, Coimbra, 2007), para quem o estudo dos significados compartilhados socialmente, isto é, da cultura, é fundamentalmente um problema de compreensão e de interpretação5. Dentro desta perspectiva, foi seguido, em parte, o cami-nho proposto por Thompson (1995), que sugere que, para compreender determinadas formas simbólicas ou representações culturais, deve-se, em primeiro lugar, reconstruir os contextos socioculturais e políticos nos quais tais formas foram criadas e veiculadas. Em segundo lugar, recupe-rar as maneiras como estes significados são expressos e interpretados pe-los atores sociais que os produziram e veicularam. Por fim, expor nossa própria interpretação.

Para formular esta “interpretação”, interessava “olhar” e “ouvir”6 os adolescentes e aqueles que por eles são responsáveis. Por esta razão, foi realizado um trabalho de campo, de julho de 2006 a maio de 2007, na instituição alvo de nosso interesse, sob a forma de observação parti-cipante e entrevistas. Uma das técnicas utilizadas para a coleta de dados, no que diz respeito à observação participante, foi a manutenção de um “diário de campo”. As transcrições do diário foram utilizadas no decor-rer da análise, como forma de ilustrar a rotina da instituição.

5 Para Geertz: “[...] o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assume a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado” (1978, p. 15).

6 A perspectiva aqui adotada é a elaborada por Roberto Cardoso de Oliveira, no texto “O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever” (1998), no qual “olhar”, “ouvir” e “escrever” são compreendidos como atos cognitivos de natureza epistêmica, pois é com base neles que o conhecimento das ciências sociais é elaborado. O autor ressalta que “as disciplinas e seus paradigmas são condicionantes, tanto de nosso olhar como de nosso ouvir”. O esquema conceitual da disciplina na qual está inserido o pesquisador orienta sua percepção da realidade. Assim como, no ato de escrever, realizamos uma interpretação que, por sua vez, está balizada pelas categorias ou pelos conceitos básicos da disciplina.

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Além disto, para o desenvolvimento da investigação e análise da instituição onde vivem os adolescentes, tomamos como marco teórico o conceito de “instituição total”, de Goffman. O autor nos ajuda a compre-ender as várias implicações da vida asilar para os internos e os mecanis-mos de controle da rotina em uma instituição total. Segundo Goffman,

uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho, onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada (2005, p. 11).

Algumas das características marcantes destas instituições, de acordo com o autor, são que todas as atividades praticadas pelos indiví-duos ali internos acontecem em um espaço limitado, determinado pela instituição, sob estritas regras de supervisão de uma única autoridade, na companhia de outros internos, obrigados a obedecerem às mesmas regras e a seguirem a mesma rotina.

Apesar de muitas vezes aparentarem ser meros “depósitos huma-nos”, de acordo com seu discurso oficial, toda instituição total apresenta um plano racional único, que representa o objetivo oficial da instituição. Este objetivo, normalmente, implica na mudança do comportamento do internado, a fim de se adequar ao que é socialmente aceito como “nor-mal”. “Esta contradição, entre o que a instituição realmente faz e aquilo que oficialmente deve dizer que faz, constitui o contexto básico da ati-vidade diária da equipe dirigente” (Goffman, 2005, p. 70). Além disto, devemos considerar que, na sociedade moderna, o valor atribuído aos direitos humanos é praticamente indiscutível. No mundo de uma insti-tuição total, isto significa que:

padrões tecnicamente (grifo do autor) desnecessários de tratamento precisam ser mantidos com materiais humanos. Essa manutenção do que denominamos pa-drões humanitários passa a ser definida como parte da ‘responsabilidade’ da instituição e, presumivelmente, como uma das coisas que a instituição garante ao internado, em troca de sua liberdade (Goffman, 2005, p. 71).

A manutenção destes padrões humanitários pode, por vezes, vir de encontro com a manutenção da eficiência da instituição, gerando um conflito que deve ser administrado pela equipe dirigente.

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O plano racional que guia os procedimentos oficiais dentro da instituição é elaborado tendo em mente o objetivo oficial da instituição, seja ele punir, educar ou curar (Goffman 2005, p. 18), pois “em nossa so-ciedade [as instituições totais] são estufas para mudar pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao “eu” ” (Goffman, 2005, p. 22). A forma como a rotina dos internos é organizada; a escolha das atividades tidas como apropriadas, e por isso incentivadas; a conduta do grupo de funcionários responsáveis pelos internos; o comportamen-to esperado dos internos; a vigilância constante e ininterrupta da qual são objeto; a organização espacial da instituição; todos estes pontos, que envolvem o quotidiano dos internos em uma instituição total, são estabe-lecidos tendo em mente o objetivo oficial da instituição. Desta maneira, a política defendida oficialmente pela instituição e seus dirigentes, e a concepção que estes têm sobre os internos, influenciam diretamente as relações entre internos e a equipe de funcionários.

Os mecanismos criados para exercer este controle permanente da rotina geram processos que vão atingir diretamente o “eu” dos internos. Desde sua entrada na instituição, o interno é submetido a processos que vão atuar diretamente sobre sua identidade, processos através dos quais sua autonomia é atacada e impedida.

A última dimensão a ser considerada, a fim de se entender as relações entre a equipe dirigente e os internos dentro de uma instituição total e sua rotina, diz respeito aos esquemas de interpretação da realidade defendidos pela instituição ou “a perspectiva racional defendida pela ins-tituição” (Goffman, 2005, p. 77).

Em primeiro lugar, cabe-nos ressaltar a concepção que a institui-ção tem dos internos e como esta concepção influencia a ação dos fun-cionários. Para a instituição, o simples fato de um indivíduo ser interno é uma prova cabal de que ele possui certas características morais e traços de caráter. Além disso, embora existam outras interpretações para os “distúr-bios” de comportamento que resultam no internamento em uma institui-ção total, na perspectiva destas instituições as condutas dos internos “pre-

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cisam ser definidas como decorrentes da vontade pessoal e do caráter do internado e definidas como algo que pode controlar” (Goffman, 2005, p. 79). Ou seja, o interno pode ser responsabilizado por suas ações e por seu “processo de mudança” dentro da instituição. Outra conseqüência desta interpretação é a formulação, pela instituição, de uma espécie de “teoria da natureza humana” que irá justificar todas as suas ações em relação aos internos e explicar o comportamento dos mesmos.

a rotina na instituição: pEnalizar ou Educar?

O Centro de Internamento Provisório em Itajaí - SC é, como o próprio nome sugere, destinado ao adolescente cumprindo a medida socioeducativa de internação provisória de, no máximo, 45 dias. Neste período, o adolescente deve ser julgado na Vara da Criança e do Adoles-cente. Caso seja determinada a medida socioeducativa de internação, este adolescente deve ser transferido a um Centro Educacional Regional para o cumprimento de sua medida. A realidade, no entanto, é outra: devido à falta de vagas em outras instituições do Estado, muitos adolescentes cumprem a Medida de Internação na instituição. Alguns dos adolescen-tes com os quais convivemos estavam no CIP, em Itajaí, há mais de seis meses; outros, há mais de um ano. O Centro tem capacidade máxima para doze adolescentes, apesar de normalmente abrigar mais internos. Alémdisso,oespaçofísicodaentidadeéprecário.Hávários“quartos”sem luz, com goteiras e cobertos de mofo; o único banheiro que se tem acesso é degradante; o espaço de socialização dos internos não oferece asmínimascondiçõesparaumavidadigna.Háumconsensoentreosfuncionários quanto às dificuldades para realizar um trabalho satisfatório em um ambiente como o do CIP. Sem o espaço físico apropriado, as ati-vidades pedagógicas e profissionalizantes determinadas pelo ECA e pelo SINASE tornam-se impossíveis.

O “caráter total” (Goffman, 2005, p. 16) da instituição fica evi-dente desde o primeiro momento do contato, quando o visitante se depa-ra com grades, cadeados, paredes altas e portas de ferro, deixando claro

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que existe uma barreira entre os que lá vivem, o mundo interno, em oposição ao mundo externo. Para os adolescentes, o cadeado da porta que dá acesso ao espaço destinado a eles e às portas de seus “quartos” é um símbolo de sua condição de privação. A expressão “bater cadea-do” representa a perda da liberdade, expressa através do ato de fechar o cadeado, cuja ação estabelece a diferença entre “nós” e “os outros”. O “bater cadeado” é um ato que só pode ser efetuado pelos gestores, pois a eles cabe a função de “trancá-los”, de privá-los de liberdade. Qualquer pessoa que tenta estabelecer outro vínculo com eles não deve realizá-lo; isso representaria uma “traição”.

Adentrando no espaço institucional destinado aos adolescentes, o primeiro compartimento visível é o refeitório. Um retângulo de apro-ximadamente seis metros de largura por sete de comprimento, espaço que se presta para múltiplas funções, ou seja, sala de TV, sala de jogos, sala de aula; enfim, o espaço de socialização no qual os adolescentes passam a maior parte do dia enquanto estão fora dos “quartos”. Duas mesas compridas de compensado branco preenchem o espaço no meio do refeitório. É nelas que todas as funções deste espaço se realizam. Ora funcionam como mesa de refeições, ora mesa de jogos, ora sala de aula.

Para Goffman, o aspecto central das instituições totais se evi-dencia “com a ruptura das barreiras que comumente separam essas três esferas da vida [dormir, brincar e trabalhar]. Todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única autoridade” (2005, p. 17). No caso estudado, este fato é levado ao extremo pois, devido à falta de estrutura, o mesmo espaço tem múltiplas funções. Além disso, todas elas são controladas pela mesma autoridade, os monitores7. Até cuidar da disciplina durante as aulas fica a cargo deles. A tarefa de vigiar os alunos para não “colarem” durante uma prova, por exemplo, tão característica do trabalho do professor, no CIP é realizada pelos monitores.

7 Os educadores sociais – termo oficial do ECA – ou monitores – como são conhecidos na instituição – são os responsáveis diretos pela supervisão dos adolescentes. Passam 24 horas na área reservada a eles e controlam todas as suas atividades, trabalhando sempre em grupos de três. Todos se referem, tanto ao grupo de monitores trabalhando junto, quanto ao período de tempo trabalhado, como “plantões”. Na época da pesquisa, os plantões eram de 24 por 48, isto é, cada grupo trabalhava 24 horas e folgava 48.

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A forma como a rotina dos internos é organizada, segundo Goff-man, e todos os pontos que envolvem seu cotidiano em uma instituição total, são estabelecidos tendo em mente seu objetivo oficial. No caso do CIP, que é uma entidade ligada ao SINASE, o objetivo oficial da ins-tituição obedece ao que determina o ECA: este deve ser um espaço de reeducação e ressocialização por excelência. Em outras palavras, a insti-tuição deve respeitar tanto a dimensão jurídico-sancionatória, quanto a dimensão ético-pedagógica das medidas socioeducativas.

Um exemplo de como os gestores da instituição analisada inter-pretam este objetivo é o uso obrigatório dos pronomes de tratamento “senhor”, “seu”, “senhora” e “dona” pelos internos que, na concepção dos gestores, faz parte da dimensão pedagógica da instituição. Durante uma das reuniões que presenciamos, um dos membros da equipe gestora ressalta a importância de exigir o uso dos pronomes de tratamento. Em suas palavras: “Tem que ensinar respeito, disciplina. Todo mundo de fora fica impressionado com a educação deles [dos adolescentes]. Tem que ensinar o significado da palavra senhor”. O que, para os adolescentes, é uma prática humilhante, como ficou claro em uma conversa informal com os adolescentes, registrada no diário de campo

Ricardo e Pedro conversam comigo e pergunto o que é o pior de estar ali e ambos dizem que é “pedir para tudo, falar ‘senhor, posso’, ‘senhor, desculpa’, ‘senhor, vou ao banheiro’ ”. Ambos concordam que isso “deixa o cara nervoso, com rai-va”. Quando Terence sai no final da tarde [ele é liberado] e volta para pegar o remédio que esqueceu, e chama o monitor de “senhor”, Ricardo grita que agora ele não precisa mais. Diz algumas vezes: “Chama pelo nome agora, Terence, chama pelo nome”.

O que representa, para os gestores, parte do seu processo de “edu-cação”. Para a equipe de funcionários, a justificativa para o uso destes pa-drões de deferências obrigatórios está no próprio objetivo da instituição.

Além disso, “os privilégios e castigos distribuídos pela equipe di-rigente são freqüentemente apresentados numa linguagem que reflete os objetivos legítimos da instituição (Goffman, 2005, p. 78). Esta é a racio-

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nalidade por traz da punição mais comum no CIP, o “ficar de quarto”8. Segundo os gestores, essa é a punição ideal, pois dá ao adolescente tem-po para pensar, porque, estando “de quarto”, sem outra coisa para fazer a não ser olhar para as paredes, será confrontado com seus erros e terá tempo para refletir. Um dos monitores comenta durante uma reunião: “Não adianta falar, tem que mandar pro quarto, isso que educa”. Ao ana-lisar o discurso e as práticas em prisões, Foucault descreve a crença no papel do isolamento como meio de disciplinar os detentos:

[...] a solidão deve ser um instrumento positivo de reforma. Pela re e flexão que suscita, e pelo remorso que não deixa de chegar [...]. O isolamento dos condenados garante que se possa exercer sobre eles, com o máximo de intensidade, um poder qunão será abalado por nenhuma outra influência; a solidão é a condição primei-ra da submissão total [...] O isolamento assegura o encontro do detento a sós com o poder que se exerce sobre ele (Foucault, 1987, p. 199-200).

Há,entretanto,entreosfuncionáriosdoCIP,umadivisãodeopi-niões quanto à validade da punição “ficar de quarto”. Os membros da equipe técnica tendem a discordar dos gestores9 quanto à eficiência do procedimento. Mas “ficar de quarto” prevalece como meio praticamente único de punição e a equipe técnica se vê obrigada a justificar o procedi-mento frente aos adolescentes.

Ter um objetivo significa que a instituição possui também esque-mas de interpretação da realidade que são defendidos pela instituição, que justifica os meios utilizados para atingir seus fins. O esquema de interpre-tação da instituição total começa a atuar no momento em que o interno chega. Isso porque, na concepção da equipe dirigente, o simples fato de um indivíduo ser interno é uma prova cabal de que ele possui certas carac-terísticas morais e traços de caráter que o caracterizam como “cliente” de um tipo específico de instituição; de outro modo, não estaria ali.

8 “Ficar de quarto” significa permanecer confinado dentro do quarto o dia todo, sem o direito de sair. No período da punição, as refeições devem ser feitas no quarto; o interno não tem direito a receber visitas e não pode fumar. O número de dias que o adolescente ficará “de quarto” depende da falta cometida.

9 A divisão entre equipe técnica – psicólogas e assistentes sociais – e gestores – demais funcionários da instituição – segue a lógica proposta por Goffman (2005, p. 83).

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No caso do CIP, um centro de internação para adolescentes infra-tores, as perspectivas se dividem entre o adolescente infrator, mas, acima de tudo, adolescente, e o adolescente infrator “bandido”10, despojado de sua condição de adolescente. Este é um tema polêmico, tanto dentro quanto fora de instituições como o CIP. Não nos cabe aqui discutir em maiores detalhes cada uma das posições, mas simplesmente apontar as conseqüências da concepção que se tem do adolescente na formulação das regras e na racionalização da rotina da instituição. Constamos que, na instituição analisada, prevalece a perspectiva que os caracteriza como sujeitos perigosos. Sendo que a representação dos adolescentes como indivíduos perigosos é dominante na instituição, a ênfase dada pelos fun-cionáriosénasegurançaenavigilância.Hátambém,éclaro,umapreo-cupação com a dimensão pedagógica. Em muitas reuniões, os monitores foram lembrados que seu papel é também “educar” os adolescentes. Mas, mesmo através da dimensão pedagógica, perpassa a lógica da vigilância e da segurança, como nas palavras do gestor na mesma reunião: “Isso é uma cadeia, mas uma cadeia que tem que educar, através da disciplina”. Ao enfatizar que a instituição é uma cadeia, em uma reunião exclusiva-mente para funcionários, o gestor está perpetuando o estigma do ado-lescente como “delinqüente”, pois, sendo uma “cadeia”, seu “cliente” só poderia ser um deles.

Outro aspecto da “cultura dos internados” discutidos por Goff-man está relacionado ao “tempo”. Em primeiro lugar, o autor afirma que:

[...] existe um intenso sentimento de que o tempo passado no estabelecimento é tempo perdido, destruído ou tirado da vida da pessoa; é tempo que precisa ser “apagado”, é algo que precisa ser “cumprido”, “preenchido” ou “arrastado” de alguma forma” (Goffman; 2005, p. 64).

No caso estudado, os adolescentes falam continuamente sobre “pagar de boa” o tempo que devem ficar na instituição. Esta expressão significa comportar-se de modo adequado, não causar problemas ou ar-

10 A visão do adolescente como delinqüente entre funcionários de Centros Educacionais é analisada por Simone Gonçalves de Assis, em seu livro Traçando Caminhos em uma Sociedade Violenta. Na pesquisa que originou o livro, a autora constata que: “Os relatos mostram como os internos carregam o estigma de delinqüentes, mesmo dentro da instituição que, supostamente, teria o papel de socializá-los” (1999, p. 174).

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rumar confusões durante sua permanência no CIP. Seu discurso revela que entendem o tempo que ali permanecem não apenas como “tempo perdido”, mas como uma punição, uma dívida que deve ser paga à so-ciedade. Não podemos deixar de assinalar que esta concepção contraria diretamente o caráter pedagógico das Medidas Socioeducativas preconi-zado pelo ECA. Para eles, estar na instituição tem puramente um caráter punitivo e estão ali para cumprir sua “pena”.

As duras condições da vida em uma instituição total por si só não explicam o sentimento de “tempo perdido” e “exílio” da vida. Deve-se considerar também que, vivendo em uma instituição fechada, o inter-nado perde o contato com seu meio social, com sua vida social. A vida além dos muros continua e o internado sabe que não faz mais parte dela. O fato de que o internado não adquire nada que possa lhe ser útil no retorno ao mundo externo só vem a agravar este sentimento. As aulas do EJA realizadas na instituição podem desempenhar um papel importante neste sentido, pois o certificado de conclusão do ensino fundamental, por exemplo, dá ao adolescente um sentimento de que “conquistou” algo durante a internação.

No entanto, as aulas e atividades extras ocupam uma parcela mui-to pequena de seu dia: duas horas pela manhã e uma ou duas à tarde, quatro vezes por semana. Os meses de férias são longos, considerando sua situação asilar. Isso significa uma angústia constante, pois não há “nada para fazer”. Durante as férias letivas, os adolescentes comentavam constantemente com a pesquisadora que sentiam falta das aulas e das atividades extras. Isso, sem perder o tom de contestação da adolescência, como fica claro nas palavras de Kleber numa tarde de verão: “Nunca imaginei que ia ter saudades das aulas, mas não vejo a hora que comece de novo. Era chato, mas o tempo passava mais rápido, distraía”.

Na opinião dos gestores, os adolescentes têm muito tempo ocioso e, para os monitores, essa ociosidade tem implicações diversas. Segundo eles, sem nada para fazer, os adolescentes acabam tendo tempo para fa-zer “espetos”, organizar fugas, etc. Mesmo assim, segundo Goffman, “a

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preocupação do guarda não diminui, pelo fato de saber que o internado pode fazer essas coisas [enganá-lo ou colocá-lo em dificuldade] apenas para manter seu amor próprio ou vencer o tédio” (2005, p. 75), como fica claro no depoimento de um gestor:

Mas tu vê, não tem uma aula decente, não tem um curso profissionalizante, não tem nada... Aí vão ficar o tempo todo coçando o saco, vendo televisão, vendo “Malhação”, comendo, bebendo, só, e tentando arrumar jeito de fugir, de furar alguém, ou fazendo essas coisinhas sabe [mostra um “espeto” para a pesquisado-ra], isto aqui é um “negocinho” do zíper de uma bermuda. Porque não tem nada pra fazer, aí vai virar escultor. Sabe, isso bem cutucado no pescoço da pessoa, minha filha...

A concepção dos gestores, em relação a situação asilar vivenciada pelos internados, coincide com a dos adolescentes. Os dois grupos con-cordam que a instituição é, na prática, uma prisão e deve-se colocar os “eufemismos” impostos pelo ECA de lado – a instituição é uma cadeia. Presenciamos uma conversa entre um dos monitores e alguns adoles-centes, na qual se falou sobre o assunto. O monitor dava conselhos aos adolescentes: “Quando vocês saírem, trabalhem pra se sustentar; meu pai já me dizia isso, tem que trabalhar” e prossegue “Isso aqui não é vida, ‘tá preso não é vida, porque podem dizer que isso não é cadeia, mas é sim. Na linguagem da lei eles podem até dizer que é outra coisa, mas vocês sabem que é cadeia”. Todos os adolescentes concordaram com ele; este é um dos pontos em que adolescentes e gestores concordam e não há con-flitos. São vários os momentos em que isso fica evidente. Nas palavras de um dos gestores:

Eu tive que aprender o termo técnico, que não é punição, que é uma medida socioeducativa, que você ta “reabilitando” ele. Mesmo que aqui dentro tenha a aparência de um presídio, de uma cadeia. O Estatuto vislumbra, ele preconiza uma coisa, só que a realidade é outra.

Além disso, o discurso dos adolescentes é permeado por expres-sões oriundas da linguagem “de cadeia” – “jega” ao invés de “quarto”, por exemplo – quando precisam evocar um código ético, é a “lei da ca-deia”. O discurso “oficial”, de que estão em um Centro Educacional, é sempre ridicularizado por todos, como fica claro na fala de Marcelo

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– um adolescente: “Diz pra eles virem passar um dia aqui e me falarem se isso não é cadeia”. Para os adolescentes, assim como para os gestores, as condições asilares vivenciadas, privação de liberdade, vigilância cons-tante, rotina controlada, juntamente com o estrutura física da instituição, cadeados, grades, muros, justifica sua posição: é uma cadeia.

considEraçõEs finais

A trajetória de vida, após a liberação da maioria dos adolescentes com os quais tivemos contato é, por si só, um diagnóstico da situação em que os Centros de Internamento Provisório e os Centros Educacionais Regionais se encontram. A proposta do Estatuto da Criança e do Ado-lescente é que estes lugares funcionem como espaços de ressocialização, que ofereçam condições reais de mudança. No entanto, a pesquisa reali-zada constatou que, na prática, isto é apenas uma utopia.

A pesquisa demonstrou também que a rotina dos adolescentes dentro da instituição obedece a um plano racional, que todas as ativi-dades são monitoradas e os adolescentes são vigiados constantemente. Em se tratando de uma instituição total, as regras que regem esta roti-na são múltiplas, fragmentadas e perpassam todas as esferas da vida do indivíduo. Constatamos, em concordância com a análise de Goffman, que os castigos aplicados aos adolescentes que desobedecem as regras da instituição são muito mais severos do que qualquer coisa experien-ciada no mundo exterior. Além disto, o olhar da autoridade controla e vigia, não apenas seus movimentos, mas também sua fala e seus humores. Tudo deve ser registrado e avaliado pois a liberdade futura do adolescen-te depende de seu “bom comportamento”. Todas estas características do quotidiano de uma instituição total, presentes na instituição estudada, contribuem para o sentimento de insegurança e tensão vivenciado pelos adolescentes diariamente. Muitos passam os dias “no veneno”, na eterna luta interna para controlar seus impulsos e suas ações.

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Tatiana Dassi & Maria José Reis

Por outro lado, Goffman deixa claro que, em uma instituição to-tal, há dois mundos paralelos: o “mundo dos internos” e o “mundo dos funcionários”. A falta de compreensão dos diferentes significados que um mesmo fato pode ter, para funcionários e adolescentes, torna o diá-logo entre eles difícil. Para os funcionários, isso significa um sentimento de frustração, pois sentem que seu trabalho não é reconhecido pelos adolescentes. Já, para os adolescentes, isso representa um aumento da tensão em que vivem, pois sentem que “fazem tudo errado” e nunca são compreendidos. Pedro nos falou um dia que “o cara tem que entender que aqui dentro ele ‘tá sempre errado”.

O que ficou claro durante a pesquisa é que a dimensão pedagógica da medida socioeducativa de internação está ausente na representação dos adolescentes e da maioria dos funcionários da instituição. O que constata-mos em relação aos adolescentes é que, para eles, a privação de liberdade é meramente punitiva. Já, quanto aos funcionários, a questão é: até que ponto a privação de liberdade pode cumprir um papel na ressocialização e educação do adolescente? Esta discussão sobre a validade, ou não, da punição e da internação como meio de educação está presente em autores como Soares, Sandrini e Passetti. Gostaríamos de sugerir sua importância e esperamos que outros pesquisadores se ocupem do tema futuramente.

No momento em que escrevemos, o que relatamos já se trans-formou no passado de alguns destes adolescentes. Gostaríamos que esta transformação só tivesse um significado: liberdade, mas esta não é a rea-lidade. No início do mês de junho de 2007, um dos adolescentes com os quais convivemos desde o início da pesquisa foi morto. Sua morte não é apenas triste, mas é também trágica, porque é “normal”. Este é o destino de grande parte deles, aceito como um “fato social”, mesmo por aqueles que almejam uma mudança. A morte é a situação limite, o fim da trajetória, mas não a única tragédia. Dois outros adolescentes sobre os quais escreve-mos neste trabalho estão agora na cadeia; ambos já haviam completado 18 anos quando cometeram o crime11 que resultou em sua prisão.

11 É interessante notar que, a partir do momento em que completam 18 anos, a infração torna-se crime. Sobre as conseqüências e implicações desta perda instantânea do status de “menor”, ver Milito e Silva, Vozes do Meio-Fio.

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O Cotidiano de Adolescentes Cumprindo de Medida Socioeducativa de Internação: penalizar ou educar?

O destino destes três adolescentes é o destino de tantos outros: partilham todos a tragédia da vida daqueles que, estigmatizados pelo sen-so comum, são “descartáveis”. O que esperamos é que os resultados desta pesquisa contribuam para a quebra do estigma do “menor delin-qüente”. E que, de algum modo, sirvam para reflexão de novos caminhos e novas práticas.

TATIANA DASSI

mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – universidade Federal de Santa Catarina (uFSC) –

Florinaópolis/SC

E-mail: [email protected]

DRA. mARIA JOSÉ REIS

universidade do Vale do Itajaí (uNIVALI) – Itajaí/SC

E-mail: [email protected]

ABSTRACT

This paper describes and analyzes the daily routine of young offenders, living in detention centre in the city of Itajaí, Santa Catarina, Brazil. According to the proposal of the Statute of the Child and Adolescent (ECA), institutions of this kind should serve as spaces for resocial-ization, offering real conditions of behavioral change for subjects living in such institutions. From an ethnographic perspective, we tried to describe and analyze the conditions of admission, the routine of adolescents and officials, the interpretation of both groups on the situation of asylum. The fieldwork, developed through a prolonged coexistence with the subjects observed, was conducted from July 2006 to May 2007. To conduct the research, according to the objective and perspective mentioned above, the Goffman’s concept of "total institution" was essential. The author has helped us to understand and interpret the various implications of life in the institution for employees and adolescents as well as the routine control mechanisms. Findings indicate a clear gap between the institutions official goal and "reality" of the life in the institution, which is far from the ideal conditions men-tioned in the text of the ECA.

Keywords: Juvenile delinquents. Youth detention centre. ECA.

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Tatiana Dassi & Maria José Reis

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O Cotidiano de Adolescentes Cumprindo de Medida Socioeducativa de Internação: penalizar ou educar?

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RESENHASRESENHAS

BOOK REVIEWSBOOK REVIEWS

Ensaios de Antropologia e de Direito, de Roberto Kant de Lima. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, 289 pp. . .........................................................................................139

Resenhado por Manuela Vieira de Freitas

Essays on Anthropology and Law, by Roberto Kant de Lima. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, 289 pp.. ..........................................................................................139

Reviewed by Manuela Vieira de Freitas

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139ISSN 1983-1927

Brasília, v. 2, n. 1, p. 139-144, jan./jun. 2009.

RESEnhaS

Ensaios dE antropologia E dE dirEito, dE roBErto Kant dE lima. rio dE JanEiro: lumEn Juris, 2008, 289 pp

Manuela Vieira de Freitas

Foi publicado pela Editora Lumen Juris – Rio de Janeiro, em 2008, o livro Ensaios de Antropologia e de Direito, de Roberto Kant de Lima, coordenado pelo próprio autor e por Michel Misse.

Roberto Kant de Lima é professor titular da Universidade Gama Filho e da Universidade Federal Fluminense. Sua formação inicial é ba-charel em direito pela Faculdade de Direito de Porto Alegre, Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul. É mestre em Antropologia Social (UFRJ).DoutoremAntropologia(HarvardUniversity),comtesesobreas práticas policiais e judiciárias criminais da cidade do Rio de Janeiro. Pós-doutor em Antropologia (Alabama University). Foi professor visi-tante da Universidade de Ottawa (Canadá), bem como da Universidade de Buenos Aires (Argentina).

O livro Ensaios de Antropologia e de Direito apresenta uma coletânea de textos de Roberto Kant de Lima, produzidos durante mais de duas décadas de trajetória acadêmica e profissional, publicados em diferentes veículos de comunicação, a maioria vinculados aos campos do Direito e da Antropologia, visando objetivos primordialmente didáticos.

A seleção de textos foi realizada de maneira aleatória, obedecen-do apenas a critérios de sensibilidade estética e memória afetiva do autor. Dessa forma, os capítulos podem ser lidos em qualquer ordem, sem afe-tar a compreensão do todo.

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Resenhas

O eixo condutor da obra é a contribuição de conceitos e métodos da Antropologia para a compreensão da tradição e da cultura jurídica brasileiras, bem como das práticas policiais e dos modelos de controle social e produção da verdade na burocracia oficial do País.

Logo em seu primeiro capítulo, o autor enfatiza que a contribui-ção da Antropologia para a pesquisa jurídica no Brasil está vinculada à sua tradição de pesquisa e, portanto, propõe a utilização do método etno-gráfico (tradição antropológica) que parte do familiar para então estabe-lecer diferenças significativas, que aparecem por contraste (comparação) entre diferentes sociedades, para analisar e compreender a tradição do saber jurídico brasileiro.

No capítulo seguinte, ainda utilizando técnicas consagradas pela tradição antropológica, Kant discorre acerca da cultura jurídica e das prá-ticas policiais na cidade do Rio de Janeiro a partir do destaque das dife-renças existentes entre os sistemas processuais com ênfase acusatorial e os sistemas processuais com ênfase inquisitorial, ressaltando o fato de o ordenamento jurídico brasileiro apresentar um sistema misto em que cabe à polícia o processo preliminar (inquisitorial) e à justiça o processo judicial (acusatório) e discutindo as inúmeras contradições geradas por essa estrutura.

O terceiro capítulo, escrito por Roberto Kant de Lima e Alex Varella, discute o saber jurídico e direito à diferença no Brasil a partir da Antropologia e simultaneamente da filosofia wittgensteiniana, ressaltan-do que a maior parte das reflexões sobre o Direito que se exerce hoje no Brasil caminha por duas vertentes aparentemente excludentes: a via apo-logética (que considera o Direito como não pertencente à ordem da so-ciedade) e a via da denúncia (que alardeia os conteúdos ideológicos e os privilégios de classe que permeiam o sistema legal). Segundo os autores, no entanto, as duas vertentes são prisioneiras da perspectiva essencialis-ta, avessa à diferença e redutora da multiplicidade social. A solução seria um exame mais detido da tradição compreensiva (Dilthey), defensora daseguinteargumentação:alógicaquepresideasCiênciasHumanasé

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Resenhas

distinta e mesmo oposta à lógica que rege o procedimento científico do conhecimento da natureza. Enquanto as Ciências Naturais são genera-lizantes, asHumanas são individualizantes, ou seja, buscam apreendera singularidades das e nas diversas situações sociais. Portanto, a partir dessas reflexões os autores defendem que o Direito deve ser entendido como uma Ciência Social, confundindo-se com a tarefa de investigação de outras ciências, tais como a Sociologia, a Política, a Economia e a An-tropologia, sem deixar de ressaltar que um entendimento diverso (direito com ciência normativa) não compromete em nada a importância ou a dignidade da prática jurídica.

O capítulo seguinte discute algumas características da cultura jurí-dica brasileira a partir de um levantamento histórico-antropológico sobre o inquérito policial do período colonial à República, ressaltando que no decurso do tempo as tradições jurídicas pouco se alteraram. O texto tra-ta da origem do estado moderno, dos procedimentos eclesiásticos e do processo penal português, do processo no Império e do julgamento po-pular, entre outros assuntos relevantes. Esclarece que alguns juristas ao se referirem ao sistema processual penal brasileiro, costumam chamá-lo de misto, por adotar princípios do júri inglês (sistema acusatório) e do pro-cesso francês (sistema inquisitório). Discute os paradoxos do processo penal na Constituição da República e finaliza dizendo que a construção da democracia em nosso país passa, necessariamente, pela explicitação das tradições escondidas atrás de um discurso ambíguo de um sistema jurídico supostamente misto, das características e das vicissitudes pecu-liares a nossa sociedade.

O quinto capítulo traz um estudo sobre polícia, justiça e socieda-de brasileiras, a partir de uma abordagem comparativa entre os modelos de administração do espaço público do Brasil versus modelos dos Esta-dos Unidos da América. O texto trata das características do sistema cri-minal brasileiro, esmiuçando o inquérito policial, o processo judicial e o julgamento pelo tribunal do júri, sempre numa perspectiva comparada e com a ressalva de que interessa ao antropólogo compreender e explicitar

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Resenhas

os princípios de funcionamento dos diferentes sistemas ou regimes de verdade, não cabendo nenhum tipo de julgamento de superioridade ou inferioridade de um sistema sobre o outro.

No próximo capítulo o autor trata do dilema da ética nos proces-sos de construção da verdade em uma perspectiva comparada, mais uma vez utilizando o contraste da tradição brasileira versus a tradição anglo-americana. São discutidos os usos contextualizados da mentira em nosso sistema jurídico, no qual é legítimo mentir em causa própria (somente as testemunhas podem ser acusadas de perjúrio) visto que o silêncio é associado à culpa. O texto também questiona a incorporação, por parte de nossos juristas, de lógicas distintas adaptadas de sistemas jurídicos de outros países que resultam no seguinte paradoxo: nossa organização burocrática judiciária é descrita de uma forma e funciona de outra. Para finalizar, o autor suscita a reflexão acerca da necessidade de explicitação de nossos processos de construção da verdade para nós mesmos, a fim de tornar possível a elaboração de uma ética jurídica própria, pois, se-gundo ele, enquanto não desvendarmos nossas tradições, não podemos optar por conservá-las ou não.

No sétimo capítulo - entitulado Estado Mínimo, desde que com Re-pressão Máxima - o autor utiliza os mesmos princípios metodológicos da Antropologia descritos em textos anteriores para esclarecer que a cultu-ra jurídica brasileira não é favorável à explicitação dos conflitos, o que promove um aumento das necessidades de ações repressivas do Estado. O texto também provoca uma reflexão acerca das desigualdades sociais brasileiras que resultam em aplicações diferentes da lei para diferentes pessoas e explicam o fato de a minimização do Estado se dar em al-gumas esferas da sociedade em detrimento de outras. Conclui dizendo que a modificação dessa realidade requer mais do que discursos. Requer discursos coerentes.

No oitavo capítulo da obra o autor fala sobre a formação poli-cial em nossa sociedade, utilizando a metodologia comparativa para ir ao cerne da questão. Inicia o texto dizendo que em muitas situações o mau

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Resenhas

desempenho da polícia está relacionado à má formação e discorre acerca da necessidade de treinamento permanente, principalmente no que con-cerne à arma de fogo. No entanto, acrescenta que determinadas práticas policiais que podem ser confundidas com mau desempenho consistem em desempenho de acordo com um modelo social que legitima essas ações. Modelo esse, calcado em valores e ideologia diferentes daquelas que informam explicitamente o nosso julgamento. Dessa forma, defende que a formação policial brasileira ainda é marcada por uma concepção autoritária de sociedade, sendo necessária a desconstrução de paradigmas de pensamento e ação a fim de modificar essa estrutura.

O último capítulo discute alguns aspectos do sistema brasileiro de controle das atividades burocráticas estatais que, segundo o autor, apre-senta correlação com a produção de verdades judiciárias. A exposição faz uso de pesquisas realizadas pelo autor com sistemas judiciários do Brasil e dos Estados Unidos, sob a orientação da metodologia comparati-va própria da perspectiva antropológica contemporânea, exaustivamente discutida no decorrer do livro.

A obra é muito interessante porque proporciona uma visão da cul-tura jurídica brasileira a partir de uma perspectiva inovadora que contex-tualiza o saber jurídico em nossa estrutura social, considerando a tradição cultural de nosso povo. Porém, em diversos momentos o texto pode ser considerado demasiadamente repetitivo, em função de apresentar uma coletânea de textos produzidos isoladamente em diferentes épocas.

Na introdução do livro consta ressalva do autor acerca das re-petições citadas anteriormente. Ele as considera inevitáveis. Isso ocorre porque o argumento apresentado é o mesmo nos diferentes capítulos. No entanto, cabe ressaltar que a argumentação e o padrão interpretativo da obra foram se modificando e se deslocando de forma a sair da teoria e alcançar a prática, ou seja, deslocando-se gradativamente de propostas teóricas para a descrição de modelos e, posteriormente, sugestão de mo-delos ideais.

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Resenhas

A obra exige concentração e empenho por parte do leitor, em função da grande quantidade de informações e reflexões apresentadas pelo autor. Mais que recomendável, a leitura é obrigatória para os estu-diosos da ciência policial.

mANuELA VIEIRA DE FREITAS

Graduada em Pedagogia pela universidade de Brasília (unB), é Técnica em Assuntos Educacionais na Academia Nacional

de Polícia.

E-mail: [email protected]

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JURISPRUDÊNCIAJURISPRUDÊNCIA

JURISPRUDENCEJURISPRUDENCE

Tráfico de Drogas e Combinação de Leis Incriminadoras - 2 ..........................................................................................147

Interrogatório por Videoconferência - 2 ...............................................................................................................................................148

Decreto de Expulsão e Direito à Progressão de Regime - 1 ..............................................................................................148

Policial Cedido: Atividade Policial e Tempo de Serviço ....................................................................................................... 149

Prisão Civil e Depositário Infiel - 3 ..............................................................................................................................................................150

Prisão de Depositário Judicial Infiel e Revogação da Súmula 619 do STF ..............................................................151

Proposta de Súmula Vinculante e Acesso do Advogado a Elementos de Prova já Documentados ....151

Desarquivamento de Inquérito Policial e Excludente de Ilicitude - 1 ..........................................................................153

Desarquivamento de Inquérito Policial e Excludente de Ilicitude - 2 ........................................................................ 154

ADI N. 3.817-DF ............................................................................................................................................................................................................... 155

Competência. STJ. HC. Local. Custódia. Transporte. Viatura. ........................................................................................... 156

Magistrado. Parcialidade........................................................................................................................................................................................ 156

Drug Trafficking and combination of Criminal Laws - 2 ........................................................................................................147

Interrogation by Videoconference - 2 ....................................................................................................................................................148

Decree for Expulsion and the Right to Progression Scheme ............................................................................................148

Assigned Police Officer: Police Activity and Length of Service ................................................................................. 149

Civil Prison and Unfaithful Trustee .............................................................................................................................................................150

Prision of an Unfaithful Judicial Trustee and Repealing of the STF Sumula 619 ...............................................151

Proposal for a Binding Abridgement and Lawer Access to Already Documented Evidence .......................151

Reopening of the Police Inquiry and Excluding of Illegality - 1 ........................................................................................153

Reopening of the Police Inquiry and Excluding of Illegality - 2 ..................................................................................... 154

ADI N. 3.817-DF ............................................................................................................................................................................................................... 155

Competence. STJ. HC. Local. Custody. Transportation. Vehicle. .................................................................................. 156

Magistrate. Partiality. ................................................................................................................................................................................................ 156

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147ISSN 1983-1927

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JURiSpRUdência

tráfico dE drogas E comBinação dE lEis incriminadoras - 2

A Turma, em conclusão de julgamento, deferiu, por maioria, habe-as corpus impetrado em favor de condenado por tráfico ilícito de entorpecentes (Lei 6.368/76, art. 12, c/c art. 29doCP)paraquese aplique, em seu benefício, a causa de diminuição trazida pela Lei 11.343/2006—v.Informativo523.Centrava-seaquestãoemapuraro alcance do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, em face da nova Lei de Tóxicos, que introduziu causa de diminuição da pena para o delito de tráfico de entorpecentes, mas aumentou-lhe a pena mínima. Inicialmente, salientou-se a necessidade de se perqui-rir se seria lícita a incidência isolada da causa de diminuição de pena aos delitos cometidos sob a égide da lei anterior, tendo por base as penas então cominadas. Entendeu-se que aplicar a causa de diminui-ção não significa baralhar e confundir normas, uma vez que o juiz, ao assim proceder, não cria lei nova, mas apenas se movimenta den-tro dos quadros legais para uma tarefa de integração perfeitamente possível. Ademais, aduziu-se que se deveria observar a finalidade e a ratio do princípio, para dar correta resposta à questão, não havendo como se repudiar a aplicação da causa de diminuição também a situa-ções anteriores. Nesse diapasão, enfatizou-se, também, que a vedação de junção de dispositivos de leis diversas é apenas produto de inter-pretação da doutrina e da jurisprudência, sem apoio direto em texto constitucional. Vencida a Min. Ellen Gracie, relatora, que indeferia o writ por considerar que extrair alguns dispositivos, de forma isolada, de um diploma legal, e outro preceito de diverso diploma, implicaria alterar por completo o seu espírito normativo, gerando um conteú-do distinto do previamente estabelecido pelo legislador, e instituindo uma terceira regra relativamente à situação individual do paciente. Precedentecitado:HC68416/DF(DJUde30.10.92).

HC 95435/RS, rel. orig. Min. Ellen Gracie, rel. p/ o acórdão Min. Cezar Peluso,21.10.2008.(HC-95435).Info.n.525,de29deoutubrode2008.

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Jurisprudência

intErrogatório por vidEoconfErência - 2

O Tribunal, por maioria, concedeu habeas corpus impetrado em favor de condenado pela prática do delito previsto no art. 157, § 2º, I e II, do CP, e declarou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade formal da Lei paulis-ta11.819/2005,quepreviuautilizaçãodeaparelhodevideoconferêncianos procedimentos judiciais destinados ao interrogatório e à audiência de presos—v.Informativo518.Naespécie,ointerrogatóriodopaciente,a despeito da discordância de sua defesa, realizara-se sem a presença do paciente na sala da audiência, por meio da videoconferência. Entendeu-se que a norma em questão teria invadido a competência privativa da União para legislar sobre direito processual (CF, art. 22, I). Vencidos, em parte, os Ministros Carlos Britto e Marco Aurélio, que também conside-ravam caracterizada a inconstitucionalidade material do diploma exami-nado. Vencida a Min. Ellen Gracie, relatora, que indeferia o writ, por não vislumbrar vício formal, já que o Estado de São Paulo não teria legislado sobreprocesso,esimsobreprocedimento(CF,art.24,XI),nemvíciomaterial, haja vista que o procedimento instituído teria preservado todos os direitos e garantias fundamentais, bem como por reputar não demons-trado qualquer prejuízo na realização do interrogatório do paciente.

HC90900/SP, rel.orig.Min.EllenGracie, rel.p/oacórdãoMin.MenezesDireito,30.10.2008.(HC-90900).Info.n.526,de5denovembrode2008.

dEcrEto dE Expulsão E dirEito à progrEssão dE rEgimE - 1

A Turma negou provimento a recurso ordinário em habeas corpus no qual nacional norte-americano, condenado, com terceiros, pelo crime de tráficodesubstânciasentorpecentes(Lei6.368/76,art.12,caput),acum-primento da reprimenda em regime integralmente fechado, sustentava: a) inobservância do princípio constitucional da individualização da pena, por ausência de fundamentação para a fixação da pena-base acima do mí-nimo legal; b) indevida incidência da majoração decorrente do disposto

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Jurisprudência

noart.18,III,daLei6.368/76,emfacedasuaabsolviçãorelativamenteaodelitodeassociaçãoparaotráfico(Lei6.368/76,art.14);c)desne-cessidade de prequestionamento em habeas corpus e d) possibilidade de progressão de regime prisional para o crime de tráfico de drogas. No caso, o STJ, para evitar supressão de instância, não conhecera da impetra-ção porquanto a alegação referente à fixação da pena não fora apreciada pelo tribunal de origem. De início, ressaltou-se que a situação dos autos apresentaria peculiaridade, consistente no fato de que o recorrente tivera decretada a sua expulsão do Brasil em 1981, mas que retornara clandes-tinamente, vindo a ser preso novamente, em 1999, pela prática do delito que ensejara a condenação em análise. Salientou-se que a aludida decre-tação de expulsão estaria suspensa para se aguardar o cumprimento da penaoraquestionada(Lei6.368/76,art.12),jáqueeleestariaemdébitocom a sociedade brasileira por causa desses crimes. Considerou-se que, nãoobstanteapendênciadeumdecretodeexpulsão—oqualnãopo-deriaserexecutado—,dever-se-iaobservarodireitoconstitucionaldorecorrente à progressão no regime de cumprimento da pena.

RHC93469/RS,rel.Min.CarménLúcia,28.10.2008.(RHC-93469).

policial cEdido: atividadE policial E tEmpo dE sErviço

O Tribunal, por maioria, julgou procedente pedido formulado em ação direta ajuizada pela então Governadora do Distrito Federal para declarar a inconstitucionalidadedoart.3ºdaLeidistrital3.556/2005,queconsideracomo de efetivo exercício de atividade policial o tempo de serviço prestado pelo servidor das carreiras policiais civis da Polícia Civil do Distrito Federal cedido à Administração Pública Direta e Indireta de qualquer dos Poderes da União e do Distrito Federal. Entendeu-se que o dispositivo impugna-docolidecomoart.40,§4º,daCF—queapenaspermiteaadoçãoderequisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria, nos termos definidos em leis complementares, nos casos enumerados em seus incisos—,hajavistaqueopolicial,quandocedido,podeounãoexercer

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Jurisprudência

atividades de risco. Ademais, considerou-se que, embora não apontada essa ofensa na inicial, a lei distrital questionada está em confronto com o art. 21, XIV,daCF,queprescreveserdacompetênciadaUniãoaorganizaçãoeamanutenção da polícia civil do Distrito Federal. Vencidos, em parte, o Min. Menezes Direito, que declarava apenas a inconstitucionalidade material da norma, e o Min. Joaquim Barbosa, que apontava só a sua inconstituciona-lidade formal. Vencido, integralmente, o Min. Marco Aurélio, que julgava o pleito improcedente, por reputar razoável o preceito, no que buscou evi-tar que o servidor cedido, por interesse da Administração Pública, viesse a ser prejudicado na carreira de origem. Alguns precedentes citados: SS 1154AgR/DF(DJUde6.6.97);ADI1136/DF(DJUde13.10.2006);ADI2988/DF(DJUde26.4.2004).

ADI3817/DF,rel.Min.CármenLúcia,13.11.2008.(ADI-3817).Info.n.528,de19denovembro de 2008.

prisão civil E dEpositário infiEl - 3

Em conclusão de julgamento, o Tribunal concedeu habeas corpus em que se questionava a legitimidade da ordem de prisão, por 60 dias, de-cretada em desfavor do paciente que, intimado a entregar o bem do qual depositário,nãoadimpliraaobrigaçãocontratual—v.Informativos471,477 e 498. Entendeu-se que a circunstância de o Brasil haver subscrito o Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7º, 7), conduz à inexistência de balizas visando à eficácia do que previsto no art. 5º, LXVII,daCF(“nãohaveráprisãocivilpordívida,salvoadoresponsávelpelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;”). Concluiu-se, assim, que, com a introdução do aludido Pacto no ordenamento jurídico nacional, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel. Prevaleceu, no julgamento, por fim, a tese do status de supralegalidade da referida Convenção, inicialmente defendida pelo Min. Gilmar Mendes no

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Jurisprudência

julgamentodoRE466343/SP,abaixorelatado.Vencidos,noponto,osMinistros Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau, que a ela davam a qualificação constitucional, perfilhando o entendimento ex-pendido pelo primeiro no voto que proferira nesse recurso. O Min. Mar-co Aurélio, relativamente a essa questão, se absteve de pronunciamento.

HC87585/TO,rel.Min.MarcoAurélio,3.12.2008.(HC-87585).Info.n.531,de11dedezembro de 2008.

prisão dE dEpositário Judicial infiEl E rEvogação da súmula 619 do stf

Na linha do entendimento acima sufragado, o Tribunal, por maioria, concedeu habeas corpus, impetrado em favor de depositário judicial, e averbou expressamente a revogação da Súmula 619 do STF (“A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo, independentemente da propositura de ação de depósito”). Vencido o Min. Menezes Direito que denegava a ordem por considerar que o depositário judicial teria outra natureza jurídica, aparta-da da prisão civil própria do regime dos contratos de depósitos, e que sua prisão não seria decretada com fundamento no descumprimento de uma obrigação civil, mas no desrespeito ao múnus público.

HC92566/SP,rel.Min.MarcoAurélio,3.12.2008.(HC-92566).

proposta dE súmula vinculantE E acEsso do advogado a ElEmEntos dE prova Já documEntados

O Tribunal, por maioria, acolheu proposta de súmula vinculante formu-lada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, e, em seguida, aprovou o Enunciado da Súmula Vinculante 14 nos seguintes termos: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso

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Jurisprudência

amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judici-ária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”. Na espécie, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, com fundamento noart.103-A,§2º,daCF,enoart.3º,V,daLei11.417/2006,propu-nha a edição de enunciado de súmula vinculante que tratasse do acesso, pelo advogado do investigado, aos autos do inquérito policial sigiloso, e sugeria a aprovação do seguinte texto: “O advogado constituído pelo investigado, ressalvadas as diligências em andamento, tem o direito de examinar os autos de inquérito policial, ainda que estes tramitem sob sigi-lo”. Preliminarmente, o Tribunal, por maioria, rejeitou questão suscitada pela Min. Ellen Gracie, e seguida pelo Min. Joaquim Barbosa, no sentido de se reconhecer não ser conveniente e oportuna a edição de súmula vinculante, ao fundamento de o tema tratado não ter tanta abrangência, no momento, a exigir da Corte um absoluto posicionamento sobre ele. Considerou-se estarem preenchidos os requisitos do art. 103-A da CF, e de ser oportuna e conveniente a edição da súmula vinculante haja vis-ta estar-se diante de tema relativo a direitos fundamentais. Ressaltou-se, ademais, já haver diversos precedentes da Corte sobre o assunto. No mérito, entendeu-se que a jurisprudência do Supremo tem garantido a amplitude do direito de defesa, o exercício do contraditório e o devido processo legal (CF, art. 5º, LIV e LV) mesmo que em sede de inquéritos policiaise/ouprocessosoriginários,cujosconteúdosdevamsermanti-dos sob sigilo. Asseverou-se, por outro lado, que a redação sugerida pelo requerente já excluiria da determinação contida na súmula as diligências em andamento, a evitar qualquer óbice à efetividade da atividade inves-tigatória.Precedentescitados:HC88520/AP(DJUde19.12.2007)HC90232/AM(DJUde2.3.2007);HC88190/RJ(DJUde6.10.2006);HC92331/PB (DJUde2.8.2008);HC87827/RJ (DJUde23.6.2006);HC82354/PR(DJUde24.9.2004).

PSV1/DF,rel.Min.MenezesDireito,2.2.2009.(PSV-1).Info.n.534,de11defevereirode 2009-02-12.

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Jurisprudência

dEsarquivamEnto dE inquérito policial E ExcludEntE dE ilicitudE - 1

A Turma, por maioria, indeferiu habeas corpus no qual pleiteado o tran-camento de ação penal instaurada a partir do desarquivamento de inquéri-to policial, em que reconhecida excludente de ilicitude. No caso, o citado inquérito apurava homicídio imputado ao paciente, delegado de polícia, e a outros policiais, sendo arquivado a pedido do Ministério Público do Es-tado do Espírito Santo, que reputara configurado o estrito cumprimento do dever legal. Passados dez anos da decisão judicial, fora instalado, pelo parquet, o Grupo de Trabalho para Repressão ao Crime Organizado - GRCOnaquelaunidadefederativa—quederaorigem,posteriormente,a Comissões Parlamentares de Inquérito em âmbito estadual e nacional —,cujostrabalhosindicariamqueopacienteeosdemaispoliciaisnãoteriam agido em estrito cumprimento do dever legal, mas sim suposta-mente executado a vítima (“queima de arquivo”). A partir disso, novas oitivas das mesmas testemunhas arroladas no inquérito arquivado foram realizadas e o órgão ministerial, concluindo pela caracterização de pro-va substancialmente nova, desarquivara aquele procedimento, o que fora deferido pelo juízo de origem e ensejara o oferecimento de denúncia. A impetração alegava que o arquivamento estaria acobertado pelo manto da coisa julgada formal e material, já que reconhecida a inexistência de crime, incidindo o Enunciado 524 da Súmula do STF (“Arquivado o in-quérito policial, por despacho do Juiz, a requerimento do Promotor de Justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas.”).

HC95211/ES,rel.Min.CármenLúcia,10.3.2009.(HC-95211).Info.n.538.

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Jurisprudência

dEsarquivamEnto dE inquérito policial E ExcludEntE dE ilicitudE - 2

O Min. Ricardo Lewandowski suscitou questão de ordem no sentido de que os autos fossem deslocados ao Plenário, porquanto transparece-ria que as informações as quais determinaram a reabertura do inquérito teriam se baseado em provas colhidas pelo próprio Ministério Público. Contudo, a Turma entendeu, em votação majoritária, que, antes, deveria apreciar matéria prejudicial relativa ao fato de se saber se a ausência de ilicitude configuraria, ou não, coisa julgada material, tendo em conta que o ato de arquivamento ganhara contornos absolutórios, pois o paciente fora absolvido ante a constatação da excludente de antijuridicidade (es-trito cumprimento do dever legal). Vencido, no ponto, o Min. Ricardo Lewandowski que, ressaltando o contexto fático, não conhecia do writ por julgar que a via eleita não seria adequada ao exame da suposta prova nova que motivara o desarquivamento. No mérito, também por maioria, denegou-se a ordem. Aduziu-se que a jurisprudência da Corte seria farta quanto ao caráter impeditivo de desarquivamento de inquérito policial nas hipóteses de reconhecimento de atipicidade, mas não propriamente de excludente de ilicitude. Citando o que disposto no aludido Verbete 524 da Súmula, enfatizou-se que o tempo todo fora afirmado, desde o Ministério Público capixaba até o STJ, que houvera novas provas decor-rentes das apurações. Ademais, observou-se que essas novas condições não afastaram o fato típico, o qual não fora negado em momento algum, e sim a ilicitude que inicialmente levara a esse pedido de arquivamento. Vencidos os Ministros Menezes Direito e Marco Aurélio que deferiam o habeas corpus por considerar que, na espécie, ter-se-ia coisa julgada material, sendo impossível reabrir-se o inquérito independentemente de outras circunstâncias. O Min. Marco Aurélio acrescentou que nosso sis-tema convive com os institutos da justiça e da segurança jurídica e que, na presente situação, este não seria observado se reaberto o inquérito, a partir de preceito que encerra exceção (CPP, art. 18).

HC95211/ES,rel.Min.CármenLúcia,10.3.2009.(HC-95211).Info.n.538.

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Jurisprudência

adi n. 3.817-df

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 3º DA LEI DISTRITAL N. 3.556/2005. SERVIDORES DASCARREIRAS POLICIAIS CIVIS CEDIDOS À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIRETA E INDIRETA DA UNIÃO E DO DISTRITO FE-DERAL: TEMPO DE SERVIÇO CONSIDERADO PELA NORMA QUESTIONADACOMODEEFETIVOEXERCÍCIODEATIVI-DADEPOLICIAL.AMPLIAÇÃODOBENEFÍCIODEAPOSEN-TADORIA ESPECIAL DOS POLICIAIS CIVIS ESTABELECIDO NO ARTIGO 1º DA LEI COMPLEMENTAR FEDERAL Nº 51, DE 20.12.1985. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE.

1. Inexistência de afronta ao art. art. 40, § 4º, da Constituição da Re-pública, por restringir-se a exigência constitucional de lei complementar à matéria relativa à aposentadoria especial do servidor público, o que não foi tratado no dispositivo impugnado. 2. Inconstitucionalidade for-malpordesobediênciaaoart.21,inc.XIV,daConstituiçãodaRepúblicaque outorga competência privativa à União legislar sobre regime jurídico de policiais civis do Distrito Federal. 3. O art. 1º da Lei Complementar Federal n. 51/1985 que dispõe que o policial será aposentado volun-tariamente, com proventos integrais, após 30 (trinta) anos de serviço, desde que conte pelo menos 20 anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial foi recepcionado pela Constituição da República de 1988. A combinação desse dispositivo com o art. 3º da Lei Distrital n. 3.556/2005autorizaacontagemdoperíododevinteanosprevistonaLeiComplementarn. 51/1985 semqueo servidorpúblico tenha,ne-cessariamente, exercido atividades de natureza estritamente policial, ex-pondo sua integridade física a risco, pressuposto para o reconhecimento da aposentadoria especial do art. 40, § 4º, da Constituição da República: inconstitucionalidade configurada. 4. Ação direta de inconstitucionalida-de julgada procedente.

Info. N. 541, de 10 de abril de 2009.

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Jurisprudência

compEtência. stJ. hc. local. custódia. transportE. viatura.

O STJ não é competente originariamente para apreciar habeas corpus cujos pedidos dizem respeito ao local da custódia, quando ela é da competên-cia de autoridade policial, tampouco para examinar pedido de transporte do paciente no banco de passageiro das viaturas (camburões) da Polícia Federal. Assim, a Seção não conheceu dos pedidos e cassou a liminar concedida.HC112.927-DF,Rel.Min.JaneSilva(Desembargadoracon-vocadadoTJ-MG),julgadoem22/10/2008.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Info. n. 373.

magistrado. parcialidadE.

Na espécie, ainda na fase de investigação preliminar, antes que fosse ofe-recida a denúncia, o juiz, por entender que a causa era complexa, iniciou a realização do interrogatório de alguns réus. O referido procedimento não encontra respaldo no ordenamento jurídico pátrio, o que torna nulos não apenas os atos decisórios, mas todo o processo. O juiz não pode realizar as funções do órgão acusatório ou de Polícia Judiciária, fazendo a gestão da prova, pois seria retornar ao sistema inquisitivo. Assim, a Turma, por maioria, deu provimento ao recurso para declarar a nulidade de todo o processo, não apenas dos atos decisórios, bem como dos atos praticados pelo juiz durante a fase das investigações preliminares, determinando que os interrogatórios por ele realizados nesse período sejam desentranhados dos autos, de forma que não influenciem a opinio delicti do órgão acu-satórionaproposituradanovadenúncia.RHC23.945-RJ,Rel.Min.JaneSilva(DesembargadoraconvocadadoTJ-MG),julgadoem5/2/2009.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Info. n. 382

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instruçõEs aos autorEs/colaBoradorEs

artigos

os originais devem ser enviados com texto digitado em programas •compatíveis com o ambiente Windows, em formato RTF, em mídia eletrônica(CD),disquetesde31/2"oupore-mail,emarquivoane-xado.

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citações e menções a autores no correr do texto devem subordinar-•

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se à forma (sobrenome do autor, data) ou (sobrenome do autor, data, página).

− “(Autor, data, página)” para citações: A inferência nestesexemplos satisfaria a concepção de Williams de “fundamentos deliberativos” (WILLIAMS, 1981, p. 104);

− “Autor, data” para referência ao autor: A inferência nestesexemplos satisfaria a exigência solicitada por Williams, 1981;

− “Autor, data” para referência ao livro: A inferência nestesexemplos satisfaria a exigência solicitada em Williams, 1981;

−“Autor(data,página)”parareferênciaàpágina:Ainferêncianestes exemplos satisfaria a exigência solicitada por Williams (1981, p. 104).

as referências bibliográficas deverão ser listadas ao final do artigo, •em ordem alfabética, de acordo com o sobrenome do primeiro autor e obedecendo à data de publicação, ou seja, do trabalho mais antigo para o mais recente. Não devem ser abreviados títulos de periódi-cos, livros, nomes de editoras e de cidades. Use o sistema conforme segue:

−Livro:SOBRENOMEdoautor,nomedoautor.Título do Li-vro. Cidade: Editora, ano da edição.

−Livro,tradução:SOBRENOMEdoautor,nomedoautor.Tí-tulo Traduzido do Livro. Traduzido por Nome. Cidade: Editora, ano da edição.

−Capítulo:SOBRENOMEdoautor,nomedoautor.Título.InTítulo do Livro. Cidade: Editora, ano da edição.

−ArtigoemColetânea:SOBRENOMEdoautor,nomedoau-tor. Título. Título do Livro, ed. por Nome e Sobrenome do autor. Cidade: Editora, ano da edição.

−ArtigoemRevistas:SOBRENOMEdoautor,nomedoautor.Título do artigo. In Nome da Revista. Número: página de início e fim do artigo, Data.

Exemplos:

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−BLACKBURN,Simon.Ruling Passions: A Theory of Practical Reasoning. Oxford: Clarendon Press, 1998.

−FONTESJUNIOR,JoãoB.A.Liberdades Fundamentais e Segu-rança Pública. Rio de Janeiro: Lumes Júris, 2006.

−HUME,David.[1740].Tratado da Natureza Humana. Traduzido por Maria Cavalcante. São Paulo: UNESP, 2001.

−LÉVI-STRAUSS,Claude.“Acrisemodernadaantropologia”.Revista de Antropologia, vol. 10 (1-2): 19-26, 1962.

−SCHLUCHTER,Wolfgan.“PoliteísmodosValores”.In:Sou-za, J. (org.) A Atualidade de Max Weber. Brasília: EdUnB, 2000, p. 13-48.

documEntos (Jurisprudência, doutrina E outros)

Os documentos devem ter importância histórica, jurídica, cientí-•fica e acadêmica para a área de segurança pública e cidadania;

Os documentos traduzidos devem aparecer tanto no original •quanto a tradução;

Documentos antigos devem ser escaneados e editorados em pdf;•

As notas aos documentos devem ser diretas e explicativas de seus •conteúdos históricos e científicos;

rEsEnhas

Deve ter no máximo 2.500 palavras;•

Resenhas de livros não têm títulos;•

Sem notas de rodapé;•

Sem notas de fim de documento;•

Sem bibliografia ou referências;•

Citações maiores que 3 linhas devem ser destacadas do texto •principal;

Citações do livro sob resenha devem ser somente por número •de página;

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suBmissão dE artigos

A Revista de Segurança Pública e Cidadania publica artigos sobre todos os aspectos de segurança pública, especialmente aqueles que lidam com as questões atuais, escritos em português. Preferencialmente, artigos devem ter uma clara posição a respeito de um problema bem como a indicação de soluções para estes problemas.

Os artigos são aceitos pela revista sob o entendimento de que os trabalhos submetidos para publicação não tenham sido publicados emoutrosperiódicos,ouqueestejamsobapreciação/consideraçãoporoutro periódico, e que não serão submetidos a outra publicação a não ser que os editores da Revista Brasileira de Segurança Pública tenham rejeitado-os.

A Revista Brasileira de Segurança Pública é publicada duas vezes ao ano, em junho e dezembro, em edição impressa e eletrônica (na Internet).

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Resenhas de livros são bem-vindas, bem como sugestões para re-senhas. A Revista de Segurança Pública e Cidadania publica resenha de livros sobre qualquer tópico dentro da segurança pública.

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A Comissão Editorial tem normalmente não mais que seis meses para tomar uma decisão sobre um artigo. Sinta-se a vontade para cobrar uma resposta após o envio de sua colaboração.

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A Revista de Segurança Pública e Cidadania trabalha na política “double blind-refereed” – em que o autor e o julgador não conheçam a iden-tidade um do outro.

Figura 1. Formulário de Avaliação de Artigos

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FORMULÁRIO DE AVALIAÇÃO DE ARTIGOS Revista Segurança Pública e Cidadania

Julgamento do Apreciador

Título do artigo: _______________________________________________ Id. N°_______

1. Por favor, caracterize o artigo submetido observando os quesitos abaixo:

Originalidade [ ] Muito original [ ] Original [ ] Pouco original [ ] Nada original

Argumentação

[ ] Muito boa [ ] Aceitável [ ] Necessita Revisão [ ] Inaceitável

O artigo apresenta uma posição a respeito da Segurança Pública e Cidadania que é

[ ] Muito interessante [ ] Pouco interessante [ ] Desinteressante [ ] Totalmente desinteressante

Dado conteúdo, a extensão do artigo é

[ ] Poderia ser mais longo [ ] Apropriada [ ] Necessita ser reduzido [ ] Necessita ser reduzido substancialmente [ ] Inapropriada

Linguagem

[ ] Perfeita [ ] Aceitável [ ] Necessita de revisão [ ] Inaceitável

O artigo é

[ ] Aceitável com nenhuma ou poucas revisões [ ] Aceitável com maiores revisões [ ] Rejeitado com possível re-submissão [ ] Rejeitado

2. Sinopse

3. Comentários

[ ] Meu comentário pode ser dado anonimamente ao autor do artigo.

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Sobre a reviSta

Formato: 16x23,5cm

Mancha: 37p9,543x54p3,969

Tipologia:

Várias

Papel:

Offset 75g/m2 (miolo)

Supremo 230g/m2 (capa)

Vol. 2 n. 1, Jan./Jun. de 2009.

Equipe de Realização

Projeto Editorial

Coordenação de Altos Estudos de Segurança Pública

Edição de Texto

Gilson Matilde Diana (revisão)

Projeto Gráfico, Editoração

Gilson Matilde Diana

José Gleydiston de Aguiar Rocha

Impressão e Encadernação

Equiipe SAVI/ SAE/ ANP

ACADEMIA NACIONAL DE POLÍCIA