revista rolimã edição #5

44

Upload: oficina-de-imagens

Post on 22-Jul-2016

238 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Publicação voltada para atores do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGD), produzida pela Oficina de Imagens - Comunicação e Educação, ONG de Belo Horizonte (MG).

TRANSCRIPT

Page 1: Revista Rolimã Edição #5
Page 2: Revista Rolimã Edição #5
Page 3: Revista Rolimã Edição #5

A proposta da defesa e da garantia de direitos é uma ideia recente na história da humanidade, e até o fim dos anos 1700 era pouco provável de se ver defendida publicamente. Felizmente, as lutas de vários movimentos fizeram com que nos últimos 200 anos essa pauta se tornasse forte. Lentamente, vidas de negros, mulheres, trabalhadores, homossexuais e minorias culturais têm passado a serem vistas de forma diferente por governos, pelo Judiciário e pela população. Com a vida de crianças e adolescentes a coisa não é diferente.

Há algumas gerações, a ideia de infância como uma fase especial e específica da vida simplesmente não existia. Muito menos a ideia de que essa fase fosse merecedora de direitos especiais. A convenção dos Direitos da Criança da ONU só foi aprovada em 1989 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, o nosso ECA, é um jovem que agora em julho completa o seu 25º aniversário.

Diante dessa cara de novidade em meio a nossas vidas, a conquista e a manutenção dos direitos é ainda algo extremamente difícil. Tensionamentos emergem a todo momento. Garantir um direito na lei é fundamental, mas não assegura sua implementação. Tampouco é garantia da adesão da população a ele. Prova disso são as investidas pela redução da maioridade penal no Brasil que, desde os anos 1990, têm pipocado no Congresso e ganharam fôlego a partir do debate da PEC 171/93 pelo Congresso Nacional.

É preciso que nós, movimentos sociais, profissionais do Sistema de Garantia dos Direitos e ativistas não nos arrefeçamos diante da ameaça que se coloca. É preciso informar as pessoas, disputar a interpretação dos fatos e transformar o entendimento do que significa a maioridade penal aos 18 anos. É uma luta a ser travada no Congresso, no Judiciário e em outros espaços institucionalizados da política. Mas também que se ganha na imprensa, na prosa com o taxista, na conversa com o vizinho e no ativismo das ruas.

É uma luta difícil, mas não se trata de tarefa impossível. Há quatro anos, cerca de 73% da população do Uruguai, nosso país vizinho, se mostrava a favor da redução da maioridade penal. Em referendo realizado ano passado, a manutenção da maioridade aos 18 anos – ou seja, a não redução da maioridade – foi apoiada por 53,01% da população. Isso só foi possível, assim como a aprovação do ECA no Brasil em 1990, devido à mobilização da sociedade civil no país, que convenceu a opinião pública a se posicionar a favor de um entendimento de Justiça que valorize a vida.

Garantir a justiça não é ampliar o encarceramento em massa. A justiça pela qual esperamos que o Brasil trabalhe é a que assegure às crianças e adolescentes as condições materiais básicas de sobrevivência e que os entenda como sujeitos de direitos. Justiça é ter a oportunidade de participar politicamente e de desenvolver as habilidades que permitam a realização de seus desejos. É ter liberdade de expressar e viver suas diferenças, ter seu corpo respeitado e poder ser amado. É ser respeitado por governos, escola, polícia, família, Judiciário... É essa a concepção de justiça que defendemos e que desejamos ser aplicada e ampliada!

EDITORIALUma apologia aos direitos

Page 4: Revista Rolimã Edição #5

4 | Revista Rolimã • Junho de 2015

Oficina de Imagens – Comunicação e EducaçãoPRESIDENTE: André Hallak VICE-PRESIDENTA: Elizabeth GomesCOORDENAÇÃO INSTITUCIONAL: Adriano Guerra e Bernardo BrantNÚCLEO DE APOIO TÉCNICO: Vander Maciel e Simone Guabiroba

Em defesa dos direitos da criança e do adolescente

EXPEDIENTE

PARCERIA: ValeIMPRESSÃO: Artes Gráficas FormatoTIRAGEM: 3.000 exemplaresProjeto Centro de Informação em Direitos da Criança e do Adolescente, convênio de Cooperação Financeira no 117/2013, celebrado entre a Oficina de Imagens – Comunicação e Educação e a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social de Minas Gerais (Sedese) com interveniência do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente de Minas Gerais (CEDCA-MG)

Uma produção da Central de Notícias Oficina de ImagensREDAÇÃO: Anna Cláudia Gomes, Bárbara Pansardi, Filipe Motta e Gabriella HauberSUPERVISÃO EDITORIAL: Adriano GuerraEDIÇÃO: Filipe Motta ASSISTENTE DE EDIÇÃO: Bárbara PansardiCOLABORADORES: Pedro Rocha FrancoCAPA: Arquivo Pastoral do Menor NacionalCOORDENAÇÃO: Guabiroba Ensino e Comunicações Ltda. PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: AMI Comunicação & DesignILUSTRAÇÃO: AMI Comunicação & DesignREVISÃO: Adriano Guerra

[email protected] Salinas, 1101, Santa Tereza, Belo Horizonte - MG CEP: 31015-365 | Tel: (31) 3465-6801/6803

ENTRE EM CONTATO CONOSCO:

POR DENTRO DO2013 2014

20152013

MÃEMENINA 16

ONDEESTÃO VOCÊS? 24

ERA UMACASA MUITOENGRAÇADA35

ABRAÇARA INCLUSÃO5

POR DENTRODO FIA 30

NESTAEDIÇÃO

UM QUADROVAZIO20

MOBILIZARPARA GARANTIR10

Page 5: Revista Rolimã Edição #5

Para a ativista dos direitos humanos Cláudia Werneck, políticas públicas do país ainda discriminam a criança com deficiênciaPOR FILIPE MOTTA

Manifestação em Brasília reuniu pessoas com deficiência e apoiadores da causa

ENTREVISTA

ABRAÇAR A INCLUSÃO

Foto

: Agê

ncia

Bra

sil

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 5

Page 6: Revista Rolimã Edição #5

COMO VOCÊ INGRESSOU NA LUTA PELA INCLUSÃO?Desde que eu entrei na faculdade de jornalismo, na

UFRJ, sempre tive interesse pelos direitos da criança e do adolescente. Fui chefe de reportagem da revista Pais e Filhos, escrevi para um caderno especial do jornal O Globo chamado Jornal da Família... A temática da infân-cia era muito forte na minha vida. Mas, em 1991, eu fiz uma reportagem sobre síndrome de Down e ali me dei conta de uma prática terrível: para algumas crianças a sociedade quer todos os direitos; para outras, que essa sociedade considera como tendo menos valor humano em função da forma como a humanidade delas se mani-festa, escolhe outros.

COMO ESSE PRECONCEITO SE MANIFESTA?Algo que me chamou atenção é que conheci pes-

soas com síndrome de Down muito conscientes ao fazer aquela reportagem. Ao mesmo tempo, fiquei perplexa com a falta de informação de médicos, pediatras, psicó-logos e educadores sobre as crianças com síndrome de Down e sobre o direito delas à educação, por exemplo. Naquele contexto, eu me perguntei como é nascer e ser criado deficiente numa sociedade que é pautada pelo va-lor do seu intelecto. Pela nossa concepção de sociedade, é graças ao intelecto que você é elogiado por ter feito uma tese de mestrado ou doutorado, é graças a ele que você tem uma ideia, ganha um prêmio. Por essa mesma con-cepção, tendemos a classificar as pessoas com síndrome de Down como tendo intelecto menor. É algo baseado naquela frase horrível do filósofo René Descartes, muito influente na modernidade: “Penso, logo existo”. É a frase mais anti-inclusiva que existe, principalmente em rela-ção às pessoas com deficiência intelectual, porque você considera que o pensamento delas é de menor valor.

E O CENÁRIO MUDOU?Estou falando de uma coisa muito presente hoje em

dia. Às crianças deficientes são dedicados apenas direitos especiais em datas comemorativas, como o dia do autismo e da pessoa com deficiência. Existe uma discussão muito ampla no Brasil da criança pobre, da criança em situação de risco, da criança que não tem o que comer. É como se existisse uma competição entre as crianças pobres e as crianças com deficiências e não fosse possível para a sociedade dar conta de implementar o ECA levando em consideração uma combinação muito comum, que é a da criança e do adolescente que é pobre e tem deficiência, mobilidade reduzida ou uma doença rara. A sociedade se prepara a passos muito lentos para um dia pensar nas crianças com deficiência. E a sensação é a de que, mesmo para ativistas de direitos humanos, seria possível “con-gelar” crianças com deficiência e esperar outro momento para garantir os direitos delas.

jornalista Cláudia Werneck, fundadora da ONG Escola de Gente, do Rio de Janeiro, é uma das principais militantes da luta pela inclusão no Brasil. Cláudia já atuou em redações de jornais e revistas do Rio de Janeiro, foi premiada como Jornalista Amiga da Criança pela ANDI e desde 2001 atua na Escola de Gente, referência internacional na luta pela comunicação inclusiva.

A

O QUE É SER INCLUSIVO?O que a inclusão propõe é uma revolução sistêmica. É

você de fato construir um mundo, uma sociedade, prédios, escolas, postos de saúde e instituições levando em conta todos os seres humanos que existem e que nascem com suas infinitas formas de ser – com o que chamo de modos embaralhados de ser. Os seres humanos são totalmente diferentes entre si e chegam ao mundo de modo emba-ralhado. A gente perde um tempão tentando organizar a manifestação da espécie humana sobre a Terra, criando sociedades que vão totalmente contra essa mistura, essa infinita diversidade. A inclusão propõe que todos os sis-temas políticos, sociais e econômicos sejam construídos levando em conta as diferentes formas de existir dos seres humanos, a qualquer momento, em qualquer lugar.

6 | Revista Rolimã • Junho de 2015

Page 7: Revista Rolimã Edição #5

NÃO É UM TERMO AMPLO DEMAIS?Concordo com você: inclusão é algo muito amplo,

mas muitas vezes é um termo usado conforme o inte-resse de quem fala. Uma escola inclusiva não é uma es-cola que tem crianças com deficiência. Para eu saber se uma escola é inclusiva eu tenho que saber como é o projeto político-pedagógico e o sistema de avaliação, como os alunos enfrentam e são beneficiados pelo pro-cesso de ensino-aprendizagem, se ela tem acessibilidade, como são os banheiros, pátio, se ela tem sala com recur-sos multifuncionais... Vamos supor que todas as crian-ças com deficiência estão indo bem nessa escola, mas, por outras razões, as filhas de um casal de presidiários ou de um casal homoafetivo estejam enfrentando discri-minação de qualquer natureza – essa escola não é inclu-siva. A inclusão é um processo dinâmico, cotidiano. É um processo de libertação. E como as pessoas têm muito medo da liberdade, elas ficam adiando a inclusão o má-ximo que podem.

E INCLUIR TEM RELAÇÃO COM CRIAR AMBIENTE PARA ESSAS CRIANÇAS PARTICIPAREM?

Convidar crianças com deficiência, com autismo, com uma doença rara para participar e se expressar exige você reformular todo o seu pensamento: o lugar onde vai ser a reunião, se vai ter intérprete de libras, o seu folder não poder ser somente impresso em tinta... É um exercício de expansão de consciência para garantir a participação, e você não pode achar que está fazendo isso somente para as crianças com deficiência. Você está aprimorando seu sistema de comunicação, porque antes ele estava minimalista em relação à realidade. Quando você, de fato, começa a expandir essa consciência sobre esses dois direitos – o de comunicar e o de ser comuni-cado – você conhece a verdadeira comunicação, a co-municação inclusiva.

UMA JUSTIFICATIVA PARA ADIAR A INCLUSÃO É QUE ELA CUSTA CARO. COMO LIDAR COM ISSO?

Quando você faz um orçamento com acessibilidade, é lógico que ele é mais “caro”. Mas o pensamento não deve ser o de que ele é o mais caro, mas sim que ele é o verda-deiro. As pessoas, normalmente, fazem orçamento de dis-criminação. O que eu quero saber, e é o título do meu pró-ximo livro, é quanto custa não discriminar crianças com deficiência. Os orçamentos de ações direcionadas a crian-ças e adolescentes devem ser modificados. Hoje em dia, quando se fala em monitoramento do orçamento público, você está monitorando a discriminação que existe no or-çamento. O Orçamento Criança e Adolescente (OCA) tem que trazer, por exemplo, se os projetos e ações do governo terão libras ou se haverá impressão de material não só em tinta. Como é que eu vou monitorar um orçamento que é pensado de forma errada? É preciso fazer um orçamento de não discriminação.

QUE BALANÇO VOCÊ FAZ DA POLÍTICA DE INCLUSÃO NO BRASIL DESDE QUE VOCÊ PASSOU A ATUAR NA ÁREA?

Principalmente nos dois primeiros mandatos do PT no governo federal (2003-2010), no que se refere à educação inclusiva, nós caminhamos muito. O ingresso das pessoas com deficiência na escola pública foi muito grande, foram implementados cursos de educação à distância para pro-fessores, houve liberação de recursos para obras de aces-sibilidade física em escolas – eu mesma participei de vá-rios desses momentos. É perfeito? Não. Tivemos avanços muito expressivos, mas não quero dizer que está excelente. Muitas dessas iniciativas, hoje, estão paralisadas ou extin-tas. Além disso, o Ministério da Educação depende da co-operação dos municípios e dos estados na implementação dessas políticas. E muitas vezes os municípios são regidos pelo pensamento do prefeito ou do secretário de educação, que seguem uma visão meritocrática, que é outra lógica.

Emanuela Alves Lopes, 5 anos, brinca com os brinquedos adaptados para crianças com baixa ou nenhuma visão

Foto: Agência Brasil

Page 8: Revista Rolimã Edição #5

QUAIS SÃO OS PONTOS CRÍTICOS PARA A INCLUSIVIDADE NO PAÍS?

Tenho a sensação de que estamos adiando alguns grandes debates por medo. Porque eles vão exigir muito de nós. É preciso que o professor seja formado numa perspectiva inclusiva. O professor tem que aprender di-reitos humanos e direitos da infância. Ele precisa ter no-ções de libras e entender de inclusão, independente da área com a qual ele vai trabalhar e independente do fato de lidar com alunos com deficiência ou não. A formação do professor, necessariamente, visceralmente, deve ser in-clusiva porque a escola deve ser inclusiva e a humanidade também. Outro ponto são os Orçamentos da Criança e Adolescente (OCA). Se os movimentos sociais e especia-listas da área tivessem esse modo inclusivo de ver a infân-cia, as políticas da criança e do adolescente seriam gran-des companheiras das políticas de educação inclusiva. E hoje não são. Você tem, no âmbito das políticas, uma grande exclusão. É preciso termos orçamentos públicos inclusivos, o que temos em raras exceções.

VOCÊ É COMUNICADORA. COMO A COMUNICAÇÃO SE RELACIONA COM ISSO?

Tudo passa pela comunicação. Pela ampla e diversa oferta de acessibilidade da comunicação. Entendo a aces-sibilidade como um direito humano, relacionado ao direi-to à vida. Sem acessibilidade não há vida, porque não há participação. Sem participação, quem somos nós? Quem eu vou ser sem acesso às histórias contadas pela humani-dade, sem poder me expressar sobre essas histórias, sem poder oferecer minhas histórias para esse grande fluxo de conhecimento que forma gerações? Que criança eu vou ser? Como crescer sem acesso à cultura, à informação, sem acesso às histórias que as outras crianças têm?

COMO O SISTEMA DE GARANTIA DOS DIREITOS TEM LIDADO COM A QUESTÃO DA DEFICIÊNCIA?

O que acontece é: quando uma mãe, cuja filha tem sín-drome de Down e foi abusada sexualmente, vai procurar o Conselho Tutelar, muitas vezes a criança é encaminhada pelos conselhos para uma Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). Ela não é encaminhada para um es-paço especializado em lidar com a questão da violência sexual, como deveria ser feito. O que prevalece na inter-pretação das pessoas não é a situação de abuso sexual, mas o fato de a criança ter uma deficiência intelectual. São distorções. A criança com deficiência é uma batata quente na mão. Não existe acessibilidade, formas de comunicação praticadas sistematicamente para crianças com deficiência. Em projetos de esporte ou voltados às crianças em situa-ções de rua, o deficiente continua sendo um mundo à parte.

MAS HÁ PROJETOS ESPECÍFICOS PARA ESSA PARCELA DA POPULAÇÃO?

O que as pessoas ainda gostam muito é de criar espaços separados para atender somente crianças com deficiência – aí todo mundo fica feliz. Mas fica feliz porque elas estão longe de você. Isso, inclusive, é uma coisa onerosa. Porque tudo que é especial é muito caro. Uma piscina maravilhosa só para crianças com deficiência? E se ela fosse feita numa praça, para todas as demais? Seria uma situação de maior economicidade. Mas as pessoas ainda não têm essa visão. Elas até preferem que as crianças com deficiências sejam mais bem tratadas do que as outras, mas desde que estejam longe. Com isso você acaba fomentando essa separação. E, pior, com a capa do amor. Hoje em dia é muito difícil você ver denúncias de atos de discriminação de crianças com de-ficiência: parece que um grande amor, um sorriso nos lábios e olhos com lágrimas caindo resolvem todo o problema.

QUEM É

Fundadora da ONG Escola de Gente

Jornalista Amiga da Criança (ANDI)

Autora de 14 livros sobre direitos humanos, diversidade e inclusão

Consultora da Organização dos Estados Ibero-Americanos

Cláudia WerneckJORNALISTA

Foto: Rayssa Coe

8 | Revista Rolimã • Junho de 2015

Page 9: Revista Rolimã Edição #5

SUA FALA NOS LEVA À DISCUSSÃO SOBRE A EXISTÊNCIA DE ESCOLAS ESPECIAIS PARA CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA.

Isso é uma falsa discussão. A Constituição Federal, a Convenção da ONU sobre Pessoas com Deficiência e as resoluções do setor da Educação deixam claro que a es-cola pública é o lugar onde todas as crianças se encon-tram, se reúnem e convivem. E essa escola pública tem que ser inclusiva. Já no contraturno, a criança tem o seu atendimento preferencial especializado, que pode ser na própria escola ou numa instituição especializada. Mas uma instituição especializada não é escola. Uma Apae não é escola. A Constituição não admite escola segre-gada. Isso não está em discussão. Essa pauta é de 20 anos atrás, já deveria estar superada. Uma coisa que me cansa no ativismo político nesse país é estar desde 1992 ou-vindo a mesma pergunta. Por que as pessoas não se desa-pegam desse debate mofado? É o mesmo que perguntar se negro tem que votar, se mulher tem que trabalhar, se quem comete violência sexual tem que ser punido ou não. São falsos debates. No entanto, a gente pode discutir a educação inclusiva em outros termos.

E QUAL O PAPEL DA EDUCAÇÃO PARA DIMINUIR O PROBLEMA DA DISCRIMINAÇÃO?

Fomos criados – e a sociedade continua criando seus filhos assim – para acreditar que a deficiência é algo que não pertence a todos, mas sim a algumas famílias azaradas e que, com “muita sorte”, vamos viver e passar pela vida sem nos depararmos com a deficiência. Na verdade, deve-ria ser o contrário. Uma boa educação, participativa, in-clusiva, exige que você crie seus filhos dizendo a eles que

COMO O CONSELHEIRO TUTELAR PODE CONTRIBUIR NESSE DEBATE?

O conselheiro precisa estudar e ganhar uma visão crí-tica sobre um tema que geralmente se conhece pouco. Tudo isso é um processo de expansão da consciência e de-pende do quanto você está disposto a se abrir e a perceber a infância brasileira como ela é. Ver a infância como um conjunto infinito de formas de vida, múltipla. E o exercí-cio de entender isso é diário. Se chega uma criança com um tipo de deficiência muito comprometedor, essa criança não pode ser recebida como se fosse um susto. “Ah, nossa, eu não esperava que uma criança assim pudesse chegar”. Não, ela vai chegar. Se você é um bom conselheiro, es-

teja preparado para esse dia. E aumente as possibilidades para esse dia chegar mais rápido. Porque se um conselheiro não recebe denúncias relaciona-das a crianças com deficiência, se ele não recebe famílias que têm deficiência, é porque, de al-guma forma, essas pessoas não estão se sentindo acolhidas no seu direito e na sua confiança para chegarem ao conselhos. É importante, por exemplo, que seu local de trabalho seja aces-sível. Procurar ajuda das enti-dades públicas que sejam inclu-sivas em suas cidades é sempre

um caminho para saber como se preparar. O Ministério Público costuma ser um bom parceiro nesse momento.

A ESCOLA DE GENTE TEM VISTO A JUVENTUDE COMO UM MULTIPLICADOR DA INCLUSIVIDADE. POR QUÊ?

Nós entendemos que a juventude é o ator mais estra-tégico e que mais rapidamente vai garantir os direitos da criança. Nós formamos jovens para garantir os direitos da criança, porque o jovem vai se casar e vai ter filhos, e porque os médicos plantonistas recém-formados são jo-vens, assim como os professores de educação infantil e as babás das creches. Ou seja, a juventude tem muito con-tato com a criança. Nós estamos com dois projetos de for-mação de jovens em mídias acessíveis, no Rio de Janeiro. E deles participam enfermeiras de hospital, professores... todo mundo querendo ter noção de libras, livro falado, audiodescrição e legislação inclusiva. A comunicação é por onde circulamos em todos os trabalhos que fazemos na Escola de Gente. Até porque entendemos que é na co-municação que se dão as maiores formas de exclusão.

QUAL SERIA O DEBATE ADEQUADO SOBRE EDUCAÇÃO INCLUSIVA?

A pergunta poderia ser a de como acelerar o processo de inclusão. O pon-to é fazer uma campanha para mostrar ao professor que a inclusão é algo in-trínseco à sua formação? O primeiro passo é fazer uma campanha com as famílias? Como ter escolas inclusivas que atendam a todas as crianças, le-vando em conta que as escolas estão enfrentando dificuldades? Eu não vou nem dizer que a escola está despreparada para receber crianças com deficiência, porque a escola brasileira não está preparada para receber ninguém, mas as crianças continuam a frequentá-las. Ninguém diz que vai deixar de colocar o seu filho “superinteligente” numa determi-nada escola porque vai esperar que primeiro ela melhore. Não dá tempo de esperar. Então, por que a criança com deficiência tem que esperar a escola melhorar? Não pode. Todo mundo tem que estar na escola junto. E só com todo mundo junto daremos conta de mudar essa escola.

a deficiência faz parte da vida. Nós todos somos resultado dessa educação excludente e discriminatória que a nossa família e a escola nos proporcionam. Geralmente com ca-rinho e amor ao deficiente, mas discriminatória.

O que as pessoas ainda gostam muito é de criar espaços separados para atender somente crianças com deficiência

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 9

Page 10: Revista Rolimã Edição #5

10 | Revista Rolimã • Junho de 2015

MOBILIZARPARA

25 anos do eca

GARANTIR

História da luta pela aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente mostra que é preciso participação popular para conquistar avanços na garantia dos direitos

Fotos: Arquivo Pastoral do Menor Nacional

POR BÁRBARA PANSARDI

Page 11: Revista Rolimã Edição #5

Há quase três décadas, centenas de atores da socie-dade civil, espalhados por todo o território nacional, saíam às ruas. Pela primeira vez, falava-se em direitos de crianças e adolescentes – extensivos a todos, sem dis-cernimento de classe social. Psicólogos, pedagogos, edu-cadores, assistentes sociais, movimentos religiosos, juris-tas, entre outros agentes ligados à infância traziam ao debate público novas questões que colocavam em xeque a lógica repressora e punitiva do Código de Menores.

Também eles, meninos e meninas, acompanhavam as passeatas que ocupavam vias de grandes cidades. Negros, a maioria deles. Pobres, marginalizados, garo-tos de rua. As mobilizações evidenciavam a carência de políticas públicas e deixavam claro quem eram os principais afetados por uma legislação que considerava a pobreza uma ameaça à ordem vigente. “Menores em situação irregular” (como a eles se referia a legislação vigente à época), queriam tornar-se sujeitos. Antes consi-derados meros seres tutelados (pelo Estado, pelas famí-

lias...), garotas e garotos então assumiam protagonismo, demonstravam ter voz e vez.

Foi preciso romper paradigmas, enfrentar disputas jurídicas, sair às ruas, construir argumentos convincentes, batalhar pela adesão da opinião popular. Para garantir às crianças e adolescentes prioridade absoluta na garantia de seus direitos, houve um intenso trabalho da sociedade civil organizada, cuja luta culminou na aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

No próximo dia 13 de julho, o ECA completa 25 anos de existência. Por isso, Rolimã está preparando uma série de reportagens especiais sobre o assunto, no intuito de revisar o percurso da luta pela garantia dos direitos infantojuvenis no nosso país e vislumbrar quais novos caminhos essa estrada nos aponta. Nessa primeira repor-tagem, faremos uma retrospectiva histórica para melhor compreender o contexto de surgimento do Estatuto e, à luz da história, lançar um olhar para o estado atual do movimento da infância.

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 11

ESPECIAL

Page 12: Revista Rolimã Edição #5

12 | Revista Rolimã • Junho de 2015

Começa a elaboração da Convenção Sobre os Direitos da Criança e do Adolescente da ONU

Fim do governo militar e início da Nova República

I Encontro Nacional dos Meninos e Meninas de Rua

Instalada a Assembleia Constituinte

Criação do Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA)

Assembleia Geral da ONU aprova a Convenção Sobre os Direitos da Criança e do Adolescente

Brasil assina sua adesão à Convenção Sobre os Direitos da Criança e do Adolescente da ONU

Elaboração da emenda “Criança Prioridade Nacional”

Promulgada a Constituição Federal

II Encontro Nacional dos Meninos e Meninas de Rua

Aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

Fórum Nacional DCA começa a elaboração do anteprojeto que dará origem ao ECA

Nasce o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR)

túnel do tempo 1979

1985

1986

1987

1988

1989

1990

Meados dos anos 80: era chegada a redemocratização. Após duas décadas de ditadura e opressão, cidadãos e cida-dãs de todo o Brasil saíam às ruas reivindicando a par-ticipação da sociedade civil na determinação dos rumos do país. Nas rádios, os clamores ecoavam por meio de canções de protesto e denúncia. “Estado Violência/ Estado Hipocrisia/ A lei não é minha/ A lei que eu não queria…”, cantavam os Titãs. Era premente construir novos marcos legais que vocalizassem as recentes conquistas.

Com a função de redigir uma nova Constituição, que substituísse a promulgada pelo regime autoritário, a ins-talação da Assembleia Nacional Constituinte entre 1987 e 1988 respondeu a um amplo processo de participação popular. Foram recolhidas experiências e iniciativas por todo o território nacional, movimentos sociais pautavam a afirmação de direitos e a ampliação das garantias de cida-dania e cartas encaminhadas pela população sugeriam as diretrizes para a nova Constituição democrática. Havia um ambiente de grande mobilização.

Organizações que atuavam em favor da infância e da juventude se articulavam para fazerem ouvidas suas demandas. Entre as iniciativas de entidades como Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Pastoral do Menor, Ministério Público de São Paulo, Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), técnicos da extinta Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), entre outros, duas campanhas ganha-ram relevância: “Criança Prioridade Nacional” e “Criança e Constituinte”. A primeira foi uma ampla mobiliza-ção para coleta de assinaturas, visando à aprovação da emenda que, como sugere o nome da campanha, assegura a crianças e adolescentes prioridade absoluta na imple-mentação de políticas públicas e garantia de seus direitos no país. Já a segunda foi uma iniciativa do Ministério da Educação, que atraiu também setores governamentais e da sociedade civil, cujo objetivo era tornar inimputáveis os sujeitos menores de 18 anos, aos quais se aplicaria uma norma de legislação especial. Ambas obtiveram a adesão necessária para que fossem apresentadas à Constituinte como emendas de iniciativa popular, e se converteram nos artigos 227 e 228 da Constituição Federal.

Estavam então lançadas as bases para o Estatuto da Criança e do Adolescente. Por um lado, o texto constitu-cional já trazia à luz um esboço do paradigma da proteção integral; por outro, havia se configurado uma articulação entre os atores da sociedade civil em defesa de meninos e meninas do país.

Page 13: Revista Rolimã Edição #5

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 13

À época da Constituinte, surgiu o Fórum Nacio-nal Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, cha-mado Fórum DCA – atuante ainda hoje. Principal inter-locutor da sociedade civil junto ao Congresso Nacional, ele reunia pessoas, entidades e grupos que defendiam temas relacionados a crianças e adolescentes, e foi o res-ponsável por sintetizar e elaborar um consenso a partir de todas as propostas de dispositivos de proteção à infân-cia a serem incluídos na Constituição.

Mesmo depois de aprovados os artigos 227 e 228, o Fórum DCA se manteve e, a partir de então, seus esfor-ços passaram a se direcionar em outro sentido. “Como houve uma grande modificação de paradigma – crianças e adolescentes deixaram de ser considerados objetos de intervenção do mundo adulto –, tornava-se necessário reformar a legislação ordinária, na qual estava incluído o Código de Menores, substituindo-a por um diploma legal que fosse adequado à nova Constituição da República”, explica Paulo Afonso Garrido, atualmente Corregedor-Geral do Ministério Público do Estado de São Paulo e um dos principais juristas responsáveis pela redação do ECA.

Garrido propôs um projeto mais alinhado aos pres-supostos agora contidos na Constituição de 1988. O documento, intitulado Normas Gerais de Proteção à Infância e Juventude, foi apresentado ao Fórum DCA e, a partir daquele esboço inicial, o Fórum, unindo seg-mentos sociais na tentativa de obter subsídios para a ela-boração dessa nova lei, criou uma comissão de redação. Esse grupo da sociedade civil se encontrava para discutir ideias e tentar engendrar consenso, e o resultado desse debate era levado para o grupo de juristas responsável pela redação oficial.

Na elaboração da lei estavam envolvidos juristas, promotores, advogados, centros de defesa, grupos de estudos de universidades e militantes dos direitos da infância. “Esse foi um grande diferencial para o debate”, argumenta Mário Volpi, hoje coordenador de um pro-grama do Unicef no Brasil e à época da elaboração do ECA educador social do Movimento Nacional dos Meni-nos e Meninas de Rua. “Os militantes traziam a realidade das ruas e outras abordagens. O direito não é construído apenas a partir dos juristas; eles precisavam contemplar diferentes visões encontradas na sociedade. Começaram a circular pelo país pessoas de diferentes formações dis-cutindo direito”, relata.

A Constituinte era movida por dois grandes ideais: justiça social e liberdade. Tais diretrizes exigiam a rede-finição de normas que impedissem os abusos do Estado que foram cometidos durante a ditadura. O Estatuto, obviamente, também se deixou influenciar por tais ques-tões. Florescido em meio ao processo de redemocratiza-ção do país, ele é também uma decorrência sociopolítica do momento histórico.

O Código de Menores, baseado na chamada doutrina da situação irregular e no paradigma da tutela, tinha uma visão excludente de crianças e adolescentes. Como expõe Mário Volpi, “era uma perspectiva que penalizava a criança em função do abandono que ela sofria – da pobreza, da falta de uma família, da falência das políticas públicas, da falta de uma vaga na escola, etc. O trata-mento era bem dividido na sociedade: eram as crianças e adolescentes por um lado – os filhos de famílias, que tinham situação estabilizada, uma casa – e os menores por outro”. Acreditava-se que as crianças eram mera-mente seres tutelados por adultos, e não sujeitos de direi-tos, e a legislação não estabelecia muitos limites para a intervenção do Estado. Era oferecida sempre uma mesma “solução”: recolhimento e internação na Febem, fosse a criança ou adolescente sujeito ou vítima de uma violação de direito. A institucionalização era o único caminho e o poder da autoridade judiciária era sem limites.

No âmbito jurídico, a grande resistência ao Estatuto se deu justamente nas cláusulas que definiam a contenção da atuação da autoridade – o ECA limitava os poderes dos então chamados juízes de menores. O corregedor Paulo Afonso Garrido esclarece: “Na defesa da liber-dade, há a necessidade de se estabelecer um conjunto de normas impeditivas dos abusos do Estado. Entre elas está a submissão de todo e qualquer acusado a um pro-cesso justo, em que se tenha advogado, possibilidade de defesa e oportunidade para apresentar seus argumentos.

boa articulação, interlocução estratégica

limites ao estado

Page 14: Revista Rolimã Edição #5

O final da década de 1980 foi um momento singular da história brasileira, de grande efervescência dos movi-mentos sociais e participação da população. Nas ruas, havia banquinhas espalhadas para esclarecimento de temas políticos e coletas de assinaturas para as emendas de iniciativa popular à Constituição. “Era um ambiente de grande luta e mobilização social, de grande participa-ção da sociedade civil na construção dos temas nacio-nais; um momento de uma certa euforia do reencontro da cidadania com o Estado de Direito”, avalia João Batista Saraiva, juiz aposentado, consultor da área da infância e juventude e um dos membros da comissão de redação do Estatuto.

O movimento da infância se fortalecia, manifesta-ções e debates tomavam as vias. Em Belo Horizonte, por exemplo, houve em 1987 uma passeata na Avenida Afonso Pena com cerca de 1,5 mil crianças, que empu-nhavam seus cartazes falando de direitos. Já em Brasília, em 1989, o II Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua foi particularmente significativo na narrativa da luta pela aprovação do ECA. Reunidos por alguns dias na capital brasileira, garotos e garotas marginalizados de todo o território nacional, muitas vezes em situação de rua, queixavam-se das injustiças sociais a que estavam submetidos – fome, violência, preconceito, truculência policial, omissão do Estado, etc. –, mas também falavam de direitos, mostravam consciência política, expressa-vam-se, faziam arte, teatro e pintura, dançavam, sorriam e brincavam, como quaisquer outras crianças.

Em sessão solene no Congresso Nacional, esse grupo ocupou a Casa e aprovou simbolicamente o Estatuto. Enquanto os colegas estavam sentados nas cadeiras dos deputados, o adolescente que conduzia a sessão colocou a lei 8.069/90 em votação. Todos levantaram os braços em sinal de aprovação e responderam afirmativamente em uníssono, fazendo um grande alvoroço. “A votação simbólica do Estatuto pelas próprias crianças e adoles-centes teve muita visibilidade na mídia e gerou simpatia por parte dos parlamentares. Foi um momento que deu legitimidade, porque eram as próprias crianças ali defen-dendo seus direitos. Foi emocionante e bonito”, avalia o então educador social do Movimento Nacional de Meni-nos e Meninas de Rua, Mário Volpi.

para as crianças e com as crianças

Mas isso não ocorria na área dos chamados adolescen-tes infratores. Os menoristas [defensores do Código de Menores] acreditavam que o sistema deveria ser mais aberto, sem grandes formalidades, porque a ideia que vigorava é que todos estariam ali para fazer o bem e aju-dar o adolescente, ainda que mediante uma internação ou privação de liberdade”.

O ECA também representou a descriminalização da pobreza. Até então, a vulnerabilidade social tinha o status de criminalidade, o que permitia a privação da liberdade por meio de recolhimento para a Febem. O Estatuto supera esse paradigma e estabelece um outro referencial: reco-nhecendo meninos e meninas como sujeitos autônomos, protagonistas de suas histórias, ele desloca a intervenção estatal e a punição da chamada situação irregular e cede espaço para a definição de direitos e responsabilidades de crianças e adolescentes, de suas famílias, da comunidade e do Estado. A partir daí, coloca-se em primeiro lugar a necessidade de que garotos e garotas abandonados nas ruas ou autores de ato infracional, por exemplo, tenham seus direitos assegurados.

Além disso, duas instituições importantes surgiram com a lei: o Conselho Tutelar, encarregado de promo-ver, fiscalizar e defender os direitos infantojuvenis, e os Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, que têm como atribuição o monitoramento e a proposição de políticas públicas para meninos e meninas. Alinhados com o momento da redemocratização e do fortalecimento da sociedade civil na condução dos rumos do país, ambos são formas de participação e democracia participativa, um relacionado ao atendimento direto e outro à gestão da política.

14 | Revista Rolimã • Junho de 2015

Page 15: Revista Rolimã Edição #5

No aniversário de seus 25 anos, o Estatuto da Criança e do Ado-lescente sofreu um duro golpe. No último mês de março, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou a tramitação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93, que reduz a idade penal de 18 para 16 anos. Embora ainda não vigore com peso de lei – para isso ainda são necessárias várias etapas –, a admissão de constitucionalidade da PEC já representa um retrocesso. A luta pela proteção integral dos direitos da infância e adolescência que tanta força teve na década de 1980 – a ponto de representar a segunda emenda de iniciativa popular com maior número de assinaturas na Constituinte – parece ter arrefecido.

O consultor da área da infância e juventude, João Batista Saraiva, acredita que há muita incompreensão em torno do ECA. “Ainda hoje, passados 25 anos, existem pessoas que acham que o fato de se reconhe-cer direitos significa que não existe mais autoridade – ou seja, um viés absolutamente autoritário da sociedade democrática. Ter direitos supõe ter deveres e o ECA construiu a clareza dessa relação direitos/deveres. É uma lei absolutamente adequada para o mundo contemporâneo e corres-ponde aos avanços que a Convenção dos Direitos da Criança da ONU e a Constituinte estabeleceram”, analisa o juiz aposentado.

O Corregedor-Geral do Ministério Público de São Paulo, Paulo Afonso Garrido, reforça: “O ECA não só proclamou direitos e estabeleceu obri-gações da família, da sociedade e do Estado, mas também é o diploma legal que regulamenta todo o sistema de coibição da criminalidade infan-tojuvenil. Inclusive sob o prisma jurídico, é um documento muito com-pleto, porque trata de várias facetas da infância e da juventude”.

Vislumbrando o cenário atual à luz da história de quase três décadas atrás, Marilene Cruz, da Pastoral do Menor, tece uma crítica e lança uma provocação: “Hoje a gente arrefeceu, estamos mais desmobilizados. A sociedade civil precisa se reorganizar e realmente voltar a ocupar lugar na área da criança e do adolescente. Precisa ser mais proativa, denun-ciadora, propositiva, e exercer mais o controle social. Antigamente, o contexto político favorecia em alguns momentos, mas em outros não. E isso não era motivo para arrefecer. A gente estava muito convicto do que era necessário, do que o Estatuto veio trazer, por isso corríamos pra fazer valer o que estava sendo aprovado. É preciso retomar esse ardor da sociedade civil”.

uma análise 25 anos depois

o brasil na vanguarda

A Convenção Sobre os Direitos da Criança da ONU, documento internacional norteador da doutrina da proteção integral, do qual o Brasil é signatário, foi promulgada em 1989. Seus princípios, porém, já haviam sido abordados pela Constituição Federal de 1988. Além disso, logo no ano seguinte, em julho de 1990, seus termos já estariam incorporados à legislação brasileira com a aprovação do ECA, antes mesmo de o Senado Federal ratificar o texto da ONU. Como isso foi possível?

O Constituinte brasileiro acompanhava de perto todo o processo de construção da Convenção dos Direitos da Criança da ONU. As duas pessoas que representavam o país no comitê que discutia a Convenção estavam também no grupo de redação que discutia o artigo 227 da Constituição, e traziam para o debate local o que estava sendo deliberado em âmbito internacional. Dessa maneira, a Constituição de 1988 se antecipou à própria Convenção, trazendo os fundamentos da doutrina da proteção integral.

O Estatuto da Criança e do Adolescente é uma das legislações mais avançadas do mundo, tanto no que se refere a direitos e obrigações de crianças e adolescentes quanto na própria estruturação da política de atenção. Prova disso é que o documento brasileiro serviu de modelo para implementação de legislações semelhantes em vários países, principalmente na América Latina.

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 15

Page 16: Revista Rolimã Edição #5

O roteiro parece se repetir dia a dia na casa de milhares de meninas pobres. A adolescente engravida do namorado, aban-dona o colégio prematuramente, o namoro acaba, a jovem fica responsável por cuidar da criança e, com isso, não consegue tempo para estudar e trabalhar. O sonho de um futuro melhor que o dos pais parece fadado a fracassar. Pode parecer sim-ples demais uniformizar a trajetória das mães adolescentes dos mais de 40 mil bebês nascidos em Minas Gerais anualmente, mas basta uma caminhada para conhecer realidades como de Kelly Maria.

Aos 17 anos, Kelly engravidou do namorado. “Sem que-rer”, conta. Ao saber, logo abandonou os estudos, no oitavo ano do ensino fundamental. Mas faz uma observação: “fui a última das minhas amigas a engravidar” – e lista o nome de quatro outras colegas que antes dela tiveram filhos, enquanto ela amamenta a menina de um ano.

Sem irmãos, ela vive sozinha em Belo Horizonte. O pai da criança, ex-namorado, ajuda somente com fraldas e roupas e, às vezes, visita a filha. “Arrependo muito. Não posso sair, não posso fazer nada. Tenho só que cuidar dela”, diz Kelly Maria, que, em janeiro, pretende procurar um emprego. Atualmente, ela vive com a pensão dos pais, já falecidos. Para conseguir o trabalho, o desafio é conseguir que o bebê fique na creche.

Assim como Kelly Maria, 76% das jovens consideram que uma gravidez não planejada atrapalharia os planos futuros. O número é de uma pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), realizada com 2.000 mulheres entre 14 e 30 anos, sob autoria do professor Afonso Nazário. Chefe do departamento de ginecologia da instituição e autor de estudos sobre gravidez e comportamento das jovens, Nazário consi-dera que a gravidez na adolescência é um sério problema de saúde pública, “com impacto econômico, social e emocional muito forte para a mãe”. “Embora a taxa esteja diminuindo nos últimos anos no país, os níveis ainda são altos”, afirma.

Gravidez na adolescência ainda preocupa, apesar da queda significativa nos últimos anos

POR PEDRO ROCHA FRANCO

menina

16 | Revista Rolimã • Junho de 2015

Page 17: Revista Rolimã Edição #5

Em Minas, no ano de 2003, nasceram 53.388 crianças com mães entre 10 e 19 anos, o que à época correspondia a 18,74% do total de nascimentos. No ano passado, o número caiu para 42.482, ou 16,43% do total. O índice elevado, segundo o especialista, está ligado principalmente a dois fatores: a vergonha dos adolescentes de procurar métodos contraceptivos e a certa dificuldade de eles vislumbrarem os efeitos futu-ros do problema. Pela pesquisa da Unifesp, 79% das entrevistadas revelam já ter feito sexo sem camisinha.

Afonso Nazário afirma que o poder público tem papel central na facilitação do acesso a meios contra-ceptivos e na melhor organização da rede médica para conscientização das famílias. Mas isso não exime pais e mães de proporem diálogos sobre sexualidade com seus filhos, nem tampouco a mídia e a escola de participarem ativamente na difusão de informações, com reportagens para discutir o tema e a inclusão do assunto na grade curricular, respectivamente.

Na avaliação do professor, as políticas que tratam da problemática estão muito concentradas nas metró-poles e grandes cidades brasileiras, mas não chegam a municípios de pequeno porte – caso da distribuição de camisinhas na rede pública, por exemplo.

Em algumas escolas brasileiras, uma estratégia que faz refletir sobre a necessidade de prevenção é entre-gar aos estudantes um pintinho, pelo qual eles fica-rão responsáveis por um certo período. O objetivo é apresentar aos adolescentes a dificuldade de se criar um filho, com responsabilidades permanentes. “Eles sentem o impacto de cuidar de um ser que depende exclusivamente deles”, afirma a enfermeira obstetra e professora da PUC Minas, Miriam de Castro.

A prática é elogiada porque, além de ajudar na prevenção, é destinada tanto a meninas quanto a meninos. A crítica de Miriam e de outros especialis-tas é que a contracepção se torna uma responsabili-

dade quase exclusiva das meninas. O correto, segundo ela, seria o diálogo entre os parceiros e a preocupação mútua. “A responsabilidade tem que ser compartilhada com o parceiro. Os meninos precisam fazer parte do processo”, afirma

A gravidez é vista por muitas meninas, segundo Miriam de Castro, como uma oportunidade para o rom-pimento com conflitos domésticos, uma forma de sair de um ambiente desconfortável. O problema em casa pode ser o uso de álcool e drogas dos pais, a violência entre eles ou mesmo o excesso de responsabilidades sobre a filha. Fato é que a gravidez acaba por se transformar em um problema maior, ou na repetição do problema enfren-tado pela mãe anos antes. “A gravidez não é a garantia de um futuro melhor. Isso é pura ilusão”, afirma Miriam.

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 17

Pabline Felix

Vidas hostis O nível educacional também está diretamente ligado

à precocidade da gravidez, segundo o Ministério da Saúde. O primeiro capítulo do estudo Saúde Brasil, de 2013, intitulado Como nascem os brasileiros, mos-tra que o percentual de grávidas é consideravalmente maior entre as mais jovens quando elas têm menor grau de escolaridade. As estatísticas indicam que somente 15,4% das mães com 12 ou mais anos de estudo (a par-tir do primeiro ano do Ensino Superior) tiveram filhos até os 24 anos, enquanto esse percentual é quase quatro vezes superior se consideradas as mães que têm apenas de quatro a sete anos de estudo (56,9%). “A persistência desse número de nascimentos [de mães adolescentes] ao longo dos anos evidencia a necessidade do incremento de políticas públicas voltadas para a redução de con-dições de vulnerabilidade desse grupo populacional”, destaca o estudo sobre a ocorrência da gravidez precoce entre os mais pobres e com baixa escolaridade.

Page 18: Revista Rolimã Edição #5

18 | Revista Rolimã • Junho de 2015

A pouca maturidade das adolescentes grávi-das, associada à condição financeira, contribui para a falta de cuidados obstetrícios de rotina. O Ministério da Saúde recomenda que sejam feitos seis exames pré-natal, mas muitas adolescentes não seguem as orientações por vergonha ou falta de informação. “A maioria das intercorrências [termo que define a ocorrência de um evento inesperado em um procedimento médico] é mais comum entre adolescentes”, afirma o professor da Unifesp, Afonso Nazário. Exemplos: pré-e-clâmpsia e eclâmpsia (hipertensão arterial), ane-mia, infecção urinária, entre outros. Segundo ele, o período biológico ideal para a gravidez é após os 25 anos.

A discussão sobre a gravidez na adolescência extrapola os efeitos psicológicos, sociais e eco-nômicos do nascimento de um bebê na vida de uma adolescente. A gestação requer tratamento cuidadoso devido aos fatores de risco associados à idade da mãe. Entre os problemas relaciona-dos à saúde da jovem e do bebê estão o risco de aborto espontâneo, morte fetal, nascimento de bebês prematuros e com baixo peso.

Outro problema relacionado à temática é a quan-tidade de abortos induzidos. Na América Latina, em 2008, a cada 1.000 adolescentes de 15 a 19 anos grávidas, 25 decidiram interromper o processo antes do nascimento, segundo o Fundo de Popula-ção das Nações Unidas (UNFPA), braço da ONU para questões populacionais. Segundo a entidade, as adolescentes são mais propensas a sofrer compli-cações durante essa prática do que as adultas. Isso porque, entre as primeiras, o procedimento cirúrgico tende a ser feito em fases mais avançadas da gesta-ção e com profissionais e locais inadequados. E, em caso de continuidade da gestação, o risco de morte dos recém-nascidos é 50% maior no comparativo entre mães adolescentes e mães entre 20 e 29 anos, segundo dados da Organização Mundial da Saúde. Essa taxa é confirmada por estudo feito pela Univer-sidade Federal de Juiz de Fora que mostra que 51,9 óbitos de fetos e recém-nascidos foram registrados a cada 1.000 nascimentos de mães entre 10 e 14 anos. O número já cai consideravelmente na faixa etária entre 15 e 19 anos, mas ainda é superior se compa-rado às mães com mais de 20 anos – 23,9 e 20,9 óbitos a cada 1.000 nascimentos, respectivamente.

EM MINAS GERAIS

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Embora tenha caído entre 2003 e 2013, o número de mães na adolescência ainda é expressivo em Minas Gerais

18,74% 18,59% 18,83% 18,80% 18,72% 18,04% 17,40% 16,82% 16,48% 16,31% 16,43%Percentual

de mãesadolescentes

Total de nascidosvivos no estado

Fonte: Superintendência de Epidemiologia da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais

284.904 277.691 277.468 266.143 259.505 260.916 252.676 255.126 259.863 260.544 260.544

Page 19: Revista Rolimã Edição #5

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 19

Na Jamaica, as adolescentes grávidas eram expul-sas dos colégios para que o “mau exemplo” não fosse propagado entre as colegas. Um programa criado em 1978 passou a ajudar as jovens mães a retomar os estudos em centros assistenciais depois do nascimento dos bebês. Além de incentivar a educação continuada, as profissionais dos centros aconselham as adolescen-tes a evitar uma segunda gravidez, oferecem treina-mento em habilidades práticas para cuidar dos filhos e o serviço de creche. O atendimento é estendido aos pais adolescentes e aos avós dos bebês.

Coordenado pela fundação Centro de Mulheres da Jamaica, o projeto é classificado como uma “boa prática” pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), braço da ONU para questões populacionais. O exemplo é destacado no documento Maternidade Precoce: enfrentando o desafio da gravidez na ado-lescência, publicado pela UNFPA. Chefes de Estado e ministros de dezenas de países já estiveram no país caribenho para conhecer a metodologia. Com a ajuda do programa, a taxa de gravidez na adolescência na Jamaica caiu de 31% em 1978 para 18% em 2008, percentual próximo ao do Brasil.

Fora do Brasil, o exemplo da Jamaica

Em 2013, o Ministério da Educação da Jamaica lan-çou a Política de Reintegração de Mães Adolescentes ao Sistema de Educação Formal, em parceria com o Cen-tro de Mulheres, melhorando a lógica do atendimento. Diferente de outrora, as escolas agora são obrigadas a aceitar as jovens mães depois do nascimento do filho. “Queremos dar a cada menina uma educação. Quere-mos reerguê-la, garantir a ela a melhor oportunidade. Nós somos uma nação que dá uma segunda chance”, afirma o ministro da Educação, Ronald Thwaites, no relatório publicado pela UNFPA.

Com o conhecimento e consentimento de seus pais, as jovens mães recebem informações sobre saúde sexual e reprodutiva e é oferecido o método contraceptivo de sua escolha, o que as ajuda a evitar uma segunda gravidez e lhes permite concluir seus estudos. De lá para cá, a fun-dação conseguiu manter abaixo de 2% a taxa de segunda gravidez entre as adolescentes inscritas no programa.

Outra prática adotada é a distribuição de preserva-tivos masculinos e femininos. De 2008 a 2011, mais de 16 mil camisinhas foram entregues. Soma-se a isso a sensibilização de meninos e meninas para a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs).

NO BRASIL O total de nascimentos decaiu em todas as regiões do país desde 2000, especialmente no Sudeste e no Nordeste. Entre as jovens mães de até 19 anos, a queda foi de mais de quatro pontos percentuais num intervalo de 12 anos. Mesmo assim, seus filhos ainda representam quase um quinto do total de crianças nascidas no Brasil

Fonte: Ministério da Saúde

(x )

( )

2000

2005

2010

2012

Centro-OesteNorte Nordeste Sudeste Sul <15 15-19 20-24 25-29 30-34 35-39 40<

359

348

1.079

989

343

338

917

900

1.323 446 244 0,9 22,6

20,9

18,4

18,3

0,9

0,9 25,127,7 8,217,5 2,2

22,631,3 6,713,9 1,9

23,730,5 7,214,7 2,1

24,526,1 8,918,9 2,41,0

1.179

1.141

1.147

390

376

376

239

232

234

Page 20: Revista Rolimã Edição #5

20 | Revista Rolimã • Junho de 2015

Salários muito baixos, alta carga horária e a tensão de se educar centenas de crianças e adolescentes. Ser professor dos ensinos Fundamental e Médio no Brasil vale a pena? O somatório de tantos problemas resulta na insuficiência de “mestres” em sala de aula para for-mar as novas gerações de estudantes. Problema agravado na rede pública de ensino, onde os fatores expostos são potencializados. Com uma carreira pouco atrativa, o país enfrenta grave crise na formação de um dos profis-sionais vitais para a construção da sociedade, peça chave da formação de crianças e adolescentes.

Diante da problemática, o Tribunal de Contas da União (TCU) fez uma auditoria para mostrar o déficit de professores no país. Resultado: faltam 32,7 mil docen-tes com formação específica apenas no Ensino Médio (veja mais sobre o cálculo no “Raio X”, na pág. 23). Em Minas Gerais, são 3,9 mil a menos. A situação mais grave no país é entre os professores de Física. São quase

Faltam professores na área de educação básica ou oportunidades atraentes de trabalho?

POR PEDRO ROCHA FRANCO

um quadro vazio

10 mil profissionais a menos que a demanda das esco-las. Química e Sociologia completam as três áreas mais críticas, com carência de 4,8 mil e 4,6 mil professores, respectivamente. Juntas, as três disciplinas respondem por 59% do déficit.

Para piorar, o número de professores sem formação específica atuando no Ensino Médio supera o próprio déficit no país. Ao todo, 46.678 educadores que hoje tra-balham nas escolas brasileiras não concluíram o curso superior da disciplina que lecionam. Muitos deles con-cluíram tão somente o Ensino Médio.

Apesar de a auditoria do TCU indicar a insuficiên-cia de profissionais para certas disciplinas, especialistas questionam a afirmação. Na pesquisa O que explica a falta de professores nas escolas brasileiras?, publicada na edição de junho de 2014 do Jornal de Políticas Edu-cacionais, o professor do Departamento de Psicologia e Educação da Universidade de São Paulo (USP), José

Page 21: Revista Rolimã Edição #5

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 21

Marcelino de Rezende Pinto, pós-doutor em administra-ção educacional pela Universidade de Stanford, reforça o argumento de que não faltam professores formados, mas sim atratividade para os profissionais. O estudioso cru-zou os dados de formandos e da demanda por educadores para mostrar ser suficiente a quantidade de professores no mercado de trabalho. “Tem professor. Se falta em sala de aula, não é por falta de profissional. A questão é atrativi-dade. O cara forma em Física e vai para outra área [que não a escola]”, sintetiza.

O trabalho conclui que a única disciplina onde pode ser insuficiente o número de formandos é a própria Física. Pelo estudo, em dez disciplinas obrigatórias no Ensino Médio e nos últimos anos do Ensino Fundamen-tal, a oferta é superior à demanda. Exemplo: em Biologia o número de concluintes no período de 1990 a 2010 foi 7,8 vezes maior que a demanda (202 mil formados por 25,8 mil vagas). No caso de Ciências e Língua Estran-geira, há insuficiência, mas, se considerados os forman-dos em Biologia e Letras, respectivamente, a oferta pode ser suprida.

E mais: o estudo projeta um cenário supondo que todas as vagas ofertadas para formação de professores nas faculdades e universidades públicas tivessem resul-tado em formandos – ou seja, evasão zero. “Haveria um excedente gigantesco de professores”, pontua José Mar-celino. O número se multiplicaria caso fossem considera-das as vagas em instituições privadas de ensino.

O argumento salarial novamente é reforçado ao se apresentar o rendimento mensal médio do professor e de outras categorias profissionais. Pelo levantamento, feito em 2014 com valores referentes a 2009, o professor ganhava um salário médio de R$ 1.916, enquanto enge-nheiros ganhavam mais que duas vezes isso. O salário de um professor é próximo ao do corretor de seguros, R$ 1.997, e dos caixas bancários, R$ 1.709. “O princi-pal é salário. O resto é conversa”, afirma José Marcelino. A pesquisa não indica qual o destino profissional dos professores formados, mas o serviço público é uma das hipóteses. “O aluno faz Pedagogia para ter um diploma e ingressar na carreira pública. Muitos policiais militares fazem Pedagogia, por exemplo”, relata.

Na avaliação do professor da USP, a ilusão de que o déficit está ligado à insuficiência de profissionais acaba por agravar o problema. Isso porque o poder público acaba por incentivar a maior oferta de vagas. “O mais grave é que com a expansão totalmente irresponsável de licen-ciaturas na modalidade ensino à distância (EAD), cujos alunos são reconhecidamente menos preparados que os alunos dos cursos presenciais, a tendência é achatar ainda mais os salários, dada a grande oferta, afugentando da profissão exatamente os docentes mais bem preparados que o país tanto precisa para melhorar a qualidade de seu ensino. Qualquer política, no momento, de estímulo à expansão de vagas é um grave equívoco, com consequên-cias danosas para a educação brasileira”, entende.

Professores se reúnem para protestar contra baixos salários

Foto: Agência Brasil

Page 22: Revista Rolimã Edição #5

22 | Revista Rolimã • Junho de 2015

A lei promulgada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2008, definindo o piso salarial nacional para professores da educação básica, é considerada o primeiro passo para aumentar os ganhos da catego-ria. Seguindo a lei, em 2015, por 40 horas de traba-lho semanais em escolas públicas os docentes têm que ganhar pelo menos R$ 1.917,78. O valor corresponde a mais que o dobro do definido para o primeiro ano de validade da legislação. Em 2009, o piso era de R$ 950.

“O piso nacional é o mais significativo avanço de toda a gestão petista para a educação”, afirma a profes-sora da Faculdade de Educação da Universidade Fede-ral de Minas Gerais (UFMG) e integrante do grupo

de pesquisa sobre condição e formação docente, Inês Assunção. Mas acrescenta: “Ainda é completamente insignificante para mudar o quadro. Não temos uma crise da profissão, mas das condições de salário”.

Em maio deste ano, o governo de Minas reajustou o salário dos professores, que até agosto de 2017 devem receber de acordo com o piso nacional (R$ 1.917,78) para um regime de 24 horas semanais. O reajuste será repassado em três etapas: a partir de junho, o salário básico – que atualmente é de R$ 1.455,30 – terá um acréscimo de R$ 190; em agosto de 2016 serão mais R$ 135 e, no ano seguinte, virá o terceiro adicional, de R$ 137,48.

RAIO-X

( )

. . .

Física

30%

Química

15%

Sociologia

14%

17 mil (4%)tinham formação apenas

até o Ensino Médio

não tinham formação específica em nenhuma das disciplinas obrigatórias do Ensino Médio

46 mil (12%)

( )

32,7 milno Brasil

3,9 mil

Pouco atrativas, as vagas de professores da educação básica acabam sendo ocupadas por profissionais sem formação específica

Fonte: Tribunal de Contas da União

Profissionais da educação básica são peça-chave da formação de crianças e adolescentes

Foto: Agência Brasil

Page 23: Revista Rolimã Edição #5

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 23

Segundo Inês Assunção, a questão salarial contri-bui para o grande índice de evasão no Ensino Superior. Os estudantes conhecem um pouco mais da carreira e desistem de continuar no meio do curso. “Do ponto de vista do salário, é das categorias mais mal pagas do país. Os jovens se deparam com isso e não querem formar”, afirma. Ela compara a situação com a do professor de Ensino Superior. No levantamento do professor da USP, José Marcelino Pinto, o docente ganha 2,33 vezes mais no Ensino Superior que no Médio.

Inês se recorda de um aluno de Biologia que, depois de formado em licenciatura, em vez de ir para a sala de aula preferiu ser garçom devido ao salário. “Traba-lhando três vezes por semana ele ganha mais que um professor”, afirma. Ela relata que nas salas que leciona na UFMG boa parte dos alunos sonha em ser professor universitário, enquanto raros são os desejosos por esco-las de Ensino Médio.

Outro fator apontado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) como crítico é a contratação temporária de profes-sores. Em 11 estados, segundo os números da auditoria, o percentual desse tipo de vínculo supera 40% do total, apesar de a Constituição Federal exigir que o ingresso seja feito por concurso. “Evidencia-se, assim, que essa modali-dade de contratação, em alguns sistemas estaduais, passou a ser aplicada como verdadeira política de pessoal, embora devesse se prestar apenas a atender necessidade excepcio-nal e transitória”, diz trecho do documento assinado por Valmir Campelo, ministro do Tribunal.

Valmir acrescenta: “O uso ostensivo, intensivo e, em algumas redes, claramente abusivo do regime de con-tratação temporária é deletério ao sistema educacional

Evasão na faculdade

por várias razões. Se de um lado ele frustra a perspec-tiva de desenvolvimento e amadurecimento profissional onde há a prática de rescisão dos contratos logo após o período letivo, a prorrogação contumaz de contratos em outras redes cria verdadeiras subcategorias de profes-sores, sem a mesma remuneração e sem outros direitos viabilizados por meio de vínculo minimamente estável com os governos estaduais”.

Além da valorização salarial, alguns fatores podem tornar a carreira de professor mais atrativa. A possibi-lidade de atuar exclusivamente em uma escola é uma alternativa, segundo o professor da USP. A professora da Faculdade de Educação da UFMG acrescenta a neces-sidade de se ter menos alunos em sala de aula e de ter jornadas menores.

Ao tomar posse para o segundo mandato, a presidenta da República, Dilma Rousseff, afirmou que a educação terá papel prioritário na gestão, sendo “a prioridade das prioridades”. Segundo ela, o lema do governo será “Brasil: Pátria educadora”. O acesso a formas de ensino é visto como um mecanismo de transformação social. “Só a educação liberta um povo e lhe abre as portas de um futuro próspero. Democratizar o conhecimento significa universalizar o acesso a um ensino de qualidade em todos os níveis, da creche à pós-graduação; para todos os segmentos da população”.

Pátria educadora

RAIO-X

( )

. . .

Física

30%

Química

15%

Sociologia

14%

17 mil (4%)tinham formação apenas

até o Ensino Médio

não tinham formação específica em nenhuma das disciplinas obrigatórias do Ensino Médio

46 mil (12%)

( )

32,7 milno Brasil

3,9 mil

Pouco atrativas, as vagas de professores da educação básica acabam sendo ocupadas por profissionais sem formação específica

Fonte: Tribunal de Contas da União

Page 24: Revista Rolimã Edição #5

24 | Revista Rolimã • Junho de 2015

Mesmo sendo importantes órgãos deliberativos e articuladores, em muitos municípios os CMDCAs só existem no papel

Foto: Agência Brasil

24 | Revista Rolimã • Junho de 2015

Page 25: Revista Rolimã Edição #5

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 25

Falta de articulação e de reconhecimento são empecilhos para o bom funcionamento dos Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente

POR ANNA CLÁUDIA GOMES E GABRIELLA HAUBER

ONDE ESTÃO

VOCÊS?

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 25

Page 26: Revista Rolimã Edição #5

26 | Revista Rolimã • Junho de 2015

“Teoricamente, os Conselhos dos Direitos representam a possibilidade real de a sociedade interferir na qualidade das políticas públicas dirigidas ao atendimento e à defesa dos direitos de crianças e adolescentes”, afirma o coorde-nador do Programa Escola de Conselhos do Mato Grosso do Sul, Ângelo Motti.

Motti utiliza a palavra “teoricamente” porque, como já apontamos no começo da matéria, as atribuições e o funcionamento dos conselhos estão muito bem definidos na legislação, mas, na prática, há muitos desafios para que o órgão se mantenha ativo e atuante. Desafios esses que afetam a garantia dos direitos de crianças e adolescentes e fazem com que muitos conselhos não tenham condições de desempenhar seu papel, estando presentes nos muni-cípios apenas de forma bastante enfraquecida ou mesmo figurativa. “Os resultados [do bom funcionamento do conselho], quando positivos, significam o aperfeiçoamento do atendimento dos direitos da criança e do adolescente. O contrário é o não atendimento desses direitos dentro da proposta do ECA e da doutrina de proteção integral”, comenta o presidente do Conselho Estadual da Criança e do Adolescente de Minas Gerais (Cedca), Ananias Fer-reira. Mas por que será que muitos CMDCAs não conse-guem desenvolver seu papel de forma efetiva?

Durante as avaliações das edições da revista Rolimã, no ano passado, uma constatação preocupante tomou conta da equipe da Oficina de Imagens. Ao ligarmos para vários municípios do interior de Minas para ouvir os Conselhos dos Direitos sobre o que achavam da publicação, simplesmente não conseguíamos falar com nenhum conselheiro. “Ah, a gente tem conselho sim!”, muitas vezes ouvíamos do funcionário de alguma pre-feitura, que logo nos passava o contato do Conselho Tutelar. O que acontece é que, apesar de manterem os Conselhos dos Direitos funcionando no papel, muitos municípios não contam efetivamente com esse espaço-chave de participação política e controle social.

Os Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCAs) são um importante órgão do Sistema de Garantia dos Direitos (SGD), previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Os CMDCAs são órgãos deliberativos e articuladores das ações e políticas relacionadas à população de 0 a 18 anos. Isso significa que eles devem apontar as diretri-zes para a formulação das políticas sociais básicas, as medidas protetivas e socioeducativas, além de moni-torar as ações governamentais e não governamentais relacionadas à área da infância.

Conselheiros debatem sobre a construção de políticas relacionadas às

áreas da infância e adolescência

Foto: Oficina de Imagens

26 | Revista Rolimã • Junho de 2015

Page 27: Revista Rolimã Edição #5

Os desafios enfrentados pelos CMDCAs não são pou-cos: vão desde problemas estruturais a questões de reco-nhecimento – todos eles, de uma forma ou de outra, interli-gados. Para a socióloga e presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Miriam Santos, “o primeiro grande desafio que o conselho tem é conseguir a estrutura necessária para funcionar”. Essa infraestrutura deve contar com um espaço físico e recursos materiais adequados para o seu funcionamento, como móveis e tele-fone, além de uma equipe técnica devidamente capacitada para exercer as atribuições do órgão. É bom lembrar que os conselheiros dos direitos não são remunerados e não devem “trabalhar” em tempo integral nos conselhos. Seu papel é avaliar e deliberar sobre as políticas. Por isso é interessante que os conselhos tenham secretários e assis-tentes que deem suporte em atividades como análise téc-nica de documentos e na organização de atividades como plenárias e reuniões.

Ângelo Motti conta que, na maioria dos casos, as pre-cárias condições físicas das sedes de alguns conselhos se devem também à inexistência de recursos previstos no orçamento público para a manutenção das atividades dos conselhos – o que pode e deve ser reivindicado pelos con-selheiros. A estruturação dos CMDCAs é de responsabi-lidade do Executivo municipal. De acordo com a Resolu-ção nº105, de 2005, do Conanda, “cabe à administração pública, nos diversos níveis do Poder Executivo, fornecer recursos humanos e estrutura técnica, administrativa e institucional necessária ao adequado e ininterrupto fun-cionamento do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, devendo para tanto instituir dotação orça-mentária específica que não onere o Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente”. Mas nem todos os gestores estão cientes disso. Há um desconhecimento em relação aos conselhos. “Existe uma falta de conhecimento tanto da parte do Executivo quanto do Legislativo na questão de formulação de políticas, que exige, por exemplo, a des-tinação privilegiada de recursos. A gente sabe que, em se tratando de criança e adolescente, tudo fica em último plano”, critica o diretor institucional do Grupo Educa-ção, Ética e Cidadania, Anderson Alves, conselheiro dos Direitos de Divinópolis (MG), representante da sociedade civil. Anderson, que também é especialista em Gestão da Política do Sistema Único da Assistência Social e em Polí-ticas Públicas para Infância e Juventude, acrescenta ainda que existe uma falha por parte dos conselheiros em não incidir no orçamento público ou pressionar os gestores para que a legislação seja cumprida.

A falta de investimento na estrutura do conselho está relacionada a outro desafio enfrentado pelo órgão: o não reconhecimento de sua importância e de suas atribuições por parte do poder público e da sociedade como um todo. “Tudo começa pela reduzida sensibilidade da sociedade e das instituições públicas e sociais sobre o significado real

dos Conselhos de Direitos e da importância do controle social para o desenvolvimento das políticas públicas”, afirma Ângelo Motti, da Escola de Conselhos. E, para dar conta de exercer seu papel de controle social, os conselhos precisam estar entre as prioridades da admi-nistração pública, assim como crianças e adolescentes devem ser prioridade absoluta. Se isso não acontecer, mesmo que o CMDCA exerça seu papel normativo de deliberação, elas podem não ir para frente. “Um dos papéis do conselho é a construção de políticas públicas e, se ele não for reconhecido por isso, é um desastre, como tem sido nos municípios do Brasil como um todo. Hoje os conselhos existem no papel, mas na prática a efetividade é praticamente inexistente”, critica Ananias, do Cedca-MG.

Alguns conselhos vivem na pele essa falta de credi-bilidade em relação ao poder púbico, como é o caso do CMDCA de Oliveira (MG). A vice-presidente do órgão, Lucy Lopes Sampaio, conta que no ano passado o con-selho organizou junto com o Cedca-MG uma reunião sobre medidas socioeducativas em meio aberto, com a presença de representantes do Centro de Referência Especializado da Assistência Social (Creas), do Conselho Tutelar e do Conanda, mas a ausência de outros órgãos importantes trouxe desafios e indicou a fragilidade na articulação do conselho. “Tivemos várias dificuldades, porque Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Judiciário e Polícia Militar não compare-ceram. Se não podemos contar com estas instituições, como realizar um trabalho eficiente dentro do municí-pio?”, questiona. Segundo ela, o CMDCA encontra difi-culdades também em mobilizar os próprios conselheiros para participarem das reuniões, sobretudo pelo fato de os conselheiros acumularem outras funções.

Nenhum mar de rosas

Assim como em vários outros setores das políticas públicas, como Cultura, Juventude e Esportes, os Conselhos dos Direitos são formados por dois grupos, igualmente distribuídos. Um grupo é de representantes do poder público municipal, geralmente das secretarias ou departamentos do município que atuam mais diretamente com a política da infância, como Saúde, Educação e Assistência Social. O outro é de representantes da sociedade civil, como associações de bairro e entidades que prestam algum tipo de atendimento a meninos e meninas, como Apaes, escolinhas de esportes ou grupos culturais. Podem participar das eleições, como candidatas e votantes, todas as entidades do município que tenham Cadastro de Pessoa Jurídica, o CNPJ, tenham alguma relação com a área da infância e que sejam cadastradas no conselho.

A CARA DO CONSELHO

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 27

Page 28: Revista Rolimã Edição #5

Recursos humanos e estruturais. Segundo Miriam San-tos, isso é o básico que deve ser garantido pelo poder público para o bom funcionamento dos conselhos. “O Executivo municipal teria que aparelhar o conselho com uma secreta-ria executiva, com técnicos capacitados na área da infância e também em relação à infraestrutura, com salas de reunião, computadores... Além disso, é papel do Executivo garantir recursos do Fundo da Infância e Adolescência [veja matéria na página 30]”, explica.

Para o cientista político Eduardo Moreira da Silva, pes-quisador do Projeto Democracia Participativa da UFMG (Prodep), o modelo básico de funcionamento de um Con-selho dos Direitos, descrito na Resolução 105/2005 do Conanda, com secretaria executiva, mesa diretora, plenária e comissões temáticas (cuja função é discutir determinados assuntos com mais profundidade do que a plenária possi-bilita) precisa ser adaptável à realidade de cada município. “Esse desenho pode ser replicado, mas tem que ser adap-tado. Há municípios com áreas rurais mais extensas, por exemplo, e é preciso pensar que tipo de atendimento estão recebendo as crianças e adolescentes dessa área. O desenho deve ser capaz de dar resposta adequada às necessidades específicas”, pondera. “Poderia existir uma comissão de comunicação, por exemplo, que é uma área desafiadora. O conselho precisa se apresentar mais para a sociedade, mos-trar que ele existe”, pontua Eduardo. De acordo com ele, também é necessário que haja um mecanismo que diminua as assimetrias e desigualdades entre os membros do con-selho: “Esses atores chegam ali com trajetórias diferentes, tanto informacionais como de poder. Assegurar que todos esses atores tenham paridade é uma grande discussão”.

O que pode ser feitoEsse desafio de participação apontado por Lucy está relacionado a um desconhecimento e não reco-nhecimento do papel do conselho vindo dos próprios conselheiros. Muitas vezes, os conselheiros dos direi-tos possuem pouca experiência no campo das políticas públicas da área da infância, o que dificulta o desempe-nho de suas funções. Anderson Alves, do CMDCA de Divinópolis, elenca algumas razões para a dificuldade dos conselheiros em situar os limites de suas atribui-ções: a falta de entendimento do que está preconizado no Estatuto como um todo, falta de capacitações para aprimorar o trabalho e atualizar a legislação muni-cipal e desconhecimento da rede de atendimento das mais diversas políticas públicas, gerando assim uma desarticulação do Sistema de Garantias dos Direitos da Criança e do Adolescente.

O desafio fica ainda maior quando se avalia a representação governamental do CMDCA. Os repre-sentantes do governo são definidos pelo chefe do Exe-cutivo municipal e muitas vezes não têm autonomia suficiente para exercer sua função de conselheiro. “Às vezes, existe uma demanda de formulação de políticas que precisa ser decidida no conselho e o representante da ala governamental não é o secretário, aí precisa levar o assunto para o secretário e demora. Então, em situações que se demanda celeridade, as coisas aca-bam demorando”, exemplifica Anderson. Para o pre-sidente do Cedca-MG, Ananias Ferreira, o conselheiro da criança tem que se reconhecer como tal, indepen-dente do segmento que representa. “Depois que o con-selheiro se empossa como membro do conselho, ele se torna exclusivamente representante da criança e do adolescente, não mais da entidade que o levou para lá. Mas esta consciência é também um desafio”, explica.

Outro ponto crítico é a alta rotatividade de con-selheiros – o que não deveria ser um problema, mas sinônimo de democracia. A falta de capacitações per-manentes torna a rotatividade desafiadora. O que há hoje para suprir a demanda de capacitações são as Escolas de Conselhos, que são responsáveis pela for-mação continuada dos conselheiros em todo o país. No entanto, como no caso de Minas, poucos tem par-ticipado das suas atividades – isso quando elas exis-tem. De acordo com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), atualmente há 14 escolas em funcionamento, em 14 estados. A meta é universalizar as escolas em todas as demais unida-des federativas. Existe também um planejamento do governo federal para tentar identificar as demandas prioritárias dos conselheiros. Em 2014 a SDH iniciou o cadastro nacional dos Conselhos de Direitos. “Com este mapeamento, esperamos identificar melhor as necessidades dos conselheiros para que possamos apri-morar ações e a atuação desses atores de proteção de direitos da infância”, afirma a ministra Ideli Salvatti.

A falta de capacitações é um dos desafios enfrentados pelos conselheiros de direitos

Foto: Oficina de Imagens

28 | Revista Rolimã • Junho de 2015

Page 29: Revista Rolimã Edição #5

Mas não só da iniciativa do poder Executivo depende o bom funcionamento dos conselhos. A ação dos pró-prios conselheiros é fundamental para tornar os CMD-CAs mais ativos. “Eles têm que se articular com a própria sociedade para convencer o poder público da importân-cia da estrutura mínima necessária. É importante ter autonomia. Sendo um órgão autônomo, independente, ele vai ter sua parcela orçamentária definida e vai poder gerenciar recursos e suas atividades. É preciso lutar para que o conselho não seja apenas um órgão vinculado ao Executivo, ele precisa de autonomia financeira, adminis-trativa e jurídica”, destaca Ananias, do Cedca/MG.

Segundo Eduardo, do Prodep, algumas ações pon-tuais por parte dos conselheiros de direitos podem ser eficazes: “Primeiro é preciso planejar melhor as ações, construir uma agenda prioritária para o conselho e cha-mar a sociedade para participar. Os conselheiros tam-bém precisam se qualificar, discutir com os colegas o que pode ser feito para aprimorar o trabalho e somar forças com outros conselhos existentes no município”.

O pesquisador salienta ainda a importância de dar segui-mento às deliberações das Conferências Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, que têm sido reali-zadas a cada dois anos. “A população tem um saber que é diferente do Estado e que contribui para o aprimoramento dele, um saber do usuário. As conferências são momentos cruciais e estratégicos nos quais os conselhos se abrem, cha-mam a sociedade e perguntam o que ela pensa. É preciso ter a capacidade de parar, olhar e falar ‘o que nós deliberamos na última? O que nós fizemos? O que falta fazer?’”, afirma.

Para que a proteção integral de crianças e adolescentes seja efetiva, então, é necessário que haja articulação entre conselhos, sociedade e demais poderes. “Temos uma tradi-ção de funcionamento das políticas públicas muito setoriali-zado. A Secretaria de Saúde ainda acha que tem que cuidar só da saúde, a de Educação acha que tem que cuidar só da educação... Mas as áreas transversais, como a da criança e do adolescente, não podem ser tratadas de forma isolada. Tem que mudar o paradigma, a sociedade não é setorizada”, destaca Eduardo.

O papel do CMDCA de deliberar e controlar as ações públicas de promoção dos direitos de meninas e meninos se desdobra em um conjunto de funções e atribuições destacadas na Resolução 105/2005 do Conanda. São algumas delas:

Quais são as atribuições do CMDCA?

Leia mais na publicação Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente -Orientações para incidir em políticas públicas: +

http://bit.ly/1F2qKkL

Atuar como instância de apoio local nos casos de petições, denúncias e reclamações, participar de audiências ou ainda promover denúncias públicas quando ocorrer ameaça ou violação de direitos da criança e do adolescente, acolhendo-as e dando encaminhamento aos órgãos competentes.

Difundir junto à sociedade local a concepção de criança e adolescente como sujeitos de direitos e o paradigma da proteção integral.

Manter um diagnóstico atualizado sobre a realidade de crianças e adolescentes no município e elaborar um plano de ação do conselho

Promover e apoiar campanhas educativas sobre os direitos da criança e do adolescente.

Participar e acompanhar a elaboração, a aprovação e a execução das leis orçamentárias municipais

Gerir o Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente no sentido de definir a utilização dos respectivos recursos por meio de plano de aplicação.

Acompanhar e oferecer subsídios para a elaboração legislativa local relacionada à garantia dos direitos da criança e do adolescente.

Fomentar a integração do Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria e da Segurança Pública na apuração dos casos de denúncias e reclamações formuladas por qualquer pessoa ou entidade que versem sobre ameaça ou violação de direitos da criança e do adolescente.

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 29

Page 30: Revista Rolimã Edição #5

30 | Revista Rolimã • Junho de 2015

POR DENTRO DO

Previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, os Fundos da Infância e da Adolescência são ferramentas importantes na gestão da política da infância. Com o fundo, além de ser possível dar autonomia e força à sociedade civil, é possível cobrir algumas lacunas da política de atendimen-to e promover a capacitação dos atores da rede de proteção nos municípios, no Estado e na União.

O que é e como funciona o Fundo da Infância e Adolescência

*Texto adaptado e atualizado do Caderno Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, da Oficina de Imagens

*EDIÇÃO: FILIPE MOTTA | INFOGRAFIA: PABLINE FELIX

2013 2014

20152013

POLÍTICASPÚBLICAS

30 | Revista Rolimã • Junho de 2015

Page 31: Revista Rolimã Edição #5

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 31

POR DENTRO DO

Previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, os Fundos da Infância e da Adolescência são ferramentas importantes na gestão da política da infância. Com o fundo, além de ser possível dar autonomia e força à sociedade civil, é possível cobrir algumas lacunas da política de atendimen-to e promover a capacitação dos atores da rede de proteção nos municípios, no Estado e na União.

O que é e como funciona o Fundo da Infância e Adolescência

*Texto adaptado e atualizado do Caderno Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, da Oficina de Imagens

*EDIÇÃO: FILIPE MOTTA | INFOGRAFIA: PABLINE FELIX

2013 2014

20152013

31 | Revista Rolimã • Junho de 2015

Apesar de possuir natureza jurídica, o Fundo não possui personalidade jurídica e está subordinado a um órgão ou secretaria da administração, como as pastas de Direitos Humanos ou Assistência Social da cidade. O FIA não pode ser criado por decreto

do prefeito, portaria ou provimento administrativo. No entanto, sua regulamentação deve ser feita por decreto do chefe do Executivo, a partir de deliberações do Conselho dos Direitos.

Conforme a Instrução Normativa 1143/11 da Receita Federal, e a Resolução 157/13 do Conanda, o FIA deve possuir um número próprio no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), com natureza jurídica 120-1 (Fundo Público).

A secretaria de governo à qual o Fundo está vinculado libera os recursos, cuida da contabilidade, da escrituração dos livros, da assinatura dos cheques e da prestação de contas.

.

.

.

É comum que o FIA seja criado pela mesma lei de criação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA). Se o município não possui Fundo, é necessária a elaboração do projeto de criação, que deve ser sancionado pela prefeitura. A resolução 137/2010 do Conanda é a referência para a criação e funcionamento dos FIA.

Apesar de o FIA sempre estar vinculado a uma secretaria ou órgão do governo, compete unicamente ao conselhos dos Direitos definir onde e como usar os recursos. E cabe somenteao conselho definir as regras, procedimentos e prioridades que vão orientar sua gestão.

.

.

.

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 31

Page 32: Revista Rolimã Edição #5

32 | Revista Rolimã • Junho de 2015 Revista Rolimã • Junho de 2015 | 32

A distribuição dos recursos devem ter por base o diagnóstico sobre a realidade de crianças e adolescentes do município e o Plano de Ação do Conselho. Podem ser utilizados recursos do próprio Fundo para esse diagnóstico.

O conselho deve elaborar, anualmente, o Plano de Aplicação dos recursos do FIA, considerando as metas estabelecidas para o período no Plano de Ação.

O conselho deve elaborar editais anuais que definam os procedimentos e critérios para a aprovação de projetos a serem financiados comrecursos do FIA.

Entidades que pretendam obter apoio financeiro do Fundo deverão submeter previamente seus projetos à análise do CMDCA.

O CMDCA deve verificar a compatibilidade da proposta enviada pelas entidades com as diretrizes da política da infância e com as prioridades definidas em cada período.

Os trâmites para transferência de

recursos só terão início após deliberação

em plenária e publicação de resolução.

2013 2014

2015

2013

.

.

.

.

32 | Revista Rolimã • Junho de 2015

Page 33: Revista Rolimã Edição #5

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 33

A distribuição dos recursos devem ter por base o diagnóstico sobre a realidade de crianças e adolescentes do município e o Plano de Ação do Conselho. Podem ser utilizados recursos do próprio Fundo para esse diagnóstico.

O conselho deve elaborar, anualmente, o Plano de Aplicação dos recursos do FIA, considerando as metas estabelecidas para o período no Plano de Ação.

O conselho deve elaborar editais anuais que definam os procedimentos e critérios para a aprovação de projetos a serem financiados comrecursos do FIA.

Entidades que pretendam obter apoio financeiro do Fundo deverão submeter previamente seus projetos à análise do CMDCA.

O CMDCA deve verificar a compatibilidade da proposta enviada pelas entidades com as diretrizes da política da infância e com as prioridades definidas em cada período.

Os trâmites para transferência de

recursos só terão início após deliberação

em plenária e publicação de resolução.

2013 2014

2015

2013

.

.

.

.

33 | Revista Rolimã • Junho de 2015

1. Escolha o Fundo para o qual deseja contribuir;

2. Deposite o valor na conta bancária indicada pelo conselho (que tem de ser exclusiva para o Fundo).

3. Envie uma cópia do comprovante de depósito ao Conselho dos Direitos, informando os dados de identificação (nome completo ou razão social; CPF ou CNPJ; endereço; telefone).

CAPTAÇÃO

P F:

Recursos públicos pré-determinados nos orçamentos públicos dos municípios, estados e UniãoA lei de criação do Fundo pode estabelecer que a prefeitura faça repasses regulares ao FIA.

Doações de pessoas físicas e jurídicas: bens materiais, imóveis ou recursos financeiros

Destinações de receitas do Imposto de Renda, com incentivos fiscais para o doador

As empresas podem direcionar aos Fundos até 1% do Imposto de Renda devido. No caso de pessoas físicas, esse percentual é de 6%. Nesses casos, em vez de o contribuinte (cidadão ou empresa) destinar a parcela do imposto devido ao governo federal (Receita Federal), esse percentual vai para um FIA.

Recursos provenientes de multas aplicadas pela Justiça

1. Manter o cadastro do FIA atualizado com o governo federal (Secretaria de Direitos Humanos/ Receita Federal).

2. Enviar o recibo das doações, assinado pelo gestor do Fundo e pelo presidente do CMDCA, ao cidadão ou à empresa e manter as cópias arquivadas.

3. Organizar uma lista com os dados das entradas de recursos (nome ou razão social; CPF ou CNPJ; data do depósito; valor).

4. Até o último dia útil do mês de março do ano seguinte, o CMDCA deve preencher e enviar pela internet a Declaração de Benefícios Fiscais (DBF) à Receita Federal.

.

.

.

.

Confira as orientações da Secretaria dos Direitos Humanos para o cadastramento do FIA

http://bit.ly/1Bi9NqS

Page 34: Revista Rolimã Edição #5

34 | Revista Rolimã • Junho de 2015 Revista Rolimã • Junho de 2015 | 34

Cartilha Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, da série Cadernos Novas Alianças, da Oficina de Imagens:

Acolhimento de crianças e adolescentes órfãos e abandonados, seguindo as diretrizes do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária;

Pesquisas, diagnósticos, monitoramentos e avaliações das políticas públicas da infância;

Capacitações dos atores do Sistema de Garantia dos Direitos;

Projetos de comunicação, campanhas educativas, publicações;

Ações de fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos, com ênfase na mobilização social e na articulação da rede de proteção.

Com o MARCO REGULATÓRIO DO TERCEIRO SETOR, sancionado em 2014, a formalização de parcerias entre entidades públicas e privadas sem fins lucrativos não se dará mais mediante convênios.

Agora há duas opções:

FOMENTOQuando a entidade define a proposta a ser desenvolvida.

COLABORAÇÃOQuando o órgão público define a proposta da parceria.

Pagamentos de salários, despesas de manutenção e funcionamento do Conselho Tutelar e do CMDCA;

Aquisição, construção, reforma, manutenção e aluguel de imóveis públicos e privados, ainda que de uso exclusivo da política da infância e da adolescência;

Financiamento das políticas públicas sociais básicas, como saúde e educação.

bit.ly/Novas_CMDCA *Os nomes utilizados nesta reportagem são fictícios para preservar a identidade dos adolescentes

34 | Revista Rolimã • Junho de 2015

Page 35: Revista Rolimã Edição #5

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 35

No dia em que ingressou pela primeira vez naquela casa, tudo lhe parecia mais escuro. Cruzou a porta esperando o pior, acostumado que estava às hostilidades alheias. Deparou-se com uma sala de paredes encardidas, um televisor velho, sem botões, um singelo móvel azul anil, dois sofás sujos, já sem molas e com cavidades fundas nos assentos, uma mesa amarela peque-na – que não comportava um terço dos que ali viviam –, uma oração de São Francisco e um crucifixo pendurados na parede.

Estava quieto, cabisbaixo, acuado. Era a terceira casa de acolhimento por que passava depois de ter fugido de sua própria e de ter sido sutilmente orientado pela madrinha, a quem recorrera, para buscar o Conselho Tutelar, porque hospedá-lo “poderia lhe gerar problemas”.

Mostraram-lhe o quarto que passaria a chamar de seu – ambiente que dividiria com três outros garotos que nunca vira na vida: dois beliches, um armário e, atrás da porta, um aviso com todas as regras e horários minucio-samente descritos.

Seguiu até a cama, colocou a mochila num canto e se acomodou. Não car-regava muito consigo. Recém saíra de um abrigo onde haviam lhe roubado não apenas os pertences, mas, com eles, também o pouco que lhe restava de autoes-tima. Então, para escapar à estranheza do novo mundo que o cercava, retirou da sacola um mangá (história em quadrinhos de estilo japonês) e o folheou.

Deitado no beliche, começava a ser enredado pela narrativa quando um dos companheiros de dormitório reconheceu o personagem da revista. “Nó, que doido!”, exclamou apontando para os quadrinhos. Pedro* abriu um sorriso e se arrimou naquele primeiro vínculo instaurador de diálogo.

O cotidiano e os conflitos internos de meninos e

meninas que, afastados de seus lares, passaram a viver em

instituições de acolhimento em Belo Horizonte

POR BÁRBARA PANSARDI

Era uma casa muito engraçada

*Os nomes utilizados nesta reportagem são fictícios para preservar a identidade dos adolescentes

VÁRIASINFÂNCIAS

Page 36: Revista Rolimã Edição #5

36 | Revista Rolimã • Junho de 2015

Sob o mesmo teto, 15 adolescentes com trajetórias de vida muito diferentes, mas que têm em comum a marca da separação da família e históricos de violação de direitos – negligência, violência doméstica, dependência química dos pais ou responsáveis e abuso sexual são os motivadores mais recorrentes do acolhimento institucional. Enquanto seus hormônios afloram, as lembranças perturbam. A con-vivência é, como não poderia deixar de ser, conturbada. Brigam, provocam-se, implicam uns com os outros. Com raras exceções, não costumam estreitar laços de amizade. Agridem verbalmente os educadores, desafiam funcioná-rios, testam os limites e a paciência. O limiar de frustração é baixo; não aceitam ouvir nãos. Há janelas quebradas, móveis destruídos e trancas arrombadas que denunciam seus acessos de raiva. Nas suas reações explosivas, chutam cadeiras, batem em portas, saem jogando no chão todos os materiais que veem pela frente, xingam, esperneiam, ame-açam. Nas entrelinhas do espetáculo, um grito abafado clama por cuidado e atenção.

Há perdas e dores, mesmo que conjugadas ao alívio. No acolhimento institucional, vivenciam uma experiência de privação e ruptura. Não querem deixar seus lares e as pessoas com as quais viveram até ali e, ao mesmo tempo, não querem permanecer naquela situação de violação. Nu-trem pelos familiares dos quais foram afastados um senti-mento ambíguo: sofrem em decorrência de suas ações ou omissões, mas também sentem sua falta – senão aquela traduzida em saudade e afeto, ao menos outra, capaz de preencher, ainda que turva ou insatisfatoriamente, as lacu-nas agora cheias de vazio.

Marcos, 12 anos, por exemplo, conta que certo fim de semana, tendo iniciado o processo de reintegração familiar, foi visitar a mãe, usuária contumaz de drogas. Ela partiu,

Tudo junto e misturado ausentou-se por alguns dias e deixou o irmão menor e ele – que tem uma deficiência na perna e usa muletas – a sós, ambos trancados no barraco onde não havia comida. Nar-ra o episódio com revolta – não pela atitude materna, mas porque desde então foi impedido de fazer novas visitas ao lar. Sem compreender a existência de uma medida judicial, atribui a responsabilidade da distância da família ao coor-denador da casa de acolhimento. Reage agressivamente, como se a privação só tivesse a finalidade de prejudicá-lo.

“Já tô indo embora. Tô contando os dias, só falta um mês. Minha alegria é sair daqui”, grita Felipe, 15 anos, para a assistente social. “Graças a Deus. Espero que você consiga mesmo”, ela esbraveja de dentro da sala da co-ordenação. A exclamação sai pela abertura modesta da janela e chega ao encontro dos ouvidos do garoto que se localiza no pátio da casa.

Um vão, nada mais. Esse é o espaço de comunicação habitual entre os meninos sob medida de proteção de acolhimento e seus agora tutores. Quando desejam algo, encaixam suas cabeças no espaço apertado da fenestra, apontam seus olhos impetrantes na direção dos interlo-cutores e tentam convencer com seus argumentos juve-nis. A parede é apenas a barreira física que os separa; as mais intransponíveis são as simbólicas.

Eles vivem cercando o ambiente da administração. Aglutinam-se na porta da sala ou diante da janela e des-filam sua lista de pedidos: “Tô precisando de um tênis”, “Posso ir na casa do fulano depois da aula?”, “Amanhã eu tenho consulta. Quem vai comigo no posto de saú-de?”, “Devolve meu celular, tio?”, “Será que tem como me arranjar um trabalho?”… um sem-fim de queixumes

Porto seguro?

Page 37: Revista Rolimã Edição #5

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 37

Regras, horários, protocolosEnquanto tentam superar as lembranças aflitivas e

elaborar seu lugar no mundo, são submetidos a regras, à liberdade cerceada, ao abafamento da individualidade. A internação em instituições sempre fora uma saída contro-versa. A carência afetiva, a baixa autoestima e o sentimento de despersonalização são decorrências frequentes. Quan-to maior o tempo que passam longe do convívio familiar, maior o prejuízo para o crescimento infantojuvenil. As ca-sas de acolhimento deve(ria)m oferecer um espaço hospita-leiro, com aspecto semelhante ao de uma residência – razão pela qual o Estatuto da Criança e do Adolescente regula-mentou o máximo de 15 atendidos por entidade –, porém, mesmo limitando o número de pessoas, não deixam de ser instituições, com seus protocolos, funcionários e horários.

O acesso à cozinha, por exemplo, não é liberado aos garotos e garotas, apenas nos momentos de refeição. Não podem fazer algo simples como abrir a geladeira ou con-sultar o que há na despensa. Também a brinquedoteca, no caso das crianças, é restrita.

que diversas vezes cumprem mais uma função fática que efetivamente requisitória. Ficam ali pra passar o tempo, pra pedir presença, pra não se sentirem sós. Ficam ali pra contar como foi o dia, pra relatar as atividades rea-lizadas na escola ou no curso, pra ter alguém com quem conversar. Ficam ali porque não há outras atividades com que se entreter.

Na casa onde residem, apenas habitam – porque mo-rar é outra coisa, algo que implica fazer morada, criar raízes. Ali, o teto que lhes cobre não é seu, e eles bem o sabem. Estão sempre na iminência da partida: aguardam a alocação em família substituta; contam os dias para o fim de semana, quando poderão regressar à casa (nos casos de reintegração familiar) ou visitar os padrinhos afetivos; ocupam a maior parte de seus dias com afa-zeres extracurriculares (cursos de informática, projetos sociais, trabalho protegido, etc) para não terem que pas-sar muito tempo na instituição de acolhimento. “Só tem duas palavras que eu sempre quero que eles ouçam: ‘tô vazando’. E tem outra que eles têm que ouvir: ‘cheguei’”, relata Pedro.

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 37

Page 38: Revista Rolimã Edição #5

38 | Revista Rolimã • Junho de 2015

“Pode me informar as horas, antes de qualquer coi-sa?” – foi a pergunta que ele me fez quando demos início à conversa sobre sua trajetória em acolhimento e sobre as vulnerabilidades que o levaram àquela situação. Eu lhe adverti que ele deveria ficar à vontade para não falar a

Limites da subjetividade

Uma das regras que mais gera discussões entre os ado-lescentes se refere ao uso do celular, que é proibido nas dependências da casa de acolhimento – fator que frequen-temente causa revolta nos jovens que, a todo custo, tentam burlar a determinação. Além disso, o uso dos dois com-putadores e da televisão também é controlado e ocorre em horários específicos e pré-determinados. Se porventura algum deles se atreve a ligar os equipamentos fora das cir-cunstâncias previamente acordadas, a reação dos educado-res é simplesmente desativar o fornecimento de energia no quadro de força, sem sequer dar-se ao trabalho de explicar ao menino a razão da penalização.

Há horários para tudo, desde quando acordam até a recolhida: momento do lazer, do estudo, da escola, do mé-dico, do banho, da comida. No quadro afixado na parede dos quartos, há inclusive um intervalo destinado à confe-rência das mochilas – antes da saída para o colégio e no momento de chegada da rua.

respeito do que não quisesse. Pedro tarta-

mudeou um “Não… tudo bem. É que eu só tenho mais

uma meia hora”. Seus olhos não sabiam se encaravam os meus ou se

grudavam no piso. Seu tom era visivelmente diferente do usu-

al. O sorriso do rosto havia murchado, as mãos já não gesticulavam tanto quanto antes, a verbor-

ragia cedeu lugar a prolongados silêncios. Encostou a coluna na cadeira e contraiu um pouco os ombros.

À medida que o tempo foi passando, mostrou-se mais à vontade. Constatou que os questionamentos, embora incômodos, respeitavam os limites de expressão da sua subjetividade; não eram escrutinações incisivas. Mesmo assim, falava pouco. Muitas respostas eram evasivas, metafóricas e frequentemente satíricas. Com um humor ácido e ao mesmo tempo doído, ele respondia às questões que talvez não quisesse encarar. Explicou que estava ali porque fugiu de casa – “O inferno se tornou gelado, já que o capeta saiu de lá e resolveu morar comigo e me cha-mar de filho”. A mágoa era evidente, mas ele exibia um meio sorriso, um tanto quanto triste, que cravara no rosto para me/se convencer de que a fuga era uma libertação. Insistia em dizer do seu orgulho de ser um “abrigado”.

Perguntei-lhe o que motivava tal sentimento, ao que ele me respondeu: “Cara, aqui tem internet, tem wi-fi. Lá em casa não tinha, aqui tem. É bom. E aqui às vezes chegam doações muito bacanas, algo que pessoas normais não têm. Dia desses chegou uma doação de caixa de Traki-nas. Teve outras vezes que chegaram doações de garrafas de suco. Essas coisas…”. Havia um quê de ironia invo-luntária na argumentação, mas, naquele momento, suas palavras tornavam claro o que está latente nos laudos das crianças acolhidas: sob a negligência, a violência domés-tica, a dependência química dos pais ou responsáveis e o abuso ou exploração sexual, casos relacionados, direta ou indiretamente, à vulnerabilidade social das famílias em que se encontram essas meninas e meninos.

Page 39: Revista Rolimã Edição #5

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 39

Pedro está fazendo um mangá em que ele próprio é o protagonista. “A princípio ia colocar meu nome, mas achei melhor não. O personagem vai se chamar Soranin Yuuki Solaris, que, em japonês, significa ‘aquele corajoso que vem dos raios solares do céu’”, conta o adolescente. Com empolgação, descreve a história, inspirada no enre-do de Capitão América, de um menino frágil submetido a uma experiência científica que deu a ele poderes espe-ciais, dentre os quais a capacidade de transmutar ener-gia. “Mas tem momentos normais de um adolescente também”, acrescenta Pedro.

Na HQ, projeta seus desejos e receios, designa vilões e mocinhos, arquiteta ocorrências que gostaria que se tornassem reais. “Eu pego coisas do meu dia a dia e dou aquela fantasiada básica, coisas que transformariam o cinza do meu dia em outras cores. É só questão de ver como seria minha vida se isso acontecesse”, expõe.

Criando sua própria versão da história, Pedro rein-venta o sentido do que viveu. Ao longo do tempo, apren-deu a enxergar seu reflexo em miradas mais edificantes a partir das quais foi costurando o mosaico de seu ser. Ressignificou o estigma do “abrigado” e passou a apro-priar-se dele como um lugar de afirmação de si e de sua cidadania. “Depois que eu entrei aqui, tomei vergonha na cara e comecei a lutar pelo que é importante pra mim. Eu era um zumbi controlado pela minha mãe, tinha proble-mas sociais com as pessoas. Agora é mais fácil”, afirma Pedro. Conta sua história não a partir de seu nascimen-to, início lógico de qualquer existência, mas a partir do momento em que renasceu, quando no mundo hostil em que enfrentava encontrou um ancoradouro onde aportar.

Verdade porque inventoDe casa fugiu para se encontrar. Era uma atitude

drástica, rebelde, necessária e provavelmente mais difícil e dolorosa do que seus ingênuos 14 anos podiam prever. Uniu-se a outros herdeiros da pobreza, da negligência, do consumo desenfreado de drogas, da violência domés-tica, do abuso sexual. Mas através das ficções se encon-trou. Naquele dia em que o companheiro de quarto lhe dirigiu um comentário banal, começou a entender que a fantasia, construtora de pontes e de universos possíveis, poderia salvá-lo das adversidades do caminho. Apren-deu a elaborar suas memórias e sentimentos através de expressões artísticas e compreendeu que suas produções o auxiliariam na tentativa de dar sentido às experiências da vida. Nas melodias, nas ilustrações ou nas histórias em quadrinhos que produz, compõe as narrativas pos-síveis de si. Em decorrência dessa consciência e das no-vas lentes com que passou a enxergar o mundo, hoje ele pode cantar seus versos: “Já se passaram mais de três anos que estive aqui/ Eu resolvi abrir a boca e sorrir/ Eu não tinha mais tempo para nada/ Agora eu tenho tudo o que eu devia ter/ Que eu soube escolher”.

“Tem coisas que, ao falar, soam feias, mas com a me-lodia a gente pode esconder a feiúra e fazer com que as pessoas achem bonitas muitas das coisas ruins que a gen-te tem na vida. Isso faz com que as pessoas nos deem motivos pra ver beleza nas coisas que antes a gente via como ruins. É um momento em que eu falo pra você tudo de mau que me aconteceu de uma maneira bonita e acaba que, no final, eu percebo que tem uma maneira de falar tudo bonito. E, se tem uma maneira de falar tudo bonito, significa que ainda não é o fim”, reflete o garoto.

Page 40: Revista Rolimã Edição #5

40 | Revista Rolimã • Junho de 2015

A política do acolhimento institucional serve à construção de um projeto de vida com crianças e adolescentes violados em seus direitos. Como medida de proteção, deve subsidiar aqueles que, por algum motivo, foram impedidos de construir seu protagonismo e sua cidadania, a fim de que eles encontrem seu lugar e elaborem as possibilidades de vida de sua existência.

As memórias recalcadas precisam encontrar espaço para se ma-nifestarem nas mais diferentes formas. Necessitam ser expressas, acolhidas, compreendidas e remodeladas. Apenas assim esses meni-nos e meninas vulneráveis podem perceber sua própria situação sem sucumbir a ela, descobrindo novas estratégias de sobrevivência e de inserção social.

Na infância e na adolescência, mais do que na fase adulta, a fa-bulação preenche as lacunas da incompreensão, do desejo, dos re-ceios, da narrativa pessoal. Através da fantasia, garotos e garotas manipulam fenômenos, balizam suas angústias, expressam conflitos, sentimentos e medos, suportam o mundo em que vivem. Na mani-festação dos afetos, na exposição de sua versão dos acontecimentos, nas brincadeiras lúdicas ou mesmo no subconsciente tecem as his-tórias imaginárias – tão reais e legítimas – que dão sentido ao que viveram ou estão vivendo. Sua biografia não se lê em laudos ou processos judiciais.

Na mudez conturbada de seus universos internos, não lhes ou-vem; nas versões intrincadas das suas fabulações, não lhes levam a sério; na ambiguidade de seus sentimentos, não lhes legitimam. Mas eles rugem alto. “Nós somos fortes. Nesse grande zoológico, aqui é o lar dos leões”, metaforiza Pedro.

Estrondeantes vozes imaginativas

* As ilustrações desta

matéria foram feitas por

diversas crianças

Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o acolhimento ins-titucional é uma medida de proteção, provisória e excepcional, para crianças em situação de risco social e pessoal, cujas famílias ou responsáveis se encon-trem impossibilitados de cumprir sua função de cuidado. A retirada do conví-vio familiar deve ocorrer apenas quando for inevitável e, ainda nesse caso, a per-manência da criança ou do adolescente em acolhimento deve ser breve. Além disso, deve-se zelar pela manutenção e fortalecimento dos vínculos parentais e, quando esgotados os recursos sem que se obtenha respostas das famílias de ori-gem ou extensa (formada por paren-tes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade), promover o mais rápido possível a inserção em famí-lia substituta.

Embora o Estatuto, reforçado pelo Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, de 2006, defina o cará-ter provisório do acolhimento, meninos e meninas permanecem longos períodos institucionalizados – em média, de 2 a 5 anos. A permanência se prolonga devido à falta de serviços de apoio no processo de reintegração. Desassistidas (social, ju-rídica e psicologicamente), as famílias não apresentam condições de prover o desenvolvimento infantil adequado e o retorno da criança ao lar, então, não é judicialmente liberado.

ENTENDA O ACOLHIMENTO

Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária

bit.ly/conv_fam_com

Na internet

Os desenhos que ilustram essa matéria foram feitos pelas crianças Bárbara Mitre (3), Camila Lana (10), Caroline Simões (11), Catarina Freitas (8), Catarina Moraes (8), João Guabiroba (10), Júlia Silva (8), Luíza Longuinhos (10), Luiza Romana (9), Maria Eduarda (8) e Rafaela Bettoni (8).

Page 41: Revista Rolimã Edição #5

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 41

EM PAUTA

Primeira infância

MARCO LEGAL

O Marco Legal da Primeira Infância, depois da vitoriosa derrubada do recurso que questionava sua aprovação na Câmara dos Deputados, finalmente chegou ao Senado. O antigo Projeto de Lei (PL) 6.998/2013 recebeu nova identificação, PLC 14/2015. A Secretaria Geral do Senado distribuiu o Projeto para três comissões: Comissão de Assuntos Sociais (CAS), Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) e Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ).

Proposto por um grupo de políticos liderados pelo deputado Osmar Terra (PMDB-RS), o Marco é uma iniciativa

que prioriza a primeira infância, faixa etária que compreende da gestação aos 6 anos, por entender que os cuidados nesse período irão refletir no desempenho e no desenvolvimento dos anos seguintes, e podem ter forte impacto na vida adulta.

O Projeto prevê que a elaboração de políticas públicas para primeira infância tenha como áreas prioritárias a saúde, a alimentação e nutrição, a educação infantil, a convivência familiar e comunitária, a assistência social à família da criança, a cultura, o brincar e o lazer, o espaço e o meio ambiente, a proteção frente a toda forma de violência, bem como a prevenção de acidentes.

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados acatou no dia 31 de março a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171, de 1993, que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos. A PEC foi aprovada por 42 deputados, tendo 17 contrários, após a rejeição do relatório do deputado Luiz Couto (PT-PE), que considerava a proposta inconstitucional.

No exame da admissibilidade, a CCJ analisa apenas a constitucionalidade, a legalidade e a técnica legislativa da PEC. A inconstitucionalidade da proposta é defendida por organizações como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Associação de Juízes para a Democracia (AJD), a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e o Instituto dos Advogados do Brasil (IAB). A OAB já indicou que deve propor ação no STF contra a proposta.

A Câmara criará uma comissão especial para examinar o conteúdo da proposta, juntamente com 46 emendas apresentadas nos últimos 22 anos, desde que a proposta original passou a tramitar na Casa. A comissão especial tem o prazo de até 40 sessões do Plenário para dar seu parecer. Até o fechamento desta edição, já haviam sido realizadas 20 sessões.

A PEC deverá ser votada pelo Plenário da Câmara em dois turnos. Para ser aprovada, precisa de pelo menos 308 votos (3/5 dos deputados) em cada uma das votações.

Depois de aprovada na Câmara, a PEC seguirá para o Senado, onde será analisada pela Comissão de Constituição e Justiça e depois pelo Plenário, onde precisa ser votada novamente em dois turnos.

PEC da maioridade penal

ENTENDA O ACOLHIMENTO

Fotos: Agência Brasil

Page 42: Revista Rolimã Edição #5

Há mais de um ano a revista Rolimã chega gratuitamente até você.Agora, a gente precisa da sua ajuda para dar continuidade a esse trabalho.

Acessewww.catarse.me/pt/revistarolimae contribua! Financie essa ideia!

Page 43: Revista Rolimã Edição #5

Revista Rolimã • Junho de 2015 | 43

Page 44: Revista Rolimã Edição #5

44 | Revista Rolimã • Dezembro de 2014