revista rede 20

72
1 crimes com e sem castigo Ano VII - Edição 20 - Setembro de 2011 Revista Institucional do Ministério Público do Estado de Minas Gerais

Upload: ministerio-publico-de-minas-gerais

Post on 28-Mar-2016

235 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

A revista Rede dedica esta edição às discussões e reflexões sobre temas ligados à área criminal.

TRANSCRIPT

Page 1: Revista Rede 20

1

crimescom e sem

castigo

Ano VII - Edição 20 - Setembro de 2011

Revista Institucional do MinistérioPúblico do Estado de Minas Gerais

Page 2: Revista Rede 20

2

Administração Superior

Procurador-Geral de JustiçaAlceu José Torres Marques

Corregedor-Geral do Ministério Público Márcio Heli de Andrade

Ouvidor do Ministério Público Mauro Flávio Ferreira Brandão

Procurador-Geral de Justiça Adjunto JurídicoGeraldo Flávio Vasques

Procurador-Geral de Justiça Adjunto AdministrativoCarlos André Mariani Bittencourt

Procurador-Geral de Justiça Adjunto InstitucionalWaldemar Antônio de Arimateia

Chefe-de-GabinetePaulo de Tarso Morais Filho

Secretário-GeralRoberto Heleno de Castro Júnior

Diretor-GeralFernando Antônio Faria de Abreu

CoordenaçãoProcurador de Justiça Fernando Antônio Fagundes Reis

Coordenação Assessoria de Comunicação SocialMiriângelli Rovena Borges

Editora executivaNeuza Martins da Cunha

JornalistasEduardo Curi, Fernanda Magalhães, Flávio Pena, Giselle Borges e Neuza Martins da Cunha

Repórter fotográfico Alex Lanza

CapaMatheus Scalon Araújo

Projeto gráfico, arte e diagramaçãoRúbia Oliveira Guimarães

Revisão Oliveira Marinho Ventura

Revista Institucional do Ministério Público do Estado de Minas Gerais

Editada pela Assessoria de Comunicação Social – Núcleo de Imprensa

Tiragem: 2.000 exemplaresImpresso por Del Rey - Indústria gráfica & editora

Nossa capa

Crimes com e sem castigo

Arte: Matheus Scalon Araújo

Page 3: Revista Rede 20

EditorialO Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), especialmente nesta gestão do

procurador-geral de Justiça, Alceu José Torres Marques, está com as atenções voltadas para a atuação do promotor de Justiça criminal e para o enfrentamento da criminali-dade em todo o Estado. Nesse sentido, várias ações estão sendo promovidas, como seminários regionais e nacionais para discutir meios de fortalecer o perfil combativo do Ministério Público e parcerias e acesso a banco de dados para facilitar a persecução penal, bem como criação de órgão de combate e repressão a todo tipo de violência e crime.

Para contribuir nesta empreitada, a revista Rede dedica esta edição às discus-sões e reflexões sobre a área. Combate ao crime organizado, à lavagem de dinheiro, à pirataria; novidades na reforma do CPP; atuação do promotor de Justiça criminal; a corrupção no serviço público; a caótica situação do sistema penitenciário; o Direito Penal do Inimigo. Esses e outros temas, todos ligados à área criminal, compõem este exemplar da revista.

O desembargador Fausto Martin De Sanctis nos presenteia com uma entrevista em que conta sobre o combate à lavagem de dinheiro e aos crimes do colarinho branco, cooperação jurídica internacional, entre outros temas.

Corregedor do Ministério Público mineiro, por duas vezes, o procurador de Justiça Antonio de Padova Marchi Junior analisa a atuação do promotor de Justiça criminal e defende a teoria do garantismo penal.

Representantes do Ministério Público, da Magistratura, da Ordem dos Advogados, da Polícia Civil e do Legislativo apontam as deficiências e os desafios do Projeto de Lei n.º 8.045/2010, que institui a reforma do Código de Processo Penal (CPP) e que está em tramitação na Câmara dos Deputados.

O procurador de Justiça André Estevão Ubaldino Pereira e o juiz federal Jorge Gustavo Macedo Costa revelam os benefícios da ação integrada e as dificuldades para o combate ao crime organizado, que a cada dia fica mais sofisticado. A repor-tagem mostra ainda as inúmeras operações realizadas para desbaratar organizações criminosas.

A pirataria é apontada como um dos maiores desafios do Século 21. A promotora de Justiça de combate ao crime organizado Cássia Virginia Gontijo e o presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP), Edson Luiz Vismona, expli-cam que os recursos financeiros movimentados nessa prática são vultosos, alimentando a lavagem de dinheiro e a corrupção, bem como financiando outras práticas criminosas.

A corrupção anda solta também no setor público e na classe política. É o que demonstram os procuradores de Justiça da Procuradoria de Justiça de Combate aos Crimes Praticados por Agentes Políticos Municipais Elias Paulo Cordeiro e Márcio Gomes de Souza. A reportagem relembra parte da história do nosso país e reforça que a corrupção, o clientelismo e outras mazelas dessa natureza sempre permearam a Administração Pública.

Numa brilhante exposição, a professora Ada Pellegrini tenta encontrar uma ex-plicação para a situação caótica do sistema penitenciário no país, para a falta de estabelecimentos prisionais, para a situação dos presos que sofrem com todo tipo de desrespeito aos direitos humanos. Também opinaram na reportagem, sobre o tema os desafios e novidades na Lei de Execução Penal, os promotores de Justiça Joaquim José Miranda Junior e Rodrigo Iennaco.

Direito Penal do Inimigo, garantismo penal, impunidade a aplicação do Direito Penal no Brasil foram assuntos que mereceram a reflexão do procurador de Justiça e professor Rogério Greco e do promotor de Justiça Marcelo Cunha de Araujo.

Artigos sobre a redução da maioridade penal e homicídio sem cadáver, produzidos, respectivamente pelo promotor de Justiça Marcelo Cunha e pelo procurador de Justiça Antônio Sérgio Tonet abrilhantam a revista.

Outro pensador do Ministério Público de Minas Gerais, o procurador de Justiça Carlos Augusto Canedo Gonçalves Silva, numa parceria com o professor Humberto Leandro de Melo e Sousa, colabora com artigo O “flanelinha” no espaço da metrópole de Belo Horizonte: o curioso fenômeno da gestão de vagas de estacionamento em vias públicas por particulares.

Boa leitura.

Page 4: Revista Rede 20

4

ApresentaçãoNessa quadra em que a es-

truturação do Ministério Público é tema recorrente em todos os Es-tados da Federação, evidencia-se a necessidade de membros e ser-vidores assimilarem e incorpora-rem em suas rotinas profissionais conceitos de gestão e administra-ção de suas forças de trabalho. Noções – mínimas que sejam – de planejamento estratégico, análise de custos, compatibilização orça-mentária, aproveitamento racional de espaços, otimização e equilíbrio de atribuições dos variados Órgãos de execução, entre outras, passa-ram a fazer parte do cotidiano de todos nós.

E é bom que seja assim. Em garantia da construção de uma Instituição cada vez mais sólida e respeitada.

Não podemos, todavia, deixar-mo-nos encantar pelo sedutor ape-lo do conforto da modernidade em detrimento da postura que sempre foi e precisa continuar sendo o prin-cipal elemento de nossa identida-de institucional. Não devemos nos afastar do papel de legítimo titular da persecutio, que nos trouxe até aqui e forjou, ao longo de anos, o perfil de combatividade que ainda nos assegura ostentar a credibili-dade perante a sociedade destina-tária de nossos serviços.

Mas em tempos atuais, quan-do esta mesma sociedade passou a melhor conhecer e a conviver com nossa Instituição, relativamente no-vel, não podemos também transigir quando o assunto é a eficiência do Ministério Público, em qualquer que seja a área de atuação, mas prin-cipalmente enquanto identificada como instrumento de promoção de paz social e de repressão criminal.

Page 5: Revista Rede 20

5

E, em sendo assim, após concluirmos a Meta criminal, lançada com o objetivo de as-segurar a nomeação de analistas de Direito para todos os membros do Ministério Público de Minas Gerais com atuação na área criminal, estamos agora propondo um novo passo no sentido do fortalecimento da perfomance institucional na seara penal.

Longe do romantismo de outrora, estamos aceitando o desafio de abraçar um novo modelo de enfrentamento da criminalidade, organizada ou não, agregando à atuação de promotores e procuradores de Justiça as informações específicas disponibilizadas por uma central de inteligência dotada de estrutura suficiente à produção dos elementos de prova necessários, nem sempre constantes das investigações policiais.

A nova estrutura conta também com a orientação de coordenadorias especializadas, que servirão de apoio ao trabalho dos promotores de Justiça em todo o Estado, inclusive no que diz respeito à segurança individual, sempre com o propósito de buscarmos a efici-ência da Instituição.

Estamos, enfim, arrostando a impunidade. Não coadunamos com o papel de coadju-vantes que alguns poucos ainda insistem em nos reservar neste lamentável espetáculo em que se transformou o processo penal brasileiro e, conscientes de nossa capacidade, reivindicamos o espectro dedicado aos protagonistas desta infindável trama.

Estamos juntos e mais fortes. Um abraço.

Alex lanza

Page 6: Revista Rede 20

Antonio de Padova Marchi analisa atuação do promotor de Justiça criminal

Entrevista

Fausto De Sanctis fala sobre crimes fiscais, lavagem de dinheiro, corrupção, impunidade, cooperação jurídica internacional e dos desafios para se abarcar o dinheiro ilícito proveniente de todo e qualquer crime

8

Reportagem mostra a difícil missão de combater o crime organizado, a pirataria e como o MPMG e órgãos de repressão atuam contra as organizações criminosas

14

32

Sumário

Entrevista

Antonio Cruz/ABr

Alex lanza

Alex lanza

Page 7: Revista Rede 20

Matéria reflete sobre as falhas, conquistas e desafios do projeto de reforma do CPP19

Procuradores de Justiça dizem que a corrupção no setor público e na política brasileira, além de não reduzir, fica mais sofisticada

26

Direito Penal do Inimigo, garantismo penal e devida aplicação das leis são temas debatidos em reportagem por procurador e promotor de Justiça54

Jurista e promotores de Justiça avaliam a situação do sistema penitenciário brasileiro e as mudanças relativas à liberdade provisória, uso das tornozeleiras e outras inovações que estão sendo propostas

50

Sérgio Tonet coloca em discussão sobre a possibilidade de réusserem condenados por crime de homicídio mesmo com odesaparecimento do cadáver 62 Opinião

Carlos Canêdo Gonçalves e Humberto Leandro de Melo questionam sobre os aspectos mais controversos da relação cotidiana entre flanelinhas, usuários de vagas de estacionamento e agentes públicos locais64 Artigo

A redução da maioridade penal: vamos levar a diferenciação social aos adolescentes? Essa questão é abordada em artigo do promotor de Justiça Marcelo Cunha de Araújo68 Artigo

Filippetto lança livro sobre lavagem de dinheiro69

Page 8: Revista Rede 20

8

Entrevista

Fausto De Sanctis

Antonio Cruz/ABr

Desembargador fala sobre o combate à lavagem de dinheiro, crimes do

colarinho branco, cooperação jurídica internacional, entre outros temas

Page 9: Revista Rede 20

9

Fausto Martin De Sanctis é desembargador do Tribunal

Regional Federal da 3ª Região, doutor em Direito Penal pela

Universidade de São Paulo (USP), especialista em Processo

Civil pela Universidade de Brasília (UnB) e escritor. De Sanctis,

quando juiz da 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, ganhou

notoriedade e destaque na imprensa nacional ao combater

crimes do colarinho branco e de lavagem de dinheiro, como

no caso da Operação Satiagraha, que decretou duas vezes a

prisão do banqueiro Daniel Dantas, do Banco Opportunity,

investigado por crimes financeiros, entre outros.

O senhor, como autor e coautor de vários livros, entre eles o intitulado Combate à lavagem de dinheiro: teoria e prática, considera que as legislações brasileiras evoluíram a ponto de alcançar o dinheiro proveniente de qualquer atividade considerada ilícita?

A legislação brasileira evoluiu, mas não o suficiente, já que não adentra em pontos importantes e recomendados internacionalmente. O projeto de lei que altera a Lei n.º 9.613/1998 tenta aprimorar o sistema, abolindo o rol de crimes antecedentes, o que per-mitirá abarcar o dinheiro ilícito proveniente de todo e qualquer crime.

Pode-se dizer que o Brasil está preparado para o efetivo combate ao crime de lavagem de dinheiro?

Enquanto no país se discute tempo de duração de interceptações telefônicas, no ex-terior a questão está em suprir o Estado de meios que respondam à altura do poder das organizações criminosas, que frequentemente acabam tendo que praticar a lavagem de dinheiro de maneira extremamente sofisticada. Sem se descuidar dos direitos fundamen-tais, por exemplo, debate-se qual o grau de participação de um agente infiltrado (qual a possibilidade da prática de modalidade delitiva), ações encobertas, ou seja, a utilização das chamadas técnicas especiais de investigação, que são especiais porque a investigação do crime organizado requer sua utilização, dadas suas especificidades e complexidades. Fora isso, denúncias anônimas são estimuladas, tanto que já estão previstas em convenções internacionais.

Page 10: Revista Rede 20

10

Os tratados e acordos internacionais de que o Brasil participa para tentar combater a movimentação de recursos oriundos de atividades ilícitas feitas por meio dos sistemas financeiros são eficientes?Qual a importância desses acordos para o senhor?

Hoje o regramento e o tratamento sobre as informações acerca de atividades financeiras, e isso vale para o Brasil, são bastante presentes, preocupando as autoridades quanto às atividades não financeiras, cujos controles ainda são tímidos, quando não ausentes. É muito importante que os países se unam, e aí o papel dos tratados e convenções se ressalta, para que nenhum Estado se torne uma porta aberta à criminalidade ou um paraíso penal.

O juiz, às vezes, precisa buscar em outros países provas da prática de lavagem de dinheiro ocorrida no Brasil? Como funciona essa prática?

A Cooperação Jurídica Internacional é o instrumento adequado para que rapidamente provas sejam produzidas. Acontece que, quando se veri-ficam as alterações sugeridas ao Código de Processo Penal, há um enorme retrocesso porquanto não há o tratamento adequado (ainda se disciplinam tão somente rogatórias), e adentra-se num caminho perigoso: a criação do juiz das garantias e a figura do juiz autômato, passível de orquestração. Falo isso pelo fato de a busca da verdade e, consequentemente, a própria dimensão da missão e relevância do Poder Judiciário terem sido deixadas em segundo plano.

Quais as inovações e os desafios para esse trabalho?

Os desafios são muitos. Em termos internacionais, é consenso cobrar dos paraísos fiscais o cumprimento das disposições que determinam o for-necimento de informações às autoridades processantes internacionais, ou seja, fazer valer compromissos ético-jurídicos sobre os econômicos, inclusi-ve acerca do beneficial ownership e dos seus controladores. E mais. Exigir cadastramento completo por atividade e por tipo de todas as organizações não governamentais (ONGs) no país, com a obrigação de estas guardarem documentação relativa às transações realizadas aqui e no exterior; incrimi-nar a não comunicação de operação financeira, o seu retardamento, ou a prestação incompleta ou falsa de comunicação obrigatória, uma vez que o sistema de comunicação obrigatória constitui o ponto central do combate da lavagem de dinheiro; incluir como autor desse crime as pessoas jurídi-cas, atendendo o que estipulam a Convenção de Palermo da Organização das Nações Unidas (ONU) contra o Crime Organizado Transnacional (ar-tigo 10), a Recomendação do Financial Action Task Force/Groupe d’Action Financière (FATF/Gafi) n.º 2, “b”, e a Convenção ONU contra a Corrupção (artigo 26); especializar turmas criminais nos Tribunais Regionais Federais em face do sucesso alcançado com as Varas de Lavagem de Dinheiro.

Page 11: Revista Rede 20

11

O senhor considera, então, que falta comprometimento?

O Brasil ainda é considerado um terreno fértil para a lavagem de dinheiro?

Muito se tem falado sobre o Brasil, lamenta-velmente, como país destinatário de “lavadores”. O fato é que as dimensões continentais, a crise moral, a corrupção, os limites de punição são elementos propi-ciadores da permissibilidade delitiva da qual é objeto nosso país. Além disso, aplica-se uma jurisprudência benevolente e ímpar ao delito econômico-financeiro na qual instrumentos constitucionais, como o habeas corpus, têm sido, com sucesso, manejados de forma tal que, mesmo não havendo violência ou coação à liberdade de locomoção e não se tratando de nulidade manifesta, se obtém sistematicamente a paralisação de feitos.

No Brasil, parece que, ao se repudiar o Direito Penal do Inimigo, se caminha para o Direito Penal do Amigo. A impunidade, como se sabe, estimula a criminalidade à medida que gera sensação de que o crime compensa, e muito. O Brasil deve rever o pro-cesso penal, e os órgãos do Estado, incluindo o Poder Judiciário, todo o seu sistema, de forma a ser simpli-ficado desde que não seja prejudicada a defesa. Um sistema recursal enxuto, que possibilite uma revisão do julgado e naquilo que for essencial.

Alguns autores acreditam que a lavagem de dinheiro é o oxigênio da criminalidade organizada.O senhor concorda com isso?

O crime organizado não se restringe à crimina-lidade econômica. Com a globalização, com as eco-nomias abertas e transfronteiriças, o delito se inter-nacionalizou e, com ele, a “legitimação” do produto do delito. Uma das características criminológicas essenciais na lavagem de dinheiro constitui a ligação necessária com o crime organizado, provocando notá-vel diversidade, no plano empírico, das condutas que aí se podem cometer.

O que já foi feito para mudar essa realidade? Ou o que precisa ser feito, visto que o crime organizado estácada vez mais sofisticado?

A Lei sobre o Crime Organi-zado (n.º 9.034, de 3 de maio de 1995) está ultrapassada, já que apenas retrata, timidamente, os meios operacionais para a preven-ção e repressão das ações prati-cadas por organizações ou asso-ciações criminosas ou quadrilha, levando à conclusão de que haveria conceitos distintos. Entretanto, a Convenção ONU de Palermo sobre o Crime Organizado Transnacional, devidamente internalizada no Bra-sil desde 2003, define organização criminosa como sendo grupo es-truturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo, que atua concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na conven-ção, com a intenção de obter, dire-ta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício ma-terial.

Não existe uma tipificação de “crime organizado”, cuja omissão acaba sendo suprida, invariavel-mente, pelo delito de quadrilha ou bando, o que é insuficiente.

Mas há características?

Uma das características crimi-nológicas da organização criminosa constitui-se justamente na conexão estrutural ou funcional com o po-der público ou com o poder políti-co, com alto poder de intimidação, além da hierarquia estrutural, pla-nejamento empresarial, claro ob-jetivo de lucros, divisão territorial das atividades, conexões local, re-gional, nacional e internacional com outras organizações etc.

Page 12: Revista Rede 20

12

Quais são as principais tipologias do crime de lavagem de dinheiro?

Estudam-se com muita frequência as tipologias. Hoje as mais conhecidas são o uso de jogos de azar, do futebol, da internet, de offshores, entre outras.

Quais os principais meios de investigação presentes na legislação brasileira que podem ser utilizados na persecução desses crimes?

O senhor considera que é preciso sufocar o poder econômico de uma organização criminosa para se ter um resultado eficiente?

O surgimento da lavagem de di-nheiro como crime buscou justamente o asfixiamento de empresas criminosas com o confisco de bens, permitindo rom-per com o seu estímulo financeiro. É ne-cessário que esse conceito esteja bem presente para viabilizar o sequestro e a apreensão de bens, quando não há justi-ficativa razoável para a sua manutenção em poder de eventuais criminosos.

O senhor ganhou notoriedade quando esteve à frente de alguns dos mais rumorosos casos de crimes fiscais, lavagem de dinheiro e corrupção no país. Como o senhor vê o julgamento desses crimes no Brasil?

O sistema judiciário brasileiro deve espelhar o esforço individual de muitos juízes em ver bem decididas estas ques-tões, reafirmando a igualdade da lei para todos e inibindo a criação de privilégios inadequados. Precisamos avançar, já que estamos muito longe do ideal. Se desejamos um país de primeiro mundo, temos que desejar, ter e aplicar uma legislação correspondente.

Ainda há muita impunidade? Por que, quando se pede no Brasil senhas de quebra dos sigilos telefônico e bancário, por exemplo, há tanta polêmica?

O investimento em atividades legítimas, até por um motivo tão pouco nobre como a necessidade de lavar os capitais ilicitamente obtidos, é um elemento complicador, porquanto se faz necessário bem separar o que é legal e o que não é. A par disso, o legislador brasileiro contemplou um processo penal moroso, com recursos anacrônicos, e existe uma cultura no país de que o Estado, ao agir assim, o faz não como decorrência de um bem-estar geral, mas como inimigo do cidadão.

O que o senhor sugere para alterar esse quadro?

Ora, sem conceder garantias, por exemplo, à Polícia Federal, com a insti-tuição da independência funcional e or-çamentária, compromete-se o seu legíti-mo funcionamento. Tal medida a livraria de eventuais ingerências políticas. Tam-bém se impõe o estabelecimento de cri-térios bem definidos que não permitam, nem indiretamente, o comprometimento da credibilidade das nomeações de mi-nistros para os tribunais superiores e de conselheiros para os tribunais de contas, bem como de advogados e membros do Ministério Público (Federal ou Estadual) ao quinto constitucional.

A legislação brasileira prevê interceptações (telefônicas e de dados de informática), quebra de sigilos, ação controla-da, denúncia anônima. Mas o mais importante seria a juris-prudência se firmar para estabelecer os padrões necessários que permitam o combate efetivo do crime organizado. Hoje, quando assistimos ao Supremo Tribunal Federal legitimar muitas medidas dessa natureza em diversos aspectos, tri-bunais inferiores acabam por desqualificá-las, criando ins-tabilidade e insegurança jurídica. Não se pode decidir sem olhar o todo.

Page 13: Revista Rede 20

13

No que resultam essas atitudes?

Permite-se, com isso, toda sorte de manipulação processual de molde que sis-tematicamente os resultados são a inépcia da denúncia, a prescrição ou o reconheci-mento de nulidade. Não se pode negar a realidade, muito menos a lei. A necessidade ético-jurídica de buscar a verdade não pode ser esquecida. Qualquer interpretação exige hoje, assim, a conjugação de valores essenciais que não se limitam aos direitos individuais. Aliás, quanto a estes, não se pode deixar de considerar, na esteira da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789, o direito à segurança como uma garantia vital.

O que o senhor propõe?

Devem-se reconhecer todos os direitos, com visão conciliadora, e não minima-lista, de forma a não restarem tolhidos valores institucionais, sob pena de deslegi-timação dos poderes públicos. Em muitas organizações com finalidades lícitas, as infrações deixam por vezes de ser incidentais, tornando-se quase rotineiras. O pacto constitucional erige a moralidade e a eficiência como um dos pilares da República.

A ação de improbidade administrativa pode ser considerada um instrumento novo no país. Como o senhor vê a atuação do Ministério Público nessa área de combate à corrupção?

A sua importância é bastante reconhecida. O Ministério Público exerce um controle sobre a discricionariedade da polícia muito importante e deve se empenhar, em todas as instâncias, para ver abraçadas suas teses. Acredito que, se o mesmo membro do Ministério Público tivesse atribuição para crimes de corrupção e para as ações de improbidade administrativa, avançaríamos no combate à corrupção.

O senhor pode fazer uma análise da atuação do Judiciário, em todas as instâncias, do CNJ, do CNMP e também doMinistério Público?

Importante frisar que não se pode ter o monopólio de informações de importân-cia. Deve haver uma coordenação importante pelos órgãos incumbidos do combate. Por isso, Polícia, Ministério Público, Receita, Banco Central, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), entre outros, devem centrar suas ações, sem vio-lação de suas missões básicas e sem afetação. Isso vale também para o Judiciário, aí incluindo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e também o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Deve-se ter sempre em mente qual o real papel de cada qual e o que todos podem fazer para uma Justiça que se qualifique como social e igualitária.

Page 14: Revista Rede 20

14

O procurador de Justiça e ex-corregedor-geral do Ministério Público de Minas Gerais

(MPMG) Antônio de Padova Marchi Junior analisa a atuação do promotor de Justiça

criminal e lamenta a frequência com que “o princípio da legalidade tem sido atropelado

nos denominados crimes de bagatela por um ingênuo propósito de alcançar a punição em

homenagem a uma segurança social que nunca se concretiza”. Ele defende que a teoria do

garantismo penal deva nortear a atuação do promotor de Justiça. Para Padova, ser garantista

não é uma opção, é um dever. Veja essas e outras ponderações do procurador de Justiça,

que também é mestre e doutorando em Ciências Penais pela Universidade Federal de Minas

Gerais (UFMG) e professor de Direito Penal do Curso de Direito do UNIBH. Antônio de Padova

foi corregedor-geral do MPMG por duas vezes.

Entrevista

promotor de Justiça criminal Padova analisa atuação do

Procurador de Justiça diz que a liberdade individual, a

dignidade pessoal e a democracia participativa devem ser o

estandarte da atividade ministerial

Por Neuza Cunha

Page 15: Revista Rede 20

15

Como o senhor, que já foi corregedor do MP, vê a atuação do promotor de Justiça, especialmentena área criminal?

A atuação do promotor de Justiça criminal não tem acompanhado as mudanças sociais e, na essência, permanece a mesma desde o final da primeira metade do século passado, quando entraram em vigor o Código Penal e o Código de Processo Penal. Trata-se, na verdade, de uma mera função de órgão acusador, como se cada um atuasse isola-damente, propondo ações penais sem nenhum outro objetivo senão a condenação do réu.

Contribuem para isso o reconhecido déficit no número de promo-tores de Justiça e o volume exacerbado dos processos que se acu-mulam nos juízos criminais, o que transforma o cotidiano do órgão de execução numa interminável luta contra as estatísticas, favorecendo a reprodução de denúncias sem a menor preocupação com o elemento diferenciador que remarca a singularidade de cada processo criminal.

Alex lanza

Page 16: Revista Rede 20

16

O que o senhor sugere para alterar esse quadro?

No atual estágio de desenvolvimento social, a necessidade premente da ordem normativa jurídica brasileira é tornar mais eficiente o combate aos atos de corrupção praticados por ocupantes de cargos públicos, bem como enfrentar a criminalidade ma-croeconômica e do crime organizado, fatores esses que representam verdadeira ameaça à democracia.

Ao mesmo tempo, no outro polo de combate à seletividade do sistema penal, o promotor de Justiça tem o dever de promover as garantias individuais a fim de assegurar maior racionalidade ao poder pu-nitivo estatal.

Impressiona o número de acusados presos que poderiam responder soltos ao processo por crimes patrimoniais de pequena monta, ainda mais num país acostumado a seguidos escândalos de ordem finan-ceira.

A nova ordem de atuação ministerial no proces-so penal não pode se contentar com a simples con-denação do réu, mas com a concretização de valores e princípios.

Em conclusão, o Ministério Público é, ao mesmo tempo, titular da Ação Penal Pública e órgão de fis-calização essencial à democracia, motivo pelo qual a legitimidade do Estado constitucional da democracia participativa e a concretização dos direitos funda-mentais dependem de sua correta atuação.

Isso significa que a Justiça continua condenando o ladrão de galinhas e se esquecendo dos crimes cometidos por pessoas de colarinho branco? O que falta para que os grandes crimes não permaneçam impunes?

Gostaria de fazer duas observações. A primeira: não se pode debitar à atuação do Ministério Público nem à de nenhuma outra carreira jurídica a respon-sabilidade pela impunidade verificada nos crimes pró-prios das classes dominantes, mas ao próprio siste-ma, que torna a pessoa mais ou menos vulnerável à sanção penal desde a sua classe social. A legislação criminal, por exemplo, prevê sanções muito mais gra-

No que resulta essa situação?

Tal prática favorece a seletividade do sis-tema penal ao permitir condenações em massa dos autores de delitos comuns e, de maneira oposta, grande impunidade em relação aos crimes praticados mediante atos de corrupção e/ou decorrentes da criminalidade organizada.

O promotor de Justiça com atribuições na seara criminal não pode perder de vista a importância do seu papel para o fortalecimen-to da ordem democrática, devendo direcionar sua atuação à consecução de objetivos que vão além da procedência do pedido de condenação.

Quais objetivos seriam esses?

Quando se pensa no futuro, não se ima-gina uma sociedade sem o absoluto respeito a três direitos fundamentais do gênero humano: a liberdade individual, a dignidade pessoal e a democracia participativa.

Sob essa ótica, o trabalho do promotor de Justiça ganha outra dimensão, já que nenhum desses direitos absolutos logrou êxito em se efetivar plenamente no Estado brasileiro, ape-sar de encontrarem expressa previsão consti-tucional. Deveriam, pois, ser o estandarte da atuação ministerial.

Todavia, assiste-se impassível ao esgo-tamento da teoria da separação dos poderes, cujo aspecto formalista e incrível dificuldade para ser levada à prática acabam permitindo que um poder prevaleça sobre outro, colocando em risco a própria democracia.

Como funciona essa tripartição?

É o que acontece hoje no Estado brasilei-ro, onde o Poder Executivo exerce enorme in-fluência sobre o Poder Legislativo, na forma de indecorosa barganha política, e também sobre o Poder Judiciário, dada a forma de composi-ção dos tribunais superiores.

Além do mais, a eficiência estatal, princi-pal objetivo da tripartição de poderes, jamais foi efetivamente alcançada. O que se observa é a manutenção de velhos privilégios a grupos específicos da sociedade e o consequente in-cremento da desigualdade entre a população.

Page 17: Revista Rede 20

17

Então faltam soluções realmente justas? Exemplifique.

Causa perplexidade, por exemplo, a frequência com que o princípio da legalidade, embora formalmente re-cepcionado tanto na Constituição da República como no primeiro artigo do Código Penal, tem sido atropelado nos denominados crimes de bagatela por um ingênuo propósito de alcançar a punição em homenagem a uma segurança social que nunca se concretiza.

Indicadores fornecidos pelo Departamento Peniten-ciário Nacional registraram, no primeiro semestre deste ano, uma população carcerária de 49.137 presos em Mi-nas Gerais, sendo 11.133 custodiados em estabeleci-mentos ainda vinculados à Polícia Judiciária, e 38.004 já integrados no sistema penitenciário.

Desses últimos, 20.793 – quase dois terços do total sob a responsabilidade da Secretaria de Estado de De-fesa Social – são presos provisórios.

Além disso, apenas 109 presos têm ensino superior completo e outros 11 cursaram pós-graduação. A grande massa carcerária – mais de 26 mil presos – não possui o ensino fundamental completo.

Outro item que chama a atenção é o grande número de sentenciados por crimes patrimoniais (17.146) contra inexpressivos sentenciados por crimes contra a Adminis-tração Pública (19).

É preciso, pois, que a atuação do Ministério Públi-co seja voltada para uma solução penal mais adequada, justa e equilibrada, denotativa de que outras frentes podem e devem ser estabelecidas para o controle da criminalidade.

ves para os crimes violentos, geralmente praticados por quem não possui instrução, do que para aqueles execu-tados mediante fraude, próprio de quem desfruta de re-finada inteligência e posição social privilegiada. Também a qualidade da defesa técnica, a histórica tolerância do brasileiro com os desvios de dinheiro público, o confor-mismo com os delitos cujos resultados não são divisa-dos de maneira imediata, entre outros, podem justificar a aplicação desigual da lei penal. A segunda: os princípios penais de garantia muitas vezes encontram resistência por serem considerados privilégios de bandidos.

Nada mais equivocado.Na verdade, quando o promotor de Justiça nega os

valores constitucionais, acaba por conferir certa iniqui-dade ao Direito Penal, além de favorecer a má distribui-ção da pena (seletividade). Afinal, nem todo denunciado conseguirá escapar da condenação, e casos semelhantes terminarão por serem decididos de maneira diversa.

O senhor entende que a teoria do garantismo penal deveria nortear a atuação do promotor de Justiça?

Embora essa não seja uma posição de consenso, é como considero, até porque ser garantista não é uma opção do membro do Ministério Público, mas um dever ao qual ele jurou solenemente fidelidade no ato de sua posse. Não tenho nenhuma dúvida de que, se assim fosse, o Ministério Público teria o poder de modificar todo o sistema penal, indepen-dentemente da atuação dos demais atores, como o advogado, o juiz, o defensor público e o delegado de Polícia.

Afinal, num sistema acusatório puro – ideal que considero mais importante para a classe do que a investigação criminal –, a pro-moção de arquivamento do inquérito policial e o pedido de absolvição no curso do processo, quando adotados pelo promotor de Justiça na qualidade de titular da Ação Penal Pública, vincularia o próprio Poder Judiciário.

Para o senhor, a teoria do garantismo ainda não é bem aplicada ou entendida?

Uma compreensão equivocada do real significado da teoria do garantismo levou à concepção pejorativa do emprego do vocá-bulo, utilizado não raras vezes para rotular negativamente os promotores de Justiça pre-ocupados não apenas com a acusação, mas também com a correta aplicação da lei, como se a atuação de todos não se submetesse à observância dos princípios constitucionais.

Conforme observado por Ferrajoli, na cultura política e no senso comum, prevalece frequentemente o obséquio ao direito vigente e aos seus modos – mesmo ilegais – de fun-cionamento prático, pelo que a perspectiva garantista requer a dúvida, o espírito crítico e a incerteza permanente sobre a validade das leis e de suas aplicações.

Page 18: Revista Rede 20

18

Nesse sentido, quais são as implicações dessa nova lei que modificou as regras da prisão e da liberdade provisória?

Aqui o próprio legislador deixou registrada a opção pelo garantismo penal na exposição de motivos do anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal, transformado no Projeto de Lei n.º 156/2009 no Senado, cujo título refe-rente à prisão, medidas cautelares e liberdade provisória foi em boa parte reproduzido no tex-to da nova lei.

Naquela oportunidade, afirmou o legisla-dor que as garantias individuais não são favo-res do Estado e sua observância é exigência indeclinável, apontando o garantismo conse-quente como pauta mínima do Estado Demo-crático de Direito.

Se as mudanças anunciadas pelo novo texto processual vão acontecer ou não, depen-derá da forma de atuação dos operadores do Direito, especialmente do promotor de Justiça. O Legislativo teve o mérito de criar instrumen-tos para que fossem respeitados os princípios penais e processuais de garantia. Resta agora torná-los efetivos.

Na sua análise, quais são os principais destaques dessas novas regras?

A primeira inovação merecedora de destaque é o tratamento destinado à prisão preventiva, que deixou de ser a medida cautelar para converter-se em uma das medidas cautelares possíveis. A nova lei foi generosa ao estabelecer a prisão domiciliar e outras nove medidas cautelares diversas da prisão preventiva, entre elas a fiança sob nova roupagem, medidas essas que poderão representar uma significativa redução da prisão no curso do processo. Nesse sentido, vale perceber que o princípio da presunção de não culpabilidade foi tomado como diretriz principal a ser perseguida dora-vante, tanto que a medida extrema só será tomada se as demais se mostrarem inadequadas ou insuficientes.

Além do mais, a prisão em flagrante fica sem efeito caso não seja motivada-mente convertida em prisão preventiva.

E quanto à prisão temporária?

Outro aspecto importante é o ca-bimento da prisão temporária no curso do processo, pois até então só era per-mitida na fase do inquérito policial. Por outro lado, perdeu-se a oportunidade de conferir maior precisão às hipóte-ses autorizadoras da prisão preventiva, mantendo-se as expressões que tantas discussões têm produzido.

Desse modo, o conceito de ordem pública, os fatos prejudiciais à instru-ção criminal e os que colocam em risco a aplicação da lei penal continuaram in-certos e vinculados ao poder discricio-nário do juiz, afastando-se do princípio da estrita legalidade.

Mais do que nunca, portanto, o pro-motor de Justiça deve ajustar sua atu-ação aos princípios penais de garantia para que os fins almejados pela nova lei sejam alcançados.

Então ainda há dúvidas para a sua aplicação?

O sistema penal brasileiro ainda não ex-perimentou o garantismo em sua plenitude, e o titular da Ação Penal Pública tem muito a ver com esse quadro. Não é demais esperar que o promotor de Justiça requeira a prisão processual somente nos casos de real neces-sidade; que postule condenações condizentes com a culpabilidade do sentenciado; que prefira as penas restritivas de direitos em detrimento das privativas de liberdade, bem como o regi-me menos gravoso frente ao regime fechado e, agora, com o advento da lei n.º 12.403/2011, as medidas cautelares à prisão preventiva.

Esse é o espírito que, no meu modo de pensar, deveria nortear a atuação do Ministério Público na seara criminal.

Page 19: Revista Rede 20

Por Eduardo Curi

Reforma do CPP causa empolgação e críticas

Instituído por Getúlio Vargas, código foi remendado durante décadas,

e operadores do Direito dizem que é preciso exercício de interpretação

para que seja aplicado de forma constitucional

Os atores do sistema de

Justiça criminal estão com

sentimentos mistos de

esperança e desconfiança.

Está em tramitação na Câmara

dos Deputados o Projeto de

Lei n.º 8.045/2010, que institui

a reforma do Código de

Processo Penal (CPP).

19

Page 20: Revista Rede 20

20

A reforma é estrutural e vem para substituir totalmente o Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941, redigido por Francisco Campos (que também redigiu o Código Penal e o Ato Institucional de 9 de abril de 1964, que “legitimou” a ditadura militar) e insti-tuído por Getúlio Vargas durante a vigência do Estado Novo. “O simples fato da legitimidade de quem o pro-pôs já justificaria uma reforma para ser aprovada pelo Congresso Nacional”, comenta o desembargador da 4ª Câ-mara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais Herbert José Almeida Carneiro.

O código - com influência fascis-ta evidente - tem cunho inquisitorial e veio gerando conflitos para a sua aplicação ao longo do tempo, princi-palmente, após a Constituição Federal de 1988. Vários remendos tentaram sanar esse problema, o último deles aprovado recentemente pelo Congres-so Nacional com a Lei n.º 12.403, que trata sobre prisão processual, fiança, liberdade provisória e medidas caute-lares. “O CPP vem sobrevivendo com uma série de dificuldades de todas as partes”, diz o procurador de Justiça e professor de direito processual pe-nal Epaminondas Fulgêncio Neto, que também foi procurador-geral de Jus-tiça entre 1995 e 1999, no Ministério Público de Minas Gerais.

“Com o tempo, diversas leis fo-ram alterando dispositivos e fazendo, de certo modo, uma colcha de retalhos no CPP para permitir que ele fosse mais atualizado”, diz o advogado cri-minal Rodrigo Otávio Pacheco. Além dessas reformas, os juristas precisam fazer um exercício de interpretação do código para que consigam aplicá-lo de forma constitucional. “O que eu creio na realidade é que trabalhar com o CPP no estágio atual do Estado De-mocrático de Direito exige de todos os atores do sistema de Justiça criminal a sua releitura à luz da Constituição Federal de 1988”, diz o delegado de Polícia da Superintendência de Investi-gações e Polícia Judiciária Daniel Bar-celos Ferreira, que completa dizendo que “é preciso uma reforma estrutural no processo penal. Uma reforma que venha a modificar a coluna vertebral do processo penal brasileiro”.

Para o delegado, esses remendos são muito prejudiciais, porém, ainda assim, são importantes para adaptar a lei à realidade atual do país. O advoga-do Rodrigo Otávio dá um exemplo prá-tico sobre a necessidade de adaptação das normas à realidade, com os prazos do inquérito policial, que precisa ser concluído em dez dias se o acusado estiver preso, e em 30, se ele estiver solto. “Hoje nós sabemos que a rea-lidade dificilmente nos proporciona a possibilidade de término de um inqué-rito policial com esse prazo”, diz.

“O atual CPP, concebido duran-te a ditadura do Estado Novo, mes-mo após as grandes mudanças feitas, continua tendo viés inquisitorial. As reformas pontuais tiraram do CPP a sistematicidade que se espera de todo código. Falta harmonia ao código. Além de vários dispositivos que não estão em conformidade com a Cons-tituição. A única forma de resolver isso é com um novo CPP”, diz o senador da República Demóstenes Lázaro Xavier Torres, que é presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado e da Comissão que está rees-crevendo o Código de Processo Penal.

Nova proposta

para o CPP

Uma das principais mudanças previstas com a reforma é a transi-ção para o sistema acusatorial. Nele, o juiz não poderá mais requisitar a produção de provas para suprir even-tuais falhas na fase de investigação. “O [novo] CPP apresenta uma coisa notável, a limitação do juiz em produzir provas. Ao juiz não era dado mesmo produzir provas que pudessem suprir uma eventual deficiência do Minis-tério Público, ele estaria produzindo provas com objetivos condenatórios”, comenta Epaminondas Neto. Já Her-bert Carneiro explica que, atualmente, o CPP tem caráter inquisitorial e isso é incompatível com os direitos e garan-tias previstos na Constituição de 1988. “No processo acusatório, o juiz é mui-

Page 21: Revista Rede 20

21

Vítima ganha

capítulo à parte

“Eu destacaria a preocupação do projeto com a vítima”, afirma o procurador de Justiça Epaminon-das Fulgêncio Neto. Ele explica que o conceito de preocupação com a vítima foi incorporado ao código a partir das discussões trazidas pela Lei Maria da Penha. “A preocupa-ção sempre foi com o réu”, comple-ta o procurador de Justiça.

Conceito inovador no direito penal brasileiro, a vítima, agora, tem um capítulo à parte no códi-go e passa a ter vários direitos, ganhando uma atenção do Estado muito maior do que no atual sis-tema. Quem sofrer um crime será comunicado das movimentações do inquérito policial, assim como da soltura de seu algoz. Também es-tão previstas medidas de amparo social, como assistência financeira e psicológica para as vítimas.

O novo CPP procurou dar tratamento mais digno à vítima, o que inclui dar ciência a ela das

intercorrências processuais”

to mais imparcial”, diz Herbert, ao comparar com o fato de que hoje o juiz pode resolver um processo sozinho, produzindo provas sem a participação das partes.

Daniel Barcelos também co-memora a mudança. Ele explica que a investigação policial irá fornecer dados tanto para a defesa quanto para a acusação, dando a “paridade de armas”, pilar do sistema acusa-tório e necessária para o trabalho de ambas as partes. Ele completa que essa mudança permitiria, inclu-sive, certa medida de contraditório já no inquérito, desde que não in-viabilize a própria investigação – como em um procedimento de escuta telefônica em que não seria razoável intimar a parte investigada para que ela se manifeste sobre o ato.

O senador Demóstenes afirma que essa foi uma questão bastante discutida. “O novo CPP procurou dar tratamento mais digno à vítima, o que inclui dar ciência a ela das intercor-rências processuais”, diz. Ele considera salutar essa medida. “É certo que em alguns casos a vítima ficará preocupada, como quando souber que o ladrão que praticou contra ela um roubo está novamente nas ruas”, completa.

Agência Senado

Demóstenes Torres

Page 22: Revista Rede 20

22

Juiz das garantias – é melhor para o cidadão?

O propósito é o mais nobre, garantista econstitucional possível, mas para a nossa realidade eu acho um tanto quanto ainda distante”

“Eu não tenho dúvida disso”, sentencia Herbert Carneiro, ecoado por Epaminondas: “Eu acho notá-vel. A nós, do Ministério Público, interessa e muito.” Apesar da empolgação, a medida – que prevê um juiz atuando na fase de inquérito e outro na de julgamento - vem sofrendo críticas em virtude da sua implemen-tação, tendo o Congresso Nacional sido avisado dos problemas pelo Conselho Nacional de Justiça.

Um dos empecilhos detectados é o fato de cer-ca de 40% das comarcas do país, em nível estadual, serem de vara única, ou seja, possuírem apenas um juiz, encarregado de toda a jurisdição, cível e criminal. Com isso, quando um juiz atuasse em uma causa na fase de inquérito, ficaria impedido de julgá-la, cau-sando mais demora e despesas e aumentando o risco de crimes de menor potencial ofensivo prescreverem antes do julgamento.

Demóstenes Torres tem uma visão mais otimista da situação: “Não há razão para esse descontenta-mento. O juiz que trabalha sozinho em uma comarca goza férias, tira licença médica e usufrui todos os di-reitos que os seus colegas que atuam em comarcas com mais de um juízo. E, nos seus afastamentos e im-pedimentos, quem o substitui? O substituto automáti-co, ou seja, o mesmo que exercerá o papel de juiz das garantias.” Além disso, “vejo como positivo o fato de o juiz que teve contato com a investigação preliminar não presidir a instrução processual. Isso, certamente, preserva a imparcialidade do juiz”, ressalta.

Mas, apesar dos problemas operacionais, se efe-tivamente implantada, a medida irá tornar os julga-mentos mais céleres, como acredita o desembargador Herbert Carneiro: “Se tivéssemos, nas nossas quase 4.000 comarcas, dois juízes em cada uma delas, eu diria ‘aplica que isso vai dar certinho, vai ser uma beleza’, mas não é a nossa realidade. O propósito é o mais nobre, garantista e constitucional possível, mas para a nossa realidade eu acho um tanto quanto ainda distante.”

Já há experiências no sentido de se ter dois juízes na causa. Em algumas comarcas mais bem es-truturadas, existem varas específicas para cuidar dos inquéritos. Nessas varas, o juiz não atua na instru-ção criminal, apenas analisa a legalidade dos atos de investigação, como pedidos de prisão preventiva ou escuta telefônica dos acusados.

Para Rodrigo Otávio, a medida é uma faca de dois gumes. Ao mesmo tempo que o juiz sentencian-te não estaria contaminado por ter acompanhado as investigações e, quiçá, ter formado uma convicção sobre o acusado – qualquer que seja, inocente ou cul-pado –, o advogado considera que um juiz que acom-panhou todo o processo de investigação estaria mais bem informado sobre o caso. Com isso, daria uma decisão mais justa e, caso a sentença fosse vicia-da, haveria a possibilidade de se recorrer ao tribunal, onde a turma, composta de três desembargadores, daria uma decisão efetivamente isenta.

TJMG

Herbert Carneiro

Page 23: Revista Rede 20

23

Delegado de Polícia, primeiro juiz da causa

O novo código irá alçar o delegado de Polícia à condição de primeiro juiz da causa. O jargão, usado pela Polícia Civil, é explicado por Daniel Barcelos: “O delegado de polícia é aquele operador do direi-to que vai realizar, ainda no momento de tormenta e tensão emocional em relação ao acontecido, a primeira adequação jurídica do fato ao Direito, e não é possível que essa adequação seja feita como era antes de 1988, partindo do pressuposto de que o investigado ou preso em flagrante era culpado. Hoje nós partimos de uma premissa absolutamente inversa”, diz. Para Daniel, ao se fazer uma releitu-ra do atual CPP, é possível alçar o delegado a tal condição, mas com a reforma isso será trazido de forma literal.

O delegado poderá analisar eventuais descri-minantes (fatores circunstanciais que tornam legíti-ma uma conduta tipificada como crime), permitindo, inclusive, que a autoridade policial decida pelo não encarceramento, mesmo se a prisão ocorrer em fla-grante. “Nós sempre defendemos a posição de que o delegado, no momento da prisão, tem a obrigação de analisar se existem indícios consistentes de que uma conduta tenha sido praticada sob o manto de alguma excludente de ilicitude e, se assim for, que não se realize o encarceramento daquele sujeito. Uma das maiores vitórias do novo CPP é a previ-são de que o delegado deverá analisar as eventuais excludentes no momento da prisão em flagrante”, comemora o delegado.

Evitar o encarceramento desnecessário parece ser uma das grandes preocupações do novo códi-go. Uma das razões para essa preocupação é a situação dos presos provisórios no Brasil. Segundo Herbert Carneiro, hoje há cerca de 90 mil presos nessa situação, alguns sob alegações abstratas. Herbert, inclusive, lembra-se de um caso em que o cidadão está preso preventivamente há nove anos.

A matéria foi alvo da última alteração (Lei n.º 12.403/11) e será incorporada na reforma. “Prisão cautelar não é antecipação de pena”, diz Daniel, que explica que o delegado de polícia poderá ar-bitrar sobre a questão quando ocorrerem prisões em flagrante, que não são mais consideradas cau-telares. O rol de crimes em que a liberdade pode ser condicionada à fiança aumentou, além do que o delegado não precisará manter alguém preso quan-do o crime tiver pena inferior a quatro anos. Nesses tipos de crimes, dificilmente o acusado receberá uma pena privativa de liberdade ao fim do processo judicial, e não faria sentido que ele ficasse preso antes da deflagração da ação penal.

Outra alteração relativa à prisão cautelar é a fixação de prazos para a prisão preventiva, com te-tos baseados na pena. Dessa forma, a manutenção

da privação de liberdade terá de ser bem fundamentada para que o acusado continue preso. E se o investigado conseguir a liberdade, ainda assim o juiz poderá determi-nar medidas cautelares para que ele não crie obstáculos à apuração, como proibição de frequentar determinados locais ou até mesmo o monitoramento eletrônico.

“Há uma má compreensão da sociedade de que pri-são é remédio para todos os males”, diz Rodrigo Otávio. Daniel Barcelos concorda com o advogado. Ele acredita que um dos grandes culpados por isso é a mídia que “vende sangue”. “Há um equivoco muito grande entre o que a realidade jurídica nos impõe e o que o clamor social nos pede”, diz Daniel.

Há um equívoco muito grande entre o que a realidade jurídica nos

impõe e o que o clamor social nos pede”

Divulgação

Daniel Barcelos

Page 24: Revista Rede 20

24

Ação Penal Condicionada: aumenta ou diminui acesso à Justiça?

Epaminondas Neto critica veemente o institu-to da Ação Penal Condicionada, “o afastamento da possibilidade de o particular se dirigir diretamente ao Poder Judiciário é uma temeridade”, diz. Pelo novo código, o cidadão não poderá mais deflagrar uma ação penal em crimes contra a honra, por exemplo. Ele de-verá representar ao Ministério Público para que a Instituição aja em seu nome, processando o acusado.

A medida parece ter dois vieses. Ao mesmo tem-po em que o acesso à Justiça parece estar sendo cerceado, ele pode estar, na verdade, sendo ampliado. É o que acredita Herbert Carneiro. Para o desembar-gador, quem antes não tinha acesso à Justiça – prin-cipalmente, por falta de recursos financeiros – poderá fazer uma representação ao MP para que a Instituição o defenda.

Código não impede investigação do MP

“Com todo respeito àqueles que pensam de ma-neira diferente, me parece que a Constituição Federal não deu ao MP poder investigativo”, afirma Daniel Barcelos. Para ele, a discussão não deveria ser ape-nas se o Ministério Público pode ou não investigar, mas também, a de dar aos delegados as prerroga-tivas necessárias para que eles possam investigar com a independência necessária. Para o delegado, se o MP pode requisitar a instauração do inquérito, acompanhar a investigação e requisitar diligências, não é viável que também possa investigar por conta própria.

Epaminondas Neto tem uma opinião diametral-mente oposta. “Evidente que o Ministério Público pode investigar”, afirma o procurador de Justiça. Para ele, o mecanismo do controle externo da ativida-

de policial criado pelo legislador constituinte implicou em uma maior aproximação do MP e da Polícia para que eles trabalhem juntos, já que o Ministério Público é o destinatário da investigação. “Lamentavelmente, questões que não foram técnicas nem científicas im-pediram que esse dispositivo fosse regulamentado”, diz. Para o procurador de Justiça, existem aspectos das teorias dos poderes implícitos e explícitos que permitiriam ao MP proceder a uma investigação cri-minal quando achar conveniente. “É preciso ter co-ragem para dizer: é eletivo mesmo. O MP escolherá, fundado em parâmetros de interesse público, o que irá investigar”, diz Epaminondas.

Daniel rebate esse argumento, dizendo que, pela mesma lógica, um juiz poderia oferecer uma denún-cia. Além disso, para o delegado, a falta de legislação

Alex Lanza

Epaminondas Fulgêncio Neto

É preciso ter coragem para dizer:

é eletivo mesmo. O MP escolherá,

fundado em parâmetros de

interesse público, o que irá investigar ”

Page 25: Revista Rede 20

25

Justiça mais célere é

objetivo do novo CPP

Um dos principais motivos para se refor-mar o Código de Processo Penal é a necessi-dade de dar mais celeridade ao processo. Essa motivação é vista como justa, mas gera certa desconfiança, dependendo do lado em que se está.

O advogado Rodrigo Otávio não concor-da com o discurso de que é preciso reformar o código para se dar mais celeridade ao pro-cesso. Ele explica que qualquer reforma que vise torná-lo mais simplificado deve esbarrar em uma limitação do direito de defesa. “Para se dar mais celeridade ao processo, é preciso que o Estado estruture a Polícia, o Poder Ju-diciário e o MP, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF)”, diz. Rodrigo concorda que o código precisa ser melhorado, mas afirma que o problema da morosidade da Justiça não é o diploma legal. “Não se pode creditar à lei uma deficiência estrutural do sistema”, afirma. Ele também cri-tica a diminuição da possibilidade de recursos e teme que a medida gere injustiças.

Herbert Carneiro diverge. “Não é o fato de reduzir um ou outro instrumento processual que reduz o direito do cidadão ao devido pro-cesso legal, à ampla defesa e ao contraditório. Esses princípios estão muito mais arraigados nesse projeto agora do que no código atual”.

Se em mil processos, cem culpados forem absolvidos, tolera-se.O que não se tolera é que um inocente seja condenado”

que regulamente a investigação criminal pelo MP dá margem a várias dúvidas, pois não há determinações sobre quais seriam os prazos dessa investigação ou como ela seria mate-rializada.

Epaminondas acredita que a reforma está perdendo uma grande oportunidade para se-pultar de vez todas essas questões. Demós-tenes Torres, no entanto, explica que se optou por “não autorizar expressamente no CPP a investigação criminal por parte do Ministério Público. Mas também não impediu. Como a questão está sendo discutida no Supremo Tribunal Federal, o novo Código já poderia nas-cer defeituoso. Particularmente, entendo que o Ministério Público está legitimado pela Consti-tuição a promover investigação. Evidentemen-te que o inquérito policial deve ser presidido sempre pelo delegado de polícia”.

Divulgação

Rodrigo Otávio Soares Pacheco

Page 26: Revista Rede 20

Presídios superlotados e presos em condições subumanas

Para especialistas, falta interesse político em resolver o

problema, e a solução não vem em curto prazo, mesmo

após as reformas do Código de Processo Penal

Por Flávio Pena

26

Page 27: Revista Rede 20

27

O Brasil possui 3.705 estabelecimentos prisionais es-palhados nos 26 Estados e no Distrito Federal. Mas esse número não é suficiente para abrigar os quase 479 mil pre-sos. Faltam, segundo um levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cerca de 147 mil vagas. Em Minas, a situação é parecida. São 348 estabelecimentos prisionais que não dão conta dos mais de 48 mil presos. Pela pesquisa do CNJ, existe um déficit no Estado de apro-ximadamente 14 mil vagas.

Essa pesquisa confirma que alguns presídios estão superlotados e que faltam locais para abrigar presos. Mas a situação carcerária brasileira não se resume a falta de estabelecimentos prisionais. Muitas outras questões de-vem ser observadas nessa área. Para a jurista e professora da Universidade de São Paulo (USP) Ada Pellegrini, em vários presídios brasileiros “os presos vivem em condições subumanas, e a Lei de Execução Penal não é respeitada”.

A professora tenta achar uma explicação para a falta de estabelecimentos prisionais no país. Sobre o assunto, ela é categórica ao afirmar que “não há interesse político em resolver o problema, porque construir novos presídios nessa tendência atual de serem menores, mais bem geridos e mais bem organizados, não dá ibope político”. Enquanto isso, os presos, segundo Pellegrini, sofrem com todo tipo de desrespeito aos direitos humanos. Para a professora, também faltam organização e manutenção no sistema car-cerário brasileiro.

Ela cita um caso em que a Justiça tentou encontrar solução para pessoas que estavam presas em contêineres por falta de vagas em presídios. A professora afirma que essa situação degradante levou juízes a determinar que o Estado do Espírito Santo construísse estabelecimentos apropriados para receberem essas pessoas. Entretanto, não havia verba. “Essa ideia de construir presídios não cai no gosto da população que vota e, portanto, não cai no gosto dos políticos. Com isso, ficamos efetivamente num impasse”, disse a professora, complementando com a afirmação de que uma alternativa seria privatizar alguns estabelecimentos prisionais.

Ada Pellegrini também menciona, como sendo medida paliativa para o problema, as mudanças trazidas pela Lei n.º 12.403, que reformou este ano artigos do Código de Processo Penal (CPP). Segundo a professora, a introdução no CPP da liberdade provisória com vínculos pode, até cer-to ponto, ajudar a aliviar o problema carcerário brasileiro. Entretanto, ela reforça que “o problema existe, é imenso e, pelo visto, a solução não vem em curto prazo”.

Já o promotor de Justiça Rodrigo Iennaco, também ouvido sobre as mudanças no CPP, afirma que ainda é pre-maturo dizer se haverá diminuição na quantidade global de presos. “Se o impacto efetivamente será a redução do número de pessoas encarceradas, isso é muito cedo para se dizer, porque a rotatividade de presos hoje em dia é muito grande, pois vivemos numa realidade em que a crimi-nalidade está massificada.” Para ele, o que poderá ocorrer é um rodízio maior, e não necessariamente uma redução significativa do número de pessoas encarceradas.

Page 28: Revista Rede 20

28

Prisões sob a ótica do

CPP reformado

A Constituição Federal, segundo especia-listas, norteou as mudanças feitas este ano no CPP. A reforma teria seguido princípios cons-titucionais, segundo os quais ninguém será privado da liberdade sem o devido processo legal; ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal con-denatória e ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.

Em relação às prisões, o CPP reformado amplia algumas prerrogativas do Ministério Pú-blico. O artigo 306 afirma que a Instituição será comunicada imediatamente quando houver a prisão de qualquer pessoa. Essa medida não estava anteriormente prevista no dispositivo legal, conforme afirmaram especialistas.

Mais fiscalização pelo MP

Para o promotor de Justiça Rodrigo Iennaco, o Ministério Público, diante do CPP reformado, terá de ampliar a fiscalização dos presídios e terá uma maior demanda de análi-se preliminar de casos de prisão em flagrante. Esse tipo de prisão, segundo Iennaco, não ga-rante mais que a pessoa ficará presa. Outros requisitos também deverão ser obedecidos.

A concessão de liberdade nesses casos pode gerar, de acordo com o promotor de Jus-tiça, dificuldade de entendimento da popula-ção. “As pessoas podem questionar por que um indivíduo que praticou um crime e foi preso em flagrante está solto.” A resposta está na Constituição Federal, que garante ao acusado, em regra, o direito de responder ao processo em liberdade. “Apenas em casos excepcionais, o indivíduo deve ter sua liberdade restrita”, afirmou.

Entretanto, Iennaco se diz preocupado com a concessão de liberdade provisória a pes-soas que possam vir a atrapalhar o andamento do processo. “Há o risco de uma interpretação desviada daquilo que efetivamente está na lei, pois foi reduzido o espectro de crimes que são passíveis da prisão preventiva”, afirmou.

Alex Lanza

Ada Pellegrini

Alex Lanza

Rodrigo Iennaco

Page 29: Revista Rede 20

29

No CPP original, a regra, segundo Iennaco, era a prisão, e a exceção consistia na con-cessão da liberdade provisória. Alterações posteriores, algumas decorrentes da Constituição de 88, inverteram essa perspectiva. Segundo o promotor de Justiça, a tendência agora é a concessão de medidas cautelares alternati-vas, reservando a prisão apenas para casos graves e hipóteses de justificada necessidade e conve-niência.

O CPP reformado também estabelece que as pessoas pre-sas provisoriamente ficarão se-paradas daquelas que já tiverem sido condenadas definitivamente. Em outra parte, o código diz que o juiz não pode mais decretar de ofício prisão preventiva na fase de investigação policial. A medi-da passa a ser possível apenas na fase judicial. “Na fase investiga-tória, o juiz apenas pode decre-tar a prisão preventiva caso seja requerida pelo Ministério Público ou por representação da autori-dade policial”, afirmou Rodrigo Iennaco.

O promotor de Justiça tam-bém afirma que “o juiz não pode-rá converter a prisão em flagrante em prisão preventiva sem mani-festação policial ou ministerial. No entanto, poderá decretá-la de ofício ao pronunciar o acusado ou, nos demais casos, posteriormen-te ao recebimento da denúncia”.

Especialistas afirmaram tam-bém que, no CPP reformado, o delegado ganha mais poderes a partir da possibilidade de estipu-lar fiança em certos crimes. “An-tes, a autoridade policial somente poderia arbitrar fiança nas hipó-teses de infrações apenadas com detenção ou prisão simples. Nos demais casos, apenas a autori-dade judicial poderia fazer isso. Com a nova redação do artigo 322 do CPP, a autoridade policial pode conceder fiança nos casos de infração cuja pena máxima não seja superior a quatro anos”, afir-mou Iennaco.

560 penitenciárias;

46 colônias agrícolas, industriais ou similares;

80 casas do albergado;

2.521 cadeias públicas, casas de detenção ou similares;

31 hospitais de custodia e tratamento psiquiátrico;

453 delegacias;

14 não classificados.

Total de estabelecimentos prisionais no Brasil: 3.705

Número de vagas nacionais: 332.281

Número de presos: 478.133

Déficit de vagas: 146.095

Número de vagas em presídios: 34.342

Número de presos: 48.062

Déficit de vagas: 13.720

Estabelecimentos prisionais: 348

Presos: 45.130

Presas: 2.932

Estabelecimentos prisionais no Brasil

Fonte: CNJ – data da pesquisa: 12/08/2011

Números de Minas Gerais

Page 30: Revista Rede 20

30

Há carência de uma política deressocialização mais eficaz

Para o coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) do Ministério Público de Minas Gerais, promotor de Justiça Joaquim Miranda, “o sistema peniten-ciário brasileiro tem passado por amplas reformas nos últimos anos, com a construção de inúmeras prisões. Mas o certo é que os cerca de 500 mil presos significa um contingente considerável, com as mais variadas carências, entre as quais a de uma política de ressocialização mais eficaz”.

O coordenador do Caocrim disse que algu-mas mudanças estão sendo feitas, mas alguns pontos sensíveis ainda persistem. “Eu apontaria em especial o número de vagas no regime com-patível com a demanda; a criação urgente de condições ideais para cumprimento de pena nos regimes semiaberto e aberto, bem como a corre-ta fiscalização e acompanhamento daqueles que desfrutam de benefícios ou de penas alternativas, como as restritivas de direitos.”

Brasil na frente

Joaquim Miranda também falou sobre a Lei de Execuções Penais brasileira, que, segundo ele, é uma das mais avançadas do mundo. Para o coordenador do Caocrim, o que “falta mesmo é a implementação plena dos institutos ali previstos, como conselhos da comunidade atuantes”. Segundo ele, o Estado tem de promover a punição dos culpados, mas sem esquecer que o preso também “precisa de ajuda para se reerguer e para aprender a trilhar o caminho correto”.

Sobre as reformas realizadas no CPP,

Joaquim Miranda disse que elas são bem-vindas, mas que alguns pontos devem ser observados na hora de soltar os infratores. “O Estado democrático não pode prender indiscriminadamente, mas as medidas alternativas à prisão também não podem ser aplicadas sem qualquer critério, simplesmente porque serão menos gravosas do que o cárcere.” Para ele, o Ministério Público deve “estar atento para os casos de real necessidade de aprisionamento cautelar de quem quer que seja”.

Tornozeleira: experiência de sucesso

Entre as medidas cautelares diversas à prisão, o coordenador do Caocrim falou sobre a tornozeleira eletrônica, que, para ele, deve ser colocada apenas em pessoas não perigosas e que não demonstrem interesse em fugir. Ele deu o exemplo de um trabalhador, com residência fixa e que eventualmente praticou um delito sem

violência ou grave ameaça. “Em casos assim, o monitoramento eletrônico, via tornozeleira, pode se mostrar mais recomendável do que a mera prisão. O Ministério Público também pode requerer do juiz que sejam fixadas regras claras e rígidas sobre aonde a pessoa pode ou não ir e em quais horários”, afirmou.

Page 31: Revista Rede 20

31

Para Joaquim Miranda, o uso de tornozeleira eletrônica é uma tendência mundial. “Na Argentina, o dispositivo tem sido comum até em casos de desentendimentos familiares.” Ele também deu o exemplo de Minas, onde, segundo ele, foi realizada uma experiência de sucesso. “O sistema funcionou muito bem, e estamos em fase de implementação de pelo menos 3.000 unidades ainda para este ano de 2011”, afirmou.

As mudanças do CPP também trarão reflexos ao Ministério Público. “A nova lei exigirá do membro do Ministério Público um cuidado mais intenso no exame preliminar da necessidade ou não da prisão do indiciado”, disse Miranda, complementando com a afirmação de que é possível diminuir a população carcerária. Ele ainda falou do trabalho dos promotores de Justiça na análise da situação dos quase 20 mil presos provisórios em Minas. “Muitos deles não cometeram delitos de intensidade tal que justifique manter a prisão. Uma análise mais criteriosa implicará,

sem dúvida, a possibilidade de liberação de alguns milhares de detentos”, disse.

O coordenador do Caocrim também falou sobre a atuação do Ministério Público na fiscalização dos presídios. “Em um primeiro momento poderia ser visto como o mero cumprimento de uma obrigação legal. Mas, para o preso pode significar um alento, pois o promotor de Justiça pode ser o instrumento eficaz para coibir abusos, excessos ou desvios na execução da pena.”

Ele disse ainda que, para a administração penitenciária, a visita do promotor de Justiça deve ser vista como uma garantia de lisura e apoio. Já para a família do preso, significa, de acordo com Miranda, a certeza de que a execução penal obedecerá rigorosamente as previsões legais. E, finalizando, o coordenador do Caocrim disse que, para o promotor de Justiça comprometido, a visita aos presídios traz uma sensação de realização, pois é possível fazer alguma coisa concreta para ajudar o próximo.

O promotor de Justiça pode ser o instrumento eficaz para coibir abusos,

excessos ou desvios na execução

da pena”

Alex Lanza

Joaquim Miranda

Page 32: Revista Rede 20

crime organizado

As ações da criminalidade são cada vez mais articuladas e

organizadas. O combate a esse tipo de crime também exige

muita organização e integração. E é o que tem acontecido

entre os Ministérios Públicos de todo o Brasil, que, juntos com

os órgãos de defesa social - Polícia Técnica e Polícias Civil e

Militar -, Secretarias de Governo e Poder Judiciário, travam uma

batalha para que os grupos criminosos sejam efetivamente

responsabilizados por seus atos. Se as quadrilhas se organizam

de uma forma praticamente perfeita e o crime se sofistica, o

trabalho desses órgãos deve também se ampliar e aperfeiçoar,

visando sempre a segurança da sociedade.

A difícil missão de combater o

Por Neuza Cunha

32

Page 33: Revista Rede 20

33

Mas nem tudo é uma maravilha. Nem sempre se obtém um resultado satisfatório. São vários os desa-fios, como ausência de leis específicas de combate ao crime organizado e de estrutura dos órgãos responsá-veis pelo enfrentamento dessas organizações crimino-sas, além de medidas para reduzir as desigualdades sociais, entre tantos outros. O procurador de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate ao Crime Or-ganizado (Caocrimo) do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), André Estevão Ubaldino Pereira, e o juiz federal Jorge Gustavo Macedo Costa, revelam nesta reportagem os benefícios da ação integrada e as dificuldades para o combate a esses crimes.

O procurador de Justiça André Estevão Ubaldi-no Pereira cita a relevância da ação conjunta para o enfrentamento do crime organizado. Ele explica que as atividades das organizações criminosas comumen-te se desenvolvem em territórios bastante amplos, indefinidos, que normalmente não são cercados por fronteiras de qualquer espécie. “Então a única forma

de as instituições terem o mínimo de chance de êxito é exatamente articulando, convergindo seus esforços, através de um processo de progressiva integração. Por isso é que nós temos apostado nesse modelo há vários anos”, diz.

O juiz federal Jorge Gustavo Macedo Costa con-corda que o êxito no combate à criminalidade organi-zada pressupõe a integração entre os diversos órgãos responsáveis pela sua repressão. “O próprio nome já sugere que o crime é ‘organizado’, o que impõe, de outro lado, ação organizada e coordenada de quem tem a responsabilidade de combatê-lo”.

Com o mundo globalizado, explica o juiz federal, temos diversos segmentos e setores da sociedade que, infelizmente, ainda são permeáveis às ações criminosas organizadas. “Temos um país com gran-des dimensões e enormes fronteiras, e com uma desigualdade social muito grande. Esses fatores, a meu ver, facilitam a ação das grandes organizações, a despeito do belo trabalho que vem sendo feito pelas autoridades”, complementa.

Estrutura

Se há estrutura suficiente para conduzir as ações de combate ao crime organizado, tanto nos Minis-térios Públicos quanto nas Polícias, André Ubaldino disse que não. “Nós temos tentado nos organizar, convergir nossos esforços para atingir esse resulta-do. Não chegamos ainda ao ponto que desejamos”, enfatiza. Jorge Gustavo, entretanto, observa que a estrutura melhorou muito nos últimos anos.

Para o juiz Jorge Gustavo, o Ministério Públi-co ganhou força e estrutura e consegue desenvolver ações bem coordenadas com os órgãos policiais nas ações de combate ao crime organizado. Mas, segun-do ele, o êxito não se encerra com a deflagração de uma operação. “Impõe-se maior estrutura de acompa-nhamento, sobretudo quando, na fase judicial, esses processos são encaminhados aos tribunais. No plano policial, entendo ser necessário maior investimento no treinamento dos agentes.”

Na atuação do Ministério Público, o procurador de Justiça André Ubaldino lembra que o órgão mi-nisterial constituiu um organismo de inteligência, que serve aos fins gerais do MP, e outro organismo des-tinado especificamente a produção de conhecimento acerca do funcionamento das organizações crimino-sas com a finalidade de reprimir a sua atuação. Ele acredita que o Ministério Público vem, progressiva-mente, procurando ser mais profissional no modo de conduzir o enfrentamento a esse problema.

Jorge Gustavo também considera que os eixos integração, inteligência, combate à corrupção e alo-

cação de recursos são essenciais. O crime organiza-do – a própria denominação já o diz –, segundo ele, é estruturado, tem muitos recursos e age de forma coordenada, infiltrando-se, via de regra, na estrutura do Estado. “Para combatê-lo, também precisamos de ações coordenadas, com troca de informações, prá-ticas e modelos de inteligência. Sem isso, o esforço cairá no vazio”, alerta.

O magistrado ainda afirma que o combate ao cri-me organizado impõe a adoção de métodos especiais de investigação. “Claro, devendo ser observados os critérios de razoabilidade e proporcionalidade. Entre esses métodos, destacam-se as ações controladas, a infiltração de agentes policiais e de inteligência, os monitoramentos de ligações telefônicas e comunica-ções digitais. Mas tudo isso sob o rigoroso controle de legalidade feito pelo juiz responsável”, esclarece.

O juiz ainda complementa que o papel do Ministério Público é fundamental no combate à criminalidade organizada. É ele o titular da ação penal, ou seja, é quem conduzirá o processo criminal. Para Jorge Gustavo, a atuação do Ministério Público não pode se limitar à condenação dos responsáveis. “Há outros aspectos a serem observados, tais como a destinação dos bens apreendidos como frutos da ação criminosa, o acompanhamento da execução das penas, entre outros.” Ele acredita que o MP tem se organizado para criar, no âmbito de sua estrutura, órgãos devidamente capacitados para bem desenvolver essa tarefa.

Page 34: Revista Rede 20

34

Conceito do crime

Indagado sobre se é preciso ter sensibilida-de para definir o que é crime comum e o que é crime organizado, André Ubaldino afirmou que na verdade existe uma dificuldade em concei-tuar o que seria organização criminosa. “Esse é um problema já antigo, mas ainda atual, porque a questão não está resolvida, e não se chegou nem sequer a um consenso acerca disso. Mas o que tem prevalecido é a Convenção das Nações Unidas, que se deu em Palermo, e que elenca alguns dos traços tidos como característicos das organizações criminosas”, esclarece o procura-dor de Justiça.

Os traços, segundo ele, são tentativa de domínio de áreas, corrupção de agentes públi-cos, recursos da violência, da intimidação, entre outros caracteres apontados pela convenção. “A organização criminosa é um grupo, mas não bas-ta ser um grupo para ser organização criminosa, é claro”, completa.

O magistrado Jorge Gustavo segue a mes-ma linha. Segundo ele, não há no cenário jurídico do Brasil uma lei que defina o conceito de crime organizado ou organização criminosa. Ele reforça a opinião de André Ubaldino sobre a definição dada por uma convenção internacional ratificada

pelo Brasil, qual seja, a Convenção de Palermo, que trata da criminalidade transnacional, que diz o seguinte: “(...) grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enun-ciadas na Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômi-co ou outro benefício material”.

A lavagem de dinheiro, tráfico de entorpe-centes, tráfico de pessoas, contrabando de ar-mas e corrupção são as principais modalidades criminosas, vinculadas ao crime organizado, diz o juiz federal.

Para saber diferenciar a criminalidade co-mum dos atos praticados pelo chamado crime organizado, Jorge Gustavo justifica que “primei-ro, quanto ao aspecto da investigação, pois, para o combate à criminalidade organizada, impõe- -se a adoção de métodos ou técnicas especiais de investigação, sem os quais não se consegue apurar a prática do ilícito. Segundo, quanto à aplicação das penas e demais medidas secun-dárias, já que os efeitos decorrentes das ativi-dades praticadas pela criminalidade organizada são bem mais nefastos à sociedade”.

Alex Lanza

André Estêvão Ubaldino Pereira

Page 35: Revista Rede 20

35

Leis brasileiras Na opinião do coordenador do Caocrimo,

André Ubaldino, as leis que existem no Brasil, Lei n.º 9.034/95 – instituída para combater o crime organizado no Brasil – e a Lei n.10.217/01 não são suficientes, “e isso é algo que o Ministé-rio Público brasileiro já reconheceu, tanto assim que, quando convidado, participou da produção de projetos de lei. Eu fui um dos que participa-ram da gestação de um projeto de lei, que lamen-tavelmente não caminhou como gostaríamos no

Congresso. Acreditamos que, se a proposição se convertesse em lei, haveria de nos dotar de meios para enfrentamento eficaz às organiza-ções criminosas, ou menos ineficazes, diríamos”.

O magistrado Jorge Gustavo tem uma opi-nião diferente. Para ele, as referidas leis repre-sentam grande avanço. “Não precisamos de no-vas leis. Precisamos de efetividade da jurisdição criminal. Esse é, a meu ver, o grande passo para o sucesso no combate ao crime organizado.”

Mudanças necessárias

Para aperfeiçoar a legislação de combate ao crime organizado, Ubaldino diz que há mui-tos pontos, ficando difícil mencioná-los em uma rápida abordagem. “Mas é inegável que nós não temos instrumentos de investigação suficientes para o enfrentamento às organizações crimino-sas, na forma como hoje o tema é tratado pela legislação brasileira.”

Por isso, o procurador de Justiça afirma que o projeto de lei que não andou no Congresso se prestava a produzir exatamente um conjunto de

medidas que, já empregadas com êxito em ou-tros países, poderiam ser aplicadas com êxito no Brasil para enfrentamento das organizações cri-minosas. “Como medidas tendentes à descapi-talização das organizações criminosas, medidas destinadas a fomentar divergências nos seios das organizações criminosas, inclusive através da atribuição de vantagens a quem delatasse seus membros. Vantagens mais efetivas, mais convincentes do que as que hoje são oferecidas na atual legislação”, aponta.

Alex Lanza

Jorge Gustavo Macedo Costa

Page 36: Revista Rede 20

36

Temos visto que muitos criminosos perigosos possuem imagem respeitada perante a sociedade, utilizam-se de negócios legais, denominados “em-presas de fachada”, para a efetiva lavagem do di-nheiro proveniente do crime. Perguntei ao juiz se essa situação faz com que fique mais difícil definir e combater o crime organizado. “De fato, a lavagem de dinheiro é um crime muito complexo, o que di-ficulta sua punição”, respondeu. Ele complementa que “não raro, se tem que as ações criminosas são desenvolvidas paralelamente às atividades econô-

micas aparentemente lícitas e que, a princípio, não geram suspeitas. Este é o grande desafio de uma boa investigação: saber identificar o funcionamento de um esquema criminoso dentro de uma estrutura aparentemente legal e lícita”, revela.

O magistrado também concorda que a lavagem de dinheiro é o oxigênio da criminalidade organiza-da. O crime organizado, segundo ele, não sobrevive sem dinheiro e recursos. Precisa disso para se au-tofinanciar. E a lavagem é o grande instrumento de que se utilizam para isso.

Lavagem de dinheiro

Descapitalização das organizações criminosas

A questão econômica, para Ubaldino, é mui-to importante. “Organizações criminosas buscam proveito econômico, e nós precisamos retirar delas esse proveito econômico para que tenhamos o míni-mo de chance de êxito em seu enfrentamento.” Ele conta que já existem ações nesse sentido, mas que “evidentemente elas vêm sendo realizadas em con-formidade com os mecanismos legais hoje existen-tes à disposição dos órgãos do Ministério Público, e esses mecanismos não são ainda suficientemente eficazes para que haja uma resposta aos anseios da sociedade com a eficiência desejada”, esclarece.

Indagado se o projeto de reforma do novo Có-digo de Processo Penal traz alguma novidade nesse sentido, André Ubaldino diz que na verdade não há um novo código de processo penal; há um velho, que vem sendo reformado. E há um projeto de có-digo de processo penal, que está em curso no Con-gresso. O procurador de Justiça revela que desse projeto fez parte uma ampla comissão composta

também de membros do MP. “O problema está em que aparentemente o Executivo, que é quem es-tatisticamente mais legisla no Brasil, não está de-sejoso de converter esse projeto em código. Está, ao contrário, promovendo modificações do vigente Código de Processo Penal, e ele a rigor visa à cri-minalidade de forma geral, não prevê esses nichos específicos de criminalidade, que são aqueles em que há atuação mais marcante das organizações criminosas”, observa.

Ubaldino entende que deveria haver uma lei específica para tratar essa questão. Ele afirma que, “como é um tipo de criminalidade cujo desenvolvi-mento pode, ao fim e ao cabo colocar em risco o próprio Estado Democrático de Direito, é preciso que existam mecanismos específicos para o enfren-tamento de organizações criminosas. Mecanismos um tanto mais enérgicos, mais eficazes, mais ca-pazes de promover a mais rápida descapitalização dessas organizações”.

Apreensão de bens

“O crime organizado tem como principal objeti-vo o lucro (fácil) advindo da atividade delituosa. Se você consegue sufocar o poder econômico de uma organização criminosa, retira-se seu maior poderio. Nesse sentido, a apreensão dos bens adquiridos a partir da prática do ilícito torna-se medida imperiosa com combate ao crime organizado”, afirma do juiz federal.

Essa medida vem sendo tomada no Brasil. O

magistrado lembra que há alguns avanços legislati-vos, como a Lei de Lavagem e a que tipifica o tráfico de substância entorpecente, em que há previsão de medidas que podem resultar no “sufoco” financeiro da organização. “Mas temos que evoluir e passar a nos preocupar também com a visão econômica do crime, como fazem, por exemplo, os EUA. O foco da ação dirige-se não só à pessoa do criminoso, mas também ao produto do crime”, analisa.

Page 37: Revista Rede 20

37

Quebra de sigilo

O procurador de Justiça André Ubaldino fala também da relevância da quebra de sigilo para as in-vestigações. Segundo ele, “sem dúvida nenhuma, o levantamento de algumas garantias constitucionais, como sigilo telefônico, bancário e fiscal, é absoluta-mente indispensável para o êxito de ações repressi-

vas a uma criminalidade que obviamente movimenta capitais, em que as ordens são dadas muitas vezes por meios tecnologicamente avançados, alguns dos quais não são ainda susceptíveis de serem intercep-tados pelas tecnologias que estão à disposição das autoridades públicas brasileiras”.

Cadastro geral de informação

Sobre a necessidade de um cadastro geral de informações no Brasil e no exterior das ações das organizações criminosas, o coordenador do Caocri-mo não tem dúvidas. Para ele, “o ideal é a integração planetária no enfrentamento as organizações crimi-nosas, especialmente depois da ocorrência de dois eventos históricos que facilitaram consideravelmen-te a movimentação de capital em todo o mundo: a queda do Muro de Berlim e, pouco depois, o fim do regime soviético”. O procurador de Justiça comple-ta ainda: “É obvio que tivemos, em virtude desses eventos históricos, uma maior facilidade à migra-ção de recursos, que podem ser aplicados no Brasil

e que, eventualmente, podem ser provenientes de ilícitos praticados em outros locais do planeta. Por-tanto, essa necessidade de integração entre todos os países já existe e é muito importante”.

No Brasil, segundo Ubaldino, existe o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), que é voltado para produção de conhecimento não só relativo a organizações criminosas, mas a tudo aquilo de que depende o sucesso da sociedade brasileira. “Agora esse sistema vem sendo implementado progressivamente, de tal modo que ele, claro, não é eficaz o suficiente para que possamos atingir os nossos resultados.”

Desigualdade social fortalece as organizações criminosas

Na verdade, opina o procurador de Justiça, “a desorganização do Estado contribui para a efici-ência das organizações criminosas, para que elas tenham seus recursos e obtenham proveito econô-mico”. Ele ressalta ainda que, independentemente de que isso ocorra, é um dever do Estado promover medidas para reduzir essas desigualdades. “Porém, já deveria tê-lo feito há muito tempo. E, como não faz, eventualmente ele acaba por descumprir o seu papel, por permitir que organizações criminosas se apresentem inclusive como supostas soluções para problemas. É o que se vê, por exemplo, em algumas favelas de Estados próximos a Minas Gerais onde as organizações criminosas eventualmente atuavam como organizações de beneficiamento, de criação de vantagens, enfim de solução para alguns problemas não enfrentados pelo poder público”, acentua.

Ao juiz federal, indaguei se há necessidade de

ações e políticas preventivas, sociais, como tam-bém melhor gestão de segurança pública. Para ele, uma coisa complementa a outra. A segurança públi-ca hoje, segundo o juiz, tem status de sistema e é uma preocupação que deixou de ser regional para se transformar em nacional. “O fortalecimento dos organismos que compõem o sistema de segurança pública mostra-se de fundamental importância nesse caminho de combate ao crime organizado”, destaca.

Sem investimento nas áreas sociais não se constrói uma sociedade sólida e democrática, diz o Jorge Gustavo. Para ele, é essencial “investir em educação, saúde, emprego, e ocupar um espaço que, infelizmente, pode vir a ser preenchido ou ‘invadido’ pelo crime organizado, sobretudo se se imaginar que grande parte da população brasileira está localiza-da nos grande centros, onde o combate ao crime é sempre mais complicado”, conclui.

Page 38: Revista Rede 20

38

MPMG e órgãos de repressão na luta

contra o crime

Desde 2002, após a criação da Promotoria de Justiça de Com-bate ao Crime Organizado e do Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) vem atuando continuadamente, por meio de fis-calização e operações conjuntas, para acabar, por exemplo, com a Máfia do Combustível, com os caça-níqueis, com os bingos, que são utilizados na lavagem de dinheiro. Em outra frente, essas ações vêm combatendo crimes contra o meio ambiente e patrimônio cultural, de sonegação fiscal, grandes roubos e assaltos violentos. Além disso, a atuação do Ministério Público nessa área combate tam-bém as organizações criminosas no sistema prisional, o tráfico de entorpecentes, a pirataria, a venda de produtos contrabandeados e sem nota fiscal, o tráfico de mulheres e a exploração sexual infantil.

Em Minas Gerais o Centro de Apoio Operacional das Promo-torias de Justiça de Combate ao Crime Organizado e de Investi-gação Criminal (Caocrimo), órgão do MPMG, vem atuando para atender às demandas de Promotorias de Justiça e outros Centros de Apoio Operacional que buscam apoio para a instrução de suas investigações — sejam elas de natureza cível ou criminal —, assim como fornece apoio a outras instituições.

No primeiro semestre deste ano o Caocrimo destaca duas operações que, concluídas após meses de investigações e diligên-cias, resultaram na prisão de acusados de homicídios e tráfico de entorpecentes. Trata-se de um trabalho de cooperação que vem sendo realizado continuadamente com os órgãos que atuam no combate ao crime organizado em outros Estados.

Nessas duas operações, os agentes do Setor Policial Militar do Caocrimo prenderam, após meses de investigação e diligências, Francisco Martins, também conhecido como Martins Veras, acusado de ter praticado homicídios em Campo Grande (RN). A equipe con-seguiu prender também Erlânio Souza dos Santos, condenado por tráfico de drogas e atualmente respondendo por crime de homicídio. Ele estava foragido da cadeia pública no Espírito Santo desde 1º de abril deste ano.

O Caocrimo, segundo o seu coordenador, procurador de Justi-ça André Ubaldino, realiza de forma quase rotineira operações que visam prender foragidos da Justiça a pedido de outros Estados. No caso relacionado à prisão de Francisco Martins, a principal dificul-dades enfrentadas pela equipe de investigação foram as poucas informações disponíveis.

Page 39: Revista Rede 20

39

Histórico

Há alguns meses foi solicitada pelo Grupo de Atuação Especial de Repres-são ao Crime Organizado do Ministério Público do Estado Rio Grande do Norte a cooperação na identificação e locali-zação de Francisco Martins, pois havia indícios de que ele estivesse vivendo em Minas Gerais há alguns anos.

Segundo o Caocrimo, Francisco Martins foi preso dia 11 de maio após investigações realizadas com base em informações fornecidas pelo Ministério Público do Rio Grande do Norte. Estão em andamento as medidas para que ele seja transferido para o Estado do Rio Grande do Norte, onde responde pela prática de vários homicídios.

Também atendendo solicitação de unidade responsável pela repressão ao crime organizado do Estado do Espírito Santo, no dia 22 de maio, o Caocrimo prendeu Erlânio Souza dos Santos, fo-ragido desde 1º de abril de uma cadeia pública capixaba, para onde foi recon-duzido no mesmo dia em que foi preso.

Varginha

Ainda no primeiro semestre o MPMG, por meio das Promotorias de Justiça Criminais e da Infância e Juven-tude no Combate ao Crime Organiza-do de Varginha, realizou em março, em conjunto com as Polícias Civil Militar na-quela cidade do Sul de Minas, uma ope-ração de combate ao tráfico de drogas. Dois adultos foram presos e seis jovens foram apreendidos. Foram apreendidos também 113 pedras e 58 gramas de craque, duas buchas de maconha, uma TV 14 polegadas, dois capacetes, duas câmeras digitais, cinco celulares, cinco relógios de pulso, duas bicicletas, um Ipod, quatro botijões de gás, um extintor de incêndio, um molinete com carretilha, um macaco para carro, R$ 75 em dinhei-ro, dois dólares, um notebook e quatro aves silvestres.

Condenação de 30

criminosos

Outro destaque se deu na Promotoria de Justiça de São Gotardo, que entregou, no dia 23 de maio deste ano, as alegações finais do processo sobre grande organiza-ção criminosa atuante naquela cidade e na região. Durante as investigações rea-lizadas no bojo da denominada Operação Ouro Preto, a Polícia Civil apurou que a organização possuía 32 membros e prati-cava furtos em fazendas da região quase diariamente, recompensando com drogas e dinheiro funcionários de tais proprie-dades que facilitavam os furtos. Apurou ainda que a organização contava com di-versos receptores dos produtos furtados e com um funcionário público que lavava o dinheiro ilícito do bando, além de uma verdadeira suborganização voltada ao tráfico de entorpecentes. Dos 32 réus, 26 aguardam a sentença presos.

Após a fase de instrução, que durou aproximadamente dois meses, o MPMG apresentou alegações finais, pleitean-do, com base nas provas produzidas, a condenação de 30 acusados. Os dois outros réus respondem procedimentos separados, ainda em fase de instrução. O MPMG ressaltou ainda que o grupo agia com elevado nível de premeditação e de forma fria e calculista. O promotor de Justiça Cleber Couto ressalta que “os inúmeros delitos configuram tão somente a ponta do iceberg dos crimes praticados por essa organização criminosa. Pela es-trutura, organização, hierarquia e partici-pação de inúmeros membros com funções específicas e detalhadas, pode-se afirmar que tal organização praticou muito mais crimes do que os apurados nesses autos”.

Participaram da operação quatro re-presentantes do Ministério Público, 28 homens da Polícia Civil e 60 da Polícia Militar. Foram utilizadas duas viaturas do MPMG, oito da Polícia Civil e 25 da Polícia Militar, totalizando 35 veículos.

Page 40: Revista Rede 20

40

Operação Octopus

Coordenada pelo Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa da Ordem Econômica e Tribu-tária (Caoet), a ação de inteligência ela-borou organograma de rede de postos de combustíveis. Essas empresas pertenciam a integrantes de organização criminosa dedicada a fraude fiscal e adulteração de bombas de abastecimento de combustível, a qual estendia sua atuação também nos Estados de São Paulo e Bahia. Por isso, houve atuação conjunta dos Ministérios Públicos Estaduais, SEFs e PMs de Minas e de São Paulo. Um mês depois, o Estado de Minas Gerais elevou a arrecadação de tributos estaduais relativos aos combustí-veis em aproximadamente R$ 25 milhões. Foram presas 25 pessoas e executados 24 mandados de busca e apreensão, arresta-dos bens, com busca em empresa de trans-porte de valores, interdição e aplicação de multas em desfavor dos estabelecimentos de revenda de combustíveis adulterados, integrantes da rede criminosa.

Mais de vinte operações em apenas dois anos

Veja algumas das outras opera-ções realizadas pelo Ministério Público de Minas Gerais na área do combate ao crime organizado. Nesses dois últimos anos, o Caocrimo realizou bem mais que 20 operações de combate às orga-nizações criminosas. Como exemplos, a Operação SOS Cerrado, realizada após intenso trabalho de inteligência executado pelo Caocrimo, sendo possí-vel desbaratar grande organização cri-minosa. Ao fim dos trabalhos da ação, foram cumpridos mandados de prisão e de busca e apreensão em escritórios de usinas siderúrgicas e residências dos alvos ligados a esquema ilegal de venda de carvão em várias regiões do Estado. A operação teve a participação de agen-tes da Secretaria de Estado de Fazenda (SEF), Polícia Militar de Meio Ambiente e Polícia Civil (PC), sob coordenação da Promotoria da Bacia do São Francisco e articulação do Caocrimo.

Fotos: Alex Lanza

Fiscais durante a operação Octopus

Page 41: Revista Rede 20

41

Operação Serial Killer

Em apoio ao Departamento de Homicídios da PC de Minas Gerais em Belo Horizonte, a ação resultou na localização e prisão do maníaco que estava praticando, em série, estupros e roubos se-guidos de morte contra mulheres na Capital e região metropolitana.

Grandes roubos e assaltos violentos

Foram realizadas seis grandes operações, por meio de um grande esforço do Caocrimo, para combater, desarticular e prender quadrilhas de assaltantes de bancos e carros-fortes, que agiam em ações extremamente violentas. Tais quadrilhas, de posse de arma-mento pesado, como fuzis de uso restrito às Forças Armadas e até metralhadoras antiaéreas, foram responsáveis por diversos assaltos a agências bancárias e carros-fortes tanto em Minas Gerais quanto em outros Estados da Federação.

As seis operações receberam os nomes de Barret, Amazonas, Farroupilha, Coringa, Águia e Parente, e culminaram na prisão da maioria dos quadrilheiros. Foram apurados seis graves roubos con-sumados contra carros-fortes e agências bancárias em Minas Ge-rais, e apreendidos uma metralhadora antiaérea calibre 50, grande quantidade de munições, veículos e R$ 308 mil em moeda corrente.

As investigações possibilitaram ainda apurar crimes ocorridos em outros Estados, como latrocínio ocorrido na cidade de Vila Velha (ES) e homicídio ocorrido em 1990 contra o senador da República Olavo Pires, em Rondônia. Por meio de informações repassadas pelo Caocrimo a órgãos de segurança pública de outros Estados, foi possível ainda prender criminosos em Goiás, Pará, Rio Grande do Sul, São Paulo e Bahia.

Assaltos e latrocínios

Houve ainda outras três opera-ções. A primeira: Operação Medusa, que, a partir de informações repassa-das pelo Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de Santa Catari-na (MPSC), e com apoio da Delegacia Especializada de Repressão às Orga-nizações Criminosas (Deroc) da PC-MG, resultou na localização e prisão de quadrilha de assaltantes que pla-nejavam ação contra joalheria no BH Shopping. Durante os trabalhos, foram ainda apreendidos três veículos e três pistolas semiautomáticas. A segunda: Operação FB, que resultou na apreen-são de um veículo Honda Civic e duas pistolas semiautomáticas, e na locali-zação e prisão de assaltante foragido da Justiça e autor de vários roubos, entre eles um duplo latrocínio ocorrido em 2005 na cidade de Itaguara (MG), em que foram vitimados dois policiais militares. A última: Operação Nova Era, em que o MPMG atuou em apoio ao Departamento de Operações Especiais (Deoesp) da PC-MG e que culminou no esclarecimento de roubo de pedras pre-ciosas ocorrido na cidade de Nova Era, com a prisão dos autores e recuperação de parte das pedras roubadas.

Fotos: Alex Lanza

Prisão e apreensão de armas pesadas

Page 42: Revista Rede 20

42

Estelionatários e fraudadores

Nessa área de atuação também houve várias operações. Citamos como exemplo a Operação Pa-pirus. A partir de comunicação feita ao Caocrimo pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos da América (EUA), por meio do seu Consulado em São Paulo, a ação promoveu investigações em apoio à De-legacia de Falsificações e Defraudações. O trabalho resultou na identificação e prisão, em Minas Gerais, de grupo de pessoas que atuava na falsificação de documentos públicos e privados com o intuito de ob-ter, de forma fraudulenta, vistos para entrada naque-le país. Foi ainda apreendido vasto material utilizado

para a consumação dos delitos, como computadores, documentos, carimbos de várias espécies e recibos de pagamento.

Ainda nessa área de atuação, houve outras ope-rações objetivando identificar e prender quadrilha es-pecializada em aplicar golpes de falsa venda de auto-móveis pelos cadernos de classificados dos jornais, e identificar fraudadores que conseguiam cartões de terceiros junto às operadoras de crédito. Foi possível ainda identificar e prender quadrilha especializada em manufaturar documentação falsa, inclusive criando perfis que serviam para diferentes fins.

Fotos: Alex Lanza

Itens confiscados na operação Papirus

Page 43: Revista Rede 20

43

Tráfico de drogas

Quanto ao combate ao tráfico de drogas, foram feitas inúmeras operações, tanto por iniciativa do Caocrimo quanto em apoio a Promotorias de Justiça do Estado e a outros órgãos de segurança pública. Entre elas, vale destacar a Ope-ração Sentinela, que resultou na prisão de 14 traficantes que atuavam na região me-tropolitana de Belo Horizonte, sendo apre-endidos cerca de 22 kg de cocaína, e, ain-da, esclarecidos quatro homicídios. Nos desdobramentos, por meio de informação repassada ao Gaeco em Ribeirão Preto (SP), foi possível àquele grupo apreender um quilo de crack e uma pistola 9 mm.

Destaque-se ainda a Operação PCC, que objetivou barrar o avanço e expan-são da organização criminosa Primeiro

Comando da Capital (PCC) nas unida-des prisionais do Estado. O Caocrimo coordenou os trabalhos investigativos dos órgãos de inteligência da Secretaria de Assuntos Penitenciários e das Polícias Civil e Militar objetivando identificar os líderes daquela facção criminosa, possibi-litando o remanejamento deles para o Re-gime Disciplinar Diferenciado (RDD). Foi possível o enquadramento legal de todos os envolvidos, como forma de coibir e de-sestimular a adesão de outros detentos à organização ilegal. Possibilitou-se, ainda, a prisão de diversos infratores que, estan-do em liberdade, se dedicavam à prática de crimes para financiar os projetos de expansão dessa organização criminosa dentro do sistema carcerário.

Grupo de Intervenção Estratégica: repressão qualificada

Ainda sobre repressão ao tráfico de drogas e sobre os crimes a ele conexos, merece especial atenção a atuação do Grupo de Intervenção Estratégica (GIE) dentro do Programa Fica Vivo! O GIE tem como finalidade a articulação dos órgãos de defesa social a fim de desenvolver uma repressão qualificada, identificando quadrilhas, suas lideranças criminosas e seus agentes, alvos de intervenção, cuja atuação aumenta sensivelmente a sen-sação de insegurança nas comunidades onde atuam.

O grupo, coordenado pela Promoto-ria de Combate às Organizações Crimi-nosas, conta com a participação efetiva da PM; PC; Juizado da Infância e Juven-tude; MPMG, por meio das Promotorias de Combate às Organizações Criminosas, do I Tribunal do Júri, de Tóxicos, Criminal e do Juizado Especial Criminal; Secretaria de Defesa Social (Seds); Subsecretaria de Administração Prisional (Suapi); Sub-secretaria de Atendimento Medidas So-

cioeducativas (Suase); Superintendência de Prevenção à Criminalidade e Diretoria de Promoção Social da Juventude. São objetivos do GIE reduzir a formalidade na comunicação entre instituições, ampliar a rede de informações e acompanhar aten-tamente os casos e seu andamento pro-cessual.

Como resultado desse trabalho, re-gistraram-se a redução do índice de ho-micídios nos aglomerados acompanhados pelo grupo; a agilização do trâmite dos processos, inclusive com antecipação de audiências; o aprimoramento do Sistema de Informações do Grupo de Intervenção Estratégica (Sigie), que agrega as infor-mações recebidas das instituições parti-cipantes; a disponibilização de relatórios aos promotores de Justiça plantonistas para acompanhamento de procedimen-tos; maior proximidade entre instituições de repressão qualificada de proteção so-cial e o aprimoramento da participação da Suapi e Suase.

Page 44: Revista Rede 20

44

Pirataria:um dos maiores desafios do Século 21

“A cena é conhecida e facilmente encontrada em qualquer cidade

brasileira, especialmente nas médias e grandes: uma tosca barraca

com um cidadão oferecendo os mais variados produtos – óculos;

brinquedos; softwares; CDs e DVDs; relógios; perfumes; roupas;

eletrônicos – tudo a preços convidativos. As pessoas já incorporaram

essa cena no cotidiano e até acham normal esse comércio. O problema

é que, por trás desse comércio aparentemente inocente, encontra-se

a atuação de verdadeiras organizações criminosas, que atuam desde

a produção, importação, distribuição, locação de pontos comerciais

(verdadeiros shoppings irregulares) até a comercialização final.” As

afirmações são do presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a

Ilegalidade (FNCP) e do Instituto Brasil Legal e ex-secretário da Justiça

e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, Edson Luiz Vismona.

Por Neuza Cunha/Flávio Pena

Page 45: Revista Rede 20

45

Ele afirma que, na movimentação des-sa sofisticada logística, uma ampla sequência de ilícitos é desencadeada: “A produção é fei-ta por mão de obra informal e até escrava; na importação, o contrabando, descaminho, falsa declaração fiscal e de conteúdo, subfaturamen-to são práticas absolutamente corriqueiras; os shoppings são montados com uma série de su-blocações, a preços bem elevados, sem atender as posturas municipais de segurança, licença de funcionamento e inscrição estadual e federal”, salienta. Ele afirma também que lojas são na verdade boxes apertados, lotados de mercado-rias. “Os mais singelos direitos de propriedade intelectual e industrial são totalmente desres-peitados, sem esquecer o direito de defesa e proteção do consumidor e as fundamentais ga-rantias com relação à saúde e segurança - todos solenemente ignorados”, lamenta o presidente do FNCP.

Para completar, explica Edson Vismona, “os recursos financeiros movimentados são vulto-sos, alimentando a lavagem de dinheiro e a cor-rupção, bem como financiando outras práticas criminosas, pois, em contêineres apreendidos pela Receita Federal e Policia Federal, invaria-velmente, são encontradas, junto aos mais va-riados produtos de consumo, drogas, armas e vasta munição”, observa.

MPMG intensifica ações

A pirataria não é um problema novo no Bra-sil, tampouco no mundo. Estudos indicam, na verdade, que combatê-la é o maior desafio do século 21 , ultrapassando até mesmo o tráfico de drogas. Em Minas Gerais não é diferente. E, com o objetivo de contribuir para a redução dessa estatística, o Ministério Público do Esta-do de Minas Gerais (MPMG), desde 2008, vem intensificando as ações de enfrentamento do problema e de punição dos infratores.

As ações se concentram, geralmente, em shoppings populares, camelódromos e mercados municipais, onde pessoas comercializam produ-tos falsificados, sem nota fiscal ou contrabande-ados. Nesses locais, já foram recolhidas tonela-das de CDs, DVDs, cigarros, jogos eletrônicos, tênis, bolsas e óculos, entre outras mercadorias irregulares. Tudo fruto de algum tipo de crime. Também nas operações são recolhidos até re-médios sem efeito terapêutico e medicamentos abortivos, de venda proibida no Brasil.

Parcerias essenciais

Para combater esse comércio ilegal, várias instituições se uniram para criar um grupo de com-bate à pirataria em Belo Horizonte. A equipe é co-ordenada pela promotora de Justiça do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate ao Crime Organizado (Caocrimo) Cássia Virgínia Gontijo. De acordo com ela, representan-tes das Polícias Federal, Rodoviária Federal, Civil e Militar, do Corpo de Bombeiros, do Ministério Público Federal, da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) e das Receitas Federal e Estadual se reú-nem mensalmente para traçar metas e estratégias de combate à pirataria.

O envolvimento das dez instituições tem um sentido. “No combate a esse tipo de crime, pode-mos encontrar tanto questões relacionadas à so-negação fiscal quanto a descaminho, contrabando e contrafação. Há também estabelecimentos que desrespeitam normas de controle e prevenção de incêndio e tumulto”, afirma Cássia Virgínia.

Cada uma das instituições, segundo a pro-motora de Justiça, cuida de uma área. A Receita Federal verifica a presença de mercadoria irregular. A Receita Estadual analisa a documentação des-sas mercadorias. A Polícia Federal observa se há mercadoria contrabandeada. A Polícia Civil foca nos crimes de contrafação. A Polícia Militar auxilia na segurança e no cumprimento dos mandados de busca e apreensão. A Polícia Rodoviária Federal atua nas estradas e rodovias federais. O Corpo de Bombeiros fiscaliza as questões de combate a in-cêndio. E a PBH ajuda na logística e no transporte.

“O grupo tem como principal objetivo a loca-lização de depósitos e distribuidores de produtos contrafeitos visando combater a pirataria de forma metodológica e constante há mais de dois anos. A estratégia do grupo é intensificar a fiscalização nos estabelecimentos que distribuem os produtos e nos que os revendem”, afirma Cássia Virgínia.

O presidente do FNCP, Edson Vismona, tam-bém acredita que, se coordenadas as ações, além da atuação dos órgãos citados pela promotora de Justiça, os municipais vão atuar na preservação das posturas municipais relacionadas aos critérios de ocupação de espaços comerciais, à existência de alvarás e licenças, às condições de saúde e se-gurança. Ele cita também a participação do Procon para as inúmeras infrações contra o Código de De-fesa do Consumidor e a vigilância sanitária para avaliar as condições de limpeza e higiene das áreas de alimentação e, “por fim, o Ministério Público para coordenar as eventuais ações públicas (cíveis e criminais) de modo a melhor estruturar os inqué-ritos que serão levados ao Poder Judiciário”, diz.

Page 46: Revista Rede 20

46

Ação coordenada

O presidente do FNCP conta que, também em São Paulo, essa ação coor-denada do poder público tem se mostra-do o mais eficiente meio de se combater o complexo comércio ilegal. Como exem-plo de eficiência desse modelo, ele cita a ação do Gabinete de Gestão Integrada (GGI). Formado no âmbito da Prefeitura de São Paulo, o GGI é resultado do con-vênio Cidade Livre de Pirataria, firmado pela municipalidade com o Conselho Na-cional de Combate à Pirataria (CNCP) do Ministério da Justiça. “Nos últimos cinco meses, foram fechados oito dos mais importantes centros de comércio ilegal da cidade de São Paulo, os quais evidentemente procuram voltar a operar. Porém, diante da articulação das auto-ridades, percebe-se que o panorama é outro, e já se apresentam propostas de alteração de conduta, inclusive com a proposição de Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) junto ao Ministério Público voltados para a legalização da atividade de alguns desses centros”, cita Vismona.

Edson Vismona afirma que “evi-dentes são as dificuldades. Contudo, na defesa da lei, protegem-se a socie-dade, o erário e o mercado formal. Em risco estão a saúde e segurança das pessoas, os investimentos e empregos e a arrecadação. Porém o mais relevante está sendo defendido: o necessário sen-timento de que a ilegalidade não pode prosperar”, revela.

Cássia Virgínia complementa que, além disso, indústrias e comércios estão fechando as portas por causa da pirata-ria. “A pirataria é muito maléfica para a sociedade e afeta o comércio formal e a indústria. Além disso, produtos sem controle de qualidade colocam em ris-co a saúde e a integridade do cidadão”, alerta a promotora de Justiça. E por isso, segundo Vismona, “não há como flexibilizar condutas erradas. Elas não devem ser aceitas, sob pena de se dei-xar de entender os princípios e valores que devem reger a sociedade brasileira. A impunidade não pode ser admitida em um verdadeiro Estado Democrático de Direito, e nele não pode faltar a clara definição do que é certo e errado”.

Alex Lanza

Cássia Virgínia Gontijo

Divulgação

Edson Luiz Vismona

Page 47: Revista Rede 20

47

Resultado de

Operações

Para se ter uma ideia desse trabalho integrado que vem sendo realizado em Minas Gerais, Cássia Virginia conta que, apenas nos dois últimos anos, foram realizadas mais de 20 operações em aproximada-mente 420 pontos; cumpridos cerca de 300 mandados de busca e apre-ensão e apreendidas perto de 90 toneladas de materiais.

Entre os produtos apreendi-dos estão eletroeletrônicos, mídias gravadas, cigarros, óculos, bolsas, relógios, medicamentos abortivos, computadores completos, moni-tores, CPUs, escâneres, impres-soras, diversos drives, máquina copiadora, gravadoras de CD/DVD, data show, manetes de vídeo game, pássaros das espécies curió e bicudo, munições intactas de fuzil e de rifle 44 WCF e um carrega-mento de fuzil, entre outros itens. Além disso, houve 61 conduções, uma apreensão de adolescente e condução de alguns estrangeiros pela Polícia Federal por ausência de documentação que autoriza a permanência no país.

Trabalho contínuo

Para este ano de 2011, Cás-sia Virgínia disse que o grupo vem atuando normalmente, como atua desde 2008, ou seja, de forma per-manente, focando, principalmen-te, na localização de depósitos de produtos pirateados e na punição dos grandes comerciantes desses materiais. “Não afastamos, entre-tanto, a fiscalização do comércio pulverizado, pois não podemos simplesmente imaginar que, por ser um pequeno comerciante, ele não estaria praticando um crime. Está sim.”

Fotos: Alex Lanza

DVDs, CDs, eletroeletrônicos, óculos, cigarros e outros intens enchem caminhões

Page 48: Revista Rede 20

48

Colhendo resultados

Segundo a promotora de Jus-tiça Cássia Virgínia Serra Teixeira Gontijo, o grupo interinstitucional de combate à pirataria tem colhido resultados satisfatórios. Em razão dessas operações, muitos comer-ciantes estão procurando as Recei-tas Federal e Estadual para regula-rizar a situação de seus respectivos estabelecimentos. “Nosso objetivo não é ficar simplesmente fazendo apreensões. O intuito desse tra-balho é fazer com que o comércio possa ter suas atividades dentro da legalidade. Quem ganha com isso é a sociedade, já que o comerciante estará recolhendo seus tributos, os trabalhadores estarão devidamente registrados e recebendo seus salá-rios de maneira correta.”

Já para os comerciantes que insistem em manter suas ativida-des de maneira irregular, a promo-tora de Justiça destaca que outras operações serão realizadas. “Não podemos achar que o comércio de produtos piratas e contrabandea-dos é uma coisa legal. A crimina-lidade precisa ser combatida, e por isso iremos intensificar nosso trabalho. A sociedade precisa es-tar ciente disso e entender que a ilegalidade causa prejuízo a todos.”

A promotora de Justiça men-cionou ainda novas perspectivas de ação do grupo. “Estamos vis-lumbrando a possibilidade de focar também na área do consumidor. Em 2009 e 2010, só para se ter uma ideia, foram apreendidos até ócu-los impróprios para consumo.” Para ela, a atuação de várias instituições é fundamental para reprimir esse comércio. “Nós entendemos que o trabalho em conjunto é mais vanta-joso e proveitoso do que as ações isoladas. Além disso, esperamos contar com o apoio da população, pois, se existem produtos piratas, é porque existem pessoas que os adquirem, na ilusão de que estão fazendo um bom negócio. Mas não é bem assim.”

Alex Lanza

Operação realizada em shopping popular

Page 49: Revista Rede 20

49

O presidente do Fórum Nacional Con-tra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP) e do Instituto Brasil Legal, Edson Luiz Vismona, reconhece que acabar com a pirataria não é uma missão fácil. “A infraestrutura dos nossos portos, aeroportos e pontos de fronteira está fragilizada. A entrada de produtos ilegais se dá sem maiores riscos. A comercialização é pulverizada, e a Administração Pública atua muitas vezes de forma desarticulada. Para completar, as nossas leis dificultam o com-bate aos crimes de pirataria, falsificação e importação irregular, existindo na sociedade uma visão complacente de que essas práticas são de menor potencial ofensivo e, portanto,

não merecem uma ação mais determinada (decisões judiciais têm aceitado essa postu-ra)”, afirma Vismona

Para ele, o resultado é a impunidade, que, “como bem sabe o meio jurídico, é um dos fatores de estímulo ao crime”.

Vismona lembra que a questão de via-bilizar investimentos para o aprimoramento dos recursos humanos e materiais da Recei-ta Federal e Polícia Federal nas fronteiras é necessidade sempre apontada. “O mesmo ocorre para as Polícias Civis e Militares nos Estados. Porém, para definirmos um foco, va-mos nos ater a algumas mudanças legislativas e de postura da Administração Pública”.

Leis dificultam punição aos crimesde falsificação e pirataria

Dificuldades

O presidente do FNCP conta que muitas das dificuldades apontadas pelo Poder Judi-ciário, Ministério Público e Polícias (Federal e Estadual) se referem à estrutura dos inqué-ritos e à própria formação das provas. “Pro-

blemas com a identificação individual de cada produto apreendido, o depósito e a destina-ção dos milhões de mercadorias apreendidas e a prescrição são os que despontam como mais relevantes”, relata.

Falta apoio legislativo

Edson Vismona explica que, na tentativa de facilitar a punição dos crimes de falsifi-cação e pirataria, há dois projetos de lei em andamento no Congresso Nacional. Um, já com 12 anos, é o PL n.º 333/99. O outro, bem recente, o PL n.º 8.052/11, enviado para a Câmara dos Deputados pelo Poder Executivo. “Em ambos, são formatadas propostas que visam facilitar a identificação das mercadorias ilegais (falsificadas) apreendidas, tornar mais célere sua destruição, bem como o perdimen-to dos bens e equipamentos destinados à produção destes. E, especialmente no PL n.º 333/99, há proposta de equiparação do crime de violação de marcas e desenho industrial re-

gidos pela Lei n.º 9.279/96 com os cometidos contra os direitos de autor, aumentando-se as penas e, assim, diminuindo-se os prazos de prescrição”, diz.

Ele complementa que essas mudanças da legislação representam questões até sin-gelas, mas que não têm encontrado, no âm-bito do nosso Legislativo Federal, uma maior atenção. “De outro lado, a ação da Adminis-tração Pública deve ser articulada. O poder de polícia deve ser exercido congregando com-petências. Nas operações realizadas, diante da concorrência de diversas práticas ilegais, a cooperação é necessária, diminuindo o es-paço de quem atua na ilegalidade”, afirma.

Page 50: Revista Rede 20

50

honestidadeBrasil tem nota baixa em

Desde 1995 a organização não

governamental Transparency

International divulga anualmente

um ranking sobre a percepção da

corrupção no mundo. No último

relatório, divulgado em outubro

de 2010, o Brasil aparece na

69ª posição entre os 178 países

avaliados. A classificação foi feita

com base no Índice de Percepção

da Corrupção (IPC), que varia de

zero a dez e é composto de uma

combinação de sondagens junto

a especialistas e empresários de

instituições independentes do país

avaliado e do exterior. Na pesquisa,

levou-se em conta a maneira como

é percebido o grau de corrupção

do setor público e da classe política.

Por Fernanda Magalhães

Políticos usam máscara de legalidade para continuar

desviando dinheiro dos cofres públicos

Page 51: Revista Rede 20

51

Corrupção é prática antiga

O Brasil atingiu uma pontuação final de 3,7. A mesma de Cuba, Montenegro e Romênia. No topo da lista, considerados como os mais “limpos”, com 9,3 pontos, estão empatados Dinamarca, Nova Zelândia e Cingapura. O último colocado do ranking é a Somália, com um índice de 1,1. O país sul-americano melhor classificado, ou seja, considerado menos corrupto, é o Chile (21º colocado), com 7,1 pontos, seguido do Uruguai (24º lugar), com 6,9 pontos. De modo geral, os chamados países desenvolvidos tendem a apresentar melhor classificação no ranking, mas exis-tem exceções. A Itália, por exemplo, ficou com 3,9, pontuação bem próxima à do Brasil. Em comparação ao IPC do ano anterior, o Brasil manteve a mesma pontuação, mas subiu cinco posições, saindo do 74º para o 69º lugar.

Há oito anos atuando na Procuradoria de Justi-ça de Combate aos Crimes Praticados por Agentes Políticos Municipais, órgão do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), o procurador de Justiça Elias Paulo Cordeiro diz acreditar que a corrupção no Brasil não está aumentando nem diminuindo, “é a mesma coisa, mas tem aparecido mais”. O maior acesso à informação e o aperfeiçoamento dos mecanismos de controle fazem com que muitas vezes tenhamos a per-cepção de que os casos de corrupção cresceram nas últimas décadas.

“Embora recebessem altos salários, muitos bu-rocratas engordavam seus rendimentos com propi-nas e desvio de verbas públicas. Inúmeras evidências permitem afirmar que a máquina administrativa não era apenas ineficiente, mas corrupta.” Nesse trecho do livro A coroa, a cruz e a espada: lei, ordem e cor-rupção no Brasil Colônia, o jornalista Eduardo Bueno refere-se a todo o aparato político-administrativo do período em que foi implantado, no Brasil Colônia, o sistema dos Governos Gerais. Se vasculharmos a história do nosso país, vamos ver que a corrupção, o clientelismo e outras mazelas dessa natureza sempre permearam a administração pública.

Mas então esse é um problema crônico que de-vemos aceitar e com o qual devemos conviver? Na introdução de sua obra História do Brasil, o historia-dor Boris Fausto fala de duas tendências opostas na exposição do processo histórico brasileiro, as quais ele rejeita. “De um lado, aquela que vê a História do Brasil como uma evolução, caracterizada pelo pro-gresso permanente - perspectiva simplista que os anos mais recentes se encarregaram de desmentir. De outro lado, aquela que acentua na História do Brasil os traços de imobilismo, como o clientelismo,

a corrupção, a imposição do Estado sobre a socieda-de, tanto na Colônia como nos dias de hoje. A última tendência está geralmente associada ao pensamento conservador. Por meio dela, é fácil introduzir a ideia da inutilidade dos esforços de mudança, pois o Brasil é e será sempre o mesmo; conviria assim adaptar- -se à realidade, tecida pelos males citados e onde se inclui, não por acaso, a imensa desigualdade social.” E continua: “A cada passo, na passagem do Brasil Colônia para o Brasil independente, na passagem da Monarquia para a República etc., procurei mostrar que, em meio a continuidades e acomodações, o país muda, conforme o caso no plano socioeconômico ou no plano político e, às vezes, em ambos.”

É nisso que o procurador de Justiça Elias Cor-deiro também acredita. Segundo ele, “ainda que len-tamente, as mudanças vão se processando, inclusive pelo trabalho intenso do Ministério Público”. Defesa do Patrimônio Público, Defesa da Ordem Econômica e Tributária, Combate ao Crime Organizado e Combate aos Crimes Praticados por Agentes Políticos Muni-cipais são algumas das principais áreas de atuação do Ministério Público fundamentais para o combate à corrupção, seja no setor público ou privado.

Crimes de prefeitos

A Procuradoria de Justiça de Combate aos Cri-mes Praticados por Agentes Políticos Municipais é um órgão do MPMG criado em 2001 para atuar em processos relativos a crimes cometidos por prefeitos. Por determinação constitucional, os chefes dos Exe-cutivos municipais são julgados perante os Tribunais de Justiça. Por isso, quando um prefeito comete um crime, a atribuição para atuar no caso é do procu-rador-geral de Justiça, chefe do Ministério Público Estadual. No entanto, o coordenador da Procuradoria de Justiça de Combate aos Crimes Cometidos por Agentes Políticos Municipais, procurador de Justiça Márcio Gomes de Souza, explica que, em Minas Ge-rais, num universo de 853 municípios, o procurador- -geral de Justiça não teria como fazer esse acompa-nhamento, que foi então delegado ao grupo de sete procuradores de Justiça que compõem o órgão.

Apesar de a Procuradoria de Justiça tratar de qualquer crime cometido por prefeito, como lesão corporal, homicídio etc., o maior foco são os crimes contra a Administração Pública. Segundo Elias Cor-deiro, os mais comuns são fraude em licitação, desvio de verba, crime ambiental e contratação irregular de servidores – basicamente os chamados crimes de res-ponsabilidade, previstos no Decreto-Lei n.º 201/67 e na Lei n.º 8.666/93 (Lei das Licitações).

Page 52: Revista Rede 20

52

Improbidade administrativa

Mas é importante ressaltar que não existe foro especial no aspecto cível. Então em caso de impro-bidade administrativa, por exemplo, é o promotor de Justiça local quem vai propor a Ação Civil Pública. “Algumas pessoas confundem isso. Não temos atri-buição para atuar na improbidade. Nesse caso, quem vai atuar é o promotor de Justiça na comarca, com atribuição na área de Defesa do Patrimônio Público”, explica o coordenador da Procuradoria de Justiça.

Nesses casos, a Lei n.º 8.429/92 prevê as se-guintes penalidades, que serão aplicadas de acordo com o dano causado e com a extensão do proveito pa-trimonial obtido: perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, perda da função pública, suspensão dos direi-tos políticos, pagamento de multa civil e proibição de contratar com o Poder Público.

A cada quatro anos, novos

processos

Outra característica própria da Procuradoria de Justiça é a sazonalidade dos processos. Os prefeitos respondem perante o Tribunal de Justiça apenas en-quanto durar o mandato. Quando deixam o cargo, ain-da que o processo esteja tramitando, ele é remetido para a comarca. Já no caso de uma pessoa denuncia-da vir a assumir o cargo de prefeito, o processo faz o caminho inverso, ou seja, é remetido da comarca para o Tribunal de Justiça. Com isso, a cada quatro anos a Procuradoria recebe uma nova remessa de processos e deixa de atuar em outros. “Os processos aqui são sazonais. Depois da eleição, saem os dos prefeitos que encerram o mandato e entram os daqueles que assumem o cargo”, diz Elias Cordeiro.

Essa peculiaridade, somada à lentidão dos trâ-mites processuais, faz com que poucas vezes um processo tramite do início ao fim na Procuradoria de Justiça. De acordo com Cordeiro, “mesmo com a reeleição, dificilmente um processo iniciado aqui é acompanhado até o final. Mas quando isso acontece, o mesmo procurador de Justiça acompanha o proces-so da representação ao julgamento”.

Mesmo assim, o número de feitos da Procurado-ria de Justiça não é pequeno. Atualmente, são 692 procedimentos ainda em fase de investigação, 239 ações penais com denúncia oferecida e 79 inquéritos policiais e termos circunstanciados de ocorrência. Es-

Alex Lanza

Márcio Gomes

Alex Lanza

Elias Paulo Cordeiro

Page 53: Revista Rede 20

53

Quando os adversários são

os aliados

Os crimes comuns normalmente chegam à Procuradoria de Justiça por meio de inquéri-tos policiais. Já os crimes de responsabilidade aportam no órgão principalmente por meio de representações, na maioria das vezes feitas por adversários políticos.

Feita a representação, o procurador de Jus-tiça requisita documentação referente ao assunto para ser analisada. “Vamos juntando provas e já temos um know-how para saber como funciona. Por isso é tão importante ter uma atuação espe-cializada”, diz Elias Cordeiro. Segundo Márcio Gomes, a Procuradoria de Justiça conta com um setor composto de especialistas que fazem essa análise, confrontado números para tentar encon-trar a fraude dentro da aparente legalidade. Para Cordeiro, a parte complicada é descobrir para onde foi o dinheiro. “Evidentemente a pessoa não vai depositar na própria conta bancária”. Gomes acrescenta que nem sempre é fácil investigar, pois se esbarra muitas vezes em dificuldades, como conseguir algum tipo de quebra de sigilo.

O procurador de Justiça Elias Cordeiro conta que a representação feita por inimigos políticos é um capítulo à parte no trabalho da Procuradoria de Justiça. Segundo ele, é muito comum alguém chegar lá com vários documentos desconectados querendo encontrar um jeito de processar o prefeito. Nesses casos, quase sem-pre esse alguém é o líder político da oposição ou outra pessoa enviada por ele. “Isso aumen-ta muito a nossa demanda. Temos que fazer um trabalho de triagem muito grande. Por isso, ao mesmo tempo que propomos muitas ações, ar-quivamos muito”, explica.

De acordo com o coordenador da Procu-radoria de Justiça, Márcio Gomes, essa é uma característica dessa área de atuação. “É normal que contemos com representações dos adver-sários políticos, mas às vezes o opositor quer fazer uso da Instituição para seus fins políticos e traz representações fantasiosas, sem funda-mento. Mesmo assim, apuramos. Mas, se não encontramos qualquer fundamentação fática, o procedimento é arquivado.”

Lei de Responsabilidade Fiscal

Em maio de 2000, foi sancionada a Lei Comple-mentar n.º 101, mais conhecida como Lei de Respon-sabilidade Fiscal, que estabelece normas de finanças públicas com o objetivo de garantir uma política de gestão fiscal mais responsável. No entanto, segundo o procurador de Justiça Elias Cordeiro, a Lei fez com que as fraudes se tornassem mais sofisticadas, mas não inibiu abusos. “Estou na Procuradoria de Justiça desde 2003, e o que víamos era uma coisa muito ama-dora. Hoje percebemos um maior cuidado na forma de burlar as leis.” Na opinião dele, o problema está na questão do voto. “Ainda são muito comuns o ‘voto de cabresto’, a compra do voto, a troca de favor. Geral-mente nos municípios são sempre os mesmos políti-cos, que, mesmo cometendo delitos e respondendo a processos, conseguem se eleger e se reeleger.”

Márcio Gomes concorda que hoje as Prefeituras se preocupam mais em apresentar documentação formalmente correta, mas que os crimes continuam sendo cometidos. “Antigamente, as Prefeituras sim-plesmente ignoravam a Lei de Licitação e faziam com-pras a seu bel-prazer. Hoje muitas dessas compras continuam sendo feitas, mas formalmente existe uma máscara de legalidade.”

Ele dá como exemplo a Operação 40, deflagrada pelo MPMG em abril de 2008, que tem vários proces-sos em andamento. O esquema consistia, basicamen-te, em um grupo de empresas da área de medicamen-to que se associou a algumas Prefeituras para lesar o erário. “Nessas situações existe uma formalização dessas compras, toda a documentação é montada de forma que dê uma aparência de legalidade. Para con-seguir provas das irregularidades, é preciso aprofun-dar a investigação. Nesse caso, por exemplo, foi por meio de escutas telefônicas autorizadas pela Justiça.”

ses últimos consistem, quase todos, em crimes comuns, como acidentes de trânsito, homicídio etc. Dos 853 municípios do Estado, 443 têm pelo menos algum feito tramitando na Procuradoria.

Lei da Ficha Limpa

A Lei Complementar n.º 135, ou Lei da Ficha Limpa, foi sancionada em junho de 2010 e passará a valer a partir das eleições de 2012. Originada de um projeto de lei de iniciativa popular, sua aprovação se deu graças à mobilização de milhões de cidadãos, e se tornou um marco da luta contra a corrupção e contra a impunidade no Brasil.

Ambos os procuradores de Justiça concordam que a Lei da Ficha Limpa representa um avanço. Como os processos nos quais atua a Procuradoria são julgados por órgão colegiado, o prefeito condenado não poderá se candidatar por um período de oito anos depois da condenação.

Page 54: Revista Rede 20

54

Ao propor a existência de duas classes de cidadãos, o professor

alemão Günther Jakobs iniciou uma grande discussão. Afinal

existem mesmo pessoas que devem ser punidas pelo que

são e não pelo que fazem? Não resta dúvida de que a teoria

do Direito Penal do Inimigo é polêmica, mas, a despeito de se

posicionar favorável ou contrariamente a esse pensamento,

talvez seja possível usá-la para fazer uma análise sobre o

Direito Penal brasileiro. Nessa tentativa, dois estudiosos

do Ministério Público de Minas Gerais lançam suas ideias

e reflexões sobre o tema. São eles o procurador de Justiça

Rogério Greco e o promotor de Justiça Marcelo Cunha.

Com os ataques às torres gêmeas dos Estados Unidos,

em setembro de 2001, uma corrente de pensamento que

começou na década de 80 ganhou força. Jakobs fundamenta

a teoria do Direito Penal do Inimigo em três pontos: a

antecipação da punição do inimigo; a desproporcionalidade

das penas e relativização ou supressão de certas garantias

processuais; a criação de leis severas direcionadas a

terroristas, delinquentes organizados, traficantes, criminosos

econômicos, entre outros.

O inimigo existePor Giselle Borges

Page 55: Revista Rede 20

55

Dois pesos, duas medidas

O procurador de Justiça de Minas Gerais, mestre em Ciências Penais e doutor em Direito, Rogério Greco afirma que, embora tenha ganhado força nas décadas de 80 e 90, o tema não é novo. Ele lembra que no Império Romano já se fazia uma distinção entre o cidadão e o inimigo. Na Bíblia, segundo ele, há uma passagem em que Paulo é preso junto com Silas. E quando o pretor manda liberar Paulo, o preso argumenta que não aceitava aquela situação, pois não era possível castigar um cidadão romano sem o devido processo legal. O pretor não sabia que Paulo era judeu, mas tinha a cidadania romana. O Império Romano fazia essa distinção. Para o cidadão ser punido tinha o devido processo legal, direito de defesa e outras garan-tias, ao contrário do não cidadão, que não tinha proteção alguma.

O procurador de Justiça acrescenta que Günther Jakobs também se inspirou em alguns professores alemães da Segunda Guerra Mundial. Greco conta que, quando Hitler fez aquela proposta de campos de concentração, inicialmente não era para judeus, era para o povo alemão, que esta-va em uma situação de sofrimento, após perder a

Primeira Guerra, com todo tipo de carência. Para reerguer a Alemanha, Hitler fez uma série de pro-messas de campanha eleitoral. E uma delas era acabar com os mendigos, com as prostitutas, com as pessoas que tivessem deficiência física e com os homossexuais. Essas pessoas eram presas e mor-tas nos campos de concentração. Com a eclosão da Segunda Guerra é que os campos de concen-tração foram destinados aos judeus, e não mais a parcelas da população alemã consideradas estra-nhas à comunidade e que não pudessem ser úteis de alguma forma para a sociedade.

Com os atentados terroristas, Jakobs teria resgatado essas ideias e criado uma distinção vol-tada para países que enfrentam o terrorismo. Se-gundo Rogério Greco, que é especialista em Teoria do Crime, o professor estabelece que ao cidadão estão assegurados todos os direitos e garantias fundamentais. Esse cidadão, eventualmente, prati-ca crimes como estupro, furto, corrupção e muitos outros, mas permanece dentro do ordenamento ju-rídico. Já o chamado inimigo, não. Este não aceita o ordenamento jurídico e, por isso, também não deve ser beneficiado por ele.

Alex Lanza

Rogério Greco

Page 56: Revista Rede 20

56

Ideia retrógrada

Para Rogério Greco, o pensamento de Günther Jakobs é um retrocesso. Ele afirma que o Direito Penal hoje é o do fato. Ou seja, a pessoa será punida pelo seu comportamento, por ter praticado determinado fato que está previsto na lei penal. Segundo ele, o raciocí-nio, no Direito Penal do Inimigo, é diferente: pune-se o inimigo pelo simples fato de ser as-sim taxado, independentemente de ele fazer ou não alguma coisa. Greco exemplifica a teo-ria de Jakobs assim: se a pessoa é terrorista, não há necessidade de esperar que ela aperte o detonador e exploda 500 pessoas em um shopping. A partir de uma série de raciocínios, o professor alemão conclui que o inimigo o é hoje, amanhã e depois de amanhã. E, nesse caso, não é preciso ter uma pena determinada,

e sim de natureza indeterminada, normalmente de caráter perpétuo. Segundo explica Greco, esse raciocínio, cuja tese se espalhou pelo mundo, afetando realidades diferentes das que lhe deram origem, começa a subverter todo o sistema, pois se aplica uma legislação de mo-vimento de lei e ordem, muito dura, fazendo com que se perca o sentido da legislação penal e processual penal.

O procurador de Justiça considera muito perigoso fazer essa distinção entre cidadão e inimigo, principalmente diante da dificuldade em identificar, no ordenamento jurídico brasi-leiro, quem é este último. Basta, por exemplo, lembrar que um cidadão pode estar bem poli-ticamente hoje e escolher seu inimigo. Quando estiver mal, sua posição poderá inverter-se.

Pena compatível com o ato

Embora não aplique a teoria do Direito Penal do Inimigo, o promotor de Justiça de Minas Gerais e professor de Direito da Pon-tifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) Marcelo Cunha acredita que o pensamento conduz a uma boa reflexão sobre o Direito Penal brasileiro. Ele ressalta que, para as nações que vivenciam atentados ou amea-ças terroristas, é mais simples aceitar a exis-tência de um inimigo. Segundo Marcelo Cunha, Jakobs diz que só é possível estar dentro do conjunto de pessoas que abdicam de parte da liberdade para fazer jus aos benefícios de todos se forem dadas garantias de que todos vão se portar racionalmente de acordo com as normas.

Marcelo Cunha, que é mestre em Direito Processual e doutor em Direito Constitucional, exemplifica: “Se uma pessoa trabalha todo dia, mas em um determinado momento chega em casa, vê que está sendo traído e mata a espo-sa, isso não quer dizer que essa pessoa não está dando garantia para a sociedade de que normalmente atua de acordo com a norma. Apenas em um momento não atuou, mas isso não retirou a norma de vigor. Agora, se uma pessoa não entende como legítima a norma e tem como objetivo criar situações em que deixa todas as pessoas em perigo, como um terroris-ta, essa pessoa não dá as garantias mínimas

de que se coloca como membro da sociedade.”O professor explica que o Direito é a ten-

tativa de racionalizar a necessidade de convi-vência social. Como exemplo, diz que, se al-guém pratica um ato muito grave com relação à sociedade, ele não pode simplesmente ser esquartejado na rua. É preciso arrumar uma solução racional, explicitar essa racionalidade e aplicar uma penalidade compatível com o que foi feito. Marcelo relata que, a partir de 2001, o mundo se viu diante de um dilema: “Há certas condutas que saem da razoabilidade, que co-locam em xeque a nossa capacidade de resol-ver racionalmente os problemas. Nos Estados Unidos e em quase todos os países da Europa, houve a necessidade de se criar uma legisla-ção mais severa com os possíveis terroristas. É muito fácil dizer que as pessoas têm o di-reito constitucional de ficar em silêncio. Mas, se há fortes indícios de que alguém tem aces-so a uma bomba nuclear e pode detonar uma cidade com 400 mil habitantes, como é que, racionalmente, se trabalha nesses casos? Nos EUA há leis que permitem que a pessoa fique incomunicável mesmo em relação ao advogado, sem nenhuma acusação formal, por 72 horas. É algo muito radical, mas surgiu por algumas necessidades. Para trabalhar teoricamente es-sas necessidades é que veio o Direito Penal do Inimigo”, acentua.

Page 57: Revista Rede 20

57

Duas categorias

Para Marcelo Cunha, a ideia é simples: “O ci-dadão é aquele que tem que ter acesso a todas as garantias, e o inimigo é aquele que se autocoloca fora da sociedade, não tendo, portanto, direito de usar dos benefícios sociais quando é pego.” Marcelo Cunha entende que o professor Günther Jakobs quer, na verdade, teorizar racionalmente a respeito de algo que já existe. “Ele quer enten-der, por exemplo, como é que se veda a algumas pessoas o acesso a seu advogado por 72 horas dentro de um Estado Democrático de Direito. E ele tenta teorizar e diz: ‘A gente faz isso porque essa pessoa se colocou de fora.’”

O promotor de Justiça acredita que Jakobs

não quer propor nada. “Ele quer entender o que acontece. Como ele não quer propor nada, ele não quer criar o direito penal do cidadão e o direi-to penal do inimigo. Ele quer é falar que existem momentos em que o traço do direito penal do inimigo é mais marcante do que o direito penal do cidadão. E existem momentos em que acontece o contrário. É basicamente isso que Jakobs quer fazer. Qual é a crítica que todo mundo faz a ele, e eu acompanho? Ele usa termos muito fortes, que não se compatibilizam com a realidade brasileira. Quando ele fala que existem duas categorias, o cidadão e o inimigo, é difícil aceitar, porque vai criar o cidadão e o cidadão de segundo escalão.”

Direito Penal brasileiro

Ainda assim, Marcelo Cunha acredita que alguns pontos dessa teoria podem ser aproveita-dos. “O inimigo sempre existe. Não o inimigo no sentido de um cidadão de segunda categoria, mas sim no sentido de que o Direito Penal, necessa-riamente, tem que fazer escolhas de punir certas condutas de maneira mais rigorosa que outras.” Para o promotor de Justiça, é clara a existência de traços similares para os presos no Brasil. “Da mesma forma que existe uma superpopulação carcerária, posso dizer que essa superpopulação é homogênea. Os presos são iguais. Existe uma parcela da população que é escolhida pelo siste-ma criminal para ser os nossos presos. O inimigo é uma escolha de um determinado Estado, por política criminal, para punir mais severamente de-terminadas condutas e não determinados grupos. Ações que se consideram mais nocivas e cuja pu-nição possa ter um maior benefício social.

Ainda na linha mais conceitual, Rogério

Greco diz que, no ordenamento jurídico brasileiro, não é possível apontar o inimigo. Para ele, será sempre uma seleção arbitrária. Ao falar sobre o Direito Penal do Inimigo, o procurador de Justiça afirma: trata-se de uma tese perigosa e que já está um pouco fora de moda na Europa. No Bra-sil, segundo Greco, há legislações duras, como a lei de crimes organizados, escuta telefônica, nas quais se tenta encaixar, de alguma forma, esse ra-ciocínio defendido por Jakobs. Há ainda, segundo ele, projetos no Congresso Nacional prevendo o aumento do tempo máximo de cumprimento de pena para 40 anos. Ele lamenta a forma como o Direito Penal está sendo utilizado nos dias de hoje. Nos tempos da ditadura, ressalta Greco, que em tese privava arbitrariamente a liberdade, havia infinitamente menos direitos penais, repre-sentando um contrassenso, agora que o país vive a democracia, o excessivo número de leis que o Brasil possui.

Hipergarantismo ganha força

Marcelo Cunha afirma que atualmente há no direito criminal o domínio de uma corrente que ele denomina hipergarantismo. Ela partiria dos pressupostos que são aceitos basicamente por todos os operadores do Direito de que o Direito Penal deve servir para a punição do criminoso,

mas também para que este tenha garantias em relação ao Estado que quer puni-lo. Essa postura se refere às garantias constitucionais, como o di-reito de permanecer em silêncio, o direito a uma prisão de acordo com a Constituição, o direito à presunção da inocência.

Page 58: Revista Rede 20

58

É estatisticamente insignificante o número de

pessoas punidas em relação ao

número de pessoas que praticam os

crimes. Isso é resultado do

hipergarantismo”

Alex Lanza

Marcelo Cunha

Como resquícios da transição de um perío-do ditatorial para o período democrático, houve, segundo Cunha, um excesso na interpretação do que seriam as garantias adequadas. “Desde a Constituição, esse movimento hipergarantista vem ganhando força e vem gerando distorções que a sociedade não aceita mais. A sociedade fica revoltada com isso, e o promotor de Justiça acaba sendo o para-raios”, diz.

Marcelo Cunha acredita que todo mundo que tenha um mínimo de bom senso acha que as ga-rantias dos réus têm que ser respeitadas. Para ele, poucas são as pessoas que pensam que, se alguém praticou um crime, deve ser assassinado por uma horda de pessoas revoltadas. Não, as pessoas querem que se pague pelos erros. Nem

mais, nem menos. “Como vínhamos de uma dita-dura, foi muito importante a consolidação dessas garantias, mas diversos grupos, por interesses específicos, fizeram com que essa interpretação passasse a ser uma coisa absurda. Atualmente há afirmativas estatisticamente corretas que são alarmantes, do tipo: hoje em dia pode-se matar qualquer pessoa no trânsito e nunca ser preso. Posso falar que, hoje em dia, uma pessoa pode se apropriar de dinheiro público e nunca ser presa por causa disso. É óbvio que essa afirmativa é estatística. O que eu estou falando é que é esta-tisticamente insignificante o número de pessoas punidas em relação ao número de pessoas que praticam os crimes. Isso é resultado do hiperga-rantismo.”

Page 59: Revista Rede 20

59

O promotor de Justiça diz que o hipergaran-tismo é uma retórica para beneficiar alguns gru-pos. “Como instrumento de retórica vem como dis-curso para todos, pois não se pode falar que só os ricos não vão ser presos. O que se pode dizer é: todos têm direito de aguardar em liberdade, mas não são todos que podem ir ao Superior Tribunal de Justiça ou ao Supremo Tribunal Federal e não deixar o processo acabar nunca. Mas esse resulta-do na verdade é construído a partir de milhares de microdecisões. Todo mundo critica o Direito Penal do Inimigo no Brasil justamente por causa do hi-pergarantismo. Quando um determinado titular de cargo público se apropria de R$ 5 milhões, não se sente tanto quanto a explosão de um prédio, mas o efeito pode ser praticamente o mesmo. No Brasil

não sentimos a necessidade do Direito Penal do Inimigo, por isso ele é tão facilmente rechaçado.”

Rogério Greco, por sua vez, diz que a lei é injusta e que foi feita para o pobre, que é quem vai ser revistado nas ruas. Os criminosos do cola-rinho branco, segundo ele, não vão presos porque têm bons advogados, vão usar todos os recursos e protelar ao máximo a conclusão do processo. Já o pobre não tem ninguém por ele, e a Defensoria Pública não dá conta de resolver. Rogério Greco considera que o Brasil está mudando. Antes da Constituição de 88, não se cogitava de alguém ser preso. Hoje, por mais que não fique preso efe-tivamente, já se ouve falar que alguém foi preso preventivamente, que está sendo processado cri-minalmente.

Grupos favorecidos

O inimigo deve ser entendido, para Marcelo Cunha, como uma opção de política criminal de se punir mais severamente certas condutas. Para ele, o primeiro grande ponto de Günther Jakobs é a constatação de que a sociedade sempre vai ter inimigos. Cunha acredita que as opções de política criminal devem ser compatíveis com as necessi-dades de determinada sociedade em determinada época.

Qual é o inimigo brasileiro atual? “É o homem de 18 a 30 anos que comete tráfico de drogas ou crime violento e cuja renda mensal deve girar em torno de, no máximo, quatro salários mínimos. Se falarmos que, a partir de hoje, não prenderemos mais esse público, os cerca de 450 mil presos no Brasil cairiam para 10 mil ou 15 mil.” Marcelo re-alça que essa, atualmente, é a conduta escolhida pelo Direito Penal brasileiro para ser punida e inda-ga: “Como esse inimigo é escolhido? Pela prática. Não há ninguém que escolhe. É escolhido por mi-lhões de microdecisões que vão direcionando para esse público. Um dos grandes fatores é que eles não têm acesso à assessoria jurídica efetiva, há falhas por parte do Ministério Público, dos juízes, na investigação criminal”, afirma Cunha.

Para Marcelo Cunha, essa diferenciação vem se tornando mais grave e não corresponde ao que a Constituição Federal prevê. “Se a Constituição fala que determinados crimes têm que ser puni-dos mais severamente, é preciso entender que os meios processuais para investigar esses crimes

têm que ser mais fáceis. O que deveria ser mais fácil? Uma quebra de sigilo telefônico de um crime do colarinho branco ou um mandado de busca e apreensão para pegar droga na casa de um cida-dão? Quem tem que pautar o que é mais fácil ou mais difícil não é só a prática, tem que ser o ope-rador do Direito.”

A própria Constituição traz parâmetros para falar qual é a atual escolha de política criminal. São os crimes hediondos, ação de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional e contra o Estado democrático, prática do racismo, atos de improbidade administrativa, entre outros. “Por que os crimes previstos na Constituição como os que deviam ser punidos mais severamente não o são? São, na verdade, os menos punidos. Não é algo ingênuo. Por que os atos de improbidade administrativa têm uma jurisprudência muito mais tolerante do que os crimes cometidos pelos po-bres?”, questiona Marcelo Cunha.

É nesse ponto que ele chama a atenção para o Direito Penal do Inimigo. “É trazer essa discus-são para dentro do Direito. Discutir seriamente por que atualmente é impossível uma pessoa que se apropria de dinheiro público ser presa. Por que a Constituição fala que os crimes hediondos devem ser punidos mais severamente, mas o Congresso Nacional, quando definiu os crimes hediondos, não previu nenhum crime do colarinho branco? E qual é a postura que o Ministério Público e o Judiciário têm que tomar em relação a isso?”

Os inimigos no Brasil

Page 60: Revista Rede 20

60

Por que a Constituição fala que os crimes hediondos devemser punidos mais severamente, maso Congresso Nacional, quando definiuos crimes hediondos, não previu nenhum crime do colarinho branco?”

Democratizar a democracia

Diferentemente dos políticos, que representam certos estratos da população, promotores de Jus-tiça e juízes de Direito têm outra obrigação, que é atuar a constituição democrática, democratizar a democracia. “Quando o promotor de Justiça pune uma pessoa que matou o vizinho a facadas ou que entrou no tráfico de drogas, não pode simplesmente argumentar que essa pessoa nunca teve acesso a escola razoável, família estruturada, posto de saú-de, opções de esporte, de lazer, de cultura, e, por isso, pedir a absolvição dele. Isso é simplificar o problema. O que podemos ver é que essa pessoa não é só vitima, mas também não é só culpada”, afirma.

Para Cunha, há uma grande parcela de culpa da sociedade, mas que não exime a responsabili-dade desse criminoso. “Agora, quando o promotor de Justiça pune essa pessoa, ele está enxugando gelo. Quando ele manda para a cadeia mais um dos 450 mil que fazem parte dessa estatística, o filho dessa pessoa provavelmente vai continuar fazendo isso, vai continuar sem acesso a uma escola em horário integral, com três refeições, com profes-sores interessados. Se a cada R$ 1.000 que forem tributados, chegarem R$ 100 aos cofres públicos e, desses R$ 100, apenas R$ 1 chegar à obra, nunca conseguiremos fazer uma escola dessa.”

Marcelo Cunha acredita que atualmente há duas práticas de Direito Penal: a da manutenção do status quo e a da implementação da democracia. E que as duas precisam atuar. “É preciso enxergar que o Direito Penal democrático é aquele que di-minui o lapso social. Estamos em um momento em que nada disso é problematizado. Só falamos em direitos e garantias dos réus, principalmente quan-do é réu rico. Então, quando é um banqueiro ou um político de alta posição, nosso Direito consegue ser um paradigma para o mundo inteiro. E quando é um furto de galinha ou coisa do gênero, ele consegue ser o carrasco do pobre”, frisa.

Esse é o paradoxo, segundo Marcelo, de se ter uma superpopulação carcerária e ser o país mais garantista do mundo. “Muitas vezes o pobre tem que ser preso, mas eu queria que isso acontecesse com o rico também. Eles cometem o mesmo homi-cídio, mas, por razões técnicas, o rico é liberado e o pobre vai para a cadeia, usando o argumento de que uma prisão preventiva só é justificável quando o cidadão apresenta risco de fuga ou risco à ordem pública. Leia-se: a pessoa tem antecedentes ou não tem emprego ou residência fixa. E, assim, estamos punindo uma classe, mas não podemos partir para um discurso de que o papel da Justiça é fazer com que o pobre seja solto.”

Marcelo Cunha

Page 61: Revista Rede 20

61

O problema é social e político

Para o procurador de Justiça Rogério Greco, a le-gislação penal cumpre o seu papel, mas o Estado não cumpre a sua função social. Falta no Brasil, ressalta Greco, saúde, educação, lazer, cultura, habitação, e não se pode usar o Direito Penal no lugar do Estado Social, que não vai funcionar. Para ele, o problema é social e político. Ele crê que, no dia em que as funções sociais do Estado forem cumpridas, grande parte da criminalidade violenta será reduzida.

Greco acredita que a legislação atual é boa e, como há muitas leis no Brasil, o que precisa é ajustá--las, pois a sociedade vive em processo de mudança. É possível, segundo ele, aplicar penas altas para quem merecer uma pena alta. E não pode um fraudador que subtraiu R$1 bilhão receber pena mínima porque é primário. Ele completa afirmando que, no dia em que a Justiça souber manejar bem a legislação brasileira, será suficiente, ressalta Greco

Marcelo Cunha, por sua vez, defende que a mu-dança necessária é a de interpretação, que, segundo ele, mudou muito nos últimos 30 anos, e a legisla-ção não. “É o mesmo Código de Processo Penal que mandava a pessoa recorrer presa, que tinha requisi-tos muito mais fáceis de serem configurados para a prisão preventiva. Com esse movimento garantista,

os advogados conseguem manter os clientes soltos durante o processo.” Ele conclui: “Precisamos enxer-gar que o nosso papel como promotor de Justiça está se limitando cada vez mais a ficar só em uma ponta, e o Judiciário tem também cada vez mais proferido decisões só contra os pobres. Está na hora de recor-rermos cada vez mais, de usarmos sustentação oral nos tribunais cada vez mais para mudar isso e para que se consiga punir essa outra ponta dos inimigos.”

Greco ressalta que interpretar não é fácil, e que a execução dessa tarefa varia muito entre juízes e promotores de Justiça. Ele, que segue a linha mini-malista, trabalha com a eleição de prioridades, apu-rando o que é mais importante e deixando os demais casos para serem protegidos por outros ramos do ordenamento jurídico, como o Direito Civil, o Direito Administrativo, o Direito Tributário, mas não pelo Di-reito Penal. Ele cita como exemplos a contravenção penal do jogo do bicho e os jogos de azar. E questiona o porquê de ainda existir tal prática a não ser para estimular corrupção. Para ele, isso não interessa ao Direito Penal. Nesses casos, aplicam-se princípios penais fundamentais, como o da insignificância, na esperança de que o legislador retire do rol de contra-venções penais esses tipos de conduta.

Justiça e igualdade

Proteger os bens mais importantes e necessários ao convívio em sociedade é, para Greco, a função do Direito Penal. E quem define essa importância é o legislador, bem assessorado. Há, para ele, crimes im-portantes, como os crimes contra a vida. Ele entende que até o critério de proporção na lei é curioso. E ilus-tra com o seguinte exemplo: se uma pessoa estiver andando na rua e tomar um soco no rosto, a pena do agressor vai de três meses a um ano. Mas, se uma pessoa for à sala de outra e levar a sua pulseira, a pena vai ser de um a quatro anos. Ele questiona o que é que vale mais: a integridade física ou uma pulseira? Essa inversão de valores acontece, segundo Greco, porque existem leis demais. Ele defende a revisão do Código de Processo Penal e lamenta que muitas vezes a modificação é para pior, gerando muitas dú-vidas.

O procurador de Justiça destaca o papel do Mi-nistério Público. Para ele é buscar justiça e, princi-palmente, a igualdade, pois, enfatiza, o Direito Penal não é igual. É seletivo. Ele escolhe o que quer punir. E acrescenta que, se tem escolher, então que seja

escolhido aquilo que causa prejuízo maior e deixe de lado o que causa prejuízo menor.

Como um caminho para resolver esse problema, Rogério Greco pensa em uma limpeza do sistema. Uma comissão formada para limpar o Código Penal e a legislação extravagante que também prevê crimes e penas. Em segundo momento, ele defende o melhor uso do Juizado Especial Criminal, ampliando a sua competência para crimes com previsão de penas de até quatro anos, dando liberdade ao Ministério Pú-blico para fazer transação penal. Assim, iriam para o juizado basicamente todas as infrações contra o patrimônio sem violência. Em terceiro lugar, infrações graves deveriam ser julgadas de forma grave para se sentir que o Direito penal pode ser violento. Ele exem-plifica: uma pessoa mata, é condenada a 12 anos e, com quatro, está na rua. Está errado. Assim o Direito Penal não fez sentir a sua força. Por último, seriam os crimes contra a humanidade, como genocídio e outros, que precisam ser imprescritíveis. Para ele, se for visualizada essa forma piramidal, pode-se resolver muita coisa. Mas tem que haver vontade política.

Page 62: Revista Rede 20

62

Homicídio sem cadáver

Opinião

A intensa exposição na mídia do provável homi-cídio da modelo Eliza Samúdio, que teria ocorrido no mês de junho de 2010, com o envolvimento do goleiro do Flamengo Bruno Fernandes das Dores de Souza, e participação de pessoas de seu convívio, tem susci-tado interessante discussão sobre a possibilidade de os réus serem processados e condenados por crime de homicídio mesmo diante do desaparecimento do cadáver.

Sem entrar no mérito do caso, o assunto gerou polêmica não apenas entre a população leiga, mas também entre os versados no Direito.

Tratando-se de crime de homicídio, há ainda ou-tra particularidade. Não é o juiz de Direito quem julga o fato, mas a própria sociedade, por meio do Tribunal do Júri, que detém soberania para tanto, determinada pela própria Constituição. Vale dizer: os tribunais su-periores, inclusive o Supremo Tribunal Federal (STF), não podem alterar a decisão. Assim, se o júri absolveu ou condenou o réu, o Tribunal de Justiça, por exemplo, não pode dar outra sentença quanto ao mérito. No máximo, pode anular a decisão por alguma eventual nulidade e determinar que novo julgamento seja feito pelo mesmo Tribunal do Júri.

Voltando à polêmica, aqueles que defendem a necessidade de se encontrar o corpo da vítima para que o réu seja efetivamente condenado se sustentam na tese de que o crime de homicídio é de natureza ma-terial, ou seja, deixa vestígios. No caso, o exame de corpo de delito poderia ser feito somente por meio de perícia diretamente realizada no cadáver. Sem essa prova, sempre haveria dúvidas sobre a efetiva morte da vítima, ou seja, da própria materialidade do crime.

Os adeptos dessa corrente sempre citam o “caso dos irmãos Naves”, ocorrido na Comarca de Araguari (MG) na década de 1930, que se tornou famoso no Brasil por causa da grande injustiça que se fez com os irmãos Joaquim e Sebastião, os quais, torturados, confessaram o homicídio do primo Benedito Pereira Caetano. Este, na verdade, havia fugido da cidade em razão de dívidas. Os irmãos Naves foram absolvidos, por duas vezes, pelo júri. Porém, como naquela época o Tribunal do Júri não detinha soberania, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais reformou a decisão e condenou os irmãos a 16 anos de reclusão. Depois de cumprida a pena, a suposta vítima apare-ceu viva na cidade de Ponte Nova (MG), em 1952, dizendo até que não sabia do que tinha acontecido com os primos!

Histórias à parte, o fato é que tem prevalecido, inclusive no STF, o correto entendimento segundo o qual um crime de homicídio não pode ficar impune somente porque o homicida cuidou de esconder, para ninguém nunca encontrar, ou destruir o corpo da víti-ma. Há casos em que os homicidas queimam o corpo da vítima e espalham suas cinzas pelo ar; noutros, enterram-no em lugares jamais imaginados pela po-lícia. Há registro até mesmo de destruição total do cadáver com ácidos poderosos.

Assim, esfumado o cadáver, ou seja, desapare-cidos os vestígios materiais, é possível a realização daquilo que em Direito se chama exame de corpo de delito indireto, com base em provas outras que não a perícia no cadáver da vítima, mas que do mes-mo modo pode atestar a materialidade do crime de homicídio.

Page 63: Revista Rede 20

63

Nesse contexto, de importância capital a existên-cia de testemunhas que relatem situações que reve-lem que o acusado realmente está implicado na morte da vítima e sumiço do corpo. A delação de comparsas também constitui valioso elemento de prova para se demonstrar indiretamente a materialidade.

Além disso, hodiernamente a polícia conta com eficientes provas científicas e periciais, tais como exa-me de DNA, degravações de conversas telefônicas judicialmente autorizadas, definição, a partir de sinais de celular ou de GPS, da localização dos suspeitos no momento em que ocorria o crime. E tais provas, devidamente concatenadas e harmônicas com tes-temunhos ou delações, podem compor o exame de corpo de delito indireto e regularmente convencer a Justiça da ocorrência do crime de homicídio.

Aliás, no julgamento do habeas corpus n.º 78.719, relatado pelo magistral ministro Sepúlveda Pertence, o STF autorizou o recebimento de denún-cia do Ministério Público e o início de processo por homicídio, mesmo sem se ter no caso descoberto o cadáver, pois “a ausência de exame necroscópico é irrelevante, desde que demonstrada a morte por ou-tras provas”. Por sua vez, em recente julgamento, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que, se os “homi-cídios têm por característica a ocultação dos corpos, a existência de prova testemunhal e outras pode servir ao intuito de fundamentar a abertura da ação penal, desde que se mostrem razoáveis no plano do conven-

cimento do julgador” (habeas corpus n.º 79.735/RJ). Como mencionado, tratando-se de crime de ho-

micídio, quem dá a palavra final é a própria sociedade, por meio do Tribunal do Júri. Mas até esse julgamen-to, há outras decisões que cabem ao juiz de Direito. Primeiro, ele deve decidir se recebe a denúncia do promotor de Justiça. Recebendo-a, e depois de ouvi-das as testemunhas da acusação e da defesa, deve analisar se há indícios razoáveis da materialidade e da autoria do crime e decidir se envia o processo para o Tribunal do Júri, pronunciando o réu.

Em todas essas decisões, o problema da ausên-cia do cadáver deve ser enfrentado. Nesse contexto, é importante que o Ministério Público e o Poder Judi-ciário nunca deixem de observar as garantias consti-tucionalmente asseguradas aos acusados em geral e que, para a condenação, haja elementos probatórios sérios, ainda que indiretos, de que se deduzam, por lógica estrita, a morte da vítima e o envolvimento do acusado.

Por fim, quanto ao caso da modelo Eliza Sa-múdio, concluídos os trabalhos da polícia, devemos aguardar o posicionamento dos promotores de Justiça que nele atuam, do juiz de Direito responsável pela instrução do processo, do Tribunal de Justiça no jul-gamento de habeas corpus e de possíveis recursos da defesa e, por último e o mais importante, o soberano julgamento a ser feito pela comunidade do local onde o crime ocorreu, por meio do Tribunal Popular do Júri.

Antônio Sérgio Tonet Procurador de Justiça CriminalEx-promotor de Justiça do I Tribunal do Júri de BH

Alex Lanza

Page 64: Revista Rede 20

O “flanelinha”Artigo

no espaço da metrópole de Belo Horizonte:

o curioso fenômeno da gestão de vagas de estacionamento em

vias públicas por particulares

É notório que as metrópoles brasileiras já contam com uma imensa frota de automóveis. Notório é também que a maior parte dessas cida-des não foi projetada para abrigá-la e, ao mesmo tempo, permitir a fluidez do trânsito. Desse pro-blema comum às grandes cidades decorre, entre outros, um fenômeno curioso: a gestão particular das vagas de estacionamento em vias públicas.

Qualquer cidadão que empreenda uma tra-vessia de veículo pelas principais ruas ou avenidas de Belo Horizonte e intencione estacioná-lo por algum motivo não terá dificuldade em observar um aspecto intrigante, embora não exclusivo, da ca-pital mineira: há poucas vagas de estacionamento em vias públicas – seja na região do hipercentro, nas concentrações de estabelecimentos comer-ciais e instituições políticas localizadas nos bairros situados na área englobada pela região da avenida do Contorno, ou mesmo em áreas mais periféricas com grandes aglomerações promovidas por even-tos culturais e/ou esportivos – que não estejam sendo “geridas” pelos já conhecidos flanelinhas,

seja na forma de lavadores ou de guardadores (vigias) de veículos1.

A representação do senso comum nos indica, em um primeiro momento, que as ruas e avenidas seriam de uso de toda a coletividade, devidamente obedecidas as regras de trânsito; em um segun-do momento, tais espaços acabam sendo grada-tivamente ocupados e, por vezes, monopolizados pelos flanelinhas, que mormente exigem determi-nadas quantias (variáveis de acordo com o lugar, com o evento e, por vezes, com a marca do veículo “vigiado” e com a aparência de seu proprietário) pela utilização das vagas onde seriam permitidas a parada e o estacionamento de veículos.

Mas como teria acontecido esse processo de apropriação das vagas de estacionamento em via pública? Qual o significado que os flanelinhas atribuem ao espaço e como eles o organizam nas diferentes localidades de Belo Horizonte? Quais seriam os aspectos mais controversos da relação cotidiana entre flanelinhas, usuários de vagas de estacionamento e agentes públicos locais?

1A profissão de guardador de veículo foi reconhecida pela Lei Federal n.º 6.242/75 e se encontra na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO/2002), sendo regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 79.797/77. Há algumas leis municipais que regulamentam de forma mais específica o exercício da profissão, mas não é o caso da cidade de Belo Horizonte.

64

Page 65: Revista Rede 20

65

Várias perguntas podem ser feitas e demandam certamente uma análise mais detalhada do fenômeno socioespacial que se nos apresenta, conquanto sejam possíveis algumas breves reflexões que nos permiti-riam um debate franco e aberto sobre a ocupação das vagas de estacionamento em vias públicas pelos cha-mados flanelinhas2, sem descuidar das implicações socioeconômicas das políticas urbanas institucionais3 relacionadas ao citado fenômeno.

Vários trechos de ruas e avenidas são reparti-

dos – como se fossem zonas de atuação – entre os flanelinhas, que se fixaram em regiões com grande concentrações de veículos e ali constituíram o seu local de trabalho.

O monopólio do “ponto”, ao que parece, pode acontecer pelos motivos mais variados e se consoli-dar pelos critérios de antiguidade, de poder coercitivo (traduzido na coação física ou moral4) e de credibi-lidade/aceitação pelos moradores, comerciantes e frequentadores do local.

1 Inicialmente, cabe-nos ressaltar que nesta pequena abordagem o termo flanelinha será utilizado em sentido mais amplo, isto é, abrange tanto aqueles indivíduos que se dispõem, por determinada quantia em dinheiro, a lavar os veículos estacionados, quanto aqueles que se oferecem, pela mesma benesse, a simplesmente vigiá-los contra eventuais furtos.3 Segundo Castells, “O âmago da análise sociológica da questão urbana está no estudo da política urbana, isto é, da articulação específica dos processos designados como ‘urbanos’ no campo da luta de classes e, por conseguinte, na intervenção da instância política (aparelho de Estado) – objeto, centro e me-canismo da luta política” (CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Trad. Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 351). 4 Há diversos projetos de lei federal em tramitação no Congresso Nacional que preveem a tipificação da conduta do flanelinha de cobrar pelas vagas de esta-cionamento em vias públicas.

Carlos Augusto Canêdo Gonçalves da Silva é doutor e mestre em Direito Penal pela UFMG, professor da UFMG e da PUC Minas e procurador de Justiça

Humberto Leandro de Melo e Sousa é mestre em Direito pela PUC Minas e professor da Faculdade de Ciências Jurídicas de

Diamantina (FCJ-UEMG)

Alex LanzaAlex Lanza

Page 66: Revista Rede 20

Alguns flanelinhas pedem para lavar o veículo, outros tentam vender as folhas do talão rotativo (chamado em Belo Horizonte de “Faixa Azul”) por um preço pouco mais caro, além daqueles que simplesmente combinam determinada quantia em dinheiro para que o veículo seja vigiado.

Portanto, a vaga de estacionamento na via pública estaria sendo gerida pelo flanelinha e sua ocupação não estaria mais condicionada tão somente à ausência de outro veículo e/ou uso do talão-rotativo. Agora haveria outras regras de reprodução daquele espaço (vaga de estacio-namento) que não coincidiriam, necessariamente, com a ideia de uso coletivo dos bens públicos.

A rigor, não poderíamos tipificar a conduta dos flanelinhas como ilícito penal (crime de extorsão ou constrangimento ilegal, por exemplo), pois a ameaça (explícita ou implícita) me-diante a qual se dá a exigência ou “solicitação” de determinada quantia ao usuário da vaga de estacionamento se refere, normalmente, ao veículo, e não ao seu proprietário.

Caso diverso, destaquemos, seria aquele no qual o flanelinha ameaçasse a integridade física, a vida ou a liberdade individual do usuário da vaga com o objetivo de auferir vantagem patrimonial indevida (crime de extorsão, previsto no art. 158 do Código Penal) ou viesse, efe-tivamente, a danificar, de qualquer modo, o veículo automotor (crime de dano, previsto em art. 163 do Código Penal). Para os flanelinhas que trabalham sem o devido cadastramento seria possível a configuração da contravenção penal pelo exercício ilegal de profissão ou atividade (art. 47 do Dec.Lei n.º 3.688/41).

Em contexto de extremismos ameaçadores, diversos projetos de lei federal em tramitação no Congresso Nacional que preveem a tipificação da conduta do flanelinha de cobrar pelas vagas de estacionamento em vias públicas. Além disso, delineiam-se novas formas de controle embutidas em projetos de revalorização de espaços urbanos que não estariam comprometidos com o desafio da inclusão social e acabam por combinar a lógica punitiva, em perfeita sintonia com a modelo neoliberal, e a governamentalização das populações e situações submetidas ao que logra ser definido como risco do crime e da violência5.

Os flanelinhas de Belo Horizonte, a exemplo dos de outras cidades, seriam um exemplo de organização social espontânea que, em certo ponto, replica a estrutura do mercado formal de trabalho. Alguns criam laços de confiança com seus clientes, proprietários de veículos, funcio-nando como peças-chave na logística urbana caracterizada pelo grande número de veículos e pelo pequeno número de vagas.6

Ora, tais perspectivas relacionadas às práticas urbanas seriam indicativos de que o espaço urbano não pode ser concebido como objetivo e neutro, mas como político e ideológico, como produto da história, como fruto de contradições e estratégias de grupos particulares e de de-terminados indivíduos. Nas palavras de Lefèbvre,

o espaço não é um objeto científico contornado/velado/escondido/subtraído pela ideologia ou pela política; ele sempre foi político e estratégico. Se esse espaço tem um aspecto neutro, indiferente em relação ao conteúdo, portanto “puramente” formal, abstraído/abstra-to de/por uma abstração racional, é precisamente porque ele já está ocupado, organizado, já foi objeto de estratégias antigas, das quais só se encontram vestígios. O espaço foi formado, modelado a partir de elementos históricos ou naturais, mas politicamente. O espaço é político e ideológico. É uma representação literalmente povoada de ideologia. Existe uma ideologia do espaço. Por quê? Porque esse espaço que parece homogêneo, que parece dado, de uma vez, na sua objetividade, na sua forma pura, tal como o constatamos, é um produ-to social. A produção do espaço não pode ser comparada à produção deste ou daquele objeto particular, desta ou daquela mercadoria. E, no entanto, existem relações entre a produção das coisas e a produção do espaço. Esta vincula-se aos grupos particulares que se apropriam do espaço para o gerir, para o explorar.7

5 TELLES, Vera da Silva; HIRATA, Daniel Veloso. Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito. In: Estudos Avançados 21 (61), 2007.6 A questão dos flanelinhas pode e deve ser analisada para além da mera permissividade legal, com exame de suas implicações para o conjunto da cidade e da cidadania. 7 LEFÈBVRE, Henri. Espaço e Política. Trad. Margarida Maria de Andrade e Sérgio Martins, p.37-38. [do original: Espace et Politique. Paris: Éditions Anthropos, 1972. Primeira versão. Início: fev. 2003].

66

Page 67: Revista Rede 20

67

O fenômeno urbano do intenso tráfego de veículos que transportam, via de regra, uma única pessoa, a ocupação das calçadas por ambiciosos comerciantes e clientes com carros de luxo, a gestão particular das vagas públicas de estacionamento revelam a reprodução descontinuada e conflitante do espaço, demonstrando que a centralidade tem seu movimento dialético específico e que o antagonismo não é senão um momento da contradição no espaço,

quer se trate do centro comercial (que reúne produtos e coisas), do centro simbólico (que reúne significações e as torna simultâneas), do centro de informação e de decisão etc. Mas todo centro destrói-se a si próprio. Ele se destrói pela saturação; ele se destrói porque ele remete a uma outra centra-lidade; ele se destrói ao passo que suscita a ação daqueles que ele exclui e expulsa para as periferias. 8

Portanto, o habitante outrora excluído, segregado, que o centro urbano não acolheu e expulsou para a periferia da capital e para as cidades mais próximas, retorna na condição de flanelinha, de “legítimo” dono das vagas de estacionamento das ruas e avenidas públicas, de camelôs ou toureiros, de mão de obra barata e subexplorada, de mendigos e pedintes, ou mesmo de praticantes de ilícitos penais (em especial de crimes contra o patrimônio). 9

Interessa-nos, nesse ponto, a perspectiva dialética para uma compreensão mais abrangente desses fenômenos sociais de segregação do habitante excluído e de negação teórica e prática do urbano, porque os relaciona com as condições históricas que lhes deram origem, das quais dependem, com as quais estão em interação.

Notadamente, a segregação, a constituição de espaços periféricos e pobres permitindo a reprodução das relações de produção (o que são relações de classe), essa segregação constitui uma negação teórica e prática do urbano, mas, enquanto tal, ela o revela. 10

Na relação entre capital e trabalho, expressões como flexibilização das leis trabalhistas e terceiri-zação ganham amplo espaço, refletindo as novas transformações no mundo do trabalho. Este, a bem dizer, desvincula-se do emprego estável e seguro.

Em não poucos países, especialmente naqueles em desenvolvimento, cresce a cada dia a eco-nomia informal. Desemprego, subemprego e deslocamento de trabalhadores para os centros urbanos encaixam-se neste cenário de novas relações entre capital e trabalho.

Assim também o flanelinha, à margem de uma sociedade que o rejeita e, ao mesmo tempo, o recebe como gestor informal (mesmo quando cadastrado pela Prefeitura como “lavador de carro”) das vagas de estacionamento disponíveis em vias públicas. Sua estratégia de sobrevivência tem nome: a rua.

8 LEFÈBVRE, Henri. Op.cit. p.579 “La ciudad ha sido el resultado de las interacciones de las sociedades humanas con el substrato físico y biológico que ha permitido su subsistencia física y desenvolvimiento espiritual. Entre esas interacciones intervienen componentes sociales, culturales, económicos, físicos y biológicos que conforman y condi-cionan el ambiente urbano, cuyo objeto debe ser el mejoramiento progresivo de la calidad de vida de sus habitantes. Mas esto no será posible si la naturaleza y el ser humano sufren deterioro como resultado de su interacción, que implique desaprovechar sus potencialidades mutuas”. (OLEA, Oscar. Catástrofes y monstruosidades urbanas: introduccíon a la ecoestética. México: Trilhas, 1989. p. 40).10 LEFÈBVRE, Henri. Op.cit. p.57-58.

CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Trad. Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

LEFÈBVRE, Henri. Espaço e Política. Trad. Margarida Maria de Andrade e Sérgio Martins, p.39. [do original: Espace et Politique. Paris: Éditions Anthropos,

1972. Primeira versão. Início: fev.2003].

OLEA, Oscar. Catástrofes y monstruosidades urbanas: introduccíon a la ecoestética. México: Trilhas, 1989. 206 p.

TELLES, Vera da Silva; HIRATA, Daniel Veloso. Cidade e práticas urbanas: nas fronteiras incertas entre o ilegal, o informal e o ilícito. In: Estudos

Avançados 21 (61), 2007.

Referências bibliográficas

Page 68: Revista Rede 20

68

maioridade penal:A redução da

Opinião

vamos levar a diferenciação social aos adolescentes?

Que a impunidade reina soberana na Terra Bra-silis, isso já não é segredo para mais ninguém. O que poucas pessoas sabem é que, quando se trata de atos infracionais cometidos por menores de 18 anos, ela impera de forma robusta e insofismável. Saiba o leitor que, caso uma criança de menos de 12 anos cometa um fato grave, como um homicídio, um roubo ou mesmo o tráfico de drogas (e repare o amigo que não se trata de casos apenas imaginários, ocorrendo frequentemente na prática), ela não receberá qual-quer repercussão legal, seguindo sua vida como se nada houvesse acontecido. Os adolescentes de 12 a 18 anos, por sua vez, podem receber, no máximo, a medida socioeducativa de internação por até três anos. Convenhamos que, comparado a tirar a vida de uma pessoa, tal reprimenda estatal é flagrantemente inapropriada.

Some-se a isso o fato de o Código Penal prever como critério de responsabilização simplesmente o fato de o agente contar com mais de 18 anos. Ora, hoje em dia, um jovem de 16 anos já entende clara-mente o caráter ilícito de suas atitudes e é plenamen-te capaz de se portar de acordo. Tanto é assim que vários adolescentes se locomovem sozinhos, em qual-quer horário do dia ou da noite, frequentam lugares desacompanhados dos pais, podem votar, trabalham e, em alguns casos, até mesmo escolhem sua profis-são e iniciam a cursar a faculdade. Logo, se o sistema criminal quisesse ser adequado à realidade, deveria haver, além do critério puramente biológico (maior de 18 anos), um critério psicológico individualizado (ou seja, em determinado caso concreto, pelas circunstân-cias do fato, poder-se-ia responsabilizar o adolescente se este detivesse autodeterminação). Como se pode

notar do exposto, claro fica que, quando me posiciono contrariamente à redução da maioridade penal, não quero dizer, de forma alguma, que o atual sistema seja apropriado.

Dessa feita, como tive a oportunidade de falar com maior profundidade e vagar em obra que recen-temente publiquei, o livro Só é preso quem quer! (Ed. Brasport), existe uma nítida correlação entre os locais considerados bolsões de miséria e altas taxas de cri-minalidade violenta. Nessa trilha, como já era de se esperar, a maior ocorrência de adolescentes infratores se dá, incontestavelmente, entre os menores cujas famílias têm uma renda indigna. Somado a isso, no-tamos que esses “clientes preferenciais” das Varas Infracionais não têm (e nem nunca tiveram) família estruturada, regular apoio acadêmico-escolar, pares que representem verdadeiros modelos de vida e, por óbvio, uma perspectiva de um futuro promissor. Re-sumindo, aos “clientes de carteirinha” das Delegacias de Proteção à Criança e ao Adolescente (Dopcads), o único braço estatal que se estende para alcançá-los é o policial repressor.

Reduzir a maioridade penal nesse Brasil indigno de hoje, que nunca pune aquele que impede o inves-timento social de chegar ao menor de rua; que nunca pune o parlamentar que só se preocupa com o povo se, por povo, se entenderem unicamente os seus apa-niguados, é, inegavelmente, compactuar com a odiosa diferenciação entre ricos e pobres que há muito está impregnada em nossas leis e nossas práticas. Vamos, antes, pensar em punir severamente o criminoso do colarinho branco com a mesma força que queremos punir o assassino para, depois, pensarmos em realizar uma necessária redução da maioridade penal.

Marcelo Cunha de Araújo é promotor de Justiça e autor do livro Só é preso quem quer!

Blog: http://marcelocunhadearaujo.blogspot.com

Page 69: Revista Rede 20

69

Livro aborda crime de lavagem de dinheiro

A Editora Lumen Juris traz ao mundo editorial nacional obra de autoria do promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) – e, segundo prefácio assinado pelo governador do Es-tado e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Antonio Augusto Junho Anastasia, “prestigiado e talentoso jurista mineiro, que vem suprir uma lacuna das bibliotecas e das estantes das livrarias nacionais” – Rogério Filippetto de Oliveira.

Anastasia afirma ainda que “o recorte epistemoló-gico dado ao tema pelo autor já dá mostras da amplitu-de de seu pensamento, capaz de laborar com a intensa e intricada dogmática penal, de modo a atualizá-la em seu conteúdo e forma. Dono de um texto intenso, pre-ciso e rigoroso, Rogério Filippetto, ao abordar o crime de lavagem de dinheiro, percorre os fundamentos axio-lógicos, históricos e dogmáticos do tipo, sem perder de vista o interesse social imanente à resposta penal”.

O livro, intitulado Lavagem de dinheiro: crime eco-nômico da pós-modernidade, trata, segundo o autor, das características do crime de lavagem de dinheiro como manifestação decorrente da criminalidade sur-gida a partir da era pós-industrial. Considerando essa referência histórica, realiza-se uma reflexão sobre os postulados dogmáticos, construídos em outra época pelo Direito Penal clássico, de modo a verificar sua su-ficiência e adequação ao delito de lavagem de dinheiro.

Há, ainda, revela Filippetto, uma alternância de perspectiva do indivíduo para o coletivo, de bem ju-rídico individual para supraindividual. A mudança não é suficiente para dividir o Direito Penal ou para criar novo ramo do Direito, mas pede uma conciliação en-tre a segurança decorrente das garantias trazidas pela dogmática clássica e a necessidade de resposta penal qualificada e prática, decorrente dos tempos atuais. Essa conciliação não se assenta numa teoria geral, mas é viável com a adaptação específica dos institutos. As-sim, é possível manter o esquema do Direito Penal clássico para os crimes comuns, flexibilizando suas ca-racterísticas para os crimes surgidos na modernidade, como acontece com a lavagem de dinheiro. A partir desse ponto, discute-se a questão do bem jurídico, de difícil identificação nos crimes econômicos e principal-mente no crime de lavagem de dinheiro.

É feito um estudo, na obra, sobre os elementos objetivos do crime de lavagem de dinheiro, procurando delimitar o alcance de sua significação, principalmente em relação ao crime antecedente, que tem importância singular para ter-se o delito como consumado. A ten-tativa também é analisada, considerando a natureza de crime formal e a dificuldade na sua configuração.

Foi estudado o tipo subjetivo, que considera a influência externa de maior abrangência de compor-

tamentos em contraste com o formato mais restritivo brasileiro. São analisadas as diversas possibilidades de punição, tradicionalmente previstas, buscando um ajuste para se destacar as que seriam mais apropria-das ao crime de lavagem, de modo a se aproximar dos fins das penas. Assumem especial relevo as penas de perda de bens e valores como forma de punição, e o afastamento das atividades econômicas como medida de prevenção. Como medidas de combate ao crime, não decorrentes da pena, aparecem outras espécies de medidas com o objetivo de retirar do agente a pro-priedade do que obteve com o crime, destacando-se a alienação antecipada.

O governador Antônio Anastasia complementa as informações de Filippetto afirmando que, “ao fincar bases no garantismo de Ferrajoli, o autor desfaz a apa-rente contradição entre essa doutrina e a persecução penal do delito de lavagem de dinheiro, demonstrando que uma sociedade de riscos e rica em bens jurídicos supraindividuais está a exigir uma reinterpretação da dogmática, com vistas à efetividade da tutela penal. Rogério Filippetto, vocacionado jurista e cientista que é, perfaz uma análise completa dos aspectos dogmá-ticos do tipo penal, de modo que sua obra responde, a um só tempo, aos anseios do dogmata e às indaga-ções da ordem da zetética”.

Page 70: Revista Rede 20

70

Rede obtém primeiro lugar em prêmio nacional

A edição n.º 18 da revista Rede teve reconhe-cimento nacional. O exemplar, que destaca em suas reportagens a importância da prática da participa-ção popular nas políticas públicas, recebeu o primeiro lugar, na categoria revista, no Prêmio Nacional de Comunicação e Justiça 2011. A revista é produzida, em todas as suas etapas, pela Assessoria de Comu-nicação Social do Ministério Público de Minas, por meio dos jornalistas, publicitários e revisores.

Pautadas pelo coordenador da revista, procu-rador de Justiça Fernando Antônio Fagundes Reis, as matérias, nas mais variadas áreas, como comu-nicação, meio ambiente, cultura, direitos humanos,

infância e juventude, entre outras, trouxeram uma real reflexão sobre as políticas públicas e divulgaram ações que vêm ampliando o controle social.

A cerimônia de premiação aconteceu no dia 22 de junho durante o VII Congresso Brasileiro dos As-sessores de Comunicação da Justiça (Conbrascom), no Rio de Janeiro.

O prêmio, lançado em 2003, é uma iniciativa do Fórum Nacional de Comunicação e Justiça (FNCJ) e busca contribuir para o aperfeiçoamento dos pro-dutos e serviços das Assessorias de Comunicação a partir do destaque de experiências bem-sucedidas na área.

Page 71: Revista Rede 20

71

Page 72: Revista Rede 20

72

Rua Dias Adorno, 367 - 10o andar - Santo AgostinhoBelo Horizonte - MG - CEP: 30190-100Fone: (31) 3330-8166 - (31) 3330-8016e-mail: [email protected]