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Fotograma do documentário Iauaretê, Cachoeira das Onças CARELLI, Vincent. Iauaretê: cachoeira das onças. Documentário em vídeo. 48 minutos. Vídeo nas Aldeias/IPHAN/FOIRN, 2006. O distrito de Iauaretê, com cerca de 4 mil habitantes, fica no município de São Gabriel da Cachoeira (AM). Em Nheengatu a língua geral tupi falada até o final do século XVIII Iauaretê significa "cachoeira das onças". Tratase de uma corredeira cuja importância não deriva de aspectos puramente ambientais e paisagísticos, mas do fato de se tratar de um sítio sagrado para várias etnias indígenas. Os Tukano, Desana, PiraTapuia, Wanano e Tuyuka consideram a cachoeira de Iauaretê como um dos pontos de parada da cobracanoa que trouxe ao Uaupés seus ancestrais. Geraldo O antropólogo Geraldo Andrello, que realizou pesquisas na área, explica que, em todas as narrativas míticas desses povos, “o surgimento e crescimento dos diferentes grupos do Uaupés são tematizados na forma de sucessivos deslocamentos espaçotemporais de seus ancestrais, processo que define também seus respectivos territórios” (ANDRELLO, 2008; s.p.). De fato, contam os Tariano protagonistas do documentário aqui resenhado – que, antes do surgimento dos homens, o mundo era habitado e dominado pelos homensonça. Ao final dessa época mitológica, surgiu Okomi, um ancestral comum que foi perseguido pelos homensonça e que, durante sua fuga, caiu algumas vezes. As quedas de Okomi – sinalizadas visualmente pelas pedras do rio não são interpretadas como fragilidade e vulnerabilidade do herói, mas como recomeços seqüenciais, uma vez que a cada queda que Okomi sofria, ele se transformava em um animal diferente, que poderia ensinar sempre algo novo aos Tariano. O documentário "Iauaretê, Cachoeira das Onças" (48 minutos, 2006), dirigido por Vincent Carelli, reúne narrativas de lideranças indígenas do alto Rio Negro sobre os significados e ensinamentos contidos nessa paisagem, revelando ainda seu esforço e sua luta para fortalecer e legitimar as tradições indígenas. Fruto de uma parceria entre o Projeto Vídeo nas Aldeias, o Instituto Socioambiental (ISA), o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), o filme constituiu parte importante do processo de tombamento dessa paisagem como patrimônio cultural imaterial, em agosto de 2006. Se hoje o tombamento de uma paisagem natural como patrimônio cultural imaterial pode ser realizado pelo IPHAN, nem sempre foi assim. Para entender a importância da novidade, convém remontar ao momento da fundação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), durante o governo Vargas, em grande parte devida aos esforços de Mário de Andrade. De acordo com o decretolei nº 25, de 1937, deveria ser considerado como patrimônio apenas: O conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (CANANI, 2005, p. 3). Observase, na definição acima e em todas as iniciativas das décadas que se seguiram, a ênfase em obras e legados do passado, em feitos e produtos notórios,

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Resenha do documentário “Iauaretê, Cachoeira das Onças” sobre o processo de tombamento da cachoeira de Iauaretê como Local Sagrado dos povos Indígenas do Rio Negro, feito em parceria com o IPHAN/ MINC.

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  • 15/05/2015 RevistaProaResenhas

    http://www.ifch.unicamp.br/proa/resenhas/resenhailana.htm 1/6

    FotogramadodocumentrioIauaret,CachoeiradasOnas

    CARELLI, Vincent. Iauaret: cachoeira das onas. Documentrio em vdeo. 48minutos.VdeonasAldeias/IPHAN/FOIRN,2006.

    Odistrito de Iauaret, com cerca de 4mil habitantes, fica nomunicpio de So

    GabrieldaCachoeira(AM).EmNheengatualnguageraltupifaladaatofinaldosculoXVIII Iauaret significa "cachoeira das onas". Tratase de uma corredeira cujaimportncianoderivadeaspectospuramenteambientaisepaisagsticos,masdofatodesetratardeumstiosagradoparavriasetniasindgenas.

    Os Tukano, Desana, PiraTapuia, Wanano e Tuyuka consideram a cachoeira de

    Iauaret como um dos pontos de parada da cobracanoa que trouxe ao Uaups seus

    ancestrais. Geraldo O antroplogo Geraldo Andrello, que realizou pesquisas na rea,

    explicaque, em todasasnarrativasmticasdessespovos, o surgimentoe crescimento

    dosdiferentesgruposdoUaupssotematizadosnaformadesucessivosdeslocamentos

    espaotemporais de seus ancestrais, processo que define tambm seus respectivos

    territrios(ANDRELLO,2008s.p.).

    Defato,contamosTarianoprotagonistasdodocumentrioaquiresenhadoque,

    antesdosurgimentodoshomens,omundoerahabitadoedominadopeloshomensona.

    Ao final dessapocamitolgica, surgiuOkomi,umancestral comumque foi perseguido

    peloshomensonaeque,durantesuafuga,caiualgumasvezes.AsquedasdeOkomi

    sinalizadas visualmente pelas pedras do rio no so interpretadas como fragilidade e

    vulnerabilidadedoheri,mas como recomeos seqenciais, umavez que a cadaqueda

    que Okomi sofria, ele se transformava em um animal diferente, que poderia ensinar

    semprealgonovoaosTariano.

    Odocumentrio "Iauaret,CachoeiradasOnas" (48minutos,2006),dirigidopor

    Vincent Carelli, rene narrativas de lideranas indgenas do alto Rio Negro sobre os

    significadoseensinamentoscontidosnessapaisagem,revelandoaindaseuesforoesua

    luta para fortalecer e legitimar as tradies indgenas. Fruto de uma parceria entre o

    Projeto Vdeo nas Aldeias, o Instituto Socioambiental (ISA), o Instituto do Patrimnio

    HistricoeArtsticoNacional (IPHAN)eaFederaodasOrganizaes IndgenasdoRio

    Negro (FOIRN), o filme constituiu parte importante do processo de tombamento dessa

    paisagemcomopatrimnioculturalimaterial,emagostode2006.

    Se hoje o tombamento de uma paisagem natural como patrimnio cultural

    imaterial pode ser realizado pelo IPHAN, nem sempre foi assim. Para entender a

    importncia da novidade, convm remontar ao momento da fundao do Servio de

    PatrimnioHistricoeArtsticoNacional(SPHAN),duranteogovernoVargas,emgrande

    partedevidaaosesforosdeMriodeAndrade.Deacordo comodecretolei n 25, de

    1937,deveriaserconsideradocomopatrimnioapenas:

    O conjunto dos bens mveis e imveis existentes no pas e cujaconservaosejadeinteressepblico,querporsuavinculaoafatosmemorveisdahistriadoBrasil,querporseuexcepcionalvalorarqueolgicoouetnogrfico,bibliogrficoouartstico(CANANI,2005,p.3).

    Observase, na definio acima e em todas as iniciativas das dcadas que seseguiram, a nfase em obras e legados do passado, em feitos e produtos notrios,

    http://www.ifch.unicamp.br/proa/pdfs/Ilana%20Seltzer%20Goldstein%20-%2021.pdfhttp://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/br/http://www.ifch.unicamp.br/proa/CITACAO/ilana.html
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    produzidosporartistas consagradosepelaelite intelectual. Foramdeclaradosdignosdepreservao,sobretudo,conjuntosarquitetnicoscoloniaisbarrocos,comoOuroPretoeoPelourinho. Em 1970, o SPHAN que j havia mudado de nome uma vez antes foitransformadonoIPHANInstitutodoPatrimnioHistricoeArtsticoNacional.Existiam,aprincpio,trslivrosdeTombo:LivrodoTomboArqueolgico,EtnogrficoePaisagsticoLivrodoTomboHistricoeLivrodoTombodasBelasArtes.

    Trsdcadasdepois,paramelhorcontemplaradiversidadeeadinmicaculturais,

    surgiu o ProgramaNacional do Patrimnio Imaterial, em2001, que inovou ao propor a

    identificaosistemticaeabrangentedosbensculturaisdenaturezaprocessual.Nesse

    momento, procurouse superar a dicotomia entre cultura material e imaterial, com os

    argumentos de que os produtos culturais carregam marcas dos processos que os

    conformaram e de que o saberfazer e os conhecimentos tradicionais esto

    indissociavelmenteligadosadeterminadosobjetosconcretos01.

    Afimdepermitiroregistrodopatrimnioimaterial,oDecretoLeiN3.551/2000

    criou quatro novos livros de tombo: o Livro de Registro de Saberes, onde so inscritos

    conhecimentos emodos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades o Livro de

    Registro das Celebraes, no qual so inscritos rituais e festas quemarcam a vivncia

    coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras prticas da vida

    socialoLivrodeRegistrodeFormasdeExpresso,queabrangemanifestaesliterrias,

    musicais, plsticas, cnicas e ldicas e o Livro de Registro dos Lugares, onde so

    inscritosmercados,feiras,santurios,praasedemaisespaosemqueseconcentrame

    reproduzemprticasculturaiscoletivas. justamenteemvirtudedacriaodoLivrode

    Registro dos Lugares que a Cachoeira do Iauaret pde se tornar o oitavo patrimnio

    culturalimaterialtombadonoBrasil.02

    inegvelqueoprocessodeatribuiodevaloracertosbensculturais(enoa

    outros)carrega,potencialmente,riscosdearbitrariedade,jqueumrgopblicoum

    antroplogo oumesmo um documentarista passam a deter o poder de decidir o que

    merece investimento dentro do repertrio simblico, tcnico e artstico da sociedade

    inteira (CANANI, 2005). Alm disso, a determinao de alguns itens como patrimnio

    imaterial a ser preservado pode gerar desconforto e polmica, j que eles recebem

    diferentessignificaesemgrupossociaisdistintos.

    Aodiscutir o quanto delicado lidar comamemria social e comopatrimnio

    cultural,GilbertoVelho(2006)ilustracomocasodoterreirodecandomblCasaBranca,

    em Salvador. At que se chegasse a seu tombamento, em 1984, houve inmeras

    divergncias. poca, vrios membros do Conselho do IPHAN consideravam

    despropositadotombarseumareasemconstruesarquitetonicamenterelevantes.Mas

    GilbertoVelho,relatordoprocesso,sustentouapertinnciadesegarantiracontinuidade

    deumaexpressoculturalcujoespaosagradoeraoterreiro.Avitriadesuaposiofoi

    difcil e controversa, pois os setores mais conservadores do catolicismo brasileiro

    estavamtemerososquantovalorizaodocultoafrobrasileiro(VELHO,2006,p.240).

    Tambmno caso daCachoeira de Iauaret, houve disputa entre os vrios povos

    envolvidos,jqueosTarianoqueriamserosautoresdoregistro,oquelhesconsignaria

    ascendnciasobreacachoeiraeelevariasuaversodomitocomoaoficialedefinitiva.

    No final, devido resistncia dos outros povos, o pedido de registro da cachoeira foi

    assinadoporlideranasTarianoeTukano,masemnomedetodasasetniasdeIauaret.

    OIPHANreconheceuIauaretcomopatrimnioculturalbrasileironodia05/08/2006eo

    documentriodeVincentCarelli constituiuparte importantedodosside justificativado

    tombamentodacorredeira.

    Mas,almdeseupapelpolticoeinstrumental,odocumentriodeVincentCarelli

    tem outras qualidades. bem feito, tem ritmo e sensibiliza o espectador pelamaneira

    comoconstriasimagens.Nacenainicial,vriosndiosescutamasprdicasdeumpadre

    catlico branco. Em seguida, deixam a igreja, falando uma lngua do tronco Aruak,

    propositalmente sem traduo. No o contedo de suas falas que importa, mas o

    contraste sugestivo do conflito entre duas vises demundo, uma nativa, outra imposta

    pelocolonizador.Essaprimeiracenadofilme,portanto,janunciasuaquestoprincipal:

    osdesafiosdocontatoparaosndiosdeSoGabrieldaCachoeiraeaviolnciasimblica

    aque tmsido submetidos h dcadas. A locao escolhida para comear, uma igreja,

    nocasual:deacordocomorelatodosprpriossujeitosfilmados,presentesnascenas

    seguintes, osmissionrios salesianos, que chegaram regio em1927, teriamproibido

    gradualmentetodasassuasprticastradicionais,atquealgumasdelasdesaparecessem

    porcompleto.

    FotogramadodocumentrioIauaret,CachoeiradasOnas

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    Nos primeiros cinco minutos, o objetivo explicitado, tanto aos envolvidos na

    filmagem, como ao espectador: quem o faz Geraldo Andrello, do Instituto

    Socioambiental, consultordeVincentCarelli nessedocumentrio.Oantroplogoaparece

    sentadonocho,rodeadoporrepresentantesdosTariano,queoajudamamarcar sobre

    um mapa os locais que devero documentar. Enfatiza que precisam dos lugares mais

    significativos, para que o filme ajude no pedido de registro da Cachoeira do Iauaret

    comopatrimnioimaterialdoBrasil.DuranteaexplicaodeAndrello,oespectadorov

    refletido nos culos espelhados de um dos representantes indgenas. Essa imagem

    possibilita diversas interpretaes. Talvez o diretor estivesse aludindo prpria

    empreitada antropolgica, que consiste em se conhecer por meio do contraste com o

    Outroumasegundapossibilidadequeestivessesereferindodificuldadedesecolocar

    nolugardoOutro,ouseja,opacidadequesvezesseinstauranodilogointercultural

    porfim,quiaimagemdobrancorefletidonosculosdondiosintetizasseasituaode

    dependnciapolticaemqueseencontramospovosindgenasnoBrasildehoje.

    O respeito autonomia dos sujeitos filmados anunciada numa cena em que

    quatro lderes Tariano esto discutindo em sua lngua, porm com subttulos o que

    devem ou no, falar no documentrio. Decidem no contar alguns segredos, porque

    trazem omal ou porque dizem respeito a benzimentos secretos e mencionam como

    difcil fazeraseleo.Damesmaforma,soosndiosqueapontam,duranteopercurso

    debarco,que locaisdevemser filmadoseoquesignificam.Opactoentreodiretordo

    documentrio e os representantes dos Tariano deixado s claras no momento da

    narrativa do mito de origem, logo antes de as partes da corredeira comearem a ser

    mostradas.ApessoaquevainarrarahistriadoheriOkomiassimcomeaseurelato:

    voucontartudocomocombinamos.

    A emoo envolvida no processo tampouco obliterada. Um dos

    entrevistados/narradores chega a chorar quando se refere ao medo que sente de que

    todasessashistriassepercamelamentaodesinteressedasnovasgeraespelacultura

    indgena. E, emdiversos depoimentos assim comona cena domuseu deManaus a

    revolta dos Tariano contra osmissionrios e os brancos vem tona. Umoutro aspecto

    digno de nota, do ponto de vista do partido assumido pelo filme, que Iauaret no

    procura passar uma idia de ndios puros, autnticos. Filmaos vestidos com roupas

    ocidentais,deculosescuros,andandodeavioe trabalhandonocomputador semque,

    apesardisso,pareammenosndios.Dessaforma,noincorrenoriscodetransformar

    odocumentrioetnogrfico em taxidermia, que fixa elementos e processos, de forma

    artificial,einterrompeseufluxodetransformaes(RONY,1996,p.101).

    UmadasseqnciasmaischeiasdetensonofilmedeCarelli,quedizmuitosobre

    osproblemaseassimetriasdepoderenvolvidosnocontatodos ndioscomosbrancos

    aquela filmada no Museu do ndio de Manaus, gerenciado por freiras provavelmente

    ligadas aos salesianos que, dcadas antes, haviam condenado a produo de adornos

    corporaiseosrituaisindgenas,ameaandoosinfratorescomacondenaoaoinferno.

    Tudocomeacomoquepareceumasimplesvisita,naqualosTarianoobservamcolares

    penduradosemummanequimecomentamqueparecem como de um conhecido, Seu

    Pedro.Mas,aospoucos,aatmosferavaisetornandodensaeconstrangedora,quandoos

    ndios exigem da freira acesso livre reserva tcnica onde encontram vrios adornos

    corporais e utenslios que reconhecem como seus. por isso que desapareceram da

    aldeia, exclama um deles. Vamos levar tudo, sugere outro. AnaGita deOliveira, do

    DepartamentodePatrimnio Imaterialdasededo IPHAN,emBraslia,quemmedia o

    dilogoentrea freira responsvel pelomuseueos ndios, ansiosospor reaver o que

    deles. Fica combinado que as peas sero devolvidas em outrosmomentos, quando se

    concluremastratativasnecessrias.

    TalvezsepossamarriscarduasaproximaesentreVincentCarellieavietnamita

    Trinh T.Minhh embora essa cineasta e videoartista seja bemmais radical em suas

    experimentaespsmodernas03.Aprimeiraatentativadefalarpertode/juntoaos

    (nearby)sujeitosfilmadosenoporelesousobreeles.Aenunciaodocineasta,desse

    modo,noosobjetifica(...)eissonoapenasumatcnicaouumadeclaraoverbal,

    masumaatitudenavida,umamaneiradeseposicionaremrelaoaomundo(MINH

    apud CHEN, 1992, p.87, traduo da autora). A segunda a valorizao do aspecto

    esttico e criativo do filme etnogrfico. Nas palavras de Minhh, o processo de

    realizaodeumfilmeseaproximadacomposiomusicaledaescritadepoesia.(...)s

    alinguagempoticaconseguelidarcomosignificadodeumamaneirarevolucionria(id.

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    ibid.:p.8586,traduodaautora).

    MasserqueIauaret,cachoeiradasonasumfilmeetnogrfico?Quandose

    podeclassificarumfilmeenquantoetnogrfico?Eisduasquestesquevmmentedo

    espectador aps assistir ao documentrio de Carelli. Alguns filmes costumam ser

    rotulados como etnogrficos apenas porque lidam de maneira simptica com culturas

    exticaspopularmentetomadascomoosobjetostpicosdaantropologia.Deacordo

    comJayRuby,oequvocoteriasidoiniciadoporAndrLeroiGourhan,que,nadcadade

    1940,definiuos filmesetnogrficoscomotodosos filmesquedescrevessem sociedades

    diferentes daquela dos autores (MAC DOUGALL, 1992, p. 52, traduo minha). Essa

    definioapressadaeescorregadiafoiemseguidanuanadaeproblematizada.

    Jay Ruby, na dcada de 1970, conceituou como filme etnogrfico aquele que

    produz,dentrodedeterminadoquadroterico,afirmaeseconclusessobretotalidades

    culturais. Embora hoje em dia o trabalho antropolgico j no pretenda chegar a

    concluses, nem a representaes totalizantes, alguns princpios estabelecidos pelo

    autor permanecem pertinentes, como a necessidade de um filme etnogrfico ser

    informado,implcitaouexplicitamente,porteoriasculturais,sertransparentequantoaos

    mtodosdepesquisaede filmagemutilizadose lanarmodeum lxicoantropolgico

    especfico.

    JparaClaudinedeFrance,ofilmeetnogrfico,pilardadisciplinaqueelachama

    de antropologia flmica, obedece a outro conjunto de exigncias epistemolgicas: a

    busca de conhecimento sobre o mundo histrico, ou seja, a finalidade primeira de

    produzir conhecimento especfico de onde decorre seu pblicoalvo imediato bastante

    restrito, constitudo pelo prprio antroplogo e seus pares a submisso a restries

    circunstanciais, sejam elas tcnicas, polticas ou interdies da parte das pessoas

    filmadaseorespeitoaotimingdossujeitosfilmados.

    David Mac Dougall, por sua vez, sugere que se proceda a uma delimitao de

    fronteirasentreo filmeantropolgicoeo filmesobreantropologia. Enquanto o primeiro

    se prope a explorar integralmente os dados, alcanando novos patamares tericos, o

    segundoapenasrelataconhecimentosexistentes.Osfilmessobreantropologiacostumam

    empregarconvenesdidticasejornalsticas,enquantoosfilmesantropolgicoscontm

    genunos procedimentos de investigao (cf. MAC DOUGALL, 1998, p. 76). Na mesma

    direo,LOIZOS(1993)distinguefilmesantropolgicosdefilmescomvalorantropolgico.

    Apesar de ambos se prestarem a anlises culturais, no so, de modo algum,

    equivalentes.

    Assim,deacordocomosparmetrosdefinidosporessescincoespecialistas,talvez

    no se possa dizer que Iauaret, cachoeira das onas, seja um filme etnogrfico no

    sentidoplenodotermo.Apesardedarvozandiosdaregioamaznicaetercomopano

    efundoquestesbastanterelevanteparaasCinciasSociaiscomoadinmicacultural,

    otombamentodebensculturaisimateriais,oempoderamentodeminoriasetc.trata

    sedeumdocumentriosobreantropologia,parausaraexpressodeMacDougall,oude

    umfilmecomvalorantropolgico,naacepodeLoizos.

    Em primeiro lugar, porque o diretor embora seja conhecido pela prtica da

    antropologia compartilhada nos demais trabalhos que realizou no mbito do projeto

    Vdeo nas Aldeias est, aqui, exercendo uma criao autoral, conforme seu prprio

    depoimento. Em segundo lugar, porque o filme foi feito sob encomenda do IPHAN, um

    rgo governamental de gesto do patrimnio, com a finalidade de compor um dossi

    comfimpolticoeno,comoobjetivodediscutiracosmologiaTariano,porexemplo.Em

    terceiro lugar, porque Vincent Carelli se define profissionalmente como fotgrafo e

    videomakere admite que precisou da consultoria do antroplogo Geraldo Andrello, do

    InstitutoSocioambiental(ISA)paracompreendercertascoisas.

    Noobstante,halgunselementosantropologicamentelouvveisemIauaret:o

    respeito ao fluxo da fala dos sujeitos filmados a abertura e a simpatia sua causa,

    traduzidaem imagensquegeram identificaoe comoonoespectador a contratao

    deumndioTarianoparafazeratraduodasfalasquenosoemportugusaexibio

    do filme pronto, aps a finalizao, para vrias comunidades indgenas, que, segundo

    Carelli,estoagoraquerendodesenvolveriniciativassimilares.

    Independentementedortuloqueaeleseatribua,ofilmeIauaret,cachoeiradas

    onas acabou desencadeando alguns processos no local da filmagem, como o

    reconhecimentoeadevoluodosornamentosTarianoqueseencontravamnomuseude

    Manaus desde que foram pilhados por missionrios salesianos. Assim, se a feitura do

    FotogramadodocumentrioIauaret,CachoeiradasOnas

  • 15/05/2015 RevistaProaResenhas

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    documentrio no foi plenamente compartilhada para usar uma expresso de Jean

    Rouch, para quem o filme deve ser construdo a partir do debate entre quem filma e

    quem filmado04 , os efeitos gerados pelo filme foram, sem dvida, poltica e

    culturalmenteimportantesparaossujeitosfilmados.

    Iauaret,cachoeiradasonas,mesmoquenopossaserconsideradoumfilme

    estritamenteetnogrfico,suscitaquestesrelevantesparaaantropologia.E,senoum

    filme puramente experimental, do ponto de vista cinematogrfico, contm imagens

    esteticamente sofisticadas. No hesita em tomar partido e a colaborar para a

    transformao da realidade filtrada pela cmera. Alm disso, o diretor no peca por

    excessodedidatismo,nodeixaocorrerredundnciaentrepalavraseimagens,tampouco

    ocupao lugarda falados ndios.Eomais importantequesodeixadasbrechaspara

    queoespectador tea relaese construa suasprprias impresses sobreo sentidodo

    queobserva.Eisalgunsdeseusmaiorestrunfos.

    01OantroplogoAntonioArantes(2008),quepresidiuoIPHANentre2004e2006, um dos autores que mais tem insistido que produto e processo cultural soindissociveis: As coisas feitas testemunham omodo de fazer e o saber fazer. (...) Ocabedalproduzidopelotrabalhodegeraesdepraticantesdedeterminadaarteouofcio algo mais geral do que cada pea produzida ou executada, do que cada celebraorealizada.(...)Mas,emcontrapartida,encontraseemcadaobraounalembranaquesetemdelaotestemunhodoquealgumcapazdefazer(ARANTES,2008,p.13).

    02OprimeiropatrimnioimaterialtombadofoiaArteKusiwatcnicadepinturae arte grfica dos ndios Wajpi, do Amap a segunda foi a festa do Crio de NossaSenhoradeNazar,deBelmdoParemseguida foiavezdoJongo,heranaculturaldos banto tambm o Modo de Fazer VioladeCocho, o Samba de Roda do RecncavoBaiano e os ofcios das Baianas de Acaraj e das Paneleiras de Goiabeiras foramregistradosnoslivrosdoIPHAN.

    03Almdecineastaindependenteeartistaplstica,TrinhT.Minhh,nascidaemHani,em1952,pesquisaedcursosfocadosemestudosfeministas,polticasculturaisecontextos pscoloniais, na Universidade de Berkeley. Seus filmes normalmente fazemreferncia a questes de teor antropolgico. Reassemblage (1982) e Naked Spaces(1985), por exemplo, resultam de uma expedio etnogrfica de 3 anos que fez aoSenegalediscutem,deformaousadaepoucolinear,aexotizaoeareconfiguraodeidentidades resultantes do neocolonialismo. Ela tambm autora, entre outraspublicaes, de African Spaces Designs for Living in Upper Volta (1985) e Woman,Native,Other.Writingpostcolonialityandfeminism(IndianaUniversityPress(1989).

    04JeanRouchagranderefernciadaantropologiaflmica,tantopelaqualidade,comopelaquantidadedeobrasquedeixou.Esseengenheirode formao,quedefendeuumateseemantropologiaorientadaporMarcelGriaule,produziufilmesquesetornaramclssicos,comoLesmatresfous(1954)eMoi,umnoir(1958).ComRouch,acmerasetornou participante, capaz de suscitar o dilogo intertnico e provocar reaes nossujeitos filmados. Assumir tal postura tica e esttica equivalia a praticar umaantropologia compartilhada, assim definida por Jean Rouch: se eu pergunto a umindgena: Voc acredita em Deus?, ele pode responder e voc?. A resposta toessencialquantoaperguntaque lhe foidirigida. (...)Ocinemaoveculoquepermiterealizar (...) essa antropologia partilhada, que o feedback (Rouchapud STUTMAN&SCHLLER,1997,p.14).

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    ARANTES, A. A.. O patrimnio imaterial e a sustentabilidade de sua salvaguarda. IN:Revista Da Cultura ano IV n. 7. (Disponvel online no site da Funceb:http://www.funceb.org.br/pdf.html.Acessoem05/01/2008).

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