revista segurança publica & cidadania vol. 3 n. 1

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idadania VOL.3, N. 1 Jan-Jun/2010 ISSN 1983-1927 Revista Brasileira de Segurança Pública & Cidadania ARTIGOS O Investimento Estrangeiro Direto no Brasil e o Risco de Lavagem de Dinheiro Bruno Ribeiro Castro Sigilo de dados cadastrais bancários e telefônicos e o poder geral de polícia Bruno Titz de Rezende Polícia, Trabalho e Saúde: algumas reflexões Fabiana Regina Ely O controle de fronteiras e a integração regional no âmbito do Mercosul: aspectos históricos e perspectivas Fábio Ricardo Hegenbart Bueno RESENHAS Reinventando a Polícia: A Implementação de um Programa de Policiamento Comunitário, de C. C. Beato Filho. Cláudia do Rosário Oliveira egurança pública

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VOL.3,

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983

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egurança

pública

idadania

Revista Brasileira de Segurança Pública & Cidadania

ARTIGOS

O Investimento Estrangeiro Direto no Brasil e o Risco de Lavagem de DinheiroBruno Ribeiro Castro

Sigilo de dados cadastrais bancários e telefônicos e o poder geral de políciaBruno Titz de Rezende

Polícia, Trabalho e Saúde: algumas reflexõesFabiana Regina Ely

O controle de fronteiras e a integração regional no âmbito do Mercosul: aspectos históricos e perspectivas

Fábio Ricardo Hegenbart Bueno

RESENHASReinventando a Polícia: A Implementação de um Programa de Policiamento Comunitário,

de C. C. Beato Filho.Cláudia do Rosário Oliveira

Academia Nacional de PolíciaDF 001 - Estrada Parque do Contorno, Km 2

Setor Habitacional Taquari - Lago Norte - CEP 71559-900Brasília - DF

E-mail: [email protected]

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Academia Nacional de Políciade01 - Estrada Parque doo Contorno, Cacional Taquari - Lagoo Norte - CEo N

Brasília - DDFDFmail: [email protected]

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Revista Brasileira de Segurança Pública & CidadaniaRevista da Academia Nacional de Polícia (ANP)

Brasília, v. 3, n. 1, p. 1 - 107, jan./jun. 2010.ISSN 1983-1927

Copyright 2008 - ANP

Editor rEsponsávEl

Célio Jacinto dos Santos

Comissão Editorial

Célio Jacinto dos Santos, Eliomar da Silva Pereira, Emerson Silva Barbosa, Gilson Matilde Diana,

Manuela Vieira de Freitas, André de Almeida Oliveira, Guilherme Henrique Braga de Miranda.

ConsElho Editorial

Adriano Mendes Barbosa (ANP), Carlos Roberto Bacila (UFPR, PCPR), Cláudio Araújo Reis (UnB), Fábio Scliar

(DPF), Fernando de Jesus Souza (Perito Criminal), Guilherme Cunha Werner (DPF), Guilherme Henrique Braga

de Miranda (ANP), Helvio Pereira Peixoto (DPF), Jander Maurício Brum (Juiz - TJMG), José Pedro Zaccariot-

to (UNIP, PCSP), José Roberto Sagrado da Hora (DPF), Manuel Monteiro Guedes Valente (PSP - Portugal),

Marcello Diniz Cordeiro (DPF), Mirânjela Maria Batista Leite (DPF), Nelson Gonçalves de Sousa (PMDF), Rodrigo

Carneiro Gomes (DPF), Wagner Eduardo Vasconcelos (MPES).

Ministério da Justiça

Ministro: Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto

Departamento de Polícia Federal

Diretor-Geral: Luiz Fernando Corrêa

Diretoria de Gestão de Pessoal

Diretor: Joaquim Cláudio Figueiredo Mesquita

Academia Nacional de Polícia

Diretor: Disney Rosseti

Célio Jacinto dos Santos

Coordenador da CAESP

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Segurança Pública & Cidadania, v. 3, n. 1, jan/jun 2010.

ISSN 1983-1927

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Revista Brasileira de Segurança Pública & CidadaniaRevista da Academia Nacional de Polícia (ANP)

Brasília, v. 3, n. 1, p. 1 - 107, jan./jun. 2010.ISSN 1983-1927

Os conceitos e idéias emitidos em artigos assinados são de inteira responsabilidade dos autores, não representando, neces-

sariamente, a opinião da revista ou da Academia Nacional de Polícia.

Todos os direitos reservados

Nos termos da Lei que resguarda os direitos autorais (de acordo com a Lei nº 9.610 de 19 de fevereiro de 1998 - Lei dos

Direitos Autorais), será permitida a reprodução parcial dos artigos da revista, sempre que for citada a fonte.

Correspondência Editorial

Revista Segurança Pública & Cidadania

Rodovia DF 001 - Estrada Parque do Contorno, Km 2

Setor Habitacional Taquari, Lago Norte-DF

CEP - 71559-900 - Brasília-DF

E-mail: [email protected]

Publicação Semestral

Tiragem: online

Projeto Gráfico e Capa: Gilson Matilde Diana e Gleydiston Rocha

Editoração: Manuela Vieira de Freitas e Guilherme Henrique Braga de Miranda

vvvvvDados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Biblioteca da Academia Nacional de Polícia

Segurança Pública & Cidadania - Revista Brasileira de Segurança Pública e Cidadania/Acade-

mia Nacional de Polícia. - v. 1, n. 1, 2008 - . Brasília: Academia Nacional de Polícia,

v. 3, n. 1, jan./jun. 2010.

107p.

ISSN 1983-1927

Semestral

1. Segurança Pública - Periódico. 2. Cidadania. I. Brasil. Ministério da Justiça. Departamento de

Polícia Federal. Academia Nacional de Polícia.

351.759.6

R 454

Copyright 2008- ANP

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SUMÁRIOARTIGOSO Investimento Estrangeiro Direto no Brasil e o Risco de Lavagem de Dinheiro.............................................15

Bruno Ribeiro Castro

Sigilo de Dados Cadastrais Bancários e Telefônicos e o Poder Geral de Polícia .............................................33

Bruno Titz de Rezende

Polícia, Trabalho e Saúde: algumas reflexões .......................................................................................................................................51

Fabiana Regina Ely

O Controle de Fronteiras e a Integração Regional no Âmbito do Mercosul: aspectos Históricos e Perspectiva.......................................................................................................................................................................................................................... 67

Fábio Ricardo Hegenbart Bueno

RESENHAReinventando a Polícia: A Implementação de um Programa de Policiamento Comunitário, de C. C. Beato Filho. São Paulo: Editora Página Viva, 2002, 166 pp. ....................................................................................................91

Cláudia do Rosário Oliveira

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CONTENTSARTICLESForeign Direct Investment in Brazil and the Risk of Money Laundering .....................................................................15

Bruno Ribeiro Castro

Confidentiality of Banking and Phone Registration Data and the General Power of Police ...................33

Bruno Titz de Rezende

Police, Work and Health: some reflexions ...............................................................................................................................................51

Fabiana Regina Ely

Border Control and Regional Integration in the Mercosur: historical aspects and perspective ......... 67

Fábio Ricardo Hegenbart Bueno

REVIEWReinventing the Police: the implementation of a community policing program, by C. C. Beato Filho. São Paulo: Editora Página Viva, 2002, 166 pp. .....................................................................................................................91

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Brasília, v. 3, n. 1, jan./jun. 2010.

Editorial

A Academia Nacional de Polícia apresenta à comunidade po-licial e científica o primeiro número do terceiro volume da Revis-ta Brasileira de Segurança e Cidadania, mantendo o propósito de fomentar reflexões e pesquisas voltadas para o conhecimento multidisciplinar sobre segurança pública, e consequentemente, pro-porcionar metodologias e ferramentas mais apropriadas para de-senvolvimento de políticas públicas para essa importante área do conhecimento humano.

As temáticas tratadas neste número possuem diversas abor-dagens – jurídica, histórica, sócio-política e técnica – , na busca por apontar soluções viáveis para os problemas enfrentados por poli-ciais e gestores da área de segurança pública.

Nas próximas linhas, apresentamos brevemente cada um dos assuntos tratados no presente número.

Desta forma, o artigo O Investimento Estrangeiro Direto no Brasil e o Risco de Lavagem de Dinheiro, de Bruno Ribeiro Castro, discorre so-bre a importância da regulamentação adequada das atividades rela-cionadas ao investimento estrangeiro de forma a dificultar a prática de modalidades de crimes como a lavagem de dinheiro e a evasão de divisas, apresentando dois pontos de vista interessantes e não exclu-dentes: o econômico e o da área de segurança pública.

Na sequência, Bruno Titz de Rezende, em seu artigo Sigilo de Dados Cadastrais Bancários e Telefônicos e o Poder Geral de Polícia, trata do papel da polícia nas investigações de crimes financeiros e da neces-sidade de requisição de dados cadastrais para o esclarecimento de delitos. O texto apresenta diversos pontos de vista sobre a questão,

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discute as divergências e apresenta sólidos argumentos em prol da legalidade da requisição de dados cadastrais bancários e telefônicos pela autoridade policial.

Já o terceiro artigo Polícia, Trabalho e Saúde: algumas reflexões, de autoria de Fabiana Regina Ely, apresenta, de maneira clara, o trabalho policial como uma atividade profissional permeada por elementos que podem afetar fortemente a saúde do trabalhador e fomenta uma discussão importante e interessante sobre ações de atenção à saúde do policial.

O quarto e último artigo O Controle de Fronteiras e a Integração Regional no Âmbito do Mercosul: aspectos históricos e perspectivas, produ-zido por Fábio Ricardo Hegenbart Bueno, traz um relato histórico sobre a evolução das fronteiras entre as nações, apresentando di-versas peculiaridades sobre o controle de fronteiras e o trânsito de pessoas entre países e discutindo a aparente incompatibilidade entre o crescente desejo de integração regional dos países membros do Mercado Comum do Sul – Mercosul e a necessidade de implanta-ção de uma eficiente e efetiva fiscalização das fronteiras brasileiras. Por fim, defende a implementação de um controle mais efetivo das fronteiras nacionais, argumentando que essa ação poderá ocorrer sem necessidade de retrocesso no processo de aproximação com os povos platinos.

A única resenha deste número da revista, escrita por Claúdia do Rosário Oliveira, apresenta a consagrada publicação Reinventando a Polícia: a implementação de um programa de policiamento comunitário, de autoria do sociólogo Claudio Chaves Beato Filho. Essa obra analisa e avalia a implementação do programa de policiamento comunitário em Belo Horizonte/MG em julho/2000 e promove uma rica dis-cussão sobre o controle da criminalidade e a manutenção da ordem social.

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Com uma leitura agradável e ao mesmo tempo reflexiva, espera-se que esta quinta edição da Revista Brasileira de Seguran-ça Pública e Cidadania proporcione o amadurecimento de algumas discussões relevantes relacionadas à segurança pública e à atividade policial tanto na esfera nacional, quanto internacional.

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MANUELA VIEIRA DE FREITAS

Membro da Comissão Editorial

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ARTIGOSARTIGOS

ARTICLESARTICLES

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ARTIGOSARTIGOS

ARTICLESARTICLES

O Investimento Estrangeiro Direto no Brasil e o Risco de Lavagem de Dinheiro .........................................................................................................................................................................15

Sigilo de Dados Cadastrais Bancários e Telefônicos e o Poder Geral de Polícia ............................................................................................................................................................................. 33

Polícia, Trabalho e Saúde: algumas reflexões ...........................................................................51

O Controle de Fronteiras e a Integração Regional no Âmbito do Mercosul: aspectos Históricos e Perspectiva ...................................................................................................67

Foreign Direct Investment in Brazil and the Risk of Money Laundering .........15

Confidentiality of Banking and Phone Registration Data and the General Power of Police .................................................................................................................................................... 33

Police, Work and Health: some reflexions ...................................................................................51

Border Control and Regional Integration in the Mercosur: historical aspects and perspective ...................................................................................................................................................67

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15ISSN 1983-1927

Brasília, v. 3, n. 1, p. 15-31, jan/jun 2010.Recebido em 18 de setembro de 2009.Aceito em 13 de dezembro de 2009.

o invEstimEnto EstrangEiro dirEto no Brasil E o risco dE lavagEm dE dinhEiro

Bruno Ribeiro Castro

D

RESUMO

Define-se investimento estrangeiro como aquisições de empresas, equipamentos, instalações, estoques ou interesses financeiros de um país por empresas, governos ou indivíduos de outros países. Investimentos estrangeiros diretos são os investimentos internacionais aplicados na criação de novas empresas ou na participação acionária em empresas nacionais pré-constituídas. O inves-timento estrangeiro, no país receptor, presta-se a estimular o crescimento econômico quando o nível de poupança interna é insuficiente para atender às necessidades potenciais de investimento. Isso geralmente acentua o grau de dependência econômica e política do país anfitrião em relação aos países exportadores de capital. A falta de regulação adequada quanto a essa atividade pode também ensejar a prática de crimes como a lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Tanto é assim que em várias investigações da Polícia Federal foi verificada a existência de indícios da criação e manutenção de empresas estrangeiras, principalmente offshore sediadas em Paraísos Fiscais, em nome de “laranjas”, e de sua utilização para ocultar e dissimular o patrimônio de criminosos, pos-sibilitando a sonegação fiscal e a lavagem de dinheiro. Dentre os artifícios utilizados para esse fim está o investimento estrangeiro direto. Diante desses fatos, como lidar com essa realidade comple-xa? Existe o ponto de vista econômico e o da área de segurança, sendo certo que pelas experiências em investigações havidas, o sistema de regulação atual desses investimentos necessita de revisão.

Palavras-chave: Investimento estrangeiro direto. Dependência econômica. Lavagem de di-nheiro. Offshore. Paraísos fiscais. Blindagem patrimonial.

introdução

Para a Lei nº 4.131, de 3 de setembro de 1962, e seu respectivo re-gulamento, Decreto nº 55.762/65, investimentos estrangeiros são os bens, máquinas e equipamentos introduzidos no território nacional, sem dispêndio inicial de divisas, destinados à produção de bens ou serviços. São, ainda, os recursos financeiros ou monetários, introduzidos no país, para aplicação em

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atividades econômicas desde que, em ambas as hipóteses, pertençam a pes-soas físicas ou jurídicas residentes, domiciliadas ou com sede no exterior.

Em alguns casos, o investimento estrangeiro ajuda países como o Brasil a financiar o desenvolvimento de suas atividades econômicas. Com isso, pode ocorrer, por exemplo, o aumento na taxa de emprego e a con-seqüente melhoria social. Em contrapartida, o capital estrangeiro normal-mente cobra seu preço e pode trazer atrelado aos seus benefícios uma acen-tuação na dependência política em relação ao país exportador do capital.

Atualmente, o Brasil apresenta um cenário econômico muito fa-vorável para o recebimento de investimentos estrangeiros. Esse período é fortemente influenciado por fatores macro e microeconômicos, a sa-ber: estabilidade econômica – baixo índice de inflação; recente elevação do grau de investimento do país para (BB+) – recomendação de agências internacionais especializadas na avaliação dos riscos globais para os in-vestimentos; alta taxa de juros interna – remuneração privilegiada do ca-pital estrangeiro especulativo; taxa de câmbio favorável – real apreciado frente ao dólar – facilidades para importação de insumos; mão-de-obra barata e abundante, entre outros.

Além disso, a situação econômica brasileira apresenta os melho-res resultados desde o período conhecido como “milagre econômico” – 1968 a 1973. As reservas cambiais do país superaram as expectativas mais promissoras e já totalizam mais de 200 bilhões de dólares. O eleva-do superávit fiscal, combinado com os expressivos resultados da balança comercial propiciou tal economia. Esse saldo positivo em caixa permite ao governo brasileiro adotar postura mais firme em relação à regulação da entrada de capitais estrangeiros no país.

Como o Brasil encontra-se em um período de prosperidade há muito esperado, capaz de trazer segurança à área econômica para fazer frente a vulnerabilidades do mercado global, as áreas de segurança do governo brasileiro – órgãos de inteligência, investigação e repressão – devem aproveitar a oportunidade e cobrar a criação de mecanismos mais

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efetivos de monitoramento e controle do investimento estrangeiro. Isso com o objetivo de possibilitar a identificação da lavagem de dinheiro de organizações criminosas em meio a essas operações.

Para tanto, no presente estudo serão abordados: as características, regramento e desempenho do investimento estrangeiro direto no Brasil; o risco da ocorrência de operações para lavagem de dinheiro de orga-nizações criminosas com a utilização de empresas offshore sediadas em paraísos fiscais por meio do modelo de “blindagem patrimonial”; e, ao final, uma proposta para uma nova Lei de Investimentos Estrangeiros e de Segurança Nacional no Brasil.

o invEstimEnto EstrangEiro dirEto no Brasil

A partir de uma visão econômica, investimentos estrangeiros po-dem ser definidos como aquisições de empresas, equipamentos, instala-ções, estoques ou interesses financeiros de um país por empresas, gover-nos ou indivíduos de outros países.

Já investimentos estrangeiros diretos - IED são os investimentos internacionais aplicados na criação de novas empresas ou na participação acionária em empresas nacionais pré-constituídas.

Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimen-to Econômico – OCDE – o investimento estrangeiro direto é definido como “o capital investido com o propósito de aquisição de um interesse durável em uma empresa e de exercício de um grau de influência nas operações daquela empresa”.

Para o Fundo Monetário Internacional, o investimento estran-geiro direto é caracterizado também pelo compromisso de longo prazo e a relação de influência por parte do investidor estrangeiro na gestão da empresa nacional. Essa relação de influência gerencial se traduz pela participação societária em mais de 50% do capital ou pela participação em mais de 10%, desde que o restante do capital esteja pulverizado entre acionistas nacionais minoritários.

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O Investimento Estrangeiro Direto no Brasil e o Risco de Lavagem de Dinheiro

No Brasil, observa-se que o interesse duradouro do investidor estrangeiro em empresas brasileiras ainda é frágil. No entanto, a relação de influência na empresa brasileira é inegável, principalmente quando sua participação no capital social ocorre nas proporções descritas acima.

Os investimentos estrangeiros diretos em empresas no país têm registro obrigatório no Banco Central do Brasil determinado pela Lei nº 4.131, de 03 de setembro de 1962, e pela Lei nº 11.371, de 28 de no-vembro de 2006. O Banco Central do Brasil – BACEN divide o IED em categorias, sendo as mais importantes:

a) Investimento em moeda – “é permitida, sem a necessidade de prévia autoriza-ção do Banco Central do Brasil. Pode ser utilizada moeda de qualquer natureza desde que tenha conversibilidade no sistema bancário, sendo esta operação realiza-da por intermédio de instituição bancária autorizada pelo BACEN a operar em câmbio. O investimento pode ser destinado à integralização do capital subscrito por empresas já estabelecidas e atuando no Brasil, na constituição de uma nova empresa no Brasil ou na participação em empresa brasileira já existente.”

b) Repatriamento de capital – “é o retorno do capital ao país de origem. Ocorre quando há redução do capital da empresa brasileira, com o objetivo de restituição ao investidor; alienação de quotas ou ações a investidores nacionais ou por dissolu-ção da empresa. O repatriamento de capital está isento do recolhimento de imposto de renda e pode ser processado de acordo com as condições constantes do certificado de registro de capital estrangeiro, sem necessidade de qualquer outra formalidade, limitando seu montante ao valor registrado em moeda estrangeira, apurado com base no valor patrimonial de cada ação ou quota.”

c) Remessa de lucros e dividendos –“ são transferências financeiras de lucros ou dividendos provenientes de capitais devidamente registrados no Banco Central do Brasil, desde que observadas as normas contábeis e as legislações tributárias e societárias nacionais. Estão isentos de recolhimento de imposto de renda na fonte os lucros ou dividendos pagos em favor do investidor estrangeiro.”

O Banco Central do Brasil, em sua atividade fiscalizadora, estabe-leceu a obrigatoriedade de registro dos capitais estrangeiros no Sistema de Informações do Banco Central – SISBACEN. Atualmente esse regis-tro é feito eletronicamente por meio do Registro Eletrônico Declaratório – Investimento Externo Direto – RED-IED.1

1 Banco Central do Brasil. RDE-IED – Manual do Declarante e Cademp – Manual do Declarante.

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No mesmo sentido, a Receita Federal do Brasil determinou a obrigatoriedade de registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas – CNPJ2 – para as empresas sediadas no exterior realizarem seus investi-mentos no Brasil e efetuarem o registro no SISBACEN.

No entanto, esses dois mecanismos de controle são falhos ou incompletos. Esses registros não exigem a identificação inequívoca dos reais proprietários das empresas estrangeiras, aqui incluídas as offshore em suas diversas formas de manifestação.

No país receptor, o investimento estrangeiro presta-se a estimular o crescimento econômico quando o nível de poupança interna é insufi-ciente para atender às necessidades potenciais de investimento. Contudo, isso geralmente acentua o grau de dependência econômica e política do país anfitrião em relação aos países exportadores de capital.

Sendo assim, em países nos quais o nível de poupança é baixo, é fundamental a complementação proporcionada pelo investimento es-trangeiro.

O desempenho do investimento estrangeiro direto na economia brasileira está representado nos gráficos apresentados nos apêndices, de-monstrando os países que mais investiram no Brasil e a participação re-lativa dos IED originários de paraísos fiscais. Do total de IED recebido pelo Brasil em 2007, aproximadamente 26% foram remetidos para o país a partir de paraísos fiscais, totalizando quase US$ 9 bilhões.

Segundo dados da Receita Federal do Brasil, desde 1996, verifica-se uma crescente predominância do IED sobre as demais categorias de inversões estrangeiras no Brasil. Isso se deveu à estabilização econômica (após o Plano Real) e às reformas estruturais associadas à privatização, que foram amparadas por diversos instrumentos legais, como a Emenda Constitucional nº 08, de 15 de agosto de 1995, que eliminou o monopó-lio estatal sobre os serviços de telecomunicações; a Lei nº 9.472, de 16 de

2 Receita Federal do Brasil. Instrução Normativa nº 200, de 13 de setembro de 2002.

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O Investimento Estrangeiro Direto no Brasil e o Risco de Lavagem de Dinheiro

julho de 1997, que regulamentou as concessões desses serviços; e, a Lei nº 9.491, de 9 de setembro de 1997, que suprimiu os limites de participa-ção do capital estrangeiro em empresas privatizadas.

O fluxo de IED visando as privatizações (US$ 29,6 bilhões) cor-respondeu a um quarto do total do IED líquido (US$ 112,6 bilhões), entre 1996 e 2000.3

Segundo dados do Banco Central do Brasil, o país terminou 2007 com o maior montante de investimento estrangeiro direto em 60 anos, superando os US$ 32,7 bilhões recebidos em 2000, dos quais grande par-te era destinada a privatizações de empresas.4

De 2009 para 2010, o Brasil saltou da 15ª para a 5ª posição no ranking dos países que mais receberam investimentos estrangeiros dire-tos, segundo relatório da Conferência das Nações Unidas para o Comér-cio e Desenvolvimento, na sigla em inglês, UNCTAD. Em 2010, o país recebeu US$ 48,4 bilhões e atraiu 3,9% dos investimentos estrangeiros diretos no mundo. O Brasil só ficou atrás de Estados Unidos, China, Hong Kong e Bélgica no ranking dos destinos preferenciais dos fluxos globais de investimento externo no ano passado. É a melhor posição já obtida pelo Brasil, que registrou o maior crescimento anual entre os Brics e a quarta maior expansão no mundo em termos de valores absolutos.

Em 2011, o Brasil deve ser destino de aproximadamente 4,3% dos investimentos estrangeiros diretos mundiais. O BACEN divulgou que os investimentos estrangeiros diretos na economia brasileira soma-ram no primeiro semestre o volume recorde de US$ 32,47 bilhões, com elevação de 168% frente ao mesmo período do ano passado (US$ 12,09 bilhões). Assim, a previsão do Banco Central é de uma entrada de US$ 55 bilhões em investimentos estrangeiros diretos até o final do ano, o que, se confirmado, representará novo recorde histórico.

3 Página eletrônica da Receita Federal do Brasil.4 Página eletrônica do Banco Central do Brasil.

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Além disso, com a iminência dos grandes eventos internacionais a serem realizados no Brasil, nossa posição pode subir nos próximos anos. Em levantamento feito pela UNCTAD junto a empresas multinacionais, o Brasil aparece na 4ª posição entre os países mais citados como principal destino dos investimentos previstos até 2013, atrás apenas da China, Esta-dos Unidos e Índia.

o risco dE lavagEm dE dinhEiro: o EsquEma dE “BlindagEm” Patrimonial

O processo de Lavagem de Dinheiro pode ser definido como um conjunto de operações comerciais ou financeiras que buscam dissimular a origem ilícita de bens, direitos e valores, incorporando-os à economia formal.

Para coibir a lavagem de dinheiro no Brasil, em 1998 foi editada a Lei nº 9.613/98. Nesse diploma legal foi tipificada a conduta e foram arrolados os crimes antecedentes do crime de lavagem de dinheiro, foi criado o sistema de prevenção de utilização do sistema financeiro nacio-nal, bem como a unidade de inteligência financeira brasileira, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF –, órgão ligado ao Minis-tério da Fazenda.

No Brasil, o IED é de fundamental importância para comple-mentar a poupança interna, que é insuficiente para os projetos de desen-volvimento econômico. Porém, a falta de regramento adequado a fim de disciplinar o IED pode possibilitar a lavagem de dinheiro de diversas organizações criminosas em meio às inversões estrangeiras no país.

Em várias investigações da Polícia Federal foi verificada a existên-cia de indícios da participação de advogados, contadores e membros do sistema financeiro na criação e manutenção de empresas offshore em nome de “laranjas” e na sua utilização para ocultar e dissimular o patrimônio de criminosos brasileiros, possibilitando a sonegação fiscal e a lavagem de bens e capitais irregularmente remetidos para o exterior.

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O Investimento Estrangeiro Direto no Brasil e o Risco de Lavagem de Dinheiro

Além da criação e manutenção de empresas offshore em nome de "laranjas", advogados, contadores e membros do sistema financeiro freqüentemente oferecem a seus “clientes” dois principais modelos de blindagem patrimonial. O primeiro consiste no registro de novas so-ciedades limitadas no Brasil, tendo como sócias majoritárias as empresas offshore, com o objetivo de adquirir participação societária nas empresas nacionais dos “clientes”, resultando na ocultação da verdadeira proprie-dade das empresas nacionais. O segundo consiste em tornar as empresas offshore sócias diretas das empresas nacionais dos “clientes”, com o intui-to de ocultar os seus verdadeiros proprietários e desvincular dos mesmos as obrigações tributárias resultantes das atividades operacionais das em-presas adquiridas.

Nesses modelos de blindagem patrimonial, os “clientes” preten-dem ocultar a verdadeira propriedade do seu patrimônio, prejudicando qualquer atividade dos agentes fiscalizadores estatais. Para tanto, procu-ram o auxílio de advogados, contadores e membros do sistema financei-ro a fim de elaborar o referido modelo de “blindagem” patrimonial para poderem operar à margem de qualquer fiscalização estatal, escondendo a natureza, a fonte, a propriedade e o controle dos recursos gerados por suas organizações criminosas.

Hoje, a utilização de empresas offshore, aliada aos avanços tecno-lógicos da computação, como a rápida comunicação digital por meio da internet, permite o trânsito de recursos financeiros entre países com muita rapidez, segurança e sigilo, acobertando as operações proibidas com um manto de legalidade. Tais empresas propiciam, ainda, confidencialidade já que são constituídas em nome de sócios fictícios, em paraísos fiscais, tendo como seus verdadeiros proprietários os possuidores de suas ações, emitidas ao portador.

Ademais, o modelo de proteção patrimonial sugerido, criado e mantido por advogados, contadores e membros do sistema financeiro inclui um sofisticado mecanismo de capitalização das empresas offshore no exterior. Essas empresas além mar, muitas vezes, são abastecidas por

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Bruno Ribeiro Castro

recursos provenientes de atividade criminosa, irregularmente remetidos a paraísos fiscais por meio de doleiros.

Para justificar a utilização dos recursos provenientes de atividade criminosa, obviamente não contabilizados no Brasil, sem despertar sus-peitas dos órgãos fiscalizadores estatais, o modelo proposto oferece uma engenharia financeira diversificada e adequada às necessidades de cada “cliente”. Dentre as possibilidades existentes, o repatriamento dos recur-sos dos próprios “clientes” irregularmente remetidos a paraísos fiscais é uma estratégia recorrente.

No repatriamento do dinheiro dos próprios “clientes” mantido no exterior sem o devido registro junto às autoridades nacionais com-petentes, uma offshore, que por estar no exterior não é fiscalizada pelas autoridades brasileiras, investe na empresa dos “clientes” aqui no Brasil. Porém, essa offshore pertence, na verdade, ao próprio criminoso nacional e os recursos utilizados para adquirir participação acionária nas empresas nacionais a título de investimento estrangeiro direto – aumento de capital de empresa nacional – são provenientes de atividades das organizações criminosas no Brasil.

Com essa operação de repatriamento dos próprios recursos ir-regularmente depositados no exterior, os “clientes” pretendem ocultar a origem do dinheiro e dissimular sua propriedade. Tais condutas amol-dam-se perfeitamente ao descrito no parágrafo único, do artigo 22, da Lei nº 7.492/86 e no artigo 1º, da Lei nº 9.613/98.

Cabe aqui destacar as principais características dos paraísos fiscais e das empresas offshore que, como visto, são freqüentemente utilizados em esquemas de blindagem patrimonial e lavagem de dinheiro.

Esse tipo de empresa é geralmente constituído em paraísos fiscais para exercerem suas atividades fora do território de constituição, sem a necessidade de instalações físicas ou funcionários contratados para suas operações no país sede.

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Os verdadeiros proprietários e o capital investido nessas empresas procuram nos paraísos fiscais o relevante incentivo tributário oferecido, bem como a possibilidade de dissimulação da propriedade dos recursos. A dificuldade em determinar os reais proprietários das empresas offshore deve-se ao rígido sigilo bancário e fiscal, à baixa cooperação jurídica e policial e à falta de preocupação dos paraísos fiscais com a origem dos recursos ali investidos.

Assim, muitos desses países considerados como paraísos fiscais, tornam-se verdadeiras lavanderias de dinheiro sujo, sendo também cená-rios recorrentes de histórias duvidosas envolvendo instituições financei-ras, como o Banco Santos, de Edemar Cid Ferreira e o Banco Opportu-nity, de Daniel Valente Dantas.

Para dar um exemplo simples, mencione-se que a mansão de Edemar em São Paulo é oficialmente propriedade de uma offshore sediada nas Ilhas Cayman e que parte de sua estupenda coleção de obras de arte tem como proprietária outra offshore, esta com endereço nas Ilhas Virgens Britânicas.

Outro exemplo interessante de paraíso fiscal é o Estado america-no de Delaware. A grande vantagem de sua utilização, além do tratamen-to tributário privilegiado oferecido dentro dos Estados Unidos, é que, apesar de reconhecido como paraíso fiscal pelos próprios americanos, não consta na IN-RFB 188, de 6 de agosto de 2002, lista oficial brasilei-ra de paraísos fiscais. Para o Fisco brasileiro, somente os países listados nessa instrução normativa oferecem tributação favorecida, ou opõe sigilo relativo à composição societária de pessoas jurídicas e sua titularidade.

Curiosamente, o número de paraísos fiscais listados pela Orga-nização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico totaliza 72 países ou territórios, incluindo o Uruguai, número maior que o apontado pela Receita Federal do Brasil – RFB.

O Banco Pactual, por exemplo, constituiu, nesse estado america-no, uma companhia para controlar a holding do setor elétrico Equatorial

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Energia, que foi batizada de Brasil Energia I LLC. Já o Gávea, fundo hedge do ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, também faz parte de suas operações no Brasil via Delaware.5

Os países listados pela Receita Federal do Brasil como paraísos fiscais, dentre eles as Ilhas Cayman, por exemplo, recebem um tratamen-to tributário diferenciado no Brasil, como forma de compensar os bene-fícios obtidos fora. Isso cria uma diferença relevante até entre os paraísos fiscais já que afeta diretamente o quanto vai sobrar do capital investido em empresas offshore.

Ocorre que, no Brasil, quem tem dinheiro e pode procurar asses-soria de advogados, contadores e membros do sistema financeiro, con-torna facilmente a legislação nacional, conseguindo vantagens, no míni-mo, injustas. Como exemplo, pode-se citar a grande utilização do Estado de Delaware e do famoso paraíso fiscal sul-americano, o Uruguai – que não constam da relação da Receita Federal do Brasil – para hospedar ca-pital que futuramente será reinvestido no país.

Diante destes fatos, como lidar com essa realidade complexa? De um lado, existem os que consideram a existência dos paraísos fiscais simplesmente nociva. Esse é o ponto de vista da equipe econômica. De outro, na área de segurança, existem os que defendem uma sintonia fina para dar mais transparência às operações (e, portanto, facilitar o rastrea-mento do dinheiro criminoso quando for necessário), sem que isso redu-za a vantagem fiscal procurada pelas empresas e considerada importante num ambiente de competitividade global acirrada.

Em termos penais, e considerando a experiência em investigações da Polícia Federal em casos de lavagem de dinheiro, conclui-se que a exis-tência dos paraísos fiscais, a instalação de empresas offshore nos mesmos, e sua desregrada atuação em território nacional facilitam a atuação dos criminosos e a lavagem de seus capitais no país ao mesmo tempo que dificultam sobremaneira as investigações policiais.

5 Página eletrônica do jornal Valor Econômico – 20.06.2006 - Fora do alcance do Fisco, Delaware seduz as empresas brasileiras – Vanessa Adachi.

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O Investimento Estrangeiro Direto no Brasil e o Risco de Lavagem de Dinheiro

conclusão: uma ProPosta Para uma nova lEi dE invEstimEntos EstrangEiros E dE sEgurança nacional no Brasil

É notório que, no atual momento internacional, países têm dado uma maior importância a fatores de segurança nacional. Um exemplo disso é a regulação proposta pela nova lei de investimentos estrangeiros e de segurança nacional nos E.U.A.6 Nela, denota-se claramente a primazia absoluta da segurança nacional, em detrimento da questão econômica.

Da mesma forma, na China o investimento estrangeiro direto em setores considerados estratégicos sofre forte regulamentação governa-mental. Mesmo assim, a China é um dos países que mais atrai investido-res estrangeiros.

No caso brasileiro, questões ligadas à segurança nacional devem ter um peso determinante em negócios na área privada e sobre estes têm de prevalecer. Como exemplos, cite-se:

a aquisição de terras em áreas de faixa de fronteira por estrangeiros;•

a aquisição de empresas nacionais por estrangeiros;•

a exploração de atividades de infra-estrutura crítica por estrangeiros.•

Tendo em vista o exposto e com o escopo de aprimorar o regra-mento dos investimentos estrangeiros diretos, reforçando a segurança nacional e pública, colocam-se as seguintes propostas para uma nova lei de investimentos estrangeiros e de segurança nacional no Brasil:

atribuir ao Conselho de Defesa Nacional, por meio de Emenda Cons-•titucional, a análise dos investimentos estrangeiros diretos relativos à aquisição de empresas brasileiras, ou que operam no Brasil no que concerne a segurança nacional, permitindo o veto das operações;

atribuir ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica, por meio •de alteração da Lei nº 8.884, de 11 de junto de 1994, a análise dos

6 Lei de Investimentos estrangeiros e de Segurança Nacional dos EUA, de outubro de 2007.

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investimentos estrangeiros diretos relativos à aquisição de empresas brasileiras, ou que operam no Brasil no que concerne à livre concor-rência e à formação de empresas nacionais envolvendo capital estran-geiro, por meio de capital oriundo de empresas offshore ediadas em paraísos fiscais, permitindo o veto das operações;

transferir a vinculação hierárquica do Conselho de Controle de Ativi-•dades Financeiras do Ministério da Fazenda (área econômica) para o Ministério da Justiça (área de segurança);

estabelecer rígidas exigências quanto à determinação da procedência •e propriedade do capital empregado para aquisição de empresas na-cionais, ou participação majoritária em seu capital social;

impedir investimentos estrangeiros diretos de empresas • offshore esta-belecidas em paraísos fiscais sem a devida comprovação da origem dos recursos e a efetiva comprovação de sua propriedade, por meio do depósito de seus atos constitutivos com a declaração de seus reais proprietários junto às autoridades brasileiras;

atualizar a lista oficial brasileira de paraísos fiscais publicada pela Re-•ceita Federal do Brasil, seguindo, no mínimo, o indicado pela Organi-zação para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

BRUNO RIBEIRO CASTRO

Delegado de Polícia Federal, atualmente lotado na INTER-POL, trabalhou na Divisão de Repressão a Crimes Finan-ceiros da Diretoria de Combate ao Crime Organizado do Departamento de Polícia Federal. Bacharel em Direito e

Administração de Empresas. Professor da Academia Nacio-nal de Polícia e instrutor da Comissão Interamericana para o

Controle do Abuso de Drogas da Organização dos Estados Americanos.

E-mail: [email protected]

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ABSTRACT

Foreign Investment can be defined as the acquisition of one country’s companies, equip-ments, facilities, stocks or financial interests by companies, governments or individuals com-ing from another country. Direct Foreign Investment are international investments focused on the creation or the participation on national companies already established. At the recipient country, the Foreign Investment serves as stimulation to the economic growth when the level of national investment isn’t enough to attend the investments’ basic needs. Generally, this situation enhances the level of political and economic dependence in the country that receives the money regarding the countries exporting the money. The lack of adequate regulation on this area can also lead to illegal practices as the laundering of money or money evasion. As a matter of fact, many Federal Police investigations were able to detect the use of international companies, created by foreign companies though DFI, mainly offshore, commonly used to hide or disguise patrimonial goods of criminals, creating the perfect environment for tax evasion, money laundering and other crimes. Regarding those facts, how to deal with this complex reality? There are two points of view to be taken into consideration: the economic point of view and the security one. According to the police experience coming from criminal investigations, there isn’t any doubt that the regulation system of DFI needs revision.

Keywords: Direct Foreign Investment. Economic dependence. Money laundering. Off-shore. Disguise patrimonial.

rEfErências

FRANCO, G. H. Investimento direto estrangeiro (IDE) no Brasil 1995-2004: “passivo externo” ou “ativo estratégico” ? Política Internacional. II série, novembro de 2005, n. 29.

LIMA JÚNIOR, A. J. M. Determinantes do Investimento Direto Estrangeiro no Brasil. 2005. Dissertação (Mestrado em Economia) – Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Belo Horizonte, 2005.

RIBEIRO, M. Investimento estrangeiro direto e remessas de lucros e dividendos no Brasil: estratégia microeconômica e determinantes macroeconômicos (2001-2004). 2006. Tese (Doutorado em Economia) – Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, Belo Horizonte, 2006.

Em <http://pt.wikipedia.org>: Definição de Investimento Estrangeiro Direto. Acesso em julho de 2011.

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Bruno Ribeiro Castro

Em <http://www.planalto.gov.br>: Emenda Constitucional nº 08, de 15.08.1995 – Dispõe sobre Telecomunicações; Lei 4.131, de 03.09.1962 – Dispõe sobre a Aplicação de Capital Estrangeiro no Brasil; Lei 7.492, de 16.06.1986 – Dispõe sobre Crimes contra o Sistema Financeiro; Lei 9.472, de 16.07.1997 – Dispõe sobre Serviços de Telecomunicações; Lei 9.491, de 09/09/97 – Dispõe sobre Programa Nacional de Desestatização; Lei 9.613, de 01.03.1998 – Dispõe sobre o Crime de Lavagem de Dinheiro; Lei 11.371, de 28.11.2006 – Dispõe sobre Registro de Capitais Estrangeiros. Acesso em julho de 2011.

Em <http://www.bcb.gov.br>: Circular 2.997, de 15.08.2000 – Registro de Investimentos Estrangeiros Diretos; Resolução 2.689, de 26.01.2000 – Registro de Investidor Não-residente. Acesso em julho de 2011.

Em <http://www.receita.fazenda.gov.br>: Instrução Normativa 188/2002 – Lista de paraísos fiscais brasileira; Instrução Normativa 461/2004 – Inscrição de investidor estrangeiro pessoa física; Instrução Normativa 568/2005 – Inscrição de investidor estrangeiro pessoa jurídica. Acesso em julho de 2011.

Em <http://www.imf.org>: Balance of Payments Manual, 5th Edition, 1993 – Definição de IED. Acesso em julho de 2011.

Em <http://www.oecd.org>: Detailed Benchmark Definition of Foreign Direct Investment, 3rd Edition, 1995. – Definição de IED. Acesso em julho de 2011.

Em <http://treasury.gov>: The Foreign Investment and National Security Act of 2007 (FINSA) - Lei de Investimentos estrangeiros e de Segurança Nacional dos EUA, de outubro de 2007. Acesso em julho de 2011.

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aPêndicE a – invEstimEnto EstrangEiro dirEto – 2007

Distribuição por país de origem do recurso

FONTE: BANCO CENTRAL DO BRASILDIRETORIA DE FISCALIZAÇÃO - DIFISDEPARTAMENTO DE COMBATE A ILÍCITOS FINANCEIROS E DE SUPERVISÃO DE CÂMBIO E CAPITAIS INTERNACIONAIS

Í26%

1%

13% PARAÍSOS FISCAIS

ALEMANHA

CANADA

ESPANHA

5%24% ESTADOS UNIDOS

FRANÇA

2% JAPÃO

PAÍSES BAIXOS6%

18%

4%1%PAÍSES BAIXOS

MÉXICO

OUTROSOUTROS

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Bruno Ribeiro Castro

aPêndicE B – invEstimEnto EstrangEiro dirEto – 2007

Distribuição por paraíso fiscal de origem do recurso

FONTE: BANCO CENTRAL DO BRASILDIRETORIA DE FISCALIZAÇÃO - DIFISDEPARTAMENTO DE COMBATE A ILÍCITOS FINANCEIROS E DE SUPERVISÃO DE CÂMBIO E CAPITAIS INTERNACIONAIS

4% 7%

10%3%

2%ILHAS VIRGENS BRITÂNICAS

18%2% ILHAS BAHAMAS

BERMUDAS

ILHAS CAYMAN

LUXEMBURGO

PANAMÁ

35%

PANAMÁ

SUIÇA

URUGUAI19%

URUGUAI

OUTROS

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33ISSN 1983-1927

Brasília, v. 3, n. 1, p. 33-50, jan/jun 2010.Recebido em 30 de setembro de 2009.Aceito em 31 de dezembro de 2009.

sigilo dE dados cadastrais Bancários E tElEfônicos E o PodEr gEral dE Polícia

Bruno Titz de Rezende

D

RESUMO

O Delegado de Polícia, por meio do poder geral de polícia, pode requisitar dados cadastrais para o esclarecimento de delitos. Contudo, existe divergência quanto à possibilidade de requisição de dados cadastrais bancários e telefônicos. O presente artigo busca fomentar tal discussão.

Palavras-chave: Dados cadastrais. Sigilo. Requisição policial. Delegado de polícia. Poder geral de polícia.

introdução

O Delegado de Polícia, durante a investigação criminal, constan-temente requisita informações cadastrais a pessoas jurídicas de direito privado para a individualização de autores, partícipes e testemunhas de delitos.

Entretanto, freqüentemente, as requisições referentes a dados ca-dastrais de correntistas de bancos e de usuários do serviço de telefonia não são atendidas ao fundamento de que tais informações são sigilosas, sendo necessária ordem judicial para seu acesso.

O deslinde do tema é de suma importância, haja vista que referida recusa prejudica o andamento das investigações e acaba por sobrecarre-gar o Poder Judiciário por questões de somenos importância.

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Sigilo de dados cadastrais bancários e telefônicos e o poder geral de polícia

1. dados cadastrais

Dados cadastrais são as informações objetivas fornecidas por consumidores e armazenadas em banco de dados de pessoas jurídicas de direito privado. Os elementos componentes dos dados cadastrais são: nome completo, CPF, RG, endereço e número de telefone.

A finalidade precípua dos dados cadastrais é a identificação do consumidor para, na grande maioria dos casos, utilização para fins de cobrança, venda de produtos via telemarketing e envio de mala-direta.

As informações relativas a nome completo, CPF, RG, endereço e número de telefone não desvelam quaisquer aspectos da vida privada ou da intimidade do indivíduo. É esperado que todos possuam tais elemen-tos identificadores e, como são dados objetivos, não permitem qualquer juízo de valor sobre a pessoa.

A melhor doutrina sustenta que dados cadastrais não são prote-gidos por sigilo:

Pelo sentido inexoravelmente comunicacional da convivência, a vida privada compõe, porém, um conjunto de situações que, usualmente, são informadas sem constrangimento. São dados que, embora privativos — como o nome, endereço, profissão, idade, estado civil, filiação, número de registro público oficial, etc., con-dicionam o próprio intercâmbio humano em sociedade, pois constituem elementos de identificação que tornam a comunicação possível, corrente e segura. Por isso, a proteção desses dados em si, pelo sigilo, não faz sentido. (...) Em conseqüência, simples cadastros de elementos identificadores (nome, endereço, RG, filiação, etc.) não são protegidos. (FERRAZ JUNIOR, 2005, p. 28-29).

Todavia, existem cadastros que não se enquadram no conceito aqui estudado. São verdadeiros dossiês sobre o comportamento de clien-tes e a doutrina faz a devida distinção:

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Mas cadastros que envolvam relações de convivência privadas (por exemplo, nas relações de clientela, desde quando é cliente, se a relação foi interrompida, as razões pelas quais isto ocorreu, quais os interesses peculiares do cliente, sua capacidade de satisfazer aqueles interesses, etc.) estão sob proteção.(FERRAZ JUNIOR, 2005, p. 29).

De todo modo, quanto à ciência de tais dados pela Autoridade Policial, que não pode deles dispor para fins alheios à investigação crimi-nal, vale o ensinamento de Carmen Lúcia Antunes Rocha:

O que se considera certo é que a privacidade opõe-se à publicidade e o conhecimen-to do Estado não chega a constituir a publicização das informações mantidas sob reserva legalmente estabelecida e assegurada.(ROCHA, 2003, p. 29).

2. PodEr gEral dE Polícia

O Estado, quando da ciência de crime de ação penal pública in-condicionada, tem o poder-dever de agir no sentido de responsabilizar os autores e partícipes do delito. Por conseguinte, para operacionalizar tal intento na fase pré-processual, o legislador estatuiu no artigo 6º do Có-digo de Processo Penal (CPP): Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: (...) III - colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias.

Comentando tal dispositivo, Julio Fabbrini Mirabete ensina:

Observados os direitos e garantias individuais previstos na Constituição e nas leis ordinárias, a Autoridade Policial poderá desenvolver qualquer diligência, incluindo-se evidentemente, o de intimar testemunha, vítima ou suspeito para prestar declarações no inquérito. (MIRABETE, 1997, p. 89).

Luciano Feldens denomina a determinação contida na referida norma como poder geral de polícia:

Aludido dispositivo alberga aquilo que convencionamos denominar 'poder geral de polícia', porquanto a estabelecer, sem qualquer especificidade, mas de forma

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Sigilo de dados cadastrais bancários e telefônicos e o poder geral de polícia

cogente e harmônica ao artigo 144, §§ 1º e 4º, da Constituição, o dever-poder da atuação da Polícia Judiciária na perseguição de elementos probatórios tendentes à revelação do fato delituoso e de sua autoria. (FELDENS, 2008).

Destacamos notável sentença sobre o tema:

A propósito, é o Código de Processo Penal que atribui à autoridade policial o dever de, tão logo tenha conhecimento da prática infração penal, colher todas as provas que sirvam para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias (CPP, art. 6º, III), dentre outras providências. Aí reside a autorização legal para que a autoridade policial possa requisitar, e a obrigação legal das operadoras de fornecer, os dados cadastrais dos usuários de telefonia, fixa ou móvel. Eventual vedação a esse poder-dever da autoridade policial teria de estar expressa em norma legal especial, excepcionando-o em determinado caso. 1

Desse modo, o poder geral de polícia (art. 6, III do CPP) permite ao Delegado de Polícia determinar quaisquer diligências tendentes a elu-cidar o fato criminoso e suas circunstâncias. Contudo, ele não prevalece quando a Constituição Federal ou a lei exige ordem judicial para a reali-zação de determinada diligência.

3. rEsErva dE Jurisdição

Para alguns atos o Poder Constituinte estabeleceu a manifestação exclusiva do Poder Judiciário para a sua prática. É a chamada reserva constitucional de jurisdição, tema já abordado pelo Supremo Tribunal Federal (STF):

O postulado da reserva constitucional de jurisdição importa em submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explícita determinação constante do próprio texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem se haja eventualmente atribuído o exercício de ‘poderes de investigação próprios das autoridades judiciais’. A cláusula constitucional da reserva de jurisdição - que incide sobre determinadas matérias, como a busca domiciliar (CF, art. 5º, XI), a interceptação telefônica (CF, art. 5º, XII) e a decretação da prisão de qualquer pessoa, ressalvada a hipótese de flagrância (CF, art. 5º, LXI) - traduz a noção

1 Sentença. 3ª Vara Federal de Porto Alegre/RS. MS nº 2004.71.00.022811-2/RS. (sentença parcialmente transcrita no julgamento de apelação em mandado de segurança nº 2004.71.00.022811-2 - grifamos).

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de que, nesses temas específicos, assiste ao Poder Judiciário, não apenas o direito de proferir a última palavra, mas, sobretudo, a prerrogativa de dizer, desde logo, a primeira palavra, excluindo-se, desse modo, por força e autoridade do que dispõe a própria Constituição, a possibilidade do exercício de iguais atribuições, por parte de quaisquer outros órgãos ou autoridades do Estado.2

Entretanto, esse controle preventivo exercido pelo Poder Judiciá-rio, como bem assevera Luciano Feldens, é exceção, e deve estar expres-samente previsto no ordenamento jurídico:

Cabe considerar, no particular, que a atividade investigatória da polícia (Federal ou Civil) não se submete, em regra, ao controle preventivo do Poder Judiciário, o que somente se verifica ante situações determinadas em que a lei e/ou a Constitui-ção assim exijam, tal o exemplo das matérias submetidas a sigilo cuja disclosure das informações se demonstre submetida à reserva de jurisdição, tais como: a) busca domiciliar (CF, art. 5º, XI), b) interceptação telefônica (CF, art. 5º, XII) e a c) decretação da prisão de qualquer pessoa, ressalvada a hipótese de flagrância (CF, art. 5º, LXI). (FELDENS, 2008).

Quanto a eventual proteção aos dados cadastrais contida no ar-tigo 5º, XII da Constituição (art. 5º, XII - é inviolável o sigilo da corres-pondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;), que traria a obrigatoriedade de ordem judicial para seu acesso, o STF já se posicionou sobre o assunto, no sentido da proteção do mencionado dispositivo ser referente à comunicação de dados e não aos dados em si, conforme extensa ementa abaixo parcialmente transcri-ta. Além disso, o conceito de “dados” contido no preceito constitucional é diverso do conceito de dados cadastrais.

EMENTA: (...) IV - Proteção constitucional ao sigilo das comunicações de dados - art. 5º, XVII, da CF: ausência de violação, no caso. 1. Impertinência à hipótese da invocação da AP 307 (Pleno, 13.12.94, Galvão, DJU 13.10.95), em que a tese da inviolabilidade absoluta de dados de computador não pode ser tomada como consagrada pelo Colegiado, dada a interferência, naquele caso, de outra razão suficiente para a exclusão da prova questionada - o ter sido o mi-

2 STF. Pleno. MS 23.452/RJ. Relator: Celso de Mello.

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Sigilo de dados cadastrais bancários e telefônicos e o poder geral de polícia

crocomputador apreendido sem ordem judicial e a conseqüente ofensa da garantia da inviolabilidade do domicílio da empresa - este segundo fundamento bastante, sim, aceito por votação unânime, à luz do art. 5º, XI, da Lei Fundamental. 2. Na espécie, ao contrário, não se questiona que a apreensão dos computadores da empresa do recorrente se fez regularmente, na conformidade e em cumprimento de mandado judicial. 3. Não há violação do art. 5º. XII, da Constituição que, conforme se acentuou na sentença, não se aplica ao caso, pois não houve "quebra de sigilo das comunicações de dados (interceptação das comunicações), mas sim apreensão de base física na qual se encontravam os dados, mediante prévia e fundamentada decisão judicial". 4. A proteção a que se refere o art. 5º, XII, da Constituição, é da comunicação 'de dados' e não dos 'dados em si mesmos', ainda quando armazenados em computador. (cf. voto no MS 21.729, Pleno, 5.10.95, red. Néri da Silveira - RTJ 179/225, 270). V - Prescrição pela pena concretizada: declaração, de ofício, da prescrição da pretensão punitiva do fato quanto ao delito de frustração de direito assegurado por lei trabalhista (C. Penal, arts. 203; 107, IV; 109, VI; 110, § 2º e 114, II; e Súmula 497 do Supremo Tribunal).3

Abalizada doutrina adota a mesma tese:

O sigilo, no inciso XII do art. 5°, está referido à “comunicação”, no interesse da defesa da privacidade. Isto é feito, no texto, em dois blocos: a Constituição fala em sigilo "da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas". Note-se, para a caracterização dos blocos, que a conjunção “e” une correspondência com telegrafia, segue-se uma vírgula e depois, a conjunção de dados com comunicações telefônicas. Há uma simetria nos dois blo-cos. Obviamente o que se regula é “comunicação” por correspondência e telegrafia, “comunicação” de dados e telefonia. O que fere a liberdade de omitir pensamento é, pois, entrar na “comunicação” alheia, fazendo com que o que devia ficar entre sujeitos que se comunicam privadamente passe ilegitimamente ao domínio de um terceiro.(FERRAZ JUNIOR, 2005, p. 25).

Quanto aos dados, o que é protegido é que não se dê a sua comunicação a terceiros alheios à relação no curso da qual se ofereceram eles ao conhecimento pelo titular. Não são os dados, portanto, que são protegidos e submetidos ao sigilo, mas a sua comunicação. (ROCHA, 2003, p. 28).

3 STF. Pleno. RE nº 418.416-8. Relator: Sepúlveda Pertence. (grifo nosso).

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Bruno Titz de Rezende

O Poder Judiciário já enfrentou a questão específica da sujeição do fornecimento de dados cadastrais ao princípio da reserva de jurisdi-ção:

HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO AÇÃO PENAL. IMPOS-SIBILIDADE. DADOS CADASTRAIS DE E-MAIL. REQUISI-ÇÃO AUTORIDADE POLICIAL. ORDEM JUDICIAL. DES-NECESSIDADE. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO DIREITO FUNDAMENTAL À PRIVACIDADE.

I. O resguardo do sigilo de dados, genericamente considerado, possui, como ga-rantia que é, função instrumental, no sentido de viabilizar a efetiva realização de direitos individuais relativos à incolumidade da intimidade e da vida privada. Isso significa dizer que a garantia, conceitualmente, por si só, não tem qualquer sentido satisfatório, sendo antes uma projeção do direito cuja tutela instrumentali-za (STF, MS 23452 / RJ - RIO DE JANEIRO, Rel. Min. Celso de Melo). Nesse contexto, o campo de manifestação da garantia informa-se exatamente pela latitude da necessidade de tutela do direito, a entendermos, conseguintemente, que não se cogitando de ameaça ou efetiva lesão ao direito à intimidade e vida privada, igualmente não se pode cogitar em garantia de sigilo de dados.

II. O conhecimento de dados meramente cadastrais, inclusive de e-mail, quando disso não se extrapola para a dimensão de informações sobre o status ou modus vivendi da pessoa, não atinge a intimidade ou a vida privada de alguém, não es-tando submetido à cláusula de reserva de jurisdição. Licitude da prova produzida nesses termos.

III. Para o recebimento da denúncia é suficiente que ela conduza indicação do delito com as suas circunstâncias e demonstração dos indícios de autoria (e a não ocorrência das demais hipóteses do art. 43 do CPP), permitindo o exercício amplo da defesa.

IV. Sendo facultado ao réu, na fase de inquérito, o conhecimento dos atos de inves-tigação não há que se falar em desatendimento ao princípio da ampla defesa.

V. Meras irregularidades do inquérito não contaminam a ação penal.

VI. Ordem que se denega.4

“Os dados dos usuários constantes nos cadastros mantidos por operadoras de telefonia encontram-se protegidos pelo direito à privacidade, previsto no art. 5º, X, da CF/88, e não pela inviolabilidade do sigilo de dados, como pretendem crer as rés. Por conseqüência, afasta-se de imediato a alegação de que tais dados estariam cobertos pelo princípio da reserva de jurisdição em que o Judiciário teria a primeira e a última palavra para determinar a quebra de tais dados.”5

4 TRF 1ª Região. 3ª Turma.. HC nº 2007.01.00.003265-4/DF. Relator: Cândido Ribeiro (grifo nosso).5 Sentença do Juiz Fábio Cordeiro Lima, da 1ª Vara Federal de Sergipe, na ação civil pública nº 2007.85.00.001771-0

(grifo nosso).

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Assim, o fornecimento de dados cadastrais não se submete ao princípio da reserva de jurisdição, nem esses estão protegidos pelo artigo 5º, XII da Constituição Federal. Também, eventual pro-teção pelos sigilos bancário ou fiscal encontrará regramento na es-fera infraconstitucional, pois esses “são consectários da proteção à privacidade, mas delineados em normas infraconstitucionais. (GRA-MSTRUP, 2005, p. 228).

4. dados cadastrais Bancários

Dados cadastrais bancários são as informações mantidas pelos bancos e referentes aos seus correntistas (número de conta corrente, nome completo, CPF, RG, endereço e número de telefone). Não são protegidos pelo sigilo bancário, como abaixo se verá.

Sigilo bancário, na lição de Arnoldo Wald, “é o meio para resguar-dar a privacidade no campo econômico, pois veda a publicidade sobre movimentação da conta corrente bancária e das aplicações financeiras” (DELGADO, 2001, p. 144). E a Lei complementar nº 105 de 2001, em seu artigo 1º, caput, delimita o objeto da proteção do sigilo bancário: “Art. 1º As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados”.

Desse modo, por tratar-se de serviço bancário (FORTUNA, 2000), a conta corrente é acobertada por sigilo. Entretanto, devemos diferenciar os dados cadastrais relativos à conta corrente (dados ca-dastrais bancários) do “serviço conta corrente”. Os dados cadastrais bancários são o controle interno dos bancos para individualizar os clientes que contratam o “serviço conta corrente” e não recebem gua-rida do sigilo bancário. Já o “serviço conta corrente” é o que possibi-lita ao correntista receber depósitos em sua conta, transferir dinheiro, fazer aplicações, etc., sendo protegido pelo sigilo bancário por revelar

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o modo pelo qual o indivíduo atua no campo econômico por meio da movimentação de sua conta bancária (são sigilosas as informações sobre aplicações financeiras efetuadas, os valores que possui em con-ta, os destinos e origens de transferências bancárias, etc). Ou seja, o que o sigilo bancário protege é o “serviço conta corrente” e não os respectivos dados cadastrais.

Isso fica claro pela lição de Roberto Quiroga Mosquera, que, ao tratar do sigilo bancário, indica qual seria o objeto de sua proteção:

Dados que dizem respeito ao valor em dinheiro depositado em contas cor-rentes bancárias, tipos e características de aplicações financeiras, ganhos e prejuízos auferidos ou incorridos em operações bursáteis etc., são, sem sombra de dúvida, elementos particulares e pessoais de qualquer indivíduo. Utilizan-do outra voz: informações que tocam no aspecto financeiro do ser humano representam direito íntimo e personalíssimo, devendo ser mantidas em sigilo por aqueles que eventualmente as detenham, em razão de sua atividade pro-fissional. (MOSQUERA, 1998).

Selecionamos julgados sobre o tema:

PENAL. CORREIÇÃO PARCIAL. FORNECIMENTO DE DADOS CADASTRAIS DE CORRENTISTAS. AUTORIZA-ÇÃO JUDICIAL. DESNECESSIDADE.

1. O sigilo bancário abrange apenas as "operações ativas e passivas e os serviços prestados", conforme dispõe o art. 1º da Lei Complementar nº 105/2001, desta forma não incluindo os dados cadastrais de correntistas, entendidos como o nome, endereço, telefone, RG ou CPF (ou CNPJ). 2. Os elementos cadastrais revestem-se de natureza objetiva, e estão relacionadas com o próprio exercício da cidadania e, via de regra, não se encontram acobertados pela esfera de proteção do art. 5º, X e XII, da Constituição Federal. 6

PENAL. PROCESSUAL PENAL ESTELIONATO CONTRA A UFRGS. ART. 171, § 3º DO CP. PROVA ILÍCITA. NÃO-OCOR-RÊNCIA. DADOS CADASTRAIS. CONTA BANCÁRIA. DESNECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. MA-TERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. DOSIMETRIA

6 TRF 4ª Região. 7ª Turma. Correição Parcial nº 2009.04.00.023525-0/PR. Relator: Tadaaqui Hirose (grifo nosso).

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DA PENA. ATENUANTE. CONFISSÃO. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITOS. CRIME PERMANENTE.

1. No caso dos autos, não houve a quebra do sigilo bancário (medida para a qual se exige, à toda evidência, autorização judicial), mas mera requisição dos dados cadastrais da conta bancária onde fazia o ente público depósito dos pagamentos do servidor, após descoberto seu falecimento.

2. A doutrina e a jurisprudência têm entendido que os direitos e garantias fun-damentais não são absolutos, sofrendo limitações, mormente quando há interesse público relevante, o que é perfeitamente aceitável, em decorrência do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade.7

Não vejo como possa acarretar violação à privacidade de quem quer que seja mera requisição de dados cadastrais, ainda que oriundos de conta bancária. Na espécie, não se pretendeu devassar segredos ou direitos que possam ser considerados invioláveis, ou que dignos de proteção constitucional, buscou-se, tão-somente, os dados cadastrais dos titulares da conta na qual continuava a Universidade depo-sitando os salários de um servidor daquele órgão já falecido, desde o ano de 1998. Assim, tratam-se de dados meramente objetivos. A preservação da intimidade é necessária, porém aqui não se buscava devassar as operações bancárias, mas sim, repito, informações acerca dos dados cadastrais da conta onde eram depositados os salários pela própria Universidade. Não se trata, pois, de quebra de sigilo bancário sem autorização judicial.8

Ainda, não poderíamos olvidar das célebres palavras de Sergio Carlos Covello:

Agora, a revelação de que determinada pessoa se vale dos serviços de caixa do Banco não nos parece consistir violação do segredo, porque esse fato é corriqueiro, nos dias atuais. O Banco não é esconderijo. (FERRAZ JU-NIOR, 2005, p. 37).

Assim, não sendo os dados cadastrais bancários protegidos pelo sigilo bancário, e não havendo em nosso ordenamento jurídico qualquer outra previsão no sentido da necessidade de ordem judicial para o acesso a esta espécie de dados cadastrais, aplicável o poder geral de polícia (art.

7 TRF 4ª Região. 7ª Turma. Apelação criminal nº 2003.71.00.028192-4/RS. Relator: Nefi Cordeiro (transcrição parcial - grifo nosso).

8 Voto do Desembargador Federal Nefi Cordeiro, seguido por unanimidade no julgamento da Apelação criminal nº 2003.71.00.028192-4/RS. TRF 4ª Região. 7ª Turma (grifo nosso).

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6, III do CPP). Logo, quando a Autoridade Policial tiver conhecimento que determinada conta bancária é utilizada para fins ilícitos pode requisi-tar ao banco os dados cadastrais do titular da mesma.

5. dados cadastrais tElEfônicos

Dados cadastrais telefônicos são as informações relativas ao pro-prietário de determinada linha telefônica (nome completo, número da linha de telefone, CPF, RG e endereço).

Devemos distinguir “comunicação telefônica”, protegida por si-gilo (artigo 5º, XII da Constituição da República) e acessível somente mediante autorização judicial (nos termos da Lei nº 9.296/96), de “dados cadastrais telefônicos”, que são as informações mínimas sobre o proprie-tário da linha telefônica com finalidade de especificar o consumidor do serviço e cujo acesso não depende de autorização judicial. Como visto alhures, a mencionada proteção constitucional resguarda tão somente a comunicação, sendo possível a requisição de dados cadastrais diretamen-te pelo Delegado de Polícia, com fundamento no artigo 6º, III do CPP.

Nessa linha de raciocínio:

MANDADO DE SEGURANÇA. GARANTIA CONSTITUCIO-NAL. SIGILO TELEFÔNICO. PEDIDO DE INFORMAÇÃO. CADASTRO DE USUÁRIO DE OPERADORA DE TELEFO-NIA MÓVEL. DELEGACIA DE POLÍCIA FEDERAL. INQUÉ-RITO. DESNECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. DIREITO DE INTIMIDADE. NÃO-VIOLAÇÃO. DIREITO LÍ-QUIDO E CERTO. INEXISTÊNCIA.

1. Havendo inquérito policial regularmente instaurado e existindo necessidade de acesso a dados cadastrais de cliente de operadora de telefonia móvel, sem qual-quer indagação quanto ao teor das conversas, tal pedido prescinde de autorização judicial.

2. Há uma necessária distinção entre interceptação (escuta) das comunicações telefônicas, inteiramente submetida ao princípio constitucional da reserva de ju-risdição (CF, art. 5º, XII) de um lado, e o fornecimento dos dados (registros) telefônicos, de outro.

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3. O art. 7º da Lei 9.296/96 – regulamentadora do inciso XII, parte final, do art. 5º da Constituição Federal – determina poder, a autoridade policial, para os procedimentos de interceptação de que trata, requisitar serviços e técnicos especia-lizados às concessionárias de serviço público. Se o ordenamento jurídico confere tal prerrogativa à autoridade policial, com muito mais razão, confere-a, também, em casos tais, onde pretenda-se, tão-somente informações acerca de dados cadastrais.

4. Não havendo violação ao direito de segredo das comunicações, inexiste direito líquido e certo a ser protegido, bem como não há qualquer ilegalidade ou abuso de poder por parte da autoridade apontada como coatora.9

RECURSO – INTERESSE – CONHECIMENTO – COMPANHIA DADOS CADASTRAIS – SIGILO INEXISTENTE – OBRIGA-ÇÃO DE EXIBIR – SUCUMBÊNCIA – INCIDÊNCIA.

1. Pretendendo a recorrente a modificação da decisão singular, para dela excluir sua condenação nos ônus da sucumbência e, ainda, para fixar seu direito de man-ter o sigilo de seus cadastros, presente se faz o interesse de recorrer, o que autoriza o conhecimento da apelação.

2. Precisando parte de dados existentes em companhia telefônica para instruir possível ação criminal, tem ela a obrigação de os fornecer, não estando protegida pela inciso XII, do artigo 5º, da Constituição Federal.

3. A parte que sucumbe tem que suportar os ônus da sucumbência, nos exatos termos do artigo 20 do CPC, não importando que a parte adversa esteja atendida pela Defensoria Pública.10

Em último nível, encontram-se os dados cadastrais dos usuários, entendidos como nome, endereço, telefone, RG e CPF (ou CNPJ). Tais elementos são de natureza objetiva e dizem respeito ao próprio exercício da cidadania e, em regra, não estão na esfera de proteção do art. 5º, X e XII, da Constituição Federal. Logo, a nosso ver, o seu fornecimento, sobretudo aos órgãos do Estado, prescinde de prévia autorização judicial.11

Outros argumentos utilizados para justificar o descumprimento à requisição policial são dispositivos constantes na Lei nº 9.472/97, que

9 TRF 4ª Região. 7ª Turma. Apelação em mandado de segurança nº 2004.71.00.022811-2/RS. Relator: Nefi Cordeiro (grifo nosso).

10 Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. 6ª Turma cível. Apelação cível nº 2003.08.1.004732-6. Relator: Luciano Vasconcellos. DJU: 03/03/2005. p. 80.

11 Sentença do Juiz Fernando Zandoná, da 7ª Vara Federal de Porto Alegre, na ação civil pública nº 2006.71.00.033295-7.

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disciplina a organização dos serviços de telecomunicações, e na Lei nº 10.703/03, que dispõe sobre o cadastramento de usuários de telefones celulares pré-pagos. Porém, tais justificativas são equivocadas.

O inciso VI do artigo 3º da Lei nº 9.472/97, prescreve que o usu-ário de serviços de telecomunicações tem direito a não divulgação, caso requeira, de seu código de acesso. No entanto, tal direito se destina a não divulgação ao público em geral, por meio de lista de assinantes. O inciso IX do artigo 3º da mesma lei enuncia que o usuário do serviço telefônico tem direito “ao respeito de sua privacidade nos documentos de cobrança e na utilização de seus dados pessoais pela prestadora do serviço”. Ou seja, a operadora de telefonia está impedida de utilizar comercialmente os dados de seus clientes, prática comum entre empresas. Assim, em ambas as situações, havendo investigação criminal em curso, prevalece a norma constante no inciso III do artigo 6º do Código de Processo Penal.

Já a Lei nº 10.703/03, em seu artigo 1º, parágrafo terceiro, prescreve que “os dados constantes do cadastro, salvo motivo justificado, deverão ser imediatamente disponibilizados pelos prestadores de serviços para atender solicitação da autoridade judicial, sob pena de multa de até R$ 10.000,00 (dez mil reais) por infração cometida”. E com base nessa menção à “solici-tação judicial”, alguns sustentam que o fornecimento dos dados cadastrais telefônicos seria condicionado a autorização judicial. Todavia, tal entendi-mento não prospera quando é realizada uma interpretação sistemática e teleológica da norma. O dispositivo não estabelece a requisição exclusiva pelo juiz; ao contrário, em seu artigo 3º, a lei estatui a possibilidade da requisição de dados cadastrais telefônicos pelo Delegado de Polícia. Além disso, o escopo da lei foi facilitar o acesso aos dados cadastrais telefônicos, para prontamente serem identificados autores de delitos.

Nesse sentido:

Com relação ao inciso VI, diz respeito à não divulgação do número de telefone do usuário e, como é sabido, sempre teve por finalidade retirar o nome do assinante da lista telefônica. A restrição, desse modo, destina-se a impedir que o número do telefone do usuário seja disponibilizado para consulta pública (lista impressa, internet e 102). A restrição normativa, portanto, não tem por finalidade e muito menos o condão de impedir que os órgãos de persecução penal tenham acesso aos

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dados cadastrais dos usuários. De igual forma, o inciso IX não impede o acesso dos órgãos do Estado aos dados pessoais dos usuários, mas sim lhes confere o direito de ter sua privacidade respeitada nos documentos de cobrança e de que os seus dados pessoais não sejam utilizados indevidamente pela prestadora de serviço. (v.g. veda o compartilhamento de cadastro entre empresas). O art. 72, por sua vez, não se refere aos dados cadastrais do usuário, mas sim às informações relativas à utilização individual do serviço (ex: registro das chamadas telefônicas), questão que não pode ser confundida com a pretensão exposta na inicial, conforme acima explicitou-se. Deste modo, é possível asseverar que os arts. 3º, incisos V, VI, IX e XII, 72 e §§, da Lei nº 9.472/97 não impedem que os dados cadas-trais dos usuários do serviço de telefonia móvel e fixa (nome, número do telefone, endereço, RG e CPF/CNPJ) sejam fornecidos sem prévia autorização judicial ao Ministério Público e às Polícias. Em verdade, o disposto no art. 3º, VI e IX visa proteger o usuário da bisbilhotice de terceiros (particulares e empresas) na medida em que impede a concessionária de divulgar o seu número de telefone ao público e compartilhar os seus dados cadastrais.12

Por óbvio, a solicitação do usuário para que seus dados não sejam publicados dá-se por questões de privacidade, pelo intuito deste de não ver seu nome e endereço expos-tos, ao alcance de qualquer pessoa ou empresa. Diferente é a situação de acessos a esses dados em razão de investigação. Não se pode crer que o usuário de telefonia, ao requerer que seus dados não sejam disponibilizados, pretenda furtar-se a eventuais investigações civis ou criminais por parte do Ministério Público ou da autoridade po-licial. Mesmo que tal fosse o intuito, este não poderia ser acatado pelas empresas de telefonia, sob pena de obstrução da atividade investigatória e da própria Justiça. 13

Do exame da legislação supra, dessumem-se as seguintes conclusões: 1) o art. 1º, § 3º da Lei 10.703/03 estabelece o dever de atender à solicitação de autoridade judicial, sob pena de multa, mas não assegura que somente o Juiz teria exclusi-vidade de requisitar tais informações. Inclusive, o art. 3º da referida lei dispõe que “os prestadores de serviços de que trata esta Lei devem disponibilizar para consulta do juiz, do Ministério Público ou da autoridade policial, mediante requi-sição, listagem das ocorrências de roubos e furtos de aparelhos de telefone celular, contendo nome do assinante, número de série e código dos telefones.”; 2) não existe na legislação constitucional ou infraconstitucional regra expressa de que somente o Juiz estaria autorizado a requisitar tais dados; 3) estas entidades estão obrigadas nas suas atividades a manter o sigilo dos dados for força de dever legal e contra-tual, não podendo divulgá-las a terceiros sem justa causa. Outrossim, compete às

12 Sentença do Juiz Fernando Zandoná, da 7ª Vara Federal de Porto Alegre, na ação civil pública nº 2006.71.00.033295-7 (grifo nosso).

13 Decisão favorável em antecipação de tutela na ação civil pública nº 2006.71.00.033295-7/RS. 7ª Vara Federal de Porto Alegre (grifo nosso).

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autoridades coletar dados a fim de instruir as investigações, sendo a requisição de dados um poder inerente às suas funções, respeitadas as garantias constitucionais (inviolabilidade do domicílio, do sigilo e etc.).14

Vê-se, deste modo, que a Lei nº 10.703/03 não teve por escopo criar qualquer obstáculo ao acesso aos dados cadastrais dos usuários da telefonia móvel pré-paga. Ao contrário, sua finalidade foi a de possibilitar às autoridades competentes (Po-licias, Ministério Público e Poder Judiciário), durante a investigação criminal e a instrução processual penal, assim como nas outras modalidades de telefonia (móvel pós-paga e fixa), o acesso aos dados do usuário. Neste contexto, resta evidencian-do que a Lei nº 10.703/03 não veio para restringir o acesso das autoridades aos dados cadastrais dos usuários da telefonia móvel ou fixa; muito antes pelo contrário, veio, em verdade, possibilitar que, assim como nas demais modalidades, os usuários da telefonia móvel pré-paga fossem facilmente identificados (nome, endereço, número do telefone, RG e CPF ou CNPJ).15

Destarte, não sendo os dados cadastrais telefônicos protegidos pelo inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal ou pelas Leis nº 9.472/97 e nº 10.703/03, e não havendo em nosso ordenamento jurídico qualquer previsão no sentido do acesso a dados cadastrais telefônicos ne-cessitar de ordem judicial, prevalece o poder geral de polícia, permitindo a requisição direta de tais informações pela Autoridade Policial.

6. JurisPrudência

Devemos ressaltar que não há jurisprudência pacífica sobre o assunto. Contudo, os julgados mais recentes apontam para a possibilidade da requisi-ção policial, excluindo dados cadastrais telefônicos ou bancários do âmbito do sigilo. Já os julgados em sentido contrário, via de regra, sustentam que essas espécies de dados cadastrais são protegidas pelo sigilo bancário ou telefônico.

Na Seção Judiciária de Sergipe foi prolatada sentença em ação civil pública favorável ao fornecimento de dados cadastrais telefônicos sem a necessidade de autorização judicial. A parte dispositiva da sentença determina:

14 Sentença do Juiz Fábio Cordeiro Lima, da 1ª Vara Federal de Sergipe, na ação civil pública nº 2007.85.00.001771-0 (grifamos).

15 Sentença do Juiz Fernando Zandoná, da 7ª Vara Federal de Porto Alegre, na ação civil pública nº 2006.71.00.033295-7 (grifamos).

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“1) as operadoras de telefonia e suas sucessoras ficam obrigadas a atender às requisições efetuadas pelos Delegados Federais ou membros do Ministério Público Federal, que exerçam as suas funções no âmbito dos Estados integrantes da 5ª Região, para o fornecimento de dados dos usuários constantes em seus cadastros, desde que sejam observadas as seguintes condições:

1.1) os dados requisitados se restrinjam a nome, filiação, RG, CPF, endereço e número do telefone;

1.2) em nenhuma hipótese, conterão registros de ligações telefônicas, nº de conta bancária, comprovante de renda ou qualquer outro dado, que possam expor a privacidade do indivíduo;

1.3) a requisição deverá ser individual (para cada pedido), em papel com o timbre da Instituição, assinada pela autoridade devidamente identificada, conterá telefone ou email para confirmação da autenticidade e fará referência a um inquérito ou procedimento investigatório em curso; (...)”16

Na Seção Judiciária do Rio Grande de Sul também foi prolatada sentença em ação civil pública favorável ao fornecimento de dados ca-dastrais telefônicos sem a necessidade de autorização judicial. A parte dispositiva da sentença determina:

“(a) determinar que as operadoras-rés e suas sucessoras forneçam ao Ministério Público Federal, ao Ministério Público Estadual, à Polícia Federal, à Polícia Civil Estadual e à Autoridade Policial Judiciária Militar, independentemente de prévia autorização judicial, o nome, o endereço, o número do telefone, o RG e o CPF (ou CNPJ) dos usuários de qualquer modalidade de telefonia fixa e móvel no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul, quando requisitados ou requeridos tais dados cadastrais, desde que fornecido um dos elementos acima e exista in-quérito policial, inquérito civil ou outro procedimento administrativo investigativo instaurado, sob pena de multa cominatória de R$ 2.000,00 (dois mil reais) para cada descumprimento injustificado;”17

Ainda, nas Seções Judiciárias de São Paulo18 (dados cadastrais bancários) e Bahia19 (dados cadastrais telefônicos) foram propostas outras ações civis públicas sobre o tema.

16 Sentença do Juiz Fábio Cordeiro Lima, da 1ª Vara Federal de Sergipe, na ação civil pública nº 2007.85.00.001771-0.

17 Sentença do Juiz Fernando Zandoná, da 7ª Vara Federal de Porto Alegre, na ação civil pública nº 2006.71.00.033295-7.

18 Ação civil pública nº 2006.61.00.015196-0. 13ª Vara Federal de São Paulo (tramita em segredo de justiça).19 Ação civil pública nº 2007.33.00.008418-4. 16ª Vara Federal da Bahia (sentença improcedente).

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Todavia, não há sentença com trânsito em julgado, sendo certo que a controvérsia apenas será dirimida com o posicionamento do STF (esse está prestes a pronunciar-se sobre a matéria - dados cadastrais tele-fônicos - no recurso extraordinário n° 543008).

conclusão

A requisição de dados cadastrais pela Autoridade Policial é ampa-rada pelo artigo 6º, III do Código de Processo Penal, e tem por finalidade o esclarecimento da autoria e materialidade de infrações penais.

Não existe em nossa legislação qualquer dispositivo exigindo or-dem judicial para a obtenção de dados cadastrais bancários ou telefô-nicos, e os mesmos não integram os sigilos telefônico e bancário. Ao contrário, a Lei nº 8.078/90, em seu artigo 43, parágrafo 4º, estabelece que os bancos de dados e cadastros relativos a consumidores são consi-derados entidades de caráter público (sendo certa a submissão de bancos e operadoras de telefonia à legislação consumerista).

Logo, não há dúvida sobre a legalidade da requisição de dados cadastrais bancários e telefônicos pelo Delegado de Polícia.

BRUNO TITZ DE REZENDE

Delegado de Polícia Federal, mestrando em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

E-mail: [email protected]

ABSTRACT

The Chief of Police, through the general police power, can request registration data for clarification of criminal acts. However, there is disagreement as to whether the request for registration data of bank and phone users. This article seeks to encourage such discus-sion.

Keywords: Registration data. Secrecy. Police request. Police Chief. General police power.

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Polícia, traBalho E saúdE: algumas rEflExõEs

Fabiana Regina Ely

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RESUMO

Este artigo se apóia numa revisão bibliográfica para apresentar aspectos ligados ao processo de trabalho do policial, associados às peculiaridades do trabalho na polícia. Dentre os destaques re-lacionados, tem-se o uso da arma de fogo como instrumento de trabalho e a presença do risco como algo inerente à profissão. Na condição de trabalhador, percebe-se que o policial tem uma atividade permeada por elementos que podem afetar fortemente a sua saúde. Sob esta ótica e se apropriando dos conceitos da Saúde do Trabalhador, finaliza-se esta breve discussão apresentando considerações que podem ser aproveitadas nas ações de atenção à saúde do policial.

Palavras-chave: Polícia. Trabalho. Peculiaridades. Saúde do Trabalhador.

introdução

A veiculação de notícias sobre a atuação da polícia no enfren-tamento à criminalidade é algo cada vez mais frequente no noticiário brasileiro. Nesta mesma linha, os trabalhadores e as questões que envol-vem a profissão policial também se tornaram alvo reiterado dos meios de comunicação. Spode (2004, p. 12) sinaliza que as reportagens “ora mos-trando as ações de combate ao crime – colocando os policiais no lugar de heróis – ora mostrando-os como vilões, que se corrompem ou matam inocentes” apontam, em geral, um espaço controverso, com peculiarida-des que atravessam o processo de trabalho policial e oferecem condições reais de ameaça à saúde deste trabalhador.

Se por um lado a mídia enaltece as relações que permeiam o mun-do da polícia, por outro, a comunidade científica e técnica parece ter preterido historicamente o estudo desta instituição. As pesquisas estive-ram, por muito tempo, direcionadas para o trabalho fim da polícia, sendo

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ainda recentes e escassos os estudos voltados para o desvendamento das “caixas pretas” que guardam as peculiaridades do trabalho policial. Mes-mo assim, este artigo se apóia numa revisão bibliográfica e, no ensejo de contribuir, a partir de reflexões, traz apontamentos para se pensar na saúde destes trabalhadores.

saúdE do traBalhador: marcando concEitos

As associações entre trabalho e adoecimento são bastante antigas na história da humanidade. Os primeiros registros de que se tem conhe-cimento são atribuídos às observações de Hipócrates. Depois dele, segui-ram-se muitos outros relatos das deformações físicas, das enfermidades e das sequelas relacionadas, direta ou indiretamente, à atividade desen-volvida pelo indivíduo. Entretanto, muitos séculos se passaram até que estudos mais regulares fossem empreendidos, como é o caso das pesqui-sas do médico italiano Bernardino Ramazzini (1633-1714), que observou grupos de trabalhadores, relacionando suas atividades às doenças que os acometiam, as formas usadas para o seu tratamento e também para a sua prevenção. Depois dos resultados encontrados por Ramazzini, a Medici-na passou a considerar na sua anamnese a atividade desempenhada pelo paciente. Contudo, é a partir da segunda metade do século XIX que essa temática ganha maior espaço, com o surgimento de novos olhares para a relação saúde/doença no trabalho.

No Brasil, seguindo as tendências mundiais, a Medicina do Tra-balho foi a primeira a entrar em cena. Centrada na inserção do médico na empresa, com a função de recuperar a saúde dos trabalhadores para retomarem o processo produtivo, o seu olhar focava o individual, o bio-lógico, visto que “detectado o efeito do evento, acidente ou doença, a Medicina do Trabalho preocupava-se em agir para tratá-lo, ou diminuir suas sequelas” (MENDES, 2003, p. 64).

No pós-guerra, com o agravamento das jornadas e as cargas de trabalho, o saber médico já não conseguia mais dar conta, isoladamente,

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de abranger os problemas enfrentados neste campo. A Saúde Ocupa-cional é que passa agora a tomar este espaço, trazendo um enfoque para além da doença, direcionando a atenção para as características do am-biente de trabalho. Como bem coloca Mendes (2003, p. 64), para a Saú-de Ocupacional era “como se bastasse o diagnóstico dos ‘desequilíbrios’ ambientais, ou das falhas das máquinas e equipamentos, para que fossem tomadas as decisões necessárias à implantação das melhorias”.

Não tardou para que novas modificações no processo de trabalho, no final do século XX, colocassem em xeque as concepções da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional. Na complexidade posta, era neces-sário um olhar renovado, encontrado então na Saúde do Trabalhador:

Apesar das dificuldades teórico-metodológicas enfrentadas, a saúde do trabalha-dor busca a explicação sobre o adoecer e o morrer das pessoas, dos trabalhadores em particular, através do estudo dos processos de trabalho, de forma articulada com o conjunto de valores, crenças e idéias, as representações sociais, e a possibili-dade de consumo de bens e serviços, na “moderna” civilização urbano-industrial (MENDES e DIAS, 1991, p. 346).

Ao incorporar as ciências sociais, o exercício interdisciplinar pro-posto pela Saúde do Trabalhador se apropriava também do conceito marxista de processo de trabalho, extraído da economia política. Este novo marco permitia “contemplar a subjetividade dos atores envolvidos” (MINAYO-GOMEZ; THEDIM-COSTA, 2003, p. 126). As concepções positivistas da Medicina do Trabalho e da Saúde Ocupacional, que viam uma articulação simplificada entre causa e efeito, ou seja, o adoecimento por um agente biológico ou fatores de risco presentes no ambiente de trabalho, não consideravam ou minimizavam a importância da dimensão social e histórica do trabalho e do processo saúde/doença. Ao romper com esses reducionismos, a Saúde do Trabalhador passa a direcionar suas ações “não só aos trabalhadores que sofrem, adoecem ou se acidentam, mas também ao conjunto coletivo de trabalhadores [...] através de uma abordagem transdisciplinar e intersetorial e, ainda, com a imprescindível participação dos trabalhadores” (MENDES, 2003, p. 65).

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Polícia, traBalho E saúdE: contExtualizando a discussão

Para começar a falar sobre a polícia é preciso antes apresentar um pouco da sua história, revendo o modo como se estabeleceu o processo de trabalho nesta instituição. Logo, o primeiro desafio é “demarcar a especificidade [da polícia] numa ação, com um ordenamento administra-tivo e jurídico específico, ao mesmo tempo em que possui um elemen-to comum, transnacional, reconhecível em realidades as mais diversas” (BRETAS, 1997, p. 79). Assim, na tentativa de buscar o estado da arte desse conhecimento, reúnem-se aqui elementos aplicáveis à instituição polícia como um todo, que pudessem associar-se, antes de tudo, com as diversas formas organizacionais desta instituição:

A distribuição pelo território nacional pode ser mais ou menos extensa, algumas polícias importam a estrutura militar, a ênfase no uniforme é maior ou menor, o controle da força é conservado em nível local ou não, a atuação privilegia o cumpri-mento de normas definidas ou concede maior poder ao discernimento do policial no cumprimento de suas tarefas. Apesar de toda a variação institucional, porém, parece haver a formação de uma cultura profissional coletiva (BRETAS, 1997, p. 81).

Hoje se tornou difícil pensar numa sociedade sem a existência de organizações policiais. Revendo a história, descobre-se que a polícia é uma instituição que existe desde as primeiras civilizações da Antiguidade, quan-do tinha a função maior de reprimir. Entretanto, o ato formal que marca o seu nascimento, segundo os registros apontados por Tavares dos Santos (1997), se deu na França e foi assinado por Luiz XIV, em 1667. Naque-le momento a polícia foi concebida sobre os moldes de uma instituição centralizada e estatal. Em 1829, na Inglaterra, surge um novo modelo de polícia, com ação de controle dirigida agora para as classes populares e o policial se relacionando diretamente com a comunidade local.

O fato é que desde o seu surgimento a polícia foi conquistando espaço social e hoje se faz presente em quase todas as nações, embora caracterizada por uma diversidade histórica, personificada na variedade de formas em que se apresenta em cada país (BAYLEY, 2002). A polícia que se conhece hoje tem, portanto, o seu desenvolvimento contado a

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partir da expansão do poder do Estado e, como seu braço armado, ela tornou-se um aparelho privilegiado para a manutenção da ordem social interior. Assim, vale lembrar que, no Brasil, a Constituição Federal, ao tratar da defesa do Estado e das instituições democráticas, apresenta as organizações policiais quando trata da Segurança Pública:

O conceito de Segurança Pública [...] abrange a garantia que o Estado oferece aos cidadãos, por meio de organizações próprias, contra todo perigo que possa afetar a ordem social, em prejuízo da vida, da liberdade ou dos direitos de propriedade. A segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos. Embora seu conceito seja muito mais complexo do que o de policiamento, a segurança é transformada em mandato à instituição policial, de tal forma que a produção e a manutenção da ordem constituem a essência de sua missão e de seu processo de trabalho (MINAYO e SOUZA, 2005, p. 920).

A Carta Magna coloca a Segurança Pública como responsabilida-de delegada a cinco distintos e independentes órgãos policiais, são eles: a polícia federal, a polícia rodoviária federal, a polícia ferroviária federal, as polícias civis e as polícias militares. Partindo do princípio de que to-dos esses órgãos compõem a instituição polícia no Brasil, encontra-se em Bayley (2002, p. 20) a combinação dos elementos que refletem esta unidade. Para este pesquisador, quando se fala de polícia, está se fazendo referência à força física, ao seu uso interno e a certa autorização coletiva para o uso. Logo, a polícia teria a competência exclusiva para fazer uso da força física, seja de forma real ou por ameaça, de modo que este uso se dê internamente e, antes de tudo, ele seja autorizado pelo grupo, excluindo aqui as pessoas que utilizam a força com propósitos não-coletivos.

Ainda sob a mesma ótica, Tavares dos Santos (1997, p. 162) acres-centa que, em geral, os padrões de polícia adotados nos diferentes Es-tados quase sempre são uma combinação do modelo francês (estatal e centralizado) com o modelo inglês (comunitário). Já no caso brasileiro, além de aliar a coerção física legal com a legitimidade social, o modelo de polícia em vigor comporta um terceiro elemento, diretamente associado à violência do espaço social: “a virtualidade da violência física ilegítima, enquanto prática social que implica a possibilidade do excesso de poder” (TAVARES DOS SANTOS, 1997, p. 162).

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Quanto às atribuições da polícia, seguindo os apontamentos de Bay-ley (2002, p. 126), observa-se que elas foram historicamente se ampliando e até se modificando, para atender à emergência de novas tarefas no cumpri-mento das leis, para dar conta do aumento na capacidade administrativa geral dos Estados e das exigências de atribuições especializadas. Com o término do regime militar, a polícia brasileira ganha “funções que vão além do poder coercitivo, tais como a proteção e a garantia do exercício da cidadania e a valorização de seu papel comunitário” (SPODE, 2004, p. 12). Tais ações, que num primeiro olhar se apresentam distantes das praticadas no passado, devem ser encaradas como uma ampliação das tarefas desempenhadas, uma vez que ainda se preservam os princípios dessa instituição:

Em suma, o papel da polícia é enfrentar todos os tipos de problemas humanos quando (e na medida em que) suas soluções tenham a possibilidade de exigir (ou fazer) uso da força no momento em que esteja ocorrendo. Isso empresta homoge-neidade a procedimentos tão diversos como capturar um criminoso, levar o prefeito para o aeroporto, tirar uma pessoa bêbada de dentro de um bar, direcionar o trân-sito, controlar multidão, cuidar de crianças perdidas, administrar os primeiros socorros médicos e separar brigas de familiares (BITTNER, 2003, p. 136).

No Brasil, a adaptação da polícia às novas funções exigidas pela sociedade está, portanto, vinculada às mais diversas solicitações vindas de uma grande parcela populacional para quem a polícia se tornou a princi-pal e primeira porta de socorro. Quem atende nesta porta? Trabalhadores – sejam policiais civis, militares, ferroviários, rodoviários ou federais.

Estes trabalhadores, embora pertençam a órgãos policiais distintos, unem-se mais uma vez enquanto profissão. Exercem um trabalho técnico especializado que compõe a profissão policial, no momento em que esta atividade é “exercida por um grupo social es-pecífico, que compartilha um sentimento de pertencimento e identifi-cação com sua atividade, partilhando idéias, valores e crenças comuns baseados numa concepção do que é ser policial” (PONCIONI, 2003, p. 69). Além disso, na divisão sócio-técnica do trabalho, reserva-se um espaço para os policiais, na medida em que há um “conjunto de ati-vidades atribuídas pelo Estado à organização policial para a aplicação da lei e a manutenção da ordem pública, como também os meios uti-

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lizados por este grupo ocupacional para validar o trabalho da polícia como 'profissão'”.(PONCIONI, 2003, p. 69).

Sobre o processo de trabalho policial, Fraga (2006) sinaliza que ele atende o disposto na perspectiva marxista, no momento em que agre-ga os seus três elementos constitutivos: o trabalho em si (a finalidade de executar a política de segurança pública), a matéria-prima (com objeto de trabalho etéreo – a prestação da segurança pública para a sociedade) e os meios para o trabalhador realizar a sua atividade (instrumentos e conhe-cimentos técnico-operativos). Assim, o processo de trabalho do policial produz um valor de uso (o serviço de segurança pública oferecido à so-ciedade) e um valor de troca (preço pago pelo seu empregador, o Estado, pelo seu serviço). (FRAGA, 2006, p. 4).

Este é o processo de trabalho que se apresenta à sociedade e mo-tiva o cidadão a optar pelo ingresso nos quadros da polícia. Um estu-do realizado por Bourguignon et al. (1998, p. 98) com policiais civis do Espírito Santo, identifica alguns fatores que influenciam a escolha dos indivíduos pelo trabalho policial. Dentre as motivações, existe a inegável atração que a imagem de ser policial desperta nas pessoas, representação construída a partir da atuação do personagem em filmes. Há também a motivação gerada pela necessidade de sobrevivência, justificada pelos sa-lários que atualmente são bastante atrativos para a maioria da população. Outro fator de influência é o histórico de familiares na carreira policial, que despertam o interesse ou a aproximação com a área. Por fim, a voca-ção também aparece neste estudo como um elemento incentivador para o ingresso na profissão.

Uma vez na instituição, o cidadão parece incorporar uma iden-tidade profissional, que se constrói marcada pelos aspectos associados ao trabalho na polícia. Mesmo sem ir muito longe na investigação destes aspectos, já despontam duas questões importantes a serem consideradas para esta discussão: o fato de ser o trabalho policial uma profissão de risco e o trabalhador ter em mãos um instrumento de trabalho com alto grau de letalidade, a arma de fogo.

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No tocante ao risco, ressalta-se que ser policial é assumir uma ex-posição ao risco não mais acidental, mas institucional, como bem mostra o estudo de Minayo, Souza e Constantino (2007, p. 2768), comparando a vitimização e os riscos percebidos pelos policiais civis e militares do Rio de Janeiro:

Esses profissionais têm consciência de que perigo e audácia são inerentes aos atributos de suas atividades. Seus corpos estão permanentemente expostos e seus espíritos não descansam. O sentido do termo risco adequado [...] leva em conta sua definição epidemiológica e social. A primeira lhe dá parâmetros quanto à magnitude dos perigos, os tempos e os locais de maior ocorrência de fatalidades; a segunda responde pela capacidade e até pela escolha profissional do afrontamento e da ousadia. A percepção de risco que daí se depreende vem do caráter intrínseco da atividade policial; mas também, do fato de que todos têm porte de armas, tornando-se alvos potenciais das agressões uns dos outros (MINAYO, SOUZA e CONSTANTINO, 2007, p. 2768).

Num espaço onde o risco pode tanto ser vivenciado em situações reais, de vida e de morte, quanto estar presente apenas nas representa-ções que o trabalhador cria, é muito comum se deparar com um compor-tamento que conduz ao retraimento social:

[...] mesmo que as situações objetivas não se afigurem tão perigosas, no nível da representação, o ofício de policial é percebido e vivido como um grande risco. As-sim, por processo metonímico ou não, o risco é um eixo estruturado e estruturante do ser policial, fazendo com que seu local de trabalho, sua vida, suas relações de trabalho, material e simbolicamente, se configurem como espaços de perigo, podendo trazer conseqüências reais e danosas para a sua saúde física e mental (MINAYO e SOUZA, 2003, p. 226).

Observa-se que, ao mesmo tempo em que os policiais mostram-se iguais aos demais cidadãos, eles também “colocam-se como distintos da sociedade, na medida em que dispõem de certos poderes que a maio-ria da população não possui [...] Passam a encarnar o lugar da autoridade, daquele que pode e deve vigiar” (MOREIRA et al., 1999, p. 30). Vale destacar que nessa condição ambígua de vulnerabilidade e poder, aparece o outro ponto de destaque na profissão: o uso da arma de fogo como instrumento de trabalho.

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Nas vinte quatro horas do dia, nos sete dias da semana, a arma lembra ao trabalhador a sua identidade profissional e agrega, deste modo, um “exercício integral e exaustivo da profissão” (MOREIRA et al., 1999, p. 30). Portanto, não é incomum encontrar relatos expressivos da impor-tância da arma em suas vidas, muitos a situam como parte de seus cor-pos, tanto que não conseguem sequer separar-se dela enquanto dormem, guardando-a embaixo do travesseiro e justificando que, como policiais, precisam estar sempre prontos para se defender.

Este instrumento com alto grau de letalidade preocupa, sobre-maneira, quando manipulado em condições adversas. O que se espera é que o policial tenha se preparado suficientemente para fazer uso da arma, ainda no seu processo de formação, e desta forma aprendido a distinguir o momento ideal de usá-la. Não obstante, como lembram os estudos feitos por Spaniol (2005) com policiais militares do Rio Grande do Sul, é preciso considerar que a atividade policial, em geral, exige atenção em ações caracterizadas por tensão e pressão.

Não se pode esquecer que quem manipula as armas na polícia são seres humanos, mesmo que por vezes seja difícil percebê-los deste modo, pois se encontram escondidos atrás da figura do representante da função institucional de policial. Logo, estes indivíduos possuem uma “história pessoal, sentimentos e desejos que estão sempre expostos a vá-rias situações que exigem preparo físico, técnico e psicológico. Também é importante o entendimento dos fatores culturais, políticos e sociais em que este se encontra inserido” (SPANIOL, 2005, p. 81).

Considerando tais apontamentos “é fundamental que [o policial] aprenda a intervir nos mais distintos espaços, de modo que exerça sua autoridade como profissional dentro das prerrogativas que lhe oferecem o poder de polícia, mas sem abusar desse poder, de maneira arbitrária ou autoritária” (FRAGA, 2006, p. 6). Nesta breve indicação de como deve ser o agir profissional, já se pode antever que o trabalho policial pode ser amplamente explorado pela mídia. Neste sentido, de um lado observa-se que os meios de comunicação auxiliam na construção de um estereótipo

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positivo, com notícias que veiculam atividades policiais bem sucedidas, mas que trazem junto uma cobrança social para que toda a polícia e, por conseguinte, o policial, atenda a esta expectativa de herói, estando sempre pronto a agir, como verdadeiro “robocop” a serviço da segurança pública (MOREIRA et al., 1999). Por outro lado, é comum observar também no-tícias dando “ênfase na violência policial, uma denúncia veemente de que a atividade desses profissionais estaria desvirtuada e, consequentemente, desacreditada pela população, em algumas situações, porque alguns de seus agentes recorrem à brutalidade e à violência” (FRAGA, 2006, p. 16). Assim, mesmo em se tratando de situações específicas, quando ocorre essa veiculação na mídia impressa e falada, tem-se uma imagem social negativa atribuída à instituição e aos seus trabalhadores, sentida por toda a organização.

Alémdoriscoedaarmade fogo−aspectosquecaracterizammuito bem a instituição polícia e que podem afetar fortemente a saúde dosseustrabalhadores−ter-se-iammuitasoutrasquestõesaseremdes-tacadas, não menos importantes, mas que aqui serão apenas pontuadas. Os princípios da disciplina e da hierarquia, sempre presentes no meio policial, em algumas organizações com maior rigidez do que em outras, são um destes aspectos. Tais princípios, recepcionados do militarismo, se manifestam de modo formal ou informal no interior das organizações e podem ser observados com maior facilidade nas relações de poder que se estabelecem nestes ambientes.

Destacam-se também os regimes de trabalho que, em geral, im-põem como obrigação a dedicação integral e/ou exclusiva à atividade. Ainda que tal condição não existisse, para o policial é muito difícil afas-tar-se da sua identidade profissional, mesmo fora do local e horário de trabalho. A sociedade está sempre vigiando sua conduta, da qual se es-pera coerência com a função, e chamando-o a intervir nas mais diversas situações que se apresentam no prédio onde mora, no grupo de amigos que frequenta, na escola do seu filho, enfim, em todos os espaços onde seja conhecida a sua identidade policial.

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Outro ponto, bem apresentado por Moreira et al. (1999, p. 31), faz referência aos discursos que foram encontrados por estes autores na polícia militar, mas que poderiam ser muito bem importados para as demais organizações policiais. Seguindo a Psicopatologia do Trabalho1, estes discursos seriam classificados como possíveis defesas coletivas. São eles: “o discurso da adrenalina” que serviria para justificar os riscos assu-midos e valorizar os esforços empreendidos e “o discurso da naturaliza-ção da morte”, como se na polícia matar ou morrer fosse algo intrínseco à profissão.

A polícia é ainda um ambiente predominantemente masculino, embora a proporção de mulheres nos quadros tenha aumentado nos úl-timos anos. Assim, só a associação que se tem entre homem/policial/armado e as relações de gênero já poderiam se constituir num capítulo a parte desta discussão, trazendo elementos indispensáveis para o desven-damento da relação trabalho/saúde/adoecimento neste meio.

Cada organização reúne também questões particulares, próprias das diferentes realidades vivenciadas pelas diversas polícias brasileiras, desde condições de trabalho inapropriadas até relações interpessoais ex-tremamente comprometidas. Ao se pensar na saúde destes trabalhadores, estes aspectos devem ser considerados na sua relevância.

Conhecendo algumas das peculiaridades que estão associadas à atividade policial e sabendo que o trabalho estrutura a vida das pessoas, ocasionando consequências sobre a sua saúde, com as aproximações efe-tuadas neste artigo têm-se elementos significativos para pensar sobre os impactos do trabalho na saúde dos policiais. Seguindo os apontamentos da Saúde do Trabalhador e aplicando as palavras de Dias (1996, p. 28), poder-se-ia inferir que este profissional tem “um viver, adoecer e morrer compartilhado com o conjunto da população, em um dado tempo, lugar e inserção social, mas que é também específico, resultante de sua inserção em um processo de trabalho particular”.

1 Para referências: DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho: psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré, 1992.

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considEraçõEs finais

Finalizando esta breve discussão, à guisa de conclusões, retoma-se a condição do policial enquanto trabalhador – antes de herói ou vilão – e, sob esta ótica, como se viu, a sua saúde pode ser fortemente influenciada pela atividade laboral. Assim, partindo da premissa de que o trabalho não pode ser, em nenhum momento, gerador de sofrimento, de adoecimento ou morte para qualquer trabalhador, talvez seja necessário questionar que tipo de atenção as organizações policiais têm dispensado à saúde de seus trabalhadores. Se existe atenção, será que as ações se constituem em uma política institucional? Qual o marco teórico-metodológico que tem guia-do o pensamento e a intervenção em saúde nestas organizações?

A intenção não é oferecer respostas prontas a estas perguntas, mas, ao refletir sobre elas, resgatar aqui os preceitos da Saúde do Traba-lhador como uma alternativa ao processo de atenção à saúde do policial.

Nesta lógica, o olhar não pode se limitar à busca de um agente biológico, causador do adoecimento, tampouco ficar restrito aos dese-quilíbrios ambientais, até porque, se assim fosse, ao se primar por tratar simplesmente a doença ou fazer adaptações no ambiente físico, estariam se desconsiderando as demais peculiaridades que exercem muita influ-ência sobre a saúde destes trabalhadores, como as que foram apontadas neste artigo.

Seguindo, portanto, a perspectiva da Saúde do Trabalhador, re-comenda-se que as organizações partam da inteligibilidade daqueles que vivem a polícia, considerando o papel ativo do trabalhador na transfor-mação da sua realidade. Deste modo, incorrer-se-á em menos erros e mais acertos, pois o trabalhador conhece e sente melhor do que ninguém o seu trabalho, por conseguinte; ele não pode ser tomado como objeto passivo da intervenção.

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O adoecimento só será entendido em sua amplitude quando o olhar se voltar para o processo de trabalho do policial e considerar a interferência dos determinantes sociais. É preciso olhar o policial no tra-balho, tomando-o na sua historicidade, na sua totalidade, para localizar a contradição, tão importante para o desvendamento do processo de ado-ecimento deste grupo2.

Neste exercício, orienta-se que sejam empregados diferentes co-nhecimentos, resgatando o modo interdisciplinar de pensar a saúde, pri-mando pela interação dos diferentes saberes que compõem as expertises desta área. Alerta-se, por fim, que a atenção e o direcionamento das ações não deve centrar-se apenas sobre aqueles que adoecem, mas voltar-se ao coletivo de trabalhadores.

FABIANA REGINA ELY

Assistente Social da Polícia Federal em Santa Catarina. Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa

Catarina (UFSC), com pesquisa no campo da Saúde do Trabalhador com policiais federais.

E-mail: [email protected]

ABSTRACT:

This paper does a literature review to present aspects related to the process of work of the policeman, associated with the peculiarities of his work in the police force. Among the related highlights are the use of firearms as work instruments and the risk as something inherent in this profession. It is observed that, as a worker, the policeman performs an activ-ity permeated by elements which could strongly affect his health. From this point of view, and considering the concepts of health of the worker, this short discussion is concluded by considerations which could be taken into account in the actions of attention to the police-man’s health.

Keywords: Police. Work. Peculiarities. Health of the Worker.

2 Historicidade, totalidade e contradição são categorias teórica retiradas do Método Dialético Materialista. Para referências: MARX, Karl. Introdução (Para a crítica da economia política). São Paulo: Abril Cultural, 1982 / MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

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67ISSN 1983-1927

Brasília, v. 3 n. 1, p. 67-89, jan/jun 2010.Recebido em 10 de novembro de 2009.Aceito em 31 de dezembro de 2009.

o controlE dE frontEiras E a intEgração rEgional no ÂmBito do mErcosul: asPEctos históricos E PErsPEctiva

Fábio Ricardo Hegenbart Bueno

D

RESUMO

O presente trabalho faz um relato histórico do surgimento da idéia de fronteiras entre as nações. Analisa os aspectos que influenciam o controle de fronteiras e o trânsito de pessoas entre os paí-ses. Que providências estão sendo tomadas para solucionar a aparente incompatibilidade existen-te entre o crescente desejo da integração regional dos países membros do Mercado Comum do Sul – MERCOSUL, e a necessidade do Estado brasileiro de implantar um eficiente e efetivo controle de fronteiras. Se, por um lado, interesses econômicos, políticos e sociais justificam o incremento das relações multilaterais na América Latina, por outro, a internacionalização do crime organizado exi-ge que o Estado moderno controle suas fronteiras, dispondo de informações precisas e atualizadas sobre quem entra e quem sai dos seus limites territoriais. Os dados levantados nos mostram que o controle migratório nas fronteiras terrestres do sul do país sempre foi realizado de forma precária. É possível implementá-lo sem regredir no processo de aproximação com os povos platinos?

Palavras-chave: Surgimento das fronteiras. Relações multilaterais. Mercado Comum do Sul – MERCOSUL. Integração regional. Controle de fronteiras. Fluxos migratórios.

introdução

Ao longo da história da humanidade, o controle de fronteiras foi considerado uma das principais manifestações do poder soberano de um Estado em relação ao seu território e garantia da segurança daqueles que o habitavam. Não raro, fatores políticos, sociais, religiosos, econômicos e culturais influenciaram na forma de manifestação desse poder.

A flexibilização do controle de fronteiras e, por conseqüência, do fluxo migratório sempre esteve ligada a fatores que vão muito

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além daqueles vislumbrados pelo cidadão comum que busca a com-pra de um produto por menor preço ou simplesmente a satisfação de anseios turísticos.

Em contrapartida, o endurecimento das relações fronteiriças, com inexorável reflexo na integração dos povos limítrofes, está, histori-camente, ligado a episódios pré ou pós-guerras, sendo comumente usado como forma de pressão no cenário político internacional.

No presente trabalho, serão analisados os fatores históricos e es-tratégicos do conceito de fronteira e de sua fiscalização ao longo da his-tória, com atenção especial aos acontecimentos e fenômenos fronteiriços brasileiros, e à legislação nacional aplicável à matéria.

O sul do Brasil é um bom exemplo do quanto podem ser con-turbadas e conflagradas as relações entre nações vizinhas1. Essa região, cobiçada desde a chegada dos europeus ao continente sul-americano, já ostentou fronteiras que ora avançavam em direção ao norte, ora eram empurradas para regiões mais austrais.

Hoje os tempos são bem outros e a tendência aponta para cami-nhos diametralmente opostos. Se há poucas décadas se via com descon-fiança a aproximação com os países vizinhos e tratava-se com rigor as questões de fluxo migratório nas fronteiras, atualmente busca-se a inte-gração regional.

Importante destacar que a integração cultural e étnica na fronteira sul do Brasil sempre existiu, mas nunca foi acompanhada pelas políticas governamentais ou pelas legislações dos países da região.

A criação de grandes blocos econômicos, formados por diver-sos países, parece ser o caminho inexorável da economia e da geogra-

1 As principais batalhas na região foram a “Guerra contra Artigas”, 1816 a 1820 (SILVA, Alfredo P.M. Os Generais do Exército Brasileiro, 1822 a 1889, M. Orosco & Co. Rio de Janeiro, 1906, vol. 1, p. 949) e a “Guerra da Cisplatina”, 1825 a 1828 (ARMITAGE, John. História do Brazil, desde a chegada da real família de Bragança, em 1808, até a abdicação do imperador D. Pedro I, em 1831. Trad. de Joaquim Teixeira de Macedo. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de Villeneuve e Comp., 1837. p. 173).

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fia mundial neste século e o Mercado Comum do Sul – MERCOSUL2 é o reflexo disso.

Idealizado para fortalecer as posições comerciais da região frente à globalização da economia, o MERCOSUL trouxe outras inovações no que se refere a uma maior integração, agora também nos aspectos legais, trabalhistas e etc das populações dos países signatários, com reflexos im-portantes no campo social.

Nesse contexto, os agentes de migração da Polícia Federal, espa-lhados pelas mais longínquas fronteiras do sul do país, são observadores privilegiados dos fenômenos políticos e sociais gerados por essa nova ordem. Tais agentes normalmente são brasileiros de outras regiões que, incumbidos de exercerem suas atribuições naqueles pagos, têm a possi-bilidade de entender um pouco melhor a cultura, os costumes e os con-flitos próprios do lugar.

Os pontos de controle migratórios existentes na região sul do Brasil e suas características e carências, bem como da Polícia Federal em cada localidade serão detalhadamente descritos nesse trabalho.

Apesar de sua localização remota no território nacional, a região sul está sendo palco da instalação de um moderno e sofisticado sistema de controle de fluxo migratório3 que possibilita recolher informações diretas e em tempo real sobre todos aqueles que cruzem as fronteiras brasileiras.

O cerne do presente trabalho consiste na análise de fatores como: a legislação brasileira no tocante à imigração; as dificuldades materiais en-

2 Apesar de idealizado há algumas décadas, o “Mercado Comum do Sul” foi oficialmente criado pela assinatura do “Tratado de Assunção” em 26 de março de 1991. O acordo multilateral, inspirado pela criação da União Européia, previa uma aliança comercial e econômica entre os quatro países signatários: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Mais tarde, Bolívia e Peru aderiram ao acordo e foram admitidos na condição de “países associados”. Atualmente, está em processo final de efetivação a inclusão da Venezuela como país membro do acordo. O pacto, idealizado para compatibilizar questões alfandegárias, acabou por ganhar dimensão, abrangendo, atualmente, fatores políticos e sociais.

3 O Programa de Modernização, Agilização, Aprimoramento e Segurança da Fiscalização do Tráfego Internacional e do Passaporte Brasileiro – PROMASP, aprovado pelo Decreto nº. 1.983/96 (Brasil, Presidência da República, 1996), revolucionou o controle de fronteiras no Brasil. Projeta-se que, com a implantação final do sistema, a entrada e saída do país, tanto de viajantes nacionais quanto estrangeiros, será totalmente registrada por meio eletrônico

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frentadas pelos agentes de imigração nas fronteiras do Estado brasileiro e o impacto que medidas de controle migratório podem gerar nas relações internacionais do Brasil; na busca por desenhar o intrincado cenário que está sendo constituído.

As indagações a seguir são fruto do estudo da letra fria da lei, dos manuais e dos relatórios, mas também da experiência empírica de reco-lher o testemunho de policiais da região que vivenciam as dificuldades próprias da mudança.

Considerando a integração regional, ou seja, o avanço das di-1. retrizes do MERCOSUL, a principal meta da política externa brasileira, como realizar o controle migratório sem retroceder em tal objetivo?

O rigor no controle de fronteiras, dificulta, em tese, a integra-2. ção regional proposta pelo MERCOSUL?

A não adoção de um controle de fronteiras rigoroso, facilita a 3. transnacionalização da criminalidade organizada?

A implantação de um efetivo controle de fronteiras e a inte-4. gração regional no âmbito do MERCOSUL são planos in-compatíveis?

O estudo ora apresentado busca por, senão solucionar, ao menos debater tais temas.

concEito E história das frontEiras

Normalmente fronteira é definida como o limite físico entre dois países. Tal limite pode se manifestar de diversas formas, como por exemplo: um rio; uma cordilheira; uma muralha ou cerca; ou sim-plesmente uma linha imaginária.

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O conceito de fronteiras ganhou importância com o final da Ida-de Média4; se antes, os feudos eram distantes uns dos outros e pratica-mente inexistiam fluxos migratórios de seus habitantes; então, teve início a criação dos estados nacionais e a corrida expansionista militar e colo-nial. Alguns feudos se agregaram, criando os primeiros impérios e paí-ses nos moldes que conhecemos hoje, as civilizações mais desenvolvidas buscavam, através do uso da força e do desbravamento da África, Ásia e do “Novo Mundo”5, alargar seus domínios territoriais.

O território, como parte fundamental do conceito de estado6 e exercício da soberania, passava a ser extremamente valorizado e, por conseqüência, o controle das fronteiras ganhava relevância até então jamais imaginada. Muitas das disputas territoriais que eclodi-ram séculos mais tarde já mostravam seus primeiros sinais nessa épo-ca. As fronteiras atualmente existentes são, em grande parte, reflexo dos embates históricos, militares, religiosos, etimológicos e jurídicos ocorridos nesses cinco séculos.

a história das frontEiras no mundo

Até o final da Idade Média, o conceito de fronteira não ti-nha maior importância, pois os feudos eram distantes e separados por grandes porções de terras. Mesmo nos conflitos militares, nor-malmente, o exército agressor tinha que percorrer grandes distâncias para só então, ao aproximar-se dos limites do território a ser invadido, iniciar os combates.

A existência desses “espaços” entre os territórios ocupados era vista com bons olhos pelos governantes da época, principalmente, por-

4 Época histórica ambientada na Europa que se estende do século V, marcado pelas Invasões Bárbaras, até o século XV, correspondente ao renascimento comercial e início do processo de urbanização

5 Nome dado pelos europeus à América, que era uma terra ainda desconhecida, nova em ralação aos territórios já explorados: Europa, Ásia e África.

6 Definido de muitas formas, poderia ser sintetizado como uma instituição jurídica, social e politicamente organizada, ocupante de determinado território, regida por leis e dirigida por um governo soberano.

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que isolavam os reinos e impérios, dificultando possíveis invasões. Além disso, tratava-se de terras de pouco ou nenhum valor, geralmente não agricultáveis, desprovidas de riquezas minerais e habitadas por bandidos, aventureiros e desterrados.

No século XV, um dos marcos do final dessa época, é justamente o nascimento dos primeiros conglomerados urbanos. Tal fenômeno ocorreu com o surgimento dos burgos7.

Os arredores das sociedades feudais, centralizadoras e isoladas dentro de suas muralhas, passaram a atrair pessoas que, até então, não se submetiam às regras impostas pelos senhores feudais, quer por terem sido expulsos ou perseguidos em seus locais de origem, ou por viverem de forma nômade. Eram artesãos, artistas, pequenos criadores de animais que não pertenciam à nobreza ou ao clero, mas, tampouco, se sujeitavam ao regime de semi-escravidão reinante intramuros. Surgiu, assim, a figura dos burgueses (habitantes de burgos) que passaram a dominar as lides comerciais, a acumular riquezas e a ter grande influência política na com-balida estrutura social feudal.

Com o desenvolvimento do comércio, não só os antigos feudos, próximos aos correspondentes burgos, passaram a consumir os produtos ali elaborados e disponibilizados, como também, surgiu uma vasta e in-trincada rede de trocas de mercadorias entre as diversas regiões.

Esses interesses comerciais, aliados a origens históricas, heredi-tárias e étnicas comuns que aproximavam os governantes e habitantes de algumas regiões formaram as condições necessária para a criação de estados nacionais nos moldes conhecidos atualmente.

Com o agrupamento dos antigos feudos em impérios, reinos e nações cresceu a importância dos territórios por eles ocupados e, conse-qüentemente, a idéia de cidadania daqueles que os habitavam.

7 Cidades comerciais surgidas no final da Idade Média nos arredores dos antigos feudos.

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O resultado dessa nova ordem foi a preocupação com a manu-tenção dos domínios territoriais e com o controle dos fluxos migratórios dos habitantes originários dos diferentes estados.

A organização dos estados passou a garantir direitos básicos aos seus moradores, agora cidadãos, vinculando-os, ainda mais aos seus lo-cais de origem. Por outro lado, os mesmos direitos não eram reconheci-dos aos originários de outros lugares.

Consolidaram-se as primeiras regras sobre fluxo de pessoas entre dife-rentes países. São normas que na maioria das vezes limitam o trânsito de cida-dãos entre os territórios; de forma aberta, com proibições e penalizações; ou indiretamente, ao não reconhecer aos imigrantes direitos básicos à sobrevivên-cia. Assim surgiu o modelo de controle de migração adotado naqueles tempos e que vigora, em grande parte, ainda nos dias de hoje, no continente europeu.

Todavia, nos séculos que se sucederam, foram os europeus que colonizaram a América, a África, a Ásia e a Oceania, aplicando modelos e conceitos bastante similares no que se refere ao controle das fronteiras dos estados colonizados.

a história das frontEiras no Brasil

No Brasil, após o descobrimento, as questões fronteiriças sempre foram tratadas pelo Império, ou seja, por Portugal, que não se preo-cupava com a circulação de pessoas e sim com a supremacia sobre os recursos naturais descobertos nas colônias, de modo a possibilitar a sua extração e envio para a Europa.

O principal objetivo dos colonizadores era o controle da maior extensão de território possível e, como a ocupação populacional de tais áreas ainda não era uma prioridade, pouco importava quem transitasse por elas, mas sim, a riqueza a ser explorada. Nesse sentido, inúmeras fo-ram as disputas entre Portugal e Espanha pelo novo mundo.

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Entretanto, apesar da ocorrência de algumas batalhas céle-bres, as divergências nos limites territoriais das colônias eram, nor-malmente, solucionadas através de tratados e convenções estabele-cidas pelos colonizadores.

Provavelmente, entre muitos outros, o mais famoso desses acor-dos ficou conhecido como o Tratado de Tordesilhas, que dividia os ter-ritórios ultramarinos descobertos na América entre Portugal e Espanha, através de uma linha imaginária localizada a trezentas e setenta léguas a oeste do Arquipélago africano de Cabo Verde.

Devido à imensidão do território sul-americano e a total impossi-bilidade de demarcações e controles precisos, o tratado fracassou no que diz respeito à delimitação de território no interior do continente, apesar de ter sido bastante eficaz nas linhas litorâneas. Tal fato gerou uma fase de indefinições que prolongou-se até o ano de 1750, quando foi assinado o Tratado de Madri, que estabelecia novos critérios para as fronteiras.

Nesse contexto, eclodiram diversas divergências sobre os domí-nios territoriais, gerando dificuldades do Império português em manter íntegro o território brasileiro.

Tentativas de invasões holandesas e francesas, principalmente no nor-deste brasileiro; impasses políticos em relação ao domínio dos territórios mais tarde conhecidos como Guianas e seculares questões fronteiriças envolvendo o sul do país e as terras do Plata sucederam-se na pauta de problemas militares e políticos da época.

Só após a pacificação dos conflitos e a demarcação efetiva das linhas divisórias é que as disputas pontuais e regionais em diversas localidades de fronteira foram intensificadas. Mesmo assim, a configuração dos limites ter-ritoriais do Brasil já se encontrava bem próxima da que conhecemos hoje.

As mais importantes das disputas de fronteiras enfrentadas pelo Brasil em seus quinhentos anos de história concentraram-se no extremo sul do país, e serão citadas a seguir.

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a história das frontEiras no mErcosul

A independência do Brasil e a fase do Império que a sucedeu foram marcadas fortemente por impasses no estabelecimento de limites territoriais no sul do país.

De todos, um dos mais destacados conflitos territoriais já enfren-tados pelo Brasil foi o relativo à Cisplatina8. A anexação dessa província ao território do Império brasileiro foi breve, conturbada, mas decisiva na formação do território nacional.

Inconformados com o descaso da Espanha, que tinha perdido o in-teresse econômico sobre as colônias, e sentindo-se politicamente preteridos pelos argentinos no comando do Vice-Reino do Prata, os líderes uruguaios acabaram por aceitar a incorporação, em 1824, ao Império do Brasil.

A reação argentina não tardou e, insuflados pelas Províncias Uni-das do Rio da Prata, a população cisplatina rebelou-se contra a anexação ao Brasil, travando batalhas localizadas e recusando submissão ao gover-no central brasileiro.

Pouco interessante economicamente e com uma população que não aceitava interferências externas em seus assuntos regionais, a Cispla-tina constituía um problema para Brasil e Argentina.

Assim, em 1828, contando com a intermediação do governo in-glês, foi assinada uma convenção de paz e criada a República Oriental do Uruguai, muito mais um alívio para os contendores do que, propriamen-te, uma perda a ser lamentada.

8 Província Cisplatina ou República Oriental era o nome pelo qual se conhecia a região situada mais ao sul do Brasil durante o período do Império. Incorporada ao território em 1821, jamais foi, de fato, parte do Brasil. A cultura e os costumes da população, trazidos das origens espanholas, não permitia a integração de seus habitantes ao resto do país. Entretanto, o Brasil fazia questão de manter o domínio sobre a região, pois estrategicamente, isso garantiria um isolamento maior em relação ao território da Argentina. Em 1828, o impasse foi solucionado pela independência da província, apoiada por Brasil e Argentina, formando o que passou a ser a República Oriental do Uruguai.

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Outro evento importante na consolidação das fronteiras brasileiras e que merece ser destacado é a Guerra do Paraguai9. A instabilidade política na recém criada República do Uruguai que, potencialmente, poderia recrudes-cer os conflitos com a Argentina, gerou preocupação no governo brasileiro. Portanto, houve interferência brasileira na política interna uruguaia e ela não passou despercebida. O Paraguai, que atravessava uma fase de grande pro-gresso econômico e buscava alçar-se a uma posição de hegemonia no conti-nente, desaprovou a atitude brasileira e declarou guerra ao Brasil.

A sangrenta guerra reuniu Brasil, Argentina e Uruguai lutan-do contra o Paraguai. Estima-se que algo ao redor de quinhentas mil pessoas, em ambos os lados, foram vitimadas pelos cinco anos de conflito. O Paraguai, que despontava como uma potência regional, foi praticamente destruído.

Com o final da guerra, os acordos que se seguiram foram decisi-vos para a fixação dos limites territoriais do Brasil com a nação vizinha.

rEalidadE migratória BrasilEira nas últimas décadas

Ao analisar o Brasil no contexto dos países sul-americanos e confron-tar as informações obtidas por estatísticas e estudos dos últimos anos, pode-se notar uma alteração significativa no perfil dos fluxos migratórios registrados.

Se, até a segunda metade do século passado, os movimentos migrató-rios ultramar10 eram preponderantes para a compreensão dos fenômenos de flutuação populacional da América Latina, a partir de então, fundamentalmen-te desde os anos de 1970, nota-se claramente o incremento dos movimentos migratórios intra-regionais (VILLA e MARTINEZ, 2007).

9 Maior conflito armado internacional ocorrido no continente americano. Iniciou-se em 1864 e durou pouco mais de cinco anos. A guerra envolveu a chamada Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) de um lado, e o Paraguai de outro.

10 Movimentos migratórios ultramar foram aqueles registrados na América Latina, basicamente nos séculos XIX e XX, que consistiam na vinda de imigrantes, em geral europeus, em busca de melhores condições de vida. Nesse contingente destacam-se portugueses, espanhóis, italianos e japoneses.

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Antes, movidos pelas guerras e desemprego, europeus desembar-cavam aos milhares no continente sul-americano. Todavia, já há algumas décadas, devido às seguidas crises econômicas e instabilidade política dos países do continente, a América do Sul deixou de ser o refúgio daqueles que buscavam a emigração como projeto de uma vida melhor.

Nesse conturbado contexto regional, nota-se uma nova realidade. O fluxo mais considerável de migrantes passa a ser o interno. Ou seja, movidos por fatores sociais, econômicos e políticos, sul-americanos pas-sam a buscar condições melhores de vida nos países vizinhos.

Surge uma maior mobilidade populacional provocada pelos ciclos econômicos associados às construções de grandes obras, às atividades agrícolas e ao estabelecimento de zonas de livre circulação de mercadorias.

Tal tendência permanece nos dias de hoje e sua correta interpre-tação é peça fundamental para a construção de um “novo continente”. As idéias da integração econômica não se sustentam por si só, se não passarmos por um processo de integração social.

Considerando esse complexo espectro esse estudo trata especi-ficamente o fenômeno migratório restrito à região do MERCOSUL.

a PrimEira mEtadE do século xx

Se os séculos XVIII e XIX foram especialmente conflagrados na fronteira sul do Brasil, o século XX trouxe uma inesperada, porém sau-dável mudança de atitude.

Tal transformação não se deveu ao eventual entendimento entre os países da região e diminuição das diferenças históricas entre Brasil e seus vizinhos, mas pela deflagração de conflitos internos, tanto aqui, quanto nos “rivais”, que monopolizaram as atenções dos governos e exércitos.

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Com isso, as disputas pelas fronteiras ficaram relegadas ao segun-do plano, o que acabou sendo vital para o estabelecimento dos limites territoriais tais quais os conhecemos hoje.

Esse período foi marcado por fortes ditaduras nos países da re-gião, com exacerbação do nacionalismo, impulsionado por sentimentos revanchistas e preconceituosos, gerados pelas recentes guerras de fron-teira, com feridas ainda não totalmente cicatrizadas. Nesse contexto, não é difícil imaginar que os fluxos migratórios entre os países que futura-mente comporiam o MERCOSUL eram pífios.

O controle de fronteiras, reflexo das muitas guerras e das ditadu-ras militares, era realizado pelos exércitos, com presença ostensiva, e uma simples visita aos países vizinhos podia se transformar numa aventura de final incerto. Não havia legislações voltadas aos direitos dos imigrantes, o que desestimulava os fluxos de mão-de-obra, os intercâmbios esportivos e tecnológicos.

Pode-se atribuir a esse período histórico o enorme distanciamen-to entre o Brasil e os países fronteiriços. É bem verdade que, desde sem-pre, fatores como o idioma e as disputas territoriais teimavam em afastar os povos irmãos. Entretanto, a indiferença quanto aos demais povos da América do Sul acabou por se mostrar muito mais eficiente em afastar os países fronteiriços do que as guerras.

a sEgunda mEtadE do século xx

A primeira parte desse período, que compreende as décadas de 50, 60 e 70 trouxe poucas novidades nos campos políticos e sociais.

O Brasil continuou de costas para os seus vizinhos e a instabilida-de política nos países da região continuou a alternar períodos de euforia nacionalista, golpes militares e ditaduras.

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Por outro lado, surge nessa fase o que se poderia chamar de em-brião das idéias integralistas na região. Tais idéias derivam, antes de tudo, de questões econômicas, estratégicas e de infra-estrutura.

Vários são os exemplos de iniciativas que acabaram, de uma forma ou de outra, por aproximar as economias dos países do bloco: construção da hidroelétrica de Itaipu e da Ponte da Amizade; estabe-lecimento de zonas francas, em cidades da fronteira com o Brasil, no Paraguai e Uruguai.

Além desses fatores, o processo de industrialização do Brasil e o crescimento das produções agrícolas, fundamentalmente no Brasil e na Argentina, aumentaram a interdependência entre as economias dos países, forçando o estabelecimento de relações comerciais mais fortes e seguras. Destarte, vieram os primeiros fluxos consideráveis de migrantes. Eram trabalhadores em busca de emprego nas grandes construções ou na lavoura.

Mas as leis e as políticas públicas não se adequaram à nova rea-lidade nesse primeiro momento. O intercambio de mão-de-obra ainda era pequeno e as dificuldades legais para a contratação de estrangeiros faziam com que a grande maioria dos migrantes permanecesse em terri-tório estrangeiro de forma ilegal.

Somente a partir da década de 1980, com a consolidação das mu-danças econômicas acima descritas, é que se notam os primeiros passos em busca da efetiva integração regional e as primeiras iniciativas com o intuito de facilitar o acesso de cidadãos entre os países do bloco.

A ida de brasileiros à Puerto Stroessner11 (atual Ciudad del Este), fronteira do Paraguai com o Brasil; a Rivera ou ao Chuy, fron-

11 Nome pelo qual foi rebatizada a cidade de Puerto Flor de Liz durante a ditadura militar do general paraguaio Alfredo Stroessner. A cidade, capital da Província do Alto Paraná, foi fundada em 1957. Em 1989 teve seu nome novamente alterado para Ciudad del Este, persistindo com tal denominação até hoje. Conta, atualmente, com cerca de trezentos e vinte mil habitantes.

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teira do Uruguai com o Brasil, em busca de produtos eletrônicos mais baratos, passou a ser natural.

Na mesma medida, os ciclos de colheita das culturas da região passaram a ditar movimentações de trabalhadores rurais para cá ou para lá, de acordo com a época do ano. A drástica diminuição de terras culti-váveis disponíveis no Brasil também provocou uma corrida de pequenos e médios agricultores em busca de terras férteis e mais baratas, principal-mente no Uruguai e no Paraguai.

A soma desses fatores acabou por forçar a inclusão, no processo de criação do Mercado Comum do Sul, de uma pauta social, além das questões econômicas e políticas até então priorizadas.

Apesar de discutido desde meados dos anos 60, somente em 1991, através do Tratado de Assunção12, surge o MERCOSUL nos pa-drões atuais. Sua efetiva constituição confunde-se com o momento de ebulição de todas essas questões sociais.

Desse modo, desde as primeiras reuniões formais do bloco, além de aspectos econômicos, aduaneiros, comerciais, estruturais; as questões envolvendo as populações dos países membros e sua circu-lação pelos territórios sempre teve papel destacado nas discussões.

Entretanto, dificuldades operacionais e entraves legais faziam com que a repercussão das decisões do grupo não chegasse ao dia-a-dia da população. Muitas das decisões tomadas, no que se referia a questões de controle de fronteira, não eram auto-aplicáveis, ou seja, apesar de serem consensuais entre os países, não podiam entrar em vigência imediata, por incompatibilidades com as leis locais.

12 Marco inicial de criação do Mercado Comum do Sul – MERCOSUL. Consistiu em uma reunião, realizada na capital paraguaia, envolvendo representantes dos governos de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai e que culminou, em 26 de março de 1991, com a assinatura do documento que oficializou o bloco.

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De qualquer forma, nessa fase surgem as primeiras normas que regulamentam e buscam facilitar a situação dos migrantes entre os países do bloco.

Anistias para migrantes ilegais, regularização de trabalhadores estrangeiros, isenção de vistos consulares e aumento do rol de docu-mentos de viagem13 aceitos foram alguns dos exemplos de iniciativas que visavam repercutir a integração no campo social.

o século xxi

A virada do milênio nos traz uma aceleração como nunca vista no processo de integração do MERCOSUL e, por conseguinte, nos planos de facilitação da circulação de pessoas entre os países que compõem o bloco.

Até então, toda e qualquer iniciativa no sentido de conjugar os esforços para desencadear um processo de crescimento e desenvolvi-mento conjunto dos países sul-americanos era vista como algo distante, muito mais afeito aos gabinetes governamentais do que, propriamente, à realidade da população.

Vários fatores colaboraram para essa mudança de paradigmas, dentre eles, a economia mundial que passou a crescer em padrões que não eram vistos há décadas; e a estabilidade política dos países da região, em especial de Brasil e Argentina, que aumentou a confiança internacio-nal, gerando novos contatos comerciais e alavancando a economia.

Some-se a isso a abertura do mercado brasileiro, que até os anos 90 era um dos mais fechados do mundo, passando a estabele-

13 O documento de viagem por excelência é o passaporte. Universalmente aceito, ele permite ao viajante ser admitido, atendidos outros requisitos legais, nos mais diversos países do mundo. No âmbito do MERCOSUL, foram adotadas medidas para permitir o trânsito de pessoas, entre os países do bloco, também mediante a apresentação de outros documentos, principalmente, a identidade civil.

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cer fortes vínculos comerciais com parceiros locais e estrangeiros.Apesar de tal abertura ter sido lançada ainda no século XX, o pro-cesso consolidou-se lentamente, chegando ao auge justamente com o crescimento econômico mundial e acabando por gerar um novo “milagre econômico”14.

Obviamente, o grande crescimento econômico das duas principais na-ções do MERCOSUL, aliado ao estabelecimento de novas e sólidas relações comerciais entre elas, multiplicou o trânsito de mercadorias e pessoas entre os dois países.

São criadas as primeiras “normas de facilitação”, ou seja, são incor-poradas, aos ordenamentos jurídicos dos países, leis que asseguram direitos mútuos entre os cidadãos e, principalmente, entre os trabalhadores dos dois países, quando em território vizinho.

No cenário político, a ascensão ao poder de líderes fortemente iden-tificados com a estratégia de crescimento conjunto dos países sul-americanos favorece, sobremaneira, as iniciativas integralistas.

“No âmbito do MERCOSUL, o presidente Lula e sua política externa pare-cem dirigir-se no sentido do fortalecimento do bloco de integração; na conjuntura que tem Kirschner na Argentina – país rival, mas também aliado -, a estratégia política parece favorecer um maior dinamismo e um relativo avanço nas políticas sociais que envolvem diretamente os que se movimentam internamente entre os pa-íses do bloco, quer com mudanças de residência, ou retornos de situações precárias anteriores, quer como circularidade, com dupla residência, ou permanências tem-porárias, quer ainda como ilegalidade, clandestinidade, de famílias ou individual-mente, com o aumento da participação das mulheres, entre outras características.” (PATARRA e BAENINGER, 2006, p. 84)

Pode-se notar que os aspectos econômicos e políticos impulsionam, na atualidade, os ideais de integração. Nesse contexto, desenha-se para os próxi-mos anos, uma aproximação ainda maior dos países do bloco.

14 Milagre econômico é a denominação adotada no Brasil para designar períodos de excepcional crescimento econômico. A mais famosa dessas fases ocorreu entre os anos de 1969 e 1973, durante o auge da ditadura militar brasileira. Hoje, teorias revisionistas reputam tal fenômeno muito mais ao marketing criado pela ditadura da época, do que, propriamente, a um crescimento econômico efetivo.

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conclusão

O surgimento da idéia de fronteira está intimamente ligado à co-biça e ao domínio das riquezas. Apenas num segundo momento é que a separação das populações, dentro de um determinado território delimita-do, passou a ser fator relevante.

Ao cercarem e apoderarem-se de seus domínios econômicos, os estados acabaram por criar e separar as suas populações, cada uma com sua cultura e características próprias, gerando a idéia de nação.

Nesse contexto, a rivalidade e a desconfiança mútua eram formas bastante utilizadas pelos estados para afastar os interesses estrangeiros de seus territórios e, por conseqüência, de suas riquezas.

Há poucas décadas, por questões políticas e econômicas, o fluxo migratório, mesmo entre países de uma mesma região geográ-fica, poderia ser extremamente difícil, por vezes, impossível. Hoje, a realidade que se busca é diametralmente oposta, isso é, integração é a palavra da moda.

As guerras de fronteira, apesar de sua extrema importância histó-rica, não passam de objetos antiquados expostos nos acervos dos museus, não fazendo mais qualquer sentido para os filhos das novas gerações.

Assim, na esteira da nova ordem mundial e das idéias de integra-ção regional vigente, sobretudo na Europa, surgiu o MERCOSUL. O Tratado de Assunção representou o marco que dividiu, em antes e de-pois, as idéias de território e de fronteira reinantes na América do Sul.

Mesmo que insipiente na primeira década de vigência, o acordo de integração regional dos países sul-americanos direciona, de modo lento, porém inexorável, para a flexibilização total dos controles migra-tórios nas fronteiras do bloco.

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Os primeiros passos para compatibilizar as legislações dos países envolvidos entre si, e em relação ao contexto integralista, já estão sendo trilhados. Facilitação do trânsito de pessoas, isenções da apresentação de passaportes e de vistos consulares, acordos bilaterais e multilaterais de re-sidência são alguns dos bons exemplos de medidas práticas que apontam para essa nova realidade.

Mas até que ponto a ânsia de integrar os países da região e os esforços dos governos, por si só, serão suficientes para a solução dos problemas migratórios tradicionais e que insistem em assombrar as po-pulações locais?

O trânsito indiscriminado e incontrolável dos fronteiriços, a mi-gração ilegal, a exploração de trabalho semi-escravo dos exilados econô-micos e as desigualdades sociais são fatores extremamente relevantes e que podem colocar em risco o processo de integração.

Nesse cenário a Polícia Federal atua como o órgão governamental brasileiro incumbido constitucional e legalmente do controle migratório nas fronteiras brasileiras.

Instalações precárias e desgastadas; servidores sem qualquer iden-tificação com as regiões nas quais estão lotados; procedimentos inadequa-dos e ultrapassados, e carência crônica de pessoal são realidades do dia-a-dia dos policiais federais que realizam essa árdua e desgastante tarefa.

Há décadas as fronteiras brasileiras viraram “território de nin-guém”, nos quais somente os cidadãos brasileiros e estrangeiros que as-sim desejam se submetem aos procedimentos migratórios legais, o que, obviamente, é um convite à ilegalidade e à clandestinidade.

Difícil imaginar as conseqüências catastróficas que poderiam ad-vir da abertura das fronteiras brasileiras, defendida por alguns integralis-tas mais ferrenhos, considerando que o Brasil jamais conseguiu controlar efetivamente as próprias fronteiras.

O que parecia a redenção do controle de fronteiras brasileiras, o PROMASP, já é questionado em certos setores governamentais que

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entendem, erradamente, que a integração regional traz como corolário a não realização de fiscalização migratória dos cidadãos do MERCOSUL que cruzem os limites entre os países do bloco.

Algumas autoridades não entendem que a idéia de integração regional, na medida em que se possa facilitar e aceitar o livre trânsito dos nacionais do bloco, desde que todos sejam devidamente registrados, fiscalizados e admitidos no território no qual pretendam ingressar, não exclui a idéia de controle de fronteiras.

A diminuição das exigências recíprocas para a migração entre os membros da comunidade não pressupõe a abertura de fronteiras, sob pena da instalação do caos. Do contrário, como coibir à perigosa e súbita possi-bilidade de mobilidade daqueles que pretendessem agir ilegalmente?

Estaria criada a “área de livre circulação criminosa”, na qual os cri-minosos de um país poderiam, facilmente, variar suas atividades, agindo nos territórios vizinhos livremente, além de utilizar as terras estrangeiras como refúgio, sempre que fosse necessário.

O aumento do rigor no controle de fronteiras não dificultaria a inte-gração regional proposta pelo MERCOSUL. O controle da movimentação migratória nos limites territoriais de um estado é aspecto pertinente a sua pró-pria soberania e em nada afeta os acordos de integração. O controle das fron-teiras brasileiras, se bem realizado, mais do que uma demonstração de poder, configurará garantia de tranqüilidade para toda a comunidade, inclusive para os demais países do bloco.

A não adoção de um controle de fronteiras rigoroso facilita a transnacio-nalização da criminalidade organizada. A idéia de “abertura de fronteiras” é ex-tremamente perigosa, pois poderia facilitar a reunião de organizações criminosas de diversos países, criando verdadeiras multinacionais do crime. O anacronismo e vulnerabilidade das legislações penais dos países do bloco incentivam a impu-nidade. Some-se a isso graves fatores de desigualdade e desintegração social e teremos sociedades corruptas, violentas e individualistas como as nossas. Possibi-litar a livre circulação de pessoas, incluindo criminosos, entre os países da região, dificultaria, ainda mais, a responsabilização penal dos infratores.

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Mais absurda ainda se afigura a proposta quando percebemos a não harmonização das legislações penais no MERCOSUL. Não é possível cami-nhar no campo da solução de questões básicas da integração legal e penal, como por exemplo, a simplificação dos processos de extradição, como pode-mos falar em livre circulação de pessoas?

Por fim, a implantação de um efetivo controle de fronteiras e a in-tegração regional no âmbito do MERCOSUL são planos incompatíveis?

Aqui reside a questão nevrálgica do presente trabalho e, data ve-nia, sua razão de existir. Como já mencionado, os novos ventos da polí-tica externa regional e mundial apresentaram o fenômeno da integração regional em blocos econômicos e sociais. A América do Sul não poderia ficar alheia a tais fenômenos e, em razão disso, o MERCOSUL foi a con-seqüência lógica desses processos.

Simultaneamente, o governo brasileiro, por meio de um projeto encabeçado pela Polícia Federal, buscou, pela primeira vez na história, tornar efetivo e eficiente o controle de movimentação migratória nas fronteiras brasileiras.

Não há incoerência. A integração regional é um processo ine-xorável e irreversível. Sob todos os aspectos, é louvável que, enfim, os países da América do Sul; de história, cultura e etimologias tão similares, tenham decidido unir forças para enfrentar os desafios internacionais do terceiro milênio.

Por outro lado, não era mais concebível o total descaso das au-toridades com as fronteiras do Brasil. O país sempre foi tratado como “paraíso da impunidade”, justamente pela facilidade de acesso e pelo des-controle de seus limites territoriais e de seus movimentos migratórios.

O PROMASP é a solução de tudo isso. Ágil, eficiente e moderno tem tudo para possibilitar ao Brasil e às autoridades brasileiras o controle das fronteiras e dos fluxos de entrada e saída de pessoas no território nacional.

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O melhor controle de fronteiras possível, equiparado com os melhores do mundo e, por outro lado, a integração de um bloco regional forte, unido e coerente com os anseios das populações locais são duas coisas compatíveis.

Essa é a receita: cuidar das nossas fronteiras como nação soberana e, ao mesmo tempo, liderar o MERCOSUL no caminho do crescimento econô-mico e social tão almejados e tão importantes para a população brasileira e para a inserção do Brasil em lugar de destaque no cenário político mundial.

FÁBIO RICARDO HEGENBART BUENO

Agente de Polícia Federal há mais de dez anos, formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade

Católica do Rio Grande do Sul, pós-graduado em Execução de Políticas de Segurança Pública pela Academia Nacional

de Polícia.

E-mail: [email protected]

ABSTRACT

This paper presents a historical briefing on the emergence of the concept of national bor-ders. It analyses different aspects which influence the task of controlling the borders and the flow of people between distinct countries. What actions are being taken to face the apparent incongruence there are between the increasing efforts of countries of the South-Cone Market towards cross-nation integration and the needs of the Brazilian government regarding the efficient and effective control of its borders. Although economic, political and social wills might justify the increase that is seen in multilateral interchange in Latin America, the internationalization of criminal organizations, on the other hand, demands that modern States take control of their borders, backed by accurate and up-to-date information about whoever enters or leaves their territories. Analyzing the gathered data it’s possible to say that migratory control in the Brazilian southern-borders has always been performed in a precarious fashion. But is it possible to implement such an effective control without hamper-ing the process of integration with the other countries of the Silver Plate region?

Keywords: Emergence of borders. Multilateral relations. South-Cone Market – MERCO-SUL. Regional integration. Border control. Migratory flows.

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91ISSN 1983-1927

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RESEnhaS

Recebido em 10 de novembro de 2009.Aceito em 31 de dezembro de 2009.

rEinvEntando a Polícia: a imPlEmEntação dE um Programa dE PoliciamEnto comunitário, dE c. c. BEato filho. são Paulo: Editora Página viva, 2002, 166 PP.

Cláudia do Rosário Oliveira

D

Claudio Chaves Beato Filho (2002) é graduado pela Universida-de Federal de Minas Gerais (1982), mestre pela Sociedade Brasileira de Instrução - SBI/IUPERJ (1986) e doutor em Sociologia pela Sociedade Brasileira de Instrução - SBI/IUPERJ (1992). Atualmente é Coordena-dor do CRISP - Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pú-blica, e professor associado da Universidade Federal de Minas Gerais. Tem atuado principalmente nos seguintes temas: criminalidade e violên-cia, segurança pública, políticas públicas, estatísticas criminalidade e poli-cia. É consultor em diversos estados brasileiros para o desenvolvimento de programas e projetos de controle e prevenção da violência. Também atuou com o Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimen-to e UNODC das Nações Unidas.

Esta obra analisa e avalia a implementação do programa de po-liciamento comunitário em Belo Horizonte/MG em julho/2000 com a criação dos 25 Conselhos Comunitários de Segurança pela Polícia Militar daquele estado, suas dificuldades e êxitos, subsidiando e dando sugestões para processos de comunitarização de polícia, e diz da necessidade de os organismos de segurança pública ter de atuar e se adequar aos comple-xos problemas de criminalidade do atual século (XXI), tendo em vista ainda utilizarem estratégias arcaicas (como no XIX). O autor referenda os recursos reengenharia e reorientação institucional (de administração) como medidas para os modelos que caracteriza de “tradicionalistas, bu-

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rocráticos, centralizadores, auto-contidos e alheios a demandas do públi-co” e afirma que o policiamento comunitário é a solução mais imediata, ante as distintas e promissoras experiências havidas, porque ele é calcado na confiança, compreensão e respeito envolvendo o relacionamento do binômio polícia-sociedade, para o controle e redução da criminalidade (taxas). O método de avaliação utilizado para chegar ao programa de policiamento comunitário foi o de trabalho de campo por meio de entre-vistas, observação, avaliação de problemas, dados e estatísticos regionais, além de dados survey1.

O programa foi implantado em meio ao contexto de que, no Bra-sil, a avaliação de políticas públicas e os programas setoriais estão inci-pientes, sendo o ponto de partida o molde da filosofia da polícia comu-nitária introduzida pela PM/RJ nos anos 80, e as primeiras experiências havidas nas cidades de Guaçui e Alegre – no ES, em 1988; em Copacaba-na – no RJ, em 1994/95 e em alguns bairros de BH, em 1993. Em vários bairros de São Paulo foram implementados Conselhos Comunitários de Segurança, isso em 1997.

Assim, o autor dita os passos para a implementação do progra-ma, a partir de um programa mais amplo da PM, denominado “Polícia de Resultados”, em 1999, utilizando o geoprocessamento e criando os Conselhos de Comunidades - CONSEPs, os quais viabilizaram essa nova política de polícia comunitária, que ficara “isolada e restrita a algumas unidades de polícia, sendo identificada como estratégia organizacional al-ternativa para suprir o parco investimento estatal na segurança pública”, advindo da experiência de 6 anos em BH, conforme supracitado.

Os CONSEPs funcionavam em cada uma das 25 CIA/PM e eram formadas pelos seus comandantes, pelos representantes da Prefeitura,

1 DADOS-Survey é um aplicativo "open-source" projetado para o desenvolvimento de formulários de pesquisa pela Internet. Foi elaborada conforme os requisitos do "Checklist for Reporting Results of Internet E-Surveys" e tem como prioridade facilitar a de coleta de dados pelos pesquisadores. Por que utilizar o sistema. Questionários eletrônicos aceleram a coleta dos dados; processam automaticamente os dados coletados (diminuindo possíveis erros humanos no processo); menor custo na confecção do material; entre outros. (Disponível em <http://www.rar.duhs.duke.edu/wiki/index.php>. Acesso em 27/11/2008

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pelos representantes das associações, e por outros representantes e re-presentações, para desenvolver programas de prevenção da criminalidade alicerçado em cinco metas que envolvem treinamento de comandantes e oficiais e outros membros atraídos, pelo sistema de coleta, análise e avaliação e reclamação e sugestão, promoção de eventos, programas de instruções e divulgações de ações e de atendimento a problemas sociais. Cita duas experiências: assalto a taxis com arma, sendo negociado com o Sindicato dos Taxistas revista e busca e apreensão em postos de inter-ceptação, que resultou na queda de 34% de delitos desse tipo de 2000 a 2001; e criação do Passaporte com cidadania envolvendo direitos ligados a menores.

Os CONSEPs foram avaliados no tocante ao seu funcionamen-to, representatividade, fiscalização, participação nas reuniões, autonomia do conselho, planejamento estratégico, preparação dos líderes, rotativi-dade de policiais de comando, apoio dos superiores, conhecimento do programa pelos policiais e pelos oficiais.

Em seguida, o autor questiona de que forma os programas im-plementados pela polícia comunitária afetam as taxas de criminalidade, e de que maneira é realizada essa avaliação (por meio de aplicação de questionários regulares entre os moradores de cada região ou por meio de mapeamento gráfico). Concluí que, após a implantação dos instru-mentos de gestão de informação, do uso de mapeamento de crimes e de implantação dos CONSEPs, o número de crimes violentos que cresceu de 1995 a 2000, estacionou de 2000 a 2001, resultante de diminuição do número de delitos em 11 das 25 regiões (dos conselhos).

O impacto para implementação de programas de polícia comu-nitária é avaliado levando-se em conta o ambiente externo onde ele é implementado e a natureza dos problemas nestas regiões – tipos e quan-tidade de criminalidade e características das vizinhanças e bairros, fican-do evidente que a utilização de mecanismos de planejamento estratégico entre a comunidade e os policiais é maior nos lugares em que é menor

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o índice de criminalidade violenta (-.667 – correlação de Pearson2) ou o número de apreensão de armas de fogo (-.509). A atuação da polícia nas favelas envolve apenas operação de negociação e repressão a movi-mentos coletivos por meio de observação e fiscalização, sendo promovi-das reuniões com representantes de ONGs de Direitos Humanos, Igreja Católica, Ministério Público, Poder Judiciário, Polícia Civil e Prefeitura. Logo, o desempenho dos CONSEPs nas CIAS com alto homicídio é pior em razão de disputas do tráfico de drogas ou por motivações decor-rentes da ausência de mecanismos de amparo judicial para a resolução de conflitos interpessoais.

As razões de sucessos e dificuldades da implementação do pro-grama da polícia comunitária envolvem a maneira com que as idéias são postas em prática.

A terceira parte da obra dimensiona um modelo geral de análise de implementação dos programas, destacando três ordens de variáveis envolvidas.

A primeira variável é a “maleabilidade dos problemas” com que lidam os policiais e implica que o policial deve ter bem claro e definido qual a finalidade de sua atividade: controlar crimes ou manter a ordem.

O enfoque da polícia comunitária está na ação de atividades para manutenção da ordem, resolução de conflitos, solução de problemas através de organização e provisão de serviços demandados pelo público.

Em questionário aplicado a 1200 Policiais em BH em 2001, re-sultados de survey constataram que os policiais acreditam que o aumento

2 Coeficiente de correlação de Pearson também chamado de "coeficiente de correlação produto-momento" ou simplesmente de "r de Pearson", em estatística descritiva, mede o grau da correlação (e a direção dessa correlação - se positiva ou negativa) entre duas variáveis de escala métrica (intervalar ou de rácio). Este coeficiente, normalmente representado por r assume apenas valores entre -1 e 1.

• r=1Significaumacorrelaçãoperfeitapositivaentreasduasvariáveis.• r=−1Significaumacorrelaçãonegativaperfeitaentreasduasvariáveis-Istoé,seumaaumenta,aoutrasempre

diminui. • r=0Significaqueasduasvariáveisnãodependemlinearmenteumadaoutra.Noentanto,podeexistiruma

dependêncianãolinear.Assim,oresultador=0deveserinvestigadoporoutrosmeios.

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de seus salários, de efetivos e de mais veículos e equipamentos (variáveis internas) são medidas mais importantes no controle da criminalidade; que o público não sabe da natureza das atividades policiais, e quem sabe avaliar os policiais são os próprios policiais e que eles sabem o processo e a forma de fazer as coisas que somente os policiais conhecem, sendo exclusivos na implementação da lei.

Depreende-se daí a necessidade de abrir o canal de informação ao público, o que é verdade, implica na mantença dos Conselhos de Co-munidade (CONSEPs).

Ainda, tais policiais acreditam que as entidades de defesa dos di-reitos humanos é um fator que dificulta essa compreensão pelo público, além das relações tensas entre a polícia e a imprensa.

Ocorrências tidas como de policiamento comunitário não tinham caráter preventivo – visitas tranqüilizadoras, serviço social secreto carac-terizado pelo atendimento a pessoas feridas e enfermas doentes mentais, parturientes e indigentes – tratavam-se de ações realizadas depois que o evento ocorreu.

Ainda, verificou-se que os policiais estavam envolvidos em ocor-rências diversas da natureza da atividade policial (elementos em atitude suspeita), não relativas a crimes violentos, acionamentos por telefone refere-se a um terço entre crimes contra o patrimônio e contra a pessoa, e 90% é relacionado a conflitos de natureza interpessoal (brigas, ameaças, lesões corporais e atritos).

Verificou-se, também, que o local no qual há maior incidência de violência criminosa tem quase o dobro de policiais por habitante do que as regiões menos violentas. A aferição de atividades e resultados parte da organização das informações sobre eventos criminais, formada por base de dados policiais e mapeada para funcionar ao mesmo tempo como instrumento de planejamento operacional de ações policiais e como me-canismo de compartilhamento de informações com os membros dos Conselhos.

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Toda a organização deve estar empenhada para “conquista mú-tua de cooperação e confiança dos bairros e comunidades. Estudos de-monstram inexistirem esses fatores de aproximação por desconfiança, por abusos cometidos pelas autoridades, por medo de retaliação, entre outras queixas da população.

A segunda variável é a capacidade organizacional e legislativa para estruturar a implementação. Nesse sentido criaram-se centros de análise de crimes, que ficam sob o encargo de oficiais de inteligência encarrega-dos da análise das ocorrências em cada CIA.

Verificou-se que o custo maior na implantação do policiamento comunitário está no treinamento de policiais, de nível médio a ponta, sendo demonstrado que o nível de formação dos policiais é muito baixo (63,1% têm nível fundamental, 29,4 % têm nível médio e apenas 6,1 % tem nível superior ou pós-graduação).

Fazendo um paralelo de custo para a formação do policial militar de Minas Gerais, com a faixa etária e o tempo de formação, ensejando uma maior permanência dos policiais de nível médio de rankings inferio-res e com menos de 30 anos de idade nas academias, durante metade do tempo dos aspirantes a oficiais, e recebendo uma formação semelhante que incluísse “pesada” ênfase na análise dos aspectos criminais em meca-nismos de solução de problemas, o que mudaria sobremaneira a qualida-de dos serviços prestados.

Ainda, a implementação de políticas exige funcionários compro-metidos e motivados com os objetivos dos programas. A cultura organi-zacional3 deve ser considerada, pois que embora os policiais sejam favo-ráveis ä idéia de policiamento comunitário, suas ações contrastaram com os dados das ocorrências antes citadas (elemento negativo).

3 A cultura organizacional ou cultura corporativa é o conjunto de hábitos e crenças estabelecidos através de normas, valores, atitudes e expectativas compartilhadas por todos os membros da organização. No fundo, é a cultura que define a missão e provoca o nascimento e o estabelecimento dos objetivos da organização. A cultura precisa ser alinhada juntamente com outros aspectos das decisões e ações da organização como planejamento, organização, direção e controle para que se possa melhor conhecer a organização.

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Resenhas

As atividades preventivas devem ser gerenciadas: socialização, treinamento, atitudes e valores, práticas operacionais rotineiras são fa-tores essenciais para adesão de profissionais em programas de inovação, pois que 37% dos policiais estavam envolvidos em atividades burocráti-cas e administrativas desvinculadas de suas funções, as quais poderiam ser realizadas por civis.

Além disso, o acesso formal de pessoas ao programa é indispen-sável. De 20 CIAs e Conselhos analisados, em 75% o conhecimento do programa entre os policiais é muito baixo ou praticamente inexistente, em contraste com os 95% de conhecimento médio ou alto entre os Ofi-ciais.

A concepção tradicional de que cabe aos policiais de ponta cum-prir ordens se deve mais à interpretação de seu organograma do que ao militarismo que ainda prevalece nas polícias ostensivas brasileiras, pois que cada vez menos existe a orientação de se ocupar militarmente as ruas (Beato, 2001), sendo que há certa resistência cultural na autonomia de ações, que por envolver mais responsabilidade com resultados nem sempre é desejável.

Dessa maneira, mecanismos rotineiros de envolvimento e partici-pação comunitária obtiveram êxito a ponto de ensejar a participação de outros órgãos da administração municipal, levando a uma terceira ordem de variáveis que referem-se ao efeito que variáveis de ordem política tem em relação ao suporte estatutário dos objetivos do programa a ser im-plementado.

Assim é analisado o ambiente externo organizacional. O acesso formal ao público tem natureza subjetiva, onde se supõe que os espaços urbanos são socialmente homogêneos e são ocupados por pessoas que desejam manter contatos positivos com a polícia.

Outro fator externo determinante para implementação da polícia comunitária é o relacionamento com outras esferas públicas e da ad-

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Resenhas

ministração: de um lado a administração municipal, de outro as outras organizações do sistema de justiça, especialmente a polícia investigati-va. Motivados por espírito público ou por pressão da opinião pública, a administração municipal tem oferecido segurança por intermédio das guardas municipais, uma estratégia tradicional.

O controle estatal da polícia está constitucionalmente sob autori-dade do Governador, limitando-se o município ao fornecimento de su-primento de materiais e não uma parceria logística e operacional efetiva. Os CONSEPs tem serviço de ponte entre as demandas da população e a mobilização conjunta entre a Prefeitura e a Polícia.

A polícia investigativa não articula com a ostensiva, mensurando de forma diferente as confirmações e ratificações das prisões efetuadas pela Polícia Militar, por não haver evidência ou pelo julgamento das pri-sões nas delegacias. A participação da polícia judiciária nos CONSEPs é pequena.

Conclui-se que o Programa dos Conselhos de Segurança Comu-nitária mudou em relação as experiências anteriores de policiamento co-munitário devido ao abandono das parcerias logísticas, em que os mem-bros da comunidade terminavam por financiar a carência de recursos dos policiais; precisa de apoio de níveis superiores para a adesão dos níveis médios de gerência e dos agentes da ponta da linha, que devem conhecer o programa e não atuam de forma diferente da tradicional por questão puramente geracional, sendo que o investimento tem que ser feito nos jovens policiais, como já dito, para que possam perceber métodos e estra-tégias mais claras do policiamento comunitário, sabido que o resultado é de médio ou longo prazo.

Teorias causais devem ser adequadas para servir de suporte cog-nitivo ao programa, pois que prevalece o aspecto administrativo e legal nos setores das polícias. A compreensão do fenômeno criminoso e a diversidade de fatores envolvidos no processo estão engatinhando no Brasil, mesmo no meio acadêmico.

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Resenhas

A forma de ver e conceber os problemas foram modificados e de grande importância com a utilização do material produzido pelo geo-processamento das ocorrências. Paradoxalmente, a adoção do programa por uma estrutura organizacional militarizada compromete os estratos superiores, que é a decisão que conta, mas é justamente esta estrutura verticalizada que impede aplicação de modelos descentralizados e autô-nomos, necessários ao policiamento comunitário.

A qualificação heterogênea dos executivos, nível médio e policiais de ponta pode levar a um processo educativo no interior da corporação. O fato de a sociedade e a administração pública perceberem a função da polícia como repressiva deve ser ponderada.

Sugestões para a implementação do programa de policiamento comunitário são apontadas pelo autor, cujas preocupações são voltadas para o surgimento leviano de idéias de policiamento comunitário como medida descompromissada e inofensiva de prestação de contas de mui-tos funcionários de alto escalão de segurança pública e executivos das organizações policiais.

A experiência de policiamento comunitário requer ampla refor-ma policial no tocante ao desenvolvimento de instrumentos de gestão, sistemas de informação detalhadas e se possível mapeadas, prestação de contas, desenvolvimento de novas formas de interação com o público e com a mídia, inclusive com outras organizações do sistema de justiça.

O processo de implementação de programas de policiamento co-munitário passa pelas academias de polícia, com um treinamento voltado para a função precípua de controle de criminalidade e manutenção da ordem, especificamente na análise dos problemas.

A influência dos policiais mais antigos sobre os mais novos deve ser minimizada, por meio de sistemas de avaliação e premiação que va-lorizem o perfil de policiais mais orientados comunitariamente. A substi-tuição do pessoal mais antigo acelerará o processo lento de mudança de valores.

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Resenhas

Os Conselhos devem ser estruturados de forma tal a garantir a presença de outros setores da justiça, incluindo a polícia civil e o minis-tério público.

A sociedade somente estará segura quando todo o ciclo das áreas de segurança estiver engrenado e se fechando, desde a prevenção ao cri-me, às providências que são tomadas no momento em que ele ocorre ou após a notícia de fato lastimoso, contrário a ordem.

Logo, este texto sobre a polícia comunitária engloba todo um estudo ligado a prevenção do crime, porque constata-se que é o melhor a ser feito e por todo o provado que a integração entre as pessoas e a in-teração de interesses e atuações num só interesse e objetivo, comum, faz surgir a saída e dá resultado.

Muito se fala de integração de polícia, que não passa de um de-sejo de integração de ações, ações conjuntas num só objetivo, concorrer e fazer com que não haja crime. Todas as conclusões de ações a serem tomadas se resumem num só objetivo: que o crime não aconteça e que os seres humanos sintam-se seguros e unidos, confiantes no próximo, na vida, o mais próximo do mandamento universal: amarmo-nos uns aos outros como ELE nos amou e ensinou.

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instruçõEs aos autorEs/colaBoradorEs

artigos

os originais devem ser enviados com texto digitado em programas •compatíveis com o ambiente Windows, em formato RTF, em mídia eletrônica (CD), disquetes de 3 1/2" ou por e-mail, em arquivo ane-xado.

o texto deve ser digitado em corpo 12, fonte • times new roman, com espaçamento de 1,5 linhas, em laudas de até trinta linhas por cerca de setenta caracteres, preferencialmente até 20 laudas.

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se à forma (sobrenome do autor, data) ou (sobrenome do autor, data, página).

− “(Autor, data, página)” para citações: A inferência nestesexemplos satisfaria a concepção de Williams de “fundamentos deliberativos” (WILLIAMS, 1981, p. 104);

− “Autor, data” para referência ao autor: A inferência nestesexemplos satisfaria a exigência solicitada por Williams, 1981;

− “Autor, data” para referência ao livro: A inferência nestesexemplos satisfaria a exigência solicitada em Williams, 1981;

−“Autor(data,página)”parareferênciaàpágina:Ainferêncianestes exemplos satisfaria a exigência solicitada por Williams (1981, p. 104).

as referências bibliográficas deverão ser listadas ao final do artigo, •em ordem alfabética, de acordo com o sobrenome do primeiro autor e obedecendo à data de publicação, ou seja, do trabalho mais antigo para o mais recente. Não devem ser abreviados títulos de periódi-cos, livros, nomes de editoras e de cidades. Use o sistema conforme segue:

−Livro:SOBRENOMEdoautor,nomedoautor.Título do Li-vro. Cidade: Editora, ano da edição.

−Livro,tradução:SOBRENOMEdoautor,nomedoautor.Tí-tulo Traduzido do Livro. Traduzido por Nome. Cidade: Editora, ano da edição.

−Capítulo:SOBRENOMEdoautor,nomedoautor.Título.InTítulo do Livro. Cidade: Editora, ano da edição.

−ArtigoemColetânea:SOBRENOMEdoautor,nomedoau-tor. Título. Título do Livro, ed. por Nome e Sobrenome do autor. Cidade: Editora, ano da edição.

−ArtigoemRevistas:SOBRENOMEdoautor,nomedoautor.Título do artigo. In Nome da Revista. Número: página de início e fim do artigo, Data.

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Exemplos:

−BLACKBURN,Simon.Ruling Passions: A Theory of Practical Reasoning. Oxford: Clarendon Press, 1998.

−FONTESJUNIOR,JoãoB.A.Liberdades Fundamentais e Segu-rança Pública. Rio de Janeiro: Lumes Júris, 2006.

−HUME,David.[1740].Tratado da Natureza Humana. Traduzido por Maria Cavalcante. São Paulo: UNESP, 2001.

−LÉVI-STRAUSS,Claude.“Acrisemodernadaantropologia”.Revista de Antropologia, vol. 10 (1-2): 19-26, 1962.

−SCHLUCHTER,Wolfgan.“PoliteísmodosValores”.In:Sou-za, J. (org.) A Atualidade de Max Weber. Brasília: EdUnB, 2000, p. 13-48.

Documentos (JurisPruDência, Doutrina e outros)

Os documentos devem ter importância histórica, jurídica, cientí-•fica e acadêmica para a área de segurança pública e cidadania;

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resenhas

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A Revista de Segurança Pública e Cidadania publica artigos sobre todos os aspectos de segurança pública, especialmente aqueles que lidam com as questões atuais, escritos em português. Preferencialmente, artigos devem ter uma clara posição a respeito de um problema bem como a indicação de soluções para estes problemas.

Os artigos são aceitos pela revista sob o entendimento de que os trabalhos submetidos para publicação não tenham sido publicados em outros periódicos, ou que estejam sob apreciação/consideração por outro periódico, e que não serão submetidos a outra publicação a não ser que os editores da Revista Brasileira de Segurança Pública tenham rejeitado-os.

A Revista Brasileira de Segurança Pública é publicada duas vezes ao ano, em junho e dezembro, em edição impressa e eletrônica (na Internet).

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Resenhas de livros são bem-vindas, bem como sugestões para re-senhas. A Revista de Segurança Pública e Cidadania publica resenha de livros sobre qualquer tópico dentro da segurança pública.

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A Revista de Segurança Pública e Cidadania trabalha na política “double blind-refereed” – em que o autor e o julgador não conheçam a iden-tidade um do outro.

Figura 1. Formulário de Avaliação de Artigos

Revista Brasileira de Segurança Pública Rodovia DF 001, Km 2 – Setor Habitacional Taquari, Lago Norte, Brasília-DF.

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FORMULÁRIO DE AVALIAÇÃO DE ARTIGOS Revista Segurança Pública e Cidadania

Julgamento do Apreciador

Título do artigo: _______________________________________________ Id. N°_______

1. Por favor, caracterize o artigo submetido observando os quesitos abaixo:

Originalidade [ ] Muito original [ ] Original [ ] Pouco original [ ] Nada original

Argumentação

[ ] Muito boa [ ] Aceitável [ ] Necessita Revisão [ ] Inaceitável

O artigo apresenta uma posição a respeito da Segurança Pública e Cidadania que é

[ ] Muito interessante [ ] Pouco interessante [ ] Desinteressante [ ] Totalmente desinteressante

Dado conteúdo, a extensão do artigo é

[ ] Poderia ser mais longo [ ] Apropriada [ ] Necessita ser reduzido [ ] Necessita ser reduzido substancialmente [ ] Inapropriada

Linguagem

[ ] Perfeita [ ] Aceitável [ ] Necessita de revisão [ ] Inaceitável

O artigo é

[ ] Aceitável com nenhuma ou poucas revisões [ ] Aceitável com maiores revisões [ ] Rejeitado com possível re-submissão [ ] Rejeitado

2. Sinopse

3. Comentários

[ ] Meu comentário pode ser dado anonimamente ao autor do artigo.

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Sobre a reviSta

Formato: 16x23,5cm

Mancha: 37p9,543x54p3,969

Tipologia:

Várias

Papel:

Offset 75g/m2 (miolo)

Supremo 230g/m2 (capa)

Vol. 3 n. 1 Jan/Jun de 2010.

Equipe de Realização

Projeto Editorial

Coordenação de Altos Estudos de Segurança Pública

Edição de Texto

Guilherme Henrique Braga de Miranda (revisão)

Projeto Gráfico, Editoração

Gilson Matilde Diana

Manuela Vieira de Freitas

Guilherme Henrique Braga de Miranda

Impressão e Encadernação

Equiipe SAVI/ SAE/ ANP

ACADEMIA NACIONAL DE POLÍCIA