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Mario Eduardo Costa Pereira na SBPdePA Progressivamente – e um tanto a contragosto dos psicanalistas, é preciso reconhecer – o termo “pâni- co” foi passando a fazer parte da clí- nica contemporânea. No início, isso é, ao longo dos anos oitenta, tratava-se de uma constatação no campo da prática: cada vez mais amiúde começavam a chegar a seus consultórios indiví- duos desesperados, autodiagnos- ticando-se como portadores de uma certa “síndrome do pânico” e solici- tando muito mais alívio e reasse- Dr. Mario Eduardo Costa Pereira

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Progressivamente – e um tanto

a contragosto dos psicanalistas, é

preciso reconhecer – o termo “pâni-

co” foi passando a fazer parte da clí-

nica contemporânea.

No início, isso é, ao longo dos

anos oitenta, tratava-se de uma

constatação no campo da prática:

cada vez mais amiúde começavam

a chegar a seus consultórios indiví-

duos desesperados, autodiagnos-

ticando-se como portadores de uma

certa “síndrome do pânico” e solici-

tando muito mais alívio e reasse-

Dr. Mario EduardoCosta Pereira

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guramento do que propriamente uma elucidação de seus conflitos incons-

cientes.

O quadro era típico: tratava-se, em geral, de um adulto entre os 20 e 45

anos de idade, queixando-se de grande angústia, de medo de morrer e de

insegurança extrema. Seu temor maior era o de ser acometido, de uma hora

para outra, de ataques de ansiedade, contra os quais nada poderia fazer.

Nesses momentos, a sensação era a de estar morrendo, perdendo o controle

ou de estar ficando louco. Muitos descreviam as crises como tendo sido a

pior experiência de toda sua existência. Eles fariam qualquer coisa para

não ter que passar por tudo aquilo novamente.

O início dos ataques era abrupto, e, com freqüência, as circunstâncias

objetivas não eram suficientes para justificar o surgimento de tamanho mal-

estar. A seus olhos, os acessos de ansiedade pareciam sem sentido, incom-

preensíveis, absurdos.

Em poucos minutos, a progressão vertiginosa da ansiedade atingia seu

ápice, mergulhando o sujeito no mais absoluto terror. As intensas sensa-

ções físicas experimentadas durante a crise reforçavam a convicção de que

um terrível processo letal estaria em curso e que a morte seria o desfecho

inevitável. Taquicardia, falta de ar, intensa opressão sobre o tórax, boca

seca, tonturas, vertigens, impressão de ter um buraco abrindo-se sob seus

pés, levando-o a uma sensação de queda sem fim, mãos frias, sudorese

generalizada, ondas de frio e de calor percorrendo todo o corpo, diarréia e

palidez eram alguns dos inúmeros sintomas corporais que compunham, em

diferentes combinações, o quadro apresentado pelo paciente.

Desesperado, ele sente que deve “fazer alguma coisa”, mas o quê?

Nada lhe parece eficaz: correr, gritar, clamar por ajuda, ir para o Pronto

Socorro, respirar profundamente, chorar? Ele tenta um pouco de tudo isso,

sem qualquer resultado.

Em alguns minutos, a crise desaparece tão absurdamente quanto co-

meçara, deixando em seu rastro uma profunda sensação de medo, de des-

moralização e um verdadeiro terror de que tudo reinicie a qualquer mo-

mento.

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Tendo passado por essa experiência tão assustadora e tão cheia de sin-

tomas físicos, o sujeito adquire a convicção de que está sendo vítima de

alguma gravíssima doença física, provavelmente de origem cardíaca, a qual

pode matá-lo subitamente, sem nenhum aviso. Ele desespera-se, implora

por ajuda.

A repetição desses ataques e sua impotência em descobrir uma causa

orgânica para seus males, apesar das infindáveis investigações médicas a

que geralmente se submete, contribuem para que mergulhe em um estado

de insegurança e de apreensão permanentes.

Passa a ter medo de que lhe advenha uma morte fulminante e desespe-

ra-se, pois fica convencido de que ninguém sabe o que está lhe ocorrendo e

de que ninguém poderá ajudá-lo.

O único recurso disponível termina sendo o de se refugiar em um am-

biente “protegido”, geralmente em casa, próximo a uma ou mais pessoas

de confiança, a quem possa recorrer em caso de novo ataque. A restrição de

seu espaço físico e existencial parece-lhe preferível ao risco de ser surpre-

endido por uma nova crise de angústia em circunstâncias em que não possa

dispor de socorro imediato.

Passa, então, a evitar de sair à rua e deixa de freqüentar lugares fecha-

dos ou dos quais não possa sair rapidamente em caso de um novo ataque.

Seu mundo social estreita-se radicalmente, dando lugar a um enorme

entrincheiramento no próprio lar, associado a um terrível sentimento de

desamparo e ao medo de morrer a qualquer instante. A angústia passa a ser

um problema em si mesma.

Já nos anos oitenta, quando o chamado “transtorno de pânico” se di-

fundiu no meio científico, a partir da inclusão dessa categoria no DSM-III

(Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação

Psiquiátrica Norte-Americana), uma enorme divulgação mediática levava

essa nova entidade psiquiátrica ao conhecimento do público. Jornais, re-

vistas e televisão falavam de uma revolucionária descoberta da ciência,

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apresentada segundo a contundente e conhecida fórmula retórica: “Cientis-

tas americanos descobrem que…”.

Anunciava-se, com entusiasmo, que algo de surpreendente havia sido

“descoberto” pelos respeitáveis e objetivos cientistas norte-americanos.

Não havia, pois, matéria para discussão. Tratava-se de aceitar, sem maiores

dúvidas ou questionamentos, que finalmente se havia isolado, no interior

do obscuro mar das paixões humanas, um estado afetivo específico e

perturbador cuja instalação não dependeria da subjetividade ou da história

daquele que o experimenta, mas apenas da materialidade biologicamente

herdada de seus sistemas neuronais. O campo da angústia, tão caro aos que

se preocupavam com os fundamentos da existência humana, parecia estar

começando a ser desmistificado pela Neurobiologia.

Nesse sentido, o transtorno de pânico seria a expressão

sintomatológica de uma disfunção de certas vias nervosas cerebrais, cuja

origem seria, provavelmente, genética e cuja causa eficiente imediata seria

uma alteração na liberação de certos neurotransmissores, nessas mesmas

vias.

Ao passar do plano experimental para o campo da divulgação científi-

ca, tal explicação biológica era apresentada como a única legítima para dar

conta dos fenômenos psicopatológicos ligados às crises de pânico, condu-

zindo a um estreito reducionismo explicativo de cunho neurobiológico.

Não haveria, portanto, segundo esse ponto de vista antes ideológico

do que propriamente científico, nada que pudesse implicar o “paciente”,

como um sujeito, no aparecimento de seus sintomas. Ao contrário, tratar-

se-ia, no campo da clínica, de se explicar ao “doente” sua vulnerabilidade

biológica e propor-lhe terapias sintomatológicas com os medicamentos

(em geral, antidepressivos) e com abordagens cognitivo-comportamentais.

A implicação subjetiva ficava descartada a priori, chegando, mesmo, do

ponto de vista ético, a desobrigar o clínico de escutar a palavra livremente

dada ao paciente, uma vez que era questão de tratar objetivamente um infe-

liz acidente da natureza e não uma incerta tempestade de suas paixões.

A disseminação dessa maneira de explicar os fatos clínicos ligados ao

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pânico e de conceber o processo psicopatológico a ele subjacente foi a tal

ponto contundente que os próprios pacientes já chegavam às consultas

autodiagnosticados e solicitando os tratamentos medicamentosos específicos.

Ora, é bem verdade que a medicação específica é bastante eficaz para

o controle dos sintomas do chamado transtorno de pânico e que não é im-

possível que, no futuro, venham a ser demonstrados fatores biológicos,

facilitando a instalação de tais ataques. Contudo, não decorre daí, necessa-

riamente, que a subjetividade não esteja implicada na origem e na manu-

tenção dos sintomas e muito menos que o quadro clinico não possa ser

substancialmente modificado pela descoberta, da parte do indivíduo que

sofre, de sua participação como sujeito de gozo e de linguagem, na produ-

ção de seu próprio sofrimento.

Além do mais, quando se toma em consideração o resultado relativa-

mente decepcionante, a longo prazo, dos tratamentos farmacológicos atu-

almente disponíveis, os quais, na maioria das vezes, não podem ser inter-

rompidos sob pena do retorno dos sintomas, tem-se, realmente, a impres-

são de que ainda estamos longe do dia em que se dirá a última palavra a

respeito da chamada “síndrome do pânico”.

De qualquer forma, a moldagem ideológica dada a esse quadro pela

mídia e por uma porção significativa das autoridades científicas trouxe uma

conseqüência importante para a clínica psicanalítica com tais indivíduos:

reforçou-se a idéia de que estes não teriam qualquer envolvimento, como

sujeitos, com a origem de seus próprios sintomas; eles não passariam de

simples vitimas inocentes, acometidas por uma estranha doença, cujos de-

sígnios lhes escapam.

Dessa maneira, sua chegada aos consultórios psicanalíticos não su-

põe, necessariamente, uma relação de estranhamento em relação aos pró-

prios sintomas, nem que estes constituam a seus olhos um inquietante enig-

ma que os interpela como sujeitos, exigindo decifração, tal como acontece

em outros quadros neuróticos. Antes disso, parece ser o desespero o que os

move, fazendo com que busquem no analista o mesmo alívio urgente que

exigem avidamente obter, seja do clínico geral, do psiquiatra, do

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cardiologista ou mesmo do curandeiro. Muitas vezes, numa fase inicial, o

psicanalista constitui apenas mais uma porta, relativamente

indiscriminada, à qual o sujeito vem bater, na ânsia desesperada de que não

o deixem morrer.

Quanto aos desdobramentos – e eventual sucesso – do tratamento psi-

canalítico com tais indivíduos, tudo dependerá do tipo de acolhimento ini-

cial que será oferecido à sua demanda desesperada de reasseguramento e

de proteção, e da forma como será colocada em questão a radical alienação

do sujeito face a seu próprio sofrimento. Eis o que veremos adiante, a partir

de um caso clínico.

O objetivo da discussão clínica a seguir é o de colocarmos em evidên-

cia a relação particular que tais sujeitos estabelecem com a dimensão de

desamparo radical subjacente à existência e à linguagem.

Segundo nossa hipótese, o ataque de pânico constitui uma maneira

desesperada de se fazer face a essa condição insuperável de falta de garan-

tias sobre a qual se desenvolve a existência de todos os humanos. Pode-se

especular diferentes origens para essa relativa incapacidade desses pacien-

tes em aceitar o desamparo fundamental (Hilflosigkeit) de que falava

Freud. Contudo, o que se constata nesses indivíduos é que, ao serem con-

frontados com situações que lhes revelem que, de fato, a vida não tem

garantias absolutas e, menos ainda, um fiador onipotente que assegure a

estabilidade benfazeja do mundo, sua resposta é de desespero e de terror.

Tudo se passa como se, subitamente, tivessem constatado uma verdade

dura, radical e incontornável, para a qual não estavam minimamente prepa-

rados. Diante dessa insuportável verdade, desesperam-se e regridem. O

pânico constituiu, assim, a expressão de tal incapacidade de se apropriar

subjetivamente do próprio desamparo.

O desamparo em questão não se reduz àquele implicado na radical

fragilidade do homem face à morte e à contingência, mas fundamental-

mente ao excesso constituído pela pulsão em relação a nossas limitadas

capacidades de simbolização e de perlaboração. Sexualidade e morte se

articulam como dimensões indissociáveis para que se possa situar o pro-

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blema do desamparo segundo uma perspectiva propriamente psicanalítica.

Entrar em pânico, por sua vez, constitui uma forma particularmente

psicopatológica segundo a qual uma subjetividade se posiciona face à di-

mensão do desamparo, a qual é colocada de maneira incontornável a todo

ser humano.

A partir da análise do caso abaixo, procuraremos demonstrar essa hi-

pótese e ousaremos propor algumas diretrizes para o tratamento psicanalí-

tico com esses pacientes.

Com esse apelo desesperado, Marco Antônio exprimia já desde nosso

primeiro encontro, há mais de uma década, a brutal intensidade de seu so-

frimento.

Ele tinha, então, 36 anos, mas sua aparência era a de alguém bem mais

velho. Seu rosto estava pálido, angustiado; a forma de se vestir era descui-

dada, e dava a impressão de não conseguir dormir há varias noites, tal era

seu estado de abatimento. As mãos cerradas e contraindo-se a intervalos

regulares revelavam a intensidade de sua inquietação. No conjunto, seu

aspecto era desolador.

Recurvava-se, tenso, à frente da poltrona em que se sentara. Falava de

forma apressada, olhando-me diretamente nos olhos, quase sem piscar.

Parecia querer contar-me tudo de uma só vez, de modo que eu pudesse

identificar rapidamente o que estava se passando com ele e indicar-lhe,

com precisão, o caminho para a cura. Procurava, com avidez, um diagnós-

tico, tanto quanto um tratamento.

Tudo iniciara quatro anos antes, quando teve uma primeira crise de

ansiedade, a qual mudaria sua vida para sempre. Esta ocorreu no leito, ao

lado de uma de suas amantes, durante a madrugada, após uma noite de

alguma bebida e de sexo pouco satisfatório.

Naquela época, Marco Antônio já estava casado há alguns anos e,

embora ainda não se sentisse descontente com seu casamento, costumava

manter várias aventuras extraconjugais, simultaneamente.

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Perto da 1h da manhã, Marco Antônio despertou sobressaltado, com o

coração disparando tanto que “chegava a fazer barulho e a dar choques’’

dentro de seu peito. Estava extremamente ansioso e tinha muito medo de

morrer naquele mesmo instante. Transpirava em abundância e apresentava

tremores intensos, tonturas, mal-estar e muita dificuldade para caminhar.

Imediatamente pensou em ir ao Pronto Socorro, mas, em poucos mi-

nutos, os sintomas começaram a diminuir, e o desespero aliviou.

A partir de então, as crises passaram a se repetir com mais freqüência

e cada vez com maior intensidade. No início, Marco Antônio continuava a

acordar em pânico no meio da noite. Em seguida, as crises passaram a

ocorrer, também, durante o dia. Como essas eram sempre imprevisíveis e

instalavam-se sem nenhum aviso prévio, ele passou a temer o

desencadeamento de um ataque grave a qualquer momento. Dessa forma,

vivia, segundo suas próprias palavras, “em um estado de alerta permanen-

te”, sem que pudesse identificar qualquer indício da aproximação da amea-

ça tão temida.

Aos poucos, começou a evitar sair de casa, embora o trabalho ajudas-

se a distrair. Ao cabo de algumas semanas, esses sintomas agorafóbicos já

eram suficientemente intensos para restringir-lhe a vida social e perturbar-

lhe, de forma significativa, o desempenho profissional. O uso de tranqüili-

zantes havia diminuído as “crises fracas”, sem, contudo, alterar os ataques

de pânico mais acentuados.

Já na época de nosso primeiro encontro, chamava a atenção o grau

exagerado do cuidado que Marco Antônio dedicava à forma física e à apa-

rência pessoal. Era um homem vaidoso, chegando até a uma certa afetação

em seus esforços para mostrar-se “na moda”.

Alguns meses antes do aparecimento das crises, havia sido contratado

como arquiteto por uma importante empresa do ramo da construção civil, o

que havia representado uma melhora significativa em sua condição finan-

ceira. Era uma pessoa ambiciosa no que dizia respeito a dinheiro e costu-

mava repetir que pretendia conquistar seu primeiro milhão de dólares, an-

tes de chegar aos 40 anos. Para isso estava sempre elaborando projetos

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mirabolantes que nunca se concretizavam. A aproximação da idade “mági-

ca” fixada para sua realização econômica, sem que seus planos tivessem

alcançado o sucesso esperado, constituía motivo de evidente mal-estar e

insegurança.

Descrevia-se, também, como um “homem da noite”. De fato, tinha um

grande talento musical e costumava tocar em um conjunto musical amador,

formado por amigos, em uma conhecida casa noturna de Campinas.

Assim, com o início das crises, tanto as áreas profissional e artística

como o cuidado com a saúde e beleza física ficaram profundamente afeta-

dos. Viu-se, pois, obrigado a interromper o trabalho, a música, as corridas a

pé no final da tarde, a ginástica e a musculação que tanto valorizava.

Com o início do tratamento medicamentoso, os acessos de angústia

foram gradualmente diminuindo, até desaparecerem, de forma quase com-

pleta, no final de alguns meses. Em torno do sexto mês de medicação, suas

queixas relacionadas ao pânico já eram bem menos freqüentes, embora

ainda referisse o medo de que as crises pudessem retornar de uma hora para

a outra.

Aproximadamente nessa mesma época, apesar da inquestionável me-

lhora das crises de pânico, Marco Antônio começava a manifestar, de for-

ma cada vez mais clara, alguns sintomas que, na verdade, já estavam pre-

sentes desde o início do tratamento, embora permanecessem como que

eclipsados pela exuberância das manifestações ansiosas. Suas principais

queixas passaram a ser as de tristeza, diminuição da auto-estima e depres-

são. Existia ainda o temor constante de que as crises pudessem voltar a

qualquer momento, bem como a dolorosa constatação de ver-se envelhe-

cendo sem conseguir realizar seus sonhos e projetos. Aquele homem, ou-

trora esperançoso com seu tratamento, sentia-se cada vez mais frágil,

desprotegido, com muito medo de enfrentar suas dificuldades e profunda-

mente insatisfeito com a vida.

Assim, durante vários anos, Marco Antônio convivera com sintomas

de natureza ansiosa – sobretudo a ansiedade antecipatória relacionada ao

medo do retorno das crises de pânico e freqüentes episódios de palpitação,

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ligados a seu prolapso da válvula mitral – e com sintomas de natureza

depressiva. A partir de um certo momento, as crises de pânico foram con-

troladas e nunca mais retornaram ao longo dos 14 anos seguintes do trata-

mento que realizamos juntos. Na verdade, já não tomava medicação

antipânico desde o fim do primeiro ano de tratamento.

Contudo, os sintomas depressivos estavam quase continuamente pre-

sentes, manifestando-se, por vezes, de maneira muito acentuada, consti-

tuindo, ao final de um certo tempo, o verdadeiro motivo da manutenção do

tratamento.

Nos últimos anos, a questão das crises de pânico sequer era menciona-

da, pois pareciam totalmente superadas. A depressão e a desilusão com a

própria existência, contudo, passaram a constituir o motivo principal de

seu sofrimento.

Marco Antônio chegou mesmo a voltar a viajar de avião, o que não

conseguia praticamente desde o início dos sintomas. Superou suas inúme-

ras preocupações hipocondríacas e interrompeu o abuso de bebida alcoóli-

cas que havia desenvolvido durante um período de depressão mais intensa.

Além disso, há mais ou menos cinco anos, finalmente obteve o tão

esperado sucesso em sua profissão, ganhando muito dinheiro, o suficiente

para não ter mais preocupações econômicas.

Contudo, à medida que os anos passavam, Marco Antônio ia se dando

conta, de forma cada vez mais clara, de sua grande dificuldade na vida

afetiva, em suas relações com as mulheres. Enquanto estava casado, sen-

tia-se insatisfeito e “preso”, buscando, nas constantes aventuras

extraconjugais a que se entregava, a excitação erótica e a reafirmação de

seu poder de sedução que não obtinha no casamento.

Quando, finalmente, se separou da esposa, alguns anos mais tarde,

passou a se sentir terrivelmente só e desamparado, apesar de objetivamente

ter uma condição mais favorável para iniciar novos relacionamentos amo-

rosos. Esse desamparo não dizia respeito a qualquer aspecto em particular

de sua vida prática, mas a uma vivência de vazio e de insatisfação afetiva

muito sofrida.

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À época da separação já tinha três filhos, aos quais era muito apegado,

mas que foram morar com a ex-esposa. A partida deles foi-lhe extrema-

mente penosa.

Em pouco tempo, provavelmente movido pela solidão, Marco Antô-

nio começou a viver com uma nova companheira, bem mais jovem que ele,

mas junto a quem logo passou a sentir o mesmo mal-estar que experimen-

tara no casamento. Esse relacionamento durou poucos anos, e a nova sepa-

ração o deixou ainda mais deprimido e angustiado.

Sentia-se egoísta e incapaz de conviver intimamente com uma mu-

lher, embora não conseguisse sobreviver sem elas.

Foi próximo ao final dessa segunda união que Marco Antônio passou

a abusar do álcool e de medicamentos relaxantes musculares. Chegou ao

ponto de beber todos os dias e de só conseguir dormir se estivesse profun-

damente embriagado.

Experimentava períodos de enorme angústia, embora nunca mais ti-

vesse tido novos ataques de pânico.

Nessa época, começou a apresentar um comportamento francamente

explosivo, perdendo o controle facilmente e com forte ideação suicida.

Sua paixão pelos automóveis, a qual cultivava desde a infância, e a

melhoria de uma situação financeira fizeram com que comprasse um mo-

delo esportivo de grande potência. Marco Antônio dedicava várias horas da

semana para tornar seu novo carro ainda mais veloz. Sempre que podia, ia

a alguma estrada pouco movimentada para “testar” o veículo e correr tanto

quanto conseguisse.

Em inúmeras ocasiões, fez isso de maneira totalmente desmedida.

Quanto mais desesperado e deprimido se sentia, mais velocidade imprimia

em sua aventura. Por várias vezes escapou por pouco de sofrer um acidente

possivelmente fatal. Em pouco tempo, sua direção ousada e imprudente

começou a ser exercida também nas vias mais movimentadas. Uma grande

excitação e uma forte tendência (auto)destrutiva corriam lado-a-lado.

A ruptura do segundo relacionamento agravou ainda mais esse com-

portamento, bem como o abuso de álcool e a tendência depressiva. Dessa

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vez, porém, o período de solidão foi mais breve, e em pouco tempo já

estava morando com uma nova companheira. Em relação a esse último

relacionamento, Marco Antônio parece não ter desenvolvido grandes ex-

pectativas, o que talvez lhe tenha permitido conviver mais tranqüilamente

com ela, contudo, sem grande entusiasmo.

Assim, foi progressivamente diminuindo suas atuações com o auto-

móvel, parou completamente de beber e de abusar dos medicamentos e

passou a obter mais prazer em seu trabalho.

Ultimamente, seus sintomas reduziram-se a um estado depressivo e

de insatisfação consigo mesmo que ele traduz na seguinte frase: “Não se

trata de algo que está me acontecendo: é que eu não estou contente comigo

mesmo”.

Seu tratamento já se estende por 14 anos, e a mim coube a parte psi-

quiátrica de seu acompanhamento. Contudo, dada minha convicção de que

nesses casos o psiquiatra deve ter um papel ativo no esforço por historicizar

as crises e de ajudar a inscrevê-las na continuidade da vida psíquica do

sujeito, pude ter contato com vários aspectos do mundo mental de Marco

Antônio, que descreverei a seguir.

Cabe, antes, notar que, já nas primeiras consultas com este paciente,

discutimos abertamente sobre a necessidade e eventuais benefícios de ini-

ciar um tratamento psicanalítico com outro colega, concomitantemente ao

tratamento psiquiátrico que realizava comigo. Olhando retrospectivamen-

te, talvez hoje não fizesse tal proposta tão cedo, uma vez que o sujeito, em

seu desespero, tende a aceitar qualquer proposição daqueles em quem con-

fia, no sentido de aliviar seu sofrimento, sem, contudo, estar de fato impli-

cado na elucidação de sua participação subjetiva no surgimento de seus

sintomas. Em geral, as crises parecem-lhes absurdas e totalmente

desconectadas do restante de sua vida psíquica. Algo como se um invasor

externo, uma doença, o tivesse acometido, mas com a qual não tem qual-

quer relação. Nessas circunstâncias, uma psicanálise pode lhe parecer algo

desprovido de sentido, pois não considera plausível que haja qualquer coi-

sa a desvendar em sua própria vida psíquica que possa estar ligada ao

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surgimento das crises. Nessas condições, em geral, o paciente “submete-

se” à indicação do psiquiatra, mas dificilmente implica-se com ela.

Ainda assim, Marco Antônio procurou a analista indicada e iniciou

com ela um processo psicanalítico que duraria vários anos e que certamen-

te contribuiu, de forma decisiva, para a superação de seus ataques de

pânico.

Entretanto, os sintomas depressivos persistiram – e, de certa maneira,

até mesmo se acentuaram – para, atualmente, ocorrerem de uma forma

esporádica, em uma intensidade atenuada. De tempos em tempos, apresen-

ta um quadro depressivo de leve a moderado, com falta de ânimo para

exercer suas atividades profissionais, apesar do sucesso obtido nesse cam-

po. Nesses momentos de piora, queixa-se de apatia, tristeza e acomodação

na vida amorosa com sua companheira e reclama de não ter uma meta de-

finida.

Ao comentar esses sintomas ainda presentes, Marco Antônio diz: “Na

verdade, eu tenho isso desde pequeno. Eu acordava pela manhã e não sabia

o que fazer da vida... eu já sentia uma enorme depressão...”, sugerindo,

assim, que sua condição psicopatológica possuía raízes pessoais que data-

vam de bem antes do início dos sintomas.

Marco Antônio era o filho único de um casal em que ambos já tinham

mais de 40 anos à época de seu nascimento. Conta ter sido um menino

criado com muita devoção por uma mãe doce e disponível. Mulher cari-

nhosa e superprotetora, sua mãe sempre esteve muito presente em sua vida,

por vezes de maneira excessiva e mesmo sufocante. Sempre muito preocu-

pada com a própria saúde e com a do filho, ela transmitiu-lhe a convicção

de que a vida era algo de muito frágil e instável.

Na verdade, sempre foi muito apegado à mãe, tendo cuidado dela até

sua morte, há poucos anos atrás. Como seu pai falecera muitos anos antes,

este acabou por ocupar-se de sua mãe de uma forma muito próxima por um

longo período.

O afeto incondicional de sua mãe levou-os a um grande apego, mas

também conduziu Marco Antônio a uma grande insegurança, uma vez que

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ele era extremamente permeável aos medos e fantasmas que ela

expressava.

O pai, por sua vez, era descrito como “ausente”, apesar da enorme

admiração que Marco Antônio sempre lhe dedicara :

“Meu pai, até meus quatro anos de idade, sempre trabalhou como ge-

rente de uma empresa na minha cidade. Mas, nessa época, ele foi transferi-

do para outra agência, em São Paulo. A partir de então, ele saía na segunda-

feira pela manhã e só retornava para casa na sexta à noite. Mesmo nos fins-

de-semana, nosso relacionamento não era muito profundo (fala de maneira

triste, quase suspirando). Ele não me dava a mínima atenção e estava mais

preocupado com os próprios problemas do que comigo – acho que hoje em

dia eu também sou meio assim com meu filho (acrescenta como uma asso-

ciação fortuita). Mas a gente tinha alguns pontos em comum. Ele adorava

carros, correr e boa música instrumental!”

Nota-se, portanto, que as maiores paixões na vida de Marco Antônio

correspondem justamente àquelas que ele identificava como sendo as do

pai, incluindo-se aqui a atração pela boemia e pelas mulheres. Contudo, é a

falta de atenção, de presença efetiva e de afeto desse pai tão admirado que

marca o discurso de Marco Antônio: “Meu pai nunca me encostou a mão.

Quem me cuidou e educou foi minha mãe... Aquele cara gostava mesmo

era da vida dele. Gostava de mulherada e de aproveitar a vida”, comenta

não sem uma ponta de ressentimento. Deve-se notar, de passagem, a ambi-

güidade de sua queixa em relação ao pai “que nunca lhe encostara a mão”,

pois essa expressa um componente homossexual decisivo em seu conflito

psíquico, tal como veremos a seguir.

Marco conta que seu pai veio de uma família muito pobre, mas que

conseguiu uma significativa ascensão econômica e social graças a seu pró-

prio esforço. Ele passou de engraxate a gerente de uma importante empresa

comercial por seus próprios méritos e sempre quis aproveitar inteiramente

sua vida: “ele sempre dizia: minha vida é o que eu vivo no dia-a-dia”.

Provavelmente, uma das formas que Marco Antônio desenvolveu para

expressar sua revolta infantil, inconsciente, contra a desatenção do pai te-

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nha sido justamente o sintoma de revolta depressiva que se expressa na

conduta (auto)destrutiva de dirigir tresloucadamente, em alta velocidade.

Algo que talvez pudéssemos traduzir aproximadamente assim, através de

suas palavras hipotéticas: “Se a vida é pura fatuidade, se se deve mesmo

desfrutar desse viver o dia-a-dia uma vez que se pode morrer amanhã, en-

tão eu farei como meu pai: levarei a vida até o limite, sem me importar com

ninguém (tal como ele fez comigo), desfrutarei até o limite da velocidade

dos carros que ele tanto amava. Se eu morrer – acidentalmente, dada essa

fragilidade da vida que ele tanto exaltava, chegando ao ponto de fazer des-

sa fragilidade o motivo para se ocupar mais com seus próprios prazeres do

que comigo –, bem, a culpa de minha morte terá sido dele. Mas pouco

importa, ele nunca se importou mesmo. Ao menos agora, dirigindo esse

carro tão possante, eu reencontro minha própria potência, da qual eu tanto

duvido, nesse significante fálico por ele instituído, restituindo, assim, um

pouco do esvaziamento narcísico de que sofro por não ter sido reconhecido

como objeto de amor digno de investimento por meu pai. Se algum dia eu

morrer espatifado contra um muro, será em grande estilo, gozando da po-

tência que acredito que meu automóvel me atribui e da fatuidade do mun-

do, tão cara a meu pai”.

Independentemente do grau de pertinência da especulação acima de-

senvolvida, o fato é que Marco Antônio queixava-se de forma mais ou

menos aberta da falta de investimento amoroso do pai e do excesso de

egoísmo desse, que se permitia privilégios, contando com a cumplicidade

de sua mãe: “Ele sempre pensou só nele mesmo... ou mais nele”, corrige.

“Ele usava seu dinheiro com ele mesmo, gastava com a mulherada... Eu

não o condeno! Minha mãe aceitava essa criação...´

Trata-se, evidentemente, de uma denegação mais do que suspeita.

Pode-se, com grande pertinência, supor que a condenação do pai ocupa

uma parte importante na constelação imaginária de Marco Antônio. Contu-

do, o que parece mais importante de sublinhar é a possível conflitiva ho-

mossexual aqui expressa. Se o que ele parecia desejar com a maior urgên-

cia era o amor de seu pai, e se este não tinha interesse senão pela

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“mulherada” – sem que isso fosse condenado pela mãe –, então não parece

despropositado supor que Marco Antônio tenha, em algum momento, de-

sejado/rejeitado estar em uma posição feminina, de modo a atrair o olhar

paterno.

Dessa forma, o apego relativamente estereotipado que Marco Antônio

mostrava por insígnias de masculinidade – não apenas automóveis, con-

quistas amorosas e forma física impecável, mas também armas de fogo e

mostras temerárias de coragem e de ousadia – passa a revelar uma nova

dimensão de sua vida psíquica. Tudo se passa como se o paciente precisas-

se, com urgência, demonstrar, a cada instante, sua própria virilidade, justa-

mente por não estar seguro dela e por lutar internamente contra desejos

perturbadores de natureza homossexual. Mesmo os cuidados excessivos

oferecidos por sua mãe eram, por vezes, interpretados como indicativos de

sua própria fragilidade. Além disso, faziam-no esperar um cuidado espe-

cial da parte do outro, quase como uma atenção de natureza feminina.

Isso não significa, obviamente, sustentar que Marco Antônio tivesse

feito uma escolha homossexual de objeto amoroso. Trata-se, apenas, de

colocar em evidência um conflito no qual uma das polaridades em disputa

é constituída por uma tendência homossexual não resolvida e agravada

pelo abalo narcísico de não se ver reconhecido em sua potência fálica pelo

próprio pai.

Sobre a época em que iniciaram suas crises, Marco Antônio diz que

“eu via meu pai envelhecer”, pois este começava a apresentar os primeiros

sintomas cardíacos, que viriam a matá-lo quatro anos mais tarde. Foi justa-

mente na época da morte do pai que ele foi buscar tratamento.

“Eu comecei a ter crises em 82, quando eu tinha 32 anos. Eu havia

casado um ano antes, pois minha mulher estava grávida. Eu não queria

casar e achava que não ia dar conta das responsabilidades que uma união

desse tipo implica. Não tinha dinheiro e estava sobrecarregado de trabalho.

Estava iniciando meu emprego na empresa X e havia sido nomeado para

coordenar uma seção importante da firma. Eu trabalhava de manhã, de tar-

de e de noite. No ano seguinte, depois de tanto estresse, tudo estourou.”

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“Em 86, quando meu pai morreu eu já estava bem de dinheiro. Eu não

estava mais tendo crises naquela época. Mas, quando ele morreu, eu passei

a ter, no mínimo, quatro crises de pânico por dia!”

Temos, assim, uma situação clínica concreta em que os sintomas de

pânico – inicialmente proeminentes – foram pouco a pouco desaparecendo

para ceder lugar a uma problemática depressiva. O caso de Marco Antônio

exprime, de forma relativamente clara, um percurso de progressiva trans-

formação de um quadro inicial de pânico e de desespero em uma condição

nitidamente depressiva. Os sintomas ansiosos, a princípio tão proeminen-

tes, foram cedendo lugar a uma espécie de vazio existencial que apagava o

colorido e o sentido de sua experiência vital.

Essa transformação é tanto mais intrigante quanto as condições objeti-

vas da vida daquele sujeito, claramente, estavam melhorando. Não apenas

houve o desaparecimento dos sintomas ansiosos e da insegurança a eles

relacionados, como também muitos de seus sonhos de sucesso profissional

e econômico foram efetivamente alcançados.

Contudo, a condição depressiva foi ficando cada vez mais intensa,

mais profunda. Na verdade, essa depressão parecia estar presente desde o

início, mesmo antes da instalação do quadro neurótico ansioso. Seria ex-

cessivo afirmar que a questão depressiva de certa forma precedeu as crises

de pânico, se levarmos em consideração suas declarações de que, desde a

infância experimentava uma sensação de vazio que, facilmente, o conduzia

à depressão?

Quando, por exemplo, tomamos as recordações de seu relacionamen-

to com o pai, o que surge é a queixa amargurada de que aquele homem, a

quem tanto amava e de quem tanto esperava manifestações de reconheci-

mento, na verdade, estava preocupado apenas consigo mesmo. A constitui-

ção de sua identificação masculina aparentemente não contou com a outor-

ga das insígnias e da legitimidade fálica, que esperava receber do pai. Tudo

se passa como se o pai não tivesse transmitido e legitimado simbolicamen-

te em Marco Antônio a dignidade fálica de sua masculinidade.

Dessa forma, a constituição de suas identificações sexuais teve de se

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dar fundamentalmente sobre bases imaginárias. Instalar-se em uma posi-

ção de virilidade fálica dependia da apropriação de representantes fálicos

imaginários, ou seja, não reconhecidos pela autoridade simbólica paterna:

o sucesso econômico, as roupas masculinas da moda, o corpo moldado

pelos padrões da academia de ginástica e daí por diante.

Um lugar especial ocuparam a paixão pelos automóveis, pela veloci-

dade e a necessidade imperiosa de realizar novas conquistas amorosas.

Todos esses aspectos representam pontos de identificação e, mesmo, de

certa cumplicidade com o pai. Contudo, devido ao fato de não terem sido

acompanhados pelo reconhecimento paterno, perderam sua dimensão pro-

priamente simbólica, limitando-se a constituir esforços miméticos, especu-

lares, de se tornar igual ao pai. Mas de nada lhe valeu a assunção de uma

imagem semelhante a do pai, sem o reconhecimento de seu estatuto viril no

plano simbólico, provindo do campo do Outro. Aquela imagem que Marco

Antônio havia, com muito esforço, construído para si mesmo, de um ho-

mem ostentando tudo aquilo que supunha ser reconhecido como valor

fálico pelo Outro, parecia-lhe falso, vazio, artificial.

O início das crises de pânico ocorreu justamente em um momento de

desabamento de toda aquela superestrutura imponente, mas artificial.

Naquele momento, seu pai já estava velho, doente, dando sinais de

que iria morrer em breve. Caberia a Marco Antônio, que já se encontrava

sobrecarregado com o esforço que ele próprio havia se imposto de sucesso

profissional, cuidar de sua mãe, tão amada e tão importante em sua vida

afetiva. A tarefa psíquica que tinha diante de si ia muito além da elaboração

das questões edípicas reeditadas pela morte do pai e pela reaproximação

erótica da mãe. Tratava-se de ressituar psiquicamente suas relações com

aquela mulher que a um só tempo aportava-lhe enormes gratificações, no

que dizia respeito a suas necessidades infantis de dependência e de cuida-

dos narcísicos privilegiados, mas que, por outro lado, desconhecia-lhe a

potência viril, a condição de autonomia e que reforçava-lhe seus medos e

temores mais arcaicos.

Além disso, Marco Antônio estava às vésperas de tornar-se, ele pró-

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prio, pai; tratava-se de uma paternidade não desejada e/ou que não repre-

sentava uma autêntica tomada de posição face a seu próprio desejo, advinda

em um casamento cheio de ambivalências. O cenário estava totalmente

preparado para um desabamento catastrófico.

A gravidez da namorada, que viria a ser sua futura esposa, asseme-

lhou-se muito mais a uma brutal passagem ao ato que o obrigaria a se con-

frontar à posição de paternidade, ainda que não se sentisse à altura de

assumí-la. Naquele momento, tudo desaba, e a questão que se coloca em

primeiro plano é a terrível constatação de seu próprio desamparo.

Aquele homem que havia, com grande esforço, conseguido sustentar

uma imagem viril e fálica de si mesmo, subitamente constatava a inconsis-

tência de uma posição subjetiva: de um só golpe desabavam suas enormes

ilusões e revelava-se um fundo aterrador de vazio e de falta de garantias.

De uma só vez, Marco Antônio via-se obrigado a ter de dar conta das

ambivalências de sua relação com o pai, agora irremediavelmente perdido,

e com a mãe, perigosamente próxima; de seu sentimento fundamental de

insegurança, agravado pela falta do pai e potencializado pelos temores exa-

gerados da mãe e da enorme ferida narcísica, decorrente da falta do inves-

timento amoroso tão desejado e tão frustrado pela realidade.

Naquele momento, ao ter de defrontar-se com uma constelação

conflitiva tão invasora do ponto de vista pulsional, instala-se o pânico.

Neste ponto, passo a tecer algumas considerações quanto ao manejo

clínico dos pacientes com ataques de pânico. À guisa de conclusão, seria

importante trazer algumas considerações concernentes às especificidades

do manejo clínico com esses pacientes.

Em primeiro lugar, é importante notar que o caso de Marco Antônio

mostra como o desencadeamento das crises de pânico corresponde a um

momento de desabamento da organização psíquica do sujeito, revelando-

se, subitamente, uma enorme massa de conflitos intrapsíquicos, os quais o

sujeito não pode manejar, ao mesmo tempo em que descobre que não pode

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contar com qualquer ajuda externa para lidar com tal situação. O desampa-

ro e a falta de garantias aparecem a seus olhos de uma forma terrivelmente

clara e assustadora. O ataque de pânico constitui pois, a um só tempo, o

instante de revelação de uma verdade insuportável e a fuga desesperada

diante dessa constatação.

A possibilidade de instalação da situação analítica em condições tão

turbulentas e aterradoras dependerá, em um primeiro momento, da capaci-

dade do analista em acolher o desespero do paciente, sem com isso sufo-

car-lhe a capacidade de produzir um discurso autêntico sobre seu sofri-

mento. A margem de manobra é, portanto, muito estreita: uma atitude ex-

cessivamente fria e distante pode despertar no paciente a convicção de que

não encontrará ali aquilo que mais procura – alívio e reasseguramento. Por

outro lado, se o analista oferece uma tranqüilização muito fácil, confundin-

do continência com aplacamento recalcador do desejo, ele impedirá a cons-

tituição futura de uma demanda legitimamente analítica. Para tanto, é ne-

cessário que a angústia seja mantida em um nível suportável para o sujeito,

deixando sempre no ar a perspectiva do alívio que este procura, mas sem

jamais prometê-lo diretamente.

É preciso ter-se em mente que o indivíduo está confrontado com algo

da ordem da verdade – uma verdade excessivamente dura, mas uma verda-

de – e que a tarefa do analista é a de ajudá-lo a suportar tal revelação sem

álibis, tirando dela as conseqüências para sua própria existência psíquica.

Como, em um primeiro momento, o paciente tende a falar em círcu-

los, a propósito de seus próprios sintomas, tematizando quase invariavel-

mente seu temor das crises e pedindo auxílio e garantias de que elas não

retornarão, é importante encorajá-lo a falar das circunstâncias em que ocor-

reram os ataques, sobre como transcorria sua vida até então, sobre sua his-

tória de vida. Por vezes, é indispensável deslocar totalmente o eixo de seu

relato circular, perguntando-lhe sobre sua vida e sobre sua história pessoal,

sem dar qualquer ênfase aos ataques.

Essa fase inicial é indispensável para que se possa criar uma espécie

de relato ou fábula pessoal – ainda que, a princípio, relativamente artificial

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– sobre a qual as crises poderão ter uma primeira inscrição, deixando de

parecer meros absurdos advindos sem qualquer razão em sua existência. À

medida que os acessos de pânico passam a parecer como enigmas da pró-

pria subjetividade que clamam por elucidação, o setting analítico começa a

poder funcionar segundo as modalidades mais convencionais.

É óbvio que, ao final do tratamento, as crises não poderão ser total-

mente reduzidas às palavras e explicações mitobiográficas que o sujeito

possa construir sobre elas e sobre si mesmo – como, de resto, não ocorre ao

final de nenhum tratamento psicanalítico. O mito de um processo que ter-

mine por uma elucidação completa do inconsciente não se realiza aqui,

como em nenhuma outra situação clínica concreta. Contudo, resgata-se no

paciente a sensação de contato com uma verdade subjetiva, que orientará,

doravante, seus processos psíquicos a partir da intimidade de seu próprio

desejo, ainda que nem esse, nem aquela possam ser inteiramente traduzi-

dos em palavras.

Deve-se notar também, e o caso de Marco Antônio o mostra de manei-

ra clara, que apesar de estarem em jogo angústias extremas, não são apenas

questões de natureza psicótica que estão sendo mobilizadas. O pânico mos-

tra como questões ligadas à sexualidade e ao desabamento do eu podem

estar intimamente articuladas sem com isso implicarem um processo pro-

priamente psicótico, do ponto de vista psicopatológico, o que exige da es-

cuta do psicanalista uma fina sensibilidade, tanto para discriminar o medo

do colapso (e acolhê-lo com a continência indispensável), quanto para in-

terpretar os conflitos de natureza edípica e os relacionados à identificação

sexual.

Finalmente, o quadro depressivo de Marco Antônio, que passou a ocu-

par, em um segundo momento, o espaço psicopatológico anteriormente

ocupado pelos acessos de angústia, deve-nos lembrar que o pânico, como

forma desesperada de se fazer face ao desamparo fundamental subjacente à

vida psíquica, mantém uma estreita relação com a depressão. Enquanto o

sujeito em pânico constata que não existe um objeto-fiador benevolente e

todo-poderoso que garantiria a estabilidade do mundo – e desespera-se com

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tal constatação – o deprimido sofre com suas próprias dificuldades em ela-

borar o luto dessa perda, em especial naquilo que ela representa de abalo

em sua economia narcísica. Dessa forma, aquilo que inicialmente se ins-

taura como pânico pode, se o desespero for mantido dentro de limites tole-

ráveis, transformar-se em um penoso, mas fecundo processo de luto, do

qual a tristeza e a depressão nunca estão ausentes.

O Dr. Mario Eduardo Costa Pereira é Psiquiatra e Psicanalista. Natu-

ral de Porto Alegre, exerce suas atividades atualmente na cidade de Campi-

nas, SP. Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Univer-

sidade Paris 7, é, também, professor do departamento de Psicologia Médi-

ca e Psiquiatria e Diretor do Laboratório de Psicopatologia Fundamental,

ligado à sede Universitária de Pesquisa. Além disso, é membro integrante

do Corpo Editorial da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Funda-

mental e autor dos livros Contribuição à Psicopatologia dos Ataques de

Pânico. São Paulo: Lemos Editorial, 1997 e Pânico e Desamparo, São Pau-

lo: Editora Escuta, 1999.