revista plenarium - reforma política

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Reforma Política Câmara dos Deputados

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Page 1: Revista Plenarium - Reforma Política

Reforma Política

Câmara dos Deputados

Page 2: Revista Plenarium - Reforma Política

Revista PlenaRium

Conselho EditorialJorge Henrique CartaxoPedro NoletoAntônio Octávio CintraRicardo OriáPaulo Roberto de AlmeidaCarlos Henrique CardimFabiano SantosWalter Costa PortoWilliam FrançaDiretorJorge Henrique Cartaxo[(61) 3215.8033 | [email protected]]EditoresAntônio Octávio CintraPedro NoletoRoberto SeabraRedatorAdemir MalavaziRevisãoFlora M. da Mota CabralRonaldo SantiagoProjeto Gráfico, Capa e DiagramaçãoSuzana CuriFoto de CapaLuis HumbertoIlustraçõesCerinoMarina RochaRacsowFale conoscoCâmara dos DeputadosCentro de Documentação e Informação - CEDICoordenação de PublicaçõesAnexo II - Térreo - Praça dos Três PoderesBrasília - DF | CEP 70160-900Telefone: (61) 3216-5802 | Fax: (61) 3216-5810Email: [email protected]

Plenarium. - Ano IV, n. 4 (jun. 2007) - Brasília : Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2007.271 p. : il. color.

ISSN 1981 - 0865

1. Reforma política, Brasil. 2. Política e governo, Brasil. 3. Biossegurança, Brasil. 4. Meio ambiente, Brasil.

CDU 32.001.7(81)

mesa DiRetoRa Da CâmaRa Dos DePutaDos 53a legislatuRa – 1a sessão legislativa

Presidente Arlindo Chinaglia1o Vice-PresidenteNarcio Rodrigues2o Vice-PresidenteInocêncio Oliveira1o SecretárioOsmar Serraglio2o SecretárioCiro Nogueira3o SecretárioWaldemir Moka4o SecretárioJosé Carlos Machado1o Suplente de SecretárioManato2o Suplente de SecretárioArnon Bezerra3o Suplente de SecretárioAlexandre Silveira4o Suplente de SecretárioDeley •Diretor-Geral

Sérgio Sampaio Contreiras de Almeida •Secretário-Geral Da MeSa

Mozart Vianna de Paiva

Diretoria leGiSlativa

DiretorAfrísio Vieira Lima Filho •centro De DocuMentação e inforMação DiretorLuiz Antonio Souza da Eira

Diretora de PublicaçõesMaria Clara Bicudo Cesar

•Secretaria De coMunicação Social DiretorWilliam França

Page 3: Revista Plenarium - Reforma Política

Reforma PolíticaAlexandre Cardoso .................................................. 10

Reforma política: prioridade da democracia

Maurício Rands ...................................................... 14

A inadiável reforma do sistema eleitoral

Ronaldo Caiado ...................................................... 24

Com o atual sistema, não há salvação

Sandra Starling ...................................................... 30

A reforma política desejável

Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Graeff .............. 38

O próximo passo

Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi .......... 50

Reforma política: notas de cautela sobre

os efeitos de escolhas institucionais

Fabiano Santos ...................................................... 60

Agenda oculta da reforma política

Jairo Nicolau ......................................................... 70

Cinco opções, uma escolha: o debate sobre a reforma

do sistema eleitoral no Brasil

Bruno P. W. Reis ..................................................... 80

O presidencialismo de coalizão sob pressão: da

formação de maiorias democráticas à formação

democrática de maiorias

Octavio Amorim Neto .............................................104

Valores e vetores da reforma política

José Antônio Giusti Tavares .....................................112

Quatro questões pontuais da reforma política

Wilhelm Hofmeister ................................................128

Democracia, governabilidade, estabilidade:

os pilares do Direito Eleitoral alemão como

referência para reflexões, visando a uma

reforma do sistema eleitoral brasileiro

Olhar ExternoBrian Kerr ............................................................142

O artigo 2º da Convenção Européia de Direitos

Humanos e o dever de efetivamente investigar

Perfil do ArtistaLuis Humberto ......................................................264

Fotografia: a reinvenção do real

LeiturasAntônio Octávio Cintra ...........................................250

A origem é o sistema eleitoral

Paulo Roberto de Almeida .......................................253

O seu, o meu, o nosso dinheiro…

Fronteiras da sociedade global

Palavras e HistóriaCasimiro Neto .......................................................226

Reforma eleitoral – Lei nº 842, de 1855

(Lei dos Círculos Eleitorais)

Meio AmbienteFábio Feldmann ....................................................216

Mudanças climáticas: o grande desafio da Humanidade

Idéias e LeisJosé Cordeiro de Araujo e Rodrigo H. C. Dolabella .......198

Transgênicos, biossegurança e o Congresso Nacional

Balanço da 52a LegislaturaFátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo . 154

Para um balanço da 52a legislatura

Apresentação .............................. 4

Sumário

Page 4: Revista Plenarium - Reforma Política

Apresentação

4 |

A reforma política, tema deste número de Plenarium, tem freqüentado o

debate público brasileiro de longa data, com acentuada presença, em particular,

nos anos recentes, após o começo da Nova República.

Seria idiossincrasia brasileira querer reformar os lineamentos da política do

país tão pouco tempo após uma Assembléia Nacional Constituinte? Não nos pa-

rece ser o caso. Em política, como em outras esferas de decisão, impõe-se uma

perspectiva experimental. De tempos em tempos, é preciso reexaminar a moldura

política do país e ver como está funcionando, se está ajudando ou não o país a

enfrentar com competência os desafios do tempo presente e capacitando-o para

um futuro melhor, num contexto global de muita competição entre as nações. A

democracia não é um regime estático, senão arranjo cuja possibilidade de aper-

feiçoamento deve estar sempre presente.

Se o tema “reforma política” é recorrente entre nós, as propostas concretas

de reforma não têm, todavia, prosperado em sua tramitação legislativa. Em boa

parte, tal se deve à incerteza quanto a seus efeitos sobre as carreiras dos próprios

parlamentares. Novas regras trazem insegurança. Por essa razão, em várias das

propostas contempladas ao longo dos anos, com prudência se estipula, quase

sempre, uma data futura para as disposições entrarem em pleno vigor. Entretan-

to, essa estipulação não tem bastado para facilitar as coisas.

Um outro fator importante milita contra as tentativas de reformar a política,

ou seja, o problema que as propostas visam a enfrentar não é visto sob a mesma

ótica por todos. Raramente, quando se louva ou se critica nosso sistema político,

os valores contemplados são os mesmos. Em conseqüência, discrepam os diagnós-

ticos e as propostas corretivas. Mais séria ainda, entre muitos dos que tratam do

Page 5: Revista Plenarium - Reforma Política

| 5Revista Plenarium

tema, seja em defesa de reformas, seja em oposição a elas, é a falta de explicitação

dos critérios usados. Quais merecem maior ponderação e por quê? Avaliar em fun-

ção de apenas um critério, qualquer que ele seja – governabilidade, participação

e incorporação políticas, clareza das opções em jogo nas eleições, liberdade de

o eleitor escolher o candidato, e não apenas o partido, solidez das agremiações

partidárias, lisura dos pleitos, inteligibilidade dos resultados para o eleitor, entre

outros – é sem dúvida insuficiente, mas é o que quase sempre se faz.

Pode-se talvez alegar que muito do que se vê como “problema” em nossa

política seja na verdade peculiar ao funcionamento democrático. Não se pode, na

democracia, liminarmente excluir interesses da mesa de negociações, como fazem

as ditaduras. As decisões democráticas tendem a ser mais demoradas, a governa-

ção se torna bem mais árdua e é sempre vulnerável a críticas.

Entretanto, continua de pé a necessidade de avaliar o próprio funcionamento

democrático, não para condenar o regime, mas para aperfeiçoá-lo. A qualidade

da democracia não é um valor constante, senão uma variável. Há democracias

que funcionam bem, outras nem tanto. E a democracia brasileira, pela escolha

constitucional do presidencialismo, defronta-nos com desafios especiais. Para

operar bem, sem perder a essência democrática, esse sistema requer uma delicada

e complexa engenharia política. Já a teremos atingido? Ou é o chamado “presi-

dencialismo de coalizão” um arranjo precário, demasiado dependente de extraor-

dinárias virtudes de seus praticantes para funcionar, em vez de assegurado pela

boa operação de suas instituições? Eis aí, sem dúvida, um dos cernes do debate

que é preciso fazer nesta altura.

Em suma, a reforma política não tem receita pronta e consensual. Não se

justifica, porém, pôr de lado a discussão do regime que temos e adiar o esforço de

aprimorá-lo com medidas factíveis, mesmo quando falte certeza absoluta sobre

todos os efeitos que elas possam ter. Se o status quo é ruim, não há por que lhe

dar prioridade no confronto com propostas de mudança que, no cômputo geral,

ofereçam perspectivas melhores, com o argumento de já conhecermos como as

coisas operam nos arranjos presentes e desconhecermos o que nos reservam as

reformas. A assim proceder, o conformismo levará sempre a melhor, quando há

ainda muito a fazer para nosso regime lograr, de forma equilibrada, estabilidade,

eficácia e legitimidade.

O leitor encontrará, no núcleo temático de Plenarium, uma ampla discussão

da reforma política, vista tanto sob a ótica de líderes políticos quanto sob a de ex-

Page 6: Revista Plenarium - Reforma Política

Apresentação

6 |

poentes da academia. Os prós e contras de algumas das propostas mais conhecidas

são tratados com rigor de argumentação e empenho persuasivo, e certamente irão

iluminar, sem simplificá-lo, o debate do assunto entre os cidadãos interessados e,

em particular, entre os que sobre ele vão decidir no Congresso. É o que almejamos

ao dedicar este número de Plenarium a matéria tão crucial e controversa.

Note-se que, ao lado dos textos atuais relativos à reforma política, Plenarium

publica também um valioso documento histórico, comentado e transcrito pelo

historiador Casimiro Neto. Trata-se da defesa do projeto de que resultou a Lei dos

Círculos Eleitorais (Lei nº 842, de 1855), feita pelo deputado Eduardo Ferreira

França, representante da Bahia, em sessão de 25 de agosto de 1855. A manifes-

tação do parlamentar é um sólido arrazoado em prol do voto distrital e é subsídio

para o debate de hoje.

Assim como nos números anteriores, Plenarium traz, em sua seção Olhar Externo, um texto relevante para o cotejo de nossa realidade com a de outras

sociedades democráticas contemporâneas. Trata-se de palestra de Sir Brian Kerr,

chefe do Judiciário na Irlanda do Norte, proferida na Conferência Inter-Regional

sobre Sistemas de Justiça e Direitos Humanos, realizada em Brasília, em 2006,

com patrocínio do Conselho Britânico. Kerr tratou do art. 2º da Convenção para

a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Por ser a

Convenção, essencialmente, um tratado entre Estados soberanos e não uma lei

devidamente promulgada no âmbito do Reino Unido, a jurisprudência lhe proibia

a aplicação no direito interno. Depois, no entanto, da entrada em vigor do Hu-

man Rights Act, em 2 de outubro de 2000, a Convenção tornou-se diretamente

aplicável nos tribunais britânicos. O artigo, além da importância substantiva do

tópico, chama-nos a atenção para o crucial problema de integração das normas

de convenções internacionais ao direito nacional.

A seção Idéias e Leis deste número trata de uma das proposições mais

significativas produzidas pela 52ª Legislatura – a Lei nº 11.105/2005 (Lei de

Biossegurança). O artigo dos consultores legislativos José Cordeiro de Araújo e

Rodrigo H. C. Dolabella, que assessoraram os relatores da matéria ao longo de sua

tramitação na Câmara mostra, com objetividade, como o Legislativo desincum-

biu-se com elevado espírito democrático e proficiência da difícil missão de elabo-

rar uma lei cujo objeto, crítico para o desenvolvimento nacional, é extremamente

complexo e conflituoso. Nele, os aspectos técnicos e científicos são indissociáveis

dos ideológicos e políticos, e a decisão exigiu muito debate, audiência da comu-

Page 7: Revista Plenarium - Reforma Política

| 7Revista Plenarium

nidade científica, consulta aos setores interessados e demorada negociação, para

que a deliberação, impossível de contentar a todos na inteireza de suas posições,

fosse entretanto considerada legítima, porque democraticamente feita.

Plenarium considerou oportuno, também, trazer um balanço da 52ª Legisla-

tura. Três cientistas políticos, Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo

Melo, examinam imensa gama de dados da atividade legislativa no quadriênio

passado, provendo um retrato bastante completo e isento de como operou a Câ-

mara dos Deputados no período.

Uma nova seção integra também a matéria deste número, a dedicada ao

meio ambiente. O tema ganhou urgência neste começo de século. Uma revista

do Poder Legislativo tem de acolhê-lo e contribuir para que se torne um dos fo-

cos do debate público nos anos vindouros. Para inaugurar a seção, convidamos o

ex-deputado Fábio Feldmann, um dos mais ativos e constantes propugnadores da

causa ambiental entre nós.

Queremos expressar nosso agradecimento aos inúmeros colaboradores que

nos honraram com seus artigos neste número de Plenarium. Além dos anterior-

mente citados, agradecemos ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao

ex-ministro Eduardo Graeff, aos deputados federais Alexandre Cardoso, Maurício

Rands e Ronaldo Caiado, à ex-deputada federal Sandra Starling e aos professo-

res Argelina Cheibub Figueiredo, Bruno Reis, Fabiano Santos, Fernando Limongi,

Jairo Nicolau, José Antônio Giusti Tavares, Octavio Amorim Neto, Paulo Roberto

Almeida e ao Diretor do Centro de Estudos da Fundação Konrad Adenauer no

Brasil, o cientista político Wilhelm Hofmeister.

Nada mais apropriado para ilustrar uma revista que trata da reforma política

do que as imagens feitas por um repórter fotográfico que conviveu durante anos

com o poder. Plenarium traz neste número uma pequena mostra do trabalho de

quarenta anos do fotógrafo Luis Humberto. Um dos maiores nomes do fotojorna-

lismo brasileiro, além de professor universitário e pensador da Fotografia, Luis

Humberto trabalhou nos anos 60 e 70 em revistas semanais, retornou à Uni-

versidade nos anos 80 e nos últimos anos publicou diversos livros sobre o fazer

fotográfico. É mais uma participação que nos honra.

Jorge Henrique Cartaxo

Page 8: Revista Plenarium - Reforma Política

Palácio do Planalto, 1979. Foto de Luis Humberto.

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Reforma Política• Alexandre Cardoso Reforma política: prioridade da democracia• Maurício Rands A inadiável reforma do sistema eleitoral• Ronaldo Caiado Com o atual sistema, não há salvação• Sandra Starling A reforma política desejável• Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Graeff O próximo passo• Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi Reforma política: notas de cautela sobre os efeitos de escolhas institucionais• Fabiano Santos Agenda oculta da reforma política• Jairo Nicolau Cinco opções, uma escolha: o debate sobre a reforma do sistema eleitoral no Brasil• Bruno P. W. Reis O presidencialismo de coalizão sob pressão: da formação de maiorias democráticas à formação democrática de maiorias• Octavio Amorim Neto Valores e vetores da reforma política• José Antônio Giusti Tavares Quatro questões pontuais da reforma política• Wilhelm Hofmeister Democracia, governabilidade, estabilidade: os pilares do Direito Eleitoral alemão como referência para reflexões, visando a uma reforma do sistema eleitoral brasileiro

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Alexandre Cardoso*

10 |

A raiz da maioria dos problemas políticos brasileiros está na ineficiência histórica da educação no país. Sem conhecimentos necessários para distinguir as funções e interdepen-dências de cada poder constitutivo de nossa democracia, o cidadão confunde atribuições e “compra gato por lebre”. Prova disso é que, três meses após a eleição, um terço dos eleitores não lembra mais em quem votou para deputado. Por oportunismo ou ignorância, os can-didatos a parlamentar reforçam o modelo “toma lá, dá cá”, prometendo benefícios que não podem ou não deveriam cumprir. Recente levantamento sobre o perfil da nova composição da Câmara dos Deputados aponta que dois terços dos parlamentares foram eleitos, direta

ou indiretamente, graças ao assistencialismo. Centros sociais ou religiosos, apesar de necessários diante da omissão

do Estado, oferecem assistência médica, odontológica e alimentícia como instrumento de realização de projetos políticos individuais, desvirtuando o objetivo filantrópico. Poucos se apresentam ao eleitor com idéias, ideais ou propostas de debate sobre, por exemplo, o papel do Mercosul, da reforma tributária ou do marco regulatório do saneamento básico.

O atual e exaurido modelo político-eleitoral é o principal ingrediente do desprestígio e da corrupção do parlamento brasileiro em todas as esferas. Um modelo em que o voto no candidato “A” elege o candidato “B”. Somente seis por cento dos candidatos atingem o quociente eleitoral, enquanto o restante se beneficia de votos alheios. Esse tipo de política, aliado à manipulação da assistência social, é a responsável pela eleição de “sim-patizantes” do narcotráfico, do roubo de cargas e do tráfico de armas.

Além do óbvio investimento em educação, acredito ser necessária a redivisão geográ-fica do país e, conseqüentemente, a revisão dos conceitos de município dentro do mapa político-eleitoral do Brasil. O princípio de igualdade entre as unidades da Federação está resguardado pela distribuição equânime de vagas no Senado Federal. No entanto, é preciso rever os critérios das eleições proporcionais. Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, concentra mais eleitores que todo o Estado do Amapá. O ex-território e seus cerca de quinhentos mil habitantes elegem tantos deputados federais quanto o Distrito Federal, que tem população na casa dos dois milhões. Ou seja, um voto amapaense vale cinco vezes mais que o voto brasiliense.

*Alexandre Cardoso, deputado federal, PSB/RJ, é atualmente secretário estadual de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro. Presidiu a Comissão Especial da Reforma Política na 52ª legislatura (2003-2007).

O atual e exaurido modelo político-eleitoral é o

principal ingrediente do desprestígio e da corrupção

do parlamento brasileiro em todas as esferas

Reforma política: prioridade da democracia

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Reforma Política

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Alexandre Cardoso

12 |

A reforma possível

A Comissão Especial de Reforma Política, que tive a oportunidade de presidir, realizou dezenas de reuniões, audiências públicas e seminários, com especialistas brasileiros e estran-geiros, para discutir as vantagens e desvantagens dos sistemas político, partidário e eleitoral do Brasil. Nenhuma das proposições decorrentes desse debate, como a PEC 548-B e os Projetos de Lei de nos 5.268, 1.712 e 2.679, obtiveram pleno consenso dos parlamentares.

Em dezembro de 2003, a comissão aprovou o anteprojeto de lei nº

2.679, o mais completo entre todos, que dispõe sobre o voto de legenda em listas partidárias preordenadas, o financiamento de campanha, as coligações partidárias, a instituição de federações partidárias, o funcionamento parla-mentar, a propaganda e pesquisas eleitorais. A proposição seguiu para a Co-missão de Constituição e Justiça e de Cidadania, recebeu análise do relator, deputado Rubens Otoni, no final de 2004, e durante todo o ano de 2005 ficou estagnada por falta de vontade política. A última ação que consta do controle de tramitação da matéria é um requerimento de urgência de minha autoria, assinado por todos os líderes da Câmara em agosto de 2006.

Entre as principais divergências ao PL nº 2.679/2003 estão a lista fechada de candidatos, a fidelidade partidária e o financiamento de cam-panha. No entanto, essas são as mudanças mais prementes e possíveis de serem votadas diante da atual cultura política de nosso país.

No sistema de listas fechadas, os filiados de um partido votam e escolhem uma relação de candidatos que concorrerão às eleições pela legenda. Esse mecanismo fortalece as siglas e, indi-retamente, estimula aqueles que quiserem ser candidatos a manterem-se fiéis aos ideais e proje-tos do seu partido, sob pena de serem excluídos do processo eleitoral pelos correligionários.

Atualmente, apenas Brasil, Chile, Peru, Polônia e Finlândia adotam listas abertas.A fidelidade partidária como obrigação legal não existe em democracia alguma do

planeta, mas as migrações entre legendas podem ser desencorajadas por medidas simples. Recentemente, a Câmara alterou seu Regimento Interno estipulando que as comissões per-manentes da Casa serão distribuídas entre os partidos, proporcionalmente, de acordo com o resultado das eleições. Antes, o aumento ou redução do número de comissões de uma deter-minada legenda dependia do vaivém de parlamentares, instigados pelo balcão de negócios promovido anualmente pelos partidos. Entre janeiro de 2003 e outubro de 2005, mais de 180 deputados federais trocaram de partido.

As listas fechadas, mistas ou não, são pressupostos para a implementação do financia-mento público de campanha porque facilitam o controle contábil dos recursos. Depois de definidos os critérios e pré-requisitos para a obtenção do financiamento, a Justiça Eleitoral fiscalizaria as contas do partido, e não do candidato. Isso significa que o TSE e os TREs focariam sua atenção nas contas das trinta agremiações políticas existentes hoje.

Aos que duvidam da eficácia do financiamento público, vale apresentar o resultado de uma pesquisa que a Comissão Especial de Reforma Política realizou sobre o tema. No mo-delo atual, os recursos de campanha são provenientes de desvio de verbas públicas, dinheiro

No modelo atual, os recursos de campanha são provenientes de desvio de verbas públicas, dinheiro

do narcotráfico, do tráfico de armas, do roubo de

cargas e do abuso do poder econômico. A comissão chegou à conclusão de que somente vinte por

cento do dinheiro de campanha é declarado

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Reforma Política

do narcotráfico, do tráfico de armas, do roubo de cargas e do abuso do poder econômico. A comissão chegou à conclusão de que somente vinte por cento do dinheiro de campanha é de-clarado. Todo o resto é “caixa dois”. Afinal, ninguém crê que nas eleições municipais de 2004 um vereador gastou, em média, apenas R$ 916,45 para se eleger, conforme dados do TSE.

Também foi possível determinar as origens lícitas: nas campanhas para prefeito, as doações são de empresas de lixo, de ônibus, de iluminação e de serviços; para governador, o dinheiro vem de empreiteiras e obras; para presidente, do Sistema Financeiro. Nesses casos, cada centavo vem acompanhado de expectativa de retorno por parte do doador.

A reforma política já foi declarada prioridade pelo então presidente Fernando Henri-que Cardoso, pelos ex-presidentes do PT José Dirceu e José Genoíno, pelo ex-presidente da Câmara dos Deputados Aécio Neves, e pelo presidente Lula na campanha de 2002. A importância da reforma foi novamente reforçada por Luiz Inácio Lula da Silva após a con-firmação de sua reeleição. Desta vez, diante dos acontecimentos políticos recentes, creio que a sociedade não permitirá que a Justiça, o Palácio do Planalto ou o Congresso Nacional negligenciem a votação de uma proposta que pretenda disciplinar, racionalizar e modernizar nosso sistema político-eleitoral.

A renovação de cerca de cinqüenta por cento da Câmara dos Deputados exigirá novos debates sobre a reforma política. Porém, o tripé financiamento-fidelidade-listas foi ampla-mente discutido e está pronto para ser votado em 2007. De minha parte, acredito que essa é a reforma possível, mas não a desejável. Esses três mecanismos pavimentarão o caminho para uma outra reforma, mais ampla, mais profunda.

Ao longo do período em que presidi a comissão especial, tive a oportunidade de co-nhecer experiências bem-sucedidas de outros países, ouvir especialistas, realizar pesquisas e debruçar-me sobre vasta bibliografia política, partidária e eleitoral. Influenciado por todas essas informações, construí um modelo de reforma política que necessitaria de uma consti-tuinte exclusiva para a implementação do voto distrital misto, os candidatos nacionais, das câmaras municipais regionais e do fim do sistema bicameral no Congresso brasileiro. Mas essa é uma outra história.

Page 14: Revista Plenarium - Reforma Política

Maurício Rands*

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1) Breve diagnóstico do atual sistema

Concluídas as eleições gerais de 2006, algumas patologias do atual sistema eleitoral brasileiro repetiram-se no país inteiro. Foi muito grande o abuso do poder econômico. Bair-ros e municípios inteiros transformados em “bocas de urnas” remuneradas, mero disfarce à

compra de votos declarada. Uma mesma pessoa integrando mais de uma lista. Houve um recrudescimento das formas individualistas de solução de problemas: como a ação do Estado ainda é lenta e burocrática, as pessoas inclinam-se a se valer da eleição para obter favor imediato dos políticos. Nessa busca por extrair proveito imediato das eleições, vai se fortalecendo o personalismo na política. A mercantilização do voto é maior nas eleições legislativas, mas também contamina o voto para os executivos. No pro-

cesso, os programas e princípios partidários empalidecem. Multiplicam-se as estratégias de “chapinhas” aglutinando legendas de aluguel cuja capacidade de atingimento do quociente eleitoral é inversamente proporcional à força do programa. Tudo somado, a conclusão é fácil. Embora o problema tenha causas profundas em nossa distorcida cultura política e no próprio processo de formação do Estado patrimonialista, fica difícil negar que as atuais regras do sistema eleitoral facilitam o fenômeno.

No dizer de Giovanni Sartori (1994), os sistemas eleitorais classificam-se de dois mo-dos. Primeiro, segundo o modo como os votos são transformados em vagas: sistemas ma-joritário ou proporcional. Depois, segundo o modo como se selecionam os candidatos e se definem os eleitos. O mais importante, porém, é saber a quem cabe a definição da ordem dos eleitos: se aos eleitores ou se aos partidos. Num extremo, a completa personalização do voto proporcional verifica-se no caso do voto singular transferível, conhecido como Sistema de Hare, onde o eleitor assinala o(s) nome(s) de seu(s) candidato(s) em ordem de preferência, sem qualquer referência ao partido. Tal sistema prevaleceu no Japão até 1993. No outro extremo, o voto de lista partidária fechada atribui ao partido a definição da ordem dos nomes a serem eleitos, não podendo o eleitorado inverter essa ordem. Diversos arranjos intermediários atribuem maior ou menor peso ao eleitor ou ao partido na fixação da ordem dos eleitos. Nesta área está a lista aberta – não preordenada –, em que o partido apresenta a sua “chapa”, mas os eleitores é que vão definir a ordem dos eleitos. O Brasil, como se sabe,

*Maurício Rands, Doutor pela Universidade de Oxford, é deputado federal pelo PT/PE e professor de Direito da UFPE.

A inadiável reforma do sistema eleitoral

A mercantilização do voto é maior nas

eleições legislativas, mas também contamina o

voto para os executivos

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Reforma Política

| 15Revista Plenarium

adota para a escolha de deputados e vereadores esse sistema proporcional de lista partidária aberta; para o Executivo e senadores, o sistema majoritário.

Na legislatura passada, a Câmara dos Deputados deu andamento à reforma política através do Projeto de Lei nº 2.679/2003, que, depois de aprovado em Comissão Especial e na Comissão de Constituição e Justiça, encontra-se pronto para ser votado em Plenário. Ou, ao menos, para servir de ponto de partida de uma nova rodada de discussões que, espe-ra-se, conduzam ao tão aguardado aperfeiçoamento do atual sistema.

2) Dois valores a perseguir: representatividade e governabilidade

A representação política do povo brasileiro tem defeitos e virtudes que refletem a socie-dade. Esta Casa é espelho da diversidade e do pluralismo que é inerente às democracias con-temporâneas. De um modo ou de outro, as reivindicações de diferentes segmentos sociais encontram uma forma de manifestação nas comissões e no Plenário. O que nem sempre ocorre é a inteira correspondência entre os interesses populares e as decisões do Legislativo, pelo menos na proporção e intensidade sentida pelos setores sociais mais desfavorecidos e

com menos poder de representação. Se isso é verdade, uma das explicações para essa falta de correspondência pode residir nas regras do nosso sistema eleitoral. Elas favorecem ou dificultam uma melhor expressão dos reais interesses de cada setor e do conjunto da sociedade? Trata-se de um proble-ma comum a todas as democracias: o da representatividade, autenticidade ou legitimidade da representação política. É anseio democrático básico a busca da realização deste valor, o valor da representatividade.

Um outro valor perseguido pelas sociedades democráticas é o da ca-pacidade de governar. Quando os cidadãos delegam poderes às autoridades para que estas administrem o Estado, eles o fazem na expectativa de que suas necessidades de segurança, justiça, educação, saúde e demais serviços

públicos sejam satisfeitas. Inúmeras pesquisas realizadas recentemente sobre cultura política (cf., por exemplo, Os Brasileiros e a Democracia, de José Álvaro Moisés) mostram que a adesão à democracia representativa tem forte correlação positiva com a capacidade do Es-tado de direito democrático de cumprir com efetividade suas atribuições. Como lembra o Prof. Ronald Dworkin, em sua monumental obra sobre o Princípio da Igualdade (2000), a própria legitimidade do Estado contemporâneo passa a depender da sua capacidade de tratar igualmente todos os cidadãos. O que vale dizer, a legitimação do Estado depende de sua capacidade de cumprimento de atribuições que assegurem um tratamento igualitário básico para todos. Quanto mais eficazes as políticas públicas para satisfação das necessidades da população, mais o Estado ganhará legitimidade. E, portanto, mais fortalecido será o regime democrático. Daí se segue que o regime democrático, para sua própria sustentabilidade, deve enfrentar o problema da governabilidade e da eficiência do funcionamento do Estado. Por isso, a discussão sobre a nossa reforma política, à luz desta reflexão, precisa levar em conta o importante elemento da capacidade de governo do Estado brasileiro. Precisa responder à in-dagação sobre os efeitos do atual sistema eleitoral na eficiência das nossas políticas públicas.

A representação política do povo brasileiro tem defeitos e virtudes que

refletem a sociedade. Esta Casa é espelho da diversidade e do

pluralismo que é inerente às democracias

contemporâneas

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Maurício Rands

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3) O sistema eleitoral brasileiro favorece o valor representatividade ou autenticidade da representação política?

Quando se contrapõem os sistemas majoritário e proporcional, é comum o argumento de que o último favorece uma melhor representatividade da sociedade na medida em que a diversidade de interesses encontraria expressão nos diferentes partidos que expressam essas posições. Os interesses minoritários ficariam mais bem protegidos porque não precisariam da aprovação majoritária para obter representação no parlamento. Pois bem, o regime hoje seguido no Brasil é o proporcional e não existem muitas proposições objetivando a intro-dução do sistema majoritário através do voto distrital. Penso que não estão presentes as condições para uma alteração tão brusca quanto seria a adoção do sistema majoritário para eleição dos membros da Câmara dos Deputados, das assembléias legislativas e das câmaras municipais, visto que importantes correntes de opinião e interesses específicos poderiam ficar ainda mais sub-representados do que já o são.

Mas será que o regime proporcional fundado no voto uninominal favorece a representatividade? Como se sabe, o senso comum dominante é o de que, no Brasil, vota-se nas pessoas e não nos partidos. Porque a nossa tradição partidária é débil, a melhor qualidade do voto transcenderia os limites dos partidos. A pouca adesão aos partidos e aos seus programas

vem de mãos dadas com o troca-troca de agremiações. Se o eleitor votou no candidato e não no partido, o eleito não tem maiores obrigações com a legenda. Sua fidelidade restringe-se ao eleitor. Ocorre que não é apenas a um único eleitor. Como ele é eleito com milhares de votos, o comum é que as opiniões desses eleitores sejam diversas. E que estejam em contradição direta e frontal em muitas das questões sobre as quais o eleito se deve pronunciar. A solução para o conflito é a escolha pessoal do eleito. Sua opção nas matérias em discussão passa a ser, no mais das vezes, uma opção pessoal. Ainda que, a posteriori, ele possa buscar fundamentação em algumas das opiniões em conflito entre os que o elegeram. Ao invés da representatividade, o que se verifica é a preponderância da vontade individual do eleito. Se o partido,

mesmo assim, continuar a pressioná-lo com o fechamento de questão, ele simplesmente pode mudar de partido. O que, aliás, ocorreu em demasia na legislatura passada, quando 125 parlamentares resolveram abandonar as legendas e os programas com base nos quais se elegeram. A atual legislatura já começa com cerca de duas dezenas de trocas partidárias. Somente entre 1985 e 2001, nada menos que 846 parlamentares trocaram de partido no Congresso Nacional. O parlamentar, uma vez eleito, comporta-se como se o seu mandato fosse seu apenas. Ele não precisa pautar seus pronunciamentos e votos no programa da legenda, visto que a legenda é algo institucionalmente muito frágil. A autenticidade e a legitimidade da representação passa a ser algo que depende quase que tão-somente da consciência individual do parlamentar. Tais regras são reproduzidas (ou decorrem) de uma cultura política individualista, infensa a qualquer disciplina da ação coletiva. Como a democracia pode ser vista como um sistema

A pouca adesão aos partidos e aos seus

programas vem de mãos dadas com o troca-troca

de agremiações. Se o eleitor votou no candidato

e não no partido, o eleito não tem maiores

obrigações com a legenda

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organizador da ação coletiva, fica evidenciado o déficit democrático de um regime que alimenta o individualismo na política.

Os mecanismos institucionais que favorecem o individualismo de nos-sa representação política, como visto, fragilizam a ação coletiva organizada em torno de projetos e programas de governo. A adesão aos programas pode facilmente resumir-se ao nível da retórica. Na prática, o parlamentar pode votar ou deixar de votar em propostas que se contrapõem ao pro-grama sob o qual se elegeu. A representatividade dos mandatos fica, desta forma, gravemente prejudicada.

4) O sistema eleitoral brasileiro favorece a governabilidade?

Já vimos que o voto uninominal com fidelidade partidária frouxa ajuda a reproduzir a cultura do excessivo individualismo na política. Uma outra característica que seguramente atua no mesmo sentido é a influência do poder econômico. À parte o financiamento público dos fundos partidários e da propaganda gratuita, cada candidato organiza e registra seu pró-prio comitê financeiro, mobilizando contribuições pessoais, de simpatizantes e de empresas. Com tamanhos recursos muitas candidaturas encontram êxito nos currais onde o voto é dado sem que o eleitor sequer conheça as propostas dos candidatos. São milhões os brasileiros que sequer podem lembrar o nome do parlamentar que escolheram nas últimas eleições.

Alguns eleitos, nessas condições, devem muito maior fidelidade aos que providenciaram os recursos da campanha do que aos próprios eleitores, aos partidos e aos programas que reto-ricamente adotaram. Sua ação no parlamento é, de conseqü-ência, guiada muito mais por interesses individuais. Essa multiplicidade de interesses individuais desagregados e de-sarticulados, naturalmente, não gera campo propício para a eficiência das políticas públicas concebidas em tal ambien-te. A propósito, não são poucos os estudos que mostram que a qualidade das ações do Estado está diretamente relacionada com a capa-

Como a democracia pode ser vista como um sistema

organizador da ação coletiva, fica evidenciado o déficit democrático de

um regime que alimenta o individualismo na política

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cidade de ação coletiva e cooperativa das respectivas sociedades. Com base em pesquisa feita durante dez anos nas regiões administrativas da Itália e, portanto, munido de farto material empírico, Robert Putnam (1990) demonstrou que, nas regiões onde as instituições tinham melhor funcionamento (como em Bologna, p. ex.), as respectivas populações demonstravam maior capacidade de ação coletiva.

A quase ilimitada liberdade de influência do poder econômico nas campanhas atua, assim, como mais um fator para a fragmentação programática dos parlamentos. A conseqüência é que, não obstante uma determinada plataforma governamental ter sido a escolhida através do voto direto majoritário para o Executivo, nem sempre a maioria dos eleitos para o parlamento atua em consonância com essa vontade da sociedade expressa nas urnas. A capacidade da ação governamental, portanto, fica muito comprometida. Passa a depender de esforços de arregimentação pontuais, feitos caso a caso em cada proposição submetida ao Legislativo. A execução do programa escolhido pela sociedade no voto dado ao Executivo passa a se defrontar com enormes obstáculos no Legislativo. A independência e autonomia do Legislativo, em vez de servir de temperamento e aperfeiçoamento das iniciativas do Executivo, em alguns casos leva-o a atuar com independência (e às vezes até mesmo em contraposição) da vontade majoritária da população. A capacidade de atuação do Estado para concretizar aquele programa votado pelo povo resulta, em seu conjunto, muito debilitada. As conseqüências desta pouca capacidade de governabilidade, num país com um déficit de desenvolvimento e cidadania como o nosso, é algo que deve ser enfrentado com o maior senso de urgência possível. O aperfeiçoamento do nosso sistema eleitoral pode ser um dos fatores para atenuar o problema, se conseguir forjar uma maior capacidade de ação coletiva programática nos parlamentos. Se lograr reduzir a fragmentação e o individualismo das bancadas parlamentares, agregando-as nos partidos ou coligações com base nos programas com os quais os candidatos disputaram as eleições.

Essa dificuldade de atuação coletiva e programática das bancadas é agravada pelo fato de que o sistema brasileiro conjuga o presidencialismo com um multipartidarismo excessi-vo. Gera-se instabilidade e baixa governabilidade porque a proliferação partidária dificulta a formação de maiorias sólidas capazes de aplicar o programa do governo eleito. Parte-se para a construção de coalizões frouxas às vezes à base de cooptação caso a caso, com evidente fragilidade e diminuição da qualidade da política.

5) O PL 2.679 e as perspectivas para maior representatividade e governabilidade

O PL 2.679/2003 propõe uma ruptura com a tradição cujas conseqüências para a re-presentatividade e a governabilidade acabamos de analisar. Visa diminuir a atomização das bancadas e a falta de compromisso programático que decorrem da proliferação de partidos, do individualismo e da excessiva influência do poder econômico. Propõe fazer da disputa eleitoral um momento de confronto coletivo de diferentes programas partidários. Natural-mente a tentativa de mudança da cultura política de um país através da reforma institucio-nal encontra fortes limitações, como bem adverte o cientista político Fábio Wanderley Reis,

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da UFMG (2003). Para ele, os adeptos da chamada “engenharia política” precisam temperar a excessiva crença no potencial transformador das mudanças institucionais. Por isso, deve-se prestar atenção no ceticismo das interpretações “burkeanas”, que não se entusiasmam com o “artificialismo” das modificações meramente legislativas. Todavia, não se pode desconhecer que as instituições exercem um efeito recíproco na cultura política e não podem limitar-se a reproduzi-la. Mormente em seus aspectos menos conducentes ao desenvolvimento de uma democracia moderna, participativa e de massas. Por isso, ainda que nos abstenhamos de nutrir expectativas demasiadamente otimistas, podemos antever na reforma política atual-mente em discussão na Câmara dos Deputados um passo a mais na criação de instituições eleitorais que ajudem a corrigir alguns defeitos de nossa cultura política.

5.1) Sistemas de listas fechadas ou de listas flexíveisNo vigente sistema de lista aberta, o eleitor pode votar no candidato ou na legenda de

sua preferência. A maior parte das vezes vota num candidato e, assim, a definição da lista dos eleitos vai sendo construída a partir da soma dos votos dados aos candidatos. A ordem dos eleitos é fixada inteiramente pela manifestação dos eleitores.

Num sistema de lista fechada, no outro extremo, a ordem dos eleitos é estabelecida pelos partidos através de suas instâncias de deliberação. A convenção partidária, ao escolher os candidatos, preordena-os de modo a que os eleitores votem nos partidos e respectivos programas. Os votos das legendas garantem um certo número de cadeiras e elas são atribuí-das aos primeiros da lista partidária. Nesse desenho institucional, a ênfase é dada no aspecto coletivo e programático da política, assumindo-se que os partidos representam idéias, pro-jetos e programas.

Uma posição intermediária é o sistema de lista flexível. O partido preordena uma de-terminada lista de candidatos. O eleitor continua podendo votar na legenda ou no candi-dato. Os candidatos mais votados ganham as cadeiras em disputa. Mas o voto dado apenas à legenda, em vez de ser distribuído entre os que recebem mais votos dos eleitores, passa a ser distribuído para que os primeiros da lista partidária completem o quociente partidário. Nesse sistema, a lista feita pelos partidos serve apenas para efeitos de atribuição dos votos de legenda. O eleitor continua podendo definir uma ordem de eleitos diferente daquela deci-dida pela instância partidária. Porém, a adesão do eleitor ao partido através do voto apenas na legenda pode fazer com que a ordem dos eleitos sofra influência da legenda. Se todos os eleitores votarem na legenda, o resultado seria equivalente ao do sistema de lista fechada, em que a ordem dos eleitos é aquela que foi definida pela instância partidária. Se, ao invés, todos votarem em candidatos, o resultado seria equivalente ao sistema de lista aberta, em que a ordem dos eleitos é construída tão-somente pelo voto do eleitor. O mais provável é uma combinação intermediária, onde os partidos e respectivos programas teriam uma determinada influência na ordem dos eleitos, mas a última palavra continuaria a ser dada pelo eleitor. Cresceria a coesão das bancadas eleitas, visto que os partidos tendem a colocar nos primeiros lugares das listas os candidatos mais identificados com a vida partidária e seu programa. Esse sistema aproxima-se do atualmente vigente em países como a Bélgica, de reconhecida estabilidade democrática.

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Alguns argumentos brandidos contra os sistemas que aumentam a influência do partido na seqüência dos eleitos, sejam as listas abertas, sejam as listas flexíveis, encontram muita aco-lhida no atual debate. Para uns, os partidos em sua maioria são controlados por burocracias (“a lei de ferro das oligarquias”, tal como propunha Pareto ainda no século XIX). Haveria a ditadura das cúpulas partidárias na confecção das listas. Isto significaria subtrair a liberdade de escolha dos eleitores, que ficariam impedidos de sufragar o seu preferido. O poder eco-nômico continuaria a correr solto, determinando a ordem de inscrição dos candidatos em legendas de aluguel. Em primeiro lugar, responda-se que qualquer alteração neste sentido deve vir acompanhada de regras que obriguem um conteúdo democrático mínimo nas regras de funcionamento dos partidos. Mas o verdadeiro antídoto às manipulações partidárias pode ser encontrado no próprio mercado político. Uma oligarquia partidária que elabore a lista com base nos critérios de favorecimento ou mesmo de obtenção de vantagens econômicas não fará tais escolhas sem se submeter aos seus resultados. Uma lista assim confeccionada irá à disputa política com candidatos nem sempre qualificados e reconhecidos pela opinião pública. A qualidade inferior de uma tal lista diminuirá a performance daquele partido e isto diminuirá seu apelo nas eleições subseqüentes. Essa legenda ficará sujeita a uma forte pressão

para escolher a próxima lista com candidatos mais qualificados e com mais serviços prestados à comunidade. O exemplo do Reino Unido é eloqüente. A qualidade das bancadas, cujos candidatos são escolhidos pelas instâncias partidárias para concorrer no sis-tema distrital, é aumentada pelo fato de que os membros do ga-binete de ministros têm que ser escolhidos pelo chefe de governo dentre os deputados eleitos para a Câmara dos Comuns. Além disso, o fraco desempenho ou os casos de corrupção dos eleitos

nas listas passariam a sofrer controle dos próprios deputados do partido, que seriam afetados na próxima eleição pela

má-conduta dos seus colegas. A tendência de sistemas de lista flexível

ou fechada é o incentivo à

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formação de listas com pessoas experimentadas, dotadas de vocação política demonstrada na vida partidária e nas organizações da sociedade civil. Haveria um incentivo à maior coe-são das bancadas eleitas por um partido que disputou a eleição com base em projetos e pro-gramas. Seria eliminada a atual regra em que um candidato tem como principal adversário o companheiro de partido, com conseqüências muito negativas para o dia-a-dia parlamentar. Poderia haver uma diminuição do individualismo e um aumento das potencialidades para a ação coletiva baseada em idéias e programas.

5.2) Federações partidárias e proibição de coligações proporcionais

A prática das coligações partidárias nas eleições proporcionais tem sido acusada de incentivar distorções representativas. Muitas vezes o eleitor vota num candidato de um certo partido motivado pelos compromissos daquela agremiação. Como as coligações nem sempre são feitas por afini-dades programáticas, o resultado é que o voto daquele eleitor muito co-mumente beneficia candidatos cujas idéias com as dele não se coadunam. Trata-se de uma distorção daquele valor representatividade/autenticidade, sem o qual uma democracia dá sinais de evidente fragilidade. Em relação ao valor governabilidade, a frouxidão das coligações pouco programáticas também traz conseqüências negativas, pois aumenta a falta de coesão das bancadas eleitas e, conseqüentemente, o compromisso de sustentação dos projetos majoritariamente apoiados pelo eleitorado.

Visando enfrentar o problema, o projeto de reforma política em curso cria o instituto da federação de partidos, com duração mínima de três anos.

É a seguinte a redação dos dispositivos que tratam da matéria, tal como dispõe o art. 3º do PL 2.679/2003, ao acrescentar o art. 11-A à Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995 (Lei Orgânica dos Partidos Políticos):

Art. 11-A Dois ou mais partidos políticos poderão reunir-se em federação, a qual, após a sua constituição e respectivo registro perante o Tribunal Superior Eleitoral, atuará como se fosse uma única agremiação partidária, inclusive no registro de candidatos e no funcionamento parlamentar, com a garantia da preservação da identidade e da autonomia dos partidos que a integrarem.

§ 1º A federação de partidos políticos deverá atender, no seu conjunto, às exigências do art. 13, obedecidas as seguintes regras para a sua criação:

I – só poderão integrar a federação os partidos com registro definitivo no Tribunal Superior Eleitoral;

II – os partidos reunidos em federação deverão permanecer a ela filiados, no mínimo, por três anos;

III – nenhuma federação poderá ser constituída nos quatro meses anteriores às eleições.§ 2º O descumprimento do disposto no § 1º deste artigo acarretará ao partido a perda

do funcionamento parlamentar.

Em relação ao valor governabilidade, a

frouxidão das coligações pouco programáticas

também traz conseqüências negativas, pois aumenta

a falta de coesão das bancadas eleitas e, conseqüentemente, o compromisso de

sustentação dos projetos majoritariamente

apoiados pelo eleitorado

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§ 3º Na hipótese de desligamento de um ou mais partidos, a federação continuará em funcionamento, até a eleição seguinte, desde que nela permaneçam dois ou mais partidos.

Ao mesmo tempo, o projeto de lei proíbe as coligações para as eleições proporcionais dentro da mesma circunscrição, permitindo-as apenas para as majoritárias, segundo dispõe o novo art. 6º proposto para a Lei Orgânica dos Partidos Políticos. Com a providência, busca-se atribuir maior nitidez e representatividade ao nosso sistema eleitoral.

5.3) Financiamento públicoA proposta de financiamento público das campanhas eleitorais talvez seja uma das que

mais despertam resistências. Como a reputação média dos políticos não é lá das melhores, a sociedade resiste em destinar recursos para suas campanhas. Todavia, deve-se perguntar se ela já não financia as eleições. Além do fundo partidário e da propaganda gratuita no rádio e na televisão, não existem custos adicionais para a administração pública e para a sociedade como um todo?

Quais são os custos impostos ao país pelas distorções que resultam da influência do poder econômico no processo eleitoral?

Visando uniformizar e controlar os gastos com as eleições, o PL 2.679/2003 estabelece que os recursos para as campanhas serão unicamente provenientes do Tesouro Nacional, sendo as despesas realizadas exclusivamente através dos partidos, federações ou coligações. Por força do art. 5º do PL, o art. 17 da Lei nº 9.504, de 1997 (Lei das Eleições), passa a dispor que a dotação específica a ser incluída na Lei Orçamentária terá valor equivalente ao número de eleitores multiplicado por R$ 7,00 (sete reais). Pelo número atual de eleitores, de cerca de 116 milhões, o total desses recursos orçamentários chegaria a aproximadamente R$ 812 milhões, para financiamento de toda a campanha eleitoral no país. Seguramente as eleições de 2006, realizadas para presidente da República, senadores, deputados federais, governadores e deputados estaduais, envolveram um total de recursos muito superior a esse montante. E o que é mais grave, recursos nem sempre provenientes de fonte lícitas, pois os valores apresentados à Justiça Eleitoral muitas vezes são subdimensionados. O financia-mento privado, infelizmente, tem permitido a influência de atividades ilícitas, até mesmo ligadas ao narcotráfico, nos legislativos e executivos do país. Essa influência deletéria nas instituições seria drasticamente eliminada em virtude da proibição de qualquer financia-mento privado das campanhas.

Ainda por força do art. 5º do PL 2.679/2003, o art. 19 da Lei nº 9.504, de 1997, passa a dispor que os partidos, as federações ou coligações serão obrigados a constituir um único comitê financeiro para toda a campanha na União, no estado ou no município. A primeira prestação de contas será feita com antecedência de 45 dias da data das eleições. A prestação de contas definitiva será feita até 10 dias após a data do pleito. O art. 24, a seu turno, estabe-lece pesadas multas às pessoas físicas e jurídicas que fizerem qualquer doação às campanhas, ainda que em bens ou serviços meramente estimáveis em dinheiro, punindo os candidatos e partidos com a cassação dos registros das candidaturas, cumulada com a imposição de multas e demais penas por abuso de poder econômico.

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Um aspecto importante que nem sempre tem sido devidamente realçado é a ampliação da capacidade de fiscalização da Justiça Eleitoral. Por força do art. 25-A da nova redação proposta para a Lei nº 9.507/2003, a fiscalização do abuso de poder econômico será exer-cida por uma comissão instituída pela Justiça Eleitoral em cada circunscrição. Como o financiamento público será destinado tão-somente aos partidos ou às federações, segue-se

que a capacidade fiscalizatória da Justiça será muito ampliada. Em vez das dezenas de milhares de comitês financeiros hoje constituídos pelos can-didatos individuais, majoritários ou proporcionais, a comissão da Justiça Eleitoral fiscalizará no máximo algumas dezenas de comitês financeiros dos partidos ou federações. Essa drástica redução das contas a serem acom-panhadas, antes e depois do pleito, inclusive com a suspensão antecipada das campanhas com sinais exteriores de abuso econômico (art. 25-A, par. 3º), pode significar uma redução sem precedentes na influência do poder econômico nos resultados eleitorais. Cada um pode julgar por si o quanto isto pode melhorar a representatividade e governabilidade das nossas ins-tituições democráticas.

Certamente muitos outros aspectos do nosso sistema representativo reclamam cuidadosa revisão. Embora não possamos alimentar expectativas demasiadamente otimistas quanto à reforma política ora em discussão na

Câmara dos Deputados, não podemos deixar de considerar que alguns progressos estão sendo propostos para avançar na democratização do nosso sistema. Deixar de experimentá-los seria permanecer numa atitude resignada diante de mecanismos que reconhecidamente distorcem a vontade popular e dificultam o processo de desenvolvimento democrático do país. Mais que isto, a manutenção do atual sistema implica a perpetuação de distorções que dificultam o próprio desenvolvimento econômico e social do Brasil.

Referências

Benevides, Vannuchi e Kerche (orgs.). 2003. Reforma Política e Cidadania. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.

Dworkin, Ronald. 2000. Sovereign Virtue – The Theory and Practice of Equality. Cambridge-Massachusetts: Harvard University Press.

Putnam, Robert. 1990. The Civic Culture – Making Democracy Work. Cambridge: Harvard University Press.

Reis, Fábio Wanderley. 2003. “Engenharia e Decantação” in: Reforma Política e Cidadania, p. 13-32.

Sartori, Giovanni. 1994. Ingegneria Costituzionale Comparata. Bologna: Il Mulino.

Em vez das dezenas de milhares de comitês

financeiros hoje constituídos pelos

candidatos individuais, majoritários ou

proporcionais, a comissão da Justiça Eleitoral

fiscalizará no máximo algumas dezenas de

comitês financeiros dos partidos ou federações

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*Ronaldo Caiado, deputado federal, DEM/GO, foi o relator da Comissão Especial da Reforma Política na 52ª legislatura (2003-2007).

Se havia ainda alguma dúvida sobre a necessidade de ampla e radical reformulação do sistema político-eleitoral brasileiro, esta se desfez nestas últimas eleições. O pleito de 2006, de forma sintomática, restou caracterizado por autêntica esquizofrenia partidária, excessos de gastos eleitorais, com “caixa dois” ou “recursos não contabilizados”, corrupção da má-quina pública, posta a serviço de candidaturas preferenciais, e, por fim, pela comprovação na prática daquilo que eu próprio já tive ocasião de denunciar por várias vezes: nem o TSE nem os TREs, em face do modelo eleitoral adotado, dispõem de condições de fiscalização dos gastos das campanhas eleitorais. A Justiça Eleitoral fixa regras que sabe que na prática não serão respeitadas; partidos e candidatos as contornam e desobedecem, cientes de que não serão apanhados. Tudo como na música de Nelson Sargento: “Nosso amor é tão boni-to/ Ela finge que me ama / E eu finjo que acredito”.

A solução passa por se conseguir que os partidos políticos se tornem reais, comprome-tidos com programas e propostas; pelo banimento das legendas de aluguel; pelo financia-mento público das campanhas eleitorais; pela adoção de regras que impeçam os governantes (candidatos ou não a reeleição) de se valer seja de obras ou de recursos públicos como meio

Com o atual sistema, não há salvação

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de interferência nas eleições, seja das verbas desviadas do Orçamento da União ou prove-nientes do narcotráfico, do jogo do bicho, entre outros, que tanto têm financiado as eleições no Brasil. Assim, haverá possibilidade de controle e fiscalização, pela Justiça Eleitoral, tanto das eleições quanto do próprio cotidiano político.

Defendo, para isso, a adoção do sistema de listas fechadas nos pleitos proporcionais para impedir o troca-troca partidário, que tanto vem desmoralizando o Legislativo brasileiro (193 deputados federais em 3 anos e 10 meses trocaram de partido 337 vezes), permitir o verdadeiro controle da Justiça Eleitoral sobre os gastos nas campanhas eleitorais e dar a con-

dição de implantarmos o financiamento público e exclusivo de campanhas, conforme o Projeto de Lei nº 2.679/2003. Com essa inovação, fechar-se-á o cerco aos pontos que tanto vêm desmoralizando a prática política em nosso país pela expulsão dos homens de bem do processo e estímulo ao avanço da “bandidagem” cada vez mais na vida política nacional. Com essas duas mudanças (financiamento público exclusivo e listas fechadas) a Justiça Eleitoral passa a ter condições de promover uma efetiva fiscalização e punição dos ilícitos eleitorais.

A democracia representativa só funciona bem quando existem parti-dos, isto é, organizações intermediárias capazes de recrutar líderes e militantes, fazer campa-nhas em torno de plataformas e programas de governo, atuar disciplinadamente no Legis-lativo e, em conquistando o governo, executar as políticas mediante as quais conquistaram a confiança do eleitor.

Um grave equívoco que cumpre esclarecer já de saída é o de que o voto por lista fechada seja antidemocrático, ou ainda que impeça a livre manifestação do eleitor. Mundialmente, ele é a regra sob o sistema proporcional. Sua adoção visa a preservar precisamente a unidade partidária: o voto para os parlamentos é dado em lista partidária fechada, na ordem elabo-rada pela própria legenda, e não aberta, em candidatos individuais. As disputas se dão no interior dos partidos, que com isso adquirem autonomia, legitimidade e unidade de ação.

Por outro lado, o voto em lista fechada não ofende o princípio do voto direto, cláusula pétrea da Constituição. Voto direto não é sinônimo de voto em pessoas individuais. Signifi-ca que o voto conduz diretamente à apuração do resultado da eleição, sem decisão interme-diária. Fica excluída, por exemplo, a eleição por meio de delegados num colégio eleitoral. No pleito por lista fechada, o eleitor escolhe diretamente o partido, ou seja, um grupo de candidatos organizados em lista, os quais, eleitos na ordem em que nela se apresentam, vão desempenhar sua função no parlamento. E, eleitos dessa forma, podem ser cobrados tanto pelo partido quanto pelos eleitores. Terão que atuar, sob pena de perda do mandato, de acordo com o programa partidário em nome do qual foram incluídos na lista e eleitos, e não como hoje, mercadejando seu voto individual.

Aos que argumentam que, com tal sistemática, o eleitorado seria privado de um direito, o de votar no candidato, na pessoa, obrigando-o a votar numa coletividade, há que lembrar que, mesmo sob a forma atual de voto em lista aberta, o eleitor não vota na pessoa que bem entender dentro do universo de seus concidadãos. Vota em candidatos filiados a um parti-do, que são por este selecionados, colocados numa lista e assim apresentados ao eleitorado.

A Justiça Eleitoral fixa regras que sabe que

na prática não serão respeitadas; partidos e

candidatos as contornam e desobedecem, cientes de que não serão apanhados

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O eleitor não votará em quem quiser, mas apenas em alguém que integre um partido e que tenha sido por ele selecionado em convenção, e muitas vezes seu voto serve para eleger outro candidato com o perfil oposto daquele em quem votou.

Votar em nomes, na escala de um estado, e não em partidos, tem um custo elevado e inúmeras desvantagens. O parlamentar eleito em sistema de lista aberta não está compro-missado por qualquer modo com o eleitor que o elegeu, e sua atividade não se sujeita a qual-quer controle a não ser o seu próprio interesse pessoal. Ele não atua por força de princípios ou programas, mas no âmbito de conveniências, pessoais ou grupais. Por outro lado, pela inexistência de fidelidade partidária, acompanhada de sanções efetivas, a ação parlamentar é marcada por aguda incoerência e total imprevisibilidade pela possibilidade de que verea-dores e deputados migrem à vontade entre as legendas partidárias. Esse quadro predispõe

os parlamentos a “mensalões”, subornos e negociatas, tanto de governantes quanto da iniciativa privada, e viola, na prática, a vontade do eleitor. Mais que isso, impede qualquer tipo de estabilidade institucional e compromete o prestígio e a legitimidade das instituições políticas perante a sociedade.

Com o voto em lista fechada, assegura-se, de imediato, a estabilidade do quadro partidário. Assim, o debate eleitoral se modifica, pois as legen-das serão forçadas a discutir com o eleitorado as questões importantes em

jogo na sociedade e as propostas de cada grupo para lidar com elas. Vale lembrar que, dife-rentemente do que existe hoje, somente partidos organizados e estabilizados em torno de plataformas são capazes de fazer compromissos e cumpri-los, de interagir responsavelmente uns com os outros nas negociações políticas e na composição dos governos de coalizão, que em nosso país são a forma habitual de exercício do Poder Executivo.

Mas não é suficiente legitimar e tornar reais os partidos políticos. É igualmente funda-mental minimizar o custo das eleições e, simultaneamente, impedir a corrupção eleitoral, seja por interferência direta do poder econômico no financiamento das campanhas, seja ela por influência indireta de governantes, mediante obras e favores com recursos públicos. A situação é ainda mais grave do que aparentava, pois, paradoxalmente, mesmo com a proibi-ção de gastos em showmícios e distribuição de brindes, com o objetivo de reduzir os custos e a prática de “caixa dois”, os candidatos gastaram muito mais com a campanha de 2006 do que haviam feito com a de 2002.

Na raiz do problema está também o atual sistema eleitoral, que, tanto por força da mu-dança dos meios de comunicação e difusão quanto pela pulverização individual nas eleições proporcionais, demanda recursos cada vez maiores, em especial nestas últimas. Como cada candidato teve que cuidar individualmente de sua campanha, todas as campanhas, majori-tárias ou proporcionais, se tornaram proibitivas, exigindo abundantes recursos financeiros, em geral não disponíveis para partidos e candidatos.

A necessidade de recursos é suprida seja pelas contribuições privadas, de cidadãos e, sobretudo, de grandes empresas, seja pelo uso da máquina administrativa. Em ambos os casos, acabam maculadas e severamente comprometidas a normalidade e a legitimidade das eleições. Na primeira situação, a força do dinheiro substitui a das idéias; além disso, gera-se dependência da representação parlamentar com respeito aos seus financiadores, o que não é

Votar em nomes, na escala de um estado, e não em partidos, tem

um custo elevado e inúmeras desvantagens

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sadio para a vida democrática. Na segunda, configura-se uma deturpação ética do princípio republicano, levando governantes a lançar mão indevidamente da coisa pública em benefí-cio próprio ou de terceiros.

As democracias têm procurado apelar, modernamente, por essas razões, para esquemas de financiamento público, fórmula que, entre outras virtudes, possibilita a partidos e candi-datos sem acesso a fontes privadas competir em igualdade de condição com os demais.

Já foi dito, e nunca será demais repetir, que o sistema de financiamento público eleito-ral não tem como ser adotado e muito menos funcionar com o atual sistema político-elei-toral, sem a adoção do sistema de lista fechada. O voto em candidato e não em partido não inibe a ação do poder econômico, razão pela qual minha opção é no sentido de adotarmos eleições com financiamento público exclusivo. E, para tanto, teremos que mudar o sistema eleitoral, adotando o voto partidário, em lista fechada.

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O financiamento público exclusivo, em torno do qual já se têm mobilizado as princi-pais lideranças políticas do Congresso, insisto, é incompatível com a sistemática atual do voto em lista aberta. A campanha em bases individuais, peculiar a essa modalidade, exige a divisão da dotação partidária pelos candidatos. Com isso, os recursos se diluiriam e, inevi-tavelmente, teriam de ser complementados com recursos de outras fontes, corrompendo e tornando ineficaz o próprio sistema.

Com financiamento a partidos que apresentam listas fechadas, a cam-panha eleitoral – tanto a proporcional quanto as majoritárias – será da agremiação como um todo. Os programas eleitorais, os comícios, a propa-ganda, enfim, serão empreendimentos partidários, devendo todos traba-lhar pela causa comum. O custo da campanha diminuirá sensivelmente e mais se reforçará a legitimidade do processo político.

Também a fiscalização dos pleitos pela Justiça Eleitoral tornar-se-á muito mais simples. Em vez de deparar-se ela com milhares de prestações de contas, produzidas por milhares de candidatos, o que leva à presen-

te incapacidade de exame significativo das contas, examinará as contas dos partidos. Em cada estado, mesmo quando haja muita fragmentação do quadro partidário, essas contas vão constituir um número perfeitamente manejável pelos seus auditores. O confronto do declarado com as evidências indiretas de gastos e o confronto com custos pesquisados pela própria Justiça poderão ser feitos com autoridade. Mais que isso, a Justiça Eleitoral terá maior clareza e maior legitimidade para, em sendo o caso, cassar e alijar da vida pública can-didatos ou eleitos que, por corrupção no processo eleitoral ou no exercício de seus cargos, desrespeitem a legislação eleitoral.

Com o voto partidário e o financiamento público integral e exclusivo das eleições, por outro lado, a própria Justiça Eleitoral poderá vir efetivamente a existir, e não, como se quei-xou o presidente do TSE, Marco Aurélio Mello, entregar-se a um jogo de faz-de-conta.

Por fim, mas não menos importante e significativo em nossa vida política, cumpre prestigiar a cláusula de barreira e eliminar os desvãos que favorecem uma absurda prolife-ração de legendas, em especial a existência de normas legais demasiado permissivas para a criação de partidos, conduzindo a uma fragmentação do quadro partidário e a um progres-sivo enfraquecimento da vida política como um todo.

Com financiamento a partidos que apresentam

listas fechadas, a campanha eleitoral – tanto

a proporcional quanto as majoritárias – será da

agremiação como um todo

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Pedro Simon, 1976. Foto de Luis Humberto.

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É lugar comum a afirmativa de que não se logra a realização de uma reforma política – sobretudo a reforma eleitoral – quando se tem um Congresso Nacional (e até uma Presidên-cia da República) que tenha sido escolhido e que pretenda atuar segundo certas regras do jogo. Esse, de fato, parece ser um problema. Mas será que permanece inarredável no Brasil de hoje? Faço essa indagação porque a eleição de 2006, no entendimento de muitos ana-listas, revelou um amadurecimento político da sociedade brasileira impensável alguns anos atrás. Segundo Marcos Coimbra, por exemplo, em artigo publicado na Carta Capital logo após o segundo turno das eleições:

*Sandra Starling, advogada, é ex-deputada e ex-líder do PT na Câmara dos Deputados.

A reforma política desejável

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A vitória de Lula mostra como se estrutura hoje a opinião pública brasileira e revela quanto o nosso povo recusa a tutela daqueles que, até agora, gostavam de se considerar formadores de opinião. Se tivessem que ouvi-los, os eleitores teriam, há muito tempo, batido em retirada da candidatura Lula. Foi largamente majoritário, nos últimos meses, o discurso contrário a ela, seja na chamada grande imprensa, seja nos círculos bem-pensantes.

Se for assim que se comporta, hoje, a opinião pública brasileira, o primeiro movimento que deve ser feito pelo Governo Federal (que tem manifestado o desejo de fazer a reforma política logo no início do novo mandato) deve ser o de popularizar o tema (ou, melhor, os temas) em lugar de apenas buscar articular a vontade política dos que, tendo assento em uma das Casas do Congresso Nacional, terão de votá-la. Seria, portanto, de bom alvitre que se patrocinasse a difusão pública de cada item que se pretende mudar, indicando qual a conseqüência de sua adoção, por meio de inserções em cadeia de rádio e televisão e nos sites apropriados da estrutura da alta administração pública.

Mas penso que há, ainda, outro movimento, que a este se deve somar: o diálogo claro com todas as forças políticas, que de fato exponha confluências e dissensos, ou, dito de outra forma, não relegar a discussão da reforma política à arena competitiva das comissões, espe-ciais ou não, das duas Casas do Congresso, porque isso seria, de antemão, definir que nada de novo sairá. O ambiente das comissões cria emulações que, bem aproveitadas, ensejam que esta ou aquela proposta seja rotulada de “conservadora”, ou de “antidemocrática” ou outros epítetos quaisquer, antes que seja minimamente discutida, o que se torna obstáculo para a realização de qualquer reforma. Um exemplo pode ser esclarecedor: a cláusula de

barreira é quase sempre qualificada como instrumento não-democrático, porque impede que sejam efetiva e proporcionalmente representadas, no plano institucional, certas plataformas partidárias que espelham interesses minoritários no tecido social. Mas as mesmas forças que reivindicam a não-existência da cláusula de barreira, baseando-se no respeito ao direito de representação de interesses, ainda que minoritários, são as que defen-dem, com mais ardor, a existência das coligações proporcionais, que ense-jam, na realidade, a manipulação da vontade do eleitor, pois este, votando em candidato de certo partido, ou numa legenda coligada a outra, pode vir, na verdade, a eleger alguém que não queria ver eleito.

Por isso, entendo que, a se desejar efetivamente a reforma, deve o Go-verno Federal tomar a iniciativa de procurar uma a uma as diversas forças políticas, cada uma de per se, para ouvi-las sobre os mais variados temas. E formular sua própria proposta, explicitando que objetivos tem com ela. Porque em matéria de reforma política, muito mais que em matéria de

reforma sindical, se o próprio governo não tem uma proposta, só vai ficar indefinidamente buscando consensos progressivos que jamais virão. Ademais, apresentar publicamente uma proposta consistente (capaz também de deixar claro por que é desejável tal ou qual mudan-ça) poderá levar o governo à obtenção de legitimidade na sociedade, para que esta também se coloque ao lado das modificações pretendidas.

De meu ponto de vista, o principal deve ser ampliar

o controle popular sobre a escolha dos governantes ao mesmo tempo em que

se amplia, também, o acesso do maior número de pessoas aos cargos de

decisão, num ambiente onde a transparência e o conhecimento do que

esteja sendo feito se torne o mais público possível

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Como mostra magistralmente Fábio Wanderley Reis, em matéria de reforma política não há sistema perfeito: tudo depende do objetivo que se quer atingir. Trata-se de ampliar a representatividade dos diversos interesses existentes na sociedade? O caminho para isso pode vir a colidir com a necessidade de tornar mais fácil o relacionamento entre o Executivo e o Legislativo, reduzindo-se o coeficiente de governança, quanto à adoção de certas medi-das que se têm por necessárias. Em outras palavras, muitos podem estar falando da urgência da reforma política, mas há reformas e reformas.

De meu ponto de vista, o principal deve ser ampliar o controle popular sobre a escolha dos governantes ao mesmo tempo em que se amplia, também, o acesso do maior número de pessoas aos cargos de decisão, num ambiente onde a transparência e o conhecimento do que esteja sendo feito se torne o mais público possível.

Os trabalhos das últimas comissões parlamentares de inquérito, notadamente a dos Correios e a dos Bingos – mesmo com todas as falhas resultantes do excesso de exposição à mídia e da ausência de efetiva vontade de investigar – ofereceram elementos a mancheias para que se constate a necessidade de se pensar em efetivos controles sociais sobre as ações (e omissões) governamentais. À guisa de ilustração, aponto um, resultante do chamado “presi-dencialismo de coalizão”, que, se foi saudado por alguns analistas, não resiste ao exame acu-rado do que significa a entrega de um ministério “com porteiras fechadas” para que este ou aquele partido venha a compor a base parlamentar de apoio ao governo. Dados coletados, e às vezes não tornados públicos nessas comissões, mostraram práticas idênticas e reiteradas de aparelhamento de órgãos administrativos em proveito de redes espúrias de financiamen-to dos partidos ou das burocracias partidárias com recursos públicos. Por exemplo, salta aos olhos a semelhança entre o episódio denunciado em 1997, envolvendo dado partido, então na direção da Datamec, e os noticiados repasses a parlamentares de prebendas ali obtidas, e a narrativa de Maurício Marinho, funcionário dos Correios, também a serviço, segundo o próprio, de dada sigla partidária, no recolhimento de propinas para parlamentares. Outra revelação a confirmar os meandros da privatização do Estado brasileiro tem a ver com as denúncias sobre o Fundo Visanet como fornecedor de recursos para o esquema do “valerio-duto” e a auditoria interna determinada em 2005 pelo Banco do Brasil, cujos resultados le-vam à conclusão de que os mesmos expedientes de drenagem de dinheiro, no mesmo Fundo Visanet, eram levados a efeito, entre 2001 e 2002, para empresas de publicidade, inclusive a DNA, de que Marcos Valério era sócio, em montantes deveras semelhantes: naqueles dois primeiros anos, o montante repassado foi de quase 50 milhões de reais; no atual governo, até 2004, 54 milhões de reais! Isso está a reclamar, no mínimo, para combater a corrupção, a integração de sistemas que hoje não se comunicam, a exemplo do Tribunal de Contas da União, da Controladoria Geral da República, da Polícia Federal e do Ministério Público.

A mesma razão deveria levar à reintrodução do controle a priori sobre áreas sensíveis da moderna administração pública com adequados sistemas de licitação para dar conta de vultosos contratos que se mostram cruciais centros para o funcionamento de esquemas para sustentação financeira de partidos e eleições, a partir dos gastos públicos, quando não alimentação desses esquemas, com o direcionamento de atos de privatização de domínios econômicos estatais.

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Não por acaso, no mesmo instante em que aqui eram expostos os problemas da Em-presa dos Correios e Telégrafos, assistia-se no Japão a verdadeira guerra de gigantes pelo controle dessa área da administração. Para quem não tem podido seguir de perto os acon-tecimentos brasileiros, é bom frisar como passam ao largo do conhecimento público os problemas de terceirização, como o processamento do seguro-desemprego ou o processa-mento das loterias, envolvendo poderosas multinacionais da área de informática, com suas repercussões indescritíveis para a vida da sociedade brasileira. Foi-se o tempo em que apenas os grandes empreiteiros detinham a batuta na condução dos negócios do Estado. Hoje, a área de prestação de serviços, autorizados, permitidos, concedidos, sustentação logística de atividades-meio, é palco de batalha de vida ou morte entre interesses conflitantes que dispu-tam as dádivas do Estado. Para não falarmos da luta em torno das parcerias societárias com as entidades de previdência complementar fechada, detentoras de grande parte da poupança interna brasileira a esta altura dos acontecimentos.

Em outras palavras, o Estado brasileiro não tem instrumentos para controlar as áreas hoje mais sensíveis da administração pública. A própria lei de licitações não está mais adequada a dar conta de várias necessidades da máquina pública, como a da informática, por exemplo.

Em oportunas conversas com integrantes da atual e da anterior administração, pude-mos notar a necessidade de se criar uma agência estratégica de comunicação intragoverna-mental: cada área é tratada isoladamente, não obstante o desiderato, cantado e decantado no governo Lula de se praticar a “transversalidade”. Como fazê-lo, se nem ao menos se sabe com que meios e instrumentos trabalham cada um dos ministérios?! E, apesar da constata-ção dessa necessidade, seria isso possível, quando vicejam vaidades e disputas, mesmo quan-do os titulares das pastas que demandam entrosamento pertencem a um mesmo partido?!

Outro problema a ser equacionado para democratizar as instituições brasileiras é o da proibição de os altos escalões ministeriais serem preenchidos por parlamentares, vedação adotada no constitucionalismo dos EUA. É óbvio que a permissão diminui a capacidade de independência do Legislativo em relação ao Executivo, ensejando, inclusive, o expediente de retornar o parlamentar à Casa apenas para determinada votação de interesse do chefe do Poder Executivo (para não lembrar o quiproquó da definição de quebra, ou não, do decoro parlamentar se o titular de uma pasta ministerial é acusado de prática intolerável aos olhos de seus pares no Legislativo). Ao adotar a limitação aqui proposta, seria de bom alvitre também exigir a sabatina de todo ministeriável pelo Senado Federal, novamente ao estilo norte-americano. As vantagens, neste caso, são enormes: tanto porque esse mecanis-mo proporciona a co-responsabilidade do Legislativo na montagem do governo, como, ao revés, torna os ministros mais acessíveis aos integrantes do Congresso Nacional, sem que isso signifique o estabelecimento de laços de subserviência.

Embora o fato de alguém ser servidor efetivo não o tornar imune à improbidade (a CPMI dos Correios mostrou isso), não custa fincar pé na exigência de formação de uma bu-rocracia profissionalizada, multifuncional e, portanto, de trânsito em todas as funções da alta administração, mediante a exigência de freqüência em escola de governo, durante o período de estágio probatório. Certamente, nada disso fará diferença se não houver a drástica redução do número de cargos comissionados. Na fase ascendente da crise que colheu o governo Lula,

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em 2005, a revista Desafios do Desenvolvimento, do Ipea, lembrava que no Brasil ha-via quase vinte mil cargos de confiança no Governo Fede-ral, ante cinco mil nos EUA. Essa necessária redução, contudo, não pode servir de argumento para ampliação da terceirização, como vem preconizando o economista Yoshiaki Nakano. A recente operação da Polícia Fede-ral, denominada “Mão-de-Obra”, mostra-nos que o caminho não é por aí.

No capítulo das refor-mas do processo eleitoral, cumpre abordar e opinar sobre quais seriam as prin-cipais alterações a serem in-troduzidas: financiamento de campanha e seus limites, listas partidárias, proibição de coligações, cláusula de barreira, fidelidade partidá-ria, limitação do número de mandatos, a questão dos su-plentes de senadores, o pa-

pel da Justiça Eleitoral, crime de compra de voto ou promessa de favor que coaja o eleitor. Comecemos pelo financiamento de campanha. Penso que a melhor forma combinaria

o financiamento público com o financiamento privado, proibidas as doações de empresas. Vale aqui registrar que um dos maiores defensores dessa tese nos EUA, o deputado Martin Meehan, democrata do Estado de Massachusetts, arrecadou, para as eleições do último dia 7 de novembro de 2006, cerca de US$ 5 milhões, amealhados apenas de cidadãos. Tão popularizada ficou a sua luta, que o Partido Republicano sequer lançou um desafiante à sua reeleição no seu distrito. Aliás, como nos EUA, as doações de eleitores deveriam ser feitas em contas abertas antes mesmo do período eleitoral, sob monitoramento da Justiça Eleitoral. Obviamente, deve ser fixado um teto legal para tais doações, e não arbitrado pelos partidos, além do que deve ser coibido o mecanismo de triangulação de doadores anônimos que entregam o dinheiro à agremiação para posterior repasse a candidatos preferenciais, como se assistiu nas eleições de 2006.

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Faz-se a opção pela combinação dos sistemas para evitar que a proibição radical acabe se tornando estímulo para a adoção do “caixa dois”, em benefício de alguns. Proibir a do-ação de empresas e estimular a dos cidadãos contribui para que o eleitor se conscientize de que a democracia tem custos em dinheiro e que ele também é responsável por coletá-lo. Na primeira vez em que for adotado o financiamento público, o critério de distribuição deve ser igualitário, proporcional apenas ao número de vagas em disputa. E, evidentemente, há que se fixar um limite de gastos e impedir que os partidos possam destinar doações a campanhas de seus candidatos.

E por falar em vagas, por que não ousar quebrar a regra que se originou do “pacote de abril” de 1977 e que superestimou a representação do Norte e do Centro-Oeste?1

No que diz respeito à lista partidária fechada, como alternativa ao nosso atual modelo proporcional de lista aberta, tendo acompanhado a trajetória do Partido Socialista em Por-tugal, manifesto minha opinião contrária à sua adoção, pura e simplesmente. Naquele país houve grave crise entre a direção partidária, encarregada da feitura da lista, e os candidatos,

com reflexos na insatisfação do próprio eleitorado. Penso que o modelo belga, adotado por nossos senadores no substitutivo ao Projeto de Lei do Senado nº 300, de 1999 (Projeto de Lei nº 3.428, de 2000, na Câmara dos Deputados), segundo o qual o eleitor dá dois votos – um para a legenda de sua preferência e outro para, na legenda escolhida, o candidato de sua pre-ferência – é a melhor fórmula para evitar tanto a dominação da burocracia partidária quanto a violação da vontade do eleitor, sem que os eleitos se sintam “donos de seus mandatos”. As vagas obtidas são combinadamente preenchidas: a primeira metade, com os mais votados na lista fechada, e a segunda, com as escolhas pessoais dos eleitores. É claro que, nessas circuns-tâncias, os candidatos, individualmente, não poderão fazer campanha, mas tão-somente participar de reuniões, comícios e debates, sem a distribuição de material pessoal de propaganda.

As coligações para as eleições proporcionais devem ser totalmente proi-bidas para evitar o fenômeno da eleição de quem o eleitor não escolheu.

Para auxiliar os pequenos partidos, é preferível permitir o bem sucedido modelo uruguaio de “federação de partidos” (que se mantêm unidos por toda a legislatura) – que, aliás, tam-bém pode suprir os problemas oriundos da adoção da cláusula de barreira. E, quanto a esta, para que não se constitua em obstáculo ao desempenho dos partidos, deve ser mitigadamen-te considerada, para as assembléias legislativas e câmaras municipais, de forma a combinar estímulo à capilarização partidária com o necessário respeito às normas de preordenamento, em matéria de engenharia institucional, que informam o federalismo brasileiro.

Não pode haver nenhum vacilo em relação à exigência de fidelidade partidária. Em um país no qual a ninguém é dado concorrer a mandato eletivo se não estiver filiado a uma agremiação partidária, clama aos céus aceitar que, uma vez eleito, essa pessoa possa pura e simplesmente abandonar a sigla que usou e passar para outra sem que nada lhe aconteça. Mesmo que, de início, a fidelidade partidária só sirva para a aplicação da proporcionalidade para efeitos internos ao parlamento (montagem das comissões a partir do número de inte-

Na primeira vez em que for adotado o financiamento

público, o critério de distribuição deve ser

igualitário, proporcional apenas ao número de vagas em disputa. E,

evidentemente, há que se fixar um limite de gastos e impedir que os partidos possam destinar doações

a campanhas de seus candidatos

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grantes das bancadas na data da diplomação), um curto prazo de tempo deve ser fixado para que se adote o sistema segundo o qual quem abandone uma sigla por sua livre vontade não possa vir a se candidatar ao final desse mandato. Quanto aos cargos executivos, desde o pri-meiro instante da reforma, deve ser expressamente proibida a troca de legenda, sob pena de imediata perda do mandato. Aqui deve ser também colocado o problema dos suplentes de

senadores: tornou-se verdadeiro estelionato eleitoral a prática contumaz de colocar como suplente um parente ou o financiador da campanha. Temos, por isso, assistido, perplexos, a senadores tão biônicos quanto os do perío-do militar, ilustres desconhecidos, jamais submetidos ao voto popular. Há que se estudar o problema e encontrar-lhe urgente solução.

Particularmente, sou partidária da limitação do número sucessivo de mandatos parlamentares: o desejável rodízio e a possibilidade igualitária de que a maioria possa ter a oportunidade de ocupar um cargo público sugere que se estabeleça um teto: dois mandatos sucessivos para um dado nível e um mandato para nível diferente. Isso incluiria também mandatos executivos, totalizando sempre três, em ordem seqüencial.

A recente iniciativa popular capitaneada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que levou à normatização da punição com a perda do diploma e/ou do mandato quando o candidato houver se valido de meios escusos para obter o voto (compra ou promessa de emprego, por exemplo) – art. 41-A da Lei nº 9.504, de 1997 – deve ser acompanhada de sanção que contribua para afastar tais práticas em definitivo da vida

política brasileira. Refiro-me a que o infrator da norma deva também ser impedido de concorrer a outro mandato por oito anos – à semelhança de interdição prevista na Lei das Inelegibilidades para quem violou o decoro parlamentar, a fim de evitar que, mal terminado o trânsito em julgado da decisão sobre o abuso eleitoral, o punido venha a candidatar-se a novo pleito. E quem sabe, valendo-se outra vez dos mesmos expedientes escusos. Sou contrária a que se apene quem violou a norma com a privação da liberdade, tanto porque ou o juiz não a aplicaria, por julgá-la desproporcional à falta cometida, ou ela seria inócua porque mereceria as benesses que sempre acompanham penas muito leves. Ademais, com o fracasso do sistema penitenciário brasileiro, estaríamos criando outros problemas para as nossas já apinhadas prisões.

Questão complexa a exigir seu enfrentamento sem subterfúgios é o das condutas ve-dadas ao agente público, onde se inscreve a proibição de que o candidato, quando no exer-cício de mandato, possa valer-se do trabalho de servidor público, comissionado ou não. A própria Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, estabelece a proibição, mas menciona tão-somente os servidores do Poder Executivo. Ora, é evidente que os servidores do Judiciá-rio também não podem trabalhar para candidatos. Mas e quanto aos servidores, efetivos ou comissionados, do Poder Legislativo, mormente os que estejam lotados nos gabinetes dos parlamentares candidatos a reeleição ou a outro cargo? A exceção, obviamente, feriria a iso-nomia de tratamento que se quer dar a todos os candidatos indistintamente. A lei estabelece que só pode participar de campanha o funcionário em gozo de licença, e a jurisprudência e a

Não pode haver nenhum vacilo em relação à

exigência de fidelidade partidária. Em um país

no qual a ninguém é dado concorrer a mandato eletivo se não estiver

filiado a uma agremiação partidária, clama aos céus aceitar que, uma vez eleito, essa pessoa

possa pura e simplesmente abandonar a sigla que usou

e passar para outra sem que nada lhe aconteça

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doutrina equiparam a licença às férias regulamentares. Além dessas hipóteses, apenas no ho-rário pós-expediente. Isso não afasta de todo o problema porque, em verdade, em verdade, ou os servidores passam o período eleitoral recebendo remuneração para nada fazerem, ou a lei será de alguma maneira burlada, já que a tendência (e a necessidade) é a de que todos os que trabalham em gabinetes venham a se engajar nos trabalhos da campanha. Não há rotina específica de gabinete parlamentar sem a presença do titular.

Last, but not least é o problema dos poderes e da composição dos tribunais eleitorais: o rodízio de seus componentes, se por um lado vem a obviar a possibilidade de que seus integrantes tenham majoritariamente uma dada posição partidária, por outro lado torna o Direito Eleitoral verdadeiro tormento para quem a ele se dedica ou dele depende, com a possibilidade de interpretações muito distintas em pequenos intervalos de tempo. Por outro lado, a impossibilidade de atuação ex officio em inúmeras situações tem impedido que a Jus-tiça Eleitoral cumpra com rigor seu papel de igualar, tanto quanto possível, candidatos con-correntes. Em que pesem os prazos muito exíguos no decorrer do período eleitoral, ainda impera a morosidade, devido à sujeição à jurisdição de elevado número de contenciosos que tornam esse ramo do Direito – especialíssimo para a democracia – caricatura diante do que decide, quando as decisões incidem sobre mandatos impugnados quando esses caminham para seu termo final. Daí porque são ainda raros, em nosso país, os casos de reconhecimento de abuso do poder econômico, político e administrativo, quando salta aos olhos de qual-quer um a realidade da prática desses delitos.

Interpretações ao longo do processo eleitoral também podem impedir que a disputa igual permaneça assim: o recente pleito de 2006 foi um exemplo disso. A estrita observância do dispositivo que proibia camisetas, bottons e outros brindes, ao início da campanha, foi, depois, substituída pela interpretação de que a utilização deles pelo eleitor não estaria abran-gida pela lei, em virtude do primado constitucional da liberdade de expressão. Ora, como essa decisão veio tarde demais, só os candidatos que tinham maiores recursos puderam pa-gar, para que fossem feitos a toque de caixa para serem usados no dia das eleições...

Nota1 A sobre-representação acentuada das duas regiões começa durante a ditadura militar, com a criação dos Estados do Mato Grosso do Sul e Rondônia, e se aprofunda a partir da nova Constituição, com a criação dos estados de Roraima, Amapá e Tocantins (sem a diminuição correspondente da representação de Goiás). Vale registrar que a região Nordeste, ao contrário do que comumente se pensa, não tem apresentado sobre-representação na Câmara desde a década de 60. Mesmo no Senado, o número de representantes excede em pouco o que corresponderia por distribuição proporcional.

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A reforma política entra e sai da agenda nacional desde o ocaso do regime militar. Para trazer alguma idéia nova ao debate, é bom parar para pensar por que ele avançou tão pouco até hoje e por que sempre volta à ordem do dia.

Alguns questionam a razão de ser de uma discussão que não pára nem aparentemente vai a lugar nenhum. “O político, quando não tem o que fazer, começa a falar de reforma po-lítica”, alfinetou Leôncio Martins Rodrigues recentemente, desconfiado de que a proposta de tratar da reforma numa miniconstituinte seja “um factóide para desviar da questão cen-tral, que é a corrupção”.1 Wanderley Guilherme dos Santos, de outra perspectiva política, também enxerga motivos ocultos na discussão. “Não existe relação sistemática entre tipos de sistema político-eleitoral e nível de corrupção ou desempenho de desenvolvimento”, argumenta, para concluir que as propostas de alteração do sistema de representação propor-cional encobrem uma reação conservadora à invasão da política pelas massas de eleitores e candidatos desvinculados das elites tradicionais.2

Qualquer proposta de mudança das regras do jogo político comporta a suspeita, senão a certeza, de favorecer uns e prejudicar outros – candidatos, partidos, situações, setores da sociedade. Feita a ressalva óbvia, sustentamos que, apesar disso ou por isso mesmo, o debate não pode ser afastado como mera cortina de fumaça. Se há mais de vinte anos a reforma política volta à pauta, embalada por interesses diferentes em circunstâncias diferentes, é por-que nossas instituições têm de fato problemas graves de eficiência e transparência. Ocorre que o foco dos problemas e sua percepção pelos atores envolvidos foram mudando com o tempo, o que não ajuda a clarificar as alternativas em jogo. O retrospecto feito na primeira parte deste artigo sugere que nesses vinte e poucos anos o eixo do debate se deslocou da

*Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República.**Eduardo Graeff, sociólogo, é assessor do PSDB na Câmara dos Deputados e analista político do site e-agora (www.e-agora.com.br). Foi secretário-geral da Presidência da República no governo Fernando Henrique Cardoso.

O próximo passo

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liberdade em face do autoritarismo para a governabilidade democrática, para a legitimidade das instituições representativas.

A boa proposta não é a que aponta para um desenho institucional ótimo abstrato, mas a que permite a convergência de opiniões e interesses concretos, necessariamente diversos, “impuros” e variáveis, para dar um passo adiante no processo de democratização do país. É para isso que tentamos apontar na conclusão, aprendendo com os avanços que ocorreram, apesar de tudo, e com os tropeços das tentativas de reforma.

Casuísmos no caminho da transição

Comecemos pelo balanço histórico. A mudança da legislação eleitoral e partidária en-trou na pauta da transição democrática brasileira sob o signo dos “casuísmos” destinados a manter o processo político no trilho da “abertura lenta, gradual e segura” do presidente Ernesto Geisel, firmando a jurisprudência histórica de que não há propostas inocentes nessa matéria. A isso a oposição respondeu sustentando a bandeira das liberdades democráticas – anistia, direitos humanos, livre organização partidária, eleições diretas em todos os níveis – e mantendo o cerco ao regime – um cerco pacífico, mas que excluiu acordos explícitos sobre as etapas e o ponto de chegada da transição.

O “pacote de abril” de 1977, baixado com o Congresso fechado temporariamente, tentou frear o crescimento do MDB mantendo as eleições indiretas de governador, torcendo a proporcionalidade da representação na Câmara a favor dos estados menos urbanizados, introduzindo o senador “biônico” – eleito pelo mesmo colégio indireto do governador – e alterando a composição do colégio eleitoral indireto para presidente. Isso não impediu a oposição de crescer mais em 1978, sobretudo nas eleições para o Senado. Em agosto de 1979 o presidente João Figueiredo sancionou a Lei da Anistia. No fim do ano, mobilizou sua maioria no Congresso para abolir o bipartidarismo compulsório e extinguir a Arena e o MDB, esperando fragmentar os oposicionistas, inclusive os que voltavam do exílio, en-quanto os governistas continuariam unidos no mesmo partido com outro nome.

A reformulação partidária induzida deu certo a medias para o governo. A Arena conver-teu-se em PDS quase sem perda de substância. O velho trabalhismo voltou à cena dividido em duas legendas, PTB e PDT, por artes do general Golbery do Couto e Silva. O novo sindicalismo aliado a setores de esquerda católicos e comunistas fundou o PT. Mas o PP, criado por Tancredo Neves e Magalhães Pinto para ser uma “terceira via”, inviabilizou-se depois que o governo recorreu a mais casuísmos – proibição de coligações e voto vinculado para deputado e governador – para favorecer o PDS. Reincorporou-se ao PMDB, a bordo do qual a maioria da oposição optara por continuar.

Em 1980 o governo propôs e o Congresso aprovou por unanimidade a volta das elei-ções diretas de governador e da totalidade dos senadores, acabando com o “biônico”. Em 1982 o PMDB elegeu nove governadores, entre eles Franco Montoro em São Paulo e Tan-credo Neves em Minas Gerais; o PDT, somente Leonel Brizola no Rio de Janeiro; o PDS, doze, dos quais nove no Nordeste.3 Estava pronto o cenário do cerco final ao regime, para

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o qual convergiram as oposições unidas, com respaldo dos novos governadores, e a insatis-fação difusa da sociedade com os sinais de crise econômica.

Em abril de 1984, vendo seu PDS vacilar às vésperas da votação da Emenda Dante de Oli-veira, o governo apresentou uma alternativa de negociação. A Emenda Figuei-redo, inspirada pelo chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu, adiava as eleições diretas de presidente para 1988 em troca de diretas para prefeito das capitais em 1986 e da devolução de prerrogativas do Congresso, entre vários pontos.

Em outras circunstâncias a proposta poderia atrair a oposição. Com o clamor das Diretas Já ecoando nas ruas, mesmo depois da derrota na Câ-mara, não havia clima para negociar. Nem clima nem interlocutor do lado do governo, dividido entre as candidaturas de Mário Andreazza e Paulo Maluf, ambos inaceitáveis para a oposição como fiadores de uma transição pactuada. Acontece que o PMDB tinha o candidato alternativo capaz de somar o respaldo das ruas, o apoio dos dissidentes do PDS e o nihil obstat

dos chefes militares. Os dissidentes deixaram o PDS e criaram o PFL. E a maioria, que não alcançara quórum qualificado de dois terços para reintroduzir na Constituição as eleições diretas de presidente, se recompôs na Aliança Democrática para eleger Tancredo pelo colé-gio indireto. A morte de Tancredo às vésperas da posse acrescentou o toque do acidente aos caprichos da História, levando à Presidência não o candidato da oposição, mas o vice, José Sarney, que representava em sua chapa a dissidência liberal do partido do governo.

A devolução do poder aos civis sem mudança da regra de eleição presidencial imposta pelos militares foi, assim, o resultado imprevisto de um processo em que tanto as manobras protelatórias do governo quanto o cerco da oposição tiveram por horizonte a restauração das liberdades democráticas, mais do que a reforma das instituições.

O presidente em minoria

A literatura política apelidou “doble minoria” a situação, recorrente na América Latina, de presidentes em dificuldade para governar sem respaldo da maioria absoluta do eleitorado nem da maioria do Legislativo.4 A eleição em dois turnos introduzida pela Constituição de 1988 livrou os presidentes brasileiros do primeiro problema. A fragmentação do sistema partidário os expôs intensamente ao segundo. Os riscos à governabilidade acarretados pelo equilíbrio instável entre Executivo e Legislativo ocuparam o centro das discussões sobre reforma política no Brasil daí em diante.

A Emenda Constitucional n° 25, de maio de 1985, saldou o compromisso da Aliança Democrática com a liberalização partidária, permitindo o registro dos partidos de esquerda e de toda uma safra de novas legendas. A Constituinte de 1987-88 completou o ciclo de restauração das liberdades democráticas e assistiu àquilo que o autoritarismo em declínio tentara em vão produzir: a implosão do PMDB, precipitada por divergências sobre temas importantes da pauta constitucional e pela ambigüidade em relação ao governo Sarney.

Num primeiro momento o quadro partidário continuou concentrado, apesar da libe-ralização da legislação. De fato, mais concentrado. Em 1986, embalado pela popularidade

A literatura política apelidou “doble minoria”

a situação, recorrente na América Latina, de

presidentes em dificuldade para governar sem respaldo

da maioria absoluta do eleitorado nem da

maioria do Legislativo

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do Plano Cruzado, o PMDB elegeu 22 dos 23 governadores, mais de dois terços do Senado e a maioria absoluta da Câmara dos Deputados. Triunfo retumbante, desperdiçado por falta de clareza do que fazer com o país depois de virada a página do autoritarismo. O recrudes-cimento da inflação e os escândalos de corrupção, tendo por trás o revigoramento de velhas práticas patrimonialistas e clientelistas, frustraram as esperanças na Nova República, nome cunhado por Tancredo para o período de construção democrática que ele deveria presidir.

O governo Sarney e os partidos que o apoiavam ou deveriam apoiar colheram um voto de repúdio acachapante na eleição presidencial de 1989. Collor de Mello, pelo quase inexis-tente PRN, liderou o primeiro turno com 30% dos votos válidos e ganhou o segundo turno. Lula, pelo PT, com 17%, e Brizola, pelo PDT, com 16%, disputaram a outra vaga para o segundo turno. Mário Covas, pelo recém-fundado PSDB, teve 11%; Ulysses Guimarães, pelo PMDB, menos de 5%; e Aureliano Chaves, pelo PFL, menos de 1%.

As eleições gerais de 1990 trouxeram de volta um quadro partidário ainda mais fragmentado que o de antes de 1964, com dezenove partidos representados na Câmara – o PMDB com 21% dos assentos, o PFL com 16% e os demais, inclusive o PRN de Collor, com menos de 10%.

A condição de presidente em minoria no Congresso não atrapalhou Collor no primeiro ano de governo, no auge da popularidade, diante de uma legislatura em fim de mandato. No segundo ano, quando ele acordou para a necessidade de se compor com os partidos numa legislatura recém-eleita, era tarde. Com a popularidade consumida pelo fracasso da política antiinflacionária e pela exposição dos negócios obscuros de seu caixa de campanha, a falta de uma base parlamentar consistente custou-lhe as condições de governar e, por fim, em dezembro de 1991, o próprio mandato.

A forte participação popular e a obediência ao rito legal no processo de impeachment pareceram sinais de vitalidade democrática. Mas o fracasso do primeiro presidente eleito pelo voto popular depois da redemocratização acendeu o sinal amarelo sobre a questão da

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governabilidade e catapultou a reforma política ao topo da lista de prioridades de cientistas políticos, economistas e outros observadores e atores da cena política. A “mãe de todas as

reformas”, diz-se desde então. Mas qual reforma?Àquela altura as propostas sobre a mesa apontavam em duas direções

não excludentes. De um lado o parlamentarismo, rejeitado na Constituin-te e que teria uma segunda chance no plebiscito marcado para 1993. Do outro lado um conjunto de medidas destinadas a limitar a fragmentação dos partidos, torná-los mais coesos internamente e, assim, em tese, qualifi-cá-los como interlocutores do presidente na busca de maioria congressual para suas propostas.

A segunda chance do parlamentarismo foi perdida no plebiscito sem que se desfizesse um equívoco básico: que ele viria deslocar o comando político do país do presidente para o Congresso. Na verdade o parlamentarismo típico garante o alinhamento quase automático da maioria do Legislativo com a chefia do Executivo, exercida pelo primeiro-ministro e seu gabinete. A maioria dos políticos que defenderam o parlamentarismo na Constituinte e dos eleitores que o rejeitaram no plebiscito parece ter acreditado no contrário. Na Constituinte, a defesa do parlamentarismo o contrapôs freqüentemente ao “presidencialismo imperial” moldado pelo regime militar. A discussão de suas regras específicas se deteve às hipóteses de rejeição ou destituição de ministros, minimizando a possibilidade recíproca de dissolução da Câmara, que é essencial na lógica do sistema parlamentar. No plebiscito, os defensores do presidencialismo aproveitaram a deixa e venderam a idéia de que o parlamentarismo se destinava a enfraquecer o presidente e trazer de volta a eleição indireta dos governantes, na contramão das Diretas Já. A situação típica é outra, como se sabe: o primeiro-ministro não sai do bolso do colete de uma maioria parlamentar ad hoc. Como candidato ao Parlamento e líder de partido ou coligação, é ele que faz a maioria na medida em que “puxa” a eleição de seus companheiros de chapa.

Com ou sem equívoco, o plebiscito arquivou pelo menos por um bom tempo a alter-nativa parlamentarista. A pauta da reforma política afunilou, por exclusão, para propostas de mudança da legislação eleitoral e partidária. O ambiente em que essas propostas vêm à discussão, no entanto, já não é marcado por uma preocupação tão aguda com a governa-bilidade. Sem que ninguém se desse conta naquela altura, o impeachment foi o divisor de águas para um período de mudanças significativas, não tanto nas regras do jogo, mas no andamento de fato das relações Executivo-Legislativo.

Governabilidade sem confiança

O fantasma da “falta de condições políticas” pairou sobre o Plano Real desde seu pri-meiro esboço apresentado por Fernando Henrique Cardoso pouco depois de assumir o Ministério da Fazenda, em maio de 1993. O vice-presidente Itamar Franco, sucessor legal de Collor, montara um governo de coalizão ampla mas que não parecia ter respaldo popular nem tempo hábil, a pouco mais de um ano das eleições gerais, para levar a cabo um plano de controle da inflação. O que o novo presidente, o Congresso e a maioria do povo queriam

A forte participação popular e a obediência

ao rito legal no processo de impeachment

pareceram sinais de vitalidade democrática

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era congelamento de preços ao estilo do Cruzado. Analistas e atores políticos e econômi-cos acostumados a projetar o futuro como repetição do passado previam que as medidas de austeridade fiscal embutidas no Plano FHC, como foi chamado inicialmente, teriam o mesmo fim de propostas semelhantes nos governos Sarney e Collor: as gavetas da própria Presidência ou do Congresso.

As medidas foram aprovadas, embora com dificuldade, à custa de muita negociação dentro do governo e com o Congresso. A queda da inflação a partir de julho de 1994 e a subida do candidato presidencial que, como ministro, coordenara o plano afinal venceram o ceticismo predominante.

O ciclo de reformas aberto pelo Real envolveu tanto o aumento das iniciativas legis-lativas do Executivo como uma melhora substancial de sua acolhida pelo Congresso. O número de emendas feitas à Constituição de 1988 pode ser tomado como um indicador aproximado dessa inflexão. Foram 2 no governo Collor, ambas de iniciativa do Congresso; 2 no governo Itamar, além das 6 emendas da revisão constitucional de março a junho de 1994, todas de iniciativa do Congresso; e 35 nos dois períodos de governo FHC, das quais 17 de iniciativa do Executivo.

Há fatores circunstanciais que ajudam a explicar a passagem pelo Congresso dos pon-tos menos palatáveis do Plano Real. A saturação com a crise inflacionária predispunha a

sociedade e os políticos a aceitar medidas heróicas, num efeito que Albert Hirschman constatou em outros países da região.5 Isso ajudou a diminuir o apego ao velho Estado varguista e convencer setores influentes da socie-dade da necessidade de reformar o Estado para adequá-lo às exigências e oportunidades da globalização, assim como à demanda interna por partici-pação e justiça social. O apoio dos meios de comunicação contrabalançou a relutância ou franca oposição dos próprios aliados do governo a esta ou aquela proposta. O envolvimento de vários parlamentares – não só do “baixo clero” – no escândalo dos “anões do orçamento”, em 1993, neu-

tralizou tradicionais adversários do controle do gasto público. A presença de um ministro, depois presidente, híbrido de universitário e parlamentar ajudou eventualmente a superar a brecha entre o mundo dos técnicos e o dos políticos.

Há condições mais permanentes, por outro lado, que concorreram para melhorar as relações Executivo-Legislativo e dar passagem às reformas no período subseqüente. Alguma coisa a experiência ensina: a coligação PSDB-PFL-PTB na eleição presidencial de 1994 e a adesão posterior do PMDB e PPR (depois PP) deram ao governo FHC a ampla maio-ria parlamentar que faltara a Collor. O PT, embora crítico ferrenho das alianças à direita, seguiu o mesmo caminho em 2002: coligou-se ao PL na eleição presidencial e reproduziu uma coalizão tão ampla quanto a anterior em torno do governo Lula, incluindo o PTB, PP e parte do PMDB. Além disso, houve mudanças institucionais. A assincronia dos mandatos do presidente e do Congresso é reconhecidamente uma condição que dificulta a coorde-nação das respectivas agendas.6 Com a redução do mandato presidencial para quatro anos na revisão constitucional, as eleições para os dois Poderes tornaram-se concomitantes desde

O ciclo de reformas aberto pelo Real envolveu

tanto o aumento das iniciativas legislativas

do Executivo como uma melhora substancial de sua

acolhida pelo Congresso

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1994. A possibilidade da reeleição desde 1998 também contribuiu para fortalecer o presi-dente diante dos partidos e do Congresso.

Apoio de uma ampla coalizão partidária, coincidência de mandatos e reeleição aju-daram a manter a estabilidade política e consolidar a estabilidade econômica através das sucessivas crises financeiras externas que marcaram os oito anos do governo FHC.

Uma conjetura é inevitável: sem esses mesmos três fatores, o presidente Lula teria sobrevivido politicamente, como conseguiu até agora, a denúncias de corrupção tão ou mais graves do que as que levaram ao impeachment de Collor?

Não se pode dizer que a acolhida do Congresso às iniciativas do Exe-cutivo piorou. Recorrendo ao mesmo indicador, de 2003 até hoje foram aprovadas treze emendas constitucionais, das quais três originárias do Exe-cutivo. O ritmo das iniciativas, sim, diminuiu.

De fato, não foi a falta de apoio ao presidente no Congresso que trou-xe a reforma política de volta à ordem do dia. Foi a exposição dos meios ilícitos usados por colaboradores do presidente e dirigentes do seu partido para conseguir apoio e o grande número de parlamentares que se deixaram cooptar por esses meios.

Aos indícios de corrupção sistêmica no governo, o presidente e seus escudeiros con-trapuseram a tese da corrupção endêmica das instituições. Fazendo da crítica às mazelas tradicionais do sistema eleitoral e partidário brasileiro a confirmação “sociológica” do senso comum de que na penumbra da política todos os gatos são pardos, conseguiram descolar o presidente dos escândalos. Ao preço, porém, de lançar ao descrédito o Congresso, os parti-dos e os políticos em geral.

A reforma política volta à ordem do dia, assim, num contexto em que, mais do que a gover-nabilidade, a confiança nas instituições – sua legitimidade, portanto – é a questão fundamental.

Reforma política e reforma do Estado

“A César o que é de César”. Instituições representativas defeituosas podem explicar por que tantos parlamentares aceitaram dinheiro ilegal dos emissários do governo ou de seu parti-do, como o presidente do PTB revelou em junho de 2005, uma CPI confirmou e o procura-dor-geral da República denunciou à Justiça. Para explicar por que e como o dinheiro chegou a ser oferecido, é preciso olhar para outro lado: para dentro do governo e de seu partido.

Este não é o lugar para discutir os problemas internos do PT. Mas as brechas que per-mitiram ao partido usar o governo para “aparelhar” o Estado não podem ser ignoradas, sob pena de se criar, aí sim, uma cortina de fumaça ou, pior, um jogo de espelhos para fazer parecer que “a política” – entenda-se: as eleições, os partidos, o Congresso – é a fonte de todos os males.

A fim de responder ao déficit de confiança em toda a sua extensão, a reforma política deve convergir com a reforma do Estado para aumentar tanto a eficiência como a transparência das estruturas do Executivo. Isso inclui medidas como o estabelecimento de critérios legais estritos

Apoio de uma ampla coalizão partidária,

coincidência de mandatos e reeleição ajudaram a manter a estabilidade política e consolidar a

estabilidade econômica através das sucessivas

crises financeiras externas que marcaram os oito anos do governo FHC

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de profissionalismo e competência no preenchimento dos cargos de direção e assessoramento superior da administração direta e das empresas estatais; a redução dos cargos de confiança de livre provimento e o fortalecimento dos mecanismos de recrutamento, qualificação e pro-moção dos servidores de carreira; a regulamentação do uso dos meios de comunicação pelo governo para garantir o acesso público à informação e coibir a manipulação política da pro-paganda oficial e de suas verbas; o reforço dos mecanismos de controle interno, externo (pelo Congresso e TCU) e social da administração para impor obediência a todas essas regras.

Representação em xeque

Isto posto, as falhas das instituições representativas não podem ser subestimadas.A ênfase na questão da legitimidade não significa que a da governabilidade esteja su-

perada. As duas se conjugam, na verdade. Apesar dos avanços assinalados na prática e nas regras do jogo, nosso sistema de governo ainda é um arremedo de “presidencialismo de co-alizão”, no qual a presença de representantes dos partidos no ministério e em outros postos do Executivo não garante seu apoio efetivo às propostas do governo no Congresso. A mul-tiplicidade de partidos e sua falta de comando sobre as respectivas bancadas parlamentares obrigam o presidente e seus articuladores políticos a um esforço de Sísifo para conseguir maioria parlamentar, no limite negociando projeto a projeto, voto a voto. Missão, se não impossível, terrivelmente árdua, sobretudo em matérias ao mesmo tempo complexas e con-trovertidas, como a reforma previdenciária – o que por certo não justifica o uso de meios ilícitos de cooptação de parlamentares. A contrapartida disso do ponto de vista do eleitor é a dificuldade de fazer escolhas significativas numa enorme multiplicidade de partidos e candidatos, principalmente à Câmara dos Deputados. O resultado final é o esgarçamento do vínculo entre representante e representados.

O multipartidarismo é um efeito típico dos sistemas de representação proporcional, ainda mais numa federação grande e heterogênea como a brasileira. A frouxidão do vínculo dos representantes eleitos com o partido é característica do sistema proporcional com lista aberta adotado no Brasil para a Câmara dos Deputa-dos e os legislativos estaduais e municipais. O descolamento entre represen-tantes e representados pode soar paradoxal num sistema como esse, em que o voto é dado geralmente à pessoa do candidato mais do que ao partido. O vínculo pessoal se dilui, porém, numa sociedade de massa, quando centenas ou milhares de candidatos disputam o voto de milhões de eleitores no mesmo colégio eleitoral. Nessas condições, a escolha de um candidato tende a ser bas-tante aleatória. É difícil para a maioria lembrar em quem votou e mais difícil

ainda dizer quem é o “seu” deputado.Faz tempo que esse sistema eleitoral dá sinais de fadiga. Do ponto de vista dos repre-

sentantes, a taxa de reeleição para a Câmara dos Deputados é sempre muito baixa, de 50% ou menos, sem que a alta rotatividade signifique renovação em qualquer sentido determi-nável, muito menos melhora de qualidade das legislaturas. As campanhas eleitorais custam cada vez mais caro. As chances de reeleição de um deputado dependem cada vez menos do

O descolamento entre representantes e

representados pode soar paradoxal num sistema

como esse, em que o voto é dado geralmente à pessoa do candidato

mais do que ao partido

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bom desempenho de suas funções de legislador e fiscal do governo e cada vez mais do seu atendimento a clientelas locais ou setoriais. Isso faz do deputado típico um representante

em busca de representados, isto é, de novas clientelas que tentará atender via emendas orçamentárias, favores do governo ou vantagens legais. Nes-sa busca permanente de possíveis apoios e moedas de troca – de chances de sobrevivência eleitoral, em última análise – a mudança de partido no meio do mandato tem sido uma opção cada vez mais freqüente. Do ponto de vista dos representados, a percepção de um toma-lá-dá-cá generalizado entre parlamentares, governo, partidos e clientelas alimenta o sentimento antipolítica e joga o Congresso para os últimos lugares nas pesquisas que

medem a confiança do público nas instituições. O uso da urna eletrônica nas eleições gerais desde 1998 talvez explique por que esse sentimento não se traduziu mais recentemente numa enxurrada de votos brancos e nulos para deputado, como aconteceu em 1990 e 1994, quando passaram de 40%. Mas essa proporção voltou a subir nas eleições de 2006, para 10%, depois de baixar consistentemente em 1998 e 2002.

Voltamos à pergunta do início deste artigo, em termos mais específicos: se o sistema eleitoral é efetivamente tão ruim para representantes e representados, por que eles não se mexem mais para mudá-lo?

Por duas razões, possivelmente: tradição e falta de alternativa.O mesmo sistema proporcional, com poucas modificações, está em uso no Brasil desde

1945 – tempo para sucessivas gerações de políticos aprenderem a operar dentro dele, com todos os seus truques. O peso da tradição explica termos atravessado duas mudanças de regime, três Constituições, dois plebiscitos sobre sistema de governo, sem que nenhuma liderança, partido ou corrente política erguesse realmente a bandeira da reforma eleitoral. O tema passou praticamente em branco na Constituinte de 1987-88, com todas as atenções voltadas para o embate sobre o sistema de governo e a duração do mandato presidencial. Os defensores do presidencialismo alegavam que o parlamentarismo precisaria de partidos mais fortes para funcionar sem sobressaltos. Nem isso trouxe à baila os efeitos desagregadores do sistema eleitoral sobre o sistema partidário.

Por falta de alternativa entenda-se: alternativa atraente ou pelo menos aceitável para representantes e representados. As propostas de sistema misto proporcional-distrital e pro-porcional com lista preordenada apresentadas nos últimos anos esbarram numa grande di-ficuldade: a incerteza dos deputados sobre suas chances de reeleição. Estas são longe de bri-lhantes no atual sistema, mas não seriam piores em outro? Os distritos do sistema misto se encaixariam nas bases dos atuais deputados? Qual seria a influência dos caciques regionais e do poder econômico na colocação dos candidatos na lista preordenada? A isso se acrescenta a dificuldade de os eleitores e boa parte dos próprios deputados entenderem as complexida-des dos sistemas alternativos, principalmente do sistema misto.

Se o sistema eleitoral é efetivamente tão ruim

para representantes e representados, por

que eles não se mexem mais para mudá-lo?

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A chance do voto distrital

O tema da reforma política volta à pauta, no entanto, trazido pelo mal-estar difuso com o status quo e pela cobrança da mídia e dos setores mais informados da sociedade diante da série sem fim de escândalos.

Mudanças pontuais da legislação eleitoral e partidária aprovadas pelo Senado e ora em discussão na Câmara – financiamento público das campanhas eleitorais, regras mais estritas de filiação e fidelidade partidária – não deixariam de representar avanços, como parecia um avanço a “cláusula de desempenho” impugnada pelo STF antes de produzir efeitos. Mas, sem mudança do sistema eleitoral, elas parecem paliativas, se é que não são contraditórias com a manutenção do sistema vigente.

Nesse contexto o voto distrital puro entra pela primeira vez em discussão no Congres-so, por proposta de emenda constitucional do deputado Arnaldo Madeira.

Pode-se antecipar objeções a essa alternativa, como às anteriores.Os pequenos partidos temem por sua sobrevivência num sistema majoritário, teorica-

mente desfavorável à representação de minorias, tendente ao bipartidarismo, segundo alguns. O temor parece exagerado quando se olha o número atual de partidos com prefeitos (23), senadores (11) e governadores (8), cargos eleitos desde sempre pelo princípio majoritário.

Outra objeção é que deputados eleitos pelo sistema distrital seriam “vereadores fede-rais”, voltados para os assuntos de interesse local de suas bases, deixando sem voz nem voto no Congresso correntes de opinião sobre temas mais gerais. Não é o que se observa em câ-maras eleitas pelo voto distrital pelo mundo afora; o fato de representar uma localidade não impede o parlamentar de tomar posição sobre qualquer assunto. De resto, é de se perguntar quantos são hoje os “representantes de opinião” na Câmara dos Deputados. O certo é que a imensa maioria depende de clientelas locais e/ou setoriais, com a desvantagem de que sua

relação com elas nem sempre tem a transparência nem a previsibilidade desejáveis. O melhor caso talvez seja o do grande número de deputados cuja votação já é distritalizada de fato.

O sistema distrital enseja um tipo peculiar de casuísmo: a manipulação do traçado dos distritos para favorecer um candidato, partido ou grupo de interesse. A proposta do deputado Arnaldo Madeira previne o risco do gerrymandering – como os americanos chamam essa arte tradicional na sua política – encarregando a justiça eleitoral de definir e redefinir os limites dos distritos (nos Estados Unidos isso costuma ser feito pelos legislativos estaduais).

E a influência dos caciques regionais ou/e do poder econômico na escolha dos candidatos, quererão saber os deputados e aspirantes? Este é

um aspecto em que o sistema distrital provavelmente leva vantagem sobre o atual e sobre as demais alternativas, tanto do ponto de vista dos representantes como dos representados.

No sistema atual, a composição das chapas para deputado federal, estadual ou vereador não costuma ser pacífica. Há disputas ferozes por “espaço” em dada região ou setor da socie-dade. O poder econômico influencia o resultado? Eventualmente. E os caciques regionais? Com certeza. Acontece que essas e outras influências se dão nos bastidores, nas negociações

O certo é que a imensa maioria depende de clientelas locais e/ou setoriais, com a

desvantagem de que sua relação com elas

nem sempre tem a transparência nem a

previsibilidade desejáveis

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febris que antecedem a convenção estadual ou municipal. À convenção mesmo chega, in-variavelmente, uma chapa única. Excepcionalmente há disputa aberta pelas candidaturas majoritárias. Sabe-se de um caso ao menos em que a composição das chapas proporcionais foi a voto na convenção? Quem prevê que vai “sobrar” muda de partido no prazo de filiação. A maioria dos aspirantes se acomoda na “cauda” de candidatos sem chance efetiva mas que somam votos para o partido.

Num sistema misto ou proporcional com lista preordenada, a disputa tende a ser mui-to mais dura, porque não é só para entrar na chapa, mas por uma colocação que garanta a eleição do candidato individual dentro do número de vagas que o partido vier a ganhar.

Isso torna crítico o risco de manipulação, em detrimento do eleitor – privado de escolher pessoalmente seu candidato – e dos eleitos – sujeitos a se tornarem reféns de oligarquias partidárias. As transgressões praticadas pelas direções de vários partidos nos escândalos recentes recomendam cau-tela em relação a essa possibilidade. Há outro risco, menos óbvio mas não menos grave: o de bancadas parlamentares estritamente subordinadas às direções partidárias travarem, em vez de facilitarem, as negociações Execu-tivo-Legislativo. A lógica do parlamentarismo contém suas defesas contra esse risco – no limite, com a dissolução da Câmara e a convocação de novas eleições. O presidencialismo, não. Seu funcionamento com partidos muito fragmentados e pouco coesos é difícil. Mas com partidos rígidos demais pode ser impossível ou quase, como demonstram em alguma medida o Chile pré-Pinochet e a Argentina de Alfonsín e De La Rua.

O sistema distrital dá peso à ligação do representante com seu partido, na medida em que cada partido lança somente um candidato por distrito. Mas não tanto peso que faça do mandatário eleito um representante do partido mais que do eleitor. É o partido que lança o candidato, mas é o candidato em pessoa que recebe os votos. Isso tende a moderar a influência

da direção partidária e deixa o representante exercer o mandato prestando contas ao mesmo tempo ao partido e ao eleitorado de seu distrito, que inclui normalmente outras preferências partidárias. Melhor para o eleitor, que pode escolher entre um número razoável de candi-datos e saberá sempre quem é o “seu” deputado – o de seu distrito – mesmo que não tenha votado nele. Bom para a governabilidade no presidencialismo, porque se reforça a capacida-de dos partidos de mediar mas não de bloquear a formação de consensos.

A alternativa distrital tem outra vantagem, que nos parece decisiva no ponto em que se encontra a discussão da reforma política: a sua simplicidade. A justiça eleitoral divide cada estado em tantos distritos quantos forem os representantes do estado na Câmara dos Depu-tados; cada partido lança um candidato por distrito; o candidato mais votado no distrito é eleito. Qualquer deputado ou candidato pode entender isso facilmente. Mais importante, qualquer eleitor pode entender e gostar disso.

Reforma política é questão de oportunidade histórica mais do que de evidência lógica ou científica. Quem entra nessa discussão querendo chegar a algum resultado, e não sim-plesmente demonstrar um ponto de vista, tem que estar pronto para negociar e transigir.

Há outro risco, menos óbvio mas não menos grave: o de bancadas

parlamentares estritamente subordinadas

às direções partidárias travarem, em vez de

facilitarem, as negociações Executivo-Legislativo. A

lógica do parlamentarismo contém suas defesas

contra esse risco – no limite, com a dissolução

da Câmara e a convocação de novas eleições. O

presidencialismo, não

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Entre sistemas proporcionais e majoritários “puros” há uma gama de possibilidades inter-mediárias que dá margem à negociação: o sistema misto alemão, que em última análise é um sistema proporcional, embora com metade dos representantes eleitos por distritos uninomi-nais; sistemas com mais de um representante por distrito (no Chile são dois), que podem ser mais ou menos proporcionais, dependendo do número de representantes.

Uma coisa parece certa: dificilmente chegaremos a mudanças significa-tivas se a negociação ficar restrita aos políticos. O peso da tradição é muito grande. Para vencê-lo é preciso envolver mais amplamente a sociedade na discussão. Daí a vantagem decisiva do sistema distrital. Porque é uma alterna-tiva facilmente compreensível e atraente, é a que mais se presta para mobilizar apoio amplo da sociedade e vencer a inércia dos partidos e do Congresso.

Se for preciso concentrar energia para dar um passo à frente, ele pode-ria ser: voto distrital para a eleição de vereadores a partir de 2008. Seria um avanço na linha de menor resistência, dando mais tempo aos deputados para decidirem colocar os próprios mandatos em jogo na mudança. Não caberia a objeção de criar “vereadores federais”, pois se trata dos vereadores

mesmo. Acima de tudo, seria um passo na direção certa – a direção do eleitor.Este é o nosso ponto, para concluir: se toda essa discussão tem sentido – e acreditamos

que tem – dentro do processo de democratização do país, chegou o momento de colocar o cidadão eleitor no centro das opções de reforma política.

Notas

1 Rodrigues, Leôncio Martins. “’Reforma é falta do que fazer’, diz Leôncio”. Entrevista à Folha de S.Paulo, 19/11/06. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1911200612.htm

2 Santos, Wanderley Guilherme dos. “Fortalecimento da democracia não depende da Reforma Política”. Entrevista a Carta Maior, 19/10/06. http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=12580

3 Cf. Nicolau, Jairo (org.). Banco de Dados Eleitorais do Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ. http://jaironicolau.iuperj.br/database/deb/port/index.htm. Visitado em 3/12/06. Os demais resultados eleitorais mencionados neste artigo foram checados na mesma fonte.

4 Lins, Juan e Valenzuela, Arturo (eds.). The Failure of Presidential Democracy: The Case of Latin America, vol. 2. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1994.

5 Hirschman, Albert. La matriz social y Política da la Inflación: elaboración sobre la Experiencia Latinoamericana. In Hirschman, Albert. De la Economía a la Política y más Allá. México: Fondo de Cultura Económica, 1984.

6 Ver Jones, Mark. Electoral Laws and the Survival of Presidential Democracies. South Bend, Ind.: University of Notre Dame Press, 1995. Sobre o efeito dessa tendência no Chile, ver Siavelis, Peter M. The President and Congress in Postauthoritarian Chile; Institutional Constraints to Democratic Consolidation. University Park, Pen.: The Pennsylvannia State University Press. 2000. p. 178-183.

Daí a vantagem decisiva do sistema distrital.

Porque é uma alternativa facilmente compreensível e atraente, é a que mais se presta para mobilizar

apoio amplo da sociedade e vencer a inércia dos

partidos e do Congresso

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Argelina Cheibub Figueiredo* e Fernando Limongi**

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As propostas de reforma po-lítica no Brasil têm sido abran-gentes e em geral enfatizam os efeitos negativos da representa-ção proporcional com lista aber-ta, do federalismo e da separação de poderes no desempenho dos governos. Visam, dessa forma, a alterar as instituições no sentido de favorecer o majoritarismo e estreitar as relações entre Exe-cutivo e Legislativo. Os debates para a elaboração da Constituição de 1988 e do Regimento Interno da Câmara dos Deputa-dos em 1989 revelam a preocupação dos parlamentares com o que entendiam ser as “defici-ências históricas” do Legislativo – a morosidade e a falta de especialização – e o temor de que, com a restauração de seus poderes, o Legislativo se tornasse um obstáculo à ação do Executivo. Por isso, muitos propunham a mudança para o sistema parlamentarista de governo, assim como a manutenção de um extenso rol de medidas que haviam sido implementadas durante o regime militar para aumentar o controle do Executivo sobre o processo legislativo, dentre elas a medida provisória, um sucedâneo do decreto-lei. O sistema parlamentarista não foi aprovado, mas as demais medidas foram incorporadas à Carta democrática.

*Argelina Cheibub Figueiredo, cientista política, Doutora em Ciência Política pela Universidade de Chicago, é professora livre docente da Universidade Estadual de Campinas, professora associada do Iuperj e pesquisadora sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.**Fernando Limongi, cientista político, Doutor em Ciência Política pela Universidade de Chicago, é professor livre docente do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisador sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

Reforma política: notas de cautela sobre os efeitos de escolhas institucionais

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No debate que precedeu o plebiscito de 1993, que submeteria ao veredicto popular o sistema de governo, o movimento reformista ganhou força, preconizando um extenso paco-te de reformas políticas, sendo o sistema de representação um de seus principais alvos. Com a ratificação do presidencialismo e o governo de oito anos do PSDB, partido mais doutri-nariamente comprometido com a reforma política, o movimento reformista arrefeceu. Mas não morreu. Ressurgiu no atual governo, menos abrangente e sem uma definição clara dos objetivos pretendidos.

Entre as principais medidas da atual proposta de reforma política, já aprovada na Co-missão Especial da Câmara dos Deputados, estão: 1) a adoção da lista partidária fechada nas eleições para o Legislativo, ou seja, os eleitores passariam a votar em uma lista preestabeleci-da pelo partido, e não mais em candidaturas individuais, como ocorre hoje; 2) a proibição das coligações eleitorais para as eleições proporcionais, porém com permissão de formação de federações partidárias que devem se manter durante a legislatura; e 3) o financiamento de campanhas eleitorais feito integralmente com fundos públicos, ou seja, seria abolido o financiamento privado.

O principal argumento a favor da lista fechada, amparado também por estudos acadê-micos de política comparada, é que o aumento do controle do partido sobre os deputados eleitos produz efeitos positivos no comportamento parlamentar, afetando, assim, sua relação com o Executivo. Em artigo na recém-criada revista da Câmara dos Deputados, Plenarium, David Fleischer, cientista político da Universidade de Brasília, resume os efeitos esperados da adoção da lista partidária fechada:

No sistema de lista fechada, os mandatos dos deputados pertencem ao partido, e não mais aos próprios deputados. Assim o partido teria mais controle sobre os seus eleitos, e a migração [“troca-troca”] dos deputados de uma legenda para a outra não existiria mais. As bancadas seriam mais coesas e o trabalho parlamentar se tornaria mais eficaz e eficiente. A articulação com o Poder Executivo seria diretamente com os partidos, e não mais um a um com cada parlamentar. Por este raciocínio, os partidos seriam fortalecidos, o que, em grande parte, poderia aperfeiçoar a prática da democracia no Brasil. (p. 126)

As correntes analíticas em que se apóiam os defensores da reforma política desenvol-vem a seguinte linha de raciocínio. O individualismo na política brasileira decorreria da forma assumida pela “conexão eleitoral” no Brasil. O sistema proporcional de representação com listas abertas geraria incentivos para que os parlamentares estruturassem suas carreiras privilegiando laços pessoais, e não partidários, com seus eleitores. Os políticos procurariam, portanto, atender suas clientelas promovendo políticas públicas distributivistas. Além disso, a lista aberta subtrairia das lideranças partidárias os meios para punir o comportamento individualista e antipartidário dos políticos. Por essas razões, o conflito institucional com o Executivo, inerente ao sistema presidencialista de separação de poderes, se acirraria. No sistema de listas fechadas, ao contrário, como o partido tem poder de determinar as chances eleitorais dos parlamentares, estes se submetem às diretivas partidárias e de acordo com elas

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pautam suas relações com o eleitorado e com o governo. Não há, sob lista fechada, como construir uma carreira política sem uma identidade completa com a liderança do partido.

As coligações nas eleições proporcionais, por sua vez, são vistas como uma deturpação do sistema eleitoral brasileiro. Formadas independentemente de afinidades ideológicas, as-

sociando partidos de diferentes perfis políticos, constituir-se-iam em ver-dadeira anomalia que só se prestaria a garantir cadeiras para partidos sem expressão. A proibição de coligações contribuiria, assim, para dar maior racionalidade ao sistema partidário e reduzir o número de partidos. Com isto, aumentariam as chances de controle majoritário do governo de um lado e, de outro, diminuiriam os custos de transação na formação e fun-cionamento dos governos.

Finalmente, o financiamento público de campanhas visaria a dimi-nuir a dependência do financiamento das empresas, contribuindo para a diminuição dos gastos de campanha e coibindo a utilização de formas ile-gais de financiamento.

Em suma, a implementação dessas medidas tornaria possível combater os grandes ma-les que afetam o sistema político brasileiro: o individualismo, a corrupção e as crises de governabilidade.

Os que duvidam da eficácia dessas medidas, entre os quais nos encontramos, contes-tam tanto os diagnósticos a respeito do funcionamento do atual sistema como também os nexos estabelecidos entre as medidas propostas e os seus efeitos desejados. Essas propostas são baseadas em diagnósticos parciais, pouco sistemáticos e, muitas vezes, enviesados tanto sobre a operação do sistema político brasileiro quanto sobre os efeitos das instituições vigen-tes. Freqüentemente baseiam-se também em visões idealizadas e pouco informadas sobre o que ocorre em outras democracias. Muitas propostas de reformas são também decorrentes de premissas falsas sobre os reais efeitos das escolhas das instituições. Por vezes, o alvo está errado: alguns dos objetivos perseguidos poderiam ser obtidos com pequenas modificações de regras e regulamentos de menor abrangência, sem alteração das instituições políticas fundamentais, como o sistema presidencialista de governo, o sistema proporcional de repre-sentação e a forma federativa de organização do Estado. As propostas reformistas parecem desconsiderar inteiramente as inter-relações entre essas escolhas institucionais que tornam imprevisíveis os resultados finais de muitas das propostas em discussão.

A sensação que se transmite à opinião pública é de que haveria um consenso e/ou um conhecimento acadêmico solidamente estabelecido em favor das propostas reformistas. São freqüentes as referências a possíveis singularidades da legislação eleitoral e partidária brasileira e a certos axiomas da ciência política que estabeleceriam uma relação direta entre performance democrática e determinadas escolhas institucionais. O fato é que não existem tais axiomas e tampouco se sabe (ou seria possível saber) quais são as melhores instituições. Sequer existe um consenso sobre os efeitos das escolhas institucionais que se pretende alterar.

Por exemplo, o suposto de que o sistema eleitoral brasileiro geraria incentivos para o voto pessoal é discutível. Estudos recentes mostram que o sistema político brasileiro não gera condições motivacionais, e nem mesmo institucionais, para que os políticos baseiem

Essas propostas são baseadas em diagnósticos

parciais, pouco sistemáticos e, muitas

vezes, enviesados tanto sobre a operação do

sistema político brasileiro quanto sobre os efeitos

das instituições vigentes

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suas estratégias eleitorais exclusivamente em vínculos pessoais com seus eleitores ou que tenham preferências homogêneas quanto ao tipo de política a ser implementada.1

No que diz respeito ao controle partidário, a lista partidária no seu formato atual não é efetivamente aberta a todo e qualquer pré-candidato. As direções e lideranças dos parti-

dos detêm de fato o controle sobre a elaboração das listas partidárias; só não as ordenam, tarefa que cabe ao eleitor. Se os partidos não tivessem controle, não haveria necessidade da “candidatura nata” garantindo aos parlamentares acesso automático à lista partidária. A abolição recente desse mecanismo aumentou o controle partidário na elaboração da lista, pois os deputados passaram também a disputar vaga na lista.

No sistema atual, os partidos controlam ainda a distribuição de tempo no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) e dos recursos do Fundo Partidário. Há estudos mostrando que o HGPE é controlado pelos partidos e que nas eleições proporcionais o tempo dedicado aos diferentes candidatos acaba por funcionar como uma forma de o partido ordenar a lista.2 Cabe lembrar, ainda, que o controle das lideranças sobre os parla-mentares não se restringe à arena eleitoral. Deve-se levar em conta tam-bém o peso das regras que regulam o processo decisório. A centralização do processo decisório nas mãos dos líderes partidários no Congresso afeta a capacidade dos parlamentares de aprovar políticas distributivas. Isto é,

mesmo que a arena eleitoral gere incentivos para estratégias individualistas e clientelistas, a arena legislativa lhes nega esta possibilidade.

Um dos argumentos a favor do sistema de listas fechadas, em contraposição ao atual processo, em que os partidos apresentam uma lista a ser ordenada pelo próprio eleitor, como apresentado por um jornalista político, é que “os partidos escolherão suas listas de candida-tos de acordo com critérios próprios, e não precisarão se submeter completamente à ditadura dos detentores de votos pessoais, pois a legenda terá mais importância” (Merval Pereira, O Globo, 21/11/2004, grifos nossos).

Os que resistem em delegar mais poderes às lideranças partidárias, no entanto, alertam para os riscos de “oligarquização” da vida partidária e de “cartelização” da competi-ção político-eleitoral. Esses riscos seriam maiores ou menores dependendo dos procedimentos adotados pelos partidos na definição da lista partidária. Na pro-posta aprovada pela Comissão, as listas partidárias devem ser elaboradas em cada estado da Federação, mas fica a critério do partido o método para a elaboração da lista. Há três alternativas a considerar. Na primeira, a comissão executiva ou o diretório estadual elaboraria uma lista

A centralização do processo decisório

nas mãos dos líderes partidários no Congresso afeta a capacidade dos

parlamentares de aprovar políticas distributivas.

Isto é, mesmo que a arena eleitoral gere

incentivos para estratégias individualistas e

clientelistas, a arena legislativa lhes nega

esta possibilidade

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com posições predefinidas dos candidatos; na segunda, a convenção estadual do partido seria responsável pela elaboração da lista; a última forma seria por meio de uma votação

prévia de todos os filiados, sendo que o mecanismo para recebimento de candidaturas e sua inclusão na prévia seria determinado pelo partido.

Nas duas primeiras alternativas, além de outros critérios mais ques-tionáveis, parece pouco provável que os partidos poderão de fato prescin-dir dos “puxadores” de voto. No entanto, ainda que venha a prevalecer o critério de maior democracia interna, ou seja, a ordenação da lista pelo voto do filiado, não se pode desprezar a possibilidade de manipulação nos processos de filiação e de organização das prévias partidárias. Como se trata de uma questão partidária interna, não cabe controle por parte da justiça eleitoral. Sendo assim, a maior ou menor probabilidade de lisura no pro-

cesso de formação da lista partidária depende da capacidade de controle e de mobilização dos próprios filiados e, em última instância, da sociedade. Comparando-se com o sistema atual, cabe perguntar quais as vantagens de transferir para o próprio partido e seus filiados funções que hoje cabem à Justiça Eleitoral e ao eleitorado. O eleitorado, com certeza, terá seu poder de interferir na luta interna dos partidos diminuído e, assim, poderá perder con-trole sobre os representantes. Ou seja, o perdedor e o ganhador desta alteração são fáceis de identificar: o eleitor e as lideranças partidárias.

Os efeitos esperados da proibição de coligações nas eleições proporcionais – imprimir maior “racionalidade” ao sistema partidário e reduzir o número de partidos – são também incertos. As inconsistências nas coligações são em geral atribuídas à inexistência de bases ideológicas e sociais dos partidos brasileiros. A análise mais detalhada da sua composição mostra que as coligações são os elos entre as eleições majoritárias, sobretudo para o Executi-vo estadual, e as proporcionais. Em geral, a lógica que rege a formação das coligações é dada pelas eleições majoritárias, ou seja, as coligações fornecem a conexão possível entre os pleitos majoritários e proporcionais em cada um dos estados. Sendo assim, não é de esperar que as federações de partidos, que substituiriam as coligações, venham a adquirir a consistência ideológica desejada por seus idealizadores. Por que as federações partidárias seriam forma-das por uma lógica diversa? O artifício imaginado, obrigar a sua continuidade ao longo da legislatura, apenas estenderia no tempo as supostas inconsistências ideológicas.

O efeito da proibição das coligações na redução do número de partidos também requer uma compreensão mais acurada dos reais beneficiários do sistema atual e da análise das possibilidades lógicas e empíricas de coligações. Os pequenos partidos são em geral vistos como os principais beneficiários das coligações na medida em que recorreriam a elas para driblar a cláusula de barreira atualmente em vigor, a saber, o quociente eleitoral (pelas regras atuais, a coligação ou partido que não receber mais votos do que o quociente eleitoral do estado não participa da distribuição das sobras). Isto é, as coligações seriam a via de acesso dos pequenos e micropartidos ao Legislativo. Se for assim, com a proibição das coligações, o número de partidos a obter representação no Legislativo cairia.

No entanto, ainda que a coligação possa ser uma forma de driblar a cláusula de bar-reira, não segue que sua proibição leve necessariamente à redução do número de partidos

No entanto, ainda que a coligação possa ser uma

forma de driblar a cláusula de barreira, não segue que sua proibição leve

necessariamente à redução do número de partidos a obter representação

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a obter representação. Isto porque, em primeiro lugar, os partidos que se beneficiam desse recurso em um estado não necessariamente precisam dele em um outro estado. Isto é, quan-do os partidos são classificados em grandes e pequenos, em possíveis beneficiários e desfa-vorecidos pelas coligações, tende-se a esquecer que o tamanho dos partidos não é o mesmo em todas as unidades da federação. Nos últimos pleitos, o maior partido nacional sempre ganhou cadeiras que não receberia se não houvesse se coligado em pelo menos um estado. Tal fato aponta para uma característica positiva das coligações pouco notada pelos seus críticos, qual seja a de que o recurso às coligações nas eleições proporcionais contribui para a maior nacionalização dos partidos. Esse aspecto ganha ainda maior relevância quando se tem em conta que, no Brasil, os distritos eleitorais coincidem com os estados, impondo, assim, uma preponderância da competição estadual sobre a nacional. Dito de outra forma, as coligações não apenas fornecem o elo entre as eleições majoritárias e proporcionais em um mesmo distrito, como também permitem uma maior concatenação das disputas em diferentes distritos.

Assume-se que as coligações favorecem os menores partidos, isto é, o maior partido no interior de uma dada coligação acabaria por ceder cadeiras para os menores. Nesses termos as coligações acabariam por falsear a vontade do eleitor ao transferir votos do partido mais votado para o menos votado. Note-se, antes de mais nada, que a transferência de votos pode se dar no sentido inverso, isto é, do menor para o maior partido. Pequenos partidos podem ser prejudicados ao se coligar. Por exemplo, um partido que receberia cadeiras concorrendo isoladamente pode, e isto de fato ocorreu, não receber cadeiras ao se coligar. Partidos que participam de uma coligação e que não recebem cadeiras estão, necessariamente, transferin-do votos para os que recebem. E é isto o que ocorre com a maioria dos pequenos partidos que se coligam nas proporcionais. Os casos notórios de pequenos partidos que obtêm cadei-ras com pequenas votações são generalizados como se esta fosse a única possibilidade.

Na realidade, o que parece ser condenável nas coligações é o fato de a distribuição de cadeiras no seu interior não obedecer ao critério da proporcionalidade. As coligações deixariam de ser um método eficiente para driblar a cláusula de barreira e não levariam à transferência indevida de votos se a distribuição de cadeiras obtidas pela coligação se guiasse

pelo princípio proporcional, isto é, se cada partido recebesse cadeiras na proporção da sua contribuição para o total de votos obtidos pela coliga-ção. O que os críticos das coligações não percebem é que, implicitamente, estão defendendo o método proporcional e condenando, tomando como injusta, a distribuição baseada pura e simplesmente nas maiores votações pessoais dentro da lista, isto é, o princípio majoritário.

Em resumo, as críticas às coligações perdem de vista o real papel que desempenham na arena eleitoral ao fornecer uma forma de coordenar as

ações em pleitos regidos por lógicas distintas (eleições majoritárias e proporcionais) e em dis-tritos autônomos. A eliminação das coligações nas eleições proporcionais, com a introdução de uma cláusula de barreira, ainda que esta venha a ser menor do que aquela prevista pela legislação em vigor, poderia ter o efeito contrário ao pretendido, levando à proliferação de pequenos partidos estaduais que, dado o substituto encontrado para as coligações, se trans-

Os casos notórios de pequenos partidos que

obtêm cadeiras com pequenas votações são

generalizados como se esta fosse a única possibilidade

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formariam em federações congressuais. Ademais, o principal problema identificado pelos críticos das coligações em eleições proporcionais não seria sanado por sua substituição por fe-derações de partidos. A transferência de votos no interior da federação partidária continuaria a se dar pela concentração de votos pessoais, e não de acordo com o princípio proporcional.

É bom frisar que a eliminação das coligações não necessariamente contribuirá para a diminuição do número de partidos representados ou mesmo contribuirá para a redução da fragmentação partidária. O número relativamente elevado de partidos a obter cadeiras e

a fragmentação estão mais diretamente associados à diferente penetração dos partidos pelos estados do que às coligações. Como dito anteriormen-te, partidos grandes em um estado podem ser pequenos em outros. Essa diversidade na nacionalização das forças partidárias também não depende da adoção da representação proporcional. Isto é, mesmo que se adotasse a representação majoritária pura e simples para as eleições da Câmara dos Deputados, não há garantias de que o efeito dessa transformação fosse a redução do número de partidos a obter representação. A relação entre o número de cadeiras em disputa e o número de partidos eleitorais, a conhe-cida Lei de Duverger, se aplica distrito a distrito. Logo, se as eleições para a Câmara dos Deputados forem disputadas em 513 distritos, espera-se que sejam reduzidas a 513 disputas bipartidárias, mas não necessariamente pe-los mesmos partidos em todos os distritos.

O financiamento público integral das campanhas sem sombra de dúvidas contribui-ria para reduzir o peso do poder econômico nas eleições e, provavelmente, sua influência posterior sobre o governo e o Congresso. Porém, não elimina a possibilidade de “caixa dois”. Sendo assim, seu efeito no custo das campanhas não é automático. O sistema atual, que combina financiamentos público e privado, também permite “caixa dois”, mas, como incentiva, ainda que de forma limitada, a notificação das doações em função da dedução fiscal, dá à Justiça Eleitoral maior controle sobre os gastos privados. Nos sistemas mistos, como o brasileiro, a redução dos custos de campanha depende do estabelecimento de um teto. O cumprimento do teto depende da capacidade de fiscalização das doações privadas, que por sua vez depende dos incentivos à notificação. Em suma, os resultados desejados, portanto, dependem mais fundamentalmente dos incentivos para a realização de doações legais, dos tetos de gastos e da capacidade de fiscalização da Justiça Eleitoral.

Vale notar que, atualmente, o principal gas-to de campanha, o acesso ao rádio e à televisão, já é financiado publicamente. Isto é, partidos e candidatos já não precisam angariar fundos para financiar a principal despesa de campanha. Ou seja, parece duvidoso argumentar que as cam-panhas induzam à corrida a recursos escusos. O custo calculado das campanhas tem variado de forma acentuada, caindo significativamente após escândalos que envolviam denúncias relativas a

Vale notar que, atualmente, o principal

gasto de campanha, o acesso ao rádio e à

televisão, já é financiado publicamente. Isto é,

partidos e candidatos já não precisam angariar fundos para financiar

a principal despesa de campanha

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desvio de dinheiro de campanha. Como dito acima, o principal problema não é o da escas-sez de recursos, mas sim de fiscalização. Não há porque esperar que os meios de fiscalização se tornem mais eficientes com o financiamento público da campanha. Não é certamente o que a experiência internacional nos ensina.

No atual debate, a viabilidade do financiamento público é apresentada como depen-dente da aprovação da lista partidária fechada. Portanto, pela proposta aprovada, as direções partidárias centralizariam a prerrogativa de definir a lista, assim como os recursos para a campanha, aumentando dessa forma as dificuldades de controle tanto da Justiça Eleitoral como dos próprios eleitores.

O último problema que as reformas viriam ajudar a solucionar, a governabilidade, é em geral medido pela capacidade do governo em implementar a sua agenda legislativa. Como mostramos anteriormente, porém, nos governos recentes o Executivo tem obtido altas taxas de sucesso na aprovação de seus projetos de lei. Verifica-se ainda que a predominância do Executivo na produção legal atinge patamares comparáveis aos encontrados em países de re-gime parlamentarista. Por outro lado, a atuação do Congresso está longe de ser irrelevante. O Legislativo brasileiro influi nas políticas de governo, impondo-lhes modificações, cumprin-do o papel institucional que lhe cabe em qualquer democracia. Não pode porém ser visto

como um obstáculo ao Executivo na medida em que este mantém de fato a direção e a liderança da agenda legislativa no período recente. Por outro lado, o Legislativo tem tido importante papel na formulação de políticas sociais, aprovando uma importante legislação de garantia de direitos, em que medidas distributivas e paroquialistas são exceções, e não a regra.

Nas atuais condições institucionais – concentração de poderes legis-lativos no Executivo e um processo decisório altamente centralizado no interior do Legislativo – a ação independente e individual dos parlamenta-res tem poucas chances de sucesso. Torna-se racional, portanto, atuar por meio dos partidos, a única forma mediante a qual os parlamentares serão capazes de exercer influência sobre a política pública e, dessa forma, pleite-ar mandatos junto ao eleitorado.

Não se pode considerar que o Executivo seja o contendor mais fraco nas negociações com o Legislativo. Os parlamentares não têm como colocar o Executivo em xeque individualmente. Para que essa ameaça seja efetiva, têm que coordenar suas ações. Já o Executivo deve levar a sério apenas as ameaças apresentadas coletivamente, uma vez que somente estas podem afetar os resultados de uma votação qualquer e, desta forma, aumentar o poder de barganha dos parlamentares em suas negociações com o Executivo. E, obvia-mente, o poder de barganha cresce com o tamanho da bancada, isto é, pequenos partidos não podem ser considerados como causadores de problemas para a governabilidade. Por definição, os pequenos partidos têm um poder de chantagem pequeno. Somente os grandes partidos podem trocar consistentemente apoio por políticas.

Entende-se por que os parlamentares delegam poderes aos líderes partidários. Agindo individualmente, terão pouca capacidade de extrair benefícios do Executivo. Nestes termos, negociações individuais poderiam até favorecer o Executivo. No entanto, do ponto de vista

Nas atuais condições institucionais –

concentração de poderes legislativos no Executivo e um processo decisório

altamente centralizado no interior do Legislativo –

a ação independente e individual dos

parlamentares tem poucas chances de sucesso

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do Executivo, negociar com partidos é vantajoso porque, dessa forma, obtém apoio mais estável e previsível no longo prazo, reduzindo os custos de transação ao não optar pela nego-ciação caso a caso. Na verdade, dada a distribuição de direitos legislativos em favor dos líde-

res partidários, a possibilidade de os partidos serem desconsiderados quer pelos parlamentares quer pelo Executivo é muito pequena. Ao resolverem o problema de coordenação com que os parlamentares se defrontam, os partidos passam a ser veículos das demandas coletivas.

O papel dos partidos, porém, vai muito além da mera acomodação pragmática e não-programática dos pleitos dos parlamentares. Cabe aos líderes partidários a árdua tarefa de conciliar os interesses eleitorais indi-viduais dos parlamentares com o seu posicionamento – a favor ou contra – em relação às medidas apresentadas pelo Executivo. A lógica da compe-

tição político-partidária na arena eleitoral não entra em conflito com a acomodação desses pleitos individuais. A legislação eleitoral não gera uma oposição inequívoca entre o interesse individual e o partidário. E os partidos desempenham papel fundamental em equilibrar as demandas diversas de suas clientelas eleitorais por bens particularistas e coletivos.

O que os partidários das reformas não notam é que a concentração de poderes legisla-tivos nas mãos do Executivo e dos líderes partidários produz alguns dos efeitos pretendidos. Não há qualquer evidência que dê apoio à noção de que o governo se encontra paralisado por falta de apoio partidário e parlamentar. Sendo assim, não há razões para diminuir o número de partidos e aumentar o poder de seus líderes, seja na arena congressual ou na elei-toral. Obviamente, isto não significa que se deva rechaçar ou ver como negativa qualquer reforma. Aperfeiçoamentos possíveis podem e devem ser buscados.

A questão central diz respeito às relações entre os objetivos pretendidos e as variáveis institucionais manipuladas. Nem sempre há clareza quanto a quais os problemas a serem atacados e, muito menos, sobre a real contribuição das instituições vigentes para a geração do quadro negativo que se quer alterar. Deve-se ainda levar em conta as inter-relações entre

as inúmeras variáveis a compor o quadro institucional em que se movimentam eleito-res e políticos. Deduzir comportamentos de variáveis institucionais não é uma tarefa

simples. A história está repleta de exemplos de reformas que produziram efeitos inversos aos pretendidos.

Notas

1 Ver Nelson Rojas de Carvalho, E no início eram as bases – geografia política do voto e do comportamento legislativo no Brasil, Rio de Janeiro, Editora Revan, 2003; Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi, “Incentivos Eleitorais, Partidos e Política Orçamentária”, Dados – Revista de Ciências Sociais, vol. 45, nº 2, 2002.

2 Ver Schmitt, Carneiro e Kuschnir, “Estratégias de campanha no horário gratuito de propaganda eleitoral em eleições proporcionais”. Dados [on line], vol. 42, nº 2, 1999.

O que os partidários das reformas não notam é que a concentração de poderes

legislativos nas mãos do Executivo e dos líderes

partidários produz alguns dos efeitos pretendidos

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Senador Eurico de Rezende e deputado Ulysses Guimarães, 1977. Foto de Luis Humberto.

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*Fabiano Santos, Doutor em Ciência Política pelo Iuperj, é professor e pesquisador.

Agenda oculta da reforma política

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1) Introdução

Os estatísticos utilizam uma ótima expressão para caracterizar equívoco muito freqüen-te entre analistas que interpretam como relações de causalidade meras associações temporais entre dois fenômenos: correlação espúria. Trata-se de lição básica em cursos de metodologia – o fato de dois fenômenos ocorrerem ao mesmo tempo não permite a inferência de que um seja causado pelo outro. Pois bem, o atual debate em torno da reforma política é marcado por uma imensa correlação espúria. O fato de termos vivido crises políticas, oriundas da descoberta de práticas ilícitas de membros do governo, no passado e no presente, comporta-mento também observado no Legislativo, tem levado à conclusão de que existe uma relação de causalidade entre o sistema político em seu atual formato e a proliferação de corrupção. Por conseguinte, basta alterar as regras, em particular as que regem a competição eleitoral para a Câmara dos Deputados, que o sistema passará a produzir representantes éticos e de alto padrão moral. A fragilidade do argumento é gritante.

O problema da corrupção e a proliferação de escândalos é fenômeno comum a todos os sistemas políticos nos quais os seguintes ingredientes se encontram associados: capitalismo, setor público ativo na economia, democracia com sufrágio universal, além de partidos em busca de financiamento para campanha. Ou seja, a corrupção é um problema em todos os lugares em que o capitalismo convive com democracia, independentemente do sistema político adotado. Os países que conseguiram diminuir as taxas de corrupção foram aqueles

que aperfeiçoaram as instituições de controle, como Ouvidoria, Ministério Público e Tribunais de Contas. É fato notório que no Brasil tais institui-ções têm aumentado sua participação e importância no processo político.

O mérito das principais propostas de reforma política atualmente em voga pode ser avaliado, todavia, quanto a sua capacidade de qualificar o siste-ma político brasileiro com relação a outros quesitos. Tome-se, como exemplo,

a estabilidade do quadro partidário e a proposta de implantação do chamado voto distrital-misto, o famoso modelo alemão. Não é objetivo deste artigo discutir as enormes dificuldades advindas da tentativa de adotar tal sistema em nosso país. Contudo, vale lembrar, à guisa de considerações introdutórias, que, de fato, alguns países adotaram o famoso modelo na esperan-ça de conferir mais estabilidade e consistência, accountability, enfim, ao seu sistema de partidos. Infelizmente, o resultado foi que grande parte deles longe estiveram de alcançar os objetivos colimados. Casos como o da Venezuela, Bolívia, México e Itália, Rússia, nos quais alguma forma de sistema misto é utilizada, raramente são lembrados pelos defensores deste tipo de reforma, mas a verdade é que todas essas nações enfrentam quadros partidários fragmentados, pulverizados e polarizados, o que significa que os efeitos benéficos do sistema sobre a qualidade da democracia não estão sendo observados. Voltando ao início da argumentação, e se a linha da correlação espúria é livre, pode-se argumentar contra o sistema e, evidentemente que de forma anedótica, que o modelo alemão não funciona em países de língua latina e russa!

O sistema político brasileiro, apesar das aparências, funciona de maneira satisfatória. Temos um sistema partidário estabilizado, com taxas de volatilidade cadentes, girando em torno de quatro a cinco partidos em equilíbrio de condições, e que expressa a pluralidade so-

O sistema político brasileiro, apesar das

aparências, funciona de maneira satisfatória

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cial radicada na sociedade. Temos uma disputa presidencial mais estabilizada ainda, baseada em torno de dois blocos, um de centro-esquerda e outro de centro-direita, que se revezam e continuarão a se revezar no poder, principalmente e à medida que a radicalização dê espaço ao bom senso e à disputa em torno de uma agenda para o país. Mudanças são bem vindas, desde que preservem o caráter radicalmente democrático de nossa arquitetura institucional, calcadas no presidencialismo, grande símbolo da incorporação política em um país desigual; no voto proporcional, garantia dos direitos de minoria em uma sociedade complexa e plural; e na lista aberta, espaço vital de preservação da accountability nas eleições para o Legislativo.

Nas linhas que se seguem centrarei minhas observações sobre o debate em torno da reforma política na questão do sistema de governo. Argumento que a principal linha de aperfeiçoamento institucional passa pelo fortalecimento do Legislativo, especificamente na geração de incentivos para que os partidos de oposição possam participar do processo decisório e alocativo de “dentro” do Congresso, e não por meio de um movimento de cooptação por parte do Executivo.

2) Sistema de governo: onde reside a diferença?

Às vésperas das eleições de outubro, voltou às colunas dos jornais e discursos de polí-ticos, principalmente de oposição, a questão do sistema de governo. Não basta a população ter se pronunciado duas vezes e com ampla maioria a favor do atual modelo – colocam-se os presidencialistas mais uma vez na defensiva. Ora, qual a grande diferença entre os dois sistemas? De imediato, é importante assinalar aquilo que não os distingue: estudos recentes e rigorosos sobre o assunto, bem como atenta observação da história recente dos países democráticos, comprovam que não existem vantagens de um sistema sobre o outro nos que-sitos transparência e honestidade. Ademais, é também verdade que a suposta superioridade do parlamentarismo no que concerne à estabilidade do regime foi contestada de maneira vigorosa pelas análises do cientista político José Antonio Cheibub, da Universidade de Illi-nois – a aparente instabilidade dos regimes presidenciais não passa de mais uma correlação espúria, ilusão alimentada pelo fato de serem os países presidencialistas, em sua maioria, membros do continente sul-americano e nações vítimas de ditaduras militares, estas, sim, as nações herdeiras de ditaduras militares, parlamentaristas ou presidencialistas, mais propen-sas a enfrentar crises e retrocessos em sua trajetória de redemocratização.

Mas, então, a pergunta retorna: qual a diferença entre os sistemas de governo? Vale a pena ainda explorar aquilo que, embora apareça como diferença, não distingue os dois sistemas em sua essência. Diz-se que os sistemas parlamentares garantem a emergência de governos majoritários, ao passo que os presidenciais permitiriam a formação de governos minoritários. Nada mais longe da verdade – em torno de 40% dos governos formados nos países parlamentaristas da Europa ocidental do pós-guerra não eram compostos por parti-dos que controlavam a maioria das cadeiras no Legislativo. Em uma palavra, a incidência de governos de minoria é tão comum no parlamentarismo quanto no presidencialismo. Argu-menta-se, além disso, que os sistemas presidenciais não geram incentivos para a formação de governos de coalizão, o que, mais uma vez, longe está de corresponder aos fatos da vida. Só para ficarmos em nosso continente, desde a última onda de redemocratização, o modelo

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institucional por excelência na América do Sul é o presidencialismo de coalizão, experiência rica, na qual se observam exemplos de sólida estabilidade como a Concertación no Chile, convivendo com momentos fugazes e turbulentos, como foi o caso, inédito na Argentina, de governo de coalizão com os radicais e a Frepaso.

Voltemos então ao tema das diferenças. Uma pergunta talvez elucide a dúvida funda-mental. Como é possível a formação de governos de minoria em sistemas parlamentaristas se a confiança da maioria do parlamento é necessária para a sustentação do governo? A ex-plicação é simples: ter a confiança do parlamento significa basicamente existir uma maioria partidária que pelo menos tolera o governo. Ora, tolerar um governo não é o mesmo que dele participar. Portanto, freqüentemente, governos se formam sem que do gabinete façam parte partidos cuja soma das bancadas alcance a maioria das cadeiras. É assim a prática mais comum na Escandinávia, em algumas ocasiões na França, na Espanha e vários outros países da Europa. Contudo, quando uma oposição não tolera o governo, aí, sim, um voto de des-confiança é aprovado, ou ocorre a derrota do governo em algum ponto importante de sua agenda, equivalendo à perda de confiança no gabinete, o que força a convocação de novas eleições – e é aqui que reside a diferença fundamental entre um e outro sistema.

Quando em um sistema parlamentar a maioria legislativa é formada por partidos que fazem oposição, o parlamento pode votar uma moção de desconfiança e haver a convocação de novas eleições, ao passo que essa possibilidade não existe no sistema presidencial, isto é, o governo pode sobreviver mesmo enfrentando uma oposição majoritária no Legislativo – outra não é a experiência predominante nos EUA do pós-guerra, os chamados governos divididos, nos quais a maioria que controla o Congresso não é formada pelo partido ao qual é filiado e pelo qual se elegeu o presidente. Vale lembrar a este respeito que as últimas elei-ções legislativas norte-americanas, consagrando os democratas como vitoriosos na Casa e no Senado, forneceram pedagógica oportunidade aos reformistas brasileiros de verificar como a possibilidade de um governo dividido não causou pânico em quem quer que seja. Do ponto de vista da condução do processo político e de negociação da agenda, os governos de mi-noria são certamente marcados por idas e vindas, negociações e, às vezes, conflitos abertos; todavia, isso em nada autoriza a conclusão segundo a qual as chances de estabilização do processo democrático, de sucesso econômico dos governos, da capacidade maior ou menor de aprovar agendas sejam maiores no parlamentarismo. De novo, todos os fenômenos que tornam o processo governativo mais lento e negociado, como, por exemplo, governos de minoria, de coalizão, ou os dois, ocorrem com a mesma freqüência num e noutro sistema. O que os diferencia, sim, é a competência do Executivo em dissolver o parlamento quando lhe parecer de conveniência política, na expectativa de aumentar seu poder de barganha no Legislativo, ou a prerrogativa deste de derrubar os mandatários do Executivo nas ocasiões em que a maioria parlamentar decide não tolerar a situação. No presidencialismo, a única forma, guardados casos extremos de má conduta, de interrupção de mandatos parlamenta-res e do chefe do Executivo é o velho e bom voto popular.

É verdade também que o sistema presidencial brasileiro apresenta diferenças importantes em relação ao norte-americano. Discutir as especificidades de nosso modelo e ao mesmo tem-po apontar alguns pressupostos de seu bom funcionamento é o objetivo da seção a seguir.

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3) Presidencialismo de coalizão: como evitar erros do passado e estabilizar o processo político institucional

Um governo normal tem ao final de seu mandato sempre coisas boas e ruins a mostrar. A reeleição do presidente Lula revela que boa parte da popu-lação aprova dimensões importantes de sua administração, mais especifica-mente pontos ligados ao desempenho da economia e do combate aos gravíssimos problemas so-ciais. Entre os aspectos positivos, todavia, não se pode incluir a estratégia adotada para se relacionar com o Congresso. Os pro-blemas vividos pelo governo com a base aliada no par-lamento, assim como o espaço conquistado pela oposição na organização e condução das CPIs constituem excelente aprendizado sobre o modo pelo qual não se deve dar a interação entre Executivo e Legislativo no Brasil.

A separação de poderes e o multipartidarismo formam a base de funcionamento de nos-sas instituições democráticas. Como efeito direto dessas características, surge a necessidade de organizar coalizões de apoio ao presidente no Legislativo, uma vez que são remotíssimas as chances de que o partido do presidente conquiste a maioria das cadeiras nas duas Casas do Congresso. Esse contexto institucional define o presidencialismo de coalizão, modelo de governança adotado no Brasil e em vários países da América do Sul, onde é freqüente a conjugação de presidencialismo e fragmentação partidária. Quais são os pressupostos do bom funcionamento do presidencialismo de coalizão? O exame dos últimos mandatos pre-sidenciais revela que pelo menos quatro pontos são fundamentais:

1) a decisão de montar a coalizão e a disposição de distribuir poder entre os partidos que demonstram o desejo de fazer parte do governo;

2) a redução tanto quanto possível do número de parceiros, assim como de sua heterogeneidade, a fim de reduzir os custos de transação política no interior da coalizão;

3) a distribuição proporcional de cargos no Executivo ao peso que os partidos têm na base aliada;

4) a definição de uma agenda legislativa que seja consenso na coalizão e a conquista dos postos-chave no Congresso tendo em vista fazer tramitar os pontos principais de tal agenda.

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A importância dos pontos enumerados acima pode ser medida através de uma rápida comparação do primeiro mandato do presidente Lula com o que ocorreu ao longo dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso. A tabela abaixo contém as informações necessá-rias para uma análise mais cuidadosa do tópico.

Tabela 1 - Duração, composição partidária, apoio parlamentar, proporcionalidade e percentagem de ministros apartidários dos ministérios formados entre 1995 e 2006Presi-dentes e seus ministé-rios

Período de duração

Partidos representados no ministério

Apoio na Câmara (nominal)

Proporcio-nalidade na distri-buição das pastas

FHC I-1 (01/95-04/96) PSDB-PMDB-PFL-PTB 56,3 0,57FHC I-2 (04/96-12/98) PSDB-PMDB-PFL-PTB-PPB-PPS 76,6 0,60FHC II-1 (01/99-03/99) PSDB-PMDB-PFL-PTB-PPB-PPS 74,3 0,70FHC II-2 (03/99-10/01) PSDB-PMDB-PFL-PPB-PPS 68,2 0,59FHC II-3 (10/01-03/02) PSDB-PMDB-PFL-PPB 62,0 0,68FHC II-4 (03/02-12/02) PSDB-PMDB-PPB 45,1 0,37LULA 1 (01/03-01/04) PT-PSB-PDT-PPS-PCdoB-PV-PL-PTB 49,3 0,64LULA 2 (01/04-06/05) PT-PSB-PPS-PCdoB-PV-PL-PTB-PMDB 62,0 0,51LULA 3 (06/05-08/05) PT-PSB-PCdoB-PV-PTB-PMDB-PL 59,8 0,56

LULA 4 (08/05-09/05)PT-PSB-PCdoB-PV-PTB-PMDB-PL

69,0 0,55

LULA 5 (09/05-04/06)PT-PSB-PCdoB-PV-PTB-PMDB-PP-PRB-PL

69,0 0,52

LULA 6 (04/06- ) PT-PSB-PCdoB-PV-PTB-PMDB-PP 58,4 0,52Dados cedidos por Amorim Neto.

As diferenças são significativas e podem ser sintetizadas em três dimensões, até certo ponto relacionadas aos itens expostos inicialmente: a durabilidade; o número e a natureza dos parceiros; a proporcionalidade entre cadeiras e pastas ministeriais e a magnitude de ministérios técnicos, isto é, sem filiação partidária. Com relação à durabilidade, percebe-se maior estabilidade durante os dois mandatos de FHC do que durante o governo Lula. De 1995 a 1998, apenas dois gabinetes foram compostos, número que se eleva um pouco no quadriênio 1999-2002. Nada que se compare, contudo, aos seis gabinetes montados pelo atual governo.

A explicação para tal instabilidade surge ao levarmos em consideração o número de par-tidos presentes em cada ministério – durante os dois mandatos de FHC, esse número oscilou de três a seis, ao passo que com Lula variou de sete a nove partidos. Chamamos atenção acima para o problema da heterogeneidade política, e isto fica ainda mais claro após o exame da tabe-la. Enquanto FHC trabalhou com partidos dispostos de forma contígua no espaço ideológico (PPB, PFL, PSDB, PMDB, PPS), Lula negocia com parceiros tão diversos quanto PP, PTB, PL, PMDB, PV, PCdoB, além do próprio PT.

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Vale a pena mencionar também o fato de terem presença importante no ministério Lula partidos que sobrevivem basicamente por conta do controle da patronagem e das

verbas sob controle do setor público. A coexistência de partidos orientados essencialmente para cargos (office seeking, na acepção de Strom, 1990) com partidos orientados para políticas (policy seeking, Strom, 1990) é difícil em qualquer contexto. Todavia, durante o governo Lula o peso do primeiro tipo de partidos acabou se intensificando por conta do gradual abandono de partidos como o PDT e o PPS, de tradição de esquerda, abandono ocorrido em nome da discordância em torno de policies. A conseqüência, no que tange à convivência entre Executivo e Legislativo foi a de que o já frágil equilíbrio alcançado inicialmente com a coalizão se tornou fonte de conflitos insolúveis ao redor de cargos, recursos do Estado para o benefício de clientelas e partidos. Nesse contexto, o governo é sempre presa fácil de

escândalos, o que implica a necessidade permanente de reajustes na composição partidária do ministério (ver Gallagher, Laver e Mair, 1992).

O princípio da proporcionalidade entre percentual de cadeiras no Legislativo controla-das por um partido que compõe a coalizão, isto é, seu peso na base de apoio, e o percentual de assentos no ministério é uma regra de ouro para a montagem de governos multipartidá-rios – o desrespeito a esse princípio, quando feito de maneira extrema, pode causar desequi-líbrios importantes no desempenho da base no parlamento.

O indicador fundamental neste particular, ou seja, que permite averiguar o grau de correspondência entre pastas ministeriais e força parlamentar dos partidos é o sugerido por Amorim Neto (2000), denominado de Taxa de Coalescência. Os valores referentes a cada período presidencial em exame aparecem na quinta coluna. A taxa se baseia no índice de desproporcionalidade de Rose (1984), cuja função é medir a distorção entre cadeiras e vo-tos ocorrida em cada eleição. No estudo de Amorim Neto, ministérios substituem cadeiras parlamentares e estas substituem os votos. Assim,

A necessidade de acomodar as várias facções internas do PT levou a que esse partido tivesse uma representação superdimensionada ao longo de todo o período do governo Lula, acarretando defecções e dificuldades de gestão da coalizão. O mesmo problema ocorreu de maneira significativamente mais tênue durante os oito anos de governo FHC – tirante o último ano deste e o primeiro do governo Lula, os demais sempre indicaram taxas de coa-lescência maiores de 1995 a 2002 do que de 2003 a 2006.

Em resumo, durante seu primeiro mandato, o presidente Lula, de fato, decidiu montar uma coalizão e distribuiu poder aos partidos que revelaram disposição de participar de um

Vale a pena mencionar também o fato de terem

presença importante no ministério Lula

partidos que sobrevivem basicamente por conta do

controle da patronagem e das verbas sob controle

do setor público

Taxa de Coalescência = 1-1/2 somatório |Si-Mi|Onde,

Mi= % de ministérios recebidos pelo partido i quando o gabinete foi escolhido;

Si= % de cadeiras ocupadas pelo partido i no interior do conjunto de cadeiras sob controle

dos partidos integrantes do ministério no momento em que este foi indicado.

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governo sob liderança petista; portanto, a primeira condição foi atendida. Contudo, o mes-mo não ocorreu com relação aos demais pontos destacados acima. O número de parceiros foi extremamente alto, bem como a dispersão ideológica dos partidos integrantes da base. A distribuição de pastas ministeriais longe esteve da proporcionalidade relativamente ao peso dos partidos no Congresso – pode-se dizer que o PT controlou muito, pouco restando aos demais parceiros. Finalmente, com exceção do primeiro ano de mandato, no qual uma agenda de reformas constitucionais ficou bem estabelecida como prioritária pelo governo, o restante do período ficou marcado por uma grande indefinição quanto ao que, essencial-mente, o governo gostaria de ver aprovado no Legislativo. Ademais, em vários momentos a oposição conseguiu emplacar nomes pouco palatáveis para o governo em postos-chaves da Câmara e do Senado, sendo o episódio que levou a vitória de Severino Cavalcanti à presi-dência da Câmara Baixa apenas o mais ruidoso deles.

4) Uma inovação radical: apostar em governos de minoria

Os problemas enfrentados pelo atual governo apenas em parte decorreram de suas próprias escolhas, ou seja, tiveram origem no puro e simples descuido em assunto que se mostrou de primeira importância. Todavia, parte significativa dos dilemas vividos por Lula e equipe derivou de restrições colocadas pelo ambiente político e institucional. Em primeiro lugar, a estrutura do conflito político-partidário, isto é, o modo pelo qual a força parla-mentar dos partidos dispostos a uma conduta mais ou menos cooperativa foi distribuída. Em segundo e mais importante lugar para fins de reforma política, a pouca flexibilidade

conferida pelo sistema político, em particular, pelo conjunto de atribuições decisórias depositadas nos Poderes Executivo e Legislativo. Do jeito que as coisas funcionam na política brasileira atualmente, poucas possibilidades restam ao presidente brasileiro a não ser governar com maiorias, freqüente-mente com supermaiorias parlamentares. Utilizando-se de raciocínio con-trafactual, poder-se-ia argumentar que boa parte das disfuncionalidades observadas recentemente não ocorreria se o governo optasse por montar no Legislativo uma base de apoio minoritária, porém mais enxuta e coesa, e partisse para a negociação de sua agenda com a oposição e independentes.

Uma outra lógica governamental adviria de uma decisão dessa na-tureza, como se viu, experiência comum no presidencialismo norte-ame-ricano e em diversos países parlamentaristas da Europa. A história revela,

entretanto, que para o bom funcionamento desse tipo de governo é essencial que o governo encontre no Congresso atores que estejam dispostos e capacitados a negociar uma agenda para o país. Sob essa perspectiva, a atual estrutura institucional que rege as relações Execu-tivo-Legislativo concentra muito poder no primeiro, principalmente no que tange o orça-mento e o poder de iniciar legislação, através das MPs, e torna o segundo irresponsável, da ótica das políticas públicas de alcance mais geral.

Em outras palavras, governos de minoria pressupõem a existência de algumas condi-ções político-institucionais. No Brasil, os benefícios advindos da condição de ser governo

Do jeito que as coisas funcionam na política brasileira atualmente, poucas possibilidades restam ao presidente

brasileiro a não ser governar com maiorias,

freqüentemente com supermaiorias

parlamentares

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são muito altos, assim como os custos de estar na oposição, principalmente para pequenos partidos e partidos intermediários. Uma plataforma interessante que visa ao aperfeiçoa-mento democrático no Brasil consiste, pois, em capacitar o Legislativo para participar de maneira mais eficiente no processo decisório, na implantação de políticas públicas, através de seu acompanhamento, e do processo de alocação de recursos orçamentários. Retomando alguns pontos de artigo que publiquei em número anterior da Plenarium (Santos, 2004), destacaria, pelo menos, duas dimensões: 1) aumentar o poder de alocação de recursos do Congresso; 2) aumentar o poder decisório das comissões técnicas permanentes.

Quanto ao primeiro aspecto, trata-se de discutir a inserção do Congresso no processo orçamentário brasileiro. Duas medidas são essenciais. A primeira é tornar o orçamento, que é aprovado a cada ano pelo Legislativo, imperativo e não apenas autorizativo. Retirar o poder de contingenciar o gasto da União é vital para conferir maior responsabilidade às decisões dos

congressistas, assim como para redistribuir o poder político da burocracia do Ministério da Fazenda em favor da dimensão representativa do regime democrático. A segunda medida essencial, no sentido de se aumentar o po-der de alocação do Congresso, diz respeito à própria forma pela qual a peça orçamentária é discutida e aprovada no Congresso. Atualmente o processo é concentrado em uma comissão mista, sendo de vital importância a figura do relator do projeto, em geral escolhido entre os mais confiáveis membros da base aliada ao governo. Uma maneira de contornar essa situação é divi-dir o projeto orçamentário por áreas e enviar os diversos subprojetos para comissões pertinentes, fornecendo-lhes o poder de modificar as estimativas

de receitas e despesas ali contidas. Uma vez aprovada a proposta da comissão temática, esta a envia para a comissão de orçamento e suas subcomissões, que tratariam de apreciar a proposta de substitutivo daquela. Relevante ressaltar que tal divisão de tarefas implica modificar a forma de tramitação do projeto de orçamento, que deixaria de ser unicameral, passando a tramitar simultaneamente nas duas Casas do Congresso.

A segunda dimensão relevante consiste no problema do ritmo e locus de tramitação das matérias enviadas às comissões permanentes. Duas questões básicas devem ser consideradas: a) a questão da urgência; e b) a questão das comissões especiais.

Existem dois tipos de urgência: a constitucional, de prerrogativa unilateral do chefe do Executivo, e a regimental, que pode ser solicitada por parlamentares segundo vários crité-rios, mas cuja aprovação depende da concordância do Plenário. Em comum nos dois casos, o fato de uma matéria sob tramitação urgente ter necessariamente de estar em Plenário para votação em 45 dias, tendo ou não sido apreciada pela comissão de mérito. O ponto central é que os principais projetos de interesse do Executivo, excetuando-se projetos de emenda constitucional, recebem o carimbo de urgentes, seja mediante pedido do próprio presiden-te, utilizando-se de sua prerrogativa constitucional, seja pela via de acordo entre líderes. Não é difícil entender que o recurso sistemático do instrumento do pedido de urgência, incidindo especialmente sobre matérias importantes, acaba por enfraquecer o trabalho das comissões permanentes, diminuindo, por conseguinte, os incentivos para uma participação mais ativa nesses órgãos.

No Brasil, os benefícios advindos da condição de

ser governo são muito altos assim como os custos

de estar na oposição, principalmente para pequenos partidos e

partidos intermediários

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A questão das comissões especiais é mais um mecanismo de amesquinhamento das atribuições das comissões permanentes. Projetos de emenda constitucional e projetos de código não tramitam em comissões permanentes. Ademais, matérias complexas, apreciadas por mais de três comissões permanentes, podem ser retiradas destas e enviadas para uma comissão especial, encarregada unicamente de proferir parecer sobre tais matérias. Uma comissão especial difere de uma permanente pelo fato de ser constituída apenas para dar conta da tarefa especificada no momento de sua criação, isto é, trata-se de comissão ad hoc cuja membership é escolhida caso a caso. O ponto central é que a composição das comissões especiais pode ser manipulada pelos líderes, responsáveis pela indicação de seus membros, independentemente de expertise no tema em apreciação, apenas para dar aquiescência às finalidades do governo. As decisões de uma comissão permanente, contudo, para cuja mon-tagem algum grau de dedicação e especialização nos temas pertinentes é pressuposto de seus membros, não são de fácil manejo por parte das lideranças do bloco governista.

A facilidade de se pedir urgência para a tramitação dos projetos de interesse do governo e a prática de montagem de comissões especiais diminuem dramaticamente os incentivos para que os parlamentares, governistas ou de oposição, participem do processo decisório, desprovidos que são de um locus a partir do qual sua contribuição possa ser levada em con-sideração. Impõe-se, portanto, por um lado, rediscutir os critérios tanto de indicação de tramitação especial para projetos, restringindo, por exemplo, o número destes que podem tramitar com urgência em um mesmo intervalo de tempo, ou o tamanho do apoio necessá-rio para aprovar a urgência constitucional; e, por outro, permitir às comissões permanentes a apreciação de projetos de emenda constitucional e de código, além de aumentar os requi-sitos de complexidade tendo em vista criar uma comissão especial.

5) Conclusão

A conclusão é que a grande discussão em torno da reforma política encontra-se deslo-cada em seu foco mais precípuo, pois não se trata de intervir nos mecanismos eleitorais, mas sim de como tornar o Congresso definitivamente co-responsável, para o bem e para o mal, pela agenda governamental no Brasil. Além de atingir um fim em si mesmo louvável – o for-talecimento da Casa por excelência da representação política –, esse enfoque sobre a reforma institucional teria como conseqüência benéfica tornar o processo governativo mais flexível, conferindo ao presidente e à oposição um leque maior de alternativas no que tange a suas finalidades de tramitação e negociação da agenda e sobrevivência política respectivamente.

Referências

AMORIM NETO, Octavio (2000), “Gabinetes presidenciais, ciclos eleitorais e disciplina legislativa no Brasil”. Dados, vol. 43, nº 3, p. 479-519.

SANTOS, Fabiano (2004), “A reforma do Poder Legislativo”. Plenarium: Câmara dos Deputados, ano 1, nº 1, p. 26-40.

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*Jairo Nicolau, Doutor em Ciência Política pelo Iuperj, onde é professor e pesquisador.

o debate sobre a reforma do sistema eleitoral no Brasil

Cinco opções, uma escolha:

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O novo Congresso que toma posse em fevereiro de 2007 deve, enfim, debater e votar a tão esperada reforma política. Entre os diversos tópicos que entrarão em pauta, um dos mais importantes é a reforma do sistema eleitoral usado nas eleições para a Câmara dos Deputa-dos. O propósito deste artigo é avaliar as cinco opções de sistema eleitoral que freqüentam o debate sobre o tema no Brasil: as três versões de representação proporcional (lista aberta, lista fechada e lista flexível); o sistema majoritário-distrital; e a combinação do sistema ma-joritário com proporcional, conhecido no Brasil pelo impreciso nome de distrital-misto.

Dois pontos devem ser salientados. O primeiro é que nada impede que, a exemplo de outros países, diferentes sistemas eleitorais sejam adotados para as eleições para Câmara dos Deputados, Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores. Por exemplo, o voto majori-tário-distrital pode funcionar nos municípios, mas dificilmente produziria bons resultados na disputa para a Câmara dos Deputados.

O segundo ponto é que, ainda que tenha preferência pessoal por um determinado sis-tema (a lista flexível), o propósito aqui não é fazer uma defesa dessa opção, mas mostrar os diversos aspectos (positivos e negativos) associados a cada proposta.

A lista aberta

A lista aberta está em vigor no Brasil desde 1945. Dezesseis legislatu-ras da Câmara dos Deputados foram escolhidas por meio desse sistema. Já nos anos 50, alguns políticos, tais como Carlos Lacerda e Milton Campos, chamaram a atenção para o fato de a lista aberta incentivar a competição entre os candidatos de uma mesma legenda, o que enfraqueceria os parti-dos. Esse foi o principal argumento apresentado pelos críticos da lista aber-ta até recentemente, quando outros pontos passaram a ser salientados.

O primeiro deles refere-se à transferência de votos entre candidatos de um mesmo partido ou coligação. A eleição de Enéas Carneiro (2002) e Clodovil Hernandez (2006), ambos como deputados federais por São Pau-lo, é apresentada como caso exemplar dessa tendência. Os dois concorre-ram por micropartidos, obtiveram mais votos do que o quociente eleitoral e ajudaram os seus partidos a eleger deputados com reduzido número de votos. Na realidade, o espanto com casos como esses deriva do desconhe-cimento de como é feita a conta para distribuir as cadeiras na disputa para

deputado federal. Ainda que as campanhas sejam concentradas nos candidatos, a distribui-ção das cadeiras é feita a partir dos votos totais obtidos por uma legenda (ou coligação). O eleitor, em geral, vota em um nome de sua predileção, mas não sabe que, no processo de apuração, os votos desse candidato serão somados aos de outros. Se o candidato tiver mais votos do que o quociente eleitoral, ele ajuda outros nomes da lista a se elegerem; se tiver menos, será ajudado pelos votos de outros candidatos.

Um segundo ponto refere-se à desigual distribuição geográfica dos deputados eleitos. Hoje, há uma crescente tendência ao municipalismo nas eleições para a Câmara dos Depu-tados e, sobretudo, para as Assembléias Legislativas: muitos eleitores escolhem candidatos

O eleitor, em geral, vota em um nome de sua predileção, mas não

sabe que, no processo de apuração, os votos desse candidato serão

somados aos de outros. Se o candidato tiver mais votos do que o quociente

eleitoral, ele ajuda outros nomes da lista a se

elegerem; se tiver menos, será ajudado pelos votos

de outros candidatos

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com fortes vínculos com a cidade onde residem. Mas o sistema de lista aberta não garante que todas as áreas de um determinado estado (ou município, nas eleições para vereador) tenham representantes com vínculos mais diretos com essas áreas (domicílio eleitoral, car-reira política). Muitas vezes, grandes municípios não elegem representantes (pois dispersam o voto entre muitos candidatos), enquanto pequenos municípios, por concentrarem o voto em um número reduzido de candidatos, acabam elegendo deputados. Sem contar que os padrões não são seguidos em duas eleições consecutivas. A aleatoriedade do sistema tem sido vista como um ponto frágil da lista aberta, sobretudo pelos que defendem o vínculo territorial como uma virtude a ser garantida em um sistema representativo.

Uma terceira crítica atribui à lista aberta um estímulo ao clientelismo e à corrupção. Como os deputados são incentivados a criar vínculos territoriais ou de identidade (religio-

so, profissional, corporativo) com os eleitores durante a campanha, eles precisam cultivar, ao longo do mandato, algum tipo de prestação de con-tas específico para essa “clientela”: emendas do orçamento; ação junto aos orgãos do Executivo federal ou estadual para implementar políticas que favoreçam as suas bases; apresentação de proposições legislativas.

O incentivo do sistema de lista aberta para que os deputados eleitos cultivem uma relação estreita com clientelas específicas não significa que essa relação derivará necessariamente para a corrupção. Quanto às emen-das do orçamento, há casos de corrupção (por exemplo, o escândalo do su-perfaturamento das ambulâncias), mas na grande maioria das situações, os deputados procuram garantir que verbas sejam liberadas para a realização de obras em suas bases eleitorais.

Poderia o sistema eleitoral estar associado à corrupção? É pouco razo-ável creditar escândalos políticos somente ao procedimento adotado para escolha dos representantes. A Itália e o Japão, dois países que passaram por escândalos que envolveram boa parte da elite política nos anos 90, trocaram os seus sistemas eleitorais por sistemas mistos; a Itália abandonou

um sistema de lista aberta, e o Japão, uma variante de sistema majoritário em distritos que elegiam poucos representantes. Denúncias de corrupção eleitoral atingiram a Democracia Cristã alemã (sistema misto) e o PSOE espanhol (lista fechada).

Na realidade, existem muito poucos estudos consistentes comparando o grau de cor-rupção entre os países. Também sabemos pouco por que alguns países são mais corruptos do que outros, e por que a corrupção é variável entre as diferentes regiões de um mesmo país. A razão é simples: o fenômeno é difícil de ser mensurado e avaliado. As pesquisas compara-tivas, que geralmente lidam com percepções da elite sobre o grau de corrupção em um dado país, são muito criticadas pela metodologia utilizada, que, em geral, padece de problemas de confiabilidade e de validade.

Um estudo do cientista político finlandês Lauri Karvonem, que comparou o sistema eleitoral de setenta países, chamou a atenção para um ponto vulnerável dos sistemas de voto preferencial (lista aberta e flexível). Como o financiamento é obtido pelos candidatos individualmente, e a prestação de contas é de responsabilidade dos candidatos, haveria um

Poderia o sistema eleitoral estar associado

à corrupção? É pouco razoável creditar

escândalos políticos so-mente ao procedimento

adotado para escolha dos representantes. A Itália e o Japão, dois países que passaram por escândalos

que envolveram boa parte da elite política

nos anos 90, trocaram os seus sistemas eleitorais

por sistemas mistos

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controle menor dos dirigentes e dos órgãos centrais do partido sobre os gas-tos de campanha. Acredito que a prática do sistema proporcional no Brasil nos anos recentes mostra tais dificuldades. Combinamos grandes distritos eleitorais, um grande número de candidatos e de partidos. Na eleição para deputado federal em 2002 concorreram 702 candidatos em São Paulo e 560 no Rio de Janeiro. Mesmo em um pequeno estado como Alagoas, 75 nomes disputaram. É quase impossível examinar cuidadosamente as contas de tantos candidatos.

Em resumo: não existe associação empírica ou lógica entre a lista aber-ta e a corrupção, mas o controle dos gastos de campanha é mais difícil em sistemas de representação proporcional com voto preferencial. Tal ten-dência seria agravada no Brasil devido ao alto número de candidatos que disputam as eleições.

O principal argumento em defesa do sistema de lista aberta é o grau de escolha que ele oferece aos eleitores. Em geral, a possibilidade de escolher um determinado candidato em uma lista de nomes é contrastada com o

sistema de lista fechada, no qual o eleitor pode apenas votar em um partido. Essa liberda-de de escolha permitiria aos eleitores utilizarem o voto como instrumento de punição e recompensa, enquanto no modelo de lista fechada candidatos impopulares e acusados de corrupção poderiam ser colocados nas primeiras posições da lista.

A lista fechada

A Comissão Especial de Reforma Política – presidida pelo deputado Alexandre Car-doso (PSB-RJ), e tendo como relator o deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO) – apresentou seu relatório final em 2003, com a sugestão da lista fechada. Os eleitores deixariam de votar em nomes, e passariam a votar exclusivamente na legenda; cada partido ordenaria a lista de candidatos antes das eleições.

O principal argumento em defesa da lista fechada é que ela fortaleceria os partidos. Em primeiro lugar, o processo de escolha dos candidatos ganharia enorme importância, o que vitalizaria os partidos. Em segundo lugar, os partidos passariam a ter um papel predominan-te nas campanhas, já que os eleitores passariam a votar exclusivamente nas legendas. Além disso, a lista fechada foi sugerida por ser a melhor opção no caso de adoção do financia-mento de campanha feito exclusivamente com recursos públicos. Essa sugestão do Relatório Caiado é correta: se a prioridade da reforma é introduzir o financiamento público integral, a melhor escolha é a lista fechada.

O fortalecimento dos partidos, visto pelos defensores da lista fechada como virtude, é considerado risco pelos seus críticos. O argumento é o de que a lista fechada produziria uma “oligarquização” (essa é a palavra utilizada) dos partidos brasileiros. Os chefes, os dirigentes de cada seção estadual controlariam a feitura da lista, colocando seus aliados nas primeiras posições, e seus adversários entre os últimos nomes. A tese da oligarquização é acompa-nhada por exemplos hipotéticos: imagine fulano organizando a lista no estado x; beltrano,

Combinamos grandes distritos eleitorais, um grande número de candidatos e de

partidos. Na eleição para deputado federal em

2002 concorreram 702 candidatos em São Paulo e 560 no Rio de Janeiro.

Mesmo em um pequeno estado como Alagoas,

75 nomes disputaram. É quase impossível examinar cuidadosamente as contas

de tantos candidatos

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sanguessuga notório, mas chefe do partido no estado z, posicionando-se na cabeça da lista. Restaria ao eleitor dos partidos x ou z a resignação, já que perderia a liberdade conferida pelo sistema de lista aberta de votar em nomes.

Obviamente, as coisas poderiam se passar desse jeito. Mas há de se considerar dois aspectos. Muitos países se valem dos sistemas de lista fechada com sucesso. Portugal e Espa-nha, por exemplo, adotaram-na ainda na fase de redemocratização e conseguiram organizar um sistema partidário consistente. A África do Sul e Israel têm utilizado o sistema de lista

fechada para favorecer determinados grupos étnicos e religiosos; a Argenti-na, para garantir a representação feminina no Legislativo. A Suécia utilizou com sucesso a lista fechada até 1994. Não há nenhuma evidência de que os partidos nesses países sejam menos democráticos do que os de outras democracias.

Poderíamos esperar que a lista fechada estivesse associada a uma me-nor renovação parlamentar (uma evidência indireta de “oligarquização”). A pesquisa feita pelos cientistas políticos ingleses Richard Matland e David Studlar, que comparou 25 países diferentes, mostrou que não há nenhuma relação entre o sistema eleitoral e a taxa de renovação parlamentar.

Outra premissa equivocada da crítica da “oligarquização” é imaginar que o processo de seleção de candidatos não mudaria sob a vigência de um novo sistema eleitoral. Hoje os eleitores podem votar em um dos candida-tos, mas a lista de nomes é selecionada pelos partidos de maneira fechada.

Em geral, os nomes são escolhidos pelos dirigentes partidários e aprovados nas convenções pouco democráticas.

Com a maior importância conferida aos partidos no sistema de lista fechada, também é plausível imaginar que poderíamos ter partidos menos “oligarquizados” (com primárias e convenções mais disputadas, por exemplo) do que os que temos hoje. Além disso, é possível introduzir na lei mecanismos “antioligárquicos”. O primeiro é garantir que os lugares na lista serão distribuídos na proporção dos votos obtidos pelas diversas chapas que disputarão a convenção. O segundo é assegurar que na convenção partidária, que escolherá os nomes da lista, se adote o voto secreto.

Em vez da “oligarquização”, acredito que o maior problema do sistema de lista fecha-da é a ausência de um mecanismo de accountability personalizada, ou seja, uma forma de estimular uma ligação mais direta dos representantes com os seus eleitores. Sabemos que o sistema atual tem uma série de distorções, mas os deputados são movidos pela necessidade de sempre estarem conectados às suas bases. No sistema de lista fechada, a principal mo-tivação do deputado é cultivar o trabalho partidário (pois é este que garante a boa posição na lista na eleição seguinte). Por isso, o parlamentar tem muito pouco interesse de prestar contas de seu mandato à população em geral. Não esqueçamos de que o sistema também poderia ser implementado nos estados e municípios, onde a relação entre representados e representantes é ainda mais forte.

A principal vantagem da lista flexível é a de poder

combinar simultaneamente a vontade do partido e a dos eleitores. Os partidos

apresentam uma lista ordenada de candidatos;

caso o eleitor concorde com a lista, vota na legenda; caso queira

votar em um candidato específico pode fazê-lo

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A lista flexível

Alguns países europeus (Bélgica, Holanda, Suécia, Dinamarca, Noruega, Áustria) têm empregado uma versão de representação proporcional, a lista flexível, sistema em que os partidos ordenam a lista de candidatos, tal qual o sistema de lista fechada, mas o eleitor pode votar em um candidato específico ou, em alguns casos, até reordenar a lista.

A principal vantagem da lista flexível é a de poder combinar simultaneamente a vonta-de do partido e a dos eleitores. Os partidos apresentam uma lista ordenada de candidatos; caso o eleitor concorde com a lista, vota na legenda; caso queira votar em um candidato específico, pode fazê-lo.

Que eu saiba, até hoje, nenhuma proposta de adoção da lista flexível foi apresentada no Congresso Nacional. Como acredito que ela pode ser uma alternativa para o aperfeiçoa-mento da representação proporcional no Brasil, apresento uma proposta de como poderia funcionar. Em linhas gerais, a principal mudança seria na contagem dos votos de legenda, que seriam transferidos para os primeiros nomes da lista:

1. os partidos apresentam aos eleitores uma lista de candidatos em ordem de preferência;2. os eleitores continuam votando em um nome da lista ou na legenda;3. o total de votos obtidos por um partido (nominal mais legenda) é dividido pelo número

de cadeiras que o partido elegeu, obtendo-se uma quota;4. os votos de legenda são transferidos para o primeiro nome da lista até que este atinja

a quota, e os votos em excesso são transferidos para o segundo candidato, e assim sucessivamente;

5. caso um candidato obtenha uma votação nominal superior à quota, ele tem prioridade na lista de eleitos.

O exemplo hipotético abaixo ilustra como quatro cadeiras eleitas por um partido se-riam alocadas para os candidatos da lista. Os 15 candidatos do partido, somados, obtiveram 180 mil votos, e o partido obteve mais 20 mil votos de legenda, perfazendo um total de 200 mil votos. O total de votos (200 mil) é dividido por quatro (as cadeiras eleitas), encontran-do-se a quota de 50 mil votos.

Os votos de legenda são transferidos para o primeiro nome da lista até que ele atinja a quota. No exemplo, o candidato 1 recebe mais 10 mil votos. Os votos de legenda remanes-centes são transferidos para o segundo da lista, que recebe 10 mil votos.

A primeira cadeira é alocada para o candidato 8, que obteve 55 mil votos nominais. A segunda iria para o candidato 1, que obteve 50 mil votos (40 mil nominais + 10 mil de legenda transferidos). A terceira iria para o candidato 5, com 32 mil votos nominais. A úl-tima cadeira é conquistada pelo candidato 2, com 22 mil votos (12 mil nominais + 10 mil de legenda transferidos).

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Distribuição de cadeiras em um sistema de lista flexível

Candidato VotosTransferências do voto de legenda

Total Situação

1 40.000 10.000 50.000 2° eleito2 12.000 10.000 22.000 4° eleito3 15.000 15.0004 10.000 10.0005 32.000 32.000 3° eleito6 1.000 1.0007 2.000 2.0008 55.000 55.000 1° eleito 9 1.500 1.50010 1.000 1.00012 500 50013 18.000 18.00014 500 50015 1.000 1.000LEGENDA 20.000TOTAL 200.000

Na prática, quanto mais eleitores votam na legenda, mais o sistema se aproxima de um sistema de lista fechada. Na situação oposta, com altos contingentes de votos nominais, o sistema se aproximaria do modelo de lista aberta vigente.

A principal vantagem da lista flexível seria a de fortalecer os partidos sem privar os eleitores da possibilidade de votar em candidatos individuais. Com a apresentação da lista ordenada, os partidos provavelmente teriam forte incentivo para paulatinamente concentrar a campanha na reputação do partido, num esforço de diferenciação com outras legendas.

À maneira da lista aberta, a lista flexível também não garantiria uma representação territorial equânime. Essas distorções poderiam, no máximo, ser minoradas, já que os partidos que julgarem relevantes podem levar em conta o critério geográfico como fundamental para ordenar os candidatos.

O sistema majoritário (o voto distrital)

Durante os anos 60 e 70 o voto distrital apareceu no meio político como a principal alternativa para a reforma eleitoral no Brasil. Mas desde a redemocratização esta opção foi perdendo adeptos. Somente na campanha eleitoral de 2006, o voto distrital pas-sou novamente a ser defendido por alguns políticos e intelectuais ligados ao PFL e ao PSDB.

O voto distrital é utilizado no Reino Unido e, sobretudo, nas ex-colônias britânicas (Estados Unidos, Canadá, Índia e Bangladesh). O movimento das reformas eleitorais no

A principal vantagem da lista flexível seria a

de fortalecer os partidos sem privar os eleitores da possibilidade de votar em

candidatos individuais. Com a apresentação

da lista ordenada, os partidos provavelmente

teriam forte incentivo para paulatinamente

concentrar a campanha na reputação do partido, num

esforço de diferenciação com outras legendas

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mundo todo tem sido na direção de abandonar esse modelo. Na última década, treze países que adotavam o sistema majoritário-distrital mudaram para a representação proporcional ou para diferentes versões de sistemas mistos.

O Reino Unido, matriz do modelo majoritário, já usa a representação proporcional com lista fechada nas eleições para o parlamento europeu, e variantes do sistema misto para eleger representantes do parlamento da Escócia, do País de Gales e de Londres. A Assem-bléia da Irlanda do Norte é escolhida por um sistema de representação proporcional. Nos últimos anos, duas comissões especiais propuseram o abandono do voto distrital no Reino Unido. O diagnóstico é que o sistema distorce a representação partidária de maneira grave, o que seria inadmissível nas modernas democracias. O voto distrital foi abandonado pela Nova Zelândia em 1993, após duas eleições em que um partido com menos votos ficou com mais cadeiras na Câmara.

Dois argumentos aparecem com mais freqüência entre os defensores do sistema dis-trital. O primeiro é que ele reduz a fragmentação partidária. De fato, as democracias com

sistemas eleitorais majoritários tendem a ter sistemas partidários menos fragmentados. Mas estudos recentes mostram que em países nos quais o sistema partidário não é nacionalizado – casos da Índia e da parte majori-tária do sistema eleitoral da Rússia – o voto distrital pode estar associado a alta fragmentação.

O segundo argumento é que o voto distrital permitiria um maior controle dos eleitores sobre os seus representantes. A eleição de um único deputado por distrito facilitaria uma maior visibilidade da atividade par-lamentar e uma relação mais freqüente entre eleitores e representantes. De fato, na média, os cidadãos têm mais contato com os deputados nos países que utilizam os sistemas majoritários do que nos outros. Mas a variação dentro de cada família de sistemas eleitorais é enorme, o que revela que outros fatores também influenciam a freqüência com que os eleitores pro-curam (ou são procurados) pelos deputados.

Os sistemas mistos

Por conta das distorções produzidas na relação entre votos e cadeiras recebidos pelos partidos, o sistema majoritário vem deixando de ser uma opção, seja nas reformas eleitorais de antigas democracias, seja nas escolhas institucionais de novas. A garantia de uma relação mais ou menos equilibrada entre votação e representação é hoje um valor fundamental das modernas democracias. Isso explica o sucesso dos sistemas mistos, que procuram combinar características das duas famílias de sistemas eleitorais (majoritário e proporcional).

No Brasil, desde os anos 60, diversas propostas de adoção de sistemas mistos, quase sempre inspiradas no sistema eleitoral da Alemanha, vêm sendo apresentadas no Congresso. Durante os anos 90, falar em reforma eleitoral foi quase sempre considerar a opção por alguma variação de sistema misto. Hoje, diversos políticos e intelectuais, sobretudo ligados ao PT e PSDB, defendem a introdução dos sistemas mistos no Brasil.

O diagnóstico é que o sistema distorce a

representação partidária de maneira grave, o que seria inadmissível nas modernas

democracias. O voto distrital foi abandonado

pela Nova Zelândia em 1993, após duas eleições em que um partido com menos votos ficou com

mais cadeiras na Câmara

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O principal argumento em defesa dos sistemas mistos é que eles garantem simultane-amente a accountability territorial (deputados eleitos em distritos de um representante) e a representação partidária (deputados eleitos em listas partidárias).

As confusões aparecem quando se começa a discutir para além dessa apresentação su-perficial. Existem muitas formas de combinar a representação proporcional e majoritária nas eleições para o mesmo cargo. Mas qualquer opção exige que uma série de perguntas sejam respondidas, alguma delas bastante técnicas. Quantos votos dará cada eleitor, um ou dois? A parte proporcional será eleita independentemente da majoritária, ou haverá um mecanismo de correção? Os candidatos podem concorrer simultaneamente na lista e no distrito? As cadeiras de cada estado na Câmara dos Deputados serão definidas previamente às eleições, ou variarão como na Alemanha? A contagem dos votos proporcionais será feita no âmbito nacional ou no dos estados? Quem será responsável por desenhar os distritos de um representante? O sistema será utilizado nas eleições para as Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores? Haverá cláusula de barreira?

Mais do que qualquer opção, o sistema misto exige a montagem de uma complexa en-genharia institucional, sobretudo se ele também for adotado na disputa para as Assembléias e Câmaras Municipais, com impacto sobre o comportamento dos partidos e dos eleitores. Distritos terão que ser desenhados nos estados (que não serão os mesmos na disputa para deputados estaduais). Os dirigentes partidários deverão ordenar a lista de candidatos e ainda escolher os nomes dos que disputarão as eleições majoritárias nos distritos. Os eleitores te-rão que aprender a lidar com um sistema muito mais complexo, no qual ele poderá ter que fazer duas escolhas para a Câmara dos Deputados e duas para a Assembléia Legislativa.

O maior obstáculo para a adoção de um sistema misto deve-se justamente à dificuldade de criar um consenso mínimo para responder a todos esses desafios técnicos. Os legisladores deverão examinar se a adoção de um sistema eleitoral complexo trará os benefícios desejados para o sistema representativo brasileiro. Decisão difícil.

Esse “passeio” em torno dessas cinco opções deixa claro que todas elas têm pontos po-sitivos e negativos. É quase impossível se convencer acerca da superioridade teórica de um modelo sobre o outro. Escolhas reais são feitas também em função de cálculos, de desin-formação e de tentativas de favorecimento. Além da premissa da imperfeição dos sistemas eleitorais, nossos legisladores deverão não perder de vista a pergunta óbvia: que sistema eleitoral pode ajudar a aperfeiçoar a representação política no Brasil?

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Delfim Netto, na CPI do Salário, 1978. Foto de Luis Humberto.

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*Bruno P. W. Reis, Doutor em Ciência Política pelo Iuperj, é professor de Ciência Política do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisador do CNPq.**Este artigo deve a sua existência à confiança generosa de Antônio Octávio Cintra, que perseverou no convite, mesmo quando eu pareci fraquejar quanto à capacidade de escrevê-lo em tempo hábil. Ele tem sua origem no Seminário Nacional sobre Ética nas Eleições Municipais, realizado na Câmara dos Deputados em maio de 2004, onde tive ocasião de tomar parte em um painel que discutia a reforma política juntamente com o deputado Ronaldo Caiado e o senador Jefferson Peres, sob a coordenação do deputado Chico Alencar. Na última hora, o texto chegou a beneficiar-se também de sugestões tópicas de Dawisson Belém Lopes, Fábio Wanderley Reis e Mário Brockmann Machado. Quero agradecer a todos, e muito especialmente a meus alunos das disciplinas Política IV e Política Brasileira II do Curso de Graduação em Ciências Sociais, da UFMG, que ao longo destes dois anos me auxiliaram pacientemente no esforço de amadurecer algumas idéias vagas sobre o funcionamento da política no Brasil contemporâneo. É claro, porém, que todos os erros, lacunas e ingenuidades aqui presentes são de minha exclusiva responsabilidade.

O presidencialismo de coalizão sob pressão:

da formação de maiorias democráticas à formação democrática de maiorias**

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O sistema político que hoje opera no Brasil, nascido da transição democrática de 1985 e formalmente estabelecido na Constituição Federal de 1988, reúne uma série de atributos paradoxais e – duas décadas depois – continua a desafiar nossa capacidade de diagnóstico. Num plano bastante imediato, o atual regime já é a mais longeva experiência propriamente democrática de nossa história – o que deveria torná-lo objeto de justas homenagens, por mais que parte desse sucesso possa ser atribuída também a circunstâncias externas. Porém, quando olhamos à nossa volta, nas ruas, nos jornais, o que encontramos não é exatamente uma atmosfera de júbilo e congratulações pela auspiciosa efeméride. Antes, um mal-estar difuso, que se revela sobretudo em diagnósticos pessimistas da conjuntura, ceticismo quan-to ao futuro, cinismo generalizado nas ruas quanto aos políticos. Essa situação torna-se ainda mais intrigante se consideramos o crescente otimismo que predomina nos diagnósti-cos acadêmicos do regime, liderados pelas pesquisas conduzidas por Argelina Figueiredo e Fernando Limongi. Mesmo concedendo o necessário desconto às inevitáveis oscilações de humor da opinião pública – afinal tão volúvel – parece haver algo mais a se averiguar nas relações entre a “estrutura” e a “conjuntura” em nosso caso.

1) A estrutura Nos circuitos acadêmicos, essa ambivalência se manifesta num debate intenso quanto

aos méritos e vícios de nosso arranjo institucional. Preliminarmente, creio que não será de todo injusto dizer que a literatura sobre a operação de nosso sistema político – especialmente no que toca ao funcionamento da Câmara dos Deputados e sua relação com o Poder Execu-tivo – terá sido despertada de seu “sono dogmático” pelos trabalhos de Argelina Figueiredo e Fernando Limongi.1 Com saudável escrúpulo empírico, eles trataram de submeter a um sistemático escrutínio uma série de teses decorrentes de um diagnóstico pessimista sobre o sistema político brasileiro que – com variadas formulações ou ênfases – tinha ampla circula-ção antes deles: que nossos partidos eram arremedos de partidos, sem consistência organiza-cional ou disciplina em plenário; que a agenda de nossos governos era travada por uma rede imanejável de interesses particularísticos que dominavam o Congresso Nacional. Mais fun-damentalmente, alegava-se com freqüência que a mistura específica que caracterizava a nossa experiência republicana – presidencialismo, federalismo, multipartidarismo, bicameralismo e representação proporcional, que Sérgio Abranches (1988) batizara como “presidencialismo de coalizão” – impunha pesados ônus ao governo, dificultando sua operação e tornando-o particularmente propenso a crises pelas dificuldades em produzir maiorias sólidas e estabili-dade política. Figueiredo e Limongi argumentaram persuasivamente que semelhantes temo-res não se justificavam: descendo à análise de dados sobre votações em plenário na Câmara dos Deputados, eles mostraram que o governo brasileiro tem obtido, desde 1988, altíssimo grau de aprovação de suas matérias no Congresso, com taxas de sucesso comparáveis às de qualquer governo democrático; que os partidos brasileiros se comportam no plenário de maneira disciplinada, quanto aos encaminhamentos dos líderes, e consistente com uma classificação espacial de sua posição ideológica no eixo esquerda-direita; que o Plenário é, portanto, previsível – e que o governo brasileiro tem, tanto quanto qualquer outro governo, conseguido aprovar aquelas matérias pelas quais efetivamente se empenha.

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O curioso, entretanto, é que os achados de Figueiredo e Limongi não chegam a desau-torizar, pelo menos não em termos teóricos, o ceticismo do diagnóstico de Abranches, pois a principal razão por eles apontada para a estabilidade e o sucesso dos governos brasileiros em sua relação com o Congresso reside em dispositivos adicionais, específicos à ordem jurídica posterior a 1988 – e obviamente ausentes, portanto, da caracterização feita por Abranches em 1988, com o propósito de descrever a experiência democrática brasileira até ali, entrecortada que fosse. Esses novos dispositivos incluem uma considerável centralização de prerrogativas nas mãos tanto dos líderes partidários no Congresso quanto, sobretudo, do próprio presidente da República, em parte resultantes do regime autoritário anterior. Além da instituição do Colégio de Líderes, bem como de uma série de novas competências dos mesmos líderes quanto à designação de membros de comissões, esses novos dispositivos in-cluem as prerrogativas presidenciais de editar medidas provisórias, iniciar matéria orçamen-tária e requerer urgência em matérias de seu interesse, assim como propor emendas consti-tucionais (Figueiredo & Limongi, 2006: 252-7). Na prática, a presença desses dispositivos resulta em grande concentração do poder de agenda no Executivo, contrabalançando o efeito paralisante diagnosticado por Abranches na conjunção de nossos traços institucionais básicos. Mas se esses dispositivos excepcionais são de fato necessários para a produção de maiorias em nosso sistema, então pode-se presumir que o diagnóstico básico se mantém, em alguma medida. E que, na ausência deles, o Congresso Nacional, tal como é hoje constitu-ído, de fato se enredaria numa trama confusa de interesses relativamente paroquiais, difícil de deslindar rumo à produção de maiorias políticas minimamente estáveis e relativamente previsíveis. Figueiredo e Limongi não se cansam mesmo de lembrar, a propósito, que boa parte da literatura da época compartilhava preocupações análogas às de Abranches, com prognósticos um tanto desesperançados sobre as perspectivas do caso brasileiro (Linz, 1990, 1991; Sartori, 1993, 1994; Lamounier, 1994).

Assim, permanece um problema – ainda que ele talvez soe muito “acadêmico” à pri-meira vista: se, para mantermos funcionando o sistema presidencialista, multipartidário, fe-derativo, bicameral, proporcional caracterizado por Abranches (e com lista aberta), o preço a ser pago é concentrar de maneira dramática o controle da agenda legislativa nas mãos de uns poucos atores estratégicos (sobretudo nas do próprio presidente da República), qual é o propósito de se manter tudo isso? Pra inglês ver? Com efeito, se se trata apenas de produzir maiorias e decidir rotineiramente, evitando paralisias decisórias, Figueiredo e Limongi nos mostram de maneira convincente que nosso sistema funciona – e que portanto é possível que essas coisas todas coexistam estavelmente, contrariamente ao que sugeria a literatura. Mas, como é óbvio, essa dimensão – embora incontornável – não é a única pela qual se pode avaliar um sistema político. Particularmente um sistema que se queira democrático.

Para mantermos a parcimônia neste ponto e evitarmos listas um tanto arbitrárias de atributos desejáveis de um regime democrático, cabe reportarmo-nos − como fizeram há pouco Anastasia e Nunes (2006) − ao muito conhecido enquadramento que Arend Lijphart (1984, 1999) proporciona à análise política comparada. Muito fundamentalmente, Lijphart identifica dois imperativos a que podem servir as instituições políticas. De um lado, um imperativo de natureza decisionística, voltado para a viabilização de decisões e

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do exercício do poder por uma autoridade constituída por alguma maioria que a legitime: o princípio majoritarista. Do outro lado, um imperativo de natureza consociativa, voltado para a desconcentração do poder e a proliferação de pontos de veto, que induzam persuasão e barganha entre atores-chave do processo político, de modo a evitar decisões unilaterais potencialmente tirânicas: chamêmo-lo o princípio consensualista. Mais abstratamente ainda, pode-se apontar nesse enquadramento a postulação de uma dimensão subjacente a todas as instituições políticas, cujos formuladores têm de decidir sobre a concentração ou dispersão relativa de pontos de veto no sistema.2 Dispositivos de inspiração consensual dispersam

os pontos de veto; dispositivos de natureza majoritária os concentram. Como se pode intuitivamente inferir, todo sistema político, considerado amplamente, consiste numa combinação peculiar de dispositivos majoritários e consensuais em busca de um desejável equilíbrio que lhe confira ao mesmo tempo capacidade de ação e aceitação ampla. As simpatias do próprio Lijphart, no entanto, dirigem-se inequivocamente na direção de dispositivos consociativos – em reação a uma atenção desproporcional à dimensão majoritarista, que ele acredita existir na ciência política e faz remontar até o século XIX, pelo menos no que toca a sistemas partidários (Lijphart, 1999: 64).

É importante reconhecer que Figueiredo e Limongi não afirmam pes-soalmente um ponto de vista que se possa dizer “majoritarista” – e com freqüência os vemos a sublinhar positivamente as eventuais derrotas e em-baraços que chega a sofrer o governo em sua relação com o Congresso. Mas

é inequívoco que o foco básico da controvérsia em que eles se vêem metidos já há uma década consiste em afirmar que o nosso governo governa, sugerindo uma polêmica implícita contra uma tese inicial de conteúdo fundamentalmente majoritarista: eles polemizam com autores que afirmavam que o governo brasileiro (com seu presidencialismo multipartidário) não conseguiria as maiorias necessárias para governar – ou que somente as conseguiria a um custo impraticável. Figueiredo e Limongi mostraram que isto não necessariamente se dá e, recen-temente, Limongi (2006: 256) tem-se inclinado mesmo por desqualificar a própria idéia de um contraste nítido entre parlamentarismo e presidencialismo, comparando as prerrogativas legislativas do presidente brasileiro às do chefe de governo em regimes parlamentaristas.

De um ponto de vista majoritarista, talvez caiba a analogia: sob o funcionamento roti-neiro de ambos os casos, o chefe de governo enfeixa considerável poder de agenda e torna-se o ator central do processo legislativo. Se contudo pensamos na questão sob uma ótica “consensualista”, preocupados com a dispersão relativa de pontos de veto e, portanto, com a existência de controles mútuos internos ao sistema decisório, a situação é dramaticamente distinta. Por mais que primeiros-ministros com freqüência disponham de delegações do parlamento para governarem com ampla liberdade de movimento, concentrando em larga medida prerrogativas legislativas de facto, não é irrelevante o fato de que seu mandato deve-se exclusivamente à confiança do parlamento, e é sumariamente revogável por uma mudan-ça de opinião de uma parcela dos parlamentares que seja suficiente para deslocar a maioria prevalecente no Plenário. Em regimes presidencialistas, o presidente costuma ser ao mesmo

Independentemente do que costuma de fato se passar no mundo real, aqui as prerrogativas

formais fazem diferença: conceder a um presidente prerrogativas legislativas

comparáveis às de um primeiro-ministro é montar

um sistema com uma formidável concentração

do poder político

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tempo chefe de governo e chefe de Estado, dono de um mandato fixado numa eleição majo-ritária direta de caráter marcadamente plebiscitário; já o primeiro-ministro parlamentarista é, em princípio, um chefe partidário demissível ad nutum tanto pela maioria parlamentar quanto por seus próprios liderados. Independentemente do que costuma de fato se passar no mundo real, aqui as prerrogativas formais fazem diferença: conceder a um presidente prerrogativas legislativas comparáveis às de um primeiro-ministro é montar um sistema com uma formidável concentração do poder político.

Figueiredo e Limongi nos mostraram de maneira convincente que o governo brasilei-ro consegue de fato as maiorias necessárias para governar – e a um custo praticável, pelo menos no curto prazo. Talvez, porém, esse custo ainda seja relativamente alto, ou – dito de outra forma – talvez haja razões para crer que ele possa ser significativamente reduzido, pois receio que o preço pago por nossa “governabilidade” nos moldes atuais seja a concentração da competência legislativa na figura do presidente da República a um ponto que roça o avil-tamento da atividade parlamentar e arrisca desmoralizar gravemente o Congresso Nacional aos olhos da opinião pública, o que, patentemente, já está acontecendo.

Mesmo sem pretender descurar da dimensão “majoritarista” do problema (pois siste-mas políticos, obviamente, devem ser capazes de produzir decisões), acredito que concorda-remos todos quanto à importância de um enquadramento equilibrado de nossa apreciação do sistema político, com igual atenção a ambas as dimensões, avaliando, sim, sua capaci-dade de governar, de tomar decisões tempestivas quanto à agenda pública, mas também a capacidade de fazê-lo sem prejuízo grave para o exercício do veto por minorias relevantes em pontos cruciais do processo – que force a eventual maioria a ouvi-las. Caso contrário, correríamos o risco de endossar um sistema que, embora aparentemente operacional, aliena apoio progressivamente, à medida que o tempo passa.

É difícil alegar que nosso sistema se saia bem nesse escrutínio: o equilíbrio que logra-mos alcançar nos joga rumo a extremos. De um lado, como Figueiredo e Limongi nos mos-tram, o Regimento da Câmara e a Constituição de 1988 contêm dispositivos que asseguram extraordinário poder de agenda para o presidente da República, ele mesmo eleito por voto direto de âmbito nacional em dois turnos. Do outro, dispomos de um sistema eleitoral ex-tremamente descentralizador no preenchimento das cadeiras parlamentares: representação proporcional, em 27 distritos estaduais, com listas abertas e competição intensa (e crescen-te), fortemente pulverizada entre muitíssimos candidatos disputando entre si as cadeiras de deputados por cada estado. Mesmo as cadeiras dos senadores, majoritárias, são preenchidas por maioria simples, em pleitos de turno único, com suplentes anônimos que não chegam a disputar a eleição de maneira visível durante a campanha. Por que consagrar a exigência de maioria absoluta para os cargos executivos e dispensá-la para o senado? Presumivelmente porque os senadores não têm tanta importância...

Fabiano Santos, em linha análoga, tem insistido na relevância de se reverem, rumo a uma desconcentração de prerrogativas, os instrumentos normativos que regulam a relação entre os Poderes, a bem de uma redução da desorganização de nossa vida partidária. Num tom um tanto genérico, ele sugere que se poderia distribuir “de maneira mais equânime o poder alocativo entre o Executivo e comissões do Legislativo”, assim como onerar o acesso

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a postos ministeriais, talvez pela perda do mandato parlamentar (Santos, 2006: 295). Pesso-almente, como está claro, compartilho sua preocupação. Receio, contudo, que a conexão eleitoral constitua-se em variável incontornável na mudança da relação de forças entre Executivo e Legislativo vigente no Brasil.

Não se pode imaginar que a melhor forma de equilibrar o sistema político possa consistir na produção de uma compensação extremada entre um sistema eleitoral fortemente inclinado à dispersão de poder no pre-enchimento das cadeiras parlamentares, de um lado, e regras fortemente concentradoras na regulação da operação do Congresso e de sua relação com o Executivo, do outro. Carlos Pereira e Bernardo Mueller (2003) já se referiram em linhas análogas àquilo que Lucio Rennó (2006a) descre-vera como “incentivos institucionais contraditórios” presentes no sistema eleitoral brasileiro, que, não obstante, gerariam um regime político está-vel e equilibrado. Acredito que, até pela percepção externa das justifica-ções normativas do regime, alcançaríamos equilíbrio mais confiável se nos dispuséssemos a dotar as eleições parlamentares de um nível mais alto de concentração de poder, sobretudo intensificando o protagonismo parti-dário nas campanhas eleitorais, visando a constituir um parlamento mais estruturado, povoado de atores coletivos mais poderosos que os de hoje – em condições, talvez, de dispensar os extraordinários poderes de agenda

até aqui conferidos ao Executivo brasileiro. Em suma, estaríamos mais próximos de um regime equilibrado de concentração/dispersão de pontos de veto se combinássemos um sistema eleitoral que dispersasse menos o poder com formas de regulação interna da vida parlamentar que não precisassem concentrar tantas prerrogativas nas mãos do presidente e dos líderes.

2) A conjunturaO sistema político hoje vigente no Brasil porta consigo, assim, uma profunda ambiva-

lência em sua própria lógica constitutiva: em seus traços mais grossos, visíveis à distância, trata-se de um sistema descentralizado e que dispersa poder; nas suas engrenagens mais miúdas, discerníveis apenas por um exame mais detido, descobre-se um sistema fortemente centralizado, que concentra extraordinárias prerrogativas no topo da hierarquia. Pior: esses dispositivos microscópicos, reconhecíveis apenas para o especialista ou o insider, parecem ter-se constituído até aqui em sua condição mesma de estabilidade.

Para espíritos mais realistas, essa ambivalência normativa poderia ser em princípio re-legada a um segundo plano na análise – desde que o sistema continuasse indefinidamente a produzir as maiorias e as decisões necessárias à continuidade de sua operação. Não fosse a possibilidade de vir a converter-se ela mesma num fator de corrosão e, no devido tempo, de risco para o sistema cuja operação a princípio favorece. Suspeito que já tenhamos teste-munhado a operação desse efeito ao longo do tempo – com a erosão continuada da imagem dos políticos, dos partidos e do Congresso junto à opinião pública, com tonalidades parti-cularmente dramáticas ao longo dos últimos dois anos.

Acredito que, até pela percepção externa das

justificações normativas do regime, alcançaríamos

equilíbrio mais confiável se nos dispuséssemos a dotar as eleições parlamentares de um nível mais alto de

concentração de poder, sobretudo intensificando

o protagonismo partidário nas campanhas eleitorais,

visando a constituir um parlamento mais

estruturado, povoado de atores coletivos mais

poderosos que os de hoje

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Sem dúvida, convém tomar com alguma cautela o clima que se depreende das con-versas nas ruas, das leituras dos jornais e dos noticiários da tevê – sobretudo num país tão marcadamente desigual como o Brasil, e que acaba de reeleger seu presidente com 60% dos

votos. De fato, certo desencantamento quanto à política pode mesmo ser lido como um sintoma saudável de amadurecimento da opinião pública, que ao longo do processo se torna, assim, mais desconfiada dos políticos, menos maniqueísta em sua apreensão das disputas, mais propensa à vi-gilância e – ao fim e ao cabo – menos manipulável, talvez. Talvez certa ressaca quanto à política seja o preço natural a ser pago após vinte anos tão repletos de escândalos políticos – ainda mais depois que a safra mais recen-te de denúncias engolfou aquele que era aos olhos de muitos a última vestal da cena política, o PT. É possível mesmo alegar que, em certa medida, essa sucessão de escândalos seja menos o sintoma de uma degeneração recente dos costumes do que – ao contrário – o reflexo da operação de mecanismos institucionais de controle e de uma propensão crescente à vigilância inter-na e externa dos atos dos agentes do setor público, desdobramento natural do processo mesmo de democratização política.

Ainda assim, receio que os impactos potenciais da crise deflagrada com a denúncia do dito “mensalão” pelo ex-deputado Roberto Jefferson sejam fundos o bastante para dividir a história do debate recente sobre re-forma política no Brasil em dois momentos: antes e depois da crise política

de 2005. Até o escândalo, a reforma política, independentemente do juízo que se faça sobre sua real importância para o país, era antes de mais nada um esporte cultivado por alguns in-telectuais e uns poucos políticos especialmente insatisfeitos com as regras vigentes. De fato, é justo admitir que sua importância terá sido ocasionalmente exagerada por espíritos mais inclinados a aderir com entusiasmo a fórmulas mágicas, verdadeiras panacéias que – por encanto – resolveriam muitos de nossos males. As propostas variavam, mas freqüentemente evocavam-se desenhos que, numa penada, reorganizavam o sistema político de alto a baixo, sem atenção nem ao controle dos efeitos eventualmente contraditórios de tantas mudanças simultâneas, nem à viabilidade política da aprovação das propostas que poderiam requerer drásticas mudanças na própria Constituição.

Predominantemente, a comunidade de cientistas políticos reagiu com louvável ceticis-mo a essas especulações e tendeu a participar do debate com a devida sobriedade. Particu-larmente depois da aparição dos primeiros resultados de Figueiredo e Limongi, houve um nítido reforço na atmosfera de ceticismo quanto às reformas – que talvez tenha tido o mé-rito de nos impedir de embarcar às cegas em experimentos institucionais de conseqüências imprevisíveis. Somando-se a isso a desconfiança política com que um intelectual do porte de Wanderley Guilherme dos Santos já vinha desde antes (1994) recebendo as sugestões de mudanças na legislação eleitoral, produziu-se no país um clima intelectual muito peculiar quanto a essa matéria. De um lado, uma deterioração progressiva da imagem dos políticos e do sistema político junto à opinião pública; do outro, uma disseminação crescente, entre os profissionais da ciência política, do referido ceticismo quanto às possibilidades de solu-

É possível mesmo alegar que, em certa medida, essa

sucessão de escândalos seja menos o sintoma de

uma degeneração recente dos costumes do que – ao

contrário – o reflexo da operação de mecanismos

institucionais de controle e de uma propensão

crescente à vigilância interna e externa dos

atos dos agentes do setor público, desdobramento

natural do processo mesmo de democratização política

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ção de nossos males por uma reforma política. Em favor dos meus co-legas, deve-se admitir que essa reforma é freqüentemente evocada por seus defensores de uma forma, sim, meio mágica: a política tem pro-blemas; então, reforme-se a política, e as coisas vão melhorar. Infelizmente, isso nem sem-pre é verdade, pois, por pior que esteja a situação, ela sempre pode piorar. A sensibilidade para essa possibilidade é uma das face-tas mais saudáveis do conser-vadorismo político – e é ver-dade que, particularmente no que toca a redesenhos de regras eleitorais e partidárias, iniciativas legislativas normalmente se ramificam numa caótica rede de conseqüências concatenadas em cascata, dificilmente pre-visíveis de antemão.

Muito se aprendeu sobre o funcionamento de nosso sistema político ao longo desses anos, sob essa atmosfera cética. O problema é que o predomínio desse “conservadorismo institucional”, para onde confluíram de fato perspectivas originariamente muito distintas quanto ao funcionamento ideal do sistema (Wanderley Guilherme, basicamente olhando para o que poderíamos chamar de sua representatividade democrática; textos de Argelina e Limongi, mirando realisticamente a governabilidade), terminou – ao sabor das polêmicas travadas – por induzir certa cristalização de posições no meio acadêmico que terá even-tualmente prejudicado o debate arejado e a identificação de meios-termos possíveis que encaixassem, num mesmo diagnóstico, tanto as funcionalidades do sistema quanto suas mazelas (que, afinal, certamente também existem).3 Receio, portanto, que aquela atmosfera sobriamente cética no meio profissional tenha em algum momento virado o fio rumo a um conservadorismo institucional um tanto militante, que começa a se aproximar do extremo de tratar com reservas a própria idéia de reformas políticas – tese que, tomada a sério, nos condenaria ao clã e ao tacape por toda a eternidade, com a possível ressalva dos casos de violência revolucionária.

A natureza da crise de 2005 propiciou novo enquadramento para a questão da reforma política. Contudo, a comunidade da ciência política – talvez presa de seu, já àquela altura,

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instalado conservadorismo na matéria – reagiu à crise de maneira um tanto defensiva (foi possível ouvir colegas de profissão na televisão a alegar que a crise era moral...) e falhou em dar a importância necessária a esse deslocamento. Deixou-se pautar pela apropriação mais ime-

diatamente jornalística da crise (quem sabia o quê... quem seria punido ou não... os desdobramentos para 2006...) e não sublinhou com a devida ênfase a face institucional do escândalo.

Bem entendido, não se trata aqui de mais um esforço voltado para livrar a cara dos envolvidos no episódio, com a surrada alegação genérica de “crise sistêmica”. Mas, muito simplesmente, de apontar que um aspecto relevante da crise de 2005, raramente mencionado, diz respeito ao fato de ela ter sido uma crise com importantes ramificações institucionais, mais do que, por exemplo, a crise que levou ao impeachment de Fernando Collor. E isso independentemente do juízo que façamos sobre o desempenho das instituições no episódio, ou mesmo da ausência de qualquer ameaça mais palpável à normalidade institucional, pois a crise de 1992 dizia respeito sobretudo a acusações de achaques, feitos por pessoas ligadas ao presidente, sobre fornecedores do governo, com vistas a enriquecimento pessoal. Após o dramático desfecho, o sistema político podia gabar-se de haver detectado e neutralizado a atuação da quadrilha – mesmo ao preço do mandato do

presidente da República. As instituições pareciam robustas e sadias, portanto – cumprindo devidamente o papel que delas se espera.

Desta vez, porém, embora os desdobramentos da crise não tenham chegado a ponto de derrubar o presidente, as denúncias se referiam muito mais diretamente ao cerne do sistema político – e não poderiam ser sanadas nem mesmo se Lula caísse, ou se todos os 513 depu-tados fossem cassados, pois a crise dizia respeito, afinal, ao relacionamento entre os poderes Executivo e Legislativo e, dada a linha de defesa adotada por Delúbio Soares, ao financia-mento das campanhas eleitorais no Brasil. Dificilmente poderia haver dois temas mais sen-síveis para a operação das democracias modernas – e cometeremos uma grave ingenuidade se imaginarmos que vícios graves de procedimento em temas institucionais tão centrais ao sistema podem ser resolvidos com a mera troca dos fulanos encarregados. De fato, muitos de nós embarcamos nesse mesmo gênero de ingenuidade maniqueísta em 2002, durante o “oba-oba” que cercou a ascensão de Lula ao poder. Porém, assim como devemos ter apren-dido que o combate à corrupção não se resume à troca de bandidos por mocinhos, mas à implementação penosa e gradual de políticas anticorrupção, devemos ter em mente agora que problemas graves em pontos tão sensíveis de nosso mapa institucional clamam por soluções institucionais e que, portanto, a crise de 2005 nos defronta com o imperativo de revermos as regras que emolduram as relações Executivo-Legislativo, assim como o controle do financiamento das campanhas.

É difícil exagerar a gravidade do que está em jogo aqui. A admissão pública, oficial, de que a democracia brasileira é incapaz de detectar o emprego em larga escala de recursos não contabilizados nas campanhas eleitorais (e de que o governo brasileiro ocasionalmente pode recorrer a esses mesmos recursos para irrigar sua influência junto a congressistas) implica

Assim como devemos ter aprendido que o

combate à corrupção não se resume à troca de bandidos por mocinhos,

mas à implementação penosa e gradual de

políticas anticorrupção, devemos ter em mente

agora que problemas graves em pontos tão

sensíveis de nosso mapa institucional clamam por

soluções institucionais

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simplesmente admitir que não somos capazes de controlar o abuso do poder econômico na política brasileira. E, portanto, compromete as perspectivas de isolamento democrático do sistema político frente a influências espúrias provenientes das naturais (e, em nosso caso, profundas) desigualdades econômicas vigentes, produzindo uma grave fissura na le-

gitimidade do regime político junto à população. (Voltaremos a esse tema adiante, quando discutirmos o financiamento público das campanhas. Re-servemo-lo por enquanto.)

Poder-se-iam, em princípio, ignorar essas mazelas de natureza, talvez, um tanto filosófica. Se os governos governam, se maiorias se produzem, se as votações se fazem e as decisões são tomadas, então, qual é o problema? O problema é que se nos habituamos à rotinização de práticas pouco jus-tificáveis perante a opinião pública, então tenderá a disseminar-se junto ao público a opinião de que o modus operandi do sistema político é vil – e com tanto mais força quanto mais a estabilidade do sistema vier a depender em alguma medida dessas práticas. Isso, para dizer o mínimo, não favorece suas perspectivas de sobrevivência a longo prazo. E isso, espera-se, deveria

preocupar conservadores institucionais – afinal de contas, não faz sentido empenharmo-nos contra modificações institucionais negociadas nas regras eleitorais se o preço desse empenho for o risco de eventual colapso do sistema como um todo na próxima esquina.

Entendo que essa dimensão do problema ganha clara preeminência a partir de 2005. Pois “o rei está nu”. Já estava antes, alegar-se-á: “todo o mundo” sempre soube que financiamento de campanhas é um problema complicado em qualquer lugar do mundo, e de precário con-trole entre nós. Mas agora alguém já gritou, pra todo o mundo ouvir, que “o rei está nu”. Deu no Jornal Nacional durante meses, o próprio presidente falou que todo o mundo faz, o ex-pre-sidente falou de joio e trigo (Reis, 2005: 13). Ou seja, agora, além de todo o mundo saber que “o rei está nu”, todo o mundo sabe que todo o mundo sabe − e ninguém pode mais, portanto, fingir não ter percebido. Conforme a circunstância, isso pode fazer toda a diferença.4

Portanto, em vez de se refestelar no espetáculo televisivo das CPIs, o Congresso teria cumprido melhor seu papel na crise se tivesse tratado de legislar. Outras instituições da República compartilham com ele a competência de investigar. Mas só o Congresso Nacio-nal poderia ter legislado sobre a matéria. Apesar de ser justo que se diga que, toda vez que um político falava em reforma política durante a crise, havia sempre um jornalista no dia seguinte a falar em “manobra diversionista”, “pizza”, que a hora era de punir os culpados etc. Agora, acabamos de cometer a temeridade de preencher muitos dos principais cargos da República numa eleição bastante desmoralizada e em um contexto com forte tendência à polarização política em torno da figura do presidente. Isso não é uma combinação pro-missora, ainda mais se o presidente concentra tantas prerrogativas. Oxalá a economia inter-nacional nos poupe de turbulências nos próximos anos. Se não, alguma conjuntura adversa poderá nos apanhar com as portas escancaradas para os demagogos de plantão, candidatos a caudilho. Não terá sido prudente esperar para ver.

O Congresso teria cumprido melhor seu papel na

crise se tivesse tratado de legislar. Outras

instituições da República compartilham com ele a

competência de investigar. Mas só o Congresso

Nacional poderia ter legislado sobre a matéria

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3) A reformaEntretanto esperamos. Pelo menos até aqui. Não bastasse o fato de apoiarmos as condições de estabilidade do sistema numa con-

centração de prerrogativas legislativas presidenciais que expõe a imagem dos parlamentares a permanente vilificação pelos editoriais dos jornais, agora, quando os vícios do sistema político ricocheteiam rumo à face da própria Presidência, permitimo-nos ignorar riscos tangíveis e preenchemos os mandatos em todo o sistema legislativo e executivo estadual e fe-deral do país sem alteração significativa de procedimentos. Em caso de crise aguda, o apelo ao respeito às autoridades democraticamente constituídas estará enfraquecido − e somente na hora dramática saberemos quanto.

Desde que se instalou a crise, a reforma política começou a ser ocasionalmente bran-dida com mais força, tanto pelos seus defensores de sempre quanto pelo próprio governo, como pronta resposta institucional ao escândalo. Imediatamente começaram a proliferar propostas de modificações das mais diversas naturezas na legislação eleitoral, e o governo encarregou o ministro da Justiça de coordenar um grupo formado também pelo Ministé-rio da Coordenação Política e pela Secretaria-Geral da Presidência da República, além do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (Agência MJ de Notícias 2005), para “analisar todas as propostas existentes sobre o tema” e entregar em 45 dias ao presidente “um diagnóstico para iniciar a reforma política no país” (alguém viu?). Do outro lado, alegavam os mais cautelosos que não seria muito adequado realizar uma reforma política num mo-mento de crise como aquele, e que seria temerário improvisar uma reforma no afogadilho.

O curioso é que não havia necessidade de improvisação alguma. Enquanto se fazia esse barulho todo, dormitava no Congresso, meio esquecido, o Projeto de Lei no 2.679/2003, de autoria da Comissão Especial de Reforma Política, que apenas dois anos antes funcionara ao longo de 10 meses no lugar devido: a Câmara dos Deputados. E ainda executara com vagar (26 reuniões, 7 audiências públicas) a mesma tarefa que a comissão do Executivo se propu-nha fazer às pressas, em 45 dias: “estudar todos os projetos de reforma política apresentados na Casa e elaborar uma proposta ampla e unificada do tema” (Soares & Rennó, 2006: 14). Parece-me inequívoco que, se se trata de discutir a sério alguma reforma na legislação elei-toral e partidária brasileira, é esse o projeto que se reveste da legitimidade necessária para balizar os termos da discussão. É a ele que devemos nos reportar.

No início dos anos 90, o debate que antecedeu a malograda reforma constitucional de 1993 foi marcado por um voluntarismo muito mais entusiasmado do que a atmosfera que hoje cerca as discussões sobre o funcionamento do nosso sistema político. Até por anteceder o plebiscito sobre sistema de governo, o leque das opções cogitadas era muito mais vasto e abarcava literalmente qualquer modificação que se quisesse imaginar no desenho de nos-sas instituições políticas, como representação distrital uninominal, sistema distrital misto à maneira alemã, e incluía a discussão de variadas formas de regimes parlamentaristas, presi-dencialistas etc. Embora contando com um leque um tanto residual de simpatizantes, até mesmo o regime monárquico era considerado. Dada essa falta de enquadramentos mínimos e a dispersão resultante, o debate tendeu a produzir pouco mais que dogmatismo em uns poucos – e perplexidade na grande maioria. Naquele contexto, terminei por adotar como

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minha a posição comparativamente sóbria e prudente então defendida por Jairo Nicolau (1993). Sem recusar liminarmente a discussão de mudanças no sistema, Jairo preconiza-va cautela: antes de partirmos para uma reorganização drástica que ninguém pode saber onde vai dar, seria bom nos dedicarmos a melhorias em nossa representação proporcional já existente. E haveria dois pontos onde claramente caberiam melhorias: o problema das coligações nas eleições proporcionais e, sobretudo, o das cadeiras alocadas não aos partidos,

mas aos deputados.São dois pontos que violam a própria idéia de proporcionalidade que

subjaz ao sistema. Sua premissa básica (idealizada que seja) é que os par-tidos representam, grosso modo, diferentes correntes de opinião existentes dentro da comunidade política. É por isso que os deputados se elegem den-tro de um quociente que porventura tenha sido alcançado por seu partido (ou coligação). Seria fácil minimizar as pequenas distorções causadas pelas coligações com a observância de alguma forma de proporcionalidade inter-na à coligação, como aponta Maria do Socorro Braga (2006: 235-7). Mas é simplesmente contrário ao mero princípio da representação proporcional que o deputado, uma vez eleito, se torne o dono da cadeira por ele ocupa-da. Se o deputado pode mudar de legenda, carregando consigo o seu lugar no parlamento, então a distribuição das cadeiras deixa de guardar relação necessária com o resultado eleitoral – e abre-se a possibilidade de se bar-

ganhar a maioria parlamentar para além do momento eleitoral. Ora, se é possível negociar a maioria na forma de migrações partidárias, não podemos ter dúvidas: ela será negociada. Se, ao contrário, a cadeira pertence ao partido, imediatamente cristaliza-se no resultado eleitoral uma relação de forças partidárias parlamentares que perdurará até nova consulta ao eleitorado, e os partidos tornam-se naturais protagonistas de qualquer composição de maio-rias governamentais no plenário. Toda a discussão um tanto arrevesada acerca de exigências de “fidelidade partidária”, prazos de filiação e mesmo cláusulas de barreira torna-se muito menos importante.

O PL 2.679/2003 – que hoje tramita na Câmara dos Deputados – baseia-se em preo-cupações análogas, além de partilhar do mesmo ânimo relativamente parcimonioso. Claro, ao propor certas mudanças, o projeto desdobra-se em modificações subseqüentes, destina-das a dar coerência ao corpus jurídico a ele relacionado, assim como mitigar eventuais efeitos indesejáveis que toda modificação legal traz consigo. Mas atém-se de saída a propor apenas legislação infraconstitucional, dispensando o quórum qualificado e a tramitação especial das propostas de emenda constitucional, e claramente abraça as duas teses a que me referi acima. Preliminarmente, pela restrição a coligações nas eleições proporcionais (substituídas com vantagens do ponto de vista da inteligibilidade eleitoral pela criação da figura das fede-rações partidárias, que pode também mitigar eventuais riscos quanto à sobrevivência políti-ca de legendas menores). Mas, acima de tudo, pela atribuição dos mandatos parlamentares aos partidos mediante a instauração da lista partidária fechada nas eleições de deputados e vereadores – esta sim, uma inovação mais relevante em relação ao status quo, embora mais afim ao princípio proporcional da representação política por partidos e mais comumente

Se o deputado pode mudar de legenda,

carregando consigo o seu lugar no parlamento,

então a distribuição das cadeiras deixa de guardar

relação necessária com o resultado eleitoral – e

abre-se a possibilidade de se barganhar a maioria parlamentar para além

do momento eleitoral

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adotada mundo afora que a nossa lista aberta. Esta última medida tenderia, em princípio, a produzir um desejável fortalecimento organizacional dos partidos políticos, favorecendo também, a médio prazo, a própria penetração social dos partidos, pelo simples protagonis-mo que eles passam a exercer nas campanhas eleitorais. E ainda substitui com vantagens, nesse aspecto, as indesejáveis “cláusulas de barreira” draconianas, que fixam um percentual arbitrário de votos para o acesso dos partidos à representação parlamentar – de forma inde-pendente da vontade dos eleitores.

Apesar de trazer inovações em muitos pontos da legislação eleitoral e partidária vigente (Soares & Rennó, 2006: 14-5), não será exagero dizer que o projeto se apóia fundamental-mente em dois pilares: o primeiro (sua proposta mais ousada) é o financiamento exclusiva-mente público das campanhas eleitorais; o segundo (decorrente do primeiro) é a adoção das listas fechadas, já referida. As demais proposições relevantes vinculam-se, de alguma forma, à viabilização dessas duas iniciativas, ou à minimização de efeitos colaterais a elas associados. E ambas são altamente polêmicas, expondo-se fortemente à difamação: o financiamento público, por entregar dinheiro público na mão dos políticos para fazerem suas campanhas; a lista fechada, por subtrair ao eleitorado uma prerrogativa que passa às convenções partidá-rias. Cabe, portanto, discuti-las com algum vagar.

3.1) A lista fechadaA controvérsia em torno do critério a ser adotado para a ordenação das candidaturas na

lista partidária que irá preencher as cadeiras parlamentares em eleições proporcionais cos-tuma girar em torno de uma disputa de simples compreensão – mas difícil de resolver. Os simpatizantes da lista fechada costumam alegar que ela fortalece os partidos ao favorecer seu protagonismo na cena eleitoral, já que eles passam a apresentar-se ao eleitorado com uma chapa de candidatos organizados numa ordenação pré-fixada para preencher as cadeiras com que porventura forem contemplados pelo voto dos cidadãos. A campanha é coletiva, liderada em cada partido pelo primeiro da lista. Já os defensores da lista aberta insistem em que ela é mais democrática, já que atribui ao eleitorado em geral uma prerrogativa que no caso da lista fechada fica restrita às convenções partidárias, ou – no jargão corrente, sempre depreciativo dos políticos – às “oligarquias” partidárias: a ordenação da lista.

É inútil tentar dirimir a disputa nesses termos, já que ambos os lados estão corretos. Como em tantas outras disputas em ciência política, trata-se também de escolher entre valores e prioridades distintas, mas acima de tudo trata-se de obter o equilíbrio adequado entre os eternos imperativos contraditórios da política, de divisão do poder e produção de poder. Pois queremos conter o exercício do poder para que ele não seja arbitrariamente tirânico, mas ao mesmo tempo queremos que ele seja efetivamente exercido, para permitir à comunidade política que persiga com eficácia aqueles fins coletivos que venha a decidir (democraticamente, espera-se) perseguir (Reis, 1984: 11-5). De fato, não é outro o dilema subjacente aos critérios empregados por Lijphart, anteriormente referidos.

A julgar pela importância hoje atribuída às prerrogativas legislativas do Poder Executivo brasileiro na viabilização estável de nossa rotina democrática, cabe perguntar se não teremos ido longe demais na dispersão de poder envolvida na constituição eleitoral de nosso Poder

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Legislativo. Se o preço da atual forma de composição da Câmara dos Deputados é disper-sá-la e enfraquecer os partidos a ponto de forçar a atribuição ao presidente da República do status de principal legislador do país, desconectando em larga medida a representação legislativa de sua origem eleitoral, então dificilmente poderíamos imaginar algum procedi-mento a ser adotado em nossas eleições parlamentares que tivesse resultados mais autoritá-rios que o nosso status quo vigente. Independentemente de suas boas intenções, ou de suas credenciais intrinsecamente democráticas. Isto porque o sistema em vigor, ao individualizar quase completamente a condução das campanhas parlamentares, compromete gravemente a coesão organizacional, a identidade eleitoral e a força política dos partidos, que serão de todo modo os intermediários mais importantes na organização das relações entre o governo e o parlamento – frágeis demais para produzirem um jogo minimamente equilibrado ante um governo determinado, como se tem visto.

É comum a alegação de que o brasileiro vota nas pessoas, e não nos partidos. E que se-ria necessário dispor de partidos mais fortes para podermos passar a listas fechadas. A ques-tão, porém, é: como fortalecer os partidos com a atual competição com listas abertas? Não está escrito no DNA dos brasileiros que eles têm que votar nas pessoas. É a regra eleitoral que lhes diz isso. Talvez se possa alegar justamente o contrário: dado o alto protagonismo reservado aos partidos nas campanhas com listas fechadas, e sua reduzida visibilidade sob listas abertas, talvez precisássemos de partidos muito mais fortes para podermos nos dar ao luxo de recorrermos a listas abertas sem desorganizar a vida partidária. Se presumimos que os partidos significam algo (e o sistema proporcional presume), por que não determinar que cada partido deve fixar e oferecer sua chapa, apresentar-se como organização política, e não como coleção de indivíduos, e induzir o público a decidir entre essas organizações? Será educativo a médio prazo, mesmo com todas as dores do parto que fatalmente suscitará.

Em seminário promovido pela Câmara dos Deputados em meados de 2004, tive a oportunidade de ouvir o senador Jefferson Peres exprimir com franqueza o que de fato vai pela cabeça de muita gente quando se fala em listas fechadas. Embora se dissesse favorável à idéia, o senador não deixou de sublinhar sua reserva: “É mais fácil comprar quinhentos convencionais do que quinhentos mil eleitores.”

Com todo o devido respeito ao senador Peres, tenho sérias dúvidas quanto a isso. Dada a massificação necessária à comunicação numa campanha que tem de atingir milhares (ou milhões) de pessoas, o dinheiro disponível se torna uma variável fundamental na avaliação das perspectivas de um candidato. De fato, quanto maior o eleitorado em disputa, maior o peso do orçamento da campanha. Nunca deixo de me espantar com a naturalidade descon-certante com que os americanos, por exemplo, avaliam as chances de diferentes candidatos à presidência a partir do volume de dinheiro amealhado por cada um. Eleições hoje, e cada vez mais, decidem-se pelo orçamento. Há fenômenos envolvidos na massificação de proces-sos decisórios que tornam o dinheiro tanto mais decisivo quanto mais aumenta o tamanho do eleitorado chamado a decidir.

E é preciso também não perder de vista que uma convenção partidária pelo menos é uma instância intermediária em que uma decisão política é tomada por pessoas que vão ter de se responsabilizar publicamente por ela. Ou seja, representa um foco de responsabi-

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lização, com possíveis sanções imediatas a serem produzidas já na eleição subseqüente. O projeto de lei ainda especifica que a montagem da lista se dê em votação secreta, e com com-posição proporcional entre as diversas chapas apresentadas. Como lembrou recentemente

Jairo Nicolau (2006a: 135), se as convenções hoje são de fato espetáculos politicamente esvaziados, fortemente controladas por dirigentes partidá-rios (as “oligarquias”), é preciso admitir que elas inevitavelmente mudarão muito, caso passem a exercer maior protagonismo em decisões partidárias realmente relevantes – como é patentemente o caso da confecção da lista. Um momento crucial das disputas intrapartidárias passará a ter lugar nas convenções.

Já na eleição propriamente dita, a menos que se disponha de controles rigorosos (e eficazes) contra abusos do poder econômico, a influência do dinheiro é magnificada, não diminuída. Para alcançar todo o eleitorado é preciso muito dinheiro. Sem ele, não há mágica que se possa fazer. Daí a sensação de que o processo eleitoral é cada vez menos idéia e cada vez mais propaganda – objeto de tantas queixas hoje em dia. Em parte isso é

mesmo inevitável, já que o universo que uma campanha eleitoral busca alcançar pode chegar a dezenas de milhões de pessoas, e quando se opera nessa escala recorre-se à técnica publici-tária: opera-se à distância, por meio de slogans, truques mnemônicos, compra de segundos na televisão etc. Mas é preciso reconhecer ainda que esse efeito é agravado se se multiplica o número de candidaturas na disputa. É preciso ser muito eficaz no marketing para vender o seu sabonete, com tanto sabonete parecido na praça. O jogo torna-se, em larga medida, uma disputa privativa entre celebridades diversas (que conseguem ser top of mind no meio daquela multidão de candidatos anônimos) e lideranças que querem representar clientelas específicas (e que ocasionalmente conseguem um relativo fechamento de sua base frente a outros candidatos).

E aqui tocamos num ponto extremamente importante. É preciso ter em mente o efeito da lista fechada sobre a dinâmica das campanhas eleitorais – largamente negligenciado nas controvérsias sobre a matéria. Recentemente começamos enfim a dar bem-vinda ênfase ao problema da inteligibilidade do sistema político associada ao número de candidaturas e à complexidade do sistema, sua partidarização ou personalização (Nicolau, 2006b), às pers-pectivas de accountability parlamentar (Rennó, 2006b), à memória quanto ao voto para deputado (Almeida, 2006). Mas, para além de seus efeitos subseqüentes, deve-se notar a sua causa comum, que é o fato de que a campanha com lista fechada é dramaticamente distinta de uma campanha com lista aberta. Trata-se de uma competição entre partidos, protago-nizada pelo primeiro nome de cada lista, e com dinâmica bastante semelhante à das cam-panhas majoritárias. As disputas internas de cada partido podem até se exprimir com força nas convenções, que podem ser bastante turbulentas (o que não seria mau). Mas, depois de montada a lista, nada mais resta ao candidato senão fazer campanha pelo seu partido, em nome do partido, em favor da plataforma parlamentar do partido – mesmo a contragos-to. Em contraste, hoje a convenção é um evento largamente ritual, fortemente controlado pelos chefes partidários, e que transfere toda disputa interna para o “cada um por si” das

A fórmula atual não só condena os partidos a relativa irrelevância no momento eleitoral, mas também submete previamente todos os candidatos a eleições

proporcionais ao ritual humilhante da aparição

com poucos segundos de exibição na TV

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campanhas parlamentares – nas quais é suicídio qualquer tentativa pelos candidatos de se apresentar como um quadro do partido, que vai fazer o que a liderança determinar em Bra-sília. E, no entanto, mostra a literatura, é exatamente isso que ele vai fazer. Assim, a fórmula atual não só condena os partidos a relativa irrelevância no momento eleitoral, mas também submete previamente todos os candidatos a eleições proporcionais ao ritual humilhante da aparição com poucos segundos de exibição na TV, expondo de antemão nossos futuros re-presentantes ao ridículo do esforço desesperado em busca de um slogan feliz o bastante para, com sorte, permitir-lhe ser lembrado por alguns eleitores a mais no meio daquele oceano. É impossível falar a sério de política ali (mesmo se os candidatos quiserem, o que já é incerto), sobretudo em termos minimamente universalistas. A maioria dos candidatos procura se apresentar identificada a algum subconjunto específico do eleitorado, de preferência corpo-rativo: médico vota em médico, professor vota em professor, policial vota em policial, fiéis votam em pastores etc. Todos prometendo engajamento em causas que depois não poderão perseguir – já que depois será fatalmente necessário concentrar prerrogativas nas mãos dos líderes e do governo para poder dar um jeito de o Plenário funcionar. Porque da eleição não sai bancada alguma.

Por muito tempo favoreci pessoalmente a tese da partidarização das cadeiras, porém mantendo-se a lista aberta. Mas hoje me parece que, para partidarizar as cadeiras, talvez seja preciso partidarizar minimamente a própria campanha, pois se a eleição é feita em lista aber-

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ta, observada a dinâmica usual das campanhas entre nós, então poderia haver dificuldades de legitimação na remoção de um deputado eleito em campanha muito “pessoal”, direta, pouco partidarizada, junto a uma clientela qualquer, e atribuir essa vaga ao partido. Com a lista fechada, propõe-se – mal ou bem – uma bancada a ser eleita. Assim o candidato compa-rece perante o eleitor, e assim o eleitor terá de votar. Mesmo procurando evitar idealizações, não é um exagero imaginar a produção de um Plenário menos disperso do que com a regra atual. E não será um benefício desprezível se essa redução na dispersão de interesses puder nos dispensar de cláusulas de barreira arbitrariamente elevadas (algo a ser evitado, a bem da representação fiel da vontade do eleitor) e, sobretudo, nos livrar de regimentos que concen-tram tanto poder no topo da hierarquia durante a condução dos trabalhos.

Cabe também, sem dúvida, cogitar mais seriamente do meio-termo que consiste na idéia de uma lista flexível: o partido elabora na convenção uma lista previamente ordenada, mas é facultado ao eleitor que se manifeste a respeito dela, eventualmente alterando-a mediante o voto pessoal em um dos nomes da lista ou, então, elaborando a sua própria ordenação. Não é necessariamente má idéia. Permanece, assim, nas mãos do eleitorado a possibilidade, ao menos formal, de se manifestar coletivamente a respeito do resultado de uma convenção que tenha sido mal recebido pelos simpatizantes de determinado partido. Mas deve ser dito de antemão que, nos países que adotam alguma forma de lista flexível (Áustria, Holanda, Bélgica, Suécia, Dinamarca e Noruega, segundo Nicolau, 2006a), o resultado prático tem sido a prevalên-cia esmagadora da lista partidária original. Certamente isto se deverá à adoção de requisitos relativamente exigentes para a alteração da lista. À medida que estes requisitos se relaxarem, porém, deve-se observar uma dinâmica eleitoral semelhante à da vigência da lista aberta, pois aumentam os incentivos para que os candidatos peçam votos para si mesmos, e não para a sua lista – o que seria em princípio indesejável, se se trata de abandonar a lista aberta.

Do ponto de vista da dinâmica pública do processo eleitoral, a instauração das listas fechadas é a alteração mais visível, e portanto a que mais nitidamente modificaria a pai-sagem dos processos eleitorais no Brasil. Porém, pelo que se pode depreender da própria “justificação” que acompanha o PL 2.679/2003 (Comissão Especial de Reforma Política 2003: 20-1), a opção da Comissão de Reforma Política por elas decorreu de opção anterior da mesma comissão pelo financiamento exclusivamente público das campanhas eleitorais, pois a redução das centenas de candidaturas individuais presentes em cada lista aberta à idéia de umas poucas chapas concorrentes a serem financiadas é condição necessária à via-bilização – e mesmo à legitimação – do financiamento público das campanhas. Assim, para respeitarmos a própria lógica constitutiva do PL 2.679, e a história de sua concepção, cabe debruçarmo-nos ainda sobre o outro pilar fundamental do projeto.

3.2) O financiamento públicoDe fato, é difícil imaginar tema mais relevante, mais árido, menos estudado e mais

central à nossa conjuntura política que o financiamento de campanhas eleitorais. Para além das nossas próprias desventuras nessa área, escândalos com “caixa dois” de campanha têm abalado governos em todo o mundo, embora, aparentemente, envolvendo um volume de recursos ilegais muito inferior àquele que veio à tona nas contas movimentadas pelos bene-

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ficiários do nosso “valerioduto”. A nós, cientistas políticos, tipicamente intelectuais acadê-micos com pequena familiaridade com os tecnicismos contábeis envolvidos, cabe abordá-lo com a devida humildade, e modestamente tratar pelo menos de mobilizar alguns aspectos normativos implicados – mas com um olho nos efeitos práticos, é claro.

A primeira coisa a ser mencionada para um enquadramento fecundo do problema geral do financiamento de campanhas eleitorais diz respeito a uma peculiaridade do sistema democrático de governo, consistente também com o ideário liberal que modernamente o conforma. Trata-se da ambição – talvez extravagante – de isolar a política das desigualda-des que provêm da economia. É importante não perdermos de vista que, na história da humanidade, a riqueza e o poder normalmente estão juntos: em muitas formações políti-cas, a ostentação de riqueza pessoal chega mesmo a ser requisito da autoridade política. O liberalismo formula a ambição de separá-los na medida em que afirma serem todos iguais perante a lei, e ao mesmo tempo admite e encoraja a busca do sucesso e da realização pessoal na esfera econômica, o que fatalmente reproduzirá, neste âmbito, intensa desigualdade. O desafio que disso resulta, portanto, consiste em impedir que as assimetrias de recursos assim reproduzidas não resultem automaticamente em assimetrias sistemáticas no acesso ao poder político, caso em que toda promessa de igualdade perante a lei redundaria numa grande fraude. A ambição da separação total entre as fontes de poder econômico e de poder político acaba sendo, assim, um dos traços definidores da democracia moderna.

Deve ser dito com clareza que o cumprimento desse ideal é uma tremenda exigência posta sobre a máquina do Estado, pois exige que se evite qualquer tipo de corrupção (sintoma mais corriqueiro de contaminação entre os dois sistemas) e que se evite todo abuso de poder

econômico em eleições. De forma crua, envolve a capacidade de impor aos mais ricos o consentimento a decisões favorecidas por uma eventual maio-ria pobre. Em seus traços mais simples, a solução institucional formal para o problema consiste em não se permitir a ninguém comprar cargos políti-cos – nem as decisões deles decorrentes. Para o preenchimento dos cargos, fazem-se eleições; para as decisões, segue-se – após debate – a vontade da maioria. Contudo, mesmo fazendo caso omisso da possibilidade de compra das decisões por simples atos de corrupção, ou de golpes de Estado que im-peçam pela força o cumprimento de resultados eleitorais – mesmo quando tudo corre bem, quando eleições são feitas e seus resultados são acatados –, o problema fundamental que perdura é: como evitar que as desigualdades provenientes da competição econômica transbordem rumo ao sistema polí-tico, influenciando sistematicamente os resultados eleitorais e enviesando o sistema político em favor das pessoas mais ricas? Como evitar abuso de po-der econômico nas campanhas eleitorais? Muito fundamentalmente, é a essa

meta que se dedica toda legislação sobre financiamento de campanhas em democracias.Nenhum regime democrático, em tempo algum, em país algum, pode se gabar de haver

atingido essa meta. Acho que podemos, sem problemas, considerá-la de antemão inalcançável. O poder econômico e o poder político são como sistemas de vasos comunicantes, contra os quais se podem construir diques mais ou menos eficazes, mas nunca perfeitamente isolantes,

O problema fundamental que perdura é: como evitar

que as desigualdades provenientes da

competição econômica transbordem rumo

ao sistema político, influenciando

sistematicamente os resultados eleitorais e enviesando o sistema político em favor das

pessoas mais ricas?

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pois esta vinculação opera simultaneamente em vários planos. Há um plano, que se poderia di-zer estrutural, que envolve a dependência do próprio bom andamento da economia em relação à remuneração adequada do investimento capitalista, de modo a produzir empregos, manter a economia crescendo e induzir novos investimentos futuros. E também um plano mais ope-racional, que diz respeito – entre outras coisas – justamente ao financiamento de campanhas. Quanto mais o plano estrutural parece mostrar-se inamovível, maior é a pressão por resultados no plano operacional. Assim, a própria suspeição intuitiva que paira sobre o sistema eleitoral em toda parte faz com que a existência de legislação contra abusos de poder econômico em eleições seja parte integrante do kit institucional de qualquer democracia contemporânea, em busca da minimização de seu viés econômico – admitidamente presente, de forma tácita. Em tese, o maior ou menor sucesso nessa tarefa dependerá de uma combinação mais ou menos fe-liz da legislação sobre financiamento de campanhas, de um lado, com as características básicas do sistema eleitoral adotado, do outro. Ao cabo, alguns regimes conseguem, mais que outros, isolar as decisões políticas de influência econômica indevida. Mas o controle sobre o financia-mento das campanhas, particularmente em suas conexões com o desenho do sistema eleitoral, segue como uma das agendas mais importantes a serem ainda perseguidas satisfatoriamente pela ciência política contemporânea: a despeito de valorosos esforços preliminares (como uma série de trabalhos de David Samuels, voltada principalmente para o caso brasileiro),5 um cam-po conceitual que relacione possíveis efeitos recíprocos entre sistemas eleitorais e fórmulas de financiamento de campanhas não se encontra sequer mapeado.

Deve-se admitir de antemão que, ao decidir-se pelo financiamento público exclusivo, a Comissão de Reforma Política formulou a proposição mais ousada do PL 2.679/2003. Até porque pouco se sabe sobre a matéria, em termos comparativos. Como aponta David Samuels (2003: 365-6),

(...) são muito poucos os países que permitem aos candidatos arrecadar e despender fundos. A maioria dos países emprega alguma forma de financiamento público eleitoral ou proíbe os próprios candidatos de arrecadar e gastar, diretamente, as verbas de campanha. Neste último caso, a atribuição de angariar e despender os fundos de campanha é da competência das organizações partidárias nacionais, embora sejam poucos os países que as obriguem a declarar suas receitas ou despesas.

O Brasil, juntamente com os Estados Unidos, é um dos poucos países que permitem aos candidatos arrecadar fundos independentemente dos partidos, e também um dos pou-cos a obrigar a declaração de receitas e despesas. Seja como for, se se aceita o igualitarismo político como um valor a ser perseguido, então a idéia de um financiamento exclusivamente público para as campanhas eleitorais torna-se, por princípio, atraente. De fato, uma solução quase impositiva ante o propósito de se isolar o sistema político das influências sistemáticas provenientes das desigualdades econômicas, pois se se autoriza a livre captação de recur-sos privados, contarão com claras vantagens quanto às perspectivas de arrecadação aqueles candidatos que atenderem aos interesses dos eleitores mais ricos – a começar pelas grandes empresas. E não só estes, mas simplesmente quaisquer candidatos que forem, eles mesmos,

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mais ricos que os demais. Embora nos habituemos a tratar com naturalidade o fato de que um bilionário tem maiores chances de se eleger que um bóia-fria, é preciso lembrar que não há qualquer justificativa, em princípio, para que isto seja assim. Dadas as inevitáveis

desigualdades econômicas, a credibilidade da democracia política depen-derá de um permanente empenho em minimizar assimetrias quanto ao condicionamento econômico das chances eleitorais de seus cidadãos, o que deveria nos conduzir não apenas à proibição da arrecadação de recursos privados pelos candidatos, mas mesmo à proibição da utilização de recur-sos próprios em campanhas e, portanto, ao financiamento exclusivamente público das campanhas eleitorais.

Se quisermos, porém, preservar um mínimo de realismo sociológico, devemos ter em conta que a proibição, por si só, não extinguirá o recurso a fontes privadas. Se queremos reduzir o abuso de poder econômico nas eleições, a questão crucial é aumentar nossa capacidade de controle eficaz sobre o financiamento das campanhas. Minimizar, portanto, o chamado

“caixa dois”. E ninguém pode se iludir com a crença de que alguma legislação sobre fi-nanciamento eleitoral tenha o condão de abolir o “caixa dois”. Até porque o “caixa dois” eleitoral é proveniente do “caixa dois” de empresas – e existirá forçosamente enquanto este existir. É preocupante, sob esse aspecto, o fato de que proibições análogas com freqüência magnificam o problema, ao instituir um mercado negro poderoso: assim, a Lei Seca alavan-cou o poder da Máfia nos Estados Unidos, e a criminalização do consumo de drogas criou a indústria do narcotráfico. Por outro lado, a mera alusão ao narcotráfico nesse contexto nos deve sensibilizar ainda mais para a importância dramática de se restringir o fluxo de recursos privados para o sistema político: trata-se, afinal, de coibir influências espúrias não apenas de grandes empresas – mas do próprio crime organizado. Idealmente, portanto, o fi-nanciamento público exclusivo deveria ser adotado acompanhado de uma série de medidas adicionais, destinadas a melhorar sensivelmente o controle sobre os recursos efetivamente empregados nas campanhas. E isso inclui desde a adoção de medidas como a instituição das listas fechadas (bem mais controláveis pelos tribunais eleitorais), um disciplinamento cuidadoso dos gastos admissíveis, a prestação de contas na Internet durante a campanha e a adoção de punições mais severas para os transgressores (efetivamente adotadas no PL 2.679/2003, a começar pela derrubada integral da lista), até a aprovação de uma reforma bancária e tributária que induza à redução do volume de recursos ilegais em circulação no sistema (o que claramente está fora do alcance da discussão de qualquer reforma política).

E há ainda a questão de uma estimativa realista do custo da campanha por eleitor, de modo a se evitarem tanto eventuais extravagâncias quanto um possível garroteamento que viesse a des-moralizar a lei. Os sete reais por eleitor preconizados pelo PL 2.679 resultariam em um gasto total de aproximadamente R$ 900 milhões. Quase um bilhão, mas ainda assim apenas cerca de 20% daquilo que se gasta hoje em campanhas eleitorais no Brasil, segundo as estimativas correntes (Samuels, 2003: 386). Isso é um mérito, mas também um ônus. O risco que se corre é aumentar o incentivo ao “caixa dois” pelo fato de se introduzir um garrote importante sobre o orçamento das campanhas. Pergunto-me: o que faria o TSE se efetivamente começasse a se dar

Os sete reais por eleitor preconizados pelo PL 2.679

resultariam em um gasto total de aproximadamente

R$ 900 milhões. Quase um bilhão, mas ainda assim apenas cerca de

20% daquilo que se gasta hoje em campanhas

eleitorais no Brasil

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certa desobediência generalizada? Talvez o TSE e os tribunais eleitorais se vissem obrigados a coibir apenas os casos mais graves, e se encontrasse uma solução de compromisso que resultaria numa relativa desmoralização do preceito do financiamento exclusivamente público.

É possível imaginar um sistema misto de natureza transicional, que comece o processo de expansão do financiamento público por uma redução importante do valor máximo de contribuições permitidas (em moldes análogos aos sugeridos por Samuels, 2006: 151-2) e produza um processo que talvez possa ter como horizonte o financiamento exclusivamente público no futuro. Em última análise, o crucial é avaliar o custo/benefício de cada valor esti-pulado e tentar identificar um ponto ótimo de implementação da lei, que minimize o nível esperado de recursos não declarados. Acredito não termos resposta precisa, ainda, quanto à melhor maneira de se fazer isso no Brasil.

Seja como for, é importante evitar farisaísmos ao apreciarmos essa matéria. A idéia cor-rente de que o financiamento público das campanhas é indevido porque o Estado tem de gastar com educação, saúde, estradas é intoleravelmente simplória. Como se faltassem ralos por onde escoar o dinheiro público a partir das relações de dependência que o sistema atual estabelece entre políticos eleitos e seus principais financiadores. Lembro-me sempre – com um misto de irritação e perplexidade – do ex-deputado Roberto Jefferson em sua aparição no programa Roda Viva, da TV Cultura, no auge da crise do “valerioduto”, a brandir esse ar-gumento contra o financiamento público poucos minutos depois de haver acuado seus en-trevistadores chamando-os de “freirinhas” por exibirem indignação perante suas confissões a respeito de métodos e técnicas de captação de recursos privados para campanhas eleitorais a partir do exercício de cargos comissionados no governo. Pareceu-me inacreditável que ne-nhum dos circunstantes tivesse tido a presença de espírito de devolver-lhe o epíteto diante do argumento mais “freirinha” que se ouviu ali aquela noite. Se agentes privados se dispõem a irrigar os bolsos de ocupantes de cargos públicos com recursos que serão posteriormente usados em campanhas eleitorais, e se o valor estimado dos recursos levantados para campa-nhas chega a quintuplicar o quase um bilhão de reais previstos num eventual financiamento público, certamente é porque esses agentes esperam obter – na outra ponta, após as eleições – esse dinheiro de volta, e aumentado. Os políticos levantam o dinheiro privado de que precisam para ganhar seus votos; e os agentes privados ganham dinheiro público (maior que o investido, é claro) com as decisões desses políticos.

Esse argumento é consistente com o achado do próprio Samuels (2002) de que não há relação estatística entre o engajamento do deputado em projetos distributivistas de alcance local (pork barrel) e os votos por ele obtidos numa tentativa de reeleição. Segundo os re-sultados de Samuels, a votação dos deputados guarda relação apenas indireta com as obras que ele porventura consegue canalizar para suas bases. A principal variável explicativa do seu desempenho eleitoral em tentativas de reeleição é o dinheiro, que ele obtém de agen-tes privados interessados em contratos governamentais para executar as obras inseridas no orçamento da União pela atuação dos deputados. Dessa perspectiva, a ênfase predominan-temente “clientelística” da atuação parlamentar no Brasil decorreria não de uma relação de troca entre deputados e seus eleitores, mas antes de uma relação de troca entre deputados e os financiadores de suas campanhas (Samuels, 2002: 861).

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4) PerspectivasSe isso é assim, então torna-se flagrante a necessidade de mudarmos o enquadramento

institucional tanto do financiamento de campanhas quanto da própria forma de disputa por cadeiras parlamentares. A “conexão eleitoral” entre mandato parlamentar e eleitor está preocu-pantemente enfraquecida no Brasil, e tem na falta de memória do eleitor quanto ao voto dado apenas um de seus sintomas. Suas causas residem numa legislação permissiva quanto ao finan-ciamento de campanhas e num sistema eleitoral despolitizador que dissolve a disputa num cipoal de nomes do qual ninguém pode se aproximar de maneira razoavelmente informada – a não ser por referências de natureza pessoal ou corporativa. O efeito combinado dos dois fato-res é uma sensível diluição do protagonismo dos partidos na disputa pelo preenchimento de cadeiras parlamentares, o que acaba por desarticular nossa representação em Brasília, criando um vácuo político que – menos mal... – tem sido preenchido pelo protagonismo legislativo do presidente da República e do Colégio de Líderes. (Ou alguém se atreveria a interpretar o fato de o PMDB ter conseguido eleger o maior número de deputados em 2006 como reflexo de uma migração do eleitorado rumo às teses defendidas pelo PMDB na campanha?...)

Pessoalmente, penso que o PL 2.679/2003 acena com um desenho institucional prova-velmente superior ao status quo. E, concebido numa comissão especial da Câmara dos De-putados ao longo de dez meses, credencia-se legitimamente a pautar um debate sério sobre a possível reforma política, que me parece hoje oportuna. Mas seria tolo ignorar os riscos envolvidos. Paradoxalmente, na medida mesma em que melhorarmos a representativida-de do Congresso, poderão produzir-se novas dificuldades de “governabilidade”, sobretudo enquanto não adaptarmos nossas rotinas e prerrogativas regimentais às mudanças acarreta-das pela nova legislação. Na medida em que se lograr reduzir o troca-troca partidário e se cristalizarem as bancadas, aumentarão as dificuldades para um governo minoritário (cena provável) obter maioria. Nesse cenário, haverá um parlamento com maior peso e represen-tatividade partidária, maior organicidade representativa – o que é bom –, mas, por outro lado, o regime permanecerá presidencialista, e não parlamentarista. O presidente eleito em minoria terá de enfrentar uma negociação mais dura com o Congresso se quiser governar com maioria. Talvez, porém, uma vez consumada, ela se mostre uma negociação mais facil-mente administrável no tempo.

Tudo isso provavelmente será vivido em meio a dificuldades e crises mais ou menos turbulentas. Como vimos, as mazelas de nosso regime têm sua razão de ser, nos ajudam a acomodar conflitos e – bem ou mal – permitiram-lhe funcionar até aqui. Agora, a exposição dos seus vícios ao escrutínio público, em plena luz do dia, à vista mesmo do mais desinteres-sado cidadão, deixa o sistema em xeque. Mesmo que se considere que os malfeitos estão sen-do mais prontamente expostos e coibidos do que era nosso costume, existe a possibilidade de que essa exposição desmoralize o regime, minando sua autoridade independentemente do funcionamento de facto das instituições.

O nosso dito “presidencialismo de coalizão”, que não parecia talhado para funcionar, no entanto funcionava – e nos trouxe até aqui, na mais duradoura experiência de nor-malidade democrática de nossa história. Agora ele se encontra sob pressão inédita para reformar-se. Idealmente, na direção de um reforço relativo na posição do Poder Legislati-

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vo, com a subtração de algumas das prerrogativas excepcionais que o Executivo brasileiro acumula. Mas, para que isso não seja feito ao preço de uma paralisia geral do sistema, será

prudente minimizar a dispersão de poder propiciada pelas regras eleitorais que conformam a disputa por cadeiras parlamentares. Buscar-se-ia, com isso, mover o país rumo ao aumento do controle sobre o financiamento das campanhas, e à institucionalização relativa das barganhas em torno da construção de maiorias no parlamento.

Navegar é preciso. Se avançarmos com a devida cautela, cientes de que essas inovações contêm sempre um componente de tentativa e erro, mas ao mesmo tempo sensíveis à necessidade que a política nos impõe de perseguir continuamente imperativos tantas vezes contraditórios de eficá-cia e contenção, poderemos preservar a estabilidade de nossa democracia, mesmo enquanto perseguimos os objetivos mais altos.

Belo Horizonte, novembro/dezembro de 2006.

Notas

1 Trata-se de uma série extensa de artigos publicados em co-autoria, desde meados dos anos 90, por variados veículos. Uma amostra importante dos trabalhos mais relevantes encontra-se reunida em Figueiredo e Limongi (1999). Uma síntese recente do ponto de vista dos autores, que resulta numa vigorosa manifestação de ceticismo quanto à necessidade ou conveniência de uma reforma política, pode ser encontrada em Limongi (2006).

2 Uma tentativa recente de se enquadrar sistematicamente a análise política comparada a partir da dispersão de pontos de veto no sistema pode-se encontrar em George Tsebelis (2002). Aqui, porém, não se fará uso do aparato técnico que ele mobiliza. Apenas entendo que, embora vazada em nível mais baixo de abstração, a dimensão analítica subjacente aos critérios de classificação de Lijphart é análoga àquela de que Tsebelis se ocupa com maior elaboração formal.

3 O uso da expressão “conservadorismo institucional” para descrever a postura dominante na ciência política brasileira de hoje foi-me oferecida por Octavio Amorim Neto, em conversa telefônica já há vários meses. O que não quer dizer, naturalmente, que posições contrárias, ou intermediárias, não existissem. Para ficar com apenas um exemplo bastante familiar de trabalho que busca esse equilíbrio, ver Fábio W. Reis (2003).

4 Essa situação em que todos sabem que todos sabem algo − chamada common knowledge (conhecimento comum) pela teoria dos jogos − tem efeito crucial nas possibilidades de ação coletiva espontaneamente coordenada e distingue-se de maneira sutil, porém importante, da outra, em que todo o mundo sabe de algo, mas não sabe se os outros também sabem. Ver Michael Chwe (2001) para um estudo saboroso que discute a lógica interna e os efeitos sociologicamente esperados do “conhecimento comum” assim compreendido.

5 Uma sinopse recente de seus resultados e pontos de vista pode ser encontrada em Samuels (2006).

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O nosso dito “presidencialismo de

coalizão”, que não parecia talhado para funcionar, no entanto funcionava – e nos

trouxe até aqui, na mais duradoura experiência de normalidade democrática de nossa história. Agora

ele se encontra sob pressão inédita para reformar-se

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Octavio Amorim Neto*

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*Octavio Amorim Neto, Doutor em Ciência Política pela Universidade da Califórnia, San Diego, é professor de Ciência Política da Escola de Pós-Graduação de Economia (EPGE) da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.

Valores e vetores da reforma política

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Desde 1985 tem-se debatido incessantemente qual deve ser o perfil institucional do país e, desde a promulgação da Carta de outubro de 1988, o tema da reforma política sempre volta à tona. Porém, apesar dos inúmeros projetos de lei e de emenda à Constitui-ção propondo mudanças nas regras do jogo e das centenas de conferências e publicações acadêmicas discutindo tais projetos, continuamos com os dois pilares constitucionais que adotamos em 1946: o presidencialismo e a representação proporcional com lista aberta.

O fato de sessenta anos já terem se passado e de já termos tido três regimes políticos ao longo destes anos (o regime democrático de 1946-64, o regime autoritário de 1964-1985 e o novo regime democrático de 1985 ao presente) constitui prova do profundo enraizamento político dos nossos atuais sistemas de governo e eleitoral. Portanto, não à toa, temos advo-gados tão fervorosos do status quo institucional; portanto, tampouco é motivo de surpresa ser tão difícil fazer reformas políticas.

Duas perguntas, então, se colocam imediatamente. Primeira, por que aqueles dois pilares foram e continuam sendo adotados? Segunda, são eles a melhor solução institucional para o país? Diversas respostas têm sido dadas. No que toca ao sistema de governo, alguns alegam que

o presidencialismo é uma “tradição republicana”. Outros sustentam que a eleição direta do chefe de governo, inerente ao presidencialismo, é o método mais democrático de escolha do mandatário supremo de uma nação. No que concerne ao sistema eleitoral, há argumentos semelhantes. Tratar-se-ia já de uma tradição nacional. Além desta virtude burkeana, a representação propor-cional com lista aberta traria a dupla vantagem democrática de formar uma casa legislativa que espelha a pluralidade de opiniões e interesses dos eleitores e de permitir que estes determinem a identidade de seus representados.

Por último, um dos mais fortes argumentos a favor da manutenção do status quo institucional tem como base um refinado cálculo utilitário: os custos de transição para um novo conjunto de regras podem ser maiores do que os possíveis benefícios de uma reforma política, razão pela qual a nossa classe política, intrinsecamente avessa a riscos, tem sabiamente se recusado a aprová-la.

Uma vez identificadas as principais razões do conservadorismo institucional, tarefa que não trouxe novidade alguma, uma terceira questão naturalmente se põe à mesa: quais são os argumentos favoráveis à mudança do status quo institucional? E aqui, sim, chegamos a um dos pontos centrais deste ensaio: as posições relativas à reforma política estiveram, até recentemente, associadas, em geral, a determinados diagnósticos, visões e ideários referentes à economia nacional.

Diria que, para aqueles que crêem que o país necessita de uma economia mais aberta e de uma política econômica mais favorável ao setor privado, a reforma política deve ser ampla e visar à criação de um arcabouço institucional que reduza a dispersão do poder, permitindo a formação de governos mais fortes, capazes, acima de tudo, de fazer frente a interesses estreitos, mas bem organizados, que se beneficiam da perversa estrutura do gasto público do país e geram grandes distorções e ineficiências econômicas. Já para aqueles que comungam de uma visão mais favorável ao papel do Estado na economia e se opõem às chamadas políticas neoliberais, a reforma política deve ser tópica. Para eles, não haveria

As posições relativas à reforma política estiveram,

até recentemente, associadas, em geral, a

determinados diagnósticos, visões e ideários referentes

à economia nacional

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grandes problemas com o padrão disperso de distribuição de poder vigente no país, sendo as instituições políticas estabelecidas pela Carta de 1988 adequadas às nossas necessidades.

Em suma, quanto mais liberal um analista, mais favorável a reformas políticas concen-tradoras do poder. Contudo, essa proposição começou a perder validade a partir da chegada da esquerda à Presidência da República, em 2002. Até então, a esquerda estivera sempre na oposição a governos, em sua maioria comprometidos com reformas liberalizantes, principal-mente durante os dois mandatos de FHC. Era natural, então, que pelejasse contra as refor-mas políticas defendidas por seus adversários, ainda que, em passado não muito distante, ti-vessem empunhado as mesmas bandeiras destes. O caso exemplar é a decisão do PT de apoiar o presidencialismo em 1993, apesar de, originalmente, o partido ter sido parlamentarista.

Tendo a esquerda agora conhecido a dor e a delícia de estar no poder, creio estarmos mais perto do que nunca de um consenso entre as diversas tendências políticas em torno de uma reforma política. Mas exatamente que reforma política deveria ser esta? Gostaria de iniciar essa discussão com uma reflexão a respeito do que se pode esperar – empírica, não normativa-mente – de uma reforma política.

Em primeiro lugar, não existe sistema de governo ou sistema eleitoral ideal. Qualquer que seja, gerará sempre o efeito de um cobertor curto, isto é, se cobre a cabeça, descobre os pés.

Tomemos o sistema eleitoral. De um lado, temos a representação pro-porcional; do outro, encontra-se a representação majoritária. A representa-

ção proporcional encoraja a existência de vários partidos. A representação majoritária tende a promover dois grandes partidos, enquanto a regra proporcional, como já dito, permite ao sistema partidário espelhar um amplo leque de interesses e ideologias, tornando a demo-cracia mais representativa. A regra majoritária é, obviamente, restritiva neste aspecto, uma vez que favorece apenas poucas tendências políticas. Entretanto, por essa mesma razão, os sistemas majoritários facilitam a formação de maiorias parlamentares compostas por apenas um partido. Nos sistemas proporcionais, as maiorias têm que ser integradas por coalizões de partidos. Os governos unipartidários facilitam a vida do eleitor porque se sabe claramen-te quem é o responsável pelos atos do governo. Já sob governos de coalizão, o eleitor está sempre em dúvida a respeito de quem realmente fez o quê. Ou seja, o primeiro efeito do tipo “cobertor curto” gerado pelos sistemas eleitorais reside na disjuntiva representatividade versus responsabilização (o que, em inglês, se chama accountability).

Há mais. Estudos recentes mostram que os países que se caracterizam por governos unipartidários são mais capazes de afetar o rumo da economia do que países com governos de coalizão (ver, entre vários outros, Alesina, Roubini e Cohen, 1997). Os governos uni-partidários, justamente por terem maiorias coesas, dispõem de melhores condições políticas de influenciar o desempenho da economia do que os complicados governos de coalizão. Porém, é fato também que mudanças radicais são também sinônimo de instabilidade. Neste sentido, justamente por serem avessos a mudanças bruscas, os países regidos por governos de coalizão são mais capazes de manter um ambiente econômico menos incerto do que os países com governos unipartidários. Segundo Cox e McCubbins (2001), temos, assim, o

Os governos unipartidários facilitam a vida do eleitor porque se sabe claramente

quem é o responsável pelos atos do governo. Já sob governos de coalizão, o eleitor está sempre em

dúvida a respeito de quem realmente fez o quê

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segundo efeito do tipo “cobertor curto” criado pelos sistemas eleitorais: a disjuntiva entre a capacidade de tomar decisões e a capacidade de sustentar decisões, sendo a regra majoritária associada à primeira e a regra proporcional, à segunda.

Representatividade política, responsabilização governamental, capacidade de tomar de-cisões e capacidade de sustentar decisões são valores fundamentais. Contudo, não se pode tê-los em iguais doses em um mesmo regime democrático. Eis quiçá a grande lição da experiência mundial e dos estudos comparativos das últimas três décadas. Fazer escolhas constitucionais significa, portanto, optar por alternativas que maximizem certos valores e minimizem outros. A questão que se coloca, então, é saber que valores devem ser maximizados na quadra histórica em que se encontra o país.

Não existe resposta única à pergunta acima. O que ofereço aqui é, pois, uma visão dos valores que devem animar uma reforma política, visão embasada em uma determinada interpretação do funcionamento da nossa ordem política.

É fundamental aumentar a responsabilização governamental. Nosso sistema eleitoral favorece demasiadamente o quesito representatividade, a ponto de termos uma das legis-laturas mais fragmentadas do mundo. Ainda que não seja o caso de se abandonar a repre-sentação proporcional, está na hora de facilitar a vida do eleitor, oferecendo-lhe um quadro

partidário mais compacto e nítido. Por isso, a proibição de coligações elei-torais nos pleitos legislativos e o fim do troca-troca partidário seriam muito benfazejos à nossa democracia.

Porém, para haver uma redução efetiva do número de partidos, prin-cipalmente na Câmara dos Deputados e assembléias legislativas estaduais, existem duas alternativas: a imposição rigorosa de uma cláusula de barreira e a redução da magnitude média das circunscrições eleitorais, entenden-do-se por magnitude o tamanho da representação política que essa cir-cunscrição vai eleger. Com relação à última, não advogo aqui, de maneira

nenhuma, a adoção exclusiva do sistema de distritos uninominais. Defendo a idéia de rede-senhar as circunscrições eleitorais (os estados) do país. A legislação determinaria o tamanho mínimo das circunscrições eleitorais para garantir alta proporcionalidade na relação entre votos e cadeiras. A partir daí, os estados seriam “recortados” em uma ou mais circunscrições. O difícil seria justamente estabelecer tal recorte, que poderia levar a práticas semelhantes ao gerrymandering norte-americano, em que distritos são desenhados para atender a interesse de um ou outro partido, em virtude da distribuição espacial de seu eleitorado. Dada essa dificuldade, a solução de mais fácil adoção é, portanto, a aplicação rigorosa de uma cláusula de barreira de 5%, entendendo-se por aplicação rigorosa não dar nenhuma representação parlamentar aos partidos que não ultrapassem a barreira, tal qual vigora na Alemanha.

Quanto ao segundo efeito do tipo “cobertor curto”, a equação é mais complexa. Em algumas áreas, precisamos de maior capacidade de tomar decisões (ex.: o ajuste fiscal e o seu duplo, a reforma da previdência). Em outras, precisamos de maior capacidade de sustentar decisões (ex.: a manutenção de uma baixa taxa de inflação). Aqui convém destacar que uma das mais fortes razões pelas quais é tão difícil formar um consenso em torno de uma reforma

Ainda que não seja o caso de se abandonar a

representação proporcional, está na hora de facilitar a

vida do eleitor, oferecendo-lhe um quadro partidário

mais compacto e nítido

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política é justamente o fato de a eficiência de diferentes políticas de governo depender de diferentes estilos decisórios e padrões de distribuição de poder institucional.

De qualquer modo, a alta fragmentação que caracteriza o nosso sistema partidário e a tendência geral à dispersão do poder institucional criada pela Constituição de 1988 levaram aqueles que desejavam a implementação, a um ritmo mais rápido, de reformas econômicas ao pessimismo e até mesmo ao desespero com o nosso sistema político.

Independentemente da posição com respeito ao cobertor curto para cobrir tanto a capacidade de tomar decisões quanto a capacidade de sustentá-las, parece-me que nada ganhamos com o fato de termos uma das legislaturas mais fragmentadas do mundo (o nú-mero efetivo de partidos saído das eleições de 2006 para a Câmara é nada mais, nada menos do que 9,3, o mais alto de nossa história). Isso não facilita a tomada de decisões e, como veremos a seguir, também dificulta a formação de pactos para sustentar um programa eco-nômico, mesmo um que já conte com o consenso das forças políticas.

Dito isso, é verdade também que, mesmo sob o nosso presidencialismo multipartidá-rio, entre 1995 e 2002 tivemos uma maioria política que tomou uma série de decisões de grande monta. Mas esse resultado deveu-se, em grande parte, a uma opção estratégica de FHC de negociar seriamente com os partidos a formação e manutenção de um governo de coalizão majoritário. A lição a ser daí extraída é que a estabilidade e eficácia dos nossos governos dependem demasiadamente dos incentivos conjunturais que têm os presidentes de organizar as suas administrações à maneira bem-sucedida de FHC1.

O ponto a ser feito, portanto, é que o nosso atual sistema de governo não garante a consolidação do estável e eficaz padrão de governança vigente entre 1995 e 2002. Nada

impede que tenhamos novas presidências desastrosas, do ponto de vis-ta das relações entre Executivo e Legislativo, como as de Collor e Lula2. No entanto, um sistema de governo semipresidencial, do tipo francês ou português, criaria grandes barreiras constitucionais à emergência de tais presidências, ao gerar fortes incentivos para a formação e gestão eficaz de governos de coalizão, além de manter a tão reverenciada eleição direta para o cargo de chefe de Estado. O estabelecimento do semipresidencialismo significaria a institucionalização das virtudes do chamado “presidencialis-mo de coalizão” (Abranches, 1988)3.

A reforma do sistema de governo, todavia, não é para agora. Dadas as condições políticas vigentes no país, a reforma do presidencialismo só viria

no rastro da crise política terminal de uma presidência. A mudança do sistema de governo deveria ser precedida ou acompanhada da reforma eleitoral-partidária, pois governos de co-alizão, para funcionar bem, precisam de um quadro compacto de interlocutores previsíveis. Daí o problema partidário. É preciso, pois, optar por partidos previsíveis, capazes de nego-ciar e cumprir acordos. Neste sentido, o estabelecimento de listas fechadas, que fortalecem a disciplina legislativa dos partidos, proposto no Projeto de Lei nº 2.679/2003, aponta para o caminho correto.

Na impossibilidade de se reformar o presidencialismo, o foco da discussão acerca do sistema de governo deve recair sobre as medidas provisórias, que enfraquecem o Legislativo

A mudança do sistema de governo deveria ser

precedida ou acompanhada da reforma eleitoral-

partidária, pois governos de coalizão, para funcionar

bem, precisam de um quadro compacto de

interlocutores previsíveis

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(e também criam grande insegurança jurídica). Como enfraquecem o Legislativo? Reprodu-zo aqui a passagem de um artigo de Amorim Neto e Santos sobre o assunto (2003):

Nossa análise sobre quem consegue aprovar seus projetos mostra que o Congresso brasileiro tem um papel de menor importância no processo legislativo não só por causa (...) [da] ampla delegação ao Executivo da autoridade para tomar decisões sobre políticas públicas de abrangência nacional [através de medidas provisórias] –, mas também em virtude dos incentivos à construção das carreiras parlamentares. A essência desses incentivos é que o Poder Executivo é o locus fundamental da influência política, o que dissuade os deputados de tentarem construir uma carreira mais duradoura no Congresso. A falta de políticos dispostos a permanecer muito tempo no Congresso enfraquece ainda mais o papel do Legislativo na formulação de políticas nacionais. (p. 692)

Em suma, na minha visão, os vetores fundamentais a nortear uma reforma política realista devem ser os seguintes: (1) a redução do número de partidos representados no Congresso, (2) o fortalecimento das organi-zações partidárias e (3) a limitação dos poderes legislativos da Presidência.

Voltemos agora ao ponto inicial do ensaio: como tais mudanças nas re-gras políticas se associariam às reformas econômicas e, conseqüentemente, à melhoria do desempenho econômico do país? De duas maneiras: ao permitir a formação de governos mais fortes e ao suavizar os ciclos político-econômi-

cos. O primeiro aspecto já foi explicado. Passo a seguir a elaborar sobre o segundo.Comecemos com as motivações dos políticos em época de eleição. O desejo de perma-

necer no poder estimula o governo a tentar melhorar a situação econômica dos cidadãos. São os chamados ciclos econômico-eleitorais, sob os quais, em anos de sucessão política, o gasto público tende a aumentar, o desemprego a diminuir e o PIB a crescer. O ano seguinte à eleição é a hora de ajustar as contas públicas e de debelar, por meio da elevação da taxa de juros, a inflação gerada pelo crescimento acima do normal do ano anterior, o que leva à queda da taxa de crescimento do PIB e ao aumento do desemprego4.

Se a oposição for vencedora, tentará reverter várias decisões tomadas pelo governo ante-rior a fim de executar o seu próprio programa. São os chamados ciclos partidário-econômi-cos, em função dos quais novos governos, formados por partidos que antes se encontravam na oposição, implementam políticas distintas das da administração antecessora5.

Os ciclos político-econômicos são uma conseqüência natural da competição política democrática. Isso não significa, contudo, que não haja meios de atenuá-los quando tal se faz necessário, como é o caso no Brasil, país que já sofreu demais com a instabilidade econômi-ca. Existem quatro maneiras de suavizar os ciclos.

Uma primeira alternativa seria o estabelecimento de pactos entre os grandes partidos, pac-tos pelos quais estes se comprometem publicamente com uma agenda comum de política eco-nômica. Um bom exemplo foram os pactos celebrados na Espanha entre 1977 e 1981.

Em segundo lugar, há a possibilidade de proibir por lei certos comportamentos oportu-nistas. A Lei de Responsabilidade Fiscal visa justamente a coibir práticas predatórias em anos

A falta de políticos dispostos a permanecer

muito tempo no Congresso enfraquece ainda mais o papel do Legislativo

na formulação de políticas nacionais

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Octavio Amorim Neto

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de sucessão política. Além disso, poderia também se submeter a uma lei específica um mínimo de desempenho fiscal, como, por exemplo, metas explícitas e obrigatórias para o resultado nominal ou primário das contas públicas. Porém, critérios legais de disciplina fiscal só conse-guiriam impedir a manipulação de outros instrumentos de política econômica, como os juros nominais, caso se erguessem barreiras institucionais a outras esferas de decisão econômica.

Isso nos leva à terceira alternativa de suavização dos ciclos: a despolitização de agências governamentais. É o que se tem em mente quando se dá autonomia operacional ao Banco Central referendada por lei.

A última alternativa se funda na convergência programática entre os principais parti-dos, permitindo que a alternância no poder não cause grandes guinadas na política macroe-conômica. É o que ocorreu no Brasil recentemente, com a marcha, ainda que tímida e não plenamente assumida, do PT para o centro em 2002. Ou seja, ainda falta muito para que al-cancemos uma sólida convergência como a que houve entre trabalhistas e conservadores na Inglaterra pós-Thatcher ou entre socialistas e democrata-cristãos no Chile pós-Pinochet.

Entre as quatro alternativas definidas acima, a mais factível para o Brasil, do ponto de vista político, seria uma combinação da primeira (os pactos interpartidários) e da última (a convergência programática entre os partidos), pois dispensaria qualquer ação legislativa. Tratar-se-ia da mobi-lização ativa do consenso em torno da política macroeconômica, mobili-zação que poderia levar a um amplo pacto, tal como se deseja há muito tempo no Brasil e que agora também é ambicionado pelo governo Lula.

Se considerarmos que a economia brasileira ainda não é invulnerável a crises como a de 2002, pode-se dizer que uma das grandes oportunidades perdidas nos últimos quatro anos foi justamente a de se mobilizar esse consenso, dado que Lula tem executado uma política idêntica, em seus fundamentos, à do segundo mandato de Fernando Henrique. Uma re-forma política tal como a defendida aqui, ao reduzir o número de partidos e fortalecer as organizações partidárias, facilitaria a consecução dessa alternativa.

Para concluir, estou ciente de estarem as reformas políticas sujeitas à lei das conseqü-ências não-antecipadas. A engenharia constitucional, para usar a feliz expressão de Sartori (1997), é, portanto, um exercício impreciso. Porém, o atual status quo institucional do país é ruim, justificando uma reforma política na linha da proposta pelo Projeto de Lei nº 2.679/2003, sem medo de que seus custos sejam maiores do que seus benefícios. Podem-se discutir detalhes operacionais do projeto, mas não há espaço aqui para tanto. O fundamen-tal é ser ele animado, a meu ver, por valores e vetores corretos.

A Lei de Responsabilidade Fiscal visa justamente

a coibir práticas predatórias em anos de sucessão política

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Notas

1 Discuto essa questão em profundidade em Amorim Neto (2006a, cap. 5).

2 Avalio todas as presidências brasileiras, de Sarney a Lula, em Amorim Neto (2006b).

3 Examino pormenorizadamente o semipresidencialismo e a sua aplicabilidade ao Brasil em Amorim Neto (2006c).

4 O texto clássico sobre os ciclos econômico-eleitorais é o artigo de Nordhaus (1975).

5 Ver o trabalho pioneiro de Hibbs (1977) sobre o assunto.

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José Antônio Giusti Tavares*

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Como sempre, a pauta da reforma política, no Congresso e fora dele, é extensa e hi-peranalítica, e os projetos de lei que pretendem estatuí-la derramam-se em prolixidades e minudências sem preocupar-se aparentemente com a coerência entre as diferentes regras e mecanismos que introduzem e com os efeitos compósitos que produzem. Um exem-plo brilhante de convivência entre superabundância e inocuidade reguladoras é a redação dada pelo Projeto de Lei 2.679/2003 ao art. 33, IV, da Lei 9.504/1997, que busca regular exaustivamente as pesquisas eleitorais. O exibicionismo fútil de alguns reformistas sequer considera se o momento atual é oportuno ou não para as reformas.

Há, entretanto, algumas questões pontuais de natureza político-institucional que cer-tamente devem ser objeto de decisão tão cedo quanto possível. O texto a seguir ocupa-se de quatro delas: três concernentes ao sistema eleitoral em sentido estrito – coligações interpartidá-rias, lista partidária e cláusula de exclusão em eleições proporcionais – e uma ao papel e ao espaço de poder dos partidos sobre o mandato representativo, a questão da fidelidade partidária.

1) Coligações partidárias em eleições proporcionais

O sistema de representação proporcional, consagrado pela tradição republicana brasi-

leira, não é apenas um método de eleger representantes legislativos. Operando sobre circunscrições de magnitude elevada – isto é, circunscrições que ele-

gem um número elevado de representantes, pelo menos igual ou superior a dez – os sistemas proporcionais viabilizam a representação política, segundo o volume relativo dos sufrágios de cada um, para todos os partidos minimamente relevantes. Ao assegurarem a cada partido, no corpo de representantes, uma presença individuada, nítida e proporcional à grandeza de que

desfruta no conjunto de preferências do eleitorado, os sistemas proporcionais agem como métodos capazes de estruturar e solver o dissenso sócio-político, provendo-lhe a negocia-ção e a arbitragem e produzindo a integração política e o consenso público por meio da diferenciação, da identidade, da independência e da especificidade de cada partido.

Esses efeitos da representação proporcional sobre os partidos, sobre a represen-tação política e sobre o governo derivam, como propriedades, do quociente

eleitoral e, logo, do quociente partidário – ou do equivalente funcional

*José Antônio Giusti Tavares, Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), é professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Quatro questões pontuais da reforma política

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de ambos, uma série de divisores –, que materializam a decisão de um colégio eleitoral não- territorial, essencialmente voluntário e unânime, embora anônimo, constituído por eleito-res associados, sem qualquer equívoco ou ambigüidade, pelo apoio comum a um programa

e a uma lista partidária. Contudo, a prática de alianças eleitorais interpartidárias em eleições

legislativas proporcionais compromete a identidade e a integridade do quociente partidário e, por via de conseqüência, compromete igualmente a correspondência, para cada um dos diferentes partidos, entre a densidade relativa de votos e a densidade relativa de cadeiras legislativas, que cons-titui o objetivo essencial da representação proporcional. Mas, sobretudo, obscurece e, no limite, faz desaparecer a identidade e o alinhamento dos partidos no parlamento.

Compreende-se, assim, que alianças eleitorais entre partidos são in-consistentes com a natureza, com os propósitos e com o método da repre-sentação proporcional porque, enquanto esta última busca a integração e o consenso políticos precisamente por meio da diferenciação, da especi-ficidade e da nitidez na expressão parlamentar de cada um dos partidos, aquelas produzem o sincretismo, a ambigüidade, a equivocidade, a volatili-dade e a confusão não só no comportamento dos partidos, fora e dentro do parlamento, mas na própria composição partidária do parlamento.

Mas coligações partidárias não são apenas inconsistentes com eleições proporcionais; são, também, nelas, desnecessárias. O método proporcional não só desestimula e em alguns casos inibe a formação de alianças eleitorais en-

tre partidos, mas torna-as desnecessárias porque maximiza a probabilidade de que cada partido, incluídos os pequenos, conquiste, sozinho e independentemente, a representação parlamentar.

Contudo, ainda que neles se admita coligação eleitoral interpartidária, sistemas propor-cionais que adotam listas partidárias fechadas ou flexíveis e quociente eleitoral, ou algum mé-todo de divisores, provêm quocientes partidários e, por este meio, viabilizam e consolidam identidades partidárias, sob a condição de que as cadeiras obtidas em um primeiro procedi-mento distributivo pela coligação sejam repartidas, em um segundo procedimento, por via de quocientes partidários ou de seu equivalente, entre os partidos que a compõem e segundo a participação relativa dos votos de cada um na totalidade dos sufrágios da coligação. Assim procede a maioria dos regimes proporcionalistas que admitem aliança partidária eleitoral.

A esse respeito, o elemento disnômico e grave do preceito e da prática legais brasileiros das eleições proporcionais não consiste propriamente na existência de coligações interpar-tidárias, mas em que, estabelecida, a coligação partidária substitui literalmente o partido, e o quociente da coligação simplesmente elimina e substitui o quociente partidário, de modo que as cadeiras que aquela obtém não são distribuídas, em um procedimento ulterior, entre os partidos que a constituem e segundo a magnitude relativa da contribuição dos votos de cada um à votação daquela, isto é, segundo o quociente de cada partido no interior da coligação – como se faz na maioria dos regimes proporcionalistas que admitem alianças partidárias eleitorais –, mas simplesmente entre os diferentes candidatos que a compõem, na ordem

Mas coligações partidárias não são apenas

inconsistentes com eleições proporcionais;

são, também, nelas, desnecessárias. O método

proporcional não só desestimula e em alguns

casos inibe a formação de alianças eleitorais entre partidos, mas torna-as desnecessárias porque

maximiza a probabilidade de que cada partido,

incluídos os pequenos, conquiste, sozinho e

independentemente, a representação parlamentar

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decrescente da votação pessoal de cada um, fazendo-se completa abstração dos partidos e dissolvendo-se inteiramente a identidade partidária.

Sem a previsão do mecanismo de distribuição das cadeiras entre os partidos que a compõem, a coligação interpartidária em eleições proporcionais por voto uninominal ter-mina gerando aleatoriamente inúmeras distorções, entre as quais a super-representação de partidos minúsculos, ao prover-lhes mesmo um único assento parlamentar, em prejuízo de partido maior na coligação.

Sob a lógica perversa que disciplina as eleições legislativas proporcio-nais com coligações interpartidárias no Brasil, as cadeiras legislativas nem sequer, rigorosamente, pertencem aos partidos, mas à coligação e aos seus candidatos, podendo eleger-se o candidato de um partido com os votos de candidatos de outro. Conseqüentemente, instalada a legislatura, o suplente de um parlamentar eleito pela coligação não é necessariamente o candidato imediatamente mais votado de seu partido mas o candidato imediatamen-te mais votado da coligação. A ocupação do mandato vago por suplente que pertence a partido diferente daquele do titular altera arbitrariamente a composição partidária do Legislativo, que deixa de corresponder à decisão periódica do eleitorado.

Em tais condições, cada partido, objetivando maximizar o ganho elei-toral, encontra-se diante da necessidade de recomendar ao eleitor não o voto na legenda, que, integrando um fundo comum de votos, pode apro-veitar a outro partido, mas o voto em candidato pessoal do partido, cuja pro-babilidade de ser transferido para candidato de partido coligado é menor.

Contudo, a importância das coligações na definição da representação na Câmara dos Deputados cresceu persistentemente ao longo do regime de 1946 e da Nova República.

Sabe-se a esse respeito que, no Brasil, como em vários outros países, a permissão de coligações é um mecanismo que tangencia a cláusula de ex-clusão com o propósito de preservar partidos menores. Contudo, se é este o objetivo, é preferível, em princípio, do ponto de vista da natureza, dos objetivos e do adequado funcionamento da representação proporcional, reduzir ou mesmo eliminar a cláusula de exclusão, ou ainda adotar uma fórmula menos concentradora de conversão de votos em cadeiras legislati-

vas para os diferentes partidos, do que introduzir coligações eleitorais interpartidárias. Esse foi o exemplo da Suécia, que em 1952 substituiu funcionalmente a possibilidade de alianças eleitorais interpartidárias pela adoção da fórmula Sainte Lagüe modificada.

Literalmente, o projeto de reforma política (Projeto de Lei nº 2.679/2003) não elimina as coligações partidárias em eleições proporcionais, como aparentemente pretende em sua justificação; simplesmente as substitui por federações de partidos, observado o preceito de que “os partidos reunidos em federação deverão permanecer a ela filiados, no mínimo, por três anos” (art. 3º, art. 11-A, § 1º, II).

Sob a lógica perversa que disciplina as eleições legislativas proporcionais

com coligações interpartidárias no Brasil,

as cadeiras legislativas nem sequer, rigorosamente,

pertencem aos partidos, mas à coligação e aos

seus candidatos, podendo eleger-se o candidato de um partido com os

votos de candidatos de outro. Conseqüentemente,

instalada a legislatura, o suplente de um

parlamentar eleito pela coligação não

é necessariamente o candidato imediatamente

mais votado de seu partido mas o candidato

imediatamente mais votado da coligação

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Mas, na distribuição e ocupação das cadeiras da Câmara dos Deputados, a federação, preci-samente como a coligação eleitoral, elimina e substitui os partidos que a compõem, e o quociente da federação elimina e substitui os quocientes daqueles partidos. Permanecem intactos a esse respeito os artigos 107, 108 e 109 do Código Eleitoral, em sua redação de 1985. O enun-ciado pelo art. 11-A, caput, da “garantia da preservação da identidade e da autonomia dos partidos” que integrarem a federação, é pura retórica legal.

Ora, substituir, em eleições proporcionais, coligações partidárias por federações parti-dárias, que exercem as mesmas funções e produzem os mesmos efeitos – ou seja, substituir um nome por outro para perpetuar o que pretensamente se quer eliminar – é um desrespei-to à inteligência.

2) Listas partidárias fechadas ou flexíveis

Do ponto de vista da interação entre partidos, candidatos e eleitores, importa distin-guir dois tipos de sistemas eleitorais: de um lado, (1) aqueles nos quais os partidos ocupam o centro de gravidade da competição pelo voto e são decisivos quanto à estruturação, à distri-buição e à agregação das preferências do eleitorado, assegurando não só a responsabilização dos eleitos mas predictibilidade no comportamento legislativo e na formação do governo; de outro, (2) aqueles nos quais a interação fundamental no mercado de votos se realiza entre candidatos e eleitores, reduzindo a relevância dos partidos na competição eleitoral, no legislativo e no governo.

A variável estratégica da qual depende a opção por um ou outro desses dois tipos – e, em suma, o vigor ou o desvanecimento da identidade partidária no processo eleitoral e na representação política – é a concepção de um elemento aparentemente inocente, o boletim de voto. Por meio da definição institucional da estrutura do boletim de voto cada um dos diferentes sistemas eleitorais decide primariamente acerca da distribuição, entre o partido e seus eleitores, do poder de hierarquizar, por antecipação, as probabilidades de eleição dos candidatos do próprio partido.

Existem, a esse respeito, quatro variedades fundamentais de sistemas proporcionais.Nas eleições proporcionais por listas partidárias hierarquizadas, fechadas e bloqueadas

pertence inteira e exclusivamente ao partido o poder de ordenar, por antecipação e com exclusividade, as probabilidades de eleição de seus próprios candidatos.

Nas eleições por listas partidárias flexíveis os eleitores podem compartilhar secundaria-mente daquele poder, que, entretanto, continua a pertencer, no fundamental, ao partido. Nelas, permite-se ao eleitor definir a ordem de preferência ou, em regra, redefinir aquela estabelecida pelo partido, atribuir votos preferenciais e votar em um número menor de can-didatos ou em um único candidato, entre os da mesma lista partidária.

Essas duas variedades de sistemas alimentam e consolidam a coesão partidária ao mesmo tempo em que asseguram a mediação responsabilizadora exercida sobre os eleitos, quanto aos compromissos com o eleitorado, pela direção colegiada regional ou nacional do partido.

Contudo, na eleição por listas abertas, os eleitores participam mais decisivamente, e em prejuízo do partido, do poder de determinar por antecipação a distribuição final das cadei-

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ras legislativas entre os candidatos, podendo não só reordenar a lista partidária e votar em um número menor de candidatos ou em um único, concentrar mais de um voto ou todos em um mesmo candidato (o voto cumulativo) ou simplesmente dar votos preferenciais, mas nela introduzir candidatos novos ou candidatos de outro partido (o panachage).

Entretanto, de um modo geral, nos países que adotam uma ou outra dessas duas úl-timas variedades de lista eleitoral tem sido muito pouco relevante ou quase irrelevante a freqüência com que os eleitores empregam o espaço de poder que lhes é facultado, o que diminui consideravelmente os efeitos erosivos que a lista aberta ou mesmo a flexível pode-riam causar sobre a identidade e o papel dos partidos.

Mas há, enfim, a variedade extrema dos sistemas de eleição proporcional sem listas par-tidárias, da qual existem três casos particulares: o single transferable vote irlandês, em que o eleitor organiza e hierarquiza a lista de seus candidatos, na qual pode incluir candidatos de partidos diferentes, e os sistemas finlandês e brasileiro de eleições proporcionais pelo voto pessoal em um único candidato, o voto uninominal, admitindo-se apenas alternativamente, no caso brasileiro, o voto na legenda partidária.1

Nesses três últimos casos, o partido é inteiramente privado do poder de hierarquizar as probabilidades de eleição de seus próprios candidatos, as quais passam a depender direta-mente das relações entre aqueles e os eleitores.

Especialmente nos dois últimos, o voto em candidato individual que, contabilizado para a legenda, transfere-se aleatoriamente a outros candidatos do mesmo partido e, admi-tida a coligação interpartidária em eleições proporcionais, a candidatos de outros partidos, equivale ao voto em uma lista partidária virtual que constitui, entretanto, com sua ordena-ção, o resultado aleatório das escolhas de todos os eleitores do partido ou da coligação.

Assim, ao fim e ao cabo, nem o eleitor nem o partido tem qualquer controle sobre o destino do voto e sobre a ordem de precedência dos candidatos nessa lista virtual, porque constituem efeitos compósitos e aleatórios.

Há, contudo, uma diferença fundamental. Nos países que adotam alguma forma de votação que amplia o escopo da decisão individual dos eleitores, em detrimento dos parti-dos, na determinação final dos candidatos eleitos – como a Irlanda com o voto único trans-ferível, a Finlândia com o voto pessoal preferencial e a Austrália com o voto alternativo –, a existência de partidos sólidos e coesos, com identidade enraizada histórica e culturalmente, precedeu a instituição desse mecanismo eleitoral. No Brasil, ao contrário, a adoção do voto uninominal, nos anos 30, precedeu em pouco mais de uma década a emergência, proble-mática, de partidos organizados e modernos de massas.

Nas eleições proporcionais brasileiras, o voto uninominal converte o quociente parti-dário − calculado com base nos votos em candidatos e nos votos, em menor número, na legenda − no agregado bizarro das preferências dos eleitores por candidatos individuais. E a distribuição final das cadeiras do partido entre seus candidatos faz-se conforme a ordem decrescente dos votos uninominais de cada um.

Não obstante a faculdade de votar na legenda, que nem sempre a legislação lhe facul-tou, o eleitor brasileiro vota em regra em um único candidato; e esse voto, computado para o partido do ponto de vista da escolha interpartidária, é contabilizado, do ponto de vista da

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decisão intrapartidária, que o sistema confere ao eleitor, apenas para o candidato, podendo aproveitar aos demais candidatos do mesmo partido apenas quando a votação daquele exce-de o quociente ou dele permanece aquém.

Entre 1945 e 1964, na ausência da cédula oficial, não era em regra sequer permitido aos eleitores votar na legenda. A referência à legenda não constava na cédula eleitoral que, elaborada pelos candidatos, consagrava, não raro, dois nomes de partidos diferentes concor-rendo, “em dobradinha”, um para deputado federal e o outro para deputado estadual. Em 1986 e em 1990 a cédula continha, além do espaço reservado para registrar o nome ou o código do candidato, uma lista de siglas partidárias, de modo que o eleitor podia votar ou no candidato ou na legenda.

Entretanto, nas eleições de 1994, embora fosse permitido, em princípio, ao eleitor votar no candidato ou no partido, a cédula não continha as siglas partidárias para assinalar, induzindo ainda mais poderosamente a grande massa do eleitorado ao voto no candidato. O resultado foi conseqüente: enquanto de 1986 a 1990 a magnitude relativa do voto de legenda crescera de 14,3% para 18,9%, com a cédula de 1994 – que não continha referência à sigla –, decresceu radicalmente para 8,3%.

Nas eleições proporcionais brasileiras, constituída a coligação interpartidária, os votos na legenda pertencem não ao partido mas ao fundo comum da coalizão, beneficiando-se cada partido em particular apenas com os votos em seus candidatos: esse mecanismo tem a propriedade perversa de estimular, senão constranger, os eleitores a votarem − persuadidos com freqüência pelos seus próprios partidos, por considerações de cálculo estratégico − não na legenda, mas apenas no nome de seus candidatos e, no caso de partido muito pequeno, a concentrarem os votos nos candidatos ou no candidato com maior probabilidade eleitoral.

A combinação, em eleições proporcionais, entre voto uninominal e coligação inter-partidária habitualiza e legitima o livre fluxo das migrações partidárias dos representantes legislativos e, com ele, alimenta a existência e o funcionamento de um mercado paralelo de mandatos que, com muita propriedade, Edson Nunes, André Nogueira e Paulo Tafner identificaram como “o mercado secundário dos votos” adquiridos pelo representante no mercado “primário” das eleições (Nu-nes, Nogueira e Tafner, p. 43-53).

Mas já no mercado primário das eleições, o voto uninominal viabiliza o financiamento seletivo e corruptor, pelo capital organizado e pelas corpo-rações de todo tipo, inclusive sindicais, de candidatos de diferentes partidos, e com a abstração destes últimos: meca-nismo mais atrativo porque ao mesmo tempo mais eficiente e mais discreto. A adoção da lista partidária fechada ou mesmo flexível reduziria severamente o

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estímulo à compra de votos e ao financiamento clandestino de candidatos de partidos diferentes.

É também o voto uninominal que viabiliza a introdução nas eleições dos mecanismos de patronagem e clientela e da corrupção patrimonialista, com os recursos do Estado, por parte das elites políticas, que decidem pela indicação de candidato que, favorecido na competição intrapartidária, será ainda mais facilmente favorecido no processo eleitoral, em prejuízo dos demais candidatos do mesmo ou de outro partido.

Em eleições proporcionais, atuando independentemente, quer o voto uninominal, quer a coligação interpartidária – sem um mecanismo que distribua, em um segundo momento, entre os partidos, proporcionalmen-te à contribuição em votos de cada um, as cadeiras obtidas pela coligação – faz desaparecer a especificidade dos quocientes partidários e, por via de conseqüência, não apenas a diferenciação entre os partidos mas a individu-alidade, a coerência e a coesão internas de cada um. Operando associados, em um país que carece de estrutura partidária previamente consolidada, como o Brasil, esses dois mecanismos atomizam a representação política, nela introduzindo o sincretismo partidário; erodem a identidade e o ali-nhamento partidários nos processos eleitoral, legislativo e governamental; e desvanecem a mediação responsabilizadora dos partidos nas relações en-tre o eleitorado e os representantes.

3) Cláusula de exclusão

Um considerável número de sistemas proporcionais – incluídos aqueles nos quais a conversão dos votos partidários em cadeiras legislativas partidárias se faz por meio de fór-mulas de maior precisão e em escala nacional, como o da República Federal da Alemanha, ou em distritos que elegem números elevados de representantes – estatue o requisito legal de um percentual mínimo de votos que cada partido deve obter para participar do cálculo de distribuição das cadeiras legislativas e ser admitido à representação política. Trata-se da cláu-sula de exclusão, denominada, na República Federal da Alemanha, sperrklausel (cláusula de barreira ), que fixa um patamar mínimo de votos – em regra 5% ou menos dos votos partidários válidos, em escala nacional ou em distritos eleitorais que elegem números elevados de re-presentantes –, aquém do qual o partido é considerado não apenas eleitoral mas sociologicamente irrelevante, excluído da distribuição das cadeiras legislativas e elimi-nado da representação parlamentar.

A tabela seguinte é ilustrativa.

O voto uninominal viabiliza o financiamento

seletivo e corruptor, pelo capital organizado

e pelas corporações de todo tipo, inclusive

sindicais, de candidatos de diferentes partidos, e com a abstração destes

últimos: mecanismo mais atrativo porque ao mesmo

tempo mais eficiente e mais discreto. A adoção

da lista partidária fechada ou mesmo flexível

reduziria severamente o estímulo à compra de

votos e ao financiamento clandestino de candidatos

de partidos diferentes

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Tabela I - Exclusão em 26 sistemas eleitorais proporcionais

Sistemas sem cláusula de exclusão

Suíça, Noruega, Finlândia, Portugal, Chile, Uruguai, Colômbia, Peru, África do Sul, Madagascar

Sistemas com cláusula de exclusão

Holanda: 0,67% dos votos válidos nacionais Israel: 1,5% dos votos válidos nacionaisGrécia: 3% dos votos válidos nacionais para concorrer em qualquer nível Áustria: 4% dos votos válidos nacionais ou uma cadeira distritalSuécia: no país, 4% do votos válidos nacionais; no distrito, 4% dos votos válidos nacionais ou 12% do voto distrital válido Bulgária: 4% dos votos válidos nacionais Moçambique: 5% dos votos válidos nacionais República Federal da Alemanha: 5% dos votos partidários válidos nacionais ou conquista, pelo partido, de três distritos uninominaisDinamarca: 2% dos votos válidos nacionais ou uma cadeira distrital ou certo número de votos válidos em duas entre as três regiões em que se divide o país República Tcheca: 5% dos votos válidos nacionais para o partido, elevando-se com coligações e segundo o tamanho destasBélgica: 33% do quociente em pelo menos um distritoPolônia: 7% dos votos válidos nacionais e, no distrito, 5% para partido e 8% para coligação Espanha: 3% dos votos válidos em cada distritoArgentina: 3% dos votos válidos em cada distritoCosta Rica: 50% do quociente em cada distrito Turquia: 10% dos votos válidos nacionais e o quociente no distrito

NOTA. Os dados referem-se aos anos 90 e encontram-se em Jairo Marconi Nicolau. Sistemas eleitorais: uma introdução. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas Editora, 1999, Quadro 1, p. 38-39.

Na Tabela I, entre 10 sistemas proporcionais, dez não empregam cláusula de exclusão; 10 empregam cláusula de exclusão inferior ou igual a 5% dos votos válidos nacionais; 3 estatuem cláusulas de exclusão modestas para a competição nos distritos. Apenas a Polônia e a Turquia adotam cláusulas de exclusão que se afastam radicalmente do consenso das de-mocracias constitucionais.

Há um consenso na literatura técnica sobre os sistemas eleitorais de que cláusulas de exclusão de valor igual ou menor do que 5% dos votos partidários válidos, especialmente quando em escala nacional ou em distritos eleitorais que elegem números suficientemente elevados de representantes, são perfeitamente consistentes com a natureza e o bom funcio-namento dos sistemas de representação proporcional.

Este tem sido também o entendimento das decisões do Tribunal Constitucional Fede-ral da Alemanha.

Mas, quer a literatura científica, quer a decisão da Corte Constitucional Alemã, ambas concordam também que cláusulas de exclusão superiores a 5%, e/ou aplicadas em distritos

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que elegem números reduzidos de representantes, produzem efeitos majoritários e violam, portanto, o princípio e a prática da representação proporcional.

Especificamente, o Tribunal Constitucional Alemão declarou que “uma cláusula de barreira superior a 5% é incompatível com a igualdade de oportunidades dos partidos cons-titucionalmente assegurada e, portanto, é inconstitucional” (Nohlen, p. 306).

Este é, sem qualquer dúvida, o caso de 19 entre as 27 unidades federativas do Brasil. A tradição constitucional brasileira define os estados e o Distrito Federal como colégios

eleitorais. Cada um dos quais, de acordo com a Constituição de 1988, elege determinado número de representantes à Câmara dos Deputados, em princípio proporcionalmente à magnitude relativa de sua população. Entretanto, a proporcionalidade deste apportionment é prejudicada como resultado do constrangimento, estatuído pelo próprio texto constitu-cional, de que “nenhuma daquelas unidades da Federação tenha menos de oito ou mais de setenta deputados”(art. 45, § 1º).

Portanto, o sistema brasileiro de representação proporcional para eleição da Câmara dos Deputados compreende 27 circunscrições – 26 estados e o Distrito Federal – que ele-gem números diferentes de deputados, segundo quocientes de magnitudes desiguais.

Por outro lado, afastando-se estranhamente da prática clássica e contemporânea das democracias proporcionalistas, o Brasil adota, desde o Código Eleitoral de 1935, o quocien-te como cláusula de exclusão, de modo que funcionam, no sistema eleitoral brasileiro, 27 cláusulas de exclusão de tamanhos desiguais.

Contudo, a leitura da Tabela II revela, no conjunto do país continental, um claro dualismo.

Tabela II - Os estados brasileiros e o Distrito Federal segundo o número de cadeiras na Câmara dos Deputados e

o valor relativo do quociente e cláusula de exclusãoSão Paulo 70 - 1,4% Pará 17 - 5,9% Rio Grande do Norte 8 - 12,5%

Minas Gerais 53 - 1,9% Goiás 17 - 5,9% Tocantins 8 - 12,5%

Rio de Janeiro 46 - 2,2% Santa Catarina 16 - 6,2% Amazonas 8 - 12,5%

Bahia 39 - 2,6% Paraíba 12 – 8,3% Mato Grosso do Sul 8 - 12,5%

Rio Grande do Sul 31- 3,2% Espírito Santo 10 - 10,0% Amapá 8 - 12,5%

Paraná 30 - 3,3% Piauí 10 – 10,0% Rondônia 8 - 12,5%

Pernambuco 25 - 4,0% Alagoas 9 - 11,1% Roraima 8 - 12,5%

Ceará 22 - 4,5% Distrito Federal 8 - 12,5% Sergipe 8 - 12,5%

Maranhão 18 - 5,9% Mato Grosso 8 - 12,5% Acre 8 - 12,5%

De um lado, apenas oito colégios eleitorais estaduais, que elegem entre 22 e 70 repre-sentantes, possuem cláusulas de exclusão inferiores ao parâmetro de 5%; e, entre eles, os dois maiores têm cláusulas de exclusão diminutas, ineficazes e irrelevantes.

De outro, em onze estados, que elegem o mínimo constitucional de oito representan-tes, a cláusula de exclusão passa a ser de 12,5%, duas vezes e meia maior do que o limite superior de 5%, consensualmente reconhecido como compatível com democracias propor-

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cionalistas. Em três estados, a cláusula eliminatória é duas vezes maior do que aquele limite. E, em cinco outros estados, situa-se entre 5,9% e 8,3%.

Enfim, na lógica que resulta da combinação entre o sistema eleitoral brasileiro e o critério de apportionment das cadeiras da Câmara dos Deputados, prescrito pela Constituição, à medida que diminui a magnitude da circunscrição, eleva-se rapidamente a cláusula de exclusão e, com ela, os efeitos de concentração do sistema partidário e de exclusão de partidos menores.

Nos catorze estados que elegem dez representantes ou menos, a combinação entre a (1) magnitude distrital reduzida, (2) o valor extremamente elevado do quociente e (3) a conversão deste em cláusula de barreira praticamente inviabiliza a concorrência eleitoral de partidos que, embora possuam certa expressão nacional, contam com menor, ainda que não negligenciável, representatividade local ou regional. A política nesses estados fica confinada a dois ou três “grandes” partidos, qualquer que seja a sua legenda nacional, satelitizados por oligarquias dominantes.

Ao contrário, nos quatro maiores colégios eleitorais, a cláusula de exclusão é simples-mente ineficiente e despicienda, o que estimula a criação de micropartidos esdrúxulos e o funcionamento de legendas de aluguel.

A cláusula de exclusão vigente, contida no § 2º do art. 109 do Código Eleitoral de 1965, simplesmente elimina da distribuição das cadeiras, em cada unidade da federação, os partidos que não lograram o quociente eleitoral, esterilizando-lhes e desprezando-lhes os vo-tos. Rigorosamente, não transfere esses votos para os partidos que lograram os quocientes. Simplesmente os faz desaparecer; mas, ao fazê-lo, assegura aos candidatos dos partidos que atingiram o quociente partidário um número maior de cadeiras do que aquele que teriam obtido com o simples valor do quociente. Ou seja, cada partido que não obtém o quocien-te eleva, ao custo da esterilização de seus próprios votos, o valor do voto dos partidos que atingiram o quociente.

Esse artifício gera acentuada desproporção, por partidos, entre votos e cadeiras legislati-vas, em benefício da redução radical do número de partidos na representação do colégio elei-toral estadual na Câmara dos Deputados e ao custo do princípio da igualdade quanto ao valor do voto, essencial à representação proporcional e consagrado pelo art. 14 da Constituição.

Mas não é eficiente se o seu objetivo é reduzir o número de partidos com representação na Câmara dos Deputados em relação ao número de partidos que competem no conjunto do sistema eleitoral brasileiro, simplesmente porque partidos que são eliminados em uma unidade federativa – sobretudo naquelas em que a cláusula de exclusão é superior a 10% dos votos válidos – podem ser e efetivamente são eleitos em outra. Rigorosamente, o único mecanismo capaz de responder a esse problema é aquele adotado pela República Federal da Alemanha para a eleição do Bundestag: os partidos competem em colégios eleitorais estadu-ais, mas o número de cadeiras que cabem a cada partido calcula-se em marco nacional, pela soma de seus votos estaduais; e, apenas em um segundo procedimento, as cadeiras nacionais do partido distribuem-se entre suas listas estaduais.

Dieter Nohlen afirma com propriedade que proporcionalidade e maioria são dois prin-cípios antitéticos e irreconciliáveis de representação política.

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A máxima da representação proporcional é a de one man, one vote, a cada eleitor um voto com igual valor. Pertence à natureza dos sistemas proporcionais contabilizar e valorizar igualmente todos, ou tendencialmente todos, os votos, com o propósito de assegurar voz e voto efetivos, no parlamento, à maior diversidade possível de tendências e projetos em que

se divide a sociedade.A máxima da representação majoritária é first-past-the-post, o primeiro

pretere os demais, ou ainda, the winner takes all, o partido vencedor arreba-ta todas as cadeiras disputadas. O sistema majoritário considera apenas os votos do partido vencedor e despreza todos os demais, ainda que, se houver mais de dois partidos, os votos esterilizados sejam a maioria. E, a não ser em sociedades com tradição e cultura bipartidárias, sistemas majoritários exercem graves efeitos de exclusão política.

Conclui-se desta comparação que o preceito do artigo 14 da Consti-tuição, voto direto e secreto, com valor igual para todos, só pode ser assegu-rado pela representação proporcional, pois o patamar mínimo e crucial da igualdade do valor do voto consiste, precisamente, em que todos os votos sejam considerados e contabilizados.

Em suma, os princípios da proporcionalidade na relação entre votos e cadeiras legislativas por partidos e da igualdade quanto ao valor do voto encontram-se íntima e indissoluvelmente correlacionados entre si e ambos constituem valores fundamentais consagrados pela Constituição de 1988.

O argumento demonstra a necessidade de suprimir o § 2º do art. 109 do Código Eleitoral, que, gerando efeitos de maioria e subvertendo a representação proporcional dos partidos, é claramente inconstitucional. A medida encontra-se incorporada ao Projeto de Lei nº 2.679, de 2003, da reforma política.

Contudo, com o propósito de assegurar a efetividade do sistema partidário-parlamen-tar, afastando organizações irrelevantes, o preceito suprimido deve ser substituído por outro requisito de ingresso para o partido: 5% dos votos válidos em escala nacional, distribuídos em certa proporção mínima por certo número de estados.

Existe, a esse respeito, uma confusão letal, não apenas de linguagem, mas de essência, quanto à teoria e à instituição da representação política.

O artigo 13 da Lei nº 9.096/95, a Lei dos Partidos Políticos, e, com ele, o artigo 4º do Projeto de Lei nº 2.679/2003 – que lhe pretende dar nova redação – não instituem cláu-sula de exclusão, que é inerente ao regime proporcional, nem podem substituí-la. Apenas introduzem restrições e limitações ao desempenho parlamentar dos partidos que não cum-priram certos requisitos eleitorais, a respeito das quais há um excelente estudo, de Kátia de Carvalho, cujos dados e argumentos não podem, lamentavelmente, ser reproduzidos neste limitado espaço (Carvalho, 2003).

Essas restrições e limitações não violam apenas preceitos da Constituição brasileira mas princípios da representação política consagrados pela tradição das democracias ocidentais. Entre eles, o fundamental é o de que o mandato representativo só admite uma classificação dicotômica: ou o representante foi eleito e desfruta dos mesmos direitos, prerrogativas e po-

No mandato representativo moderno, não é o representante e,

com ele, o corpo de representantes que se

obrigam ao eleitorado, mas, ao contrário, são

os eleitores que, ao designá-los, obrigam-se

por antecipação a acolher como efetivamente suas

todas as decisões que eles vierem a tomar em seu nome na esfera pública

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deres universalmente reconhecidos de que desfrutam os demais; ou não cumpriu os requisi-tos necessários para qualquer candidato ser eleito – entre os quais, se adotada, a cláusula de exclusão, ou de barreira – e, portanto, não foi eleito, não deve ser diplomado e empossado, porque não é representante. Conquistado, o mandato representativo não admite classifi-cações ordinais: não existem, na teoria e na prática da representação política democrática, representantes com mais faculdades, competências, recursos ou poderes de representação do que outros; representantes de primeira e de segunda classe.

Contudo, recentemente, o Supremo Tribunal Federal, rompendo com suas decisões unânimes precedentes, acordou, também por unanimidade, em que o preceito do artigo 13 da Lei nº 9.096/95 carece de eficácia jurídica porque é inconstitucional. Embora constru-ída sobre alguns fundamentos equivocados, a última decisão não deve ser considerada um retrocesso. Ao contrário, a eliminação dos preceitos do art. 13 da Lei nº 9.096/1995 e do § 2º do art. 109 do Código Eleitoral deve preceder a instituição da cláusula de exclusão, que a própria lógica do regime proporcional exige.

4) Fidelidade partidária

Impressionados com o desre-gramento crescente dos corpos le-gislativos do país, os observadores mais sensatos buscam socorro na instituição da fidelidade partidá-ria. Entretanto, o instituto legal da fidelidade partidária e a noção da qual deriva não são intuitivos. Não há, mesmo, um entendimen-to unívoco sobre a sua natureza, os seus fundamentos, o âmbito de

sua ação e seus efeitos. Que clareza e precisão poder-se-iam esperar de preceitos legislativos erguidos sobre categorias de significado tão movediço?

Nos terrenos do parlamento e do governo, o recurso à fidelidade partidária supõe que o partido dispõe de poder de controle sobre o mandato representativo.

Contudo, na teoria moderna da representação política e do governo representativo, o representante e o governo são detentores de um mandato livre e virtual, o que significa que, como observou Giovanni Sartori com extrema acuidade, com a emergência das democracias modernas, os representantes “não apenas foram declarados agentes livres, aos quais não po-deriam ser dadas instruções, mas foram designados para representar uma vontade que não existia antes de sua própria vontade” (Sartori, 1968, p. 466).

No mandato representativo moderno, não é o representante e, com ele, o corpo de representantes que se obrigam ao eleitorado mas, ao contrário, são os eleitores que, ao desig-ná-los, obrigam-se por antecipação a acolher como efetivamente suas todas as decisões que eles vierem a tomar em seu nome na esfera pública.

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A exigência constitucional do mandato livre resulta de dois fundamentos, para os quais Burke já apontara.

A democracia é essencialmente dialógica e deliberativa e, nela, toda decisão importante deve ser precedida pelo debate, isto é, pelo confronto entre diferentes argumentos. Delibe-rar significa pesar diferentes argumentos para chegar a uma convicção; portanto, não tem qualquer sentido a deliberação legislativa se o voto do representante foi previamente deci-dido, por seus constituintes, por seu partido ou mesmo por ele próprio. O requisito ético fundamental da democracia representativa dialógica e deliberativa consiste na disposição, por parte de cada representante, de persuadir e de ser persuadido. Em segundo lugar, as condi-

ções políticas encontram-se em permanente mutação; portanto, do fato de que o representante esteja obrigado a princípios e diretrizes gerais não se deve concluir que deva vincular-se, ao longo de todo o mandato, a decisões específicas tomadas antes de assumi-lo.

Ademais, Montesquieu, antecipando Schumpeter e Sartori, já afirmara que eleições competitivas são um método por meio do qual o corpo eleitoral, sem condições de decidir sobre temas complexos, especializados e acima de seu alcance, seleciona os seus dirigentes – segundo critérios que combinam a com-petência dos candidatos com o consenso genérico, entre eleitores e eleitos, acerca de preferências por políticas públicas −, incumbindo-os da função de deliberar sobre assuntos públicos (Montesquieu, livro II, cap. II, p. 533 e livro XI, cap. VI, p. 587; Schumpeter, livro IV; Sartori, 1965, p. 123).

Assim, efetivamente, nas democracias constitucionais e representati-vas modernas só há dois recursos para prover a responsabilização política dos representantes ou do governo pelo eleitorado: (1) a sanção retrospecti-va provida por eleições competitivas regulares periódicas, nas quais o elei-torado pode reeleger ou não o portador de um mandato e, no intervalo entre duas eleições consecutivas, (2) a transitividade e a responsabilidade recíprocas entre eleitores e eleitos, realizada por partidos políticos sólidos, estáveis, coesos e disciplinados.

Sabe-se que o segundo recurso é problemático, especialmente no sistema eleitoral brasileiro.

Nas democracias ocidentais há uma profunda ambigüidade acerca da titularidade e da responsabilidade sobre o mandato representativo, articulada pela noção de que a democra-cia representativa moderna é essencialmente mediatizada pela competição entre os partidos e de que, portanto, a responsabilidade e o poder sobre o mandato, embora pertençam ime-diatamente ao representante, titular iminente da representação, incumbem mediatamente ao partido, que detém a titularidade eminente da representação.

Entretanto, na cultura política brasileira, o rationale e o conteúdo normativo subjacentes à instituição e à prática do voto uninominal na representação proporcional consistem na no-ção de que, adquirido pela via de uma obrigação pública entre o eleito e os eleitores – mas, por este motivo, direta, anônima, atomizada e não sancionável –, o mandato representativo pertence privada, exclusiva e discricionariamente ao representante. Como resultado, a am-

Como resultado, a ambigüidade da teoria

ocidental da representação política se desfez, no

Brasil, em prejuízo dos partidos e em benefício

do individualismo anárquico dos políticos.

O voto uninominal e a substituição do quociente partidário pelo quociente da coligação em eleições

proporcionais, consagrados pelo direito eleitoral

brasileiro, tornam juridicamente problemática

qualquer pretensão do partido de responsabilizar

o representante pelo desempenho do mandato

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Reforma Política

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bigüidade da teoria ocidental da representação política se desfez, no Brasil, em prejuízo dos partidos e em benefício do individualismo anárquico dos políticos. O voto uninominal e a substituição do quociente partidário pelo quociente da coligação em eleições proporcionais, consagrados pelo direito eleitoral brasileiro, tornam juridicamente problemática qualquer pretensão do partido de responsabilizar o representante pelo desempenho do mandato.

Ademais, por duas décadas, intermitentemente, o partido não podia ou muito dificil-mente podia sequer recusar-se a propor a reeleição de seu representante legislativo infiel, porque a legislação brasileira o definia como candidato nato ao mandato subseqüente: in-troduzido pelo art. 4º da Lei nº 6.978, de 1982, o preceito da candidatura nata foi sucessi-vamente reiterado pela Lei nº 6.055/1974, art. 4º, pela Lei nº 8.713/1993, art. 8º, § 2º, e pela Lei nº 9.504/1997, art. 8º, § 1º, até que sua eficácia jurídica fosse suspensa, em 2002, por acórdão do Supremo Tribunal Federal. O que significa que, ao longo daquele período, o partido foi privado de sua função primária, que consiste em dirigir e controlar a nominação de seus próprios candidatos aos diversos mandatos eletivos.

Movendo-se em direção oposta, alguns cientistas políticos, entre os quais Gerhardt Leibholz, afirmam que o vazio de responsabilização introduzido pelo mandato livre deveria e tenderia a ser ocupado pelo mandato imperativo partidário.

Contudo, importa reconhecer que o mandato imperativo partidário simplesmente faz desaparecer o mandato representativo livre, instituição fundamental para assegurar a separação e a autonomia recíprocas entre a esfera pública e a esfera privada, societária.

Se o partido, ou alguma parcela do eleitorado, tivesse o poder per se de revogar, imediata e independentemente de decisão judicial, o mandato do representante, por infidelidade ou indisciplina partidária, o corpo legis-lativo reproduziria, em sua composição, a interação societária em estado brutal, cindida por seus conflitos e desestatizada: a sociedade reverteria precisamente ao estado de natureza, que a representação política se propu-nha ultrapassar.

O corolário do mandato imperativo partidário, como demonstrou amargamente Mar-cel Waline, consistiria em “suprimir o parlamento e atribuir a cada partido um coeficiente correspondente à percentagem de seus votos no país. Se, num país, por exemplo, existem, segundo a última consulta eleitoral, quatro partidos, reunindo cada qual, respectivamente, 40%, 30%, 20% e 10% dos votos, bastaria um diretório de quatro pessoas deliberando, uma com quatro votos, a outra com três, a terceira com dois e a última com um só. Far-se-ia economia de um parlamento e o resultado seria o mesmo” (Waline, p. 65-66).

O mandato imperativo partidário é, portanto, inconsistente com a democracia repre-sentativa e constitucional. Mas essa assertiva não significa que o parlamentar seja absoluta-mente imune à responsabilização. Kelsen sustenta que, no sistema de eleições proporcionais por lista partidária fechada e hierarquizada, em que o eleitor vota apenas no partido, a perda do mandato torna-se uma dedução lógica da infidelidade partidária ou do abandono do

O mandato imperativo partidário é, portanto,

inconsistente com a democracia representativa

e constitucional. Mas essa assertiva não

significa que o parlamentar seja absolutamente imune

à responsabilização

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José Antônio Giusti Tavares

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partido pelo deputado. Entretanto, observa que, proposta pelo partido, a decisão pertinente deve resultar do julgamento de um tribunal independente (Kelsen, p. 56-57).

As conclusões de Kelsen são consistentes e coerentes com os preceitos do art. 17 da Cons-tituição brasileira e do Estatuto dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/1995 ), de acordo com os quais os partidos são pessoas jurídicas de direito privado com autonomia para definir a sua estrutura, organização e funcionamento e estatuir normas e sanções de fidelidade e disciplina, mas as decisões partidárias devem observar a Constituição e as leis, estando sujeitas, neste caso, à apreciação judicial. Mas evidenciam que, no Brasil, o estatuto da fidelidade partidária só poderá ser viabilizado com a adoção de eleições proporcionais por listas fechadas.

Nota1 Tenho insistido há longo tempo, e ainda em dois textos recentes, que a representação proporcional brasileira, convencionalmente – e equivocadamente – identificada entre os sistemas de lista aberta, constitui, a rigor, um caso especial e excêntrico, muito semelhante ao da Finlândia, de representação proporcional sem listas partidárias e com base no voto pessoal, uninominal, no candidato (Tavares, J.A.G., 1999 e 2003).

Referências

KELSEN, Hans. (1993). A Democracia. São Paulo, Martins Fontes.

MONTESQUIEU, Charles de Secondat. (1964), L’Esprit des Lois. In Oeuvres Complètes. Paris, Éditions du Seuil.

NOHLEN, Dieter. (1981). Sistemas Electorales del Mundo. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales.

NUNES, Edson; NOGUEIRA, André e TAFNER, Paulo. (1995). “Poder Político e Competição Eleitoral”. Monitor Público, nº 6.

SARTORI, Giovanni.(1965), Teoria Democrática. São Paulo, Ed. Fundo de Cultura.

SARTORI, Giovanni. (1968) “Representational Systems”. In D. Sills (ed.), International Encyclopedia of Social Sciences. Macmillan & Free Press, v. XIII.

SCHUMPETER, Joseph A. (1961), Capitalismo, Socialismo e Democracia, Rio de Janeiro, Editora Fundo de Cultura.

TAVARES, J. A. Giusti. (1999). “O Problema do Cociente Partidário na Teoria e na Prática Brasileiras do Mandato Representativo”. Dados, v. 42, nº 1.

TAVARES, J. A. Giusti. (2003). “A Mediação dos Partidos na Democracia Representativa Brasileira”. In TAVARES, J. A. Giusti (org.). O Sistema Partidário na Consolidação da Democracia Brasileira. Instituto Teotônio Vilela, Brasília-Porto Alegre.

WALINE, Marcel. (1948). Les Partis Contre La République, Paris, Rousseau.

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Simonsen, ministro da Fazenda, 1976. Foto de Luis Humberto.

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Wilhelm Hofmeister*

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Ao se falar sobre Direito Eleitoral e reformas da legislação eleitoral, normalmente se dá uma atenção especial ao Direito Eleitoral alemão, pois seus princípios fundamentais e sua aplicação prática contribuíram de forma decisiva para que se estabelecesse na Alemanha, após a catástrofe ocorrida na Segunda Guerra Mundial, uma democracia representativa estável. As experiências alemãs, obviamente, não podem ser transferidas diretamente para outros países, que têm suas próprias realidades políticas, históricas, sociais e culturais. Em todo caso, podem servir como marco de orientação e referência para reformas a serem reali-zadas em outras nações. Desse modo, os defensores de uma reforma política no Brasil, que também implique uma reforma do Direito Eleitoral, poderiam levar em consideração as experiências alemãs. Antes de mais nada, isso diz respeito aos princípios básicos do Direito Eleitoral, às expectativas centrais e às exigências de desempenho que devem ser direcionadas a um sistema eleitoral.

os pilares do Direito Eleitoral alemão como referência para reflexões visando a uma reforma do sistema eleitoral brasileiro

*Wilhelm Hofmeister é diretor do Centro de Estudos da Fundação Konrad Adenauer no Rio de Janeiro, Brasil.Tradutor: Tito Lívio Cruz Romão.

Democracia,governabilidade,estabilidade:

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Exigências de desempenho direcionadas a um sistema eleitoral

Antes de mais nada, e a partir de uma visão amplamente compartilhada na Alemanha e em outros países, os sistemas eleitorais precisam desempenhar cinco funções:1

• Representação: todos os segmentos relevantes da sociedade deverão ser representados pelos detentores dos cargos representativos obtidos através de pleito eleitoral. Os mandatos de deputados deverão ser um reflexo dos votos depositados pelos eleitores nas urnas.

• Concentração: dever-se-á reduzir o número de partidos no parlamento e fomentar a formação de maiorias parlamentares estáveis.

• Participação: os eleitores deverão ter grandes chances de participação, podendo fazer sobretudo uma escolha personalizada, além da opção por um partido.

• Clareza: os eleitores deverão entender o funcionamento do sistema eleitoral, ou seja, o procedimento eleitoral deverá ser transparente.

• Legitimidade: o sistema eleitoral e seus resultados deverão ser aceitos por todos.

Cada uma dessas exigências, por si só, pode ser realizada da melhor maneira possível. Por conseguinte, o grau de realização das diferentes exigências pode ser comparado em

diversos sistemas eleitorais. Não obstante, em nenhum sistema eleitoral é possível realizar todas estas exigências simultaneamente e em sua plenitude. Na verdade, entre a função de representação e a função de concentração de sistemas eleitorais, existe um trade-off: ou os votos depositados nas urnas pelos eleitores são representados proporcionalmente ou são convertidos em mandatos de forma desproporcionada, visando à concentração partidária. Coisa semelhante também pode ser dita, por um lado, no tocante à rela-ção entre exigências de representação, concentração e participação, bem como, por outro lado, no tocante à clareza e/ou ao grau de exeqüibilidade das exigências: normalmente, quanto mais diferenciada e complexa for a regulamentação das competências eleitorais, maior será o grau de comple-xidade de um sistema eleitoral.

Aqui já podemos registrar um aspecto decisivo que diz respeito ao sis-tema eleitoral brasileiro e à sua diferença em relação ao sistema eleitoral ale-mão: na Alemanha existe uma exigência explícita a favor da formação de

maiorias parlamentares, que é, por sua vez, um fator imprescindível para a condução estável de um governo. Já o sistema eleitoral brasileiro não apresenta essa exigência de desempenho.

Elementos do Direito Eleitoral alemão

Na Alemanha, os parlamentares da Câmara dos Deputados (Bundestag) são eleitos atra-vés de uma eleição proporcional que está vinculada ao voto personalizado (sistema eleitoral proporcional personalizado).2 Todo eleitor dispõe de dois votos. O voto personalizado signi-

Na verdade, entre a função de representação e a

função de concentração de sistemas eleitorais,

existe um trade-off: ou os votos depositados

nas urnas pelos eleitores são representados

proporcionalmente ou são convertidos em mandatos de forma

desproporcionada, visando à concentração partidária

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fica a escolha de candidatos distritais em distritos eleitorais, nos quais sempre haverá espaço para apenas um mandato, através da maioria relativa dos votos depositados pelos eleitores. O detentor do mandato será decidido pelos eleitores através de seu “primeiro voto” na cé-dula de votação. O voto proporcional representa o sufrágio a partir de listas partidárias fecha-das, ressaltando-se que os votos depositados na legenda pelos eleitores são convertidos em cadeiras no Bundestag.3 A escolha das legendas partidárias corresponde ao “segundo voto” na cédula de votação. Através deste procedimento eleitoral, o voto personalizado e o voto proporcional unem-se segundo diferentes princípios:

• Princípio da distribuição equânime: uma primeira metade de todos os deputados do Bundestag é determinada nos distritos eleitorais através de voto majoritário personalizado, enquanto a outra metade é decidida através da votação nas legendas partidárias.

• Princípio da compensação: o número de mandatos distritais obtido por cada partido através da votação personalizada é deduzido do número de seus mandatos por lista de legendas partidárias. Isso faz com que sejam formadas as relações de forças entre os partidos no Bundestag através do voto proporcional.

• Princípio dos mandatos excedentes: se o número de mandatos diretos (ou seja, conquistados nos distritos) obtidos por um partido em um estado federado da República Federal da Alemanha for superior ao número de mandatos obtidos através do voto na legenda, tais mandatos excedentes serão conferidos a outros partidos, sem que haja a obtenção de mandatos compensatórios.

• Princípio da cláusula de barreira: os votos depositados nas urnas pelos eleitores somente serão convertidos em mandatos de deputados do Bundestag em benefício daqueles partidos que tenham obtido pelo menos cinco por cento dos segundos votos ou pelo menos três mandatos distritais diretos no território federal alemão.

Com base nesses princípios, obtém-se um sistema combinado de eleição proporcional e eleição majoritária, com competência per-sonalizada parcial por parte do eleitor, um sistema que, nos países de língua alemã, foi designado como eleição proporcio-nal personalizada e que é conhecido, nos países de expressão anglo-americana, como mixed-member proportional system.

Balanço do sistema eleitoral alemão

Concentração: o sistema eleitoral alemão fomenta maiorias governamentais estáveis?

O sistema eleitoral alemão precisa ser visto como uma reação às experiências feitas com a chama-da República de Weimar no período compre-endido entre os anos de 1919 a 1933, uma

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fase caracterizada pela instabilidade política, que acabou preparando o caminho para a toma-da do poder pelos nacional-socialistas.4 O sistema eleitoral da República de Weimar apoia-va-se em um procedimento eleitoral puramente proporcional e sem cláusula de barreira, através do qual sessenta mil votos significavam um mandato de deputado federal. O sistema

pluripartidário daí resultante tinha como características profundas rupturas ideológicas e uma conduta hostil ao sistema vigente por parte dos partidos de extrema esquerda e extrema direita, o que dificultava muito a formação de maiorias governamentais estáveis. Após o término da Segunda Guerra Mundial, um dos objetivos do debate constitucional ocorrido nos anos de 1948 e 1949 era alcançar a formação de governos estáveis e democratica-mente legitimados através da Constituição, promulgada no ano de 1949. Por meio do Direito Eleitoral, dever-se-ia tentar evitar o esfacelamento par-tidário e fomentar a formação de maiorias governamentais estáveis.

Apoiando-se nessa meta, duas concepções desempenharam um papel central durante os debates constitucionais realizados entre os anos de 1947 e 1949: a concepção da eleição majoritária em distritos uninominais e a concepção da cláusula de barreira.

No sistema eleitoral que então passou a ser posto em prática, esses dois elementos fo-ram considerados de forma diferenciada. Devido à resistência imposta sobremaneira pelos pequenos partidos, a introdução de eleições majoritárias somente foi possível com restri-ções. Em compensação, a concepção da cláusula de barreira passou a ser aplicada visando ao ajuste de votos obtidos entre os partidos. Já no ano de 1949, havia uma cláusula de barreira de 5% que valia apenas para cada estado federado, e não para toda a federação alemã. Não obstante, a cláusula de barreira não exercia um efeito de concentração, pois no Bundestag havia doze partidos representados, dos quais oito haviam conseguido menos de 5% dos votos em todo o território federal.

Na eleição seguinte, realizada no ano de 1953, foi introduzida uma cláusula de barreira da ordem de 5% e com validade em todo o território nacional. Isso significa que um parti-do precisava obter no mínimo 5% dos votos totais para poder ganhar um mandato através do segundo voto na cédula de votação. A partir daí, o efeito de concentração almejado passou a funcionar: após as eleições de 1961, apenas três partidos tinham representação no Bundestag. Desde então e até as eleições de 2002, não mais que cinco partidos conseguiram mandatos simultâneos no Bundestag. Somente nas eleições de 2006, pela primeira vez, seis partidos romperiam essa barreira.

Na República Federal da Alemanha, pode-se considerar que o objetivo da função de concentração, ou seja, o fomento de maiorias governamentais estáveis, encontra-se ampla-mente realizado. Ao longo de quase sessenta anos, houve apenas cinco composições gover-namentais diferentes com um número total de oito primeiros-ministros.5 Decerto essa gran-de estabilidade também foi motivada pela prosperidade econômica de longo fôlego, pelo desenvolvimento de um sistema partidário com partidos abertos a coalizões, bem como por outras condicionantes favoráveis, tais como a pouca força de grupos de extrema esquerda e extrema direita na Alemanha, que tiveram de manter-se à margem.6 Mas a estabilidade cer-

Após o término da Segunda Guerra Mundial, um dos

objetivos do debate constitucional ocorrido

nos anos de 1948 e 1949 era alcançar a formação

de governos estáveis e democraticamente

legitimados através da Constituição, promulgada

no ano de 1949

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tamente também deve ser atribuída a condições institucionais, principalmente à cláusula de barreira de 5%. Por meio dela, o sistema eleitoral alemão conseguiu um bom desempenho de sua função de concentração.

Embora na Alemanha se teçam fortes críticas à cláusula de barreira, de maneira geral, ela acabou obtendo bons resultados. Graças a essa cláusula de exclusão, facilita-se a formação do governo. Ela não é tão elevada a ponto de im-possibilitar o êxito do estabelecimento de um novo partido, como bem mostram os exemplos dos partidos Bündnis 90/Die Grünen (Aliança 90/Os Verdes) ou Linkspartei (Partido da Esquerda). Ao mesmo tempo, porém, a cláusula de barreira é suficientemente elevada de modo a impedir que pe-quenos partidos tenham acesso ao Bundestag. Seja como for, para partidos de pequeno porte, ela é visivelmente menos restritiva que, por exemplo, a introdução da votação majoritária relativa, a qual também é, sem sombra de dúvidas, um procedimento absolutamente democrático.

Sobretudo, a aplicação da cláusula de barreira em todo o território eleitoral alemão, da forma como foi introduzida em 1953, faz bastante sentido no tocante aos aspectos de efi-ciência e transparência, embora menos no que diz respeito ao aspecto da participação (uma parte dos eleitores perde sua participação nas decisões ao longo do processo de formação da vontade política). Afinal de contas, um parlamento federal é escolhido para todo o territó-rio nacional, no qual cláusulas de barreira regionalizadas não devem desempenhar nenhum papel importante. Nesse sentido, a eficiência se mostra em sua totalidade, e não se corre o risco de violação do sentido da cláusula de barreira (que é a exclusão de pequenos partidos da representação parlamentar). Além disso, uma regulamentação dessa natureza, que pode ser bem compreendida por qualquer indivíduo, permite que partidos com mais de 5% dos votos tenham uma representação equivalente a tal grandeza no Bundestag.

Representação: a população é representada proporcionalmente no sistema eleitoral alemão?

Discute-se a representação proporcional dos votos depositados pelos eleitores através da igualdade de valor numérico e da igualdade de valor quanto ao resultado.7 Igualdade de valor numérico significa que, ao se fazer a apuração dos votos, cada voto tem o mesmo peso. Por outro lado, igualdade de valor quanto ao resultado significa que, ao se fazer a distribui-ção dos mandatos parlamentares, cada voto deve ser contemplado com eqüidade.

Quando da apuração dos votos, a igualdade de valor numérico é um elemento óbvio nas democracias desenvolvidas, o que também ocorre na Alemanha. As chances formais de que os eleitores dispõem para a obtenção de resultados satisfatórios também são funda-mentalmente iguais, tanto em função do tamanho dos distritos eleitorais, comparáveis no tocante ao número de habitantes das respectivas áreas, quanto da estrutura uniforme dos distritos uninominais para a eleição direta. Ressalte-se, porém, que a dimensão dos distritos eleitorais com um número visivelmente maior ou menor de habitantes poderá representar um desvio de até 15% para cima ou para baixo, em função do número médio de habitantes.

Embora na Alemanha se teçam fortes críticas à

cláusula de barreira, de maneira geral, ela acabou obtendo bons resultados.

Graças a essa cláusula de exclusão, facilita-se a

formação do governo

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Todavia, somente se fará mister a criação de novos distritos eleitorais se houver um desvio de 25%. Isso gera uma variação do valor numérico que é considerada muito reduzida em escala internacional. No Brasil, essa variação entre o número de habitantes e eleitores por mandato parlamentar é considerável e chegou em 2006 a tal extremo que no Estado de Roraima houve 8 mandatos para 232.814 eleitores, ou seja, uma média de 29.102 eleitores para cada mandato; já no Estado de São Paulo, com os seus 28.032.061 eleitores, foram 70 mandatos, ou uma média de 400.458 eleitores por mandato!

No que tange à igualdade de valor quanto ao resultado, existem, em primeira linha, condições favoráveis no sistema eleitoral proporcional, no qual são apurados os números de deputados dos partidos representados no Bundestag. Para tanto, concorrem principalmente a soma de votos dos partidos em nível federal e a distribuição dos mandatos, diretamente ligada à soma de votos dos partidos, segundo a fórmula eleitoral de Hare/Niemeyer. Como na Alemanha não existem distritos eleitorais com diferentes números de deputados eleitos, deixam de existir, entre os distritos eleitorais, as típicas disparidades de valor quanto aos resultados, ao se proceder à apuração dos votos.

Observe-se, porém, que o sistema eleitoral alemão, no tocante aos votos depositados pelos eleitores, nem sempre apresenta uma igualdade inabalável de valores quanto ao resul-tado. Na apuração dos votos, a cláusula de barreira de 5% gera uma desigualdade de valor quanto ao resultado. Por meio dela, são vencidos os votos obtidos por partidos que não atinjam um número mínimo de votos equivalente a 5% do total ou no mínimo três manda-tos diretos em todo o território federal. Além disso, ao verem que determinados partidos de

pequeno porte representam um risco em virtude da cláusula de exclusão, os eleitores facilmente deixam de depositar seu voto em tais partidos. No sistema eleitoral alemão, esta posição desprivilegiada que os partidos de pequeno porte podem vir a ocupar de forma direta ou indireta é um ele-mento importante em favor da concentração partidária.

Deve-se, portanto, confrontar essas desvantagens da cláusula de bar-reira com as vantagens representadas pela estabilidade de governo. Não apenas no campo do debate especializado, mas também, e sobretudo, na jurisdição do Tribunal Constitucional Federal Alemão, este é um aspecto muito valorizado. Por diversas vezes, o Tribunal Constitucional Federal Alemão já reiterou que a cláusula de barreira de 5% está em conformidade com a Constituição Federal Alemã, ou seja, é compatível com os princípios da democracia representativa.

Participação: sobre o que o eleitor pode decidir no sistema eleitoral alemão?

Via de regra, de acordo com os critérios de concentração partidária e de governabilida-de, o balanço que se faz do sistema eleitoral alemão é positivo. Também se entende que, em relação ao critério da representatividade, esse balanço é aceitável. Por outro lado, tecem-se críticas aos critérios de eficiência, transparência e participação.

Por diversas vezes, o Tribunal Constitucional

Federal Alemão já reiterou que a cláusula

de barreira de 5% está em conformidade

com a Constituição Federal Alemã, ou seja,

é compatível com os princípios da democracia

representativa

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Critica-se, por exemplo, o fato de os eleitores na Alemanha, de modo geral, somente poderem optar por candidatos predeterminados pelos partidos. Isso concerne tanto aos can-

didatos distritais indicados pelos partidos quanto aos candidatos fixos das legendas partidárias, que somente podem ser eleitos naquela composição e naquela seqüência preestabelecidas. Essa restrição à participação do eleitor fica mais forte em relação aos grandes partidos: os candidatos ao Bundestag dos partidos CDU/CSU (União Democrata-Cristã/União Social-Cristã) e SPD (Partido Social-Democrata) que sejam ocupantes das chamadas “po-sições garantidas na legenda” certamente entrarão no Bundestag, indepen-dentemente do resultado da eleição. Sob essa ótica, as eleições ao Bundestag

não têm um caráter competitivo, mas sim um caráter legitimador de decisões tomadas em outra instância. Esse poder partidário torna-se bastante claro no caso de candidatos à eleição direta que não tenham obtido êxito nas urnas, mas que, apesar de derrotados em seu distrito eleitoral, obtêm um assento no parlamento através de uma posição “garantida” na legenda.

Essa preponderância dos partidos sofre uma certa relativização apenas pelo fato de os eleitores poderem dar seu primeiro e seu segundo votos a diferentes partidos, o que na Alemanha é chamado de splitting. Se o fizerem objetivando uma distribuição estratégica de votos, isto acaba representando uma variante de participação estratégica bem específica.

Clareza: o sistema eleitoral alemão é compreensível e transparente?

Em especial devido às diversas relações entabuladas entre eleição proporcional voltada para as legendas e eleição majoritária personalizada, o sistema eleitoral vigente na Alemanha apresenta uma estrutura complexa e difícil de ser compreendida pe-los eleitores, mesmo no que concerne aos aspectos básicos de sua organização. Por essa razão, antes de cada eleição, faz-se necessário lembrar aos eleitores o sentido da cédula com duas vias de votos e explicar-lhes por que o segundo voto é considerado decisivo. Uma pessoa leiga não consegue entender facilmente as relações – passíveis de mudanças recíprocas – exis-tentes entre a eleição majoritária em distritos uni-nominais e a eleição por legenda, como é o caso do eventual surgimento de mandatos excedentes. Nes-se contexto, os resultados das urnas precisam ser aceitos pelos eleitores sem verificações ou pre-cisam então ser explicados em seus porme-nores por especialistas no assunto. Como um todo, pode-se afirmar que o sistema eleitoral alemão é complicado, pouco transparente e de difícil compreensão.

Sob essa ótica, as eleições ao Bundestag não têm um caráter competitivo, mas

sim um caráter legitimador de decisões tomadas em

outra instância

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Legitimidade: o sistema eleitoral alemão é aceito?

Não raro, são apresentados à opinião pública dados sobre a participação dos eleitores nos pleitos, como indicadores da opinião vigente acerca do sistema eleitoral. Contudo, em virtude dos inúmeros e diversos fatores que exercem influência sobre a participação dos eleitores nos pleitos eleitorais, não fica claro até que ponto esses dados exprimem as mudanças de opinião em relação ao sistema eleitoral. Seja como for, pode-se supor que se dá um amplo apoio ao sistema político vigente e, conseqüentemente, ao sistema eleitoral praticado, quando há uma alta taxa de participação voluntária dos

eleitores nos pleitos. Deste modo, o grau de participação dos eleitores nos pleitos para o Bundestag depõe em favor da aceitação do sistema político e, por conseguinte, do sistema eleitoral em vigência atualmente na República Federal da Alemanha. É surpreendente, porém, que pareça não haver pesquisas de opinião pública sobre o sistema eleitoral alemão.

Se tomarmos como critério de legitimação do sistema eleitoral alemão as opiniões de especialistas da área, pode-se constatar que, no mainstream da pesquisa sobre o sistema elei-toral realizada por cientistas políticos e da Formação Política8, a eleição majoritária persona-lizada é realmente considerada o modelo de combinação razoável de elementos de sistemas eleitorais.9

Propostas de reforma do Direito Eleitoral

A despeito do êxito geral obtido pelo sistema eleitoral alemão, há muitos anos vêm sendo debatidas propostas de mudanças do Direito Eleitoral alemão. Por um lado, tais de-bates vêm sendo realizados de forma bastante intensa e, por outro, também se restringem a sutilezas acadêmicas ou à defesa de dogmas do Direito Eleitoral.10

Desde sua introdução no ano de 1949, o Direito Eleitoral alemão não sofreu alterações em seus pontos fulcrais, embora tenha passado por várias modificações. Foram, muito mais, modificações de ordem técnica, como a renúncia à exposição dos catálogos de eleitores ou à utilização do envelope para cédulas eleitorais, no caso de o voto ser depositado no próprio local de votação. Outrossim, também houve modificações mais substanciais, tais como a ampliação da cláusula de barreira para todo o território federal e a abolição de eleições suplementares (1953), a introdução do voto pelo correio (1965) ou a mudança, ocorrida diversas vezes, do número de deputados do Bundestag11.

Uma importante reforma foi a redução da idade eleitoral ativa de 21 para 18 anos no ano de 1970. Essa reforma foi antecedida por um intenso debate político e acadêmico, que também foi influenciado pelas agitações estudantis ocorridas na segunda metade dos anos 60. No aspecto da participação, a redução da idade eleitoral foi uma decisão positiva. No entanto, os efeitos dessa medida se mantiveram restritos, já que a população com idade en-tre 18 e 20 anos representa apenas uma pequena fração dos eleitores. Nas eleições de 2005 para o Bundestag, foi apenas 3% de todos os eleitores.

Antes de cada eleição, faz-se necessário lembrar

aos eleitores o sentido da cédula com duas vias de votos e explicar-lhes

por que o segundo voto é considerado decisivo

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Em 1985, deu-se a substituição do método de apuração matemática dos votos, que era feita de acordo com a fórmula eleitoral de d’Hondt, pelo método de Hare/Niemeyer, bem como a introdução do direito de voto para alemães residentes no estrangeiro12. Além disso, introduziu-se uma regulamentação segundo a qual o número de habitantes de um distrito eleitoral não pode apresentar um desvio maior que 15% em relação à média (valor anterior: 25%). Desde as eleições de 2002 para o Bundestag, havendo um desvio superior a 25% (até então: 33,3%), uma redistribuição dos distritos eleitorais faz-se obrigatória.

O sistema de dois votos

A introdução do sistema de dois votos em 1953 foi uma das mudanças mais bem su-cedidas do Direito Eleitoral alemão. Enquanto o único voto depositado pelo eleitor valia, na primeira eleição para o Bundestag, tanto para o candidato de seu distrito eleitoral quanto para o partido, o motivo da introdução do sistema de dois votos consistia essencialmente em possibilitar ajustes nos distritos eleitorais.

Entretanto, o primeiro voto nunca desempenhou sua função de “voto personalizado”; afinal de contas, até os nossos dias, poucos são os eleitores que conhecem o nome do candi-dato de seu distrito eleitoral. Apesar disso, muitos eleitores recorrem ao método de splitting. Isto está diretamente ligado ao fato de os eleitores dos pequenos partidos, cujos candidatos não têm nenhuma chance de obter um mandato distrital, darem seu segundo voto ao can-didato de um partido maior, com o qual “seu” partido quer fazer uma coalizão.

Por este motivo, o juízo a ser feito sobre o sistema de dois votos, nos aspectos de eficiên-cia, transparência e participação, é que este apresenta discrepâncias e mostra-se sujeito a críticas. Sua eficiência é restrita, pois, através da eleição de um candidato distrital, o candidato do outro grande partido normalmente acaba conseguindo entrar por meio da legenda. O sistema de dois votos produz principalmente um efeito cosmético. Conseqüentemente, trata-se de uma participação aparente. Ademais, esse sistema não permite transparência para um eleitor sobrecarregado. Alguns eleitores acham que fizeram um acordo, ao darem seu primeiro voto ao candidato do partido A e o segundo voto ao candidato do partido B.

Os efeitos decorrentes do sistema de dois votos são controversos, sobretudo se levarmos em consideração que as discrepâncias entre o primeiro e o segundo voto não são de fácil interpretação. Por exemplo: no pleito de 2002, o Partido Verde (Die Grünen) obteve 8,6% dos segundos votos e 5,6% dos primeiros votos. Será que os “eleitores do segundo voto” do Partido Verde, que deram seu primeiro voto a um outro partido (59,7% ao SPD, conforme a estatística eleitoral representativa), seriam “eleitores de aluguel” de outros partidos (prin-cipalmente do SPD) ou seriam eleitores convictos do Partido Verde que simplesmente não queriam “jogar fora” seu primeiro voto? Do ponto de vista empírico, não é possível dar uma resposta bem fundamentada a essa pergunta. Os pequenos partidos fazem uma propaganda específica voltada para a obtenção dos segundos votos, a fim de não serem excluídos através da cláusula de barreira.

Os pequenos partidos fazem uma propaganda específica voltada para

a obtenção dos segundos votos, a fim de não serem

excluídos através da cláusula de barreira

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Propostas para reformas do Direito Eleitoral

É óbvio que sempre existem propostas para refor-mas do Direito Eleitoral. A título de exemplo, em 2003 houve uma proposta de projeto de lei, sem grandes pers-pectivas de êxito, mas que assim mesmo contou com o apoio de 46 deputados do Bundestag, visando à introdução do direito de voto a partir do nascimento. Os pais deveriam então poder exercer por seus filhos, fiduciariamente, o direi-to de voto, até que estes atingissem a maioridade.

Por outro lado, realizou-se um debate mais sério em torno do rebaixamento da idade eleitoral para dezesseis anos. É verdade que alguns Estados federados rebaixaram a idade eleitoral para dezesseis anos no caso de eleições municipais. Partidos menores defendem a introdução desta medida também para as eleições em nível fede-ral, mas são apresentados argumentos fortes que impedem tal mudança.

Deixando-se de lado o fato de jovens de dezesseis anos possuírem ou não suficiente maturidade política e capacidade de discernir, o principal argumento contra o direito de voto já aos dezesseis anos é que, atra-vés desta medida, far-se-ia uma cisão entre idade eleitoral e maioridade em geral. Afinal de contas, entre ambos os limites etários, existe uma forte dependência. Direitos e deveres andam de mãos dadas. Quase ninguém deseja – com justeza – reduzir o limite de maioridade para dezesseis anos. Desta maneira, o debate acerca do rebaixamento da idade eleitoral mos-tra-se apenas acadêmico. Quem concede o direito de voto a jovens de dezesseis anos, mas lhes nega a maioridade, desvaloriza o direito de voto concedido. Embora o rebaixamento da idade eleitoral para dezesseis anos fomentasse a participação, a desvinculação entre a idade eleitoral e a maioridade geraria um alto grau de intransparência que acabaria confundindo as mentes. Além do mais, diante da provável baixa quota de participação eleitoral desta faixa etária, este mecanismo mostraria pouca eficácia.

Por diversas vezes, especialmente por parte dos pequenos partidos, ouvem-se vozes reivin-dicando a abolição da cláusula de barreira – seja por conjecturas baseadas em princípios, seja porque a República Federal da Alemanha desenvolveu-se como um país estável. Em todo caso, o efeito positivo da cláusula de barreira, a qual impede o esfacelamento partidário e motiva as maiorias parlamentares governamentais estáveis, acaba sendo alçado pelos políticos, pelos acadêmicos e também pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão a um patamar mais ele-vado que as suas desvantagens, oriundas da perda daqueles votos depositados nas urnas pelos eleitores que optaram por aquele partido que não conseguiu entrada no parlamento.

Por vezes, também se reivindica a supressão do sistema de dois votos, por contribuir para causar confusão na cabeça dos eleitores e por não desempenhar a função de personalização

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almejada. Todavia, até o momento não foram apresentadas alternativas convincentes que eli-minem as desvantagens do sistema atualmente vigente sem incitar o surgimento de desvanta-gens ou de elementos problemáticos de outra natureza. Por esse motivo, não se deve contar, em primeira instância, com uma mudança do sistema de dois votos vigente na Alemanha.

Considerações finais

O sistema eleitoral alemão não é perfeito, e possivelmente também não é possível criar um sistema eleitoral que consiga fazer jus, por igual, a todas as exigências de desempenho apresentadas neste texto. Não obstante, por meio deste sistema que foi introduzido, em suas feições básicas, em 1949, foi possível viabilizar e garantir democracia, governabilidade e estabilidade. Trata-se de um resultado digno de consideração. Last but not least, os desempe-nhos obtidos pelo sistema eleitoral alemão também poderão ser importantes para o debate em torno da reforma eleitoral brasileira.

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Notas

1 Cf. Dieter Nohlen, Wahlrecht und Parteiensystem [Direito Eleitoral e Sistema Partidário], Opladen 2000, S. 157–159.

2 Lei Eleitoral Federal (BWG), em sua versão de 23 de julho de 1993, última emenda em 11 de março de 2005: http://www.bundeswahlleiter.de/bundestagswahl2005/downloads/bwg_standmaerz05.pdf. Cf. também: Karl-Rudolf Korte: Wahlen in der Bundesrepublik Deutschland. Bonn 2005.

3 Procedimento matemático segundo a fórmula eleitoral de Hare/Niemeyer, introduzida na República Federal da Alemanha através do art. 1°, n° 1, da 7ª Proposta de Emenda à Lei Eleitoral Federal no ano de 1985. De acordo com esta fórmula, as cadeiras do Bundestag são distribuídas conforme a proporção dos votos partidários em relação ao número total de votos válidos depositados nas urnas e ao número de votos a serem considerados. Cf. Wolfgang Schreiber, Handbuch des Wahlrechts zum Deutschen Bundestag, Köln 1998, p. 186–189.

4 Cf. Ferdinand A. Hermens, Demokratie oder Anarchie? Untersuchung über die Verhältniswahl, Köln–Opladen 1968, p. 161–239. Cf. também Wolfgang Hartenstein, Fünf Jahrzehnte Wahlen in der Bundesrepublik: Stabilität und Wandel, in: Aus Politik und Zeitgeschichte, B 21/2002, p. 39–46.

5 Cf. Wolfgang Hartenstein, Fünf Jahrzehnte Wahlen in der Bundesrepublik: Stabilität und Wandel, in: Aus Politik und Zeitgeschichte, B 21/2002, p. 39–46.

6 Explicações claras sobre o processo de concentração dos partidos, principalmente o ocorrido nos anos 50, podem ser encontradas, p. ex., na seguinte fonte: Bundeszentrale für politische Bildung (ed.), Informationen zur politischen Bildung 207: Parteiendemokratie, Bonn 1990, p. 19s.

7 A respeito desse tema, cf. também Volker von Prittwitz: Vollständig personalisierte Verhältniswahl. Reformüberlegungen auf der Grundlage eines Leistungsvergleichs der Wahlsysteme Deutschlands und Finnlands, in Aus Politik und Zeitgeschichte B 52/2003, p. 12–20.

8 Formação Política se refere à densa estrutura de educação política e cívica que existe na Alemanha, formada, entre outras, pela Central Federal de Formação Política, que publica livros e revistas sobre o tema e organiza seminários e outros eventos (www.bpb.de), pelas Centrais Estaduais de Formação Política, que em nível estadual oferecem atividades parecidas; pelas fundações políticas ligadas aos partidos políticos, pelas organizações da sociedade civil que organizam seminários e cursos para a sua clientela sobre uma grande variedade de temas (muitas dessas organizações recebem recursos federais, estatuais ou locais); e, não em último lugar, pelas escolas da Alemanha, públicas e privadas, que, a partir do 6° básico (alunos da idade de 12 anos) incluem aulas de “ciências sociais”, nas quais se discorre sobre uma grande variedade de temas e instituições políticas e sociais e, especificamente antes das eleições, também sobre os partidos políticos e o sistema eleitoral. Toda essa estrutura emprega pessoas que não necessariamente são pesquisadores, mas docentes e professores, muitos com formação em ciência política. Dentro desse grupo, que tem uma influência considerável na socialização dos alemães, o sistema eleitoral do país é bem avaliado.

9 Cf. Nohlen, op. cit.; Wolfgang Rudzio, Das politische System der Bundesrepublik Deutschland, Opladen 2000; Hans-Dieter Klingemann/Bernhard Wessels, Political Consequences of Germany’s Mixed-Member System: Personalization at the Grass-Roots?, WZB FS III 99–205, Berlim 1999.

10 Cf. Eckhard Jesse: Reformvorschläge zur Änderung des Wahlrechts, in: Aus Politik und Zeitgeschichte B 52/2003, p. 3–11.

11 No ano de 1949, primeiramente eram 400 deputados; a partir de 1953 passaram para 484; a partir de 1957 (através da incorporação do Estado do Sarre), para 494; a partir de 1965, alcançou-se o número de 496 e, após a Unificação Alemã, o número de 656 deputados, que acabou sendo reduzido, em 1996, para 598, com vigência a partir das eleições realizadas em 2002.

12 Todos os alemães residentes no estrangeiro somente têm direito ativo de voto se tiverem passado pelo menos três meses ininterruptos no território da República Federal da Alemanha.

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Itamaraty, 1979. Foto de Luis Humberto.

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Olhar Externo• Brian Kerr O artigo 2º da Convenção Européia de Direitos Humanos e o dever de efetivamente investigar

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*Sir Brian Kerr é Lorde Presidente do Tribunal de Justiça da Irlanda do Norte. Palestra proferida na Conferência Inter-Regional sobre Sistemas de Justiça e Direitos Humanos, Conselho Britânico, Brasília, 18 a 20 de setembro de 2006. Publicação autorizada pelo autor. Tradução de Newton Tavares Filho, consultor legislativo da Câmara dos Deputados, LLM, Georgetown University.

Introdução

Encontra-se abaixo o texto de um ensaio que apresentei por ocasião da Conferência Inter-Regional sobre Sistemas de Justiça e Direitos Humanos do Conselho Britânico em Brasília, no mês de setembro de 2006. Esta introdução destina-se aos leitores da Revista Plenarium. Como se verá, a monografia concentra-se num aspecto particular do direito à vida previsto na Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fun-damentais. Esse diploma, elaborado em 1950, foi concebido por um conjunto de Estados como uma reação à Segunda Guerra Mundial e teve como principal ambição o estabeleci-mento de certos direitos e liberdades fundamentais, os quais, esperava-se, constituiriam um baluarte contra o totalitarismo no futuro.

Os Estados envolvidos na promulgação da Convenção associaram-se num órgão co-nhecido como Conselho da Europa. Vários outros países juntaram-se ao Conselho desde sua criação, particularmente muitas das nações da Europa Oriental, em seguida ao desman-telamento do império soviético. Atualmente, a instituição conta com 45 países membros.

O Conselho da Europa é distinto da União Européia, embora muitos comentadores os confundam. A União Européia, fundada pelo Tratado de Roma de 1956, tinha o propósito primordial de estabelecer a liberdade de movimento tanto de bens como de trabalhadores entre seus Estados-membros. Sua composição é hoje de 25 países.

Embora o governo do Reino Unido tenha sido um dos principais arquitetos da Con-venção Européia, os cidadãos britânicos não foram granjeados com acesso direto às suas disposições até recentemente. Já que o texto era, essencialmente, antes um tratado entre Estados soberanos que uma lei devidamente promulgada no âmbito do Reino Unido, juris-prudência pacífica proibia sua aplicação no direito interno. Tudo isso mudou em 1988 com a promulgação do Human Rights Act, que tornou a Convenção diretamente aplicável nos tribunais do Reino Unido depois de sua entrada em vigor, em 2 de outubro de 2000.

O artigo 2o da Convenção Européia de Direitos Humanos e o dever de efetivamente investigar

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A incorporação da Convenção ao direito interno – chamada também sua “nacionaliza-ção” – trouxe uma mudança significativa à ordem constitucional. Como é sabido, o Reino Unido não possuía uma Constituição escrita em nenhum sentido convencional. O parla-mento era soberano e a validade da legislação promulgada era imune a qualquer questiona-

mento legal. Hoje, qualquer lei editada pelo parlamento deve ser compatí-vel com os direitos fundamentais inscritos na Convenção. O Human Rights Act busca atingir esse objetivo por dois meios principais. Primeiramente, ordena-se aos tribunais interpretar e dar eficácia à legislação primária e subordinada de modo compatível com os direitos assegurados na Conven-ção, no maior grau possível. Em segundo lugar, onde não é possível inter-pretar desse modo a legislação, os tribunais superiores podem declarar que uma particular disposição legal submetida ao seu escrutínio é incompatível

com a Convenção. Nesse caso, o governo deverá promover a mudança da lei. A Convenção compreende uma série de direitos, alguns dos quais (como o direito à

vida e a proibição de tortura) são formulados em termos absolutos. Outros, como o direito ao respeito à vida privada e à liberdade de expressão, são qualificados. A interferência com estes últimos somente será aceitável quando necessária numa sociedade democrática, na for-ma prescrita em lei e de modo não mais que o indispensável para atingir o fim pretendido.

A Corte Européia dos Direitos Humanos desenvolveu jurisprudência sobre a Conven-ção que reconhece certas salvaguardas procedimentais subjacentes, por vezes chamados de direitos adjetivos. Assim, por exemplo, o direito à vida é garantido e salvaguardado pela obrigação positiva imposta aos Estados de investigar mortes controversas. É esse dever que será o objeto do meu ensaio.

O art. 2º da Convenção Européia de Direitos Humanos e o dever de investigar

É verdadeiramente um prazer para mim estar em Brasília por ocasião desta importante conferência. Eu ouvi com grande interesse e admiração as palestras feitas ontem à noite e esta manhã. Como juiz que busca aplicar os princípios e a legislação dos direitos humanos virtualmente a cada dia, encantou-me e gratificou-me que muitos palestrantes se concen-traram em exemplos práticos, em várias jurisdições, da abordagem jurídica de problemas de direitos humanos em todo o mundo. Fui particularmente impressionado e instruído pelos exemplos trazidos pelos oradores da África do Sul e da Índia nas sessões plenárias desta manhã. A discussão acadêmica é evidentemente essencial, sendo com freqüência o motor de mudanças práticas e avanços na legislação, mas não percamos de vista o nosso objeti-vo maior – ou ao menos o que eu creio deva ser nosso fim último –, o de fazer propostas práticas e realistas que trarão mudanças para as vidas das pessoas e melhoras no estado dos direitos humanos nas sociedades que representamos. Minha apresentação aos senhores hoje tratará marcadamente – mas não com aridez, espero – do prático. Pretendo discutir uma área estrita, mesmo limitada, do Direito. Faço-o não apenas porque essa área me é familiar, nem apenas porque, a despeito de suas limitações, essa tem tido considerável importância

Não importa a forma que assuma, a violência pode ser, como sugerem

alguns cientistas, um perpétuo atributo da

condição humana

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na sociedade à qual pertenço, mas principalmente porque, de meu ponto de vista, ela forne-ce um exemplo prático e concreto de como a aplicação das normas e princípios de direitos humanos pode produzir uma mudança real e tangível na vida das pessoas.

Antes de começar, permitam-me dizer algo sobre o tema da conferência Protegendo Direitos e Prestando Justiça. Esse é para mim um assunto de perene interesse, graças preci-samente à sua grande importância em nosso mundo contemporâneo. O tema em discussão nesta tarde, violência e direitos humanos, é não menos relevante e significativo. Violência, em qualquer de suas manifestações – seja ela impessoal, inspirada no terrorismo ou patro-cinada pelo Estado, quer ocorra dentro das famílias ou seja infligida aleatoriamente em nossas ruas –, não importa a forma que assuma, a violência pode ser, como sugerem alguns cientistas, um perpétuo atributo da condição humana. Mas, se assim é, ela deveria servir meramente para nos fortalecer em nossa determinação de apoiar os direitos humanos, que buscam combatê-la, e de defender a dignidade do indivíduo e sua liberdade contra agres-sões, não importa de onde provenham.

O tema que escolhi para falar nesta tarde é, como já disse, algo restrito mas, por ra-zões que vou abordar no momento, tem sido de uma importância substancial na história política e jurídica recente da Irlanda do Norte. O assunto é o art. 2º da Convenção para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. De fato, pretendo falar principalmente sobre apenas um aspecto desse dispositivo, o dever de investigar mortes controversas.

O sistema constitucional da Irlanda do Norte

Antes de iniciar, contudo, um pouco de contexto. Muitos dos senhores já conhecem a ordem constitucional dos vários componentes do Reino Unido, mas, para aqueles que com ela têm menos familiaridade, deixe-me começar dizendo algo sobre a experiência constitucio-nal de meu país. A Irlanda do Norte é uma das três jurisdições que compõem o Reino Unido – Inglaterra e País de Gales (que têm um único sistema legal) são uma, Escócia é outra, e Irlanda do Norte, a terceira. Embora possuamos um sistema de governo centralizado, com limitada atribuição de competências legislativas a cada região, esses três sistemas são comple-tamente separados. Recursos contra decisões judiciais em cada uma dessas jurisdições são di-rigidos ao comitê recursal na Câmara dos Lordes em Londres – que deverá ser transformada em Suprema Corte para todo o Reino Unido. Esse tribunal aplicará a legislação da Irlanda do Norte, Escócia, Inglaterra e Gales, dependendo da origem da causa a ele submetida.

Como Lady Ministra Hallett nos lembrou esta manhã, o Reino Unido é um dos poucos países sem uma Constituição escrita em um único documento. Na última década, o país tem atravessado uma pequena reordenação constitucional. No âmbito legislativo, o parlamento britânico em Westminster, Londres, devolveu o que já descrevi como limitado, mas não obstante significativo, poder aos parlamentos e assembléias na Escócia, em Gales e na Irlanda do Norte. Nesta última, essa devolução está vinculada ao que chamamos de processo de pa-cificação. Buscamos emergir de trinta anos de conflitos internos e, é desnecessário dizer, isso apresenta desafios à nossa sociedade e particularmente aos nossos políticos e juízes.

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A ausência de uma Constituição escrita tem sido defendida por muitos comentadores. Na opinião de gerações precedentes de constitucionalistas britânicos, a mais eficaz salva-guarda dos direitos humanos não é uma garantia de papel, mas o exercício benevolente da discricionariedade administrativa, o senso de justiça dos servidores públicos e ministros e a supervisão vigilante do parlamento.1 O Human Rights Act, que entrou em vigor em 2000 e sobre o qual os senhores ouviram Lady Ministra Hallett discorrer esta manhã, marcou uma mudança em direção ao pensamento centrado nos direitos (rights-based thinking), dan-do às nossas cortes novos poderes para responsabilizar o Estado por violações de direitos humanos. Esse diploma impõe novos deveres aos tribunais para observar a jurisprudência da Corte Européia de Direitos Humanos, enquanto esta decide causas e desenvolve nosso direito local,2 e para interpretar a legislação de acordo com seu texto.3 À luz da avaliação abrangente – para não dizer magistral – de Lady Ministra Hallett do impacto dessa legisla-ção fundamental, é desnecessário que eu fale mais sobre o assunto.

Pode-se dizer que a falta de uma Constituição escrita forneceu aos juízes pouca expe-riência com o raciocínio indutivo e finalístico usado nos instrumentos internacionais de direitos humanos. Não estou certo de que esta assertiva seja inteiramente correta, visto que, é claro, já tomamos em conta tais normas antes do ano 2000. Não há dúvida, entretanto, de que o Human Rights Act tornou ainda mais urgente considerarmos essa legislação ao fazer dos direitos expressos na Convenção parte de nosso direito interno, e essa nova configuração apresentou desafios e oportunidades estimulantes aos juízes desde a promulgação daquele ato. Agora, a discussão de uma causa perante a Corte de Apelação terá questões de direitos humanos entrelaçadas aos argumentos pelo advogado. Estas são parte integrante do caso, não apenas algo incidental ou reflexão posterior.

“Trazendo os direitos para casa”

Ao falar da Convenção Européia de Direitos Humanos, é preciso ter em mente ser esta uma norma regional e serem técnicas muitas das mudanças por ela promovidas em nosso direito interno e, como tal, não diretamente relevantes para muitos dos senhores. Mas, é claro, a jurisprudência gerada por diferentes tratados de direitos humanos retira seu apoio do desenvolvimento de outros instrumentos internacionais, e espero que, por essa razão, o que tenho a dizer seja de interesse.

Para além de sua importância na ordem política e jurídica da Irlanda do Norte, penso que o dever de investigar previsto no art. 2º da Convenção provê um exemplo marcante de como as palavras desse instrumento vivo foram interpretadas e expandidas pela Corte que o aplica (a Corte Européia de Direitos Humanos), e de como essa interpretação por sua vez tem sido considerada e aplicada por tribunais nacionais (assim como pelo governo do Reino Unido) em situações muito práticas e concretas.

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O texto da Convenção

O art. 2º da Convenção Européia é o primeiro direito substantivo expresso. Dispõe ele que:

1. O direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei. Ninguém poderá ser intencional-mente privado da vida, salvo em execução de uma sentença capital pronunciada por um tribunal, no caso de o crime ser punido com esta pena pela lei.

2. Não haverá violação do presente artigo quando a morte resulte de recurso à força, tornado absolutamente necessário:a) para assegurar a defesa de qualquer pessoa contra uma violência ilegal;b) para efetuar uma detenção legal ou para impedir a evasão de uma pessoa detida legalmente;c) para reprimir, em conformidade com a lei, uma revolta ou uma insurreição.

Essa foi, de modo direto, uma determinação ao Estado para que se abstenha de tirar a vida de pessoas dentro de suas fronteiras, e isso certamente deve ter sido o valor capital na mente dos idealizadores da Convenção no final da Segunda Guerra Mundial, com seu

horrível genocídio e perda de vidas. Mas a Corte Européia tem uma abordagem dinâmica e evolutiva da Convenção, a qual descreve como um instrumento vivo.4 Isso a levou a desenvolver o direito à vida em dois novos e importantes modos.

A interpretação do art. 2º pela Corte Européia

A primeira expansão da obrigação do art. 2º foi a interpretação segundo a qual os Estados têm o dever positivo de proteger o direito à vida. No caso Osman v. UK 5, um professor com distúrbios mentais tor-nou-se obcecado por um aluno, molestando-o durante um certo tem-po. O molestamento culminou na morte a tiros do pai pelo professor, que também feriu o garoto. A Corte decidiu que o Estado tem o dever de proteger um indivíduo identificado quando tem conhecimento de

um risco real e imediato à vida dessa pessoa, causado por atos criminosos de um terceiro. No caso em questão, decidiu-se que, embora a polícia soubesse da situação, não podia ter ante-cipado o nível de violência usado finalmente – esta não estava a par de uma ameaça “real e imediata” e, desse modo, não agiu em violação dos deveres impostos pelo art. 2º.

A segunda expansão é a imposição de uma obrigação adjetiva, procedimental, de in-vestigar mortes onde possivelmente tenha havido uma violação da obrigação substantiva. Essa obrigação adjetiva foi articulada pela primeira vez pela Corte Européia de Direitos Humanos numa causa da Irlanda do Norte, McCann v. United Kingdom.6 Ali, alegou-se que agentes do Estado tinham deliberadamente matado suspeitos de serem membros do IRA no curso do que foi descrito como uma operação antiterrorismo. A Corte interpretou o art.

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2º em conjunto com o dever geral do Estado, imposto pelo art. 1º, de garantir “a qualquer pessoa dependente da sua jurisdição os direitos e liberdades definidos no título I da presente Convenção”. Concluiu que, por conseguinte, deveria existir alguma forma efetiva de inves-tigação oficial quando indivíduos tenham sido mortos em conseqüência do uso da força, entre outros, por agentes estatais.7 Essas obrigações procedimentais subjazem ao direito à vida e são necessárias para assegurar-lhe a defesa integral.

Seguindo McCann, os elementos procedimentais do dever estatal decorrentes do art. 2º foram desenvolvidos pela Corte Européia de Direitos Humanos durante a década passada em uma série de casos, alguns dos quais também provieram da Irlanda do Norte. Gostaria de concentrar-me no mais significativo, Jordan v. United Kingdom8, também relacionado a um suspeito de integrar o IRA morto por membros das forças de segurança.

Jordan e o conteúdo do dever de investigar

A Corte usou Jordan para determinar qual deveria ser o conteúdo da investigação, dizendo, primeiramente, que esta deveria ser efetiva (jurisprudência subseqüente, européia e doméstica, perscrutou diferentes aspectos do significado de efetividade, em diferentes situações). Segundo, o propósito da investigação seria a efetiva implementação das leis do-mésticas que protegem a vida. Em outras palavras, essas salvaguardas procedimentais deve-riam existir para que o direito substantivo, principal, não fosse diluído ou comprometido. Finalmente, um inquérito não é necessariamente o único meio pelo qual uma investigação das circunstâncias de uma morte poderia ser conduzida. Esses foram os principais elementos do conteúdo do dever de investigar mortes sob o art. 2º. A Corte então delineou detalhes adicionais do referido inquérito, que podem assim ser resumidos:

A investigação deve ser conduzida por um investigador independente e ser capaz de determinar se o uso da força foi ou não justificado, assim como levar à identificação e pu-nição dos responsáveis. Deve também ser pronta e razoavelmente expedita, como também conduzida sob suficiente escrutínio público para assegurar a prestação de contas e a respon-sabilidade dos envolvidos. Deve por fim integrar suficientemente um parente próximo, de modo a proteger seus interesses legítimos.

A investigação examinada em Jordan foi um inquérito judicial. Não houve nenhuma ação penal ligada à morte. Na Irlanda do Norte, a Coroner’s Court é o órgão que permite o registro das mortes a ela declaradas. Um inquérito judicial é o processo de investigação que permite ao magistrado dessa corte e ao júri determinar a identidade do morto e a causa da morte, quando necessário, sem no entanto constituir um método de atribuição de culpa. Por ocasião do caso Jordan, o Coroner não pôde estender o inquérito para investigar as circunstâncias mais amplas da morte. A Corte Européia de Direitos Humanos considerou então que o inquérito judicial na Irlanda do Norte não cumpria os requisitos de uma “investigação efetiva” de vários modos:

• faltou independência na investigação inicial da polícia;• o policial que atirou na vítima não pôde ser conduzido como testemunha – ele não

podia ser chamado para prestar depoimento;

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• o Coroner não pôde investigar, tampouco o júri dar um veredito que assegurasse uma persecução criminal efetiva em juízo – eles podiam apenas relatar os meios pelos quais ocorreu a morte, não as circunstâncias mais abrangentes;

• por uma série de razões, o inquérito não foi iniciado de imediato;• a falta de assistência jurídica e de divulgação de certos documentos significou que os

parentes da vítima não puderam participar adequadamente do inquérito;• não houve ligação entre o inquérito e qualquer dever do Director of Public Prosecutions9

de reconsiderar sua decisão de não processar qualquer pessoa pela morte. O DPP não tinha o dever de fundamentar essa decisão.10

A Corte criticou em particular três elementos do inquérito: a impossibilidade de con-duzir coativamente testemunhas, o fato de que o Coroner teve de restringir sua investigação às causas diretas da morte, sem poder estendê-la às circunstâncias mais gerais, e o tipo de veredito que o júri num caso semelhante pode dar. Nesse caso, a Corte entendeu que o inquérito judicial “não pôde ser efetivo na identificação ou persecução de quaisquer crimes que pudessem ter ocorrido e, nesse particular, deixa de cumprir os requisitos do art. 2º”.11

Jordan e os tribunais da Irlanda do Norte

Após a decisão da Corte Européia, a família Jordan intentou numerosas ações que nos deram, aos tribunais da Irlanda do Norte, a oportunidade de considerar diferentes aspectos do que seria uma investigação conforme os termos do art. 2º. Eu decidi alguns desses feitos como então juiz de primeiro grau competente. O caso Jordan levantou uma série de ques-tões legais complexas que são importantes para os advogados da Irlanda do Norte e do Rei-no Unido. Por exemplo, decidiu-se sobre se o Human Rights Act é retroativo, embora essa questão ainda esteja sendo discutida. Mas não gostaria de me concentrar nesses aspectos. A coisa realmente importante nesse caso é o impacto da Convenção – no sentido de que a Corte estava examinando, na verdade questionando, nossas práticas locais de investigação de mortes e assegurando-se de que essas tornavam o art. 2º real em nosso contexto.

Algumas das questões levantadas foram abordadas de forma proativa pelo governo. Por exemplo, a disposição legislativa que não permitia a condução coercitiva dos responsáveis pela morte foi alterada, e o Director of Public Prosecutions voluntariamente reconsiderou sua decisão de não processar após o inquérito, passando também a dar as razões de seu convenci-mento caso pretenda iniciar ou não uma ação penal. Entretanto, a questão-chave sobre se o Coroner e seu júri poderiam – e deveriam – investigar as circunstâncias mais abrangentes da morte, ou meramente sua causa, foi decidida tanto na primeira como na segunda instância.

O Tribunal de Apelação confirmou minha decisão de que, para tornar a investigação efetiva, o júri não tinha poderes específicos para dar o veredito de homicídio, pretendido pela família Jordan. Os poderes já existentes da Coroner´s Court poderiam ser interpretados em consonância com os direitos da Convenção lendo-se a frase de maneira mais ampla para incluir as circunstâncias do crime bem como a causa da morte. Para ser efetiva, a investiga-

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ção deveria poder determinar fatos capazes de conduzir a uma ação penal. Não era crítico, entretanto, que esse procedimento tivesse de tomar uma forma determinada.

O propósito das ações domésticas em Jordan foi o de estabelecer, por meio dos tribunais, a natureza e o fim dos direitos adjetivos delineados pela Corte Européia de Direitos Humanos em McCann e Jordan. Ficou claro ser importante, num inquérito para investigar uma morte causada por agentes estatais (e, na Irlanda do Norte, essa investigação deve ser conduzida também pelo ombudsman da polícia, por um inquérito público ou no curso de uma ação penal), que este deve ser um mecanismo efetivo à disposição para avaliar a legalidade da força empregada, e, se necessário, para garantir a persecução criminal que viria a determinar a culpa de qualquer indivíduo responsável pela morte. Jordan, com efeito, conduziu às mudanças reais que tornaram nosso sistema legal mais capaz de realizar esse objetivo. Em conseqüência das decisões da Corte e de suas repercussões em nossos tribunais domésticos, não seria exagero dizer que o modo pelo qual mortes sujeitas ao art. 2º serão investigadas foi revolucionado.

A jurisprudência após Jordan

A amplitude da aplicação das garantias procedimentais do art. 2º conforme a Corte já foi explorada em muitos casos nos tribunais domésticos. Não tenho tempo de abordá-los em detalhe, mas gostaria de mencionar brevemente dois casos perante a Câmara dos Lordes da Inglaterra que envolveram mortes em prisões. O primeiro, Amin,12 versava sobre a falha de uma prisão em proteger um detento contra um colega de cela violento e racista. O se-gundo, Middleton,13 foi o suicídio de um preso. Em ambos os casos, em que o Estado não protegeu os direitos das vítimas à vida contra uma ameaça externa, a Câmara dos Lordes decidiu que os requisitos de Jordan eram aplicáveis.

A Câmara dos Lordes enfatizou também que, enquanto a natureza do inquérito pode variar de caso a caso, pode ser tão importante ter um inquérito efetivo se a morte resulta de negligência sistemática da autoridade no que toca ao cuidado da vítima (o serviço prisional, na hipótese), quanto quando a morte é causada por um agente estatal.

Tratados de direitos humanos como instrumentos vivos

No tempo disponível, fui capaz apenas de tocar a superfície dos desenvolvimentos no direito irlandês trazidos pela evolução interpretativa do direito à vida previsto na Convenção Européia. No início, afirmei que esperava demonstrar como um instrumento internacional de direitos humanos, tratado como um texto vivo, pode ser interpretado por um tribunal internacional e aplicado (de modo criativo e na prática) pelos tribunais domésticos para tor-nar esses direitos aplicáveis em uma realidade concreta, para indivíduos que habitam aquela jurisdição. Espero que esse breve olhar sobre o modo pelo qual as cortes irlandesas, e em todo o Reino Unido, tentaram aplicar os direitos adjetivos do art. 2º, de modo ao mesmo tempo realista e embasado na Convenção, demonstre uma maneira de os tribunais “trazerem os direitos para casa” – nacionalizá-los de forma a fazê-los parte integral do nosso direito.

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Olhar Externo

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A afirmação, freqüentemente repetida nesta e em virtualmente todas as conferências a que compareci, de que o intercâmbio de idéias e a fertilização recíproca gerada pelos relatos de nossas experiências pode somente enriquecer a aplicação de princípios legais em discussão dispensa endosso ou ênfase suplementar. Não tenho dúvidas de que deixarei esta conferência com novas perspectivas sobre a aplicação da legislação e dos princípios de di-reitos humanos para o exercício de minha função judicial. Espero que este breve resumo de um pequeno tópico dos desenvolvimentos legais provocados pelo art. 2º da Convenção Européia dos Direitos Humanos tenha modesta ressonância em suas reflexões nessa área fundamentalmente importante.

Notas

1 Lester and Pannick, Human Rights Law and Practice (Butterworths, 2004), par. 1.06.

2 Human Rights Act 1998, s. 2.

3 Human Rights Act 1998, s. 3.

4 Tyrer v. UK (1978) 2 EHRR 1.

5 Osman v. United Kingdom [1998] 29 EHRR 245.

6 (1996) 21 EGRR 97 § 161.

7 Resumi essa afirmação a partir de uma passagem em R (Middleton) v. HM Coroner for West Sommerset; R (Amin) v.

Secretary of State for the Home Department [2002] EWCA Civ 390.

8 (2003) 37 EHRR 52.

9 Responsável pela persecução criminal em juízo, promotor da ação penal (n. do t.).

10 Resumido a partir de Girvan J, In the matter of an application by Hugh Jordan for judicial review [2004] NICA 29(2), § 2º.

11 Jordan, § 130.

12 [2003] UKHL 51.

13 [2004] UKHL 10.

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Balcão do cafezinho, Itamaraty, 1976. Foto de Luis Humberto.

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Balanço da 52a Legislatura• Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo Para um balanço da 52a legislatura

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Fátima Anastasia*, Magna Inácio** e Carlos Ranulfo Melo***

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I) Introdução

No segundo turno do pleito de 2002, Luis Inácio Lula da Silva foi eleito presidente do Brasil, com 52.793.364 votos. Seu partido, o PT, saiu das urnas de 2002 como a maior agremiação da Câmara dos Deputados, tendo conquistado 91 das 513 cadeiras (17,7%). No Senado Federal, o PT ocupou, a partir de 2003, 14 das 81 cadeiras (17,3%), posicio-nando-se como a terceira maior bancada da Câmara Alta, precedida apenas pelo PMDB e pelo PFL, com 19 cadeiras cada um.

A vitória de Lula e do PT, na disputa de 2002, significou, sem sombra de dúvidas, a estruturação de um novo contexto político para a (re)discussão das questões relacionadas à

*Fátima Anastasia, Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ, professora adjunta do Departamento de Ciência Política da UFMG e diretora do Centro de Estudos Legislativo (UFMG).**Carlos Ranulfo Félix de Melo, Doutor em Ciências Humanas pela UFMG, professor adjunto do Departamento de Ciência Política da UFMG e vice-diretor do Centro de Estudos Legislativos (UFMG). ***Magna Inácio, Doutora em Ciências Humanas pela UFMG, professora adjunta do Departamento de Ciência Política da UFMG e pesquisadora do Centro de Estudos Legislativos (UFMG).

Para um balanço da 52a legislatura1

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Balanço da 52a Legislatura

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governabilidade, à accountability e à representatividade e sinalizou na direção da reorienta-ção das políticas públicas no país.

Ademais2, tal vitória atestou que a política brasileira transitou com sucesso para o univer-so de um sistema representativo poliárquico3 (Santos, 1998), tendo realizado cabalmente o prin-cípio de igualdade política em todos os quesitos, inclusive naquele referido à elegibilidade.

Por outro lado, a eleição de Lula e do PT, em 2002, expressou o desejo de reorientação do uso do princípio de autoridade: ficou patente que a sociedade brasileira compareceu às urnas e nelas depositou seu voto a favor de uma alocação diferente dos recursos que o Esta-do arrecada dos contribuintes (Przeworski, 1995). Vale, ainda, ressaltar que foi a institucio-nalização dos procedimentos democráticos que permitiu alterar a composição da coalizão governante e sinalizar na direção de mudanças na substância da política pública.

Transcorridos quatro anos, e depois de realizadas as eleições de 2006, que conferiram novo mandato presidencial a Lula, cabe investigar se a nova correlação de forças que se or-ganizou no Congresso e fora dele, na 52ª legislatura, constituiu-se, efetivamente, em uma coalizão dotada de preferências e de recursos suficientes para o cumprimento das agendas procedimental e substantiva sinalizadas durante a campanha eleitoral de 2002.

O objetivo deste artigo é realizar uma avaliação da 52ª legislatura (2003/2007) da Câmara dos Deputados. A legislatura chama a atenção: a) por ser a primeira, no período pós-88, a transcorrer sob um governo de esquerda; b) por registrar, no seu segundo biênio, uma forte crise no interior da coalizão governista; e c) pela sucessão de escândalos de ampla repercussão, envolvendo membros dos poderes Executivo e Legislativo.

À luz da definição procedimental de democracia, propõe-se examinar as ações, as omis-sões e os padrões de interação desenvolvidos entre os principais atores políticos da democra-cia – cidadãos, líderes de coalizão e legisladores (Arnold, 1990) – e seus impactos no que se refere aos três atributos centrais da ordem democrática, a saber: estabilidade, accountability e representatividade.

O texto está organizado da seguinte forma: em primeiro lugar será descrito e analisado o contexto político mais amplo no qual se insere a legislatura sob exame. Após, serão exami-nadas a formação e a dinâmica das coalizões governista e oposicionista, com ênfase na análi-se das estratégias desenvolvidas por ambos os lados, inclusive no que se refere à disputa pela Presidência da Casa e ao comportamento dos partidos e dos deputados individualmente. O processo e a produção legislativa serão objetos da próxima seção, onde se discutem a dinâ-mica do processo decisório e seus impactos sobre a produção legal durante a 52ª legislatura. A seção seguinte abordará os temas da fiscalização e do controle do Poder Executivo, bem como o do controle interno. Finalmente, será apresentado um rápido balanço da legislatura no que se refere aos três atributos desejáveis da democracia – estabilidade, representativida-de e accountability – e apresentadas algumas sugestões de reforma. Sempre que possível, a análise da legislatura 2003-2007 será feita tendo como pano de fundo as demais legislaturas do período compreendido entre 1990 e 2006 com vistas a apontar semelhanças e diferenças entre as diversas legislaturas pós-Constituição de 1988.

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Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo

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II) A legislatura e seu contexto

Além da alternância no poder para a Presidência da República, as eleições de 2002 trou-xeram outras novidades ao cenário político brasileiro. Os quatro maiores partidos da coalizão de Fernando Henrique (PSDB, PFL, PMDB e PP) perderam 69 cadeiras, o que equivale a 13,5% da Câmara. Para os peemedebistas foi apenas mais do mesmo – o partido vinha perdendo cadeiras desde 1990 – mas para os tucanos o resultado significou uma reversão da curva de crescimento observada para o mesmo período. PFL e PP mantiveram sua trajetória oscilante. Quase metade dos assentos perdidos pela antiga coalizão governista foi conquista-da pelo PT, que, confirmando sua trajetória eleitoral ascendente, tornou-se o partido mais

votado e senhor da maior bancada na Casa, com 17,7% das cadeiras. Conse-qüência direta deste resultado, a Câmara seria, pela primeira vez na história democrática brasileira, dirigida por um deputado eleito por um partido de esquerda. Entre os partidos menores, o PDT e o PTB recuaram, enquanto PSB, PPS, PL e PCdoB cresceram. O resultado geral foi uma Câmara mais fragmentada. O número efetivo de partidos (Ne), que havia chegado a 8,7 em 1990 e retornado a 7,1 em 1998, voltou a subir, alcançando 8,5. Os sete maiores partidos (PSDB, PFL, PMDB e PP, PT, PDT e PTB), que até 1998 controlavam 89,9% da Casa, passaram a deter 81,1%4.

No entanto, a modificação de maior impacto seria aquela decorrente do desfecho da disputa presidencial. Como ressaltam Melo e Anastasia (2005), ao gerar uma troca de lugares entre situação e oposição e promover uma nova correlação de forças políticas no âmbito dos poderes Executivo e Legislativo, a eleição de 2002 afetou as preferências, o estoque de recursos e de estratégias

disponíveis, bem como o comportamento dos principais atores na Câmara dos Deputados. De uma legislatura para outra, antigas preferências partidárias tornaram-se contraditórias com as posições ocupadas nas arenas parlamentar e governamental. Da mesma maneira, estratégias que se mostravam disponíveis em períodos anteriores passaram a ser politicamente inviáveis na legislatura em questão. O comportamento coeso e disciplinado da esquerda, e em especial do PT, forjado na oposição, seria colocado em xeque. Analisadas as coisas pelo outro lado, a questão era saber como se comportariam os partidos da antiga coalizão governista, agora sem os recursos provenientes do exercício do governo federal, mas tendo a seu dispor os instrumen-tos que a organização do Poder Legislativo brasileiro faculta à(s) minoria(s).

Ao contrário do ocorrido em 1998, com a coalizão que deu sustentação política ao governo FHC, a coalizão eleitoral de Lula não logrou tornar-se majoritária na esfera parlamentar. Em 2002, no primeiro turno, a coalizão de apoio a Lula (PT/PCdoB/PL) elegeu 25,1% dos deputa-dos. Com a adesão, no segundo turno, de PSB, PDT, PV, PPS e PTB, a coalizão eleitoral expan-diu-se, chegando a 218 cadeiras (42,5%) (Melo e Anastasia, 2005), e acentuou o seu caráter não contíguo, característica, de resto, já presente desde a inclusão do PL na coligação eleitoral.

De toda forma, tratava-se de escolher entre governar em minoria, buscando os apoios necessários para obter maiorias legislativas pontuais, ou garantir a formação de uma coalizão

Além da alternância no poder para a presidência da República, as eleições

de 2002 trouxeram outras novidades ao cenário político brasileiro. Os

quatro maiores partidos da coalizão de Fernando

Henrique (PSDB, PFL, PMDB e PP) perderam 69

cadeiras, o que equivale a 13,5% da Câmara

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majoritária. A diferença estava em que, pela primeira vez, a coalizão a ser montada tinha como “partido central” uma organização situada à esquerda do espectro partidário – como elemento adicional, cabe lembrar que os partidos de centro e direita detinham 68% das cadeiras da Câmara. Uma vez feitas as escolhas, a coalizão governativa revelaria maior grau de instabilidade do que as que a precederam, por motivos que serão analisados adiante, o que durante determinado período afetaria negativamente a capacidade do Executivo de conduzir sua agenda.

Ainda como parte do contexto sob o qual transcorreu a legislatura, três episódios fize-ram com que a Câmara, através de seus membros, estivesse envolvida em denúncias de cor-rupção e uso indevido de recursos públicos. Em junho de 2005, um número indeterminado de membros da base governista foi acusado pelo deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) de receber uma espécie de mesada, o “mensalão”, por parte do governo. O escândalo se desdo-brou em três CPIs – Correios, Mensalão e Bingos – e terminou gerando quatro renúncias e três cassações em um total de dezenove deputados para os quais o Conselho de Ética da Câmara havia recomendado a perda de mandato. Doze parlamentares foram inocentados pelo Plenário. O último, José Janene (PP-PR), em dezembro de 2006, no apagar das luzes da 52ª legislatura. Em 21 de setembro de 2005, o deputado Severino Cavalcanti (PP-PE), oito meses depois de ser eleito para a Presidência da Casa, renunciou ao mandato sob a acusação de cobrar propina de um dono de restaurante na Câmara. Finalmente, em maio de 2006, a Câmara recebeu da Controladoria-Geral da União (CGU) documentos que apontavam fraudes em licitação e superfaturamento na compra de ambulâncias, por parte dos municípios, que desencadearam a “Operação Sanguessuga” da Polícia Federal. Uma vez que a compra era viabilizada por meio de emendas ao Orçamento da União, os líderes par-tidários decidiram instalar a CPMI das Ambulâncias, que aprovou relatório, recomendando a cassação de 72 deputados.

Sob o impacto desse conjunto de fatores, a legislatura transcorreu em meio a uma in-tensa disputa entre situação e oposição e a um acentuado desgaste junto à opinião pública.

Representou, em função disso, um bom teste para o sistema político brasileiro. De um lado, uma crise sem precedentes, instalada no interior de um inédito governo formado a partir da esquerda, desafiaria a robustez das instituições e levaria alguns analistas a falar em ‘crise institucional’5 . De outro, o grande número de parlamentares acusados colocaria a Câmara perante o desafio da transparência e da prestação de contas à sociedade. No que se refere ao primeiro desafio, o governo (agora reeleito) concluiu seu mandato e alcançou um bom percentual de aprovação em sua agenda legislativa, em que pese a sensível diminuição da produção legislativa observada no ano de 2005. No que se refere ao segundo, ainda que o percentual de votos nulos e brancos na eleição de outubro não tenha sido tão elevado e que a taxa de renovação tenha se mantido na média para o período, o Congresso chegou ao final do período com uma avaliação muito inferior à que possuía no início de 20036. Mesmo considerando que historicamente o Congresso Nacional nunca alcançou elevados índices de aprovação popular, o desgaste da instituição é algo digno de nota, tendo sido a 52ª legislatura avaliada, por vários analistas, como a pior de todo o período republicano.

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III) A dinâmica das interações

III.1) Governo versus oposição

A coalizão governativa que se organizou a partir de 2003 distinguiu-se, no que se refere a aspectos relevantes, da que emergiu das urnas em 1998, que garantiu ao presidente FHC uma ampla bancada parlamentar de sustentação às suas políticas7.

No primeiro mandato de FHC8, a coalizão política de apoio ao presidente, de centro-direita, foi composta pelos seguintes partidos: PSDB, PMDB, PFL, PPR e PTB. Ao longo da legislatura, essa coalizão foi recebendo adesões de parlamentares, resultantes das migrações partidárias, chegando a abrigar 390 deputados (MELO, 2002). No segundo mandato, a bancada governista foi formada pelo PSDB, PMDB, PFL e PPB, totalizando, em 1999, 347 deputados. Em que pesem os baixos índices de popularidade de Fernando Henrique Cardoso no período (MELO, 2002:36)9, o presidente conseguiu manter uma coalizão de apoio supe-rior aos 308 deputados necessários para a aprovação de reformas à Constituição.

No que se refere à composição do ministério, em ambos os governos FHC verificou-se a presença de um gabinete de coalizão, baseado no critério partidário para a seleção de seus membros (MELO, 2002). No primeiro mandato, compunham o ministério o PSDB, o PMDB, o PFL, o PTB e o PPB, tendo sido este último incluído apenas a partir de 1996. No período compreendido entre 1999 e 2001, participaram do gabinete o PSDB, o PFL, o PMDB e o PPB (MELO, 2002: 23). Em 2002, o PFL abandonou a coalizão e, conseqüen-temente, os cargos que ocupava no governo.

Percebe-se, portanto, que durante a maior parte de seus dois mandatos, o presidente Fernando Henrique Cardoso contou com uma ampla base partidária, que lhe permitiu aprovar quase que integralmente a sua agenda. Decorre daí que, durante esse longo perío-do, se não foram verificadas mudanças significativas conducentes à obtenção de graus mais substantivos de accountability e representatividade, não foi por falta de recursos políticos, restando por averiguar a hipótese da ausência de vontade política orientada para estes ob-jetivos.

O afastamento do PFL da coalizão governista, no entanto, teve conseqüências impor-tantes sobre os rumos que foram impressos à política brasileira daí em diante. A decisão do PFL de lançar candidatura própria à presidência da República – projeto que afundou nas águas de denúncias de corrupção, as quais foram pronta e rigorosamente averiguadas pelo governo federal – gerou um fosso ainda maior entre os antigos aliados, e seu malogro cola-borou para aumentar os graus de competitividade das candidaturas oposicionistas.

A bancada governista, sob o governo Lula, saiu das eleições bem menos robusta do que aquela que deu sustentação política a FHC nos seus dois mandatos. Diante disso, ao orga-nizar a sua coalizão governativa, o governo Lula realizou três movimentos distintos. No pri-meiro, optou por manter uma base formal circunscrita aos partidos que o haviam apoiado no segundo turno. Em momentos subseqüentes incorporou o PMDB (2004) e o PP (2005) ao ministério. Foram registradas, por outro lado, três deserções ao longo da legislatura: o PDT se retirou no segundo ano de governo, e PPS e PV, no terceiro.

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Qualquer que seja o período analisado, mantiveram-se como traços da coalizão go-vernista: a) a presença de partidos situados à esquerda e à direita do espectro ideológico; e b) a sobre-representação do PT no ministério, inviabilizando uma distribuição de pastas

proporcional ao peso das bancadas partidárias. A primeira coalizão se manteve ao longo de 2003. Além da amplitude

ideológica e da baixa coalescência10, a base governista se mostrava descon-tínua e controlava apenas 48,5% das cadeiras na Câmara dos Deputados11. As três primeiras características distinguem-na das coalizões firmadas nos governos anteriores: a de Collor, restrita a partidos de direita; a de Ita-mar, que se estendia continuamente da direita até o PSB; e a de Fernando Henrique, formada por partidos de centro-direita. Em nenhuma destas, o partido do presidente se encontrava sobre-representado. A escolha de Lula foi a de concentrar nas mãos de pessoas próximas e/ou do PT o núcleo das decisões sobre as políticas econômica e social, deixando aos demais parti-dos uma participação apenas complementar. Tal decisão ajuda a explicar a ausência do PMDB no ministério e terminou por configurar uma coalizão que “pulava” o centro do espectro partidário, potencializando, como apon-ta Inácio (2006), o problema da heterogeneidade de posições e preferên-

cias políticas, decorrente da amplitude ideológica, dificultando, dessa forma, a adesão dos diferentes partidos às iniciativas do Executivo. A não-inclusão do PMDB teve ainda, por óbvio, impacto sobre o tamanho da coalizão – e Lula fora eleito, como também Fernando Henrique, com uma imperiosa agenda de reformas constitucionais.

Não obstante, a coalizão inicial se manteve e apresentou taxas de disciplina ainda maiores do que aquelas computadas no governo anterior (INÁCIO, 2006; FIGUEIREDO, 2006), o que possibilitou ao governo aprovar 66,7% de suas iniciativas, incluídas neste rol aquelas mais importantes – para efeito de comparação, vale registrar que em seu primeiro ano de mandato, Fernando Henrique aprovou 64,7% de seus projetos (FIGUEIREDO, 2006). O “segredo” de se obter maiorias legislativas sem ter que bancar o custo de dividir, ainda mais, os postos ministeriais pode ser explicado a partir de uma série de fatores, entre os quais o conteúdo da agenda proposta pelo governo merece destaque. A agenda de Lula, como claramente anunciado durante a campanha eleitoral, não era a do PT oposicionista e, ademais, o próprio partido havia mudado – o que facilitou o deslocamento das preferências do Executivo para uma posição próxima à do legislador mediano. Ainda que tal desloca-mento tenha provocado tensões, e posteriormente cisões, à esquerda, o saldo foi altamente positivo. Facilitou a aproximação com o PMDB, possibilitou a conquista dos votos de boa parte da bancada do PP e neutralizou a oposição.

Com dificuldade para reter seus deputados – até o final do ano o seu contingente caiu de 144 para 120 membros – os partidos de oposição se viram obrigados a escolher entre apoiar as iniciativas com as quais haviam se comprometido no governo anterior, dificul-tando o delineamento de um perfil oposicionista, ou partir para o confronto sistemático, arriscando-se a pecar por incoerência. O resultado foi uma divisão de forças, com o PSDB inclinando-se para a primeira postura e o PFL adotando a segunda. Foi nesta condição que

Qualquer que seja o período analisado,

mantiveram-se como traços da coalizão governista:

a) a presença de partidos situados à esquerda e à direita do espectro

ideológico; e b) a sobre-representação do PT no

ministério, inviabilizando uma distribuição de pastas

proporcional ao peso das bancadas partidárias

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este partido inaugurou a utilização mais sistemática da obstrução como estratégia de luta parlamentar, posição adotada em 40,9% das votações nominais realizadas no ano. Mais moderado, o PSDB manteve-se em obstrução em 28% das vezes. Na legislatura anterior o PT não chegara a tentar obstruir mais do que 10% das votações12.

Para além da agenda proposta pelo governo, outros três fatores têm que ser levados em consideração no desempenho positivo da coalizão em 2003: a) o controle daquele que é o mais importante ativo institucional na Câmara, qual seja, a presidência da Mesa Diretora, cargo para o qual o petista João Paulo Cunha foi eleito sem enfrentar concorrência, após um amplo acordo entre os líderes13; b) a negociação, realizada pelo governo, com o conjunto dos governadores, comprometendo-os com o encaminhamento articulado das reformas da Previdência e tributária e dando às suas propostas a cobertura de um amplo entendimento nacional (MELO e ANASTASIA, 2005); e c) os altos índices de popularidade do presidente e seu governo. Juntos, esse conjunto de fatores fez com que o chamado “período de lua de mel” se estendesse por mais do que os primeiros meses de praxe.

No início de 2004 o governo, diante de tensões à esquerda no interior da coalizão, decidiu incorporar o PMDB ao ministério. Tal movimento apenas parcialmente preencheu o vazio ao centro da coalizão, uma vez que o partido se apresentou dividido e com uma de suas alas se negando a votar com o governo. A manutenção de uma ampla hegemonia petis-ta no interior da coalizão, em detrimento de uma participação mais destacada do PMDB, certamente contribuiu no sentido de manter a fragmentação deste último. Não obstante, a incorporação compensou com folga a expulsão de três deputados do PT e a saída do PDT – ambos os movimentos gerados por divergências com a agenda conduzida pelo governo, em especial na questão da reforma da Previdência. Ao longo de 2004, a coalizão governista manteve um contingente de cerca de 62,0% das cadeiras e, embora a taxa de disciplina fosse um pouco menor do que a registrada no ano anterior, o percentual de aprovação dos projetos do Executivo cresceu para 77% (FIGUEIREDO, 2006).

A inclusão do PMDB na coalizão, ainda que de forma sub-representada no ministério, a possibilidade de contar com votos do PP e do PDT – o primeiro, mantendo-se como par-tido alinhado, e o segundo, ainda em trânsito para o lado da oposição – somados ao fato de que na agenda governamental as reformas constitucionais já não possuíam destaque, foram cruciais para o bom desempenho do governo. Porém, os problemas da coalizão governativa – que foram inaugurados com o episódio Waldomiro Diniz e alimentados com as dissensões à esquerda – tornaram-se ainda maiores com a introdução de questões de ordem distribu-tiva que provocaram uma “rebelião” da bancada governista, ao final do segundo semestre, acarretando o trancamento da pauta dos trabalhos por 25 medidas provisórias (Folha de S.Paulo, 02/12/2004).

A oposição, por sua vez, já sem os constrangimentos impostos pelas reformas consti-tucionais, atuou de forma mais unificada. E lançou mão da obstrução em uma escala ainda maior. Enquanto o PSDB adotou esta postura em 53,8% das votações nominais, o PFL se utilizou do recurso em 61,5% delas14. Mesmo sem apresentar crescimento numérico – pelo contrário, o contingente oposicionista encerrou o ano de 2004 formalmente reduzido a 110 deputados contra os 120 do início do ano – os partidos de oposição obrigaram a liderança

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do governo na Câmara a se posicionar contrariamente às questões em apreciação na grande maioria das votações procedimentais realizadas: em 72,5% das ocasiões em que se pro-nunciou, o líder do governo orientou o voto não. Como assinala Inácio (2006), tais dados sugerem uma maior capacidade da oposição em competir pela agenda legislativa, além de sinalizar para problemas no interior da base governista.

De fato, a partir de 2005, aumentaram significativamente as dificuldades interpostas ao governo e à sua base para aprovar alguma iniciativa de importância na Câmara dos De-putados. Em fevereiro de 2005, a eleição de Severino Cavalcanti (PP-PE) para a Presidência da Câmara, derrotando a Luiz Eduardo Greenhalg (PT-SP), marcaria o fim de um período de relativa tranqüilidade para o Executivo na Câmara dos Deputados.

Uma combinação de fatores contribuiu para a vitória de Severino: a) o descontenta-mento existente na base do governo no que se refere à participação dos partidos aliados e à liberação de emendas individuais de deputados; b) as mal-conduzidas gestões para a reeleição da Presidência das duas casas do Congresso; c) o lançamento de um candidato dissidente pelo PT; e d) o comportamento da oposição que, no segundo turno da eleição, votou majoritariamente na candidatura Severino. Como se não bastasse a perda da Mesa Diretora, a coalizão governista diminuiria com as saídas do PPS e do PV e se veria atrope-lada pela eclosão, em maio, da crise do “mensalão”. Em meio ao vendaval que assolava o Planalto, colocando sob suspeição bancadas inteiras, o controle de 58,3% das cadeiras da Câmara teria pequena valia: a capacidade do governo de aprovar sua agenda legislativa di-minuiria ao ponto de nem mesmo o orçamento da União ser votado, obrigando o Executivo a iniciar 2006 em difícil situação no que se refere ao gasto público. Durante esse período, o percentual de deputados da base dispostos a acompanhar o líder do governo cairia a seu menor nível (FIGUEIREDO, 2006).

Em uma tentativa de retomar a iniciativa, em julho o governo incorporou o PP ao ministério, aumentando o peso relativo dos setores conservadores na coalizão. Os gover-nistas passaram a controlar, pelo menos formalmente, 69,2% das cadeiras, percentual que, no entanto, se reduziria devido à diminuição das bancadas do PT, PL, PP e PMDB15 nos meses seguintes. Com a saída do PP da condição de “partido alinhado” para a de integrante da base formal da coalizão governista e, por outro lado, com o distanciamento definitivo do PDT face ao governo, a Câmara passou a apresentar um cená-rio mais claramente polarizado, com blocos pró e antigoverno16. À perda de deputados do governo correspondeu o cres-cimento da oposição, que terminaria a legislatura com 33,5% das cadeiras na Câmara. No que se re-fere à capacidade operativa do governo, o qua-dro só apresenta alguma melhora em 2006, quando iniciativas importantes – como a criação da SuperReceita, as cotas nas universidades e a Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas – voltaram a ser aprovadas.

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III.2) Partidos e deputadosNo que diz respeito às interações entre os partidos e entre estes e seus membros, a 52ª le-

gislatura mostra elementos de continuidade e de ruptura relativamente às anteriores. O mais evidente traço de continuidade refere-se ao fenômeno da migração partidária. Neste ponto, dados apresentados por Melo e Miranda (2006) mostram que tivemos mais do mesmo:

levando-se em conta membros titulares, efetivados e suplentes em exercício, foram 192 os congressistas que, por uma razão ou outra, trocaram de legenda ao longo de seu mandato. Se considerarmos apenas os deputados eleitos em 2002, foram 174 os migrantes. No cômputo geral foram registradas 278 trocas de partido, um número ainda maior do que aquele registrado na legislatura 1991/1995, período, como se sabe, de elevada instabilidade política (pp.6)17.

Tal como nas duas últimas legislaturas, as migrações concentraram-se em determinados períodos. Foram 137 mudanças de partido no ano de 2003, 18 em 2004 e 115 em 2005. Em 2006 ainda foram registradas 08 trocas de legenda. Novamente, nos dois anos em que a migração ocorreu em escala significativa foram preferidos os meses que antecederam o início dos trabalhos legislativos (janeiro e fevereiro) e o período imediatamente anterior à definição da filiação partidária, seja para as eleições municipais, seja para a renovação da própria Câma-ra. Nestes momentos uma parcela dos deputados procurou se reposicionar no jogo político, tendo em vista o quadro de forças na arena parlamentar e/ou eleitoral.

Tal como nos anos anteriores, a incidência de migrações no sentido do governo me-receu destaque. Afinal, se é público e notório que partidos aderem ao governo e planejam ganhar com isso, não há porque supor que os deputados não adotarão o mesmo raciocínio. Do total das migrações realizadas, 37,4% o foram no sentido dos partidos do governo ou alinhados; em 31,1% dos casos os deputados se reposicionam no interior do governo ou entre governo e alinhados; 20,5% dos migrantes se dirigiram aos partidos de oposição e 11% entre estes últimos. Entre 2003 e 2005 as mudanças no sentido do governo diminu-íram de 44,4% para 31% do total. O afastamento do governo, por outro lado, passou de 12% para 29,9%. Quando comparadas as migrações realizadas nos dois primeiros meses de 2003 e aquelas efetuadas de julho a setembro de 2005, em meio à crise do governo Lula e às vésperas da definição do quadro de filiações para o ano de 2006, o contraste torna-se mais evidente. No primeiro período, 44,7% dos migrantes saíram da oposição para a base do governo ou partidos alinhados, e apenas 6,4% dirigiram-se à oposição. No segundo, a adesão aos partidos da oposição cresceu para 39,7% e o movimento no sentido do governo caiu para 22,2%. A base governista perdera parte de sua capacidade de atração e retenção de apoio na Câmara dos Deputados.

De todo modo, estar no governo ou na oposição continuou fazendo diferença, no que se refere à capacidade dos partidos de atrair novos membros e/ou reter os eleitos. No primeiro mandato de Fernando Henrique, PSDB e PFL viram suas bancadas crescer em 47,6% e 24,7% (Melo, 2004); na oposição, suas bancadas diminuíram mais de 20%. A grande maioria dos migrantes transferiu domicílio para o lado do governo – 67,0% no caso do PSDB e 81,2% no do PFL. Já o PL, estreando na condição de membro de uma coalizão governista, viu sua bancada crescer em mais de 40% no período 2003/2007.

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O trânsito entre as bancadas continuou convivendo com razoáveis graus de disciplina no interior de cada uma delas. Mas, como já mencionado, a troca de lugares entre situação e oposição, em função das eleições de 2002, afetou as preferências, o estoque de recursos e o comportamento dos atores na Câmara. Estratégias disponíveis em um momento deixaram de sê-lo no outro. As tensões se manifestaram de forma clara nos partidos que constituíam o núcleo duro das distintas coalizões em ação no período passado.

No que se refere à esquerda, apenas a bancada do PSB se apresentou mais disciplinada do que nos dois governos de Fernando Henrique. No PT, a mudança experimentada com a chegada ao governo não foi digerida da mesma forma pelo conjunto dos deputados, pro-vocando expulsões, cisões e queda nas taxas de disciplina. No crucial processo de votação da reforma da Previdência, 88,9% dos deputados acompanharam as posições encaminhadas pelo líder (Melo e Anastasia, 2005), algo bem distinto dos 98% que, em média, o faziam nos períodos anteriores. O mesmo aconteceu com o PCdoB e o PDT18.

Nos casos do PFL e do PSDB, pelo menos nos dois primeiros anos, a mudança foi mais dramática, e nenhum dos dois partidos conseguiu manter em plenário o comportamento das legislaturas passadas. Preocupado com seu “público atento”, a liderança do PSDB tratou de apoiar as iniciativas do governo que fossem compatíveis com seu próprio programa e com as bandeiras com as quais havia se comprometido. Para o PFL, como sustentam Melo e Anastasia (2005), a forte identificação como partido de direita tornou possível “colocar-se, de forma mais confortável e sem maiores custos políticos junto à sua própria base, do lado oposto ao do PT, onde, aliás, sempre esteve” (p. 323). Ainda que ambos os partidos tenham se alinhado na oposição, a diferença de postura terminou por refletir-se no processo legislativo em 2003: enquanto as posições das lideranças do PFL e do PT convergiram em apenas 9,6% das votações, no caso do PSDB a convergência chegou a 26,9% (ANASTA-SIA, MELO e SANTOS, 2004)19. Em 2004, os dois partidos estavam mais próximos e nenhum dos dois convergiu com as posições do PT em mais de 9% das votações nominais (INÁCIO, 2006). Seja como for, em sua estréia na oposição e, portanto, dotados de me-nos recursos institucionais, os partidos experimentaram uma queda na proporção de votos convergentes. O PFL caiu de 91,4 – média para os oitos anos de Fernando Henrique – para 53,9 nos dois primeiros anos de Lula. Levando em conta os mesmos períodos, o PSDB passou de 89,4 para 69,320.

Uma última observação pode ser feita recorrendo-se aos encaminhamentos definidos pelos líderes partidários nas votações nominais. Como a esta altura já está claro, nesse pon-to temos uma clara descontinuidade entre a atual legislatura e as demais, contrariando a afirmativa (FIGUEIREDO e LIMONGI, 1999) de que o comportamento legislativo pos-sibilitaria o ordenamento coerente do sistema partidário parlamentar ao longo do contínuo esquerda - direita. Nos dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique, as lideranças do PMDB, PTB e PPB encaminharam a grande maioria das votações ao lado de seus colegas do PFL e do PSDB, contrapondo-se ao PT e ao PDT21. Por conseqüência de sua migração para a base governista, no governo Lula, os três primeiros partidos passaram a convergir, em seus encaminhamentos, com o PT, enquanto o PDT iniciou, em 2004, um afastamen-to relativamente a seus parceiros na esquerda para, de 2005 em diante, alinhar-se com o

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“núcleo duro” do governo anterior. O que importa destacar neste momento, concordando com Melo e Miranda (2006), é que das fronteiras mais salientes no interior da Câmara dos Deputados – as que separam os partidos, os campos ideológicos e os blocos da situação e da oposição – a última parece ser a mais robusta. A prevalência das fronteiras ideológicas sobre

as partidárias pode ser afirmada, por exemplo, com base nas migrações partidárias, já que a movimentação continua a ser feita, de forma majoritá-ria, no interior do mesmo campo ou entre campos contíguos22. Já o reali-nhamento verificado sob o governo Lula parece permitir dizer que a única clivagem que efetivamente se sustenta no sistema partidário parlamentar brasileiro é aquela que remete à divisão entre oposição e situação.

IV) Processo e produção legislativa

IV.1) ProcessoO objetivo desta seção é colocar em tela a dinâmica do processo de-

cisório no interior da Câmara dos Deputados, com foco nos movimentos dos partidos em plenário. A apreensão desta dinâmica é, em boa medi-da, uma função da visibilidade das decisões legislativas que variam con-sideravelmente entre os Parlamentos (CAREY, 2006). A centralização do processo decisório observada na Câmara dos Deputados23 impacta, inter-namente, a capacidade de identificação dos agentes legislativos e, externa-mente, a capacidade de responsabilização política destes agentes por parte dos cidadãos. De fato, parte da invisibilidade das decisões legislativas pode ser referida ao controle de agenda por parte da Mesa Diretora e dos líderes – particularmente sob a forma de acordos de liderança – e aos procedimen-tos para as decisões de voto em plenário24.

As regras de organização interna da Câmara dos Deputados intro-duzem, no entanto, certos matizes a esta invisibilidade. Primeiro, a composição plural do Colégio de Líderes, partidária e com pre-sença institucional da liderança da minoria, faculta a ex-pressão do dissenso e de conflitos interpartidários no interior dessa arena decisória. Tal configuração pode ampliar, portanto, a capacidade dos partidos e das oposições para monitorarem reciprocamente os acordos conduzidos nessa arena. Segundo, os le-gisladores contam com recursos procedimentais importantes para tornar os votos visí-veis25. Com se verá adiante, as opo-sições mobilizam de forma impor-tante tais recursos com vistas a alterar o contexto decisório e impactar os custos das decisões legislativas. Ou seja, embora

A prevalência das fronteiras ideológicas sobre

as partidárias pode ser afirmada, por exemplo, com base nas migrações

partidárias, já que a movimentação continua

a ser feita, de forma majoritária, no interior

do mesmo campo ou entre campos contíguos. Já o

realinhamento verificado sob o governo Lula parece permitir dizer que a única

clivagem que efetivamente se sustenta no sistema partidário parlamentar brasileiro é aquela que remete à divisão entre

oposição e situação

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o uso iterativo de acordos de liderança, particularmente aqueles voltados para a tomada de decisões legislativas pelo método simbólico, sinalize para um grau importante de invisibilida-de do comportamento legislativo, as regras de organização interna propiciam oportunidades significativas para a expressão de conflitos interpartidários e a realização de checks internos.

Entre outras, as oportunidades relativas à configuração do contexto decisório – em es-pecial, sobre a modalidade e o processo de votação – decorrem de cálculos estratégicos com impactos não desprezíveis sobre a dinâmica decisória.

Segundo os dados disponíveis, foram realizadas 378 votações nominais na Câmara dos deputados, sendo que 34 delas foram invalidadas por não atingirem quorum suficiente26. Deste total, 72% ocorreram nos dois primeiros anos de governo, sendo que em 2005 apenas 67 votações nominais foram realizadas.

O volume de votações nominais e o fato de que parte expressiva deste conjunto se refere às votações sobre questões procedimentais sinalizam para a importância do Plenário enquanto arena decisória na Câmara dos Deputados, particularmente em relação a questões salientes do ponto de vista do conflito interpartidário e da relação entre governo e oposi-ções. Das 344 votações nominais no período, 182 tiveram por objeto questões procedimen-tais, como adiamento da discussão ou da votação, retirada de pauta, entre outras. Em 2004, ano em que os parlamentares mais se mobilizaram por votações relacionadas a questões procedimentais, tais movimentos foram voltados principalmente para bloquear a agenda do governo na Casa: das 75 votações desse tipo, 41 foram para retirada de matéria da pauta, sendo que destas, 39 tratavam de decisões sobre medidas provisórias.

TABELA 1 - Votações nominais realizadas na 52ª legislatura segundo o tipo de decisão e sessão

legislativa.TIPO DE DECISÃO

SESSÃO LEGISLATIVA Substantiva Procedimental Total1a 76 69 145

2a 29 75 104

3a 36 31 67

4a 22 6 28

163 182 344Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo, Banco de Dados Legislativos, Cebrap. Elaboração própria.

O alinhamento dos partidos no eixo governo-oposição mostrou-se uma matriz de in-centivos importante para a mobilização dos partidos com vistas a modificar, adiar ou blo-quear as decisões legislativas e alterar o contexto decisório – de votação simbólica para nominal (INÁCIO, 2006). Desconsideradas as votações nominais realizadas por exigência constitucional ou sem informação, 215 decisões por voto nominal resultaram de pedidos para verificação de votação, após a sua realização pelo método simbólico. Ou seja, conhecido

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o resultado da votação simbólica, os parlamentares buscaram elevar os custos da decisão, com a manifestação pública e individual dos deputados, e com isto modificar as decisões tomadas com base em votos invisíveis. Os partidos situados fora do governo foram os que mais utiliza-ram deste recurso regimental: 193 votações nominais foram provocadas por pedidos dos par-tidos independentes ou na oposição ao governo. Deste total, 136 votações nominais foram antecedidas por votações simbólicas que resultaram na rejeição da matéria em apreciação.

Esta mobilização das oposições no uso de estratégias procedimentais torna-se clara quando confrontada com o encaminhamento da votação pelo líder do governo. Conforme demonstrado na tabela abaixo, os dois principais partidos de oposição no atual governo – PFL e o PSDB – são os autores de 166 pedidos de verificação de quórum que resultaram em votações nominais, com destaque para o PFL, que obteve apoio para 140 deles27. Nesses casos, o posicionamento do governo é, majoritariamente, pela rejeição da matéria em apre-ciação, evidenciando os movimentos de seus líderes para conter as investidas da oposição.

TABELA 2 - Votações nominais na Câmara dos Deputados segundo o encaminhamento de votação pelo governo

RAZÃO DA VNENCAMINHAMENTO DE VOTAÇÃO PELO LÍDER DO GOVERNO TotalSIM NÃO OUTROS(1)

PEDIDO DE VERIFICAÇÃODE QUÓRUM - AUTOR

PFL 42 98 140PSDB 11 14 1 26PT 3 5 8PDT 1 3 4PTB 2 2 4PP 2 2PPS 1 1 2PCDOB 1 1PMDB 1 1PPB 1 1PSB 1 1GOV 1 1MESA 1 1MINORIA 1 1Subtotal 75 127 1 193

REGIMENTAL

REGIMENTAL 66 25 3 94REQ. VOTAÇÃO NOMINAL DIRETA 4 4Subtotal 66 29 3 98Total 132 155 4 291Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo, Banco de Dados Legislativos, Cebrap. Elaboração dos autores.(1) Abstenção, obstrução ou liberação de bancada

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As regras regimentais da Casa facultam aos partidos movimentos estratégicos que vão além das estratégias procedimentais voltadas para a modificação ou retirada das matérias. Uma alternativa aberta é a possibilidade de o partido se manifestar em obstrução parlamen-tar28, com o objetivo de retardar ou bloquear a decisão parlamentar, de forma a provocar novos rounds de negociação e barganhas legislativas. Como a capacidade de impedir as vo-tações devido à ausência de quórum depende do tamanho dos partidos que se manifestam em obstrução, nota-se que o recurso mais intenso desta prática pode ser associado ao peso numérico das oposições sob a atual legislatura (INÁCIO, 2006).

De fato, a obstrução parlamentar ocorreu em 176 votações nominais, sendo que 2004 foi o ano em que o seu uso foi mais intenso, ou seja, em 66% das votações realizadas verifi-cou-se que pelo menos um partido escolheu essa direção.

TABELA 3 - Obstrução parlamentar por sessão legislativa da 52ª legislatura (% em parênteses)

Partidos emobstrução(1)

Sessão Legislativa

1a 2a 3a 4a Total

Nenhum94 40 42 26 202(62,7) (33,9) (51,2) (92,9) (53,4)

122 7 4 1 34(14,7) (5,9) (4,9) (3,6) (9,0)

228 41 1 1 71(18,7) (34,7) (1,2) (3,6) (18,8)

3- 14 3 - 17- (11,9) (3,7) - (4,5)

4- 5 17 - 22- (4,2) (20,7) - (5,8)

5 ou mais6 11 15 - 32(4,0) (9,3) (18,3) - (8,5)

N%

150 118 82 28 378(100) (100) (100) (100) (100)

Fonte: Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo, Banco de Dados Legislativos, Cebrap. Elaboração própria(1) Considerados 10 partidos: PP, PFL, PTB, PL, PMDB, PSDB, PPS, PDT, PT, PCdoB

Do ponto de vista das alianças em plenário, cabe ressaltar o impacto da posição dos partidos no eixo governo-oposições como principal clivagem no interior da Câmara dos Deputados, o que pode ser indicado pelo encaminhamento da votação pelos líderes par-tidários (INÁCIO, 2006). Diferentemente do padrão de alianças legislativas mantidas no governo anterior – com um alinhamento ideologicamente consistente dos campos da situ-ação e das oposições –, o padrão na atual legislatura mostra que a convergência dos parti-dos recorta os blocos ideológicos, repercutindo a configuração abrangente e não-contígua da coalizão de governo.

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A tabela abaixo apresenta o percentual de encaminhamentos de votação nominal simi-lares entre 10 partidos representados na Câmara dos Deputados. Os partidos que integram a coalizão de governo instruíram o voto da bancada de forma convergente em mais de 80% das 378 votações analisadas, mesmo os partidos mais distantes do PT, o partido do presi-dente, como PP, PL e PTB, sendo que no caso dos dois últimos, o alinhamento convergente atinge 90% das votações. Cabe ressaltar os altos patamares de convergência entre ex-mem-bros da coalizão, como o PPS e o PDT, o que reflete, no caso deste último, a posição de independência em relação ao governo.

No que tange às oposições, o PFL apresenta a menor taxa de convergência em relação ao partido do presidente (27%), seguido do PSDB (34,4%). A similaridade de posições em plenário entre estes dois partidos atinge 79,6% das votações nominais analisadas, reiterando a centralidade de ambos no campo das oposições durante a atual legislatura. Os níveis de convergência entre estes partidos e os ex-membros da coalizão, PPS e PDT, evidenciam as dificuldades em presença para a atuação de uma oposição coligada, o que tem resultado em um padrão de alinhamento do tipo governo+independentes+oposições (ANASTASIA, MELO & SANTOS, 2004).

TABELA 4 - Percentual de encaminhamentos de votação similares dos líderes partidários

PARTIDOS

PFL PL PTB PMDB PSDB PPS PDT PT PCdoB

PP 34,9 86,2 88,6 84,9 40,2 74,3 71,4 84,9 80,7PFL 32,0 32,0 33,9 79,6 40,2 41,5 27,0 28,0

PL 92,6 87,0 38,1 78,6 76,7 90,2 86,0

PTB 89,9 36,5 80,2 77,2 90,5 87,6

PMDB 39,9 81,2 77,0 88,6 86,2

PSDB 45,0 45,8 34,4 34,4

PPS 86,0 82,3 82,3

PDT 78,0 79,1

PT 93,1Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo, Banco de Dados Legislativos, Cebrap. Elaboração dos autores.

Esse padrão se mantém quando se verifica a convergência dos líderes partidários em relação ao governo. Considerados os encaminhamentos de votação pelo líder do governo na Casa, num total de 337 votações nominais, a maior taxa é atingida pelo partido do presidente (95%), seguido do PCdoB (90%). Os demais partidos da coalizão – PL, PTB, PMDB, PP – apresentam altos patamares de convergência, ou seja, entre 82% e 87% de encaminhamentos similares ao indicado pelo governo.

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GRÁFICO 1

Examinada a dinâmica do processo decisório, cabe agora considerar os seus impactos sobre a produção legal, objeto da próxima seção.

IV.2) Produção legislativaEsta seção analisa a 52ª legislatura, com vistas a identificar se houve variações impor-

tantes em relação ao padrão de produção legislativa dos períodos legislativos anteriores. Inicialmente, chama a atenção ter-se mantido o volume da produção legal em patamar

ligeiramente inferior ao de legislaturas anteriores, apesar dos efeitos sobre essa produção da crise política que atingiu o Poder Legislativo nos dois últimos anos do período. Até outubro de 2006, 713 leis ordinárias foram aprovadas, em contraste com as três últimas legislaturas, quando a média foi de 811 leis29. Certo diferencial pode ser apontado em relação à aprova-ção, em menor volume, de emendas constitucionais, as quais requerem maioria qualificada para aprovação: treze emendas em contra dezenove emendas aprovadas na legislatura ante-rior. Estes resultados podem ser associados à queda da produção legislativa, notadamente em 2005, quando a crise política e os escândalos acirram os conflitos interpartidários e os ânimos das oposições em relação ao governo, conferindo centralidade às atividades e arenas de investigação parlamentar.

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TABELA 5 - Produção Legislativa da 52ª Legislatura(1)

Sessão Legislativa

LEI SANCIONADA 1a 2a 3a 4a Total

Emenda Constitucional 3 3 3 4 13Lei Complementar 1 1 3 1 6

Lei Ordinária 197 252 176 88 713

Decreto Legislativo - CD 976 1094 1131 1131 4332

Decreto Legislativo - CN 23 12 23 23 81

Resoluções - CN 3 3 1 1 8Fonte: Câmara dos Deputados, 2006. (1) Dados atualizados até 11/10/2006

Quando se analisam as iniciativas que deram origem às leis, observa-se persistir a do-minância do Executivo sobre a produção legal. Para esse resultado concorrem fortemente as prerrogativas presidenciais relativas à exclusividade de iniciativa de determinadas matérias e ao uso de instrumentos legais específicos – como a edição de medidas provisórias. Este quadro não foi diferente na atual legislatura: as medidas provisórias e leis orçamentárias representaram 63,6% (423) das leis sancionadas no período30.

TABELA 6 - Número de leis por tipo de iniciativa legal e ano de sanção

Iniciativa origináriaANO DE SANÇÃO

Total2003 2004 2005 2006(1)

MP/PLV 56 77 35 9 177LEIS ORÇAMENTÁRIAS 61 124 63 248PLL, PLS, MSC, MSG, OFI 80 52 78 13 223PEC 3 3 3 4 13PLC 1 1 3 1 6 201 257 180 27 665Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo, Banco de Dados Legislativos, Cebrap. Elaboração dos autores (1) Dados atualizados até 02/2006.

A despeito dos amplos poderes de que dispõe, a participação do Executivo na produção legal depende da capacidade operativa da coalizão no interior do Legislativo. A dinâmica assumida pela coalizão de governo, com acirramento dos conflitos internos a partir da me-tade do mandato presidencial, redefiniu o tamanho da agenda legislativa do presidente e as condições estratégicas para o uso dos poderes presidenciais com vistas a implementá-la.

Em 2005, ano de ápice da crise política, o governo editou e converteu em leis um número menor de MPs. O recurso às medidas provisórias foi mais intenso durante os dois primeiros anos, sendo que a partir deste momento o Legislativo infligiu derrotas ao Exe-cutivo por meio da rejeição e da perda de eficácia de MPs31. Embora a conversão de MPs em projetos de lei (PLV) tenha sido pouco utilizada – 23 no total de 177 medidas editadas

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no período analisado –, foi em 2005 que os parlamentares se mostraram mais dispostos a modificar tais iniciativas. Um alvo importante das PLVs foram as propostas do Executivo com centralidade na agenda presidencial, como a introdução de novos programas sociais e a regulação de setores econômicos32.

TABELA 7 - Medidas provisórias editadas durante da 52ª legislatura

MEDIDAS PROVISÓRIAS

MP 2003 2004 2005 2006(1)

Editadas 57 73 42 55Convertida 56 77 35 48(1)

Em tramitação 0 0 0 17Revogada 1 0 1 0Sem eficácia 0 3 2 3Prejudicada 0 0 2 0Rejeitada 0 4 3 2Fonte: Base da Legislação Federal do Brasil - Brasil; Presidência da República, Casa Civil - Subchefia para Assuntos Jurídicos. (1) Atualizado até 24/11/2006

As proposições com iniciativa não-exclusiva representaram 36,4% (242) do total de leis sancionadas. É em relação a este grupo que a participação dos Poderes Executivo e Le-gislativo se distribui de forma mais equilibrada no que tange à autoria das leis. Enquanto 101 leis tiveram origem no Executivo, 108 foram propostas pelo Poder Legislativo. Maior destaque pode ser dado, no entanto, aos outros tipos de iniciativas. São de autoria do Poder Legislativo 10 emendas constitucionais, no total de 13 aprovadas, sendo 5 com origem na Câmara dos Deputados e 5 no Senado Federal. No caso da legislação complementar, todas as leis sancionadas no período tiveram origem no Poder Legislativo.

TABELA 8 - Produção legislativa da 52ª legislatura segundo a autoria da iniciativa legal

2003 2004 2005 2006(1) Total

Leis de iniciativa exclusiva do Executivo

Medida Provisória (sem modificação) 56 77 14 7 154Medida Provisória (PLV) 21 2 23Leis Orçamentárias 61 124 61 246

Subtotal 117 201 96 9 423

Leis de iniciativa não-exclusiva

Leis de iniciativa do Executivo

Leis ordinárias 33 27 33 8 101Emenda constitucional 2 1 3

Leis de iniciativa do Legislativo

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TABELA 8 - Produção Legislativa da 52ª. Legislatura segundo a autoria da iniciativa legal

Leis ordinárias 42 18 43 5 108Emenda constitucional 1 2 3 4 10Lei complementar 1 1 3 1 6

Leis de iniciativa do Judiciário

Leis ordinárias 5 7 2 14

Subtotal 84 56 84 18 242

Total Geral 201 257 180 27 665Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo, Banco de Dados Legislativos, Cebrap. Elaboração dos autores

Esse resultado, no entanto, deve ser visto com reservas. O volume de propostas apre-sentadas pelos deputados é consideravelmente maior do que aquelas iniciadas pelo Execu-

tivo. A agenda legislativa do Executivo é seletiva, pois a proposição das leis envolve negociações e acordos prévios. No caso do Legislativo, o volume de proposta é significativamente maior na medida em que é o resultado de estratégias descentralizadas, em boa parte individuais, reduzindo a eficiên-cia deste Poder no processamento e seleção das suas iniciativas (FIGUEI-REDO & LIMONGI, 1999: 54). Durante a 52ª legislatura, os deputados apresentaram 6.944 projetos de lei ordinária, contra 174 iniciados pelo Executivo. Este protagonismo não se restringiu às leis ordinárias: 359 leis complementares e 550 PECs foram propostas pelos deputados, enquanto o Executivo restringiu a sua iniciativa a 8 projetos de leis complementares e 8 PECs33. Ou seja, mesmo em relação às proposições de iniciativa não-exclusiva, a relação entre o número de leis propostas e o total de leis apro-vadas reitera o sucesso legislativo do Executivo.

Merece também destaque, no período pós-constitucional, ser o con-trole de agenda pelo Executivo um determinante importante da sua ca-pacidade de ditar o ritmo do processo legislativo (FIGUEIREDO & LI-MONGI, 1999). A 52ª legislatura não se diferenciou quanto a isto. O tempo médio de tramitação das proposições de iniciativa exclusiva do Po-der Executivo – MPs e leis orçamentárias – foi bastante inferior ao das de iniciativa concorrente. Em média, o das MPs durou cerca de 110 dias, ou 135, quando modificadas pelos parlamentares. O trâmite mais rápido é o das leis orçamentárias, cujo processo legislativo, em média, dura cerca de 80 dias. Também as leis ordinárias com origem no Poder Executivo tive-ram uma tramitação mais rápida: em média, 495 dias. As leis de autoria do

Poder Legislativo exibem trajetória bastante distinta. Em média, as leis ordinárias propostas requerem 1.199 dias para aprovação.

O volume de propostas apresentadas

pelos deputados é consideravelmente

maior do que aquelas iniciadas pelo Executivo.

A agenda legislativa do Executivo é seletiva,

pois a proposição das leis envolve negociações

e acordos prévios. No caso do Legislativo, o volume de proposta é

significativamente maior na medida em que é o

resultado de estratégias descentralizadas, em

boa parte individuais, reduzindo a eficiência

deste Poder no processamento e seleção

das suas iniciativas

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Balanço da 52a Legislatura

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TABELA 9 - Tempo médio de tramitação das leis ordinárias sancionadas - 52ª legislatura

Média (dias)

Desvio-padrão

Mínimo Máximo N

Leis ordinárias de iniciativa exclusiva do Executivo

Medida provisória (sem modificação) 110 37 0 372 154Medida provisória (PLV) 135 26 90 197 23Leis orçamentárias1 80 49 0 350 246

Leis ordinárias de iniciativa não-exclusiva

Legislativo 1199 855 126 5845 108Executivo 495 688 16 4067 101Judiciário 785 986 91 3947 14Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo, Banco de Dados Legislativos, Cebrap. Elaboração dos autores.1A classificação utilizada nesta tabela segue a de Figueiredo e Limongi (2006), segundo a qual leis orçamentárias, de iniciativa exclusiva do presidente, englobam as peças orçamentárias (LDO, LOA, PPA) e proposições relacionadas à abertura de crédito suplementar e especial. Não se incluem em tal conjunto, portanto, as leis complementares e ordinárias, ainda que relacionadas a matérias orçamentárias. (Cintra, 2007).

É em relação à natureza da agenda legislativa e à atenção alocada aos diferentes temas que a 52ª legislatura aponta questões importantes. No que tange às áreas de incidência das leis ordinárias sancionadas, de autoria dos parlamentares, persiste o padrão observado no período pós-constitucional. As leis “sociais” (43,5%) e as homenagens (36,1%) revelam-se como focos principais da deliberação parlamentar.

TABELA 10 - Área temática das leis ordinárias sancionadas segundo a origem da iniciativa legal

ÁREASLegislativo Executivo Total

N % N % N %

50ª LEG

ADM 26 18,8 92 37,7 134,0 33,7ECO 19 13,8 79 32,4 98 24,6HOM 4 2,9 - - 4 1,0POL 6 4,3 - - 6 1,5SOC 83 60,1 73 29,9 156 39,2

138 100 244 100,0 398 100,0

51ª LEG

ADM 27 17,0 69 30,1 107 26,8ECO 19 11,9 81 35,4 101 25,3HOM 41 25,8 4 1,7 45 11,3POL 5 3,1 2 0,9 7 1,8SOC 67 42,1 73 31,9 140 35,0

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Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo

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TABELA 10 - Área temática das leis ordinárias sancionadas segundo a origem da iniciativa legal

ÁREASLegislativo Executivo Total

N % N % N %

159 100 229 100,0 400 100,0

52ª LEG

ADM 14 13,0 70 29,7 98 27,4ECO 6 5,6 76 32,2 82 22,9HOM 39 36,1 2 0,8 41 11,5POL 2 1,9 3 1,3 5 1,4SOC 47 43,5 85 36,0 132 36,9

108 100 236 100,0 358 100,0

Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo, Banco de Dados Legislativos, Cebrap. Elaboração dos autores.

Em comparação com as legislaturas anteriores, no entanto, constata-se uma tendência de queda na proporção de leis ordinárias de natureza social iniciadas pelos parlamentares, havendo um crescimento das leis relativas a homenagens. A agenda social representou 60% das leis ordinárias de autoria dos parlamentares que foram sancionadas durante a 50ª legis-latura. Nos períodos legislativos subseqüentes, 51ª e 52ª legislaturas, esta proporção caiu para 42% e 43%, respectivamente.

Como não se observa um “encolhimento” da agenda social no volume total da produ-ção legislativa, este resultado parece sinalizar para uma participação maior do Executivo na aprovação dessas matérias. De fato, verificou-se um peso maior das leis sociais no total de leis ordinárias oriundas do Executivo. Nas legislaturas anteriores, as leis relativas às matérias econômicas e administrativas predominavam entre aquelas iniciadas pelo Executivo. Este quadro reverteu-se na atual legislatura, quando as matérias de cunho social se tornam a área de maior incidência das leis propostas pelo Executivo (36%), numa proporção ligeiramente superior às leis de natureza econômica (29,7%) e administrativa (32%). Este resultado, no entanto, deve ser ponderado, tendo em vista que, entre as leis iniciadas por medida provi-sória, predominam as matérias econômicas e administrativas.

A menor participação do Legislativo em relação à agenda social encobre, no entanto, um movimento importante de competição pelas iniciativas substantivas neste campo. Uma ilustração do protagonismo do Poder Legislativo na produção de políticas públicas foi a proposição, pelos legisladores, de um conjunto de medidas denominadas “choque social para proteção da população de baixa renda”, com o intuito de influenciar a definição de prioridades da Lei de Diretrizes Orçamentárias para o ano de 2005. Aprovado o substitutivo do relator da CMPOPF[1], o artigo relativo às ações do choque social sofreu o veto presi-dencial, com a seguinte justificativa:

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Balanço da 52a Legislatura

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Os dispositivos contrariam frontalmente a independência dos Poderes da União, ao permitir que o Poder Legislativo determine ao Poder Executivo o desenvolvimento de ações de sua competência e a elaboração e o encaminhamento ao Congresso Nacional de atos de sua iniciativa. As ações programadas no âmbito do proposto ‘choque social para proteção da população de baixa renda’ são de extrema relevância e já estão sendo objeto de prioridade e das respectivas iniciativas do Governo, como é o caso da criação dos programas Bolsa Família, Farmácia Popular, Brasil Alfabetizado e Microcrédito, do expressivo aumento dos investimentos em saneamento e habitação, da ampliação do programa Saúde Família e do combate ao trabalho e prostituição infantis, bem assim dos respectivos estudos para implantação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e da valorização dos profissionais da Educação – FUNDEB. No entanto, na forma proposta, os dispositivos, se aprovados, ensejarão a violação do art. 2º da Constituição, que garante a independência e harmonia entre os Poderes da União, devendo ser vetados por inconstitucionalidade. (Mensagem Presidencial no 482, 11 de agosto de 2004).

No total de 108 leis de autoria do Poder Legislativo, 75 foram iniciadas por deputados. A distribuição destas leis de acordo com a filiação partidária do autor mostra o impacto exercido pelo controle de ativos institucionais, mas ao mesmo tempo chama a atenção para possíveis efeitos do posicionamento dos partidos no eixo governo – oposição. Conforme demonstrado na tabela abaixo, os partidos que controlaram um maior número de cadeiras legislativas du-rante a 52ª legislatura, notadamente PT, PMDB e PFL, conseguiram aprovação de um núme-ro maior de leis iniciadas por seus membros. Mas esta não é uma relação inequívoca.

O alinhamento dos partidos no eixo governo – oposição parece impactar as chances de sucesso dos partidos ou de seus membros no que diz respeito à aprovação de suas propostas. Do total de 74 leis iniciadas por deputados, os membros dos partidos que integraram a base parlamentar do governo respondem pela autoria de 68% delas. Dado ter a maior parte das propostas sido iniciada em legislaturas anteriores, é possível indagar se o alinhamento com o governo afeta o processo de seleção interna das propostas, ampliando a competitividade das iniciativas de autoria destes parlamentares na nova legislatura. Uma estratégia disponível ao governo é introduzir as suas preferências por meio da modificação de propostas de seu interesse com tramitação já iniciada – ou seja, o governo se utiliza do sponsorship de outros agentes para implementar sua agenda34. Tal estratégia torna-se importante principalmente na presença de conflitos intracoalizão, quando as barganhas e negociações na arena legislati-va são importantes para aumentar a adesão em relação a determinadas iniciativas.

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TABELA 11 - Distribuição das leis ordinárias sancionadas por partido do deputado autor

52ª legislatura

Partido do autor Legislatura em que a proposta de lei foi apresentada

Coalizão de Governo Anterior Atual Total

PT 9 6 15PcdoB 3 1 4PL 3 3PMDB 7 5 12PDS/PPB 4 2 6PSB 4 4 8PTB 3 3

Subtotal 30 21 51

Oposição Anterior Atual Total

PSDB 6 2 8PFL 8 5 13PPS(1) 1 1PRONA 1 1

Subtotal 14 9 23

Total 44 30 74Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo, Banco de Dados Legislativos, Cebrap. Elaboração dos autores. (1)A aprovação desta lei ocorreu em 2005, quando o partido já se posicionava como oposição ao governo.

É em relação à atuação do Poder Legislativo como mecanismo de checks and balance durante a 52ª legislatura que questões relevantes sobre o seu desempenho podem ser levan-tadas. O sistema de freios e contrapesos institucionais supõe o compartilhamento de funções entre poderes, incluindo a iniciativa legislativa, como uma condição necessária para que os Poderes possam se controlar mutuamente, evitando a operação de um unchecked power (PR-ZEWORSKI, 1998). Como parte disto, a apreciação dos vetos presidenciais consiste em um recurso decisivo do Poder Legislativo para contrabalancear os extensos poderes presiden-ciais que abrangem toda a cadeia decisória envolvida na produção de leis no país, incluindo a prerrogativa final de vetar, total ou parcialmente, as leis aprovadas pelo Parlamento.

Do total de 652 leis analisadas até fevereiro de 2006, 92 (14%) sofreram algum tipo de veto presidencial, sendo que apenas 29 vetos foram apreciados e 26 mantidos. Chama a atenção que, além de o Executivo vetar mais as leis de sua autoria (Lamounier, 2005), esses vetos não têm sido apreciados na mesma proporção que os vetos às leis de autoria do Le-gislativo. Do total de 92 leis vetadas analisadas, 63 não tinham sido ainda apreciadas até o momento de levantamento dos dados (fevereiro/2006). Cabe destacar o volume expressivo de leis vetadas que tiveram origem no Executivo, ou seja, 43.

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Balanço da 52a Legislatura

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TABELA 12 - Situação dos vetos presidenciais segundo a autoria das leis sancionadas

VETO(1)AUTORIA DA INICIATIVA LEGAL

LEGISLATIVO EXECUTIVO JUDICIÁRIO Total

Veto parcial mantido 12 14 26Veto parcial rejeitado 1 1Veto total rejeitado 2 2Veto não-apreciado 19 43 1 63Sem vetos 83 464 13 560

Total 114 524 14 652Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo, Banco de Dados Legislativos, Cebrap. Elaboração dos autores(1) Dados atualizados até fevereiro de 2006.

O balanço da produção legislativa mostrou persistir a dominância do Executivo sobre a produção em decorrência dos amplos poderes de iniciativa legislativa de que o presidente dispõe. No entanto, o uso de tais poderes teve os seus custos elevados sob a atual legislatura, dada a dinâmica assumida pela coalizão de governo e sua capacidade operativa na arena congressual. Embora a produtividade da Casa não se tenha reduzido de forma significativa, o volume de trabalhos legislativos e o grau de decisiveness35 no período devem ser analisados vis-à-vis o fortalecimento de outras agendas na arena legislativa, em particular as relaciona-das às atividades de fiscalização e controle36.

V) Fiscalização e controle do Poder Executivo e o controle interno. O comportamento da Casa nos casos do mensalão e sanguessugas.

As Casas Legislativas são corpos coletivos representativos e deliberativos37. São, tam-bém, importantes instrumentos de accountability horizontal, encarregados de monitorar, controlar e fiscalizar os atos e omissões do Poder Executivo e, idealmente, loci privilegiados da expressão do melhor interesse dos cidadãos.

Ademais, as Casas Legislativas são organizações complexas que contêm três impor-tantes fóruns decisórios: o Plenário, as Comissões e o Colégio de Líderes. Nesta seção se examina a atuação desses fóruns, tomando como parâmetro um dos atributos desejáveis da democracia: o da accountability.

Para o exercício adequado de suas funções de legislar e de fiscalizar, as Casas Legislativas devem abrigar instrumentos institucionalizados e permanentes que permitam aos cidadãos vocalizarem suas demandas perante seus representantes e reconstituírem a cadeia causal que liga suas demandas às políticas e estas aos resultados produzidos (ARNOLD, 1990)38.

Dadas as limitações de tempo e de espaço, que lhes impossibilitam uma análise mais aprofundada do tema em pauta, optaram os autores por destacar, no que se refere aos três principais fóruns decisórios da Câmara dos Deputados, alguns mecanismos que afetam a produção da accountability horizontal e vertical, a saber: 1) a existência e a operação de me-

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canismos institucionalizados de interlocução com os cidadãos; 2) a organização do sistema de comissões e o grau de correspondência entre a jurisdição das comissões permanentes e a das pastas ministeriais; 3) as regras e o funcionamento efetivo do Colégio de Líderes; e 4) a instalação e a operação de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) no período analisado, com ênfase nas organizadas para o esclarecimento dos escândalos de corrupção que irromperam no ano de 2005.

V.1) Demandas, políticas e resultadosA participação institucionalizada dos cidadãos no processo legislativo está prevista na

Constituição de 1988 através de três instrumentos que constituem contextos decisórios descontínuos (Sartori, 1994), a saber: iniciativa popular, referendo e plebiscito. No entan-to, é a partir de 2001, com a criação da Comissão de Legislação Participativa39 (CLP) e da Ouvidoria Parlamentar40, que são instituídos mecanismos permanentes de interlocução da Casa com os cidadãos.

No período compreendido entre 2001 e 2006, a CLP recebeu um total de 451 suges-tões de legislação, como pode ser observado através da leitura do Quadro 1, abaixo. Vale ressaltar o maior protagonismo dos cidadãos nos dois últimos anos (2005 e 2006), especial-mente no que se refere à proposição de projetos de lei e de requerimentos de audiência pú-blica. Uma hipótese plausível para explicar tal padrão relaciona-se com a ocorrência da crise política em 2005 e com as tentativas dos grupos organizados de ativarem os mecanismos de produção legislativa – que, como se observou na seção anterior, sofreram os impactos da crise – e de responsabilização dos representantes eleitos. Tal hipótese, no entanto, não tem como ser submetida a teste empírico no momento, ficando como proposta de agenda para investigações futuras.

QUADRO 1- Sugestões recebidas na CLP no período de 2001 a 2006

2001 2002 2003 2004 2005 2006 Total

Sugestões (projetos de lei, requerimento de audiência pública, etc.)

24 59 57 28 107 68 343

Sugestões de emendas à Lei Orçamentária Anual

11 21 16 12 21 14 95

Sugestões de emendas ao Plano Plurianual

01 01

Sugestões de emendas à Lei de Diretrizes Orçamentárias

05 07 12

Total 35 80 74 40 133 89 451

Fonte: www.camara.gov.br (Atualizada em 13/11/06)

Deste conjunto de 451 sugestões legislativas, 138 foram transformadas em proposições e encaminhadas à tramitação legislativa, com destaque para projetos de lei (75), emendas à LOA(25), emendas à LDO (12) e 9 requerimentos de audiências públicas e seminários41 .

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Vale observar, ainda, que 50 das 138 sugestões transformadas em proposições foram enca-minhadas à CLP em 2005(25) e 2006(25), atestando que a ampliação da participação da sociedade, nesses dois anos, repercutiu para além dos muros da CLP.

A Ouvidoria Parlamentar, criada através da Resolução nº 19, de 14 de março de 2001(Ato da Mesa nº 56 de 2001), integra a estrura administrativa da Casa e tem por atribuições receber, examinar e encaminhar aos órgãos competentes as reclamações e/ou representações de pessoas físicas ou jurídicas42.

O Relatório de Atividades referente ao ano de 2004, último disponível no Portal da Câmara dos Deputados, registra um total de 2.219 contatos recebidos pela Ouvidoria, dos quais 2.201 foram resolvidos e 18 continuam pendentes. Entre 2003 e 2004 verificou-se o aumento de 52% no número de contatos recebidos e resolvidos pela Ouvidoria, o que atesta, segundo o relatório citado, o crescimento do alcance do trabalho desenvolvido pela Ou-vidoria Parlamentar. A inexistência de informações relativas aos anos de 2005 e 2006, no Portal da Câmara, impossibilita a análise do desempenho da Ouvidoria nestes anos.

V.2) Comissões permanentes e pastas ministeriaisSabe-se que as Casas Legislativas são organizadas em partidos e comissões, daí a cen-

tralidade de dois dos três fóruns decisórios mencionados no início desta seção: o Colégio de Líderes e o Sistema de Comissões. Nas democracias, espera-se que as comissões sejam os principais fóruns decisórios do Poder Legislativo, considerando-se que elas constituem

comitês (SARTORI, 1994)43 e que, sob condições adequa-das, facultam o desenvolvimento da expertise

de seus membros, aumentando suas capa-cidades de exercerem suas funções de

legislar e de fiscalizar os atos e as omissões do Poder Executivo.

O exame das alterações efe-tuadas no Sistema de Comissões da Câmara dos Deputados no período compreendido entre

2000 e 2006 – respectivamente, 5ª e 7ª edições do Regimento Inter-

no da CD – permite afirmar que tal sistema vem se modificando no senti-

do de responder a duas ordens de questões: primeiro, ade-quar-se aos novos temas que emergem da dinâmica social e que pressionam por se fazerem representar na di-nâmica política; segundo,

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capacitar melhor o Poder Legislativo para exercer suas atribuições de fiscalização e controle do Poder Executivo.

No que se refere à primeira ordem de questões, vale assinalar a criação de novas co-missões permanentes como, por exemplo, a Comissão de Segurança Pública e de Combate ao Crime Organizado, a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e a própria Comissão de Legislação Participativa, anteriormente mencionada. Ademais, co-missões que tratavam de assuntos variados foram desmembradas e/ou reorganizadas, como ocorreu com a Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, transformada em Comis-são de Constituição e Justiça e de Cidadania, ou com a Comissão de Educação, Cultura e Desporto e com a Comissão de Economia, Indústria, Comércio e Turismo, que geraram a Comissão de Educação e Cultura, a Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio e a Comissão de Turismo e Desporto. O quadro 2, abaixo, permite visualizar as alterações efetuadas no Sistema de Comissões da CD entre 2000 e 2006. Portanto, pode-se constatar, através do exame da evolução do sistema de comissões, o aperfeiçoamento ins-titucional da CD e sua maior capacitação para expressar e representar a complexidade e a heterogeneidade da sociedade brasileira.

No que se refere à segunda ordem de questões, a literatura que trata das relações entre os Poderes Executivo e Legislativo no Brasil tem dado grande atenção às taxas de coales-cência (AMORIM NETO, 2000) observadas entre a composição partidária da Câmara dos Deputados e a sua tradução na composição dos gabinetes ministeriais. Menos estudada, no entanto, tem sido a correspondência entre a jurisdição das comissões permanentes e das pas-tas ministeriais, que constitui, de acordo com Strom (1990), um dos indicadores da variável ‘influência das oposições’44.

Além de sinalizar o grau de influência das oposições, acredita-se que esse indicador per-mite analisar o grau de assimetria informacional entre os Poderes Executivo e Legislativo:

O suposto aqui é de que a maior correspondência entre pastas e comissões e entre comissões das duas câmaras, onde for o caso, aumenta as chances de as oposições influenciarem o processo e as decisões legislativas e diminui a assimetria informacional entre os dois Poderes, o que contribui para a ocorrência de um Legislativo mais pró-ativo, relativamente ao Executivo (ANASTASIA, MELO & SANTOS, 2004: 106).

A assimetria informacional entre os Poderes Executivo e Legislativo é um dos principais óbices ao exercício efetivo das atribuições, pelas Casas Legislativas, de accountability hori-zontal. Com vistas a analisar os graus de correspondência entre a jurisdição das comissões permanentes da CD e aquela das pastas ministeriais, na 52ª legislatura, o Quadro 2 (abaixo) apresenta na sua última coluna a relação dos ministérios vinculados a temas substantivos em operação no período 2003–3007.

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Balanço da 52a Legislatura

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QUADRO 2 - Comissões Permanentes1 (2000, 2003 e 2006) da Câmara dos Deputados e Pastas Ministeriais (2003-2007)

Comissões permanentes (2000)

Comissões permanentes (2003)

Comissões permanentes (2006)

Pastas ministeriais 2003-2007

Comissão de Agricultura e Política Rural

Comissão de Agricultura e Política Rural

Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural

Ministério da Agricultura, Pecuária e AbastecimentoMinistério do Desenvolvimento AgrárioSecretaria Especial da Agricultura e Pesca

Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática

Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática

Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática

Ministério de Ciência e TecnologiaMinistério das Comunicações

Comissão de Constituição e Justiça e de Redação

Comissão de Constituição e Justiça e de Redação

Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania

Ministério da Justiça

Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias

Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias

Comissão de Defesa do Consumidor

Ministério da Justiça2

Comissão da Amazônia e de Desenvolvimento Regional

Comissão da Amazônia e de Desenvolvimento Regional

Comissão da Amazônia, Integração Nacional e de Desenvolvimento Regional

Ministério da Integração Nacional

Comissão de Economia, Indústria e Comércio

Comissão de Economia, Indústria, Comércio e Turismo

Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio

Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio ExteriorSecretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social

Comissão de Educação, Cultura e Desporto

Comissão de Educação, Cultura e Desporto

Comissão de Educação e Cultura

Ministério da EducaçãoMinistério da Cultura

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QUADRO 2 - Comissões permanentes1 (2000, 2003 e 2006) da Câmara dos Deputados e pastas ministeriais (2003-2007)

Comissões permanentes (2000)

Comissões permanentes (2003)

Comissões permanentes (2006)

Pastas ministeriais 2003-2007

Comissão de Fiscalização Financeira e Controle

Comissão de Fiscalização Financeira e Controle

Comissão de Fiscalização Financeira e Controle3

Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão

Comissão de Finanças e Tributação

Comissão de Finanças e Tributação

Comissão de Finanças e Tributação

Ministério da Fazenda

Comissão de Minas e Energia

Comissão de Minas e Energia

Comissão de Minas e Energia

Ministério de Minas e Energia

Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional

Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional

Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional

Ministério da DefesaMinistério das Relações Exteriores

Comissão de Seguridade Social e Família

Comissão de Seguridade Social e Família

Comissão de Seguridade Social e Família

Ministério da Previdência SocialMinistério da SaúdeMinistério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome4

Comissão de Trabalho, de Administração e de Serviço Público

Comissão de Trabalho, de Administração e de Serviço Público

Comissão de Trabalho, de Administração e de Serviço Público

Ministério do Trabalho e Emprego

Comissão de Viação e Transportes

Comissão de Viação e Transportes

Comissão de Viação e Transportes

Ministério dos Transportes

Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior

Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior

Comissão de Desenvolvimento Urbano

Ministério das Cidades

Comissão de Direitos Humanos

Comissão de Direitos Humanos

Comissão de Direitos Humanos e Minorias

Secretaria Especial dos Direitos HumanosSecretaria Especial de Política para MulheresSecretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial5

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Balanço da 52a Legislatura

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QUADRO 2 - Comissões permanentes1 (2000, 2003 e 2006) da Câmara dos Deputados e pastas ministeriais (2003-2007)

Comissões permanentes (2000)

Comissões permanentes (2003)

Comissões permanentes (2006)

Pastas ministeriais 2003-2007

-Comissão de Legislação Participativa

Comissão de Legislação Participativa

-

Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, Violência e Narcotráfico

Comissão de Segurança Pública e de Combate ao Crime Organizado

Ministério da Justiça6

- -

Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável

Ministério do Meio Ambiente

- -Comissão de Turismo e Desporto

Ministério do Esporte

Ministério do Turismo

Comissão Mista do Orçamento

Comissão Mista do Orçamento

Comissão Mista do Orçamento7

Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão

1 Além das Comissões abaixo relacionadas, vale mencionar a Comissão Mista do Mercosul, cujas peculiaridades informaram a decisão de não incluí-la neste quadro. Maiores informações sobre tal comissão podem ser encontradas em: http://www2.camara.gov.br/comissoes/cpcms/apresentacao.html.

2 Integram o Ministério da Justiça a Secretaria de Direito Econômico, incluindo o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, e o Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos – CFDD.

3 O artigo 32, inciso VIII, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados apresenta as atribuições da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle.

4 O MDS iniciou suas atividades em fevereiro de 2004 e substituiu o Ministério da Assistência Social. A MP 163/04 criou o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e a Secretaria de Coordenação Política e Assuntos Institucionais.

5 A Medida Provisória 111/03, que cria a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial na estrutura da Presidência da República, foi aprovada pela Câmara dos Deputados em 13/5/2003, dia em que se comemora a abolição da escravatura. (Agência Câmara, Consolidada, 13/5/2003).

6 A Secretaria Nacional de Segurança Pública, o Departamento Penitenciário Nacional e o Departamento da Polícia Federal fazem parte da estrutura do Ministério da Justiça, além dos seguintes órgãos colegiados: Conselho Nacional de Segurança Pública (CONASP) e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP).

7 Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização – CMO Fiscalize o Orçamento. A Câmara dos Deputados disponibiliza aos cidadãos e entidades da sociedade civil um novo sistema de consultas à execução orçamentária e financeira, construído a partir de dados do SIAFI, denominado FISCALIZE. Fonte: http://www2.camara.gov.br/orcamentobrasil/fiscalize

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Malgrado as comissões permanentes poderem, segundo o Regimento Interno da CD45, organizar subcomissões ou turmas, tais subcomissões ou turmas não possuem poder decisó-rio e estão restritas ao exame de parte das matérias de seu campo temático ou área de atua-ção. Portanto, tal estrutura não produz impactos significativos na capacidade das comissões permanentes de fiscalizarem os atos e omissões do Poder Executivo. A exceção a esta regra é a Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO)46, cujos comitês e subcomissões desempenham papel central nas decisões relacionadas à matéria orçamentária e na fiscalização da execução do Orçamento Público nas áreas temáticas a eles relacionadas. Portanto, para fins de análise desta seção, não serão consideradas as subcomissões presentes no interior das comissões permanentes da CD.

A observação das duas últimas colunas do quadro 2 permite verificar que, não obstante o avanço observado na estruturação do sistema de comissões da CD, persiste significativa incongruência entre as jurisdições das comissões permanentes e das pastas ministeriais. O número de pastas ministeriais supera, em muito, o número de comissões permanentes. Ademais, temas que estão reunidos em uma única comissão ensejam a organização de dois ou três diferentes ministérios, o que, obviamente, permite supor maior expertise no âmbito das pastas ministeriais do que das comissões legislativas47. Apenas em dois casos – Comissão de Defesa do Consumidor e Comissão de Segurança Pública e de Combate ao Crime Or-ganizado – verificou-se a existência de comissões que tratam de temas substantivos que não encontram pastas ministeriais específicas com jurisdições correspondentes48. Os assuntos relacionados à Comissão de Defesa do Consumidor estão na alçada do Ministério da Justiça, que, além da jurisprudência correspondente à da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, abarca também as questões relativas à segurança pública, temas abordados na CD pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado.

V.3) O Colégio de LíderesReza o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, em seu capítulo II, artigo 20:

Os Líderes da Maioria, da Minoria, dos Partidos, dos Blocos Parlamentares e do Governo constituem o Colégio de Líderes.

§ 1o Os Líderes de Partidos que participem de Bloco Parlamentar e o Líder do Governo terão direito a voz, no Colégio de Líderes, mas não a voto.

§ 2o Sempre que possível, as deliberações do Colégio de Líderes serão tomadas mediante consenso entre seus integrantes; quando isto não for possível, prevalecerá o critério da maioria absoluta, ponderados os votos dos Líderes em função da expressão numérica de cada bancada.

Tal dispositivo regimental deixa claros os procedimentos decisórios a serem observados no Colégio de Líderes, especificando-lhe a composição, os atores com direito a voz, aqueles com direito a voz e a voto e a regra de maioria a ser mobilizada quando não for possível produzir o consenso entre os membros de tal órgão.

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A explicitação de tais regras reveste-se da maior importância, especialmente quando se constata que grande parte das decisões tomadas no plenário da Câmara, inclusive algumas relacionadas a matérias bastante relevantes, o são através de votações simbólicas, precedidas de acordo de lideranças produzido no âmbito do Colégio de Líderes.

Seria de esperar, portanto, que as decisões do Colégio de Líderes, bem como o processo de deliberação política que as produziu, estivessem cuidadosamente registradas em atas e que tais documentos fossem públicos e de fácil acesso aos cidadãos.

No entanto, a busca de tais informações pelos autores deste artigo mostrou-se infrutí-fera. Foram localizados parcos e esparsos registros de reuniões, a maioria dos quais tratava apenas da definição da pauta dos trabalhos do Plenário da Casa para os dias subseqüentes.

A inexistência ou inacessibilidade de tais registros suscita um sério problema de accoun-tability, ao impedir a reconstituição do processo decisório relativo àqueles temas que foram objetos de votação simbólica no plenário da Casa e impossibilitar a responsabilização, pelos cidadãos, de seus agentes. Desta forma, se é fato, como aventado anteriormente, que a compo-sição plural do Colégio de Líderes pode favorecer a expressão de conflitos interpartidários no interior dessa arena decisória e ampliar a capacidade dos partidos e das oposições para moni-torarem reciprocamente os acordos conduzidos nesta arena, a não-disponibilidade de registros sobre tais negociações contribui para a invisibilidade das decisões que afetam os cidadãos.

Embora se ressalte a importância do Colégio de Líderes para a coordenação das ações no âmbito legislativo, de forma a contribuir para a redução dos custos decisórios, a atuação dessa instância decisória não deveria provocar restrições à deliberação parlamentar. No en-tanto, na prática, tais restrições têm ocorrido, impactando negativamente a representativi-dade das decisões legislativas assim conduzidas e mitigando a capacidade dos parlamentares de reduzir as incertezas em relação às decisões tomadas e de antecipar os seus custos.

Um dos últimos episódios protagonizados pela 52ª legislatura ilustra bem o ponto: a tentativa de elevação dos salários do parlamentares em dezembro de 2006. A decisão de aumentar em mais de 90% os vencimentos mensais, equiparando-os aos dos ministros do STF, foi acordada pelas lideranças do Congresso Nacional – direção das duas Casas Legisla-tivas e lideranças partidárias49. Com vistas à redução dos custos decisórios, incluindo a sua aprovação em um curtíssimo prazo50, as lideranças sinalizaram com uma estratégia procedi-mental de regulamentação do aumento por meio de um ato conjunto das Mesas Diretoras das duas Casas Legislativas, sem a apreciação da decisão em plenário.

O preço da restrição da deliberação parlamentar – reduzindo as oportunidades para se estimar os custos da decisão e seus impactos sobre os cidadãos – mostrou-se bastante elevado, na medida em que o desfecho do processo inviabilizou qualquer decisão pela atual legislatu-ra. A decisão substantiva sofreu fortes reações por parte dos cidadãos, com a mobilização ex-traparlamentar contra a iniciativa do Legislativo, e a estratégia procedimental foi inviabiliza-da mediante o recurso ao Poder Judiciário por parte de parlamentares opositores à decisão51. Neste contexto, os custos decisórios elevaram-se sobremaneira, inviabilizando estratégias alternativas de reajuste salarial para os parlamentares. A tentativa de apreciar outras pro-postas legislativas – incluindo a proposta derrotada por decisão das lideranças partidárias –

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mostrou-se excessivamente custosa, tendo os parlamentares deliberado pela retirada das ma-térias da pauta de votação e a transferência da decisão para a próxima legislatura.

V.4) As comissões parlamentares de inquéritoA crise política que se abateu sobre a Câmara dos Deputados a partir de 2005 impactou

negativamente a produção legal da Casa, como afirmado anteriormente, e mobilizou grande parte de seus membros para o ativismo das comissões parlamentares de inquérito, seja en-

quanto integrantes das mesmas, seja enquanto investigados por elas. Nos anos de 2003 e 2004, entre as CPIs instauradas, vale mencionar:

a do INSS; a da Biopirataria; a do Banestado; a dos Grupos de Extermí-nio; a do Tráfico de Órgãos Humanos; a do Roubo de Veículos (CPMI do Desmanche); a da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e a da Adulteração dos Combustíveis, entre outras.

Em 2005 e 2006, no entanto, é que foi conferida maior centralidade e maior atenção pública às comissões parlamentares de inquérito, especial-mente as que ficaram conhecidas como CPI dos Correios, CPI do Mensa-lão e CPI das Sanguessugas.

Não cabe, neste artigo, relatar os acontecimentos que deram origem a tais comissões. Cabe, no entanto, chamar a atenção para que, não obstan-te as investigações conduzidas por elas tenham produzido impressionante corpo de evidências e recomendado a cassação de um número expressivo de parlamentares envolvidos com os escândalos de corrupção, os julga-mentos dos acusados resultaram, na maioria dos casos, na sua absolvição, o que contribuiu para aumentar ainda mais os índices de desaprovação, historicamente altos, da Casa pelos cidadãos.

Do ponto de vista, portanto, do desejável atributo da accountability, pode-se afirmar, por um lado, que o fato de a corrupção ter-se transformado em escândalo evidencia o funciona-mento adequado das instituições democráticas. Por outro lado, o fato de os escândalos, após apuradas as responsabilidades, não terem produzido as punições – especialmente as cassações de mandatos – previstas em lei evidencia a necessidade de aperfeiçoamento institucional52.

Claro está, como tem sido amplamente debatido na CD e na mídia, que a adoção do voto aberto propiciaria melhores condições de responsabilização dos representantes pelos cidadãos. Excluindo-se as votações relacionadas à apreciação dos vetos do presidente, nas quais se justifica o voto secreto para evitar qualquer tipo de pressão do Poder Executivo sobre os parlamentares, o exercício da representação democrática – portanto responsiva aos melhores interesses dos cidadãos e responsável perante eles – só teria a ganhar com a adoção do voto aberto53.

No entanto, em que pesem as inúmeras tentativas de substituição do voto secreto pelo voto aberto, que incluíram a instalação de uma Frente Parlamentar em Defesa do Voto Aberto, em abril de 2006, a 52ª legislatura não teve sucesso em aprovar a PEC 349/01, do deputado Luis Antônio Fleury, que extingue o voto secreto nas decisões da Câmara e do Senado54.

No dia 5 de setembro de 2006, o plenário da Câmara aprovou, em primeiro turno, por 383 votos a favor, nenhum contrário e quatro abstenções, o fim do voto secreto em todas as

O fato de a corrupção ter-se transformado em

escândalo evidencia o funcionamento

adequado das instituições democráticas. Por

outro lado, o fato de os escândalos, após apuradas

as responsabilidades, não terem produzido as

punições – especialmente as cassações de mandatos

– previstas em lei, evidencia a necessidade

de aperfeiçoamento institucional

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decisões do Legislativo. O texto aprovado expressa a aglutinação, em torno da PEC 349/01, de um conjunto de outras iniciativas legais. Embora a votação em segundo turno devesse ter ocorrido depois de transcorrido o intervalo de 5 sessões, a 52ª legislatura encerrou-se sem apreciar a matéria em segundo turno.

VI) Conclusões: estabilidade, representatividade e accountability: um balanço da legislatura 2003-2007

Passados quatro anos, que balanço de perdas e ganhos pode ser feito, relativamente às ações e às omissões dos representantes eleitos em 2002? Propõe-se, nesta conclusão, que tal balanço tenha por parâmetro a produção dos três atributos desejáveis da democracia, a saber: representatividade, accountability e estabilidade.

No que se refere ao atributo da estabilidade política55, vale indagar se a crise política que se inaugurou no país em 2005 resultou da vigência de instituições precárias ou inade-quadas – circunstância em que seria pertinente a referência a ‘crise institucional’ – ou se, alternativamente, a crise se instalou apesar das boas instituições políticas em presença e se tornou pública exatamente em conseqüência da operação virtuosa de tais instituições, situ-ação em que seria mais adequado falar em crise ‘política’, e não ‘institucional’.

Argumenta-se, aqui, que tal crise não afetou a estabilidade da ordem democrática e nem constituiu sintoma de sua fragilidade. Antes pelo contrário, e seguindo as ponderações de Norberto Bobbio, segundo as quais escândalo é a corrupção que vem a público, em havendo corrupção, a sua tradução em escândalo é sintoma de robustez das instituições de-mocráticas, ainda que seus desdobramentos possam, como se argumentará a seguir, indicar déficits relacionados aos outros atributos da democracia.

Instituições não fazem milagres. Não se pode exigir delas resultados que não dependem exclusivamente de seu desempenho. Ademais, as instituições, assim como as pessoas, ou su-cumbem às crises ou as superam e se robustecem com elas. No interesse do aperfeiçoamento e do fortalecimento das instituições democráticas brasileiras, vale indagar: o que é possível aprender com a recente crise política? Como superá-la e retirar dela ensinamentos que contri-buam para a operação mais virtuosa da democracia brasileira?

Afirma-se o caráter político, e não institucional da crise, e afirma-se, ademais, que ela decorreu, fundamentalmente, das escolhas dos atores políticos, sob certas circunstâncias, e não de eventuais óbices ou limitações interpostos, pelo arranjo institucional em presença, à expres-são política de determinadas preferências. Sabe-se que um dos desafios do presidencialismo de coalizão brasileiro relaciona-se com a necessidade inarredável de construção de maiorias gover-nativas. No entanto, vale perguntar: a que preço? E com quais recursos e procedimentos?

Tais indagações nos remetem, de imediato, à consideração de outro atributo da demo-cracia: o da representatividade. É este o atributo mais afetado pelas recorrentes denúncias de corrupção, de compra de votos e de uso de recursos públicos para alimentar campanhas e fazer frente a outras despesas partidárias. Tais práticas, onde comprovadas, alteram o padrão decisório da Câmara dos Deputados e revelam que as escolhas dos representantes eleitos, ou

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de alguns deles, não está sendo informada pela busca dos melhores interesses dos cidadãos e, sim, pela ótica estreita de seus próprios interesses pecuniários.

Portanto, a crise política deflagrada em 2005 pode ser diagnosticada, sobretudo, como uma crise de representatividade e, secundariamente, de accountability, já que, apuradas as responsabilidades e identificados os envolvidos em tais irregularidades, a sua não punição, como ocorreu na grande maioria dos casos, é indicativa de déficits de instrumentos de res-ponsabilização dos representantes pelos representados.

Cabe lembrar, ainda, que o episódio do aumento dos salários dos parlamentares em 91% – decisão através de procedimentos considerados impróprios pelo Supremo Tribunal Federal, tendo em vista a não apreciação da matéria pelo Plenário da Casa – foi a gota d’água que provocou o transbordamento do desgaste político da legislatura em tela.

Porém, nem só de crise viveu a Câmara dos Deputados, no decorrer da 52ª. legislatura. Vale, portanto, assinalar iniciativas e ações que, ao longo do período sob análise, produzi-

ram impactos sobre os três atributos democráticos. Apesar da crise, a Câmara dos Deputados conseguiu desenvolver uma

extensa e importante agenda política, que resultou na aprovação, especial-mente nos dois primeiros anos, de importantes iniciativas legais: a reforma da previdência, o texto principal da reforma tributária, várias MPs, como a do Refis, do Cofins, da DRU, da Cide, a criação dos programas Bolsa Famí-lia e ProUni, a Lei das Falências, das Parcerias Público-Privadas e a aprovação do Estatuto do Desarmamento.

No plano social, vale ressaltar os ganhos reais incorporados ao salário mínimo, que foi elevado em aproximadamente 46% ao longo da legislatura. Vale, também, sublinhar algumas iniciativas do Poder Legislativo de ampliar seu protagonismo na proposição e na aprovação de leis sociais, como ocorreu no caso da apresentação, pelo senador Garibaldi Alves Filho, de substitutivo à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2005, aprovado pelo Congresso Nacional em julho de 2004. Além de prever recursos para o aumento real do salário mínimo em 2005, equivalente ao crescimento real do PIB per capita em 2004, o substitutivo priorizava um conjunto de doze medidas que compu-nham o chamado “choque social”56, sugerido ao Poder Executivo para dimi-nuir a miséria e a pobreza no país .

Outras importantes proposições na área social, de autoria dos parlamen-tares, foram: o PL 6.680/02, aprovado em julho de 2003, que cria o Mapa da

Exclusão Social57; o Estatuto do Idoso, projeto de autoria do deputado Paulo Paim, aprovado em 2003, depois de tramitar durante sete anos no Congresso Nacional, e a PEC 306/00, pro-posta pelo deputado Gilmar Machado (PT-MG), que institui o Plano Nacional de Cultura.

Como já mencionado, iniciativas como essas nem sempre obtiveram sucesso e foram, em alguns casos, objetos de veto presidencial, sugerindo a hipótese de ocorrência de com-petição entre os Poderes pelo protagonismo na área social. Evidência disso é a proposição de várias MPs relacionadas ao tema como, por exemplo, a MP 108/03, que cria o Programa Nacional de Acesso à Alimentação (PNAA), vinculado ao Fome Zero, e o Conselho de

Apesar da crise, a Câmara dos Deputados conseguiu desenvolver uma extensa

e importante agenda política que resultou na

aprovação, especialmente nos dois primeiros anos,

de importantes iniciativas legais: a reforma da

previdência, o texto principal da reforma tributária, várias

MPs, como a do Refis, do Cofins, da DRU, da Cide, a criação dos programas Bolsa Família e ProUni, a Lei das Falências, das

Parcerias Público-Privadas e a aprovação do Estatuto do

Desarmamento

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Segurança Alimentar (Consea); a MP 123/03, que estabelece as normas de regulação do setor farmacêutico e cria a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED); e o projeto de lei aprovado em 2006, de autoria do Poder Executivo, que estabelece sistema de cotas nas universidades federais para estudantes provenientes das escolas públicas, com vagas destinadas a negros e a índios.

Ainda no campo social, reveste-se da maior importância a aprovação, depois de doze anos tramitando na Casa, do Projeto de Lei 2.710/92, fruto de iniciativa popular que rece-beu o apoio de mais de um milhão de brasileiros, que cria o Fundo Nacional de Moradia Popular e institui o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS)

No campo econômico, vale ressaltar a nova Lei de Falências, aprovada em 2004, após tramitar por mais de onze anos no Congresso Nacional; a MP 207/04, que concede ao pre-sidente do Banco Central o status de ministro de Estado; a MP do Bem, de 2005, que apro-va a redução de tributos e a ampliação do Simples; a Emenda Constitucional 53/99, que regulamenta o sistema financeiro e cria o Conselho Financeiro Nacional, em substituição ao Conselho Monetário Nacional; o Projeto de Lei 6.272/05, aprovado no início de 2006, que cria a Receita Federal do Brasil (Super Receita), em substituição à Secretaria da Receita Federal (SRF) e à Secretaria da Receita Previdenciária e, finalmente, o PLP 123/04, relativo à Lei de Micro e Pequenas Empresas (Super Simples).

No plano político, foram aprovadas algumas matérias relacionadas à reforma do Judici-ário, em tramitação há mais de doze anos. No início de 2006 e no rescaldo da crise política, através de decreto legislativo, os deputados acabaram com a remuneração adicional para convocações extraordinárias e, através da PEC 347/96, diminuíram o recesso parlamentar de 90 para 55 dias. No entanto, o tema da reforma política, objeto inclusive da constituição de uma comissão especial, não logrou avanços significativos e continuou a ser considera-do, segundo o presidente da Casa, deputado Aldo Rebelo, ‘uma prioridade’. E, como se assinalou anteriormente, iniciativas importantes, como a do fim do voto secreto para os parlamentares, não obtiveram êxito no decorrer da 52ª legislatura.

A maior centralidade conferida ao tema da reforma política, em decorrência da crise instau-rada em 2005, remete ao desafio de identificar o que, na política brasileira, deve ser reformado e em que direção. Propõe-se, aqui, que além de algumas reformas orientadas para o aperfei-çoamento institucional – adoção de mecanismos mais rigorosos de controle relacionados ao financiamento dos partidos políticos; instituição de mecanismos continuados de accountability vertical58; fim das coligações para eleições proporcionais; adoção de listas partidárias flexíveis, em substituição às listas abertas; adoção de mecanismos que desencorajem as migrações partidárias; adoção do voto aberto para os parlamentares, entre outras – é necessário atentar para a operação de outras variáveis e seus impactos na produção e no desenvolvimento da crise política.

A política, embora obviamente sofra o impacto das instituições, não se esgota nelas. Os resultados políticos expressam o confronto entre preferências e recursos dos atores, sob certas regras e sob certas condições. Ainda que alguns traços institucionais possam ter contribuído para pôr água na fervura da crise, certamente o fogo não foi ateado por eles. O momento é propício para reavaliar as coalizões políticas que têm dado sustentação política aos governos e seus custos, não apenas financeiros, mas de representatividade e de accountability.

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Notas1 Nossos agradecimentos pelo competente trabalho a Vitor Leal Santana, estudante de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), que fez um extenso levantamento de informações sobre a 52ª legislatura junto à Agência Câmara e a outros órgãos da Câmara dos Deputados. Nossos agradecimentos, também, a Felipe Recch, assistente de pesquisa do Centro de Estudos Legislativos (CEL-DCP) da UFMG. Em especial, agradecemos a Argelina Figueiredo e Fernando Limongi por disponibilizarem o Banco de Dados Legislativos 1989-2006 – Cebrap.

2 Este parágrafo e o seguinte foram reproduzidos de Anastasia, 2002A.

3 Santos argumenta que existem duas descendências de sistemas representativos – oligárquicos e poliárquicos – e afirma: “Por definição minimalista, mas estrita, de poliarquia, entendo um sistema político que satisfaça completamente às seguintes condições:(1) exista competição eleitoral pelos lugares de poder, a intervalos regulares, com regras explícitas e cujos resultados sejam formalmente reconhecidos pelos competidores;(2) a participação da coletividade na competição se dê sob sufrágio universal, tendo por única barreira o requisito de idade limítrofe” (p. 210).“Creio que o caráter minimalista da definição seja pacífico, pois não exige a satisfação integral de todas as oito condições dahlsianas. Sua aplicação estrita, contudo, já permite distingüir poliarquias de autoritarismos, os quais violam a condição 1, e de oligarquias, as quais não satisfazem a condição 2” (SANTOS, 1998 :p. 210).

4 Um quadro mais completo da evolução do sistema partidário nos últimos anos pode ser obtido em Melo (2006).

5 Tal questão será retomada na conclusão deste artigo.

6 O percentual de nulos e brancos atingiu 11,1%, contra 7,4% de 2002, mas ainda muito longe dos 20% de 1998, quando a urna eletrônica ainda não era de utilização universal. Entre os deputados eleitos em 2006, 46% não estiveram na Câmara durante a legislatura 2003/2007. O percentual encontra-se acima do verificado em 2002 (41,9%), mas ainda bem abaixo do encontrado para 1994 (55%). Segundo o Instituto Datafolha, o percentual de eleitores que considerava ruim/péssimo o desempenho do Congresso subiu de 22%, em 2003, para 47% em abril de 2006. Os que avaliavam a atuação dos congressistas como ótima/boa caiu de 24% para 13%.

7 Tal apoio só foi abalado pela crise ocorrida no Senado Federal, em 2001, já no final do segundo mandato de FHC, o que resultou no afastamento do PFL da base governista.

8 Os quatro parágrafos que se seguem foram reproduzidos de Anastasia, 2002A.

9 “... os dois governos de Fernando Henrique Cardoso contrastam nitidamente no que diz respeito à popularidade do presidente. Ao longo de todo o primeiro mandato, o percentual de ótimo/bom manteve-se, com folga, acima do ruim/péssimo. Em fevereiro de 1999, a situação havia se invertido, e Fernando Henrique atravessou o segundo período com baixos índices de popularidade” (MELO, 2002: 36).

10 Segundo Amorim Neto (2000), a coalescência refere-se à proporção observada entre o peso de um partido no legislativo e no interior do gabinete.

11 O percentual é mais elevado do que a soma das cadeiras obtidas pelos partidos na eleição de 2002 graças ao movimento migratório no interior da Câmara que, como nos períodos anteriores, favoreceu claramente ao governo no início da legislatura (MELO E MIRANDA, 2006). Para o restante desta seção, o percentual de cadeiras da coalizão governista foi calculado com base no Banco de Dados de Votações Nominais, organizado por Argelina Figueiredo e Fernando Limongi, aos quais agradecemos pela presteza no fornecimento dos dados.

12 Banco de Dados do CEBRAP, fornecido por Argelina Figueiredo e Fernando Limongi.

13 O deputado João Paulo Cunha (PT-SP) foi eleito, em fevereiro de 2003, para presidir a Câmara dos Deputados, tendo obtido 434 votos. Foi a primeira vez, em 30 anos, que a candidatura oficial, nascida de um acordo de líderes, não enfrentou nenhum candidato de oposição à presidência da Casa. O acordo garantiu também a distribuição proporcional das comissões técnicas entre os partidos, tomando-se como base o tamanho das bancadas em 1º de fevereiro de 2003, o que garantiu ao PT a ocupação de outro ativo institucional relevante: a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (Agência Câmara, 3/2/2003).

14 Banco de Dados Legislativos do CEBRAP.

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15 Esses quatro partidos perderiam 34 deputados até março de 2006. A perda seria apenas parcialmente compensada pelo crescimento do PSB (sete deputados) e do PCdoB (dois). No momento em que este artigo estava sendo escrito, a coalizão governista controlava 63,9% das cadeiras da Câmara dos Deputados.

16 Os dois blocos seriam claramente visualizados também no interior do PMDB, partido que protagonizou, no início de 2005, uma intensa temporada de adesões patrocinada pelas alas conflitantes, tendo em vista a disputa pela liderança da bancada.

17 Os dados apresentados neste e nos próximos três parágrafos foram retirados de Melo e Miranda (2006).

18 Segundo Melo e Anastasia (2005), 81,5% dos deputados do PCdoB seguiram sua liderança nas votações da reforma. No caso do PDT, apenas 72,6%. O PCdoB chegou a liberar sua bancada na votação dos inativos. O PDT protagonizou um episódio insólito: membro da coalizão governista, o partido só conseguiu apresentar um comportamento disciplinado na votação em que sua liderança encaminhou contra o governo.

19 Vale comentar, de passagem, o retumbante fracasso da estratégia do PFL. Depois de quatro anos de oposição sistemática, o partido foi o grande derrotado das eleições de 2006.

20 Valores médios calculados a partir de Inácio (2006). A convergência foi medida por meio do índice de Rice, que é a diferença numérica entre o percentual de votos majoritários e minoritários no interior da bancada.

21 Dados organizados por Inácio (2006) mostram que o PTB diminuiu o grau de convergência a partir de meados do segundo mandato e que na última coalizão organizada por Fernando Henrique o PFL havia sido substituído pelo PMDB na condição de aliado principal.

22 Ainda que o número de migrações que cruzaram o espectro ideológico na 52a legislatura tenha crescido em relação às legislaturas passadas, passando de 5,5% (MELO, 2004) para 19,5% (MELO e MIRANDA, 2006).

23 Resultante do controle de agenda exercido por líderes institucionais e partidários na condução dos trabalhos legislativos (Cf. Figueiredo & Limongi, 1999).

24 As regras regimentais asseguram ao presidente da Casa um amplo conjunto de atribuições que impactam a definição da agenda legislativa, em termos de seu conteúdo, do funcionamento das arenas decisórias e do ritmo dos trabalhos legislativos. Para algumas decisões, há determinação regimental para que o Colégio de Líderes seja ouvido, como a definição da agenda mensal das proposições que serão apreciadas (RICD, art. 17). No que tange às modalidades e aos processos de votação, o RICD (art. 184 a 188) prevê a votação ostensiva e a secreta. A primeira inclui o processo nominal (com registro do voto individual do deputado, usada quando é exigido quórum especial de votação, por deliberação do Plenário ou pedido de verificação de votação) e simbólico (não há o registro individual do voto e é utilizada para a votação das proposições em geral, normalmente quando há acordos prévios). A segunda modalidade, a votação secreta, é utilizada para decisão sobre perda de mandato de deputados e suspensão de imunidades constitucionais dos membros da Casa e eleições realizadas pela Câmara.

25 Nos casos em que não há exigência constitucional, uma votação poderá ser realizada nominalmente por deliberação do Plenário, a requerimento de qualquer deputado ou quando houver pedido de verificação de votação, se subscrito por seis centésimos dos membros da Casa ou Líderes que representem esse número (RICD, art. 185 e 186).

26 Banco de dados Legislativos – Cebrap, atualizado até fevereiro de 2006.

27 Em termos do uso iterativo deste recurso, este padrão não diverge do observado nas legislaturas anteriores. Inácio (2006) mostrou que o PT – principal partido na oposição nos governos anteriores – foi o partido que mais usou o recurso: 209 pedidos de verificação de quórum no período entre 1990 e 2002. No entanto, pode-se destacar a intensidade de seu uso, já que, no caso do PFL, o expressivo volume de pedidos está concentrado na atual legislatura.

28 A obstrução parlamentar é considerada uma manifestação legítima do partido, desde que aprovada por seus líderes e bancada. Neste caso, não é computada a ausência para o deputado que adere à posição do partido.

29 Câmara dos Deputados. Normas Aprovadas na 52ª legislatura, 11/10/2006.

30 A partir deste ponto a análise se refere às leis sancionadas até fevereiro de 2006, num total de 665 leis. Fonte: Banco de Dados Legislativos CEBRAP, 2006.

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31 Neste último caso, a ação legislativa do Executivo sofreu restrições na medida em que a reedição de MPs – antes uma estratégia disponível aos governos para contornar esta situação – agora é proibida..

32 Foram convertidas em PLVs as medidas provisórias sobre a criação e a modificação dos seguintes programas sociais: Universidade para Todos – PROUNI, o Programa Nacional de Inclusão de Jovens – Pro-Jovem, Projeto Escola de Fábrica e o Programa de Educação tutorial. Em termos de políticas setoriais, também foram convertidas em projeto de lei as medidas provisórias que dispunham sobre a introdução do Biodiesel na matriz energética brasileira e a regulação do plantio e comercialização de soja geneticamente modificada.

33 Dados coletados no SILEG – Sistema de acompanhamento do processo legislativo da Câmara dos Deputados.

34 Há situações em que a estratégia de menor custo para o presidente é a de ‘pegar carona’ na iniciativa legislativa de outros atores, modificando-a de acordo com os seus interesses. Uma ilustração deste curso de ação é o projeto relativo ao Estatuto do Desarmamento, que passou a incorporar as posições defendidas pelo governo a partir da introdução de um substitutivo.

35 Carey (2006:3): “Decisiveness refers to the capacity of legislatures to reach decisions on policy and to make those decisions stick”.

36 Como salienta Carey (2006) “Citizens want legislatures to be decisive – that is, to resolve the issues before them without chronic deadlock. They also want accountability, which entails responsiveness on the part of legislators to citizens’ demands.”

37 “... não apenas as Casas Legislativas devem ser instâncias deliberativas, como o que nelas se delibera deve ecoar e reverberar, da melhor forma possível, os processos de deliberação em curso nas entidades de participação política da sociedade civil. Para tanto, requer-se que haja canais permanentes, institucionalizados e deliberativos de interação entre as instâncias de representação e de participação política” (Anastásia & Inácio, 2006).

38 “ Para exercerem adequada e legitimamente suas atribuições – de legislar e de fiscalizar – os parlamentares devem:1) Estar em permanente interação com os cidadãos, através dos instrumentos de participação política que permitem aos grupos organizados vocalizar suas preferências e sinalizar suas prioridades para os representantes eleitos. Legisladores envolvidos em processos de deliberação não podem e não devem ser portadores apenas das preferências de sua constituency. Eles devem conhecer, também, as demandas de outros segmentos sociais, profissionais, regionais, etc. 2) Ampliar a sua base informacional relativa:2.1. aos interesses dos cidadãos;2.2. às relações entre demandas, políticas e resultados;2.3. às conseqüências esperadas de diferentes políticas públicas;2.4. às coalizões políticas em presença nas Casas Legislativas e fora delas e2.5. às correlações de forças entre os interesses portados por essas coalizões;3) Desenvolver a expertise requerida para o exercício de suas atribuições de fiscalização dos atos e das omissões do Poder Executivo” (ANASTÁSIA & INÁCIO, 2006: 14).

39 “A Comissão de Legislação Participativa(CLP) da Câmara dos Deputados foi criada em 2001 com o objetivo de facilitar a participação da sociedade no processo de elaboração legislativa. Através da CLP, a sociedade, por meio de qualquer entidade civil organizada – ONGs, sindicatos, associações, órgãos de classe – apresenta à Câmara dos Deputados suas sugestões legislativas. Essas sugestões vão desde propostas de leis complementares e ordinárias até sugestões de emendas ao Plano Plurianual (PPA), à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e à Lei Orçamentária Anual (LOA)” Fonte: www.camara.gov.br.

40 Resolução nº 19, de 14 de março de 2001( Ato da Mesa nº 56 de 2001).

41 As demais sugestões se distribuíram entre: projeto de lei complementar (6), emenda a projeto de lei (3), indicação (4), requerimento de informação (1), voto de louvor (1), voto de pesar (1), emenda ao PPA (1). Fonte: www.camara.gov.br (atualizada em 13/11/06).

42 “Veja onde a Ouvidoria pode atuar: Recebendo reclamações ou representações sobre: violação ou qualquer forma de discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; ilegalidade ou abuso de poder; mau funcionamento dos serviços legislativos e administrativos da Casa; assuntos recebidos pelo sistema 0800 de atendimento à população. Propondo medidas para sanar as violações, as ilegalidades e os abusos constatados. Propondo medidas necessárias à regularidade dos trabalhos legislativos e administrativos, bem como ao aperfeiçoamento da organização da Câmara dos Deputados. Sugerindo, quando cabível, a abertura de sindicância ou inquérito destinado a apurar irregularidades de

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que tenha conhecimento. Encaminhando ao Tribunal de Contas da União, à Polícia Federal, ao Ministério público ou a outro órgão competente as denúncias recebidas que necessitem maiores esclarecimentos. Respondendo aos cidadãos e às entidades quanto às providências tomadas pela Câmara sobre os procedimentos legislativos e administrativos de seu interesse. Realizando audiências públicas com segmentos da sociedade civil”. Fonte: http://www2.camara.gov.br/conheca/ouvidoria/index.html.

43 De acordo com a definição de Sartori (1994: 304-307) comitês são grupos pequenos, de interação face a face, duráveis e institucionalizados, que constituem contextos decisórios contínuos, tomam decisões em relação a um fluxo de decisões, cujo código operacional permite a consideração de diferentes intensidades de preferências e faculta a produção de compensações recíprocas retardadas e de decisões de soma positiva.

44 Segundo Strom (1990), a variável ‘influência da oposição’ pode ser examinada a partir da consideração das seguintes características das comissões legislativas: o número de comissões permanentes; as áreas de especialização das comissões; a correspondência entre a jurisdição das comissões e das pastas ministeriais; as restrições quanto ao número de comissões a que pode pertencer cada legislador e a distribuição proporcional das vagas nas comissões para os partidos políticos (Strom, 1990:71, citado por Powell, 2000:32; Anastasia, Melo & Santos, 2004).

45 Capítulo IV, Seção II, Subseção II.

46 Cabe à Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO), nos termos do artigo 166 da Constituição Federal: “Art. 166. – .................................................................................................................................I – examinar e emitir parecer sobre os projetos referidos neste artigo e sobre as contas apresentadas anualmente pelo Presidente da República;II – examinar e emitir parecer sobre os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos nesta Constituição e exercer o acompanhamento e a fiscalização orçamentária, sem prejuízo da atuação das demais comissões do Congresso Nacional e de suas Casas, criadas de acordo com o art. 58.” Fonte: http://www2.camara.gov.br/comissoes/cmo/funcionamento

47 Vale ressaltar, no entanto, que grande número de ministérios não significa necessariamente maior expertise, podendo significar a mobilização de recursos de patronagem para acomodar os interesses dos membros do partido do governo e de seus aliados.

48 Há dois outros casos em que não se verifica tal correspondência, mas trata-se de comissões em relação às quais não caberia esperar encontrá-la: Comissão de Fiscalização Financeira e Controle e Comissão de Legislação Participativa .

49 Em reunião realizada no dia 14 de dezembro, os líderes partidários e direção das duas Casas examinaram duas propostas de elevação dos salários. A primeira delas propunha um reajuste correspondente à inflação do período (2003-2006), e a segunda, a equiparação dos salários dos parlamentares ao teto de salários do STF, tendo sido vitoriosa a última.

50 A matéria foi apreciada em um prazo exíguo, sendo que o movimento para a elevação dos salários foi deflagrado no último mês de trabalho legislativo.

51 O PPS ajuizou junto ao STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIn relativa ao Decreto Legislativo no 444/2002, que dispõe sobre a remuneração dos Membros do Congresso Nacional durante a 52ª legislatura e, no seu parágrafo 2, autoriza as Mesas Diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado Federal a regulamentarem a aplicação do Decreto por meio de Ato Conjunto. Parlamentares do PV, PSDB e PPS ajuizaram também um mandado de segurança com pedido de liminar para garantir a deliberação em plenário da matéria. No julgamento destes processos, o STF revogou o Decreto Legislativo que instruiu a concessão de aumento e concedeu uma liminar em mandado de segurança cujo efeito imediato foi o de suspender a regulamentação do aumento por meio de Ato Conjunto das Mesas, devendo a decisão ser tomada por manifestação do Congresso Nacional.

52 Agradecemos a Juliana Salazar, aluna do mestrado em Ciência Política da UFP, pela intervenção no debate sobre a reforma política, realizado em Recife no dia 1º/12/2006, na qual ela enfatizou os déficits de accountability resultantes da não-punição dos envolvidos nos escândalos de corrupção.

53 Atualmente, na Câmara dos deputados, o voto secreto é utilizado nas seguintes situações: na votação dos vetos do Executivo; na apreciação da perda de mandato parlamentar; na apreciação da suspensão das imunidades constitucionais e na eleição do presidente da Casa e dos demais integrantes da Mesa Diretora.

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Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo

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54 A partir de dezembro de 2004, foi aprovado, e passou a tramitar, o Substitutivo do relator José Eduardo Cardozo (PT-SP). O texto aprovado estende a extinção do voto secreto às assembléias legislativas, à Câmara Legislativa do Distrito Federal e às câmaras municipais. Fonte: Agência Câmara, 15/12/2004.

55 Esta conclusão reproduz trechos de palestra proferida na Câmara dos Deputados, em 2005, por Fátima Anastásia, em evento relacionado à reforma política.

56 “Entre elas estão a aceleração de programas como o Bolsa Família, o Brasil Alfabetizado, Farmácias Populares e Habitação Popular, além das ações relacionadas à reforma agrária e dos programas destinados à ampliação do acesso a água de boa qualidade’ (Fonte: Agência Câmara, 13/7/2004).,

57 Apresentado pelo deputado Eduardo Campos (PSB-PE).

58 Ver, a respeito, Anastásia (2002B).

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Idéias e Leis• José Cordeiro de Araujo e Rodrigo H. C. Dolabella Transgênicos, biossegurança e o Congresso Nacional

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José Cordeiro de Araujo e Rodrigo H. C. Dolabella*

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Os transgênicos no Brasil e no mundo

Os transgênicos (ou organismos geneticamente modificados) são or-ganismos que adquiriram, pelo uso de técnicas modernas de engenharia genética, características de outro organismo. O termo geneticamente mo-dificado – GM tem sido utilizado para descrever a aplicação da tecnolo-gia do DNA recombinante para a alteração genética de animais, plan-tas e microorganismos. O extraordinário dessa tecnologia é a possibilidade de se transferirem características genéticas entre organismos de espécies, gêneros e até mesmo de reinos diferentes, rompendo assim as barreiras biológicas que impedem os cruzamentos naturais entre esses organismos. Assim, por exemplo, uma planta ou animal pode receber em seu genoma um ou mais genes de uma bactéria e, dessa forma, garantir a hereditariedade da nova característica recebida.

Os produtos derivados de microorganismos geneticamente modificados foram os primeiros consumidos em larga escala. Insulina para dia-béticos, produzida por bactérias transgênicas, é um derivado de OGM há muitos anos mencionado. Na última década maio-res esforços têm sido empreendidos na pesquisa e desenvolvimento de plantas e animais transgênicos. Os animais geneticamente modifi-cados têm sido úteis no estu-do e diagnóstico de doenças humanas, e os vegetais, em geral, possuem caracterís-ticas agronômicas desejá-veis, como resistência a pra-gas e doenças e tolerância a herbicidas.

*José Cordeiro de Araujo e Rodrigo H. C. Dolabella, Consultores Legislativos da Câmara dos Deputados – Área de Política Agrí[email protected]@camara.gov.br

Transgênicos, biossegurança e o Congresso Nacional

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É principalmente no cultivo agrícola em larga escala que a polêmica sobre os transgêni-cos se mantém intensa até hoje. Os agropecuaristas, por um lado, ávidos por biotecnologias que aumentem a eficiência agronômica de suas lavouras e a performance econômica de sua atividade, desejam mais incentivos à geração de novos produtos da engenharia genética e maior agilidade dos órgãos reguladores na liberação de cultivos GM. Os ambientalistas, por outro lado, combatem os transgênicos, indicando os riscos que eles representam para a biodiversidade no planeta, além da possibilidade de ampliar-se a dependência tecnológica e econômica dos agricultores em relação às empresas de sementes, com efeitos mais danosos principalmente sobre os mais pobres. Alguns setores representantes de consumidores apre-sentam temor de que o consumo de alimentos transgênicos possa representar algum risco à saúde humana e animal.

Essa divisão de opiniões teve reflexos importantes nas decisões dos governos dos países produtores e importadores de alimentos em todo o mundo.

Os Estados Unidos, gigante na produção agrícola, tornaram-se líder mundial nas pes-quisas e no desenvolvimento de transgênicos e, conseqüentemente, seu maior usuário e di-vulgador. As empresas de biotecnologia e várias universidades norte-americanas são deten-toras dos direitos de propriedade intelectual sobre a maior parte das plantas geneticamente modificadas em uso no mundo, por isso recebem importante suporte político do governo para defesa de seus interesses econômicos, inclusive em fóruns multilaterais, como na Or-ganização Mundial do Comércio.

Os países da União Européia, de modo contrário, têm tido posições mais restritivas em relação às plantas e alimentos GM. A restrição chegou ao cume quando vários países adota-ram uma moratória para o plantio de transgênicos, que perdurou por cinco anos e encerrou-se em 2004. Naquele continente, os movimentos ambientalista e de defesa dos consumido-res exercem forte influência sobre a opinião pública e governos dos países-membros da UE. A partir de 2004, em conformidade com a Diretiva 2001/18 da Comunidade Européia, fo-ram aprovadas variedades transgênicas de milho e colza (canola) para plantio. Atualmente, cultiva-se somente milho transgênico em áreas relativamente pequenas de apenas sete países europeus. Em 2006, a Espanha teve a maior área plantada, seguida pela França, Portugal e Alemanha. Na Comunidade Européia observa-se, ainda, forte resistência de movimentos de consumidores contra os produtos transgênicos. A polêmica em torno desse assunto não está encerrada e, de forma recorrente, surge e pressiona os órgãos diretivos.

Nos dois principais países agrícolas da América do Sul, Brasil e Argentina, os processos de introdução dos OGM nos respectivos sistemas agrícolas foram bastante diferenciados. Enquanto na Argentina, desde a aprovação do primeiro OGM — a soja, em 1996 — até os dias de hoje, o processo ocorreu sem questionamentos judiciais, no Brasil, um verdadeiro imbróglio na Justiça suspendeu por vários anos a autorização para o plantio da soja, conce-dida em 1998 pela CTNBio – Comissão Técnica Nacional de Biossegurança. Tal situação só foi definitivamente solucionada com a edição da nova Lei de Biossegurança, em 2005.

Em 2006, passados dez anos dos primeiros plantios comerciais de plantas transgênicas nos Estados Unidos, a área mundial cultivada atingiu 102 milhões de hectares, segundo es-timativas do ISAAA1, única instituição que divulga estatísticas sobre o plantio de OGM em

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José Cordeiro de Araujo e Rodrigo H. C. Dolabella

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escala mundial. A mesma fonte informa que cerca de 10 milhões de agricultores, distribuídos em 22 países de todos os continentes do globo, utilizaram sementes transgênicas nesse ano.

Segundo a mesma fonte, os Estados Unidos têm a maior área plantada com culturas geneticamente modificadas, perfazendo 54,6 milhões de hectares (53% da área global cul-

tivada com culturas GM), seguido pela Argentina, com 18 milhões; pelo Brasil, com 11,5 milhões; Canadá, com 6,1 milhões; Índia, com 3,8 mi-lhões; e China, com 3,5 milhões de hectares. A soja GM é a cultura mais plantada, ocupando 58,6 milhões de hectares (57% da área global), segui-da do milho (25,2 milhões de hectares – 25%), do algodão (13,4 milhões de hectares – 13%) e da canola (4,8 milhões de hectares – 5% da área total com transgênicos).

De modo geral, órgãos reguladores dos países onde se cultivam plantas geneticamente modificadas têm o poder de autorizar as pesquisas com enge-nharia genética e o uso comercial dos organismos transgênicos. A Organiza-ção para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem tido pa-pel importante na busca de harmonizar a regulamentação da biossegurança de OGM entre seus 30 países-membros e a Comunidade Européia2.

Fato relevante, no plano internacional, relativamente a este tema, foi a aprovação do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, assinado em 2000 no âmbito da Convenção da Diversidade Biológica da ONU. No Brasil, foi aprovado pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo nº 908, de 21 de novembro de 2003, e passou a vigorar em 22 de fevereiro de 20043.

O Protocolo é um instrumento jurídico internacional que busca garantir um nível adequado de segurança para a movimentação transfronteiriça, o trânsito, a manipulação e a utilização de todos os organismos vivos geneticamente modificados. Em suma, regulamenta o fluxo de organismos transgênicos entre as nações, com o desafio de não confrontar as regras multilaterais de comércio. No entanto, alguns dos principais países produtores agrí-colas não o ratificaram, até o momento, estando fora do alcance de suas deliberações. Nessa situação, estão os EUA e a Argentina.

Os instrumentos de avaliação dos riscos para o meio ambiente e da segurança para a saúde humana e animal dos OGM, as instâncias de tomadas de decisões, os mecanismos de controle e fiscalização das atividades de pesquisa e desenvolvimento e da comercialização de transgênicos, e a rotulagem dos OGM e seus derivados são usualmente estabelecidos por legislação específica de cada país, discutida e aprovada por seus parlamentos.

A Atuação do Congresso Nacional na questão dos OGM

No Brasil, o Congresso Nacional tem dado grande importância à discussão do tema e positiva contribuição para a definição da política nacional de biotecnologia e biossegurança. Desde a apresentação, em 1990, de projeto de lei de autoria do senador Marco Maciel − do qual resultou a primeira Lei de Biossegurança, de nº 8.974, de 1995 − até os dias de hoje, in-tensos debates foram travados em diferentes momentos e locais das duas Casas Legislativas.

Desde a apresentação, em 1990, de projeto de

lei de autoria do senador Marco Maciel − do qual resultou a primeira Lei

de Biossegurança, de nº 8.974, de 1995 −

até os dias de hoje, intensos debates foram travados em diferentes momentos e locais das

duas Casas Legislativas

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Com a implementação da primeira Lei de Biossegurança e o efetivo desenvolvimen-to da biotecnologia no Brasil e no mundo, iniciou-se, no Congresso Nacional, processo de discussão dos diferentes temas relacionados aos OGM. A iminência da introdução dos transgênicos nos sistemas agrícolas, nos alimentos e nos medicamentos e de seu consumo em larga escala gerou contínua preocupação legislativa, do que resultou, em pouco tempo, a apreciação, pelo parlamento brasileiro, de mais de três dezenas de projetos de lei que tratavam de assuntos como: proibição de plantio e de importação; limites ao consumo de produtos transgênicos (na merenda escolar, nos hospitais, etc.); incentivos à pesquisa; obri-gatoriedade de rotulagem; entre outros.

É fundamental registrar que tema de tal complexidade e de elevado grau de polêmica galvanizou importantes segmentos da sociedade brasileira, gerando, até o momento, im-passes políticos e judiciais, discussões técnicas intermináveis, debates maniqueístas, enfim, absoluta polarização que se afigura de difícil dissipação. No âmbito do Legislativo, como não poderia ser de outra forma, impregnou-se com iguais características, agudizando o debate e as diferenças políticas que gravitam em seu redor. De notar, também, que não se conseguiu identificar um padrão programático, no seio dos partidos políticos, no tratamen-to desta questão: numa mesma agremiação encontravam-se parlamentares que defendiam ardentemente a imediata liberação dos produtos transgênicos e outros que pretendiam que ela fosse realizada segundo procedimentos cautelosos, que implicavam demora e atrasos nos processos regulatórios, ou mesmo propugnavam pelo banimento desses produtos.

Neste contexto de radicalização dos posicionamentos políticos, insuflados, obviamen-te, pelos anseios de setores sociais que conseguiam fazer chegar ao Parlamento suas agendas, deu-se a maioria das contendas técnicas, ideológicas e políticas que resultaram na posição final assumida pelo Congresso Nacional no que concerne aos Organismos Geneticamente Modificados.

Os debates, no âmbito do Legislativo, ocorreram com igual intensidade na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Ao seu devido tempo, cada Casa contribuiu de forma efetiva para o aprofundamento dos conhecimentos técnicos e científicos relacionados a essa política pública para sua inserção na sociedade e para as definições que implicaram sua conformação final. A despeito de reconhecer a enorme contribuição do Senado Federal ao tema, este artigo tenciona registrar e analisar, com maior grau de detalhamento, a contribui-ção da Câmara dos Deputados para o estabelecimento dessa política.

A atuação da Câmara dos Deputados

No decorrer desses processos de discussão e de formação de opiniões no âmbito das Ca-sas Legislativas, inúmeras atividades foram realizadas, tanto em comissões especiais, quanto nas comissões permanentes, bem como em atividades extracomissões realizadas sob os aus-pícios da Câmara dos Deputados.

Dentre essas atividades podem-se citar como mais significativas:

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a) Apreciação dos projetos de lei pela Câmara dos DeputadosNum primeiro momento, em 1999, os vários projetos de lei em tramitação foram apre-

ciados pela Comissão de Agricultura e Política Rural, sendo produzido um substitutivo pelo relator, deputado Odílio Balbinotti, cujo parecer não chegou a ser apreciado.

Posteriormente, os projetos de lei foram apreciados, também, em momentos diferen-tes, por duas comissões especiais.

A primeira delas, constituída em 1999 e presidida pelo deputado Betinho Rosado, apreciou cerca de 20 projetos de lei, de iniciativa dos deputados, dela resultando um projeto

substitutivo, de autoria do relator4, deputado Confúcio Moura que, embo-ra aprovado na comissão, em 2002, não logrou ser apreciado pelo Plenário da Câmara dos Deputados.

A segunda comissão especial, presidida pelo deputado Silas Brasileiro, foi constituída para apreciação do Projeto de Lei nº 2.401, encaminhado em 2003 pelo Poder Executivo. Foram seus relatores5, em diferentes mo-mentos e nessa ordem, os deputados Aldo Rebelo, Renildo Calheiros e Darcísio Perondi. O projeto substitutivo aprovado por essa comissão, que acolheu integralmente o texto aprovado pelo Senado Federal, foi encami-

nhado para sanção do presidente da República, resultando na atual Lei de Biossegurança, de nº 11.105, de 2005.

É relevante registrar que o texto final, que deu origem à Lei, resultou de várias pro-posições intermediárias, da Câmara dos Deputados e do Senado, tendo ocorrido intensa troca de informações entre membros das duas Casas Legislativas ao longo da tramitação da matéria.

Os pareceres proferidos pelos relatores dessas comissões, da Câmara e do Senado, são peças importantes para o entendimento do direcionamento tomado, a cada momento, pelos formuladores legislativos e incorporam, obviamente, os anseios dos setores sociais que lhes apresentaram demandas e as sugestões das bancadas parlamentares com quem negociaram os conteúdos de seus pareceres preliminares.

b) Audiências públicas e seminários realizados na Câmara dos DeputadosApenas as duas Comissões Especiais e a Subcomissão Especial da Comissão de Ciência

e Tecnologia, Comunicação e Informática realizaram nada menos que 57 audiências públi-cas, com a participação de especialistas dos vários segmentos envolvidos no tema (pesquisa agropecuária e pesquisa médica): órgãos normativos; ministérios; membros da Academia e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência; representantes de setores de produção de sementes e da agropecuária em geral, do meio ambiente, da saúde e de defesa do consu-midor; parlamentares federais e estaduais, entre outros.

Além dessas, também as comissões permanentes, em especial as de Agricultura e Polí-tica Rural, a de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias, em vários momentos do processo de discussão que construía o posicionamento legislativo, realizaram audiências públicas, trazendo ao conhecimento dos parlamentares e dos segmentos envolvidos com o tema o posicionamento de diferentes especialistas e de agentes políticos.

Apenas as duas Comissões Especiais e a Subcomissão

Especial da Comissão de Ciência e Tecnologia,

Comunicação e Informática realizaram nada menos que

57 audiências públicas

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Registra-se que ocorreram, por iniciativa de partidos políticos ou de outras organiza-ções, também sob os auspícios da Câmara dos Deputados, seminários técnicos, nos quais tanto os integrantes da Casa quanto as entidades e especialistas tiveram a oportunidade de debater as diferentes facetas do tema.

c) Relatório final da Proposta de Fiscalização e Controle nº 34/2000, destinada a fiscalizar “os procedimentos adotados pelo Poder Executivo para autorizar a liberação de plantas transgênicas no país”, aprovado na Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias, da Câmara dos Deputados, em 20036.

Com relatoria do deputado Ronaldo Vasconcellos, este relatório promoveu percucien-te investigação acerca dos principais atos e fatos que ocorreram na esfera governamental, relativamente à liberação dos produtos transgênicos no Brasil. Dentre estes fatos, foram minuciosamente estudados, à luz da legislação e dos atos normativos então vigentes:• A importação de milho transgênico, em 2000 – buscou identificar as irregularidades

relativas à autorização dada pela CTNBio e os atos do Ministério da Agricultura, naquele momento.

• A fiscalização dos ensaios e experimentos – buscou identificar possíveis falhas no processo fiscalizatório, por parte dos ministérios, nos ensaios até então autorizados pela CTNBio.

• A implantação de Unidades Demonstrativas – identificou as irregularidades cometidas pela CTNBio, ao autorizar a implantação de Unidades Demonstrativas.

• O tamanho das áreas dos ensaios e experimentos autorizados – identificou irregularidades em autorizações dadas pela CTNBio para implantação de ensaios com área excessiva.

• A elevação do Limite Máximo de Resíduos – LMR de glifosato em soja – identificou as irregularidades cometidas pelo Ministério da Saúde, por ação de seu órgão fiscalizador, na edição de portaria que elevava o LMR de glifosato em soja, às vésperas da autorização, pela CTNBio, de plantios comerciais.

• Os plantios comerciais ilegais – estudou as causas e conseqüências do plantio ilegal de sementes de soja no Brasil a partir de sementes contrabandeadas da Argentina.

• A desregulamentação da soja RR – buscou identificar as condições em que a CTNBio autorizou o plantio comercial da soja RR, em 1998.

• A não-regulamentação das multas – buscou identificar as causas e conseqüências da inexistência de regulamentação para a adequada aplicação de multas, pelos órgãos fiscalizadores, pelas infrações à Lei de Biossegurança.

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• A cassação dos Certificados de Qualidade em Biossegurança (CQB) – buscou identificar se havia irregularidade cometida pela CTNBio na cassação de CQB de empresa privada de pesquisa.

• As políticas de fiscalização do Mapa, da Anvisa e do MMA – diagnosticou a situação então existente dos sistemas fiscalizadores dos ministérios.

• A falta de uma política nacional de biossegurança – apontou sua inexistência e sugeriu rumos para a formulação de uma política de biossegurança.

Do trabalho desta comissão resulta um relatório que se constitui em completa radio-grafia dos atos e fatos da época, com análises e conclusões fundamentadas no cotejamento entre as decisões oficiais tomadas pelos diferentes órgãos públicos envolvidos na questão e os normativos legais e administrativos então vigentes.

d) Relatório final da subcomissão especial “destinada a estudar a situação dos alimentos transgênicos”, aprovado pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados, em 20037.

Sob a presidência do deputado Gustavo Fruet e com relatoria do deputado Nelson Proença, esse relatório retrata detalhado estudo e aprofundada investigação acerca de aspec-to específico da política relativa aos OGM: a pesquisa e os óbices então existentes ao seu desenvolvimento. Produziu rigoroso diagnóstico da situação das pesquisas, nos âmbitos pú-blico e privado, e identificou os aspectos legais, normativos, administrativos e políticos que entravavam o adequado fluxo de sua execução e, por via de conseqüência, o desenvolvimen-

to da ciência e tecnologia nesse campo. Algumas das questões levantadas nesse relatório, bem como algumas de suas sugestões, foram importantes instrumentos para as decisões normativas posteriores da CTNBio e dos ministérios envolvidos no processo de registro e autorização dos projetos de pesquisa, bem como no desenho da nova Lei de Biossegurança, no que concerne às autorizações para pesquisa em OGM.

e) Estudos e artigos produzidos pela Câmara dos DeputadosEm decorrência do intenso envolvimento técnico e político dos par-

lamentares, consultores legislativos e assessores da Câmara dos Deputados no tema OGM e dos debates travados em seus mais diversos ambientes, ob-

servou-se relevante produção intelectual, expressa na forma de estudos e artigos publicados na própria Casa ou em veículos externos. Como não poderia deixar de ser, essas publicações apresentam enfoques díspares, de diferentes matizes ideológicos e, muitas vezes, conflitantes abordagens, fruto da inevitável polarização técnica e política que o tema encerra. No entanto, essa produção intelectual originada na Câmara dos Deputados foi de grande relevância para o debate, contribuindo, de forma efetiva, para a formulação legislativa e da política para os organismos geneticamente modificados.

Essa produção intelectual originada na Câmara dos Deputados foi de grande

relevância para o debate, contribuindo, de forma

efetiva, para a formulação legislativa e da política

para os organismos geneticamente modificados

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f) Apreciação de medidas provisórias pela Câmara dos Deputados

Da apreciação que se faz da ação legislativa da Câmara dos Deputados que orientou a política de transgênicos, nos últimos anos, não se pode deixar de referir, analisando-as sob enfoques diferenciados, quatro medidas provisórias ado-tadas pelo Poder Executivo. Primeiramente, a MP nº 113, convertida na Lei nº 10.688, de 2003, tornou legal a soja tolerante a herbicida, plantada ilegalmente, principalmente no Rio Grande do Sul, a partir de sementes originalmente contrabandeadas da Argentina. Ao permitir a comercialização da safra, reconheceu a existência das lavouras ilegais. No entanto, levando em conta os complexos e relevantes aspectos econômicos e sociais envolvidos na questão, conferiu legalidade àquela produção. Posteriormente, a Câmara dos Deputados apreciou mais duas medidas provisórias, basicamente com os mesmos objetivos daquela, tendo em vista que uma liminar da Justiça, que suspendia a autorização da CTNBio para o plantio da soja RR, ainda perdurava e, ainda assim, os agricultores manifestavam forte intenção de usar as sementes transgênicas colhidas e guardadas para uso próprio.

Ao final do ano de 2006, nova medida provisória, de nº 327, passou pelo crivo da Câ-mara dos Deputados. Neste caso, determina a redução da distância mínima entre lavouras de cultivares transgênicas e das Unidades de Conservação da Natureza (parques nacionais, estações ecológicas e outras). O projeto de lei de conversão – PLV relativo a essa MP, aprovado pela Câmara dos Deputados, passou a dispor, também, sobre a legalização do algodão trans-gênico plantado no Centro-Oeste sem permissão oficial e, ainda, sobre o quórum mínimo de deliberação da CTNBio. No início de 2007, essa MP e seu PLV encontram-se em apreciação pelo Senado Federal.

Nos quatro casos, a tramitação das medidas provisórias pela Câmara dos Deputados não se caracterizou em mera aprovação ou chancela das intenções originalmente emanadas do Poder Executivo. Pelo contrário. Fruto dos intensos debates realizados, essas peças legais foram alvo de modificações que lhes deram novas conformações e disposições, alterando a proposta inicial e conferindo novas características às leis resultantes.

g) A aprovação da nova Lei de BiossegurançaFinalmente, é fundamental registrar o resultado maior do processo legislativo desen-

volvido ao longo desse período: a nova Lei de Biossegurança. A Lei nº 11.105, de 2005, resulta, formalmente, da apreciação de projeto de lei encaminhado pelo Poder Executivo, mas traz, em seu conteúdo, o resultado do longo e dinâmico processo de discussão e análise da matéria no âmbito do Poder Legislativo e é resultante dos diversos vetores políticos que orientaram sua discussão. O amadurecimento das idéias apresentadas, o embate político e ideológico que se travou em torno delas, a apreensão, pelo Parlamento, dos anseios e das de-mandas sociais que lhe chegaram, respaldados pelos estudos técnicos tornados disponíveis a todos os que se envolveram no tema permitiram a formulação da lei, aprovada pela maioria dos integrantes do Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República.

os posicionamentos políticos tomados pelo

Congresso Nacional em relação aos atos

do Poder Executivo, no âmbito da formulação e da execução da política

de biotecnologia e de biossegurança, não foram

frutos, portanto, de simples acomodação ou

aceitação de proposições

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No processo, ficou cristalino, pelo resultado final representado pela nova Lei de Bios-segurança, que os posicionamentos políticos tomados pelo Congresso Nacional em rela-ção aos atos do Poder Executivo, no âmbito da formulação e da execução da política de biotecnologia e de biossegurança, não foram frutos, portanto, de simples acomodação ou aceitação de proposições. Foram, ao contrário, resultado de intensos debates e relevante per-meabilidade às demandas da sociedade brasileira e de profundos estudos técnicos e políticos que fizeram sedimentar tomadas de posição, formar opiniões e permitir que as decisões,

conquanto políticas, pudessem ser tomadas à luz de informações sobre as diferentes vertentes do conhecimento científico e político que envolve tão complexo tema.

Comentários sobre a nova Lei de Biossegurança

Como dito anteriormente, a nova lei não se constituiu em novidade legislativa no Brasil. No entanto, os impasses jurídicos criados em torno da interpretação de algumas das disposições da Lei de 1995 e o avanço do conhecimento e novas demandas dos setores envolvidos motivaram, e até

forçaram, a criação de novo normativo legal.Difícil apontar quais das modificações são mais relevantes na nova configuração legal

brasileira no campo da biossegurança, dado o grande número de alterações introduzidas. A maior parte dessas são de ordem organizacional, no campo da estruturação e competências dos órgãos públicos envolvidos no processo de regulamentação e registro de OGM. Dessas transformações emerge clara intenção de nova conformação de poderes e de modificação de competências, com novos fluxos decisórios e novas limitações. Sem ordem de incidência no corpo da Lei, apontam-se a seguir, com breves comentários, as principais modificações cons-tantes da nova Lei, cotejada com a Lei nº 8.974, de 1995.

Talvez a maior novidade inserida na Lei, no que respeita às questões organizacionais, haja sido a criação do CNBS – Conselho Nacional de Biossegurança (Arts. 8º e 9º). Órgão máximo normativo da política de biossegurança, integrado por onze ministros de Estado, sob a presidência da Casa Civil da Presidência da República, é uma demonstração de in-tenção de conferir novo status ao comando da política de OGM. São três suas atribuições: fixar princípios e diretrizes para os órgãos que atuam na área; analisar, a pedido da CTNBio, quanto aos aspectos da conveniência e oportunidade socioeconômicas e do interesse nacional, a liberação comercial de OGM; e avocar e decidir, em última instância, sobre os processos que envolvam o uso comercial de OGM e seus derivados.

A ação do CNBS não ocorrerá sempre. Não se trata de um órgão de “linha”, no ritual de análise de processos de liberação de OGM. Sua atuação não está prevista nas questões re-lativas aos projetos de pesquisa em OGM. De outra parte, nas questões relativas à aprovação de liberações comerciais, a atuação do CNBS ficará restrita à demanda pela CTNBio ou, conforme previsto no Art. 16, § 7º, se houver recurso por parte de um ou mais ministérios envolvidos na questão.

Difícil apontar quais das modificações são

mais relevantes na nova configuração legal brasileira no campo da

biossegurança, dado o grande número de

alterações introduzidas

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Assim, cria-se uma instância superior à CTNBio para trato das questões dos OGM, de caráter mais político do que científico, dando ao tema um status mais “alto” na hierarquia governamental encarregada de atuar neste campo.

No entanto, é necessário ver por diferentes ângulos essa solução institucional adotada. A criação do CNBS — um aperfeiçoamento institucional da política de biotecnologia e biossegurança — estava prevista no projeto de lei original. Durante a tramitação na Câma-ra, foi modificada a proposta para aumentar o poder do Conselho, que passaria a avocar processos ou a receber recursos de ministérios sobre processos analisados pela CTNBio. Isto significou uma concessão, uma compensação aos segmentos que, durante as tratativas para conformação final da Lei, defendiam a manutenção de maior poder aos ministérios e restri-ções ao poder da CTNBio, no que se refere às autorizações de liberação de OGM, aspectos

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que, ao final, não foram contemplados na Lei. Assim, dava-se uma sinalização: amplia-se o poder da CTNBio — e retira-se, concomitantemente, o dos ministérios —, porém cria-se uma instância maior, algo como um “Poder Moderador”, que poderá ser convocado a inter-vir quando os interesses de algum ministério forem contrariados pela CTNBio.

Resta, no entanto, uma dúvida, a ser esclarecida no futuro: a possibilidade de ser efetiva a atuação do CNBS, uma vez que se trata de um colegiado formado por onze ministros de Estado, muitos dos quais pouco afeitos ao tema dos OGM. Obviamente, a dificuldade em reunir conselhos desta natureza e a complexidade científica do assunto levam a intuir como de difícil operacionalização e de alto risco de pouca efetividade a atuação do CNBS.

O segundo aspecto concernente à questão institucional e que, em realidade, foi o fulcro da grande discussão que se travou ao longo do processo de construção da nova lei são as competências da CTNBio perante as dos ministérios responsáveis pelo registro e fiscalização de produtos (Meio Ambiente, Saúde e Agricultura). Desde o início do processo, essa foi a grande questão que colocou dois grupos em campos opostos: de um lado, os que, em defesa do “avanço da ciência e tecnologia” e da “elevação da produtividade e da produção agríco-la” e da “modernização dos processos produtivos e alinhamento do Brasil com os demais países, no que se refere ao uso de OGM”, defendiam a concessão de poderes à CTNBio e subordinação dos ministérios às suas decisões, no que se refere às questões de biossegurança envolvidas nas autorizações de liberações de novos produtos. Do outro lado estavam os que, em nome do “princípio da precaução” e “dos riscos ambientais e para os consumidores, representados pela liberação de OGM”, contrapunham-se àquela tese e defendiam a manu-tenção das atribuições dos ministérios como última instância de registro e autorização de liberação de atividades que envolvessem OGM.

Venceu, na forma final da Lei, o primeiro dos grupos citados. A CTNBio restou com poderes totais para autorizar pesquisas em OGM (Art. 14, § 3º) e, apenas eventualmente, condicionada pelo CNBS para a liberação comercial. Aos ministérios foi atribuído, em rela-ção à biossegurança, papel coadjuvante, submetidos ao parecer vinculante da CTNBio (Art. 14, §§ 1º e 2º). Assim, caso a CTNBio autorize a execução de um projeto de pesquisa em OGM, por entidade pública ou privada, cabe ao ministério respectivo tão somente registrar e fiscalizar a atividade, já não podendo, como antes lhe era atribuído, opinar sobre a conve-niência ou não de executar tal pesquisa e sobre as condições de sua execução, aprovadas pela CTNBio. De outra parte, a autorização de liberação comercial de OGM pela CTNBio dá aos ministérios envolvidos duas opções: ou, como no caso dos projetos de pesquisa, registrar o produto e fiscalizar a implementação em campo, sem possibilidade de vetar a autorização, ou recorrer ao CNBS para barrar a liberação comercial. Corroborando essa disposição legal, o art. 37 conferiu à CTNBio competência, anteriormente exclusiva do Ibama, de identificar as espécies geneticamente modificadas potencialmente causadoras de significativa degrada-ção, se introduzidas no meio ambiente.

Um terceiro aspecto que mereceu modificação substancial na Lei, com desdobramentos para a aplicação da política de biossegurança, é a composição da CTNBio e seu quórum de deliberação. Também alvo de intensos debates entre os mesmos dois grupos descritos, o assunto galvanizou grande parte das discussões empreendidas por diferentes protagonistas da

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sociedade civil, das empresas de biotecnologia, das instituições de pesquisa, dos parlamenta-res e do Poder Executivo. A proposta dos setores que propugnavam por maior flexibilidade na liberalização dos transgênicos era a de elevar o número de membros da Comissão e reduzir o quórum de deliberação, no que foram, também, parcialmente vencedores. A Lei estabelece (Art. 11) que a CTNBio será composta por 27 cidadãos brasileiros (na lei anterior eram 18) com grau de doutor (o que não era exigido na lei anterior), a saber: representantes de 9 mi-nistérios; 12 especialistas de notório saber científico e técnico e 6 especialistas (defesa do con-sumidor; saúde; meio ambiente; biotecnologia; agricultura familiar; saúde do trabalhador)

indicados pelos respectivos ministros a partir de listas tríplices, elaboradas com a participação das sociedades científicas e de organizações da sociedade civil, respectivamente.

A nova composição, além dos aspectos indicados, exclui a participa-ção de representantes das empresas de pesquisa em biotecnologia, prevista na lei até então vigente.

Outro importante aspecto amplamente debatido foi o quorum de deliberação da CTNBio. O art. 11, § 7º da Lei estabelece que a reunião poderá ser instalada com a presença de 14 de seus membros. Ou seja, metade mais um dos membros do colegiado (obviamente convocados segundo os ditames do regulamento) podem realizar reunião válida. O § 8º do mesmo artigo estabelecia que as decisões da CTNBio seriam tomadas por maioria dos membros presentes à reunião, o que significava que, no limite, poderiam

ser tomadas deliberações por oito membros. Todavia, tal disposição, por pressão dos setores ambientalistas, foi vetada pelo presidente da República, que disciplinou o assunto por de-creto e estabeleceu a necessidade de quatorze votos para a deliberação das matérias em geral e de dezoito votos favoráveis (dois terços dos membros), no caso das liberações comerciais de OGM e derivados (art. 19 do Decreto nº 5.591, de 22/11/2005, que regulamenta a nova Lei de Biossegurança).

Disso resultaram vários impasses nas votações ao longo de 2006, de vez que a Comis-são, em várias ocasiões, não logrou obter o número mínimo de votos para aprovação de importantes matérias, com grande contrariedade dos setores interessados em ver os transgê-nicos liberados em maior velocidade e maior número no Brasil.

Ao iniciar-se o ano de 2007, a questão permanece sem solução definitiva. Por um lado, o veto presidencial ao dispositivo da Lei ainda não foi apreciado pelo Congresso Nacional, vigendo a disposição do decreto presidencial. De outro, a Câmara dos Deputados fez in-cluir na Medida Provisória nº 327, de 2006 — que se destina a regular a distância mínima do plantio de OGM das Unidades de Conservação da Natureza — dispositivo que reduz para quatorze votos favoráveis (maioria absoluta dos membros da CTNBio) o quórum para aprovação, tanto de pesquisas quanto de uso comercial de OGM. Essa medida provisória encontra-se em apreciação no Senado Federal, que, se aprová-la como está, levará o presi-dente da República a defrontar-se, novamente, com pressões para vetar ou não o dispositivo que trata do quórum da CTNBio.

Uma novidade deveras importante constou da

nova Lei de Biossegurança, a despeito de não se referir

ao objeto específico da Lei: a permissão para que sejam utilizadas,

para pesquisa e terapia, células-tronco

embrionárias obtidas de embriões congelados

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Uma novidade deveras importante constou da nova Lei de Biossegurança, a despeito de não se referir ao objeto específico da Lei: a permissão para que sejam utilizadas, para pesquisa e terapia, células-tronco embrionárias obtidas de embriões congelados. Este foi um dos temas que suscitaram maior polêmica na sociedade brasileira, quando das discussões finais sobre a Lei. Extremamente polarizado, colocou de um lado gru-pos representantes de pesquisa médica e, de outro, grupos religiosos. O debate foi tão intenso que, na fase final, obscureceu a polêmica em torno dos OGM — razão de ser da Lei e, pela norma de elaboração de leis, único aspecto que deveria nela constar.

Na forma final aprovada (art. 5º), ficou permi-tida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de cé-lulas-tronco embrionárias, desde que sejam de embriões inviáveis ou que estejam congelados há 3 anos ou mais da publicação da Lei (ou seja, aqueles que foram congelados antes de 24/3/2002) ou aqueles que já estavam congelados na data de publicação da Lei, quando completarem 3 anos de congelamento. Além do consentimento dos genitores, a Lei coloca outras disposições restritivas e normatizadoras do uso dessas células-tronco.

A leitura rigorosa da Lei, portanto, leva-nos a concluir que a permissão legal não se estende no tempo, a não ser para os embriões considerados “inviáveis”. Aos demais, a au-torização restringe o uso aos que estavam congelados à data da publicação da Lei. Assim, novos embriões, formados após o início da vigência da Lei não poderão ser usados para fornecimento de células-tronco, exceto os que venham a ser considerados “inviáveis”.

Estranhamente, o Decreto nº 5.591, de 2005, que regulamenta a Lei, ao tratar desses dispositivos (em seu art. 63, inciso II), não faz referência às limitações impostas pelo inciso II do art. 5º da Lei, em termos de datas e tempos mínimos de congelamento dos embriões cuja utilização é autorizada, fazendo prever futuras discussões jurídicas em torno do ato regulamentador.

Ainda sobre os OGM, a nova Lei de Biossegurança traz outras quatro importantes disposições aqui ressaltadas: por disposição contida no § 2º do art. 3º, estabelece-se que não é considerada derivada de OGM, para os efeitos da Lei, a substância pura, quimicamente definida, obtida por meio de processos biológicos e que não contenha OGM, proteína heteróloga ou ADN recombinante.

O art. 6º, inciso VII, proíbe a utilização, a comercialização, o registro, o patenteamento e o licenciamento de tecnologias genéticas de restrição de uso (em inglês, Genetic Use Restriction Technology – GURT), tecnologia que confere esterilidade às sementes produzidas por plan-tas geneticamente modificadas e relacionada ao gene denominado Terminator. Combatida por alguns, sob o argumento de que a tecnologia causaria dependência permanente dos agricultores em relação às empresas sementeiras, é defendida por outros, que destacam a possibilidade de uso da tecnologia como ferramenta de biossegurança de OGM. Impor-tante disposição, a vedação a essa tecnologia atende às pressões dos setores ambientalistas e

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contrários à liberalização dos transgênicos e recebe a contrariedade das empresas de pesquisa detentoras de direitos sobre as cultivares por representar, para estas, restrição indesejável ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia. A polêmica sobre o assunto parece não haver-se encerrado com a sanção da Lei. Tramita na Câmara dos Deputados projeto de lei que altera essa disposição da Lei de Biossegurança, cujo substitutivo, aprovado na Comissão de Agri-cultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, autoriza o uso da tecnologia para pesquisa e para outras condições específicas.

Outra determinação de relevância na conformação da política de biossegurança refere-se ao art. 39, que exclui os OGM com resistência a insetos, e seus derivados, das disposições da Lei dos Agrotóxicos (Lei nº 7.802, de 1989), exceto quando produzam matéria-prima para a produção de agrotóxicos. Na lei anterior, as cultivares de plantas Bt – que recebem genes da bactéria Bacillus thuringiensis, com poder de matar as lagartas que comem suas folhas – eram submetidas ao processo de registro similar ao de produtos agrotóxicos pelos Ministérios da Agricultura, da Saúde e do Meio Ambiente. Com a disposição da nova lei, obtida pela pres-são dos setores de pesquisa e desenvolvimento de plantas transgênicas, essas novas cultivares não mais serão submetidas ao crivo dos ministérios, restando a necessidade de avaliação pela CTNBio. De tal fato resulta, segundo alguns setores envolvidos no debate do tema, acele-ração nos processos de pesquisa e liberação comercial de cultivares resistentes a insetos, e, segundo outros, enfraquecimento dos mecanismos de avaliação e controle sobre as plantas que incorporam genes letais aos insetos e de seus efeitos sobre a saúde e o meio ambiente.

Outra disposição geral da nova lei, ratificando disposições anteriores, está presente no art. 40, que mantém a obrigação de informação ao consumidor, nos rótulos dos produtos, sobre a natureza transgênica dos ingredientes ou dos produtos finais ofertados ao consumi-dor, segundo os critérios a constarem em regulamentação. Tal dispositivo concretiza antigo anseio dos setores de defesa do consumidor e ratifica disposições legais já existentes. No entanto, a complexidade da empreitada, dada a dificuldade de estabelecer critérios adequa-dos de rotulagem e de identificação da presença ou não de OGM nos produtos, além de uma latente resistência da indústria de alimentos em atender a essas disposições legais, tem levado a tornar letra morta tal obrigatoriedade, nos últimos anos.

Finalmente, a nova Lei de Biossegurança disciplinou, no âmbito das Disposições Finais e Transitórias, alguns aspectos pontuais:

Permitiu o registro e a comercialização dos OGM que tenham obtido decisão técnica da CTNBio favorável a sua liberação comercial até a entrada em vigor desta Lei, salvo manifestação contrária do CNBS, no prazo de 60 dias, a contar da data da publicação desta Lei (art. 30), dis-posição que tinha endereço certo: permitir o registro da soja RR, autorizada pela CTNBio desde 1998, porém nunca registrada pelo Ministério da Agricultura e nunca comercializada legalmente em virtude de impedimentos judiciais.

O art. 34 convalidou e tornou permanente os registros provisórios concedidos para a safra 2003/2004 pela Lei 10.814, de 2003 (ex-MP 131, de 2003), o que tinha, também, endereço certo: tornou permanente o registro da soja RR no Registro Nacional de Cultiva-res do Ministério da Agricultura.

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Da mesma forma, o art. 35 autoriza a produção e a comercialização de sementes de cul-tivares de soja geneticamente modificadas tolerantes a glifosato registradas no Registro Nacional de Cultivares. Também aqui há destinação específica da norma: a soja RR, objeto da grande controvérsia dos transgênicos na agricultura brasileira por ser o primeiro produto autoriza-do pela CTNBio para esta finalidade.

Finalmente, pelo art. 36, a nova Lei de Biossegurança mantém a tradição, iniciada em março de 2003, com a edição da Medida Provisória 113, de respaldar e conferir legalidade aos plantios ilegais de soja RR, ocorridos em especial no Rio Grande do Sul a partir do

final da década de 1990, com origem em sementes contrabandeadas da Argentina. Neste caso, a Lei novamente autorizou (como já o fizeram as MP editadas para este fim, transformadas em Lei) o plantio de grãos de soja geneticamente modificada tolerante a glifosato, reservados pelos produtores para uso próprio, na safra 2004/2005, sendo vedada a comercialização da pro-dução como semente. Com a disposição, a Lei deu continuidade ao processo de gradativa legalização das situações “de fato”, criadas pela existência de milhares de lavouras ilegais, e permitiu que se continuasse a produzir soja transgênica que, por força de liminar da Justiça, não possuía autorização legal de plantio e cujas sementes não tinham registro legal no Brasil. Tal decisão, conquanto aplaudida pelos setores ligados ao agronegócio empre-sarial brasileiro, trouxe inegável e repercutido prejuízo ao setor sementei-ro organizado do país, posto que resultou em aumento da utilização de

sementes ilegais, sem qualidade agronômica e com riscos sanitários, comercializadas em mercado informal, em detrimento da produção legalizada, controlada e que incorpora o alto grau de tecnologia genética desenvolvida no Brasil.

Conclusão

Como visto, a nova Lei de Biossegurança traça um rumo razoavelmente preciso e segu-ro para a regulamentação das questões atinentes à biotecnologia e à biossegurança no país. Ela não representa o consenso das várias forças que se digladiaram ao longo dos vários anos em que o tema foi submetido ao escrutínio do Congresso Nacional. Ao contrário, ela repre-senta a vitória de forças hegemônicas, que lograram construir maioria parlamentar para sua aprovação e força política suficiente para sua sanção com mínimos vetos. A mobilização de numerosos e ativos integrantes da classe científica foi importante para o resultado final ob-tido. Não estão pacificadas, no entanto, nem no meio acadêmico nem, principalmente, no âmbito do Poder Executivo, as profundas divergências técnicas e ideológicas que marcaram o embate das idéias, ao fim encerrado, nesta fase, com a sanção da Lei. Também na opinião pública e na mídia não se verifica que a polêmica tenha se encerrado, até porque no plano mundial ela recrudesce de forma recorrente.

Cabe, agora, observar os efeitos da implementação da Lei sobre as políticas de biotecno-logia e de biossegurança no Brasil. Este esforço de monitoramento e acompanhamento deve

Não estão pacificadas, no entanto, nem no

meio acadêmico nem, principalmente, no âmbito

do Poder Executivo, as profundas divergências técnicas e ideológicas

que marcaram o embate das idéias, ao fim

encerrado, nesta fase, com a sanção da Lei

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ser contínuo com vistas a fundamentar possíveis alterações na Lei, ditadas pela necessidade sentida a partir dessas avaliações e, mesmo, pela natural evolução dos fatos e da ciência.

Algumas grandes questões restarão, ainda, para debate, discussão e ações no Poder Executivo, no Legislativo e na sociedade como um todo:

• Como realizar a adequada rotulagem dos produtos transgênicos?• Qual o quórum adequado para o processo deliberativo da CTNBio? • Como torná-la mais eficiente e melhor aproveitar a inegável qualidade científica de

seus membros? • Como compatibilizar as demandas ambientais com a liberação de espécies transgênicas

de polinização cruzada, como o milho?• Como fazer a segregação, rastreamento e certificação dos grãos transgênicos (e

dos convencionais), atendendo à posição defendida pelo Brasil no Protocolo de Cartagena?

• Autorizar ou não, as tecnologias genéticas de restrição de uso? • Como fortalecer o segmento de ciência e tecnologia e o esforço de pesquisa vinculado

à biotecnologia e à biossegurança?

Essas e outras importantes questões deverão estar, inegavelmente, na agenda de dis-cussão do país a partir de 2007. A construção de adequadas soluções para elas, a partir de aprofundamento técnico, da intermediação política e de adequados e transparentes proces-sos decisórios, tornará possível o aperfeiçoamento da política nacional de biotecnologia e de biossegurança, traçando-a, de forma justa e consentânea, com as necessidades e com os desígnios da nação brasileira.

Notas

1 Clive James (2006), International Service for the Acquision of Agri-biotech Aplications (http://www.isaaa.org/)

2 Safety Assessment of Transgenic Organisms – OECD Consensus Documents (http://www.oecd.org/biotrack)

3 Dolabella, Rodrigo H. C. Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança: O MOP3 de Curitiba – Cadernos ASLEGIS nº 28, janeiro a abril de 2006.

4 Pareceres proferidos na Comissão Especial que analisou o PL 2.905/97 publicados em www.camara.gov.br/comissoes/temporarias/especial/encerradas/pl290597/pareceres.html.

5 Pareceres proferidos na Comissão Especial que analisou o PL 2.401/03, publicados em www.camara.gov.br/comissoes/temporarias/especial/encerradas/pl240103/parecer.html.

6 Relatório final publicado no Diário da Câmara dos Deputados em 26/6/2003, págs. 29.465 a 29.488.

7 www.camara.gov.br/comissões/cctci/publicações

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Brasília, década de 1970. Foto de Luis Humberto.

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Meio Ambiente• Fábio Feldmann Mudanças climáticas: o grande desafio da humanidade

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Fábio Feldmann*

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Introdução

É incontestável que a humanidade enfrenta atualmente um de seus maiores desa-fios: as mudanças climáticas globais e todas suas reais conseqüências.

Tais mudanças são uma alteração permanente nas características do clima e acon-teceram diversas vezes no passado por causas naturais. Entretanto, as atividades huma-nas, em especial as que utilizam combustíveis fósseis, vêm influenciando a ocorrência desse tipo de evento por meio da alteração do equilíbrio climático do planeta. A causa central deste fenômeno é a intensificação do efeito estufa, que modifica o modo com que a energia solar interage com a atmosfera, provocando graves conseqüências.

*Fábio Feldmann, advogado, consultor em questões ambientais e de desenvolvimento sustentável. Foi deputado federal por três mandatos e Secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo

Mudanças climáticas: o grande desafio da humanidade

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Meio Ambiente

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O efeito estufa é a base para a vida na Terra. Esse fenômeno garante que a dispersão da energia solar pelo planeta seja mais lenta que a absorção, mantendo a Terra aquecida. Se o efeito estufa não acontecesse, a temperatura do planeta seria de mais ou menos 17ºC negativos. Hoje, a temperatura média da Terra é de 15ºC.

Porém, a intensificação desse fenômeno representa uma grave ameaça ao equilíbrio cli-mático do planeta. Diversas atividades produtivas, principalmente as que utilizam combus-tível fóssil, emitem os gases que causam o efeito estufa (GEEs), aumentando a capacidade da atmosfera de absorver irradiação infravermelha e levando ao aquecimento global.

Alguns indicadores das mudanças climáticas nos últimos 15 anos são o aquecimento global; alterações bruscas em características básicas das es-tações do ano em diferentes partes do planeta, como temperatura, a exem-plo do que vem ocorrendo na Rússia, com o registro do inverno mais quente desde o século passado; ou o aumento inédito nas últimas décadas de fenômenos abruptos, como vendavais, ciclones e enchentes, a exemplo do furacão Katrina nos Estados Unidos e até mesmo a constatação de tor-nados no sul do Brasil.

As mudanças climáticas poderão ter impactos muito graves sobre o crescimento e o desenvolvimento de todos os países do planeta. Se não forem tomadas medidas para a redução das emissões, a concentração dos gases de efeito estufa na atmosfera poderá atingir o dobro do seu nível pré-industrial já em 2035, acarretando um aumento de temperatura média global de mais de 2ºC.1

Se hoje existe um consenso entre cientistas de que as mudanças cli-máticas estão em curso e têm como origem a influência das atividades humanas no ambiente, ainda há um longo caminho a se percorrer no que diz respeito à mitigação das causas desse fenômeno e à adoção de energias alternativas para as atividades produtivas. Os tratados internacionais abri-

ram caminhos para lidar com esse problema, ao estabelecerem diretrizes para redução de emissões dos gases de efeito estufa (GEEs) e ferramentas de ordem prática, como os meca-nismos de flexibilização, presentes no Protocolo de Kyoto.

Articulações internacionais

Na década de 80 a comunidade internacional começou a atentar para o problema das mu-danças climáticas, e algumas iniciativas foram então estabelecidas com o intuito de solucioná-lo, na medida em que as emissões de gases de efeito estufa apresentavam crescimento alarmante.

Em 1988 foi estabelecido o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC – Intergovernmental Panel on Climate Change), uma iniciativa conjunta da Organização Meteorológica Mundial – OMM e do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, que tem o objetivo de fornecer aos formuladores de políticas públicas uma fonte de informação objetiva sobre as causas das mudanças climáticas, seus impactos am-bientais e socioeconômicos e suas possíveis soluções.

As mudanças climáticas poderão ter impactos

muito graves sobre o crescimento e o

desenvolvimento de todos os países do

planeta. Se não forem tomadas medidas para a redução das emissões, a concentração dos gases

de efeito estufa na atmosfera poderá atingir o dobro do seu nível pré-

industrial já em 2035, acarretando um aumento

de temperatura média global de mais de 2ºC

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Sua principal atividade é produzir em intervalos regulares de tempo uma avaliação do estado de conhecimento sobre as mudanças climáticas, tendo publicado seus relatórios em 1990, 1995 e 2001, sendo que o próximo deles está previsto para 2007. Os relatórios do IPCC são uma das fontes mais seguras e utilizadas quando se trata de mudanças climáticas e servem de base para a elaboração de documentos e estudos pelos mais diversos países.

Em 1991 iniciaram-se as negociações formais entre os países, que culminaram com a realização, em 1992, da “Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desen-volvimento”, também conhecida como Cúpula da Terra ou Rio-92. A Rio-92 foi a maior Conferência realizada pelas Nações Unidas até o momento, com a presença de cerca de 170 chefes de Estado, o que certamente denota a importância que o tema ambiental vinha ganhando na comunidade internacional.

Como produtos dessa Conferência, foram assinados cinco documentos, sendo eles: Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica, Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, Agenda 21, Declaração de Princípios sobre as Florestas e Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.

O presente artigo dará especial ênfase à Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, assinada em 1992 e em vigor desde março de 1994, com 186 países participantes.

Os governos que se tornaram Partes da Convenção, ou seja, aqueles que assinaram e ratifi-caram o acordo, se propõem a estabilizar as concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera em um nível que impeça o desequilíbrio do sistema climático. Segundo a própria Convenção

Esse nível deverá ser alcançado num prazo suficiente que permita aos ecossistemas adaptarem-se naturalmente à mudança do clima, que assegure que a produção de alimentos não seja ameaçada e que permita ao desenvolvimento econômico prosseguir de maneira sustentável.2

Nesse sentido, a Convenção tem o papel de orientar os governos no trabalho em con-junto para a implementação de iniciativas que reduzam os impactos das atividades humanas sobre o clima, de acordo com os contextos sócio-econômicos de cada país.

A Convenção enfatiza que os países desenvolvidos – listados em seu Anexo I – são os prin-cipais responsáveis pelas emissões históricas e atuais, devendo liderar o combate às mudanças climáticas. De forma diferenciada, o tratado destaca que a prioridade dos países com indus-trialização tardia deve ser o seu desenvolvimento social e econômico. Isso porque a Convenção considera que as emissões per capita desses países ainda são relativamente baixas e reconhece que certas normas ambientais podem implicar custos demasiados para algumas nações.

Segundo a Convenção Quadro sobre Mudança do Clima, tanto países desenvolvidos como aqueles em desenvolvimento devem quantificar os gases de efeito estufa por eles emi-tidos, assim como os sumidouros nacionais3. Também são obrigados a realizar programas nacionais de mitigação e adaptação, fortalecer a pesquisa científica e a difusão de tecnologias relevantes, além de promover a educação e conscientização pública. Aos países desenvolvidos cabe um certo número de compromissos adicionais, como limitação de suas emissões, prote-ção dos sumidouros e reservatórios de gases de efeito estufa4 e, principalmente, retorno de suas

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emissões aos níveis de 1990, até o ano de 2012, além de transferência de recursos tecnológicos e financeiros para que países em desenvolvimento cumpram suas obrigações na Convenção.

Todas as iniciativas em prol da redução de emissões e adaptação aos efeitos das mu-danças climáticas devem ser reportados à Conferência das Partes por meio dos chamados relatórios nacionais.

Protocolo de Kyoto

O Protocolo de Kyoto foi negociado a partir de 1995, após a entrada em vigor da Con-venção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, assinado em 1997 na ci-dade que lhe deu nome, e constitui o mais importante acordo internacional ambiental pelo fato de fixar metas específicas, visando promover o equilíbrio climático, apesar de obrigar tão-somente os países industrializados (Anexo I), dentro do princípio da responsabilidade comum, mas diferenciada.

A ausência de metas nos tratados internacionais assinados na Conferência do Rio, em 1992, certamente foi a grande razão dos indicadores ambientais ruins apresentados dez anos depois na Cúpula Mundial de Johannesburgo, que revelaram que os países e seus governos assumem retoricamente compromissos com as grandes causas mundiais, mas não se esfor-çam para transformá-los em políticas e ações concretas. Em outras palavras, são prodigiosos em discursos de efeito e pobres em ações.

Basicamente, o Protocolo de Kyoto estabelece que os países industrializados se com-prometem a reduzir no período de 2008 a 2012 as emissões dos gases de efeito estufa em 5,2%, com relação aos níveis de 1990. Apesar de ser um compromisso assumido pelos países que o ratificaram, o Protocolo não tem força de lei e não prevê penalidade para os integrantes que o descumprirem.

Para a redução das emissões, o Protocolo de Kyoto determina que os países estabeleçam programas de redução das emissões dentro de seus territórios e dispõe sobre a necessidade de

os países demonstrarem progresso no cumprimento de suas metas, considerando o tempo para implementação de legislação adequada, com a formulação de programas nacionais eficazes com relação às condições sócio-econômicas de cada nação.

Entre os 28 artigos do texto, merecem destaque ainda a propos-ta de um sistema nacional para a estimativa das emissões de GEEs e da quantidade de gases removida pelos sumidouros; a busca por transferência de tecnologias ambientalmente seguras de propriedade pública; e a criação, no setor privado, de um ambiente propício à promoção dessas tecnologias.

Para que os países possam cumprir suas metas, o Protocolo ofe-rece mecanismos de flexibilização, que são instrumentos para cortar custos das iniciativas de redução de emissões dos GEEs. Os três me-canismos são conhecidos como Comércio de Emissões, Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e a Implementação Conjunta.

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Mecanismo de Desenvolvimento Limpo

No caso do Brasil, apenas o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo é aplicável, uma vez que os demais mecanismos são exclusivamente voltados aos países industrializados do Anexo 1.

O MDL foi estabelecido pelo Artigo 12 do Protocolo de Kyoto e tem por objetivo fa-cilitar a redução de emissões de gases causadores do efeito estufa, ao mesmo tempo em que visa promover iniciativas de sustentabilidade nos países em desenvolvimento. Isso acontece porque o MDL é o único mecanismo de flexibilização que permite aos países desenvolvidos, listados no Anexo 1, compensar parte de suas emissões investindo em projetos alocados nos países em desenvolvimento.

No momento em que um país do Anexo 1 investe em projetos de mitigação num país em desenvolvimento, recebe em troca créditos denominados Reduções Certificadas de Emissão (RCE), que podem ser usados para o abatimento do total de emissões daquele país ou podem ser negociados no mercado internacional. A concessão de RCEs depende de regras e avaliações de diversas instituições para o controle efetivo dos resultados dos projetos no tocante a suas reduções de emissão.

Na Conferência das Partes realizada em 2001 em Marrakech, definiram-se duas moda-lidades de projetos candidatos ao MDL: os de substituição de combustíveis e/ou aumento de eficiência energética em matrizes poluidoras, ou seja, que usem tecnologias com menor potencial de emissão de GEEs; e aqueles que visam a remoção e estocagem de CO2 através de sumidouros e atividades relacionadas ao uso da terra, incluindo projetos de reflorestamento.

O Acordo de Marrakech também definiu as regras finais para a aprovação dos projetos, criando a Comissão Executiva do MDL, que se responsabiliza pelo registro dos projetos e emissão dos créditos. Entre a elaboração do projeto e a certificação final, cada proponente deve cumprir procedimentos obrigatórios para a futura negociação dos créditos. A formação desse mercado passa, assim, pela capacidade de cumprimento desses requisitos-chave.

Impactos das mudanças climáticas

As mudanças climáticas já apresentam impactos reais e mensuráveis na comunida-de internacional, tanto impactos naturais como aqueles já citados anteriormente, mas principalmente impactos econômicos.

Estudo elaborado pelo governo in-glês5 recentemente revela que tais impactos e custos econômicos superam fortemente os custos de uma ação preventiva, com a adoção de novas tecnologias mais limpas e a mudança de padrões de consumo.

As mudanças climáticas afetarão os elementos básicos da vida das pessoas no

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planeta – acesso à água, produção de alimentos, saúde e ambiente. Centenas de milhões de pessoas poderão sofrer de fome, de falta de água potável e de inundações costeiras à medida que o mundo vai aquecendo. Utilizando resultados de modelos econômicos formais, esse estudo calculou que, se nada for feito, o total dos custos e riscos das mudanças climáticas será equivalente à perda anual de, no mínimo, 5% do PIB global. Levando-se em conta uma série de riscos e impactos mais amplos, as estimativas dos danos poderão aumentar para 20% ou mais do PIB mundial, calculado em cerca de 44 trilhões de dólares em 20056.

Em contraposição, os custos da implementação de medidas – a redução das emissões dos gases de efeito estufa, a fim de evitar os piores impactos das mudanças climáticas – po-dem ser estimados anualmente em cerca de 1% do PIB global.

Todos os países serão afetados pelos impactos das mudanças climáticas. Os mais vulneráveis – os países e as populações mais pobres – serão os primeiros a sofrer e certamente serão os que sofrerão mais, embora tenham sido aqueles a contribuir menos para as causas do aquecimento global. Os custos das alterações extremas no clima, abrangendo as cheias,

as secas, temporais e demais eventos naturais, já estão aumentando, até mesmo para os países ricos: o problema é global.

A adaptação às mudanças climáticas – ou seja, a implementação de medidas para desenvolver a resistência às suas alterações – é essencial. Já não é possível impedir as mudanças climáticas que irão ocorrer nas pró-ximas duas a três décadas, mas é possível proteger de certo modo as so-ciedades e suas economias dos seus potenciais impactos. Só nos países em desenvolvimento a adaptação irá custar dezenas de milhares de milhões de dólares por ano, colocando ainda mais pressão nos recursos já escassos. Os esforços de adaptação, particularmente nos países em desenvolvimento, deverão ser acelerados.

Os custos de tomada de medidas serão divididos entre países desen-volvidos e em desenvolvimento, não eximindo nenhuma parte da respon-sabilidade de atentar para a questão.

A ação contra as mudanças climáticas será capaz de criar importantes oportunidades para negócios, dado que serão criados novos mercados para as tecnologias de energia limpa, assim como outras mercadorias e serviços com menores emissões de gases de efeito estufa. Esses mer-cados poderão crescer de forma a valerem anualmente centenas de milhares de milhões de dóla-res, e os postos de trabalho nestes setores irão aumentar em conformidade com esta situação.

Posição brasileira

O Brasil tem desempenhado papel importante na questão das mudanças climáticas desde a assinatura da Convenção Quadro em 1992 até os dias atuais e tem mostrado pro-tagonismo nas negociações internacionais acerca do tema, tendo sido um dos líderes na condução de propostas inovadoras, a exemplo do que veio a se transformar no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), um instrumento criativo de financiamento a projetos de redução de emissões em países não-industrializados.

A ação contra as mudanças climáticas será capaz de criar importantes oportunidades para

negócios, dado que serão criados novos mercados para as tecnologias de

energia limpa, assim como outras mercadorias

e serviços com menores emissões de gases

de efeito estufa

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Aliás, a idéia original seria a imposição de multas por emissões dos países industrializa-dos, canalizando-se o produto da arrecadação a um fundo destinado ao financiamento do desenvolvimento de países em desenvolvimento.

Exatamente por entender que o tema é absolutamente urgente e prioritário, foi criado em 2000 o Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas com o objetivo principal de disseminar e en-gajar as diferentes esferas da sociedade (sociedade civil, governo e iniciativa privada) na discussão sobre o tema das mudanças climáticas. Além disso, o Fórum tem o intuito de preparar o pre-sidente da República e seus ministros para a interlocução com os demais atores internacionais. Durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, este conversou pessoalmente com o presidente Clinton, Chirac e o primeiro-ministro Tony Blair, avocando para si o papel de promover a discussão desta temática tão complexa a envolver o futuro da humanidade.

Esta iniciativa foi extremamente apoiada e reconhecida pela comunidade internacional e órgãos internacionais, que nela viram o embrião de um novo modelo de participação, no qual toda a sociedade é convidada a participar e se informar sobre as diferentes questões que permeiam seu convívio.O Fórum Brasileiro tem como meta também estimular a criação de fóruns estaduais que tratem do tema, considerando as especificidades de cada região.

Desta forma, o primeiro fórum estadual criado foi o Fórum Paulista de Mudanças Climáticas Globais e de Biodiversidade, em 2005, por iniciativa do governo do estado, seguindo parte do modelo proposto pelo Fórum Brasileiro, porém agregando o tema da conservação da biodiversidade em sua agenda.

O Fórum Paulista procura estabelecer uma sinergia entre os dois temas, agregando não somente a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas e a Conven-ção sobre Biodiversidade, mas também outras convenções que versam sobre os assuntos. Além disso, o Fórum apresenta objetivos mais específicos, como a capacitação da sociedade civil para participar das COPs (Convenção das Partes) nos dois temas; capacitação da ini-ciativa privada para elaborar projetos utilizando MDL e a elaboração de políticas públicas sobre os dois temas.

A partir de então, outros fóruns foram criados, a exemplo do Fórum Paranaense, Capi-xaba, Baiano e Mineiro. Tais iniciativas denotam a importância dada pelos governos estadu-ais e demais setores da sociedade ao tema e caracterizam uma maneira inovadora de engajar a sociedade nesta questão, uma vez que une os setores governamental, privado e sociedade civil na discussão do tema.

Conclusão

É, portanto, através de tantas evidências reais do aquecimento global, claramente ne-cessária uma ação rápida e rigorosa, visto que as mudanças climáticas são uma questão glo-bal. Esta ação deverá fundamentar-se numa visão partilhada dos objetivos a serem atingidos em longo prazo, bem como basear-se no reforço mútuo das abordagens em nível nacional, regional e internacional.

De fato, ignorar as mudanças climáticas irá prejudicar mais cedo ou mais tarde o cres-cimento econômico. A luta contra as mudanças climáticas é a estratégia em prol do cresci-

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mento a longo prazo, podendo ser implementada de forma a não limitar as aspirações ao crescimento por parte dos países ricos ou pobres.

Dada a importância e urgência de se tratar do tema, países como China, Índia e Brasil te-rão que assumir, na minha opinião, compromissos de redução de suas emissões em um provável segundo período de compromissos a ser iniciado em 2012 no âmbito do Protocolo de Kyoto.

No caso brasileiro, isso estará intimamente ligado ao efetivo controle do desmatamen-to, principalmente da Amazônia, uma vez que 75% das emissões brasileiras são causadas pelo desmatamento de suas florestas.7

Será necessária a implementação de políticas rígidas de comando e controle para que os índices de desmatamento, que hoje chegam a cerca de 18,9 mil km2 por ano, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, sejam reduzidos e atinjam índices minimamente razoáveis.

Em um país com a matriz energética limpa como o nosso, é inaceitável que a taxa de emissão de gases de efeito estufa decorrentes do desmatamento se mantenha nos níveis atuais. O protagonismo brasileiro nas negociações internacionais terá que ser expresso a partir de agora em suas políticas internas, conferindo a devida importância do tema à sua política nacional.

Notas

1 Disponível em www.unfccc.org2 Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, Artigo 23 De acordo com a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, Artigo 1, sumidouro significa qualquer processo, atividade ou mecanismo que remova um gás de efeito estufa, um aerosol ou um precursor de um gás de efeito estufa da atmosfera. 4 De acordo com a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, Artigo 1, reservatório significa um componente ou componentes do sistema climático no qual fica armazenado um gás de efeito estufa ou um precursor de um gás de efeito estufa. 5 Stern Review on the Economics of Climate Change, 20066 Segundo relatório publicado pelo Banco Mundial, em 1o de julho de 2006, disponível em http://siteresources.worldbank.org/DATASTATISTICS/Resources/GDP.pdf7 Segundo dados do Primeiro Inventário de Emissões Antrópicas de Gases de Efeito Estufa, publicado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia em 2004.

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Palácio do Planalto, década de 1970. Foto de Luis Humberto.

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Palavras e História• Casimiro Neto Reforma eleitoral – Lei nº 842, de 1855 (Lei dos Círculos Eleitorais)

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Casimiro Neto*

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A Nona Legislatura (1853-1856) teve início em 3 de maio de 1853 e apresentou uma Câmara tão conservadora quanto a anterior. Da Província do Piauí, veio João Lustosa da Cunha Paranaguá, o segundo Marquês de Paranaguá; de Pernambuco, Domingos de Sousa Leão, Barão de Vila Bela – o aristocrático protetor de Joaquim Nabuco; da Bahia, o ilustre José Antonio Saraiva. Foi também nessa Legislatura que tomou posse o 12º Gabinete, no dia 6 de setembro de 1853. Na presidência do Conselho de Ministros é empossado o senador Honório Hermeto Carneiro Leão, Mar-quês de Paraná (MG), que inaugura seu gabinete da “Conciliação” e que infelizmente vem a falecer prematuramente, tristemente amargurado, no dia 3 de setembro de 1856, pouco antes das eleições gerais. A sua morte deixou um vazio de difícil preenchimento, deixando o mundo político apreensivo e desorientado.

O programa de governo do Marquês de Paraná (MG) era realizar o ideal da “Conciliação” entre os partidos, extremados pela violência das re-voltas armadas que se sucederam até a pacificação dos conflitos, em 1845.

Seu propósito não era fundir os dois partidos (liberal e conservador), liquidando-os, mas reunir esforços em prol do bem comum, da nação brasileira. O professor Octaciano No-gueira (2001) nos ensina que a Conciliação que ele moldou continuou lentamente a produzir frutos. Abrandam-se os radicalismos dos dois partidos existentes e é na crista de uma onda ar-rebatadora que ressurge, renascido e renovado, o novo liberalismo. Já Affonso Arinos de Melo Franco afirma que talvez o mal maior da Conciliação haja sido sua origem dentro do governo, em vez de surgir no seio da Assembléia Geral. De fato, Pedro II, sabe-se, hoje, dirigiu a manobra de Paraná, mas seu inspirador foi Paula Sousa. A esse respeito, o deputado José Tomás Nabu-co de Araújo (PE), que havia sido ministro no Gabinete do Marquês do Paraná (elevado ao Senado em 1858), dizia da tribuna da Câmara em 1857 que a política de Conciliação não pode ser senão de transição; a ausência de partidos é um mal e, eu direi mesmo, uma contingência de perigo.

*Casimiro Neto, professor, historiador, pesquisador e especialista em Instituições e Processos Políticos do Legislativo.

Reforma eleitoralLei no 842, de 1855(Lei dos Círculos Eleitorais)

O programa de governo do Marquês de Paraná

(MG) era realizar o ideal da “Conciliação” entre

os partidos, extremados pela violência das revoltas armadas que se sucederam

até a pacificação dos conflitos em 1845. Seu

propósito não era fundir os dois partidos (liberal e conservador), liquidando-

os, mas reunir esforços em prol do bem comum,

da nação brasileira

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Reforma eleitoral – Lei dos Círculos na Câmara dos Senadores

Em 1855, o Marquês de Paraná (MG) leva avante a “reforma eleitoral” que já havia sido preconizada também pelo presidente do Conselho de Ministros (9º Gabinete – 31/5 a 29/9/1848), senador Francisco de Paula Souza e Melo (SP). A denominada “Lei dos Círcu-los” (a eleição para deputados passou a ser feita com a divisão das províncias em distritos de

um só representante) teve origem no Senado com a apresentação do proje-to no dia 3 de agosto de 1846 pelo senador Paula Souza (SP), com data de 28 de julho, que, aliás, não teve seguimento e ficou, como era natural, nas pastas da respectiva comissão.

No relatório lido às câmaras, no ano seguinte, pelo ministro do Im-pério, deputado Joaquim Marcelino de Brito (6º Gabinete – 2/5/1846 a 21/5/1847), dizia-se tantas foram as duvidas ocorridas na execução da lei eleitoral de 19 de agosto de 1846 e tal é a gravidade de algumas e tão transce-dente é o objeto em si mesmo, que eu não posso furtar-me ao dever de solicitar do vosso patriotismo a prompta revisão desta lei.1

Mais tarde, em 1848, o senador Francisco de Paula Souza e Melo (SP), então presidente do Conselho de Ministros, promove a discussão do seu projeto, sobre o qual deram parecer a Comissão de Constituição e a de

Legislação do Senado, em 28 de junho de 1848, concluindo com um projeto substitutivo assinado por todos os membros das comissões.

É interessante notar que o parecer das comissões estava assinado, entre outros senado-res, por Honório Hermeto Carneiro Leão, Marquês de Paraná (MG), futuro presidente do Conselho de Ministros do 12º Gabinete. O pare-cer e projeto foram votados em segunda discussão no dia 31 de agosto de 1848, tendo falado sobre eles os senadores Paula Sousa (SP), autor da pro-posição, Carneiro Leão (MG) e Nicolau Pereira de Campos Vergueiro (MG) a favor; Antônio da Cunha Vasconcelos (PB), contra; Antônio Pauli-no Limpo de Abreu, Visconde de Abaeté (MG), e Manoel Alves Branco, Visconde de Caravelas (BA), com relação a alguns artigos. Em 1851, o referido projeto teve ainda discussão, mas ficou adiado na sessão de 9 de maio do mesmo ano. Desta data até 1855 nada se fez a respeito do projeto. Nesse ano, porém, o Marquês de Para-ná (MG), Presidente do Conselho de Ministros, chamou-o de novo ao debate, e sendo sobre ele ouvidas a Comissão de Constituição e a de Le-gislação, lavrou-se outro parecer, que foi lido na sessão de 9 de junho de 1855. Sobre esse parecer

“Tantas foram as duvidas ocorridas na execução

da lei eleitoral de 19 de agosto de 1846 e tal é

a gravidade de algumas e tão transcedente é o

objeto em si mesmo, que eu não posso furtar-me ao dever de solicitar do vosso patriotismo a

prompta revisão desta lei”

Honório Hermeto Carneiro Leão, Marquês de Paraná (MG)

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Casimiro Neto

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divergiram os membros das comissões, entendendo os senadores Euzébio de Queiróz Cou-tinho Matoso da Câmara (RJ), relator, Pedro de Araújo Lima, Marquês de Olinda (PE), e Caetano Diana Lopes da Gama, Visconde de Maranguape (PE), que a eleição por círculos

e as incompatibilidades eram inconstitucionais, ao passo que os senadores José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente (SP), Cândido José de Araújo Viana, Visconde de Sapucaí (MG), e Gabriel Mendes dos Santos (MG) sustentavam a eleição por círculos, manifestando-se, porém, este último contra as incompatibilidades, pela sua inconstitucionalidade.

Começou a discussão a 16 de julho, abrindo-a o senador Euzébio de Queiróz (RJ) com esclarecedor pronunciamento, a quem respondeu o Marquês de Paraná (MG). Depois falaram os senadores Francisco José Acaiaba Montezuma, Visconde de Jequitinhonha (BA), José Ildefonso de

Souza Ramos, Visconde de Jaguari (MG), e outros. Em 9 de agosto o projeto foi aprovado em terceira discussão, com emendas (maioria de 3 votos em votação simbólica), e enviado à Câmara dos Deputados.

Os argumentos em que se baseava a discussão da eleição por círculos podem ser resu-midos nos seguintes tópicos:

1 – diminuir a influência do governo nas eleições provinciais e as fraudes eleitorais; 2 – pôr o eleito em contato com o eleitor; 3 – facilitar a fiscalização da eleição por parte das câmaras; 4 – oferecer menores perigos e abalos à sociedade do que uma eleição geral em toda a província, pondo em jogo o conjunto de paixões e interesses provinciais; 5 – moderar o espírito de provincialismo; 6 – tirar das grandes deputações o espírito de união e disciplina que as torna-vam preponderantes sobre as pequenas; 7 – diminuir a pressão que sobre o governo exerciam as grandes deputações vinculadas pelos mesmos interesses; 8 – dar lugar à consulta dos interesses locais, naturalmente mais bem conhecidos dos deputados de distrito; 9 – finalmente, e este era o principal fundamento, o de impedir que as maiorias locais fossem esmagadas e anuladas pelas pro-víncias, de modo a dar entrada no Parlamento a todas as expectativas sociais e opiniões políticas.

Retrospectiva eleitoral

Após a Independência do Brasil (1822) até 1842, vigoraram no país as “Instruções Eleitorais” expedidas através da Decisão do Governo nº 57, de 19 de junho de 1822, com a rubrica do ministro e secretário de Estado dos Negócios do Reino do Brasil e Estrangeiros, José Bonifácio de Andrada e Silva (SP).

No dia 26 de março de 1824 foi expedido decreto que tornava sem efeito o decreto de 17 de novembro de 1823, sobre as eleições de deputados para a nova Assembléia Consti-tuinte, e mandava proceder à eleição dos deputados e senadores da Assembléia Geral Legis-lativa do Império do Brasil e dos membros dos Conselhos Gerais das Províncias. Acompa-nham o decreto as instruções baixadas pelo ministro e secretário de Estado dos Negócios do Império, João Severiano Maciel da Costa (MG).

Em 4 de maio de 1842, três dias após a primeira dissolução da Câmara dos Deputados, foi expedido o Decreto nº 157, com a rubrica de D.Pedro II, que dá novas instruções sobre

Em 9 de agosto o projeto foi aprovado

em terceira discussão, com emendas (maioria de 3 votos em votação

simbólica), e enviado à Câmara dos Deputados

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a maneira de se proceder às eleições gerais e provinciais. Foi instituído o alistamento prévio, a eleição das mesas e proibido o voto por procuração. Politicamente estas instruções visavam deter os excessos da maioria liberal, que começara a predominar na Câmara dos Deputados

após a aprovação do projeto de proclamação da maioridade do jovem impe-rador, em 23 de julho de 1840. Mas, cabe destacar, estas instruções só tive-ram validade para as eleições da Quinta Legislatura (1843-1844), porque a partir da Sexta Legislatura voltaram as instruções de 26 de março de 1824.

Essa primeira reforma da legislação eleitoral era de extrema importância, pois foi feita em virtude da crise originada com a dissolução prévia da Câ-mara dos Deputados, quando o motivo invocado pelo gabinete ministerial foi exatamente o da inautenticidade da representação parlamentar. Sendo uma reforma consumada através de ato do Poder Executivo, terminou pro-vocando polêmicos debates e foi motivo para aprovação da Carta de Lei nº 387, de 19 de agosto de 1846, que regula a maneira de proceder as eleições de senadores, deputados, membros das Assembléas Provinciais, Juizes de Paz, e Câ-maras Municipais, também conhecida como “Lei Regulamentar das eleições do Império do Brasil”. Foi a primeira lei sobre eleições que não era originária

do Governo Imperial, sendo elaborada em cumprimento de dispositivo constitucional. Regu-lamenta as eleições do Império do Brasil, assegurando, até quanto possível, a regularidade no registro e qualificação dos eleitores. Essa lei, revogando as anteriores, condensa as instruções para eleições provinciais e municipais e estabelece, pela primeira vez, uma data para eleições simultâneas em todo o Império. Foi um grande avanço no sentido da legitimidade da repre-sentação e uma tentativa da Câmara temporária para moralizar o sufrágio popular. Em 10 de fevereiro de 1847 foi expedido o Decreto nº 500, que regulava o modo pelo qual se deveria executar a Lei Regulamentar das Eleições, e, em 13 de setembro de 1852, foi expedido e sancionado pelo Imperador o Decreto nº 671, da Assembléia Geral Legislativa, que alterava a divisão dos Colégios Eleitorais das diversas províncias de acordo com a Lei nº 387.

A verdade é que os interesses partidários, interpretando e mutilando ao seu sabor os preceitos da Carta de Lei nº 387, fazem de uma obra bem organizada e delineada com esme-ro um tipo disforme e sem aplicação prática. Põe-se, então, à conta do projeto aprovado, os abusos nas eleições que se seguem, quando para semelhante resultado havia somente contri-buído a sua inexecução e a paixão política. O aconselhado seria, pelas regras da prudência, tentar o seu melhoramento, e não a sua substituição. Começavam, então, os debates para aprovar um novo projeto.

No dia 3 de junho de 1853, os deputados João Antônio de Miranda (RJ) e João Manoel Pereira da Silva (RJ) apresentam um projeto sobre incompatibilidades e distritos eleitorais que determinava, no artigo primeiro, que as províncias do império serão divididas em tantos circulos quantos forem os respectivos deputados geraes. Interessante notar que o artigo quinto de-clarava que “s funções de deputados geraes serão gratuitas. A nenhum pretexto lhes é devida indem-nisação de especie alguma. O projeto foi julgado objeto de deliberação e mandado imprimir.

No dia 25 de maio de 1855 o deputado Justiniano José da Rocha (MG) apresenta proposição (que foi lida e acolhida) que indicava que as comissões de constituição e poderes, de

Foi a primeira lei sobre eleições que não era

originária do Governo Imperial, sendo elaborada

em cumprimento de dispositivo constitucional.

Regulamenta as eleições do Império do Brasil,

assegurando, até quanto possível, a regularidade

no registro e qualificação dos eleitores

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justiça civil, e de justiça criminal, revendo o projeto de lei apresentado ao senado em 1848 pelo senador Carneiro Leão, acerca de eleições, e fazendo-lhe as alterações necessárias, dê o seu parecer de fórma a entrar esse projecto nas discussões da câmara.

No dia 1º de junho de 1855 é dada a palavra ao deputado Carlos Carneiro de Campos (SP), que diz:

Sr. Presidente, pedi a palavra para ter a honra de offerecer á consideração da câmara um projecto que julgo da maior importância, e que pela gravidade da sua matéria eu me apresso em apresental-o ao seu prudente e calmo exame. (...) Um dos defeitos do methodo eleitoral atual, ou antes uma das necessidades que muitos entendem dever ser attendidas na reforma eleitoral, é fazer-se a eleição por circulos, e não como até agora por província. Eu consigno tambem essa idea no meu projeto; penso que na composição dos corpos legislativos, sendo o maior desideratum que todos os interesses que se levantão na sociedade possão ser ahi ouvidos e representados, e pelas discussões tornarem-se compatíveis e produzirem a expressão do interesse geral, é conveniente todo aquelle systema eleitoral que dê possibilidade a representantes da maior somma desses mesmos interesses.

O systema actual produzindo eleições por províncias parece a muitos que póde impedir a representação de muitos interesses, abafando á maioria da província o comparecimento e audiência de parcialidades menores que em tudo convinhão ser representadas no corpo legislativo.

Em seguida é lido o projeto sobre reforma eleitoral, cujo parágrafo primeiro do artigo segundo declara que as províncias do império serão divididas em tantos districtos eleitoraes quantos forem os seus deputados á assembléia geral.

Reforma eleitoral – Lei dos CírculosNa Câmara dos Deputados

No dia 18 de agosto de 1855, no plenário da Câmara dos Deputados é lido ofício do primeiro-secretário do Senado sobre projeto de incompatibilidades e eleições por círculos. Consultado o Plenário, é decidido que o projeto vá à Comissão de Constituição e Poderes,

sem prejuízo da impressão para o devido conhecimento de todos os par-lamentares.

No dia 22 de agosto a Comissão de Constituição e Poderes, composta pelos deputados Zacarias de Góis e Vasconcelos (BA), relator, Jerônimo Martiniano Figueira de Melo (PE) e Diogo Teixeira de Macedo (RJ), apre-senta seu parecer ao Projeto de Lei nº 69, de 1855, vindo da Câmara dos Senadores e que alterava a Lei de 19 de agosto de 1846. É lido em plenário. Como no Senado, o parecer era totalmente contrário ao projeto ministe-rial, que reputava inconstitucional nas suas idéias centrais: incompatibili-dade e círculos. Além disso, ainda reputava ineficaz a primeira medida e prejudicial a segunda. Quanto aos inconvenientes desta, explanava mais

Como no Senado, o parecer era totalmente contrário

ao projeto ministerial, que reputava inconstitucional nas suas idéias centrais:

incompatibilidade e círculos. Além disso,

ainda reputava ineficaz a primeira medida e

prejudicial a segunda

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detalhamente o que dissera a Comissão de Consti-tuição do Senado, com novas reflexões sobre a maté-ria. Entre outros assuntos, discutia-se a vantagem do contato entre o eleito e seu eleitor. Parecia-lhes que a dependência em que os candidatos teriam de ficar das elites locais (cuja preponderância com a reforma iria subir muito) rebaixaria a missão dos representantes. A Comissão reputava a medida das incompatibilidades ineficaz porque, proibindo a eleição de certos funcio-nários nos distritos de sua jurisdição, não obstava as permutas de serviços que entre si pudessem prestar quando combinassem cada um fazer eleger no distrito de sua jurisdição o amigo incompatível no seu pró-prio distrito. Ao final

declarando-se assim contra a proposição do senado a commissão de constituição, todavia, persuadida de que os debates offerecerão occasião opportuna de mais profundamente avaliar-se a matéria da mesma proposição, e de pronunciar-se a camara com a prudencia e sabedoria que são proprias, é de parecer: Que a proposição do senado seja submetida á discussão na camara.

Na sessão ordinária de 25 de agosto começou o debate referente ao projeto e seu res-pectivo parecer. As discussões e pronunciamentos continuaram nas sessões dos dias 27, 28, 29, 30 e 31 daquele mês e 1º de setembro, ocasião (terceira discussão) em que foi aprovado, em votação nominal, por 54 votos contra 36. Apesar de tomar parte nos debates oradores de merecimento e respeito, a questão estava esgotada, principalmente depois que, na sessão

de 27, o presidente do Conselho de Ministros, Marquês de Paraná, fez da aprovação da lei uma questão de Gabinete ao participar do debate do projeto e afirmar que desde o principio da organização do gabinete actual foi esta uma medida que julgamos possível levar a effeito em benefício do paiz, a bem da liberdade das eleições. No dia 3 de setembro subiu o projeto à sanção imperial. Transformou-se na Lei nº 842, de 19 de setembro de 1855.

A lei aprovada altera as eleições do Império do Brasil e faz uma com-pleta transformação do regime até então vigente. As províncias são divi-didas em tantos “Distritos Eleitorais” quantos forem os seus deputados à Assembléia Geral Legislativa. Ficou conhecida como “Lei dos Círculos” porque estabelecia o voto por distritos, ou círculos eleitorais. Um só repre-sentante para cada distrito eleitoral e eleição também dos seus suplentes, interiorizando as eleições e dando força às influências locais. Voto distrital

puro, melhorando a representação urbana e rural. Cabe destacar, de acordo com Afonso Arinos de Melo Franco (1978), que

As províncias são divididas em tantos

“Distritos Eleitorais” quantos forem os seus

deputados à Assembléia Geral Legislativa.

Ficou conhecida como “Lei dos Círculos”

porque estabelecia o voto por distritos, ou

círculos eleitorais

Braz Carneiro Nogueira da Costa e Gama - Visconde de Baependi

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A importância da lei, para a qual o Marquês de Paraná contou com o firme apoio do Imperador D. Pedro II, residia no fato de que, na eleição por províncias saíam mais facilmente vitoriosas as influências gerais, das capitais e centros maiores, enquanto os círculos interiorizavam os pleitos, dando força às influências locais. Julgava-se, com razão, que, ainda admitidos os vícios do processo eleitoral, a representação seria mais genuína. Diminuíram os “deputados de enxurrada”, como disse o Marquês de Paraná, no seu habitual altaneiro. Mais alegou-se que o círculo facilitava, com o juiz e o delegado, o predomínio dos tiranetes locais.

Realizadas as eleições, essa lei vem a sofrer severas críticas, entre elas a de ter contribuído para o enfraquecimento dos partidos políticos. Por isso, antes de novo pleito, luta-se por sua revogação. Portanto, essa lei só vigorou para a Décima Legislatura (1857-1860), pois em 18 de agosto de 1860, de-pois de aprovado pela Assembléia Geral Legislativa, foi sancionado pelo Im-perador o Decreto nº 1.082, que alterou a Carta de Lei nº 387 e o Decreto nº 842, que trataram das eleições passadas. Foi a segunda “Lei dos Círculos”. Manteve os distritos eleitorais, mas com três deputados e abolindo a eleição de suplentes. Exigia ainda que as autoridades se desincompatibilizassem de seus cargos seis meses antes dos pleitos. Amplia-se a representação da pro-

priedade rural. Essa lei vai perdurar até a 15ª Legislatura (1872-1875).A verdade é que a circunscrição territorial traçada no Decreto nº 842, de 19 de setem-

bro de 1855, e o pequeno número de eleitores tendiam a falsear a fiel expressão do voto, dando lugar a indecorosas transações entre os candidatos e localizando por modo tal a eleição, que o deputado não era propriamente o representante da nação, mas o eleito de seu reduto eleitoral, desligando-se assim dos laços do partido e mais acessível, portanto, à influ-ência do poder local. Pretendendo sanar tão sérios inconvenientes, aprova-se e decreta-se o alargamento dos círculos com três deputados e, com isso, estabelecem-se novas incompati-bilidades. A promulgação dessa lei não tardou em trazer desilusões a seus autores, e nem foi ela, como se imaginava, o elo que fornecesse ao país uma representação legítima.

A reforma eleitoral seguinte, que instituiu o título de qualificação dos eleitores e que autorizou o governo a coligir e publicar por decreto todas as disposições que ficaram vigoran-do em relação ao processo eleitoral, foi aprovada pelo Decreto nº 2.675, de 20 de outubro de 1875. Depois dessa, seguiu a “Lei Saraiva”, de 9 de janeiro de 1881, que, sem reformar a Constituição do Império, instituiu o voto direto, que vigorou até o fim do regime imperial.

A participação dos cidadãos e a revisão eleitoral

No Brasil, poucos cidadãos participaram, entre 1821 e 1881, do processo de escolha de deputados e senadores. O sistema era indireto (colégio eleitoral censitário), ou a denomina-da “eleição de dois graus”, o que representava relativamente o que se praticou na época em Portugal e Espanha, com eleições em quatro turnos. Para nós, um avanço, mas, como o voto era censitário, abrangia pouco mais de 1% de população – uma realidade do nosso sistema eleitoral que só vai mudar (lentamente) a partir da Proclamação da República, em 1889.

A verdade é que a circunscrição territorial

traçada no Decreto nº 842, de 19 de setembro

de 1855, e o pequeno número de eleitores

tendiam a falsear a fiel expressão do voto

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Barbosa Lima Sobrinho (2001) esclarece que

Tivemos, de fato, numerosas reformas eleitorais, a partir de 1821, embora pudéssemos assinalar, na lista das insistentes e esperançosas, com que se procurava estabelecer a verdade do regime representativo, quatro ou cinco reformas essenciais: a de 1846, que reconhecera a competência do Poder Legislativo para regular as eleições; a de 1855, que estabelecera os círculos de um deputado; a de 1875, que instituíra o sistema do voto em chapa incompleta; a de 1881, com o voto direto; a de 1904, com o voto cumulativo, e a de 1932, com a representação proporcional e com o voto secreto. Mas entre todas as reformas, a de 1881 e a de 1932 se destacam pela audácia das soluções e lealdade de seus propósitos democráticos. Todas as outras condensaram reivindicações, ou experiências, que não puderam resistir, por

muito tempo, à erosão das paixões políticas.

Diz, ainda, que devemos observar

que não há lei que possa resistir impunemente à coação, à fraude, ao espírito de chicana. O único princípio certo, e que o tempo não

destrói, é o de que uma lei eleitoral excelente é a que não vigora por muito tempo. Há que revê-la, modificá-la, constantemente, nesse corpo a corpo com o facciosismo, em que a imaginação descobre novas fórmulas de vitória, a que a lei precisa acudir, de imediato, com outros meios de defesa.

Por isso não são poucas as vozes que se mostram descrentes da eficácia das leis eleitorais. Já em 1875, D. Pedro II escrevia a

Rio Branco, dizendo-lhe: “Cada vez me entristeço e me envergonho mais do que têm sido, e serão ainda por muito tempo, adotem-se

as medidas que se adotarem, as eleições entre nós. Não é o vestido – observava o Imperador – que tornará vestal a Messalina, porém, sim, a

educação do povo e, portanto, a do Governo”.

A Fala do Trono

No encerramento da Assembléia Geral Legislativa (Terceira Sessão Legislativa, da Nona Legislatura), no dia 4 de setembro de 1855, o Imperador D. Pedro II, em sua solene “Fala do Trono”, declara suas esperanças pela aprovação da reforma eleitoral: Augustos e dignis-simos Srs. representantes da nação. A sessão legislativa que hoje termina será assignalada pela reforma decretada no systema eleitoral. Congratulo-me comvosco por essa medida, que espero produzirá beneficos resultados.

Mas, na abertura da Assembléia Geral Legislativa (Terceira Sessão Legislativa, da Dé-cima Legislatura) no dia 10 de maio de 1859, o Imperador D. Pedro II, em sua “Fala do Trono”, reconhece que a execução da lei eleitoral revelou alguns inconvenientes e abusos, que

D. Pedro II

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urge examinar e remover. A Câmara dos Deputados, no “Projeto de Voto de Graças” apresen-tado na Sessão Ordinária de 21 de maio de 1859, concorda com o Imperador e assim deixa escrito o seguinte teor: compenetrada da necessidade urgente de serem examinados e removidos alguns inconvenientes e abusos, que revelara a execução da lei eleitoral, a Câmara dos Deputados empenhará todos os seus esforços para que o exercício dos direitos políticos dos cidadãos possa ter lugar à sombra de mais seguras garantias.

Deputado Eduardo Ferreira França (BA)2

Pronunciamento histórico (grafia da época)3

Ordem do Dia.Sessão Ordinária do dia 25 de agosto de 1855.

Entra em segunda discussão, o Projeto de Lei nº 69, do Senado, que altera a Carta de Lei nº 387, de 19 de agosto de 1846, com o Parecer nº 78, da Comissão de Constituição e Poderes da Câmara dos Deputados.

Pedem a palavra contra 13 oradores, e 14 a favorO Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Eduardo França.O Sr. Eduardo França: - Trata-se de uma questão de grande momento. (Apoiados) É

mister pois que os debates sejão feitos com toda a calma, é mister appellar unicamente para a razão e para as armas do raciocínio.

A questão é muito importante, mas os debates no senado forão tão amplos, tão distinc-tos oradores se fizerão ouvir, que parece que não resta mais argumento algum que se possa propôr, e que foi esgotada a materia. Todavia, Sr. Presidente, entendo que ainda é possível até certo ponto esclarecer o assumpto em discussão; e comquanto eu não desconheça que tenho de ficar muito áquem da importancia do objecto, pedirei á camara desculpa por lhe fazer ouvir minha debil voz, tanto mais quanto me acho profundamente magoado pelas dolorosas noticias agora recebidas da minha infeliz provincia.

O projecto, Sr. Presidente, tem por fim tres pontos principaes: garantir a liberdade do voto, promover uma reforma parlamentar, e em terceiro lugar conjunctamente fazer com que a administração da justiça no nosso paiz seja melhor do que actualmente. (Apoiado.) Eis aqui, segundo me parece, os tres pontos cardiaes do projecto, o fim a que ele se propõe. Quaes são os meios apresentados pelo projecto para chegarmos a este fim? Dous são estes meios: os circulos e as incompatibilidades.

Examinemos pois, Sr. Presidente, se a decretação dos circulos e se a decretação das incompatibilidades podem trazer maior liberdade do voto, um parlamento mais bem or-ganisado, e uma melhor administração da justiça. Por isso Sr. Presidente, eu principiarei por fallar da utilidade destas duas medidas, e depois fallarei da sua constitucionalidade, porque se estas medidas não fossem julgadas uteis, escusado seria fallar-se da sua constitu-cionalidade; mas por outro lado se sua utilidade ficar reconhecida, convém que examinemos a sua constitucionalidade, porque embora uma medida seja muito util, ou pareça sêl-o, se ella offender a constituição do império nós não a devemos adoptar. A nossa constituição é

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tão bella, a nossa constituição bem executada faria tão efficazmente a felicidade do paiz, que tudo o que se póde oppôr a ella é para mim inteiramente prejudicial. Portanto, bem que uma medida seja julgada util, é mister que nós a reconheçamos constitucional, como não offensiva da constituição do estado, para que possamos adoptar.

Tratarei primeiro da utilidade dos circulos em relação á liberdade do voto.Sr. Presidente, a liberdade do voto fica mais bem garantida com a adopção dos circulos.

Qualquer acção do governo, a acção mesma das influencias locaes, fica mais retringida e neutralisada com a presença dos candidatos que vão alli pleitear a sua eleição, e que, pondo-se em contacto mais immediato com os eleitores, os animão, e lhes dão mais energia para resistir ás ameaças que lhes quiserem fazer.

O Sr. Figueira de Mello: - Não apoiado.O Sr. E. França: - Sr. Presidente, não será tão facil em um circulo, como acontece na

eleição por provincia, impôr uma chapa de designados do governo. Não será tão fácil pôr em pratica os manejos de corrupção que se empregão todas as vezes que a eleição é por assim dizer abandonada, todas as vezes que os candidatos não estão presentes para vigiar a eleição.

O Sr. Figueira de Mello: - Logo, para a eleição do circulo o candidato deve ser tirado do mesmo lugar.

O Sr. E. França: - Sr. Presidente, com os circulos a liberdade do voto ganha muito, as influencias illegitimas devem desapparecer para serem substituídas por aquellas que se fun-dão no merito. (Apoiados.) Hoje é muito facil á potencias mal intencionadas viciar a eleição, alterando as actas, e substituindo as cedulas nas urnas; por meio dos circulos, Sr. Presidente, há de haver maior fiscalisação da parte dos candidatos e dos interessados contra uma falsa eleição; os abusos da autoridade são logo conhecidos, e podem ser logo contrabalançados e obstados. Com os circulos os interesses do eleitor e do candidato tomão grande incremento, poque não se trata sómente de concorrer para a eleição, mas de eleger-se um representante, e as influencias locaes não ficão entregues a si mesmas, não poderão, quando mal intencio-nadas, empregar a sua influencia illegitima para alterar a eleição, porque, então, existindo interesse em que a eleição não seja feita no sentido da influencia prejudicial, ou do governo, outras influencias se levantão para contrabalançar e fazer desapparecer aquella.

O Sr. F. Octaviano: A influencia da policia. (Há varios apartes.)O Sr. Presidente: - Attenção!O Sr. E. França: - Sr. Presidente, por meio dos circulos os eleitores conhecem muito

melhor os candidatos. Os candidatos têm necessidade de fazer conhecer suas opiniões, têm necessidade de fazer conhecer os seus sentimentos, os seus projectos; as candidaturas serão discutidas, apreciadas, avaliadas, e o eleitor que vai eleger, e fazer escolha de um represen-tante do seu circulo, terá mais cuidado nessa escolha. Portanto, Sr. Presidente, é claro que por este lado a instituição da eleição por circulos é proficua.

Demais, Sr. Presidente, nós vemos que uma lista de candidatos é apresentada á eleição da provincia debaixo da influencia da autoridade. O governo quer que a eleição recaia em certos e determinados individuos, mas a maioria da provincia os repelle, ou outros candi-datos são eleitos; e acontece então muitas vezes, Sr. Presidente, que um único collegio vai transtornar a eleição de uma provincia inteira, porque aquelle collegio, de que a autoridade

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póde dispôr, vai influir sobre a eleição, carregando toda a votação nos candidatos do go-verno, e se a differença póde ser reunida resulta que um único collegio eleitoral vai fazer annullar a eleição de toda uma provincia, unicamente porque o governo tem poder decidido em collegio. Isto acontece muitas vezes, Sr. Presidente, e é facto que se dá todos os dias nas eleições das camaras municipaes, onde vemos todas as freguezias escolherem certos cidadãos, e uma só freguezia transtornar essa eleição, visto como o resultado de sua votação, guarda-do de proposito para ser ultimado depois de conhecido o das outras freguezias, é adrede arranjado para se favorecer tal ou tal candidatura em detrimento de outra, e assim uma só freguezia altera profundamente a eleição, e lhe dá um desfecho inesperado. O que acontece nas eleições de vereadores succede na eleição dos deputados. E será isto conforme com o que ordena a constituição, estarão satisfeitos os seus preceitos? A resposta não é duvidosa. Onde está a liberdade na eleição e sua legitimidade? Uma única influencia illegitima, se não póde fazer com que os seus candidatos tenhão a maioria dos votos, pelos menos exclue da lista dos eleitos ao candidato que não é de sua sympathia, ou contra o qual têm recommendações do governo. Assim pois a importancia da influencia illegitima ou mal intencionada é mantida pela lei actual; com os circulos isto não póde acontecer; pelo menos em tão grande escala; a influencia perniciosa se circumscreverá na sua localidade, mas não estenderá seu dominio, e não influirá mesmo indirectamente, na eleição das outras localidades e da provincia. Por-tanto parece-me que a liberdade do voto fica bem garantida. O governo, ou uma autoridade qualquer, para vencer em um circulo cuja opinião lhe seja contrária tem de empregar meios que ficão muito patentes, em emfim de empregar a força, e eu já disse que antes quero o emprego da força do que o emprego da corrupção.

A respeito da representação nacional não há duvida nenhuma que a instituição dos cir-culos há de trazer uma reforma parlamentar, e como muito bem disse um honrado senador, as diversas opiniões politicas hão de ser representadas . Não há de ser esta camara a partilha exclusiva de um ou outro partido, não há de ser uma camara unanime, e todos nós sabemos qual é a desvantagem para o paiz das camaras unanimes, mesmo para o governo que promove a sua eleição. O parlamento há de ser mais bem composto, porque virão para elle os represen-tantes das localidades, homens conhecedores das necessidades vitaes do paiz. (Apoiados.)

As diversas opiniões enviarão os seus legitimos representantes, a eleição penderá a tomar um caracter de verdadeiro interesse nacional, e deixará de ser a expressão de sentimentos egoisticos.

Senhores, a constituição tem por fim conservar e garantir os direitos de cada um dos cidadãos, não são os interesses e os direitos de collecção que ella garante, porque ao indi-viduo é que pertencem os direitos. Os representantes devem-se identificar o mais possivel com os interesses de seus representados; devem conhecer as necessidades destes, e os meios de satisfazel-as, defendendo os seus direitos. Alargar os circulos da votação, ou confundi-los todos por assim dizer em um só circulo, ou uma só votação, e os interesses individuaes serão desconhecidos, mal protegidos, e sempre mal representados. A eleição que mais se approximar da eleição universal será aquella que há de apresentar mais benefícios; e sem os inconvenientes praticos da eleição universal, que realmente se tem demonstrado que é nociva para o paiz que a adopta, a eleição por circulos produz todas as suas vantagens, podendo-se sem receio algum augmentar o numero de eleitores, e por conseguinte fazer-

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se com que maior numero de cidadãos intervenha na eleição, o que é um meio de fazer desapparecer as in-fluencias illegitimas de qualquer natureza que sejão, e de dar mais probabilidade para que as necessidades e interesses de cada um dos cidadãos sejão mais bem conhecidos. (Apoiados.)

Demais, Sr. Presidente, o que é o interesse geral senão a fusão e combinação dos differentes interesses locaes? E como é possivel que sem serem representa-dos esses interesses locaes, sem serem conhecidos os elementos que constituem o interesse geral, possa esse interesse geral ser conhecido e satisfeito?

Assim, pois, Sr. Presidente, os direitos e interesses dos cidadãos hão de ser mais bem garantidos com a decretação dos circulos, porque hão de ser mais bem conhecidos; o interesse geral há de ser mais bem aqui-latado e defendido, porque elle não consiste senão na combinação dos differentes interesses individuaes.

Disse-se, Sr. Presidente, que para o conhecimento dos interesses locaes existem as camaras municipaes e as assembléas provinciaes. Em primeiro lugar observarei que as camaras municipaes são meramente administrativas.

O Sr. Araujo Lima: - É engano, tem poder le-gislativo municipal.

O Sr. E. França: - Senhores, parecia que, con-forme a mesma opinião da commissão desta camara, as assembleas provinciaes, tendo de representar os in-teresses das differentes localidades, a eleição de seus membros devia ser feita por circulos, para que os in-teresses locaes pudessem ser mais conhecidos; e por-tanto parece que os circulos eram muito vantajosos na eleição das assembléas provinciaes; esta conclusão eu a sustento, e quero que seja adoptada tambem para a eleição dos representantes da nação.

E demais, Sr. Presidente, as assembléas provinciaes não podem legislar sobre muitos pontos que competem á assembléa geral; grande numero de interesses locaes não podem ter sua satisfação nas assembléas provin-ciaes, e cumpre que elles sejão attendidos, e portanto não sendo a eleição feita por circulos, não podem ser elles bem averiguados e satisfeitos; e conseguintemente

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também o interesse geral não póde ser bem conhecido, porque resulta como eu disse, da combinação dos differentes interesses locaes.

O Sr. Figueira de Mello: - Há de ser um verdadeiro mosaico.O Sr. E. França: - O interesse geral nunca é contrario aos interesses particulares,

legitimos e verdadeiros.Sr. Presidente, a assembléa geral só pode ser a verdadeira expressão do paiz, quando

todos os interesses forem ahi bem representados (Apoiados.); e portanto como é que podem esses interesses ser aqui bem representados senão por uma eleição por circulos.

O Sr. Figueira de Mello: - Devem ser deputados da nação e não deputados de aldéas.O Sr. F. Octaviano: - E entretanto os senhores tirão o chapéo ás influencias de aldéas

(Apoiados.)O Sr. Ribeiro de Andrada: - É verdade; cortejão-as a todos os momentos, e sem ellas

não vêm para aqui.O Sr. F. Octaviano: - São tão bons como nós.(...) Passemos agora a tratar da utilidade da adopção das incompatibilidades. Que a

liberdade do voto ganha poderosíssimamente com as incompatibilidades, isso não póde ser posto em duvida.

O Sr. F. Octaviano: - Apoiado, isto está na consciência do paiz.O Sr. E. França: - Muitos empregados publicos tirão a sua influencia dos cargos que

exercem, quase que é comesinho dizer-se: é presidente da provincia, há de ser deputado des-sa provincia. (Apoiados.) E não são sómente os presidentes que se fazem eleger em virtude do cargo que occupão; muitos chefes de repartições, magistrados são eleitos muitas vezes sómente porque occupão um lugar de dependencias na provincia.

E a este proposito, Sr. Presidente, permitta V. Ex. que eu responda a um trecho do discurso proferido no senado, sobre esta materia, pelo illustre senador o Sr. Eusebio de Queiroz, elle exprimio-se assim:

“Tem-se dito por vezes que os magistrados influem na liberdade da eleição porque coagem. Appello para a consciencia publica, e pergunto qual é, na occasião das eleições, a opinião que se procura saber; a do juiz de direito, ou a do presidente da provincia: Se a coacção partisse dos magistrados, elles triumpharião mesmo quando seu partido é infeliz. Se existe coacção, não parte da magistratura, senão dos agentes do poder executivo”.

O Sr. Araujo Lima: - Isto é tão evidente como a luz do dia; é uma farça ridicula negal-o . Se há coacão, vem do governo, e não dos magistrados.

O Sr. E. França: - Pois ainda se póde duvidar que tenha havido coacção e coacção muito forte? Appello tambem para a consciencia publica. Não vem da magistratura diz o Sr. Eusebio de Queiroz, porque se a influencia viesse dos magistrados, elles seriam sempre eleitos deputados, embora não estivessem na lista do governo. Ora, pergunto eu, qual é o juiz de direito candidato que deixa de ter os votos da sua comarca?

O Sr. Siqueira Queiroz: - Não apoiado.O Sr. E. França: - Creio, Sr. Presidente, que as excepções são raríssimas (Apoiados.); po-

derão não ter votos nas outras comarcas, se o governo não influir em favor da sua candidatura,

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mas os das suas comarcas digo que sempre os têm. Portanto, quando o magistrado é infeliz na sua candidatura, não o é de certo pelos votos das comarcas onde exerce a sua jurisdicção.

O Sr. Bandeira de Mello: - Como foi o Sr. Cansansão eleito deputado pelas Alagôas não exercendo jurisdição nessa provincia, nem mesmo estando lá?

O Sr. Pereira da Silva: - E continuará a ser; isto nada prova.O Sr. Cansansão: - Nunca fui eleitor na minha parochia.O Sr. E. França: - Vou ainda occupar-me de outros trechos do discurso do Sr. sena-

dor Eusebio de Queiroz, que é uma autoridade muito respeitavel: “Os magistrados, disse elle, tirão sua influencia de sua intelligencia, e da natureza das funcções que exercem... E esta influencia há de ter bon gré, malgré.”

Logo, o cargo que elles exercem lhes dá uma influencia muito grande; e portanto, desde que os magistrados têm esta influencia tão grande, e reconhecida pelo nobre senador e por outros, hão de se fazer eleger. Os eleitores estão na dependencia do magistrado que exerce jurisdicção no lugar, e por conseguinte é muito difficil que deixem de votar nelle, porque dahi a pouco esse magistrado tem que ser seu julgador e há de decidir da vida e fortuna dos mesmos eleitores. Não é possível resistir á candidatura do seu juiz; se fôr homem de más intenções obterá os votos por coacção; o eleitor não tem liberdade.

Quanto á reforma parlamentar, as incompatibilidades trarão grandes vantagens para o paiz. As incompatibilidades, fazendo com que certos empregados não possão ser votados no districto de sua jurisdicção, concorrerão para que o numero de empregados não possão ser vo-tados no districto de sua jurisdicção, concorrerão para que o numero dos empregados publicos diminua no parlamento, e, em compensação, que o numero dos simples cidadãos augmente.

E eu, senhores; acho que é um vicio proveniente do actual systema eleitoral aquillo que se observa entre nós; olhemos para os bancos desta camara e veremos que todos, ou quase todos, são occupados por empregados publicos. (Apoiados.) Não há aqui um negociante, não há um lavrador, todos são empregados publicos por assim dizer.

O Sr. Araujo Lima: - dá um aparte que não ouvimos. (Há outros apartes.)O Sr. E. França: - Eu quero que os nobres deputados apresentem argumentos; as

discussões ordinariamente se azedão quando não há razões para se apresentar; discutamos com sangue frio, não procuremos excitar paixões e odios: a gravidade da materia exige que procedamos com toda a circumspecção.

Emfim, a única conclusão que poderei tirar dos apartes que ouço é que as incompati-bilidades se devião estender mais; pois bem, tentemos; e porque não se póde fazer tudo de chofre segue-se que nada se deva fazer? (Apoiados.)

Creio pois, Sr. presidente, que por meio das incompatibilidades as camaras se hão de compor de cidadãos que representem todas as classes do paiz, e nisso o paiz, há de ganhar immensamente. (Apoiados.) Deve haver um paradeiro á invasão dos empregados publicos na representação nacional; venhão tambem para aqui proprietarios, agricultores, negocian-tes; venhão os homens que não procurão empregos publicos.

Quanto á boa administração da justiça, senhores, todos quantos no senado fallarão a respeito do projecto, tanto os que o sustentarão, como os que o impugnárão, todos entendem que a ausencia dos magistrados dos seus lugares é um mal para a administração da justiça...

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O Sr. Araujo Lima: - Na verdade isso é uma descoberta tão importante como a da America.

O Sr. E. França: - O Sr. Eusebio de Queiroz disse que a administração da justiça perde pela falta que fazem os magistrados em seus lugares...que peiora a administração da justiça por essa falta.

Um Sr. Deputado: - Não tome destacadamente um ponto do discurso.O Sr. E. França: - Se a administração da justiça é a cousa que mais desvelos merece

em qualquer paiz, se da boa administração da justiça depende em maxima parte a felicidade de um povo, e que esta administração soffre e peiora com a ausencia dos magistrados de seus lugares, segue-se que um projecto que tem por fim conservar os respectivos magistrados no exercicio de suas funcções não póde deixar de ser para o nosso paiz um projecto util.

Há infelizmente, Sr. presidente, magistrados entre nós que por sahirem deputados ge-raes ou provinciaes guardão feitos que lhe trarião compromettimento julgados como devião ser, e deixão-os em suas pastas para no tempo do seu mandato serem julgados pelos respecti-vos supplentes. Se os magistrados não fossem deputados por certo que não aconteceria isso.

Sr. presidente, allegou-se contra o projecto dizendo-se que era mister que as camaras tivessem magistrados, porque os seus conhecimentos praticos concorrem em muitas occasiões para o acerto das leis. Suppondo mesmo que os magistrados sejão os unicos que possuão estes conhecimentos praticos, ainda no caso vertente não procederia o argumento. Sr. presidente, se o projecto tratasse de excluir a magistratura, esse argumento poderia ter algum valor; mas isto não acontece. E mesmo quando o projecto fosse ao ponto de excluir os juizes de direito, não ficarião os desembargadores e membros do supremo tribunal de justiça, os quaes têm mais pratica que os juizes de direito? Há ainda outra razão, e é que actualmente os conhecimentos praticos dos juizes de direito não são tão extensos como parece, quase que se póde dizer que pouco têm ácerca do direito civil, porque as causas civeis estão entregues aos juizes municipa-es. Esse argumento pois não tem procedencia, principalmente a respeito do actual projecto.

Outro argumento que se trouxe, senhores, contra a exclusão da magistratura, é o se-guinte, que se lê no discurso do nobre senador, que gosto de citar: “Uma lei boa executada por quem não tem interesse em fazer sobresahir suas vantagens, póde produzir grandes males; entretanto uma lei má póde ser modificada na execução a ponto de tornar-se boa na pratica”.

O que quer o nobre senador dizer é que se os magistrados fôrem excluidos da camara veriamos com que má vontade executarião as leis, mas eu, Sr. presidente, responderei ao illustre senador com quase as mesmas palavras: - uma lei boa executada por quem tem inte-resse em fazer sobresahir suas desvantagens póde produzir grandes males; e esta lei boa póde ser modificada na execução a ponto de tornar-se má na pratica. Porque tendo o magistrado combatido essa lei, e votado contra ella como legislador, não sei se será o mais proprio para executal-a, e fazer sobresahir suas vantagens, antes pelo contrario poderá querer mostrar que sua opinião era a verdadeira. Não é pois um argumento contra o projecto.

Sr. presidente, todos reconhecem a falta que fazem os magistrados em seus lugares, todos conhecem que a administração da justiça peiora com a falta desses magistrados, e pois se assim é, como se póde sustentar que a nossa constituição, tão sabia como é, possa vedar que se empreguem os meios mais proprios para a boa administração da justiça? Portanto,

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senhores, penso que a respeito da utilidade das medidas que se discutem não há duvida alguma; vamos porém ver a sua constitucionalidade, porque como eu já disse, embora uma medida seja util, se ella fôr inconstitucional não se póde votar por ella, porque a primeira cousa que devemos fazer é acatar a constituição (Apoiados.); porque só assim os direitos dos cidadãos hão de ser mantidos e conservados. (Apoiados.)

Os circulos não ferem a constituição, a decretação dos circulos está incluida, como muito bem disserão alguns nobres deputados, no art. 97 da constituição que marca o modo pratico das eleições. O argumento, talvez único, de inconstitucionalidade de que se tem servido os impugnadores do projecto, versa sobre a intelligencia das palavras – eleitor de provincia – Mas, Sr. presidente, se as palavras – eleitor de provincia – devessem ser entendi-das no sentido litteral em que as tomão os que impugnão o projecto, hão de confessar que os eleitores que têm havido no Brazil até hoje não são eleitores de provincia.

Pois, senhores, serão no sentido litteral eleitores de provincia aquelles que recebem votos somente dos cidadãos activos de uma parochia? Certamente que não, e para se considerarem eleitores de provincia, entendida essa expressão literalmente, necessario seria que fossem elei-tos pelos cidadãos activos de toda a provincia; portanto, as palavras – eleitores de provincia – que vêm na constituição não querem dizer senão que são estes eleitores os que devem votar nos deputados da provincia; portanto esses eleitores que não têm os votos da massa total dos cidadãos activos da provincia, e que nem podião têl-os, porque seria absurdo querer-se uma eleição cujas listas deverião conter 2 ou 3.000 nomes, não são eleitores da provincia no sen-tido litteral das palavras, mas eleitores de provincia porque são elles os que votão na eleição dos deputados que dá a provincia. E se pelo sentido que se quer dar á denominação de elei-tores de provincia se conclue que os deputados devem ser eleitos pela massa desses eleitores, concluo que este sentido também deveria fazer com que a massa dos cidadãos activos de toda a provincia, embora reunidos nas respectivas parochias, elegesse a totalidade dos eleitores da mesma provincia. (Muito bem.) Se não deixão de ser eleitores de provincia, apezar de serem escolhidos pelos votantes da parochia unicamente, tambem não deixão de ser deputados da provincia e representantes da nação os eleitos nos circulos, e sómente por parte dos eleitores.

(Ouvem-se apartes.)Se os senhores dizem que os deputados eleitos por circulos não são deputados da pro-

vincia, eu também direi, e com mais razão, que os eleitores feitos com os unicos votos da parochia não são eleitores de provincia.

Uma voz: - Ainda não entendi.O Sr. E. França: - É porque não quer.O Sr. Ribeiro de Andrada: - O verdadeiro cego é o que não quer ver.O Sr. E. França: - A respeito do modo porque deve ser feita a eleição dos representantes

da nação e da provincia a constituição limitou-se a estabelecer a eleição indirecta, e determi-nou que os cidadãos activos se reunissem nas suas parochias para a escolha dos eleitores, e que os representantes das provincias fossem eleitos para eleitores assim nomeados; mas a constitui-ção deixou tudo o mais á lei regulamentar que tivesse de marcar o modo pratico das eleições. A constituição não ordenou que todos os representantes que tivesse que dar a provincia fos-sem eleitos pela massa de eleitores; assim como não ordenou, e nem poderia fazêl-o sem graves

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inconvenientes e mesmo uma absoluta impossibilidade, que os eleitores de provincia fossem eleitos pela massa to-tal de todos os cidadãos activos da provincia, embora reu-nidos nas parochias. E nem se diga que a denominação de eleitores de provincia inculca que todos os deputados devem ser eleitos por todos os eleitores, porque esta deno-minação não implica isso necessariamente; esta denomi-nação indica simplesmente que são estes os eleitores que têm de eleger, deste ou daquelle modo mais conveniente, os representantes da provincia. E tanto é assim que pelo modo por que são estes eleitores eleitos elles são apenas filhos da parochia, visto como só votão para os escolher os cidadãos da parochia, e não a massa total dos cidadãos activos de todas as parochias, o que seria necessário para que pudesse ser-lhes applicada no sentido litteral das pa-lavras a denominação de eleitores de provincia. Segue-se que se pela denominação de eleitores de provincia se deve

concluir que a massa total desses eleitores deve votar para a eleição dos representantes, esta mesma denominação deveria implicar que esses eleitores devem ser eleitos pela massa total dos cidadãos activos de toda a provincia, e não descubro razão plausivel para que dessa de-nominação se queira tirar a conclusão que admittem, e não se devia tambem concluir que a eleição dos eleitores, como tem sido feita até aqui, não produz eleitores de provincia. Mas a constituição não podia querer impossivel, não poderia querer que a eleição dos eleitores fosse uma verdadeira burla, e assim são eleitores de provincia, posto que com os unicos votos dos cidadãos da parochia. Destas primissas tiro a illação que os representantes eleitos por circulos são tão representantes da nação e da provincia como os eleitores eleitos pelas parochias são eleitores de provincia. Portanto respondo, contra os pareceres das commissões do senado e desta camara, que admittida a eleição por circulos é a provincia que elege dos deputados.

Parece-me pois que o argumento produzido para mostrar a inconstitucionalidade dos circulos não tem fundamento. O melhor meio pratico que houve de manter a liberdade do voto, e de garantir uma boa escolha de representantes da nação póde, ser adoptado sem offensa da constituição.

Vejamos agora as incompatibilidades, que também forão taxadas de inconstituciona-es. Tem-se confundido, senhores, o simples cidadão com o empregado publico, e por se ter dado esta confusão é que existem leis que entregão os simples cidadãos a conselhos de guerra. Mas emfim não tratarei agora disto; a minha questão é que se tem confundido os empregados publicos com os simples cidadãos, e convém que esta confusão não continúe, porque acarreta comsigo grandes males para o paiz e para a garantia dos direitos dos cidadãos. Os empregos publicos são creados por utilidade publica, e se é uma das garantias de cidadãos que não haja lei nenhuma senão fundada na utilidade publica, está claro que na decretação dos empregos deve o legislador estabelecer todas as disposições que forem consentaneas a tornar o empre-go da utilidade publica. Se a utilidade publica é a regra que não se deve deixar de attender

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quando se trata dos empregos publicos, segue-se que tudo quanto se julgar conveniente para o bom desempenho do emprego não póde deixar de ser facultado pela constituição, pois que é um dos direitos garantidos pela constituição que nada se possa decretar senão por utilidade publica. E seria faltar á utilidade publica se se creassem empregos ou se elles continuassem a existir sem as condições indispensaveis para seu bom preenchimento. Ora, poderá o emprego satisfazer ás necessidades publicas se não fôr permittido restringir aos funccionarios certos direitos, que pertencem em toda as sua plenitude aos simples cidadãos? Não é possivel; e tanto, que direitos têm sido restringidos e continuarão a sel-o aos funccionarios publicos; e sem estas restricções a existencia do empregado publico se tornaria nociva aos cidadãos, não podendo elle ser bem desempenhado sem estas condições.

Póde-se, e deve-se restringir certos direitos ao funccionario, emquanto que isso se não póde fazer aos simples cidadão. O simples cidadão póde sahir do imperio, póde permanecer onde bem lhe aprouver, e o empregado publico póde gozar desse direito? Elle deve permane-cer no lugar destinado para exercer suas funcções, tem até uma pena, e muitas vezes a perda do emprego, quando usa de um direito que só pertence ao simples cidadão, mas que lhe está restringido por utilidade publica, e como condição do emprego.

Os simples cidadãos podem-se entregar a qualquer industria, uma vez que não se oppo-nha aos costumes, á segurança e saude publica, mas a certos empregados publicos é vedado esse direito, nem todas as industrias lhes são permittidas, porque se o fossem o emprego não poderia ser bem exercido. Póde o empregado publico permanecer onde bem lhe parecer? Póde elle usar de qualquer genero de industria, cujo uso é garantido aos outros cidadãos? Não póde estar no pleno gozo desses direitos do cidadão simples, se esquecer que é funccionario, e que portanto certos direitos lhe estão restringidos, por assim o exigir a utilidade publica.

O magistrado, por exemplo, póde entregar-se no commercio? Aos empregados de certas re-partições que têm de fiscalisar os direitos da nação são permittidos certos generos de industria?

E era possivel, Sr. presidente, que os empregos podessem subsistir, ao empregado pu-blico, não se podessem de modo algum restringir certos direitos? Não era isso contrario á utilidade do emprego? Isto é claro e evidente, e todas as leis assim o têm determinado, e da-qui resulta que muitas vezes para o bom desempenho do emprego é mister a restricção e até a privação completa de um direito de que goza em toda a sua plenitude o simples cidadão, e que neste não é licito nem restringir, e daqui nasce que há uma grande differença entre os simples cidadão e o empregado publico. E daqui provem também que como funccionario publico póde responder em tribunaes especiaes compostos por outra fórma que não os que devem julgar os simples cidadãos.

Pergunto agora, esses direitos que se restingem aos empregados publicos não estão in-cluidos no numero daquelles que a constituição garante aos cidadãos, e que não podem ser restringidos sem uma reforma da constituição? Sem duvida nenhuma: no emtanto elles têm sido bem restringidos sem essa reforma aos empregados publicos, e o devião ser. Esses direi-tos por ventura são de menor alcance do que o direito de votar ou de ser votado? De certo que não, e então se se podem restringir esses direitos ao empregado publico, a consequencia necessaria é que também póde ser-lhes restringido o direito de votar e de ser votado.

O Sr. Figueira de Mello: - Isso é um theoria nova.

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O Sr. E. França: - Ou o nobre deputado não me attendeu, ou não me quer attender. A constituição garante certos direitos aos cidadãos, e tudo quanto diz respeito as direitos po-liticos e individuaes não póde ser alterado senão em virtude de uma reforma da constituição. Está portanto neste caso não só o direito de votar e ser votado, como tambem o direito de per-manecer em qualquer lugar que aprouver ao cidadão, e o direito de exercer qualquer industria não vedada. Ora, o direito de votar e ser votado não é mais importante do que os outros, e até pelo contrario se eu fosse attender á constituição poderia talvez dizer que o direito de votar e ser votado é considerado menos essencial ao cidadão do que os outros direitos, porque estes pertencem á massa total dos cidadãos de todo o imperio, emquanto que o direito de votar ou de ser votado pertence sómente a uma classe de cidadãos, os cidadãos activos.

Esses direitos de que fallei não são certamente menos importante e menos essenciaes que o direito eleitoral; ora, já mostrei que erão elles muitas vezes restringidos, e não podião deixar de ser para o bom desempenho de certos empregos publicos; segue-se que se a restric-ção em certos direitos, não menos importantes que o direito de votar, e de ser votado, póde ser imposta como condição do emprego, que tambem esta restricção se póde estender até o direito eleitoral, que não tem prerrogativa nenhuma sobre os outros direitos.

Portanto, Sr. presidente, se fôr util para a existencia dos empregos publicos e para a utilidade geral dos cidadãos que ao funccionario publico se restrinjão certos direitos, á legis-latura ordinaria é licito fazel-o.

Agora, Sr. presidente, tratarei de ventilar a questão se é util ou não restringir esses direitos aos empregados publicos; é um questão mui diversa; mas reconhecida a utilidade da restricção não ha impossibilidade em decretal-a, porque a constituição não o prohibe. Se portanto, Sr. presidente, se demonstrar que para a liberdade do voto, que para uma melhor representação nacional, que para a boa administração da justiça, é de absoluta necessidade que certas restricções de direitos que competem ao simples cidadão sejão impostas aos em-pregado publicos, a constituição não veda que ella seja estabelecida, e até seria um absurdo pensar-se que, reconhecendo-se que não podia haver boa administração da justiça sem a restricção de certos direitos aos magistrados, a nossa constituição, tão sabia e previdente, se oppuzesse a uma medida tão salutar e indispensavel. (Apoiados.)

(Há uma aparte que não ouvimos.)Eu não estou tratando de examinar se as incompatibilidades devem ser sómente para os

empregados incluidos no projecto; estou tratando sim da questão geral da constitucionalidade das incompatibilidades. Mas, senhores, a discussão nos mostrará se é necessario estender mais essa medida, ou se não é necessario estendel-a tanto; e se se estender que aos lentes das escolas de medicina, ou das academias juridicas, se deve restringir o direito de votar e ser votado, podemos sem escrupulo algum de inconstitucionalidade votar por essa medida. Penso, po-rém, que os funccionarios publicos de que se occupa o projecto não estão no caso de outros; elles exercem empregos pelos quaes influem poderosamente no animo dos eleitores. Ninguem contestou especialmente a limitação proposta para com os presidentes de provincia e outros empregados, todos os argumentos contra o projecto têm convergido sobre a magistratura. O illustre senador o Sr. Euzebio de Queiroz, tão convencido estava quando ministro que a ausencia dos juizes de direito das suas comarcas produzia males á administração da justiça, e

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que a eleição desses magistrados é uma das causas principaes desta ausência, tão convencido estava e está ainda hoje desse mal, que quer e procurou tirar do juiz de direito até o desejo de ser deputado (risadas), e isto porque elle entende muito bem que a falta dos magistrados nos seus lugares peiora muito a administração da justiça. Mas os meios propostos pelo nobre se-nador não serião tambem offensivos da constituição? Não será uma offensa feita á nossa cons-tituição pôr pêas e embaraços á eleição de um magistrado? Se o magistrado, como se diz tem pleno direito de ser votado, elle não póde soffrer quebra alguma nesse direito; dever-se-há por ventura estabelecer qualquer medida, mesmo mais indirecta, que venha contrariar um direito que compete ao magistrado, e deverá elle padecer porque usa do seu direito? De certo não; as medidas propostas pelo nobre senador estão no mesmo caso que as outras, differirão sómente pela intensidade e pela efficacidade, mas são da mesma natureza, (Apoiados.) Se as propostas no projecto são inconstitucionaes, também o são aquelles que, no entender do illustre senador, tendem a tirar até o desejo de ser deputado, porque se não conseguem este fim serão improfi-cuas, e, como as outras, attentatorias dos direitos, que, se pensa, não podem ser restringidos. Pois então o magistrado estando doente, por exemplo, não perde o tempo do seu exercício, e por ser representante da nação, por vir aqui exercer um direito político, há de perdel-o ?

(Há um aparte.)Este argumento da posição de um lente e da de um magistrado não sei que valor possa

ter, não há paridade alguma; que influencia póde ter um lente em comparação com um ma-gistrado? Mas emfim, se é necessario para a liberdade do voto, para a boa representação do paiz, que a profissão de lente seja incompativel com a eleição de deputado, votarei por isso.

O Sr. Paula Candido: - Apoiado, também eu.O Sr. E. França: - Penso, Sr. presidente, que tenho apresentado razões que têm alguma

procedencia. (Apoiados.) O projecto que se discute satisfará a todas as necessidades publicas?Uma voz: - Esta é que é a questão.O Sr. E. França: - A primeira questão é se satisfará completamente a todas as necessi-

dades do paiz; a segunda é se, apezar de não satisfazer completamente, não é sempre melhor do que aquillo que existe.

(...) Mas, Sr. presidente, se o projecto, segundo o meu modo de entender, ainda não satisfaz completamente a tudo quanto eu julgo que convinha satisfazer, deverei eu votar contra elle, ou a favor? Não trepido, hei de votar a favor do projecto, pois que melhora mui-to o nosso systema eleitoral. (Apoiados.) Sr. presidente, já o paiz está cansado e cansadissimo de camaras unanimes.

O Sr. Figueira de Mello: - Nunca as houve.O Sr. E. França: - O paiz já não póde mais tolerar que as camaras não sejão sua ex-

pressão genuina.Diz-se que o projecto, embora véde que o juiz seja eleito na sua comarca, todavia não

véda as trocas. Em primeiro lugar entendo que estas trocas são dificilimas. Em honra da magis-tratura direi que o juiz, apezar mesmo de receber votos na sua comarca pela sua única posição de juiz, todavia o faz com certa decencia, emquanto que com estas trocas o juiz de uma comar-ca não tem as mesmas prerrogativas para os eleitores de outra comarca, e então seria necessario que o juiz respectivo, deixando as regras da decencia, influisse para que os votos dos eleitores

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da sua comarca recahissem nos juizes de outras comarcas. Por consequencia, Sr. presidente, este projecto sempre melhora alguma cousa o estado actual, pois que me parece impossível que um juiz que tenha um pouco de honestidade possa fazer trocas e baldrocas. (Risadas).

Sr. presidente, o projecto que se discute, comquanto possa ainda receber melhoramen-tos, todavia é um bem, é um grande passo que se dá para que o paiz seja bem representado. (Apoiados.) E talvez mesmo não fosse muito conveniente fazer reformas inteiramente radi-caes no actual systema eleitoral; mas, senhores, entre esse desejo de tudo reformar, de fazer uma reforma completamente radical, e o desejo de não fazer reforma alguma, me parece que há alguma cousa que se deve adoptar.

Pela opinião do nobre deputado que acabou de fallar não se devião fazer a menor al-teração: mas eu desejaria que o nobre deputado tivesse tido essa opinião quando se tratou de reformar certas leis, quando se fez a lei de 3 de dezembro, creando juizes temporarios ao passo que a constituição quer que elles sejão perpetuos. (Apoiados.)

Senhores, sejamos justos, deixemos certas opiniões exageradas; não diz a constituição tão claramente que o juiz deve ser perpetuo, que os tribunaes sejão compostos de jurados e de juizes perpetuos? Pois então para que se entregárão as causas civis, importantes como são, a juizes temporarios? Entretanto, se o governo propuzesse uma reforma dessa lei, como eu acho que devia propôr, os senhores havião de gritar contra semelhante innovação.

Senhores, a conclusão que se póde tirar da opinião do nobre deputado é que devemos ficar no status quo; nada de progresso, quando a nossa constituição é tão progressista, que até entendeu que as necessidades publicas podião fazer conhecer que alguns de seus arti-gos merecião ser reformados, e permittio a sua propria reforma. É pois anti-constitucional aquelle que não quer o progresso.

(Cruzão-se differentes apartes).Sr. presidente, parece-me que mostrei que a eleição por circulos e as incompatibilida-

des são duas medidas muitissimo convenientes, não só para garantir a liberdade do voto, como também para haver uma melhor representação parlamentar, e conjunctamente boa administração da justiça.

Igualmente mostrei que não havia offensa alguma á constituição na decretação destas medidas; e como eu entendo que a actual lei de eleições dá lugar a que o povo não possa votar livremente nos seus representantes, julgo que é mister reformal-a . E se este projecto, mesmo com alguns defeitos que tem, melhora muito a maneira de se eleger a representação nacional, como fiz ver, hei de votar por elle, e contra toda e qualquer emenda que tender a embaraçar a sua adopção. (Apoiados.) Senhores, vamos pouco a pouco progredindo; entendo que o governo, defendendo este projecto, está no progresso, e portanto hei de apoial-o; e todas as vezes que se puzer no regresso hei de combatel-o . (Risadas; Apoiados.) A actual lei de eleições não dá bastante garantia para uma escolha livre; o povo não póde mais soffrer imposições de listas de designados, é mister acabar com essas eleições, que não representão a vontade do paiz. É mister que a constituição seja uma realidade, e não o póde ser sem que o povo vote livremente em seus representantes. Voto a favor do projecto. (Muito bem, apoiados.)

A discussão fica adiada pela hora.O Sr. Presidente marca a ordem do dia e levanta a sessão.

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Referências

BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Anais da Câmara dos Deputados (1826-1974). Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 1823-.

BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Cronologia do Funcionamento da Câmara dos Deputados 1826/1992. Trabalho elaborado na Seção de Documentos Audiovisuais, da Coordenação de Arquivo, com pesquisa de Teresa de Jesus Teixeira – Brasília : Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 1992. 318 p.

BRASIL. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Organizações e Programas Ministeriais: Regime parlamentar no império. Rio de Janeiro, 1962. 2ª ed.

BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Segundo volume. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1893.

FRANCO, Afonso Arinos de Melo. A Câmara dos Deputados: síntese histórica. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 1976. 116 p., il.

NETO, Casimiro Pedro da. A construção da democracia: síntese histórica dos grandes momentos da Câmara dos Deputados, das Assembléias Nacionais Constituintes e do Congresso Nacional. Brasília. Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2003. 751 p.

NOGUEIRA, Octaciano. Constituições Brasileiras: 1824. Brasília, Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001. v. 1.

SOBRINHO, Barbosa Lima e Baleeiro, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1946. Brasília, Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001. v. 5.

Notas

1 Nota dos editores: Na transcrição dos documentos e pronunciamentos ficou respeitada a grafia original, constante dos Anais da Câmara dos Deputados.

2 O deputado Eduardo Ferreira França representou a Bahia nas legislaturas: de 1848 a 1851, dissolvida em 1849; de 1850 a 1852 como deputado suplente tomou assento no lugar do deputado Francisco Gonçalves Martins, depois Visconde de São Lourenço, nomeado senador em maio de 1851; e de 1853 a 1856, outra vez como deputado suplente tomou assento no lugar do deputado Zacarias de Góis e Vasconcelos a partir da sessão legislativa de 1854. Filho do célebre médico e filósofo Antônio Ferreira França e de D. Ana da Costa Barradas, nasceu em Salvador a 8 de junho de 1809 e faleceu a 11 de março de 1857 quando em viagem pela Europa. Era doutor em medicina pela Faculdade de Paris, onde foi apontado como o primeiro estudante do curso respectivo. Grande filósofo, pertencia a diversas associações literárias e deixou várias obras de sua autoria.

3 Nota dos editores: Na transcrição desse pronunciamento, realizado durante a Sessão Ordinária do dia 25 de agosto de 1855, ficou respeitada a grafia original, constante dos Anais da Câmara dos Deputados.

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Cúpulas do Congresso Nacional, 1975. Foto de Luis Humberto.

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Leituras• Antônio Octávio Cintra A origem é o sistema eleitoral• Paulo Roberto de Almeida O seu, o meu, o nosso dinheiro… Fronteiras da sociedade global

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Uns quarenta anos atrás, os estudiosos es-trangeiros, sobretudo norte-americanos, dedicados a pesquisar a história, a econo-

mia, a sociedade e a política brasileiras, passaram a conhecer-se como “brasilianistas”. Diferentemente de uma geração anterior, cons-tituída de ensaistas, o novo gru-po passou pela formação acadê-mica sistemática nos melhores centros universitários. Textos de grande interesse, quase sem-pre inovadores, produto, não raro, de cooperação com co-legas e instituições brasileiros, têm sido desde então publica-dos e têm, sem dúvida, ajudado a compreender o país.

Barry Ames pertence a uma segunda geração de brasilianistas – na primeira, teríamos, entre numerosos outros, os historia-dores Warren Dean e Thomas Skidmore, os cientistas polí-ticos Alfred Stepan e Philippe Schmitter e o economista Nathaniel Leff – e tem-se destacado por suas inter-pretações de nossa política, condensadas neste livro.

O foco de Ames são as relações entre os po-deres Executivo e Legislativo na Nova República, problemática merecedora, nos últimos quinze anos, de uma copiosa safra de trabalhos, inclusive teses de mestrado e doutorado.

Porém não há convergência nas interpreta-ções desses relacionamentos, senão visões opostas. Um grupo os vê como dificultando sobremodo a governança. Na lógica do sistema de separação de poderes, próprio do presidencialismo, esse grupo enfoca os grandes obstáculos à formação de maio-

rias sólidas no Congresso, donde a frustração do mandato transformador que, supõe-se, eleições diretas e plebiscitárias do presidente da República conferem. Para evitar a paralisia de decisões, é pre-ciso recurso quotidiano a instrumentos emergen-

ciais, como as medidas provisó-rias, que deslocam o Legislativo para um papel subalterno na tomada de decisões e deslegiti-mam a instituição.

Já outros autores apontam para características do sistema, que, não obstante os óbices denunciados pelos primeiros autores, permitem a tomada de decisões com ampla participa-ção congressual. Mencionam os chamados “poderes de agenda” presidencial, em matéria orça-mentária, por exemplo, e a cen-tralização dos trabalhos no âm-bito do próprio Legislativo, que assegura à maioria governamen-tal o controle sobre a pauta de decisões. Alguns, mais otimistas

ainda, vêem as relações entre os poderes como bas-tante cooperativas, até as medidas provisórias sen-do interpretadas como uma relação de delegação entre poderes, mais do que de usurpação.

A interpretação de Ames inscreve-se no pri-meiro grupo, o dos que vêem a chamada governa-bilidade como sabotada pelo desenho institucional do país. Diferentemente da corrente “otimista”, atribui ele, como o fazem outros autores, bastante força ao sistema eleitoral brasileiro. Este não induz a formação de partidos ideologicamente coesos e de comportamento disciplinado e não impede a fragmentação partidária, a qual torna imperativas

Barry ames Os Entraves da Democracia no Brasil Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003

A origem é o sistema eleitoral

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as coalizões, mas difíceis de costurar. Essa inter-pretação, centrada nos efeitos do sistema eleitoral, é conhecida na literatura como sendo a da “cone-xão eleitoral”.

Ames seria, entre os autores que se têm de-bruçado sobre as relações entre os poderes, um dos que com mais vigor defendem o diagnóstico da conexão eleitoral, à brasileira. Para ele, a votação nominal no plenário, da qual os novos estudos têm inferido haver disciplina partidária, é a cul-minância de negociação, tanto entre os poderes, quanto entre líderes e liderados. Esse processo leva a concessões, modificações das propostas, que a votação nomi-nal final não registra, concessões que podem mostrar muito maior força das bases em extrair benefí-cios das lideranças e do Executivo em troca de apoio do que o com-portamento de plenário, com obediência à indicação de voto pelo líder, deixa entrever. Ames também chama a atenção para o fenômeno das “não-decisões”, ou seja, o Executivo e seus líderes parlamentares deixam de apresen-tar uma proposta por considerá-la sem perspectiva de aprovação, após soltarem balões de ensaio sobre seu conteúdo ou em rodadas prévias de negociação. Assim, a res-trição da análise às votações nominais, para inferir relações de poder, pode estar deixando de fora fe-nômenos relevantes em que essas relações também estejam presentes.

Note-se, sobre estes aspectos, que não se pode liminarmente condenar que isso aconteça, pois a negociação congressual é parte do processo demo-crático. O problema é distingüir, nesse processo, o que sejam concessões que resultem em melhor atendimento ao interesse público e o que seja defor-

mação corporativa ou clientelista de uma proposta. Ames não procede, contudo, a essa discussão.

Que as bancadas votem segundo as indicações dos líderes não prova, de acordo com ele, serem os partidos fortes, disciplinados e hierárquicos. Ele os vê como, em boa medida, produtos do sistema eleitoral, que dá muita força ao candidato, em vez de ao seu partido. Portanto, quando um deputado vota de acordo com o líder, esse voto pode estar refletindo coisas diversas, não necessariamente a força e a disciplina partidária.

A aquiescência dos deputados ao encami-nhamento partidário pode vir de uma dura negociação entre eles, a liderança e o governo, e não da força partidária a que parecem submeter-se. Certos parlamen-tares têm maior independência eleitoral com relação ao partido do que outros, são bem votados em redutos tranqüilos e podem impor sua vontade. Outros de-pendem das graças partidárias para poder mostrar serviço a seus eleitores e não ficar inferiorizados em seus redutos diante dos ri-vais, às vezes do mesmo partido. Na equação explicativa de Ames,

inclui-se, por exemplo, o êxito dos parlamentares em ter suas emendas orçamentárias aprovadas e traduzidas em desembolsos do Executivo. O voto coerente pode provir, também, não da força do partido, mas da própria ideologia do deputado.

O autor não rejeita, liminarmente, propos-tas de mudança no sistema, objetos do que, entre nós, se tem chamado “reforma política”. Se vê um foco maior de problemas no sistema eleitoral, por que não mudá-lo? Contudo, o exame concreto de propostas, entre elas as que, com freqüência, têm sido aventadas nos últimos anos, de um sistema

Ames seria, entre os autores que se têm debruçado sobre as relações entre os poderes, um dos que com mais vigor

defendem o diagnóstico da conexão eleitoral, à brasileira. Para ele, a

votação nominal no plenário, da qual os novos estudos

têm inferido haver disciplina partidária, é a culminância

de negociação, tanto entre os poderes, quanto entre líderes e liderados

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eleitoral inspirado no germânico, de tipo misto, não lhe dá muito ânimo. As práticas de orçamento participativo que estudou lhe pareceram “um pas-so positivo no desenvolvimento de relações mais fortes de responsabilidade pública entre eleitores e políticos”. À semelhança, porém, do que ocorre com muitos colegas seus, essa parte de seu livro não é muito convincente, parecendo mais uma concessão ao reclamo de que é preciso haver pro-postas, feito o diagnóstico, do que expressão de firme adesão intelectual ao que sugere. Os cientis-tas políticos, diversamente de seus colegas econo-

mistas, parecem muito céticos quanto à capacida-de de alteração de instituições, pelo menos quanto à capacidade de sua ciência de dar mais solidez às propostas. Daí, o grande conformismo hoje pre-valecente entre muitos na profissão.

Antônio Octávio Cintra é cientista polí-tico, Doutor pelo Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT), consultor legislativo da Câmara dos Deputados, organizador e co-autor de O Sistema Político Brasileiro: uma Introdução, Editora Unesp/Fundação Adenauer.

Petrônio Portela, 1979. Foto de Luis Humberto.

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O brasileiro médio – cidadão eleitor, contri-buinte, trabalhador honesto, pai de família ou simples jovem iniciante na vida profis-

sional – não tem a menor idéia da parte exata de sua renda que é extraída, direta e indiretamente, pelo Leviatã estatal e de como ela vem sendo gasta por esse mesmo personagem, incontor-nável em sua vida cotidiana. Se ele pudesse aquilatar o grau de extorsão, mediante alguma mensuração menos amadorísti-ca, provavelmente já teria se re-voltado e conduzido uma des-sas ações de desobediência civil, à la Thoureau (sem no entanto conseguir impedir ou minimi-zar a ordenha fiscal).

Não, este livro não vai ajudar o brasileiro médio a identificar todas as formas de extorsão tributária, mas ele permite detectar, pelo menos, como e quanto dessa extração de recursos vem sendo gasta, muitas vezes de forma perdulá-ria e irresponsável. Trata-se de um “manual da boa gastança”, supondo-se que os responsáveis públicos se convençam dos desperdícios hoje pra-ticados e se decidam, efetivamente, a corrigir os abusos mais gritantes que ocorrem, todos os dias, com “o seu, o meu, o nosso dinheiro”, na expres-são do ex-presidente do BC, Armínio Fraga.

O lado prático deste livro começa, justamen-te, pela iniciativa do organizador de compilar, já na abertura, a lista das 91 medidas contidas nos capítulos 4 a 14, destinadas a reduzir ou pelo

menos controlar os gastos públicos indevidos ou excessivos. Na introdução, Marcos Mendes traz evidências cabais de como a redução e a maior eficiência do gasto público são condições mais do que necessárias para que o Brasil possa crescer.

Os custos da máquina pública ultrapassam em muito seus be-nefícios presumidos, se é que existem. Na verdade, despesas mal dirigidas passaram a “tra-var” – este é o verbo do mo-mento – o desenvolvimento do país. Mecanismos de poupança forçada (PIS, PASEP, FGTS) seriam mais bem empregados se administrados pelos seus próprios beneficiários. Empre-sas pequenas e médias são de-sestimuladas a crescer para não incorrer em tributos mais eleva-dos. Como o governo se apro-pria de 40% da renda, aparece na selva um novo personagem: o “caçador de renda”, perito em extrair dinheiro público para fins particulares. Daí o enorme investimento empresarial em campanhas eleitorais: o retorno é sempre garantido.

O livro é importante não apenas por medir, de modo preciso, onde estão e como são feitos os gastos públicos, mas também por dizer, de modo claro e objetivo, o que pode e deve ser feito para corrigir as distorções mais gritantes. Os autores escapam do eterno debate sobre o peso dos juros, concentrando-se nas despesas não-financeiras: estes gastos, excluindo a previdência, cresceram 60% em termos reais entre 1995 e 2004, ou seja,

marcos mendes (org.), prefácio de ruBens ricupero: Gasto Público Eficiente: 91 propostas para o desenvolvimento do Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, Instituto Fernand Braudel, 2006, 475 p. ISBN: 85-7475-128-6.

O seu, o meu, o nosso dinheiro…

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um crescimento anual de 4,8% (o dobro, pratica-mente, do crescimento do PIB).

No primeiro capítulo, Paulo Arvate e Ciro Biderman, organizadores de outro livro sobre o assunto, examinam as vantagens e desvantagens da intervenção do governo na economia. Está cla-ro que o governo pode criar externalidades posi-tivas – a falta de educação, por exemplo, explica 40% da desigualdade no Brasil –, mas ele também apresenta “falhas de governo”, o que no caso do Brasil é evidente. No capítulo 2, Cláudio Shikida e Ari Araújo tentam explicar “Por que o Estado cresce e qual seria o tamanho ótimo do Estado brasileiro?” e chegam à conclusão de que o ponto ‘ideal’ da carga fiscal, nas condi-ções brasileiras, não deveria ser superior a 32% do PIB. De 1964 a 2004, a carga fiscal no Brasil passou de 17% a 37% do PIB, a passo que na maior economia do planeta, os EUA, ela manteve-se, com poucas variações, em apro-ximadamente 29% do PIB (com encargos bem reduzidos na folha salarial). Como eles dizem, numa economia rent-seeking como a brasileira, “vale mais a pena ir a um jantar com autoridades (…) do que ficar em casa estudando para se tornar (…) mais eficiente” (p. 80).

Fabiana Rocha argumenta, no capítulo 3, que o ajuste fiscal não produz, necessariamente, uma redução do crescimento econômico, como parecem temer os desenvolvimentistas. Ao con-trário, ele pode impulsionar a economia, mas não da forma como tem se processado no Brasil, com aumento de impostos e corte de investimentos, em lugar de redução das despesas correntes. Estu-dos demonstram que “o impacto do investimento privado sobre o PIB é cerca de 2,6 vezes maior do que aquele apresentado pelos investimentos públi-

cos” (p. 104). Raul Velloso, a partir do capítulo 4, dá a partida às recomendações de ajuste fiscal via redução de despesas obrigatórias. Estas, em 2004, correspondiam a 91% das despesas não-financei-ras da União. Ele recomenda, entre outras medi-das, revisão da idade mínima para benefícios, des-vinculação da Previdência do salário-mínimo, fim dos aumentos automáticos dos gastos com saúde, focalização dos gastos sociais nos mais pobres e su-pervisão das verbas em saúde e educação. “O fato de se pagar um salário-mínimo aos idosos (…) de-sestimula a participação no sistema de previdência social dos mais jovens, de baixa renda” (p. 122).

Os gastos com pessoal são enfocados por Gilberto Guerzoni, no capítulo 5: eles eram de 4% do PIB em 2004, mas crescem inercialmen-te (em alguns casos, despudora-damente). Ele aponta para um possível descontrole no governo Lula, “seja devido a uma abor-dagem ‘sindical’ dada aos reajus-tes salariais, seja pela expansão, aparentemente sem critérios, da contratação de novos servidores”

(p. 137-138). A despesa dos poderes autônomos – Legislativo, Judiciário e o Ministério Público, este desejando tornar-se um verdadeiro poder – vem em seguida, em texto do próprio organizador. Marcos Mendes constata que o forte crescimento dos gastos desses poderes tem origem constitucio-nal, aproveitando-se, portanto, a burocracia desses serviços para aumentar a sua renda sem qualquer contrapartida à sociedade sob a forma de mais ou melhores serviços: entre 1985 e 2004, os gastos com o poder Judiciário federal cresceram dez ve-zes, sem que a justiça tenha ficado dez vezes mais rápida ou passasse a conceder acesso ampliado da população aos serviços do Judiciário na mesma proporção. Ele sugere um limite constitucional

De 1964 a 2004, a carga fiscal no Brasil passou de 17% a 37% do PIB, a passo que na maior economia do planeta,

os EUA, ela manteve-se, com poucas variações, em aproximadamente

29% do PIB

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aos gastos e o aprofundamento das reformas tra-balhista e sindical, algo duvidoso na presente con-juntura. Aliás, a Justiça do Trabalho é uma parti-cularidade “jabuticabal” que não existe na maior parte dos países, não tendo, tampouco, porque sobreviver no Brasil: ela é, em si, fonte de confli-tos, que poderiam estar sendo resolvidos pela via arbitral.

Os capítulos 7 a 9 tratam do relacionamento entre as instâncias federadas, ou seja, as transfe-rências intergovernamentais, a redistribuição de rendas petrolíferas e os consórcios intermunici-pais, cabendo aqui, claramente, uma redução des-sas transferências federais a estados e municípios, o reagrupamento de municípios sem viabilidade econômico-financeira, a redefinição completa da repartição dos royalties do petróleo (que acabam beneficiando exageradamente um número res-trito de municípios) e a plena responsabilização dos municípios na gestão dos recursos alocados a partir de cima. No capítulo 10, três dos maiores especialistas em finanças públicas do Brasil – Amir Khair, José Roberto Afonso e Weder de Oliveira – se perguntam se os avanços trazidos pela Lei de Responsabilidade Fiscal foram suficientes e se não seriam necessários outros aperfeiçoamentos. Eles sugerem criar condições institucionais e gerenciais para a implantação e plena aplicação da LRF, com a fixação de limites para o endividamento pú-blico (a começar pela União, que hoje não tem nenhum), a instalação de um Conselho de Ges-tão Fiscal (para evitar “contabilidade criativa”) e maior transparência e uniformização de conceitos e procedimentos. Este capítulo apresenta, com o subseqüente, muitas sugestões de mudanças, en-tre elas a criação de um banco de dados unificado e a imposição de tetos para gastos com pessoal e transferências.

O orçamento federal já foi, como se sabe, peça de ficção. Ele hoje está mais formalizado, mas ain-

da assim padece de diversos problemas, a come-çar pela sua tramitação congressual e pelo fato de que 92% dos recursos estão comprometidos com despesas rígidas ou de realização obrigatória. Os autores do capítulo 11, Edilberto Lima e Rogério Miranda, sugerem mecanismos para evitar a supe-restimativa ou a subestimativa das receitas, maior controle do Congresso sobre projetos de lei que geram novas despesas, mudanças na tramitação da peça orçamentária e a atualização da legislação de 1964, que rege a contabilidade e os orçamentos públicos. Alexandre Rocha trata, no capítulo 12, do Tribunal de Contas da União, cujo foco prin-cipal ainda se situa no combate à corrupção (sem necessariamente aperfeiçoar as atividades preven-tivas de controle gerencial). Ele propõe separar as atividades de auditoria, reduzindo sua “judiciali-zação” e burocratização, do julgamento das con-tas de administradores públicos. No capítulo se-guinte, Luiz Fernando Bandeira vê na extensão do pregão eletrônico para as compras governamentais um caminho para diminuir a corrupção e ampliar a concorrência.

No capítulo 14, finalmente, David Samuels analisa o alto custo das campanhas políticas no Brasil, decorrentes das regras eleitorais vigentes, com nítida predominância das contribuições de grandes empresas (e clara intenção econômico-fi-nanceira). Ele sugere a instituição de um sistema de eleições proporcionais de lista fechada (com uma parte de âmbito nacional), pouca ênfase no financiamento público das campanhas (incapaz de evitar o caixa 2), a redução do teto das con-tribuições privadas (para evitar doações milioná-rias), cooperação entre o TSE e a Receita Federal, reforço da penalização dos crimes de lavagem de dinheiro, o julgamento das contas dos candidatos previamente à sua diplomação, a extinção de pra-zos de prescrição e a aceleração dos processos judi-ciais envolvendo candidatos e políticos eleitos.

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Não há conclusões: elas já constavam da in-trodução, ou seja, a lista das 91 medidas de con-tenção ou de redução dos gastos públicos. Trata-se de enorme agenda de mudanças, para nenhum governo reformista botar defeito, sob a forma de providências essencialmente práticas e factíveis. Sem nenhuma retórica ou proposta salvacionista, os autores conseguem oferecer um programa com-pleto de reforma das despesas públicas no Brasil: na forma, no conteúdo, nos procedimentos de efe-

tivação das despesas e nos controles devidos. Se há algum sentido para a expressão “missão patriótica”, esta obra coletiva merece o título. Do contrário, esta e as futuras gerações continuarão amargando a falta de crescimento econômico. Mãos à obra!

Paulo Roberto de Almeida Doutor em Ciências Sociais, mestre em planeja-mento econômico e diplomata de carreira. www.pralmeida.org

Rischbieter deixa o Ministério da Fazenda, 1980. Foto de Luis Humberto.

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Este livro é uma tese, aprovada, aliás, com dis-tinção numa banca da USP. O livro também contém várias teses, sendo a mais importante

a que figura no seu subtítulo, ou seja, que estamos saindo do paradigma do Estado soberano para o da sociedade global. Pode-se admirar o livro, sua estrutura ideal enquanto tese acadêmica, sua perfeita cobertura dos mais importantes temas e problemas do direito internacional con-temporâneo, mas cabe uma ou duas ressalvas quanto ao novo paradigma proposto pelo autor.

A primeira ressalva seria de ordem propriamente conceitual. No sentido mais corriqueiro da palavra, o termo paradigma refe-re-se a um padrão ou modelo de algo, tangível ou intangível, mas sempre definido de modo explí-cito. No que se refere ao modelo proposto neste livro, não se sabe bem a qual tipo específico de nova configuração civilizacional corresponderia a “sociedade glo-bal”, uma vez que seus atributos restam indefinidos. Pode-se dizer, paradoxalmente, que ela não tem fronteiras, ou então que suas fron-teiras ainda são, justamente, as dos Estados nacio-nais. No sentido mais filosófico, ou “kuhniano”, da expressão, trata-se de um conjunto de crenças ou “teorias”, aceitas como verdadeiras, até serem des-bancadas por algum outro conjunto superior de ex-plicações racionais que, a partir de certo momento – usualmente definido como “revolução científica” –, passam a ser consideradas como a nova verda-de estabelecida. Em nenhum desses dois sentidos,

porém, o novo paradigma da sociedade global pro-posto por Matias parece já ter sido estabelecido e reconhecido no âmbito acadêmico.

Mas há igualmente um enorme problema de ordem prática: se eu quiser falar com a tal de socie-

dade global, telefono para quem? Para falar com chefes de Estado ou com o secretário-geral da ONU, sei que posso encontrar os números em diretórios, mas o telefone do novo paradigma ainda é desconhecido, na verda-de inexistente. Ou seja, ela não possui institucionalidade. Ao que tudo indica, continuará a ser assim no futuro previsível, por mais que a globalização empurre as “coisas” na direção desse novo paradigma. Os Estados nacionais continuarão a dar as cartas no jogo global, ainda que as regras de conduta e o substrato mesmo dos intercâmbios internacionais deixem a esfera do bilateralismo e se projetem, cada vez mais, nos planos multilateral e global.

Independentemente, po-rém, destas ressalvas feitas à “tese” principal de Matias, pode-se considerar que a “sociedade glo-bal” constitui, de fato, um bom arquétipo, ou modelo, de como foram e são importantes as transformações nos sistemas econômico e político internacional, desde o final da contestação “alter-nativa” – socialista ou outra – ao moderno regime democrático de mercado, para a conformação da nova ordem internacional, cujos contornos ainda não estão precisamente definidos. Essa tese aca-dêmica apresenta um pouco da nova arquitetura

eduardo felipe p. matias A Humanidade e suas Fronteiras: do Estado soberano à sociedade global (São Paulo: Paz e Terra, 2005, 556 p; ISBN: 85-219-0763-X)

Fronteiras da sociedade global

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naquilo que constitui a especialidade do autor: o Direito Internacional e os mecanismos de regula-ção e de cooperação existentes no mundo contem-porâneo. Desse ponto de vista, ele representa uma das melhores tentativas de síntese, já conhecidas na comunidade acadêmica brasileira, para apreen-der o que há de especificamente novo no cenário internacional com incidência sobre o campo do direito e das organizações internacionais.

A estrutura quadripartite da tese, presumivel-mente mantida no livro, é relativamente simples: uma parte introdutória trata do Estado soberano, isto é, das fronteiras tradicionais que dividem, desde Westfália, os Estados-nacionais reconheci-dos como tal, e reciprocamente, desde o século XVII. A primeira parte se ocupa da globalização em geral, na qual o subtítulo explici-ta seu objeto: “o papel da globali-zação e da revolução tecnológica na alteração do modelo do Es-tado soberano e na ascensão do modelo da sociedade global”. A segunda parte, “globalização ju-rídica”, se ocupa especificamente – e talvez repetitivamente – do papel da globa-lização jurídica e das organizações internacionais “na alteração do modelo do Estado soberano e na ascensão do modelo da sociedade global”. A parte final chega à “sociedade global”, definida como as novas fronteiras da humanidade. Uma conclusão de apenas três páginas e a bibliografia se estenden-do por mais de trinta páginas completam este im-ponente volume de doze capítulos bem escritos e abundantes remissões bibliográficas.

Os estudiosos da história do Direito encontra-rão, no primeiro capítulo, um resumo de como os teóricos da política – Maquiavel, por exemplo – e da ciência jurídica – Grotius, Bodin, entre outros – trataram da emergência e da afirmação do Estado

soberano a partir do Renascimento. O segundo ca-pítulo aprofunda a construção do modelo de Estado soberano, seus significados (poder e supremacia, por exemplo), assim como as distinções entre soberania de direito e de fato. Seguem-se as duas partes cen-trais, com quatro capítulos cada uma, descrevendo e discutindo as forças principais da globalização con-temporânea, a revolução tecnológica e o papel das empresas transnacionais, incluindo aqui os opera-dores financeiros. O interessante a observar em rela-ção ao tratamento dado pelo autor a esse fenômeno tão suscetível de receber abordagens dicotômicas é que ele integra de modo satisfatório análises de au-tores notoriamente contrários à globalização com

trabalhos de estudiosos bem mais favoráveis a esse processo.

Na parte da globalização ju-rídica – segunda parte da tese –, o foco do autor é posto na regu-lamentação internacional e no fortalecimento das organizações internacionais de cooperação e de integração. Ele constata, por exemplo, como as entidades mais notoriamente vinculadas a esses

processos, a OMC, o FMI e o Banco Mundial, ao mesmo tempo em que preservam certos atributos da tradicional soberania dos Estados, acabam por minar as bases do poder e do arbítrio alocado exclu-sivamente às políticas de base nacional. Paradoxal-mente, isto ocorre com o próprio consentimento dos Estados. De fato, como confirma o autor, per-manecer à margem ou retirar-se dessas instâncias de regulação trans ou supranacional representaria custos enormes, que poucos Estados estariam dis-postos a pagar, uma vez que os benefícios advindos da regulação internacional são patentes e visíveis, no comércio e nas transações financeiras.

A parte final contém o que o autor chama de “novo paradigma”, isto é, o estabelecimento de um

Essa tese acadêmica apresenta um pouco da nova arquitetura

naquilo que constitui a especialidade do autor: o Direito Internacional e os mecanismos de regulação e de cooperação existentes no mundo contemporâneo

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“novo contrato social” e de uma “nova soberania”. Os mecanismos para a criação dessas novas reali-dades são a cooperação e a interdependência entre os Estados, o que acaba resultando num novo tipo de contrato. Uma nova lex mercatoria, por exem-plo, se impõe, por via do método arbitral, à mar-gem e fora do alcance do poder dos Estados. No tratamento da questão da supranacionalidade, im-plícita em alguns modelos de integração, o autor acaba mencionando a Comunidade Andina, onde esse atributo, previsto originalmente nos tratados constitutivos, foi totalmente teórico e na prática inexistente. De todo modo, as bases do novo pacto estão postas, e elas corroem os fundamentos da soberania westfaliana.

Os motivos que levam os Estados a diluírem a sua própria soberania nas novas formas de or-ganização inter ou supra-estatais não derivam tanto da harmonia que existiria entre eles, como da necessidade de superar as fontes de conflito, substituindo-o pela cooperação. O cenário hoje se aproxima de uma soberania compartilhada, ou de uma “governança sem governo”, e o próprio direito deixa de ser, nas palavras de Celso Lafer, um “di-reito internacional de coexistência” – baseado em normas de mútua abstenção – para tornar-se um “direito internacional de cooperação”, com a missão de promover interesses comuns. Quais seriam, en-tão, os elementos que compõem o novo paradigma da “sociedade global”, segundo o autor deste livro?

Entre eles se situam a sociedade civil organi-zada, composta pelas ONGs, e os fenômenos de natureza trans ou supranacional já analisados no livro: as empresas multinacionais e os esquemas de integração econômica e política. Esses atores integram os novos regimes criados para regular a

cooperação entre os atores tradicionais, os Esta-dos soberanos (ma non troppo, poder-se-ia dizer). Como diz o autor, o novo sistema de governança global possui aspectos internacionais, transnacio-nais e supranacionais. Porém, a diluição da sobe-rania estatal trazida pela globalização econômica interessa sobremodo às empresas transnacionais, em especial as do setor financeiro.

Dois problemas permanecem para a nova “sociedade global”: ela não dispõe de um poder judiciário – já que a corte de Haia só trabalha sob convocação e aprovação dos Estados – e ela não

dispõe de um poder militar, ou policial, próprio, uma vez que a ONU nunca foi dotada, pelos Estados membros – a fortiori os cinco grandes do seu Conselho de Segurança – de forças armadas atuando sob um comando unifi-cado a seu serviço (sem mencio-nar o poder de veto, que é atri-buição individual de cada um dos cinco permanentes). Um terceiro problema seria a dimensão do desenvolvimento, uma vez que a

pobreza e a desigualdade continuam a caracterizar boa parte da humanidade. Paz, segurança, justiça e desenvolvimento parecem ser, de fato, os obstá-culos atuais à plena consecução da sociedade glo-bal almejada pelo idealismo jurídico. Não é cer-to que esses aspectos venham a ser resolvidos no plano global, pela “comunidade internacional”, como pretendem alguns; o mais provável é que eles ainda dependam, basicamente, da atuação dos Estados soberanos para sua resolução.

O autor acredita que “somente no momento em que os indivíduos de cada nação viessem a com-partilhar um amplo conjunto de valores e interesses, seria possível esperar que os conflitos hoje provoca-dos pela divisão do mundo em Estados pudessem

Os motivos que levam os Estados a diluírem a sua

própria soberania nas novas formas de organização inter ou supra-estatais não derivam tanto da

harmonia que existiria entre eles, como da necessidade de superar as fontes de conflito, substituindo-

o pela cooperação

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deixar de existir” e que o direito tem um papel fun-damental nesse processo de confluência de valores (p. 515). Examinando-se o estado atual do mundo e a “educação” das massas, tal perspectiva aparece como sumamente idealista. Mas ele também reco-nhece que a soberania pode ser uma das últimas salvaguardas para Estados fracos ou vulneráveis. Os princípios legitimadores da nova “sociedade global” deveriam ser os da democracia e das liberdades in-dividuais, algo ainda distante do modo de vida de milhões de indivíduos na face da terra.

Em sua conclusão, o autor frisa bem que a sociedade global não é uma so-ciedade sem Estados ou sem fronteiras. Ele também acredita que a riqueza global esteja se con-centrando e que a humanidade se torna cada vez mais desigual, daí sua afirmação segundo a qual o “bom combate é aquele em favor da justiça social na sociedade glo-bal” (p. 523). Essas “realidades”, no entanto, vêm sendo desmen-tidas por estudos empíricos so-lidamente embasados em dados sobre a distribuição de renda na dimensão individual (como por exemplo em diver-sos trabalhos de Xavier Sala-i-Martin). O autor diz lutar para que as “políticas adotadas por essas ins-tituições [que assumem parte da antiga soberania estatal] sejam não apenas justas, mas socialmente justas, para que a parte do planeta que pouco ou nada tem seja resgatada por aqueles que consegui-ram alcançar grau maior de desenvolvimento – seja por seu mérito próprio, seja por uma história de-sigual” (p. 523). Essa “nova utopia”, encarregada de efetuar a redução da exclusão social em escala global, estaria baseada na “idéia de fraternidade”.

Pode até ser que o autor tenha razão, mas o que a história e a experiência da cooperação internacio-

nal nos ensinam, justamente, é que depois de mais de meio século de ajuda oficial ao desenvolvimen-to, em especial aquele dirigido à África, o “resgate” pela assistência e pela ajuda financeira não foram e não são suficientes para retirar essas massas da miséria mais abjeta ou da simples pobreza. Apenas o crescimento econômico, em bases propriamente nacionais, tem sido capaz de fazê-lo, como ensi-nam os casos recentes da China e da Índia. Que a África e, em certa medida, a América Latina não tenham sido capazes de superar os aspectos mais pungentes da pobreza e da desigualdade não deve

ser visto como um fracasso da globalização ou das políticas eco-nômicas ditas “neoliberais”, como pretendem aqueles que militam na antiglobalização. O fato é que esses continentes ainda estão mui-to longae da “sociedade global” proclamada pelo autor. Isso por decisão própria, por insistirem nas chamadas “políticas soberanas” de desenvolvimento – ou no caso da África, por corrupção mesmo, que se traduz no fenômeno da falência dos Estados – não porque o capi-

talismo global tenha pretendido excluir esses conti-nentes de suas redes e fluxos integradores.

Em outros termos, a construção da “socieda-de global”, a tese principal defendida neste livro, parece ser, ainda, uma obra essencialmente depen-dente da vontade dos Estados nacionais, vale di-zer, da capacidade de ação de seus dirigentes, nem todos estadistas, para dizer o mínimo. Isto, obvia-mente, em nada diminui o interesse desta tese de doutorado para o avanço dos estudos de Direito Internacional no Brasil. Que sua tese principal seja aprofundada e debatida.

Paulo Roberto de Almeida

O autor frisa bem que a sociedade global não é uma sociedade sem Estados ou

sem fronteiras. Ele também acredita que a riqueza global

esteja se concentrando e que a humanidade se torna

cada vez mais desigual, daí sua afirmação segundo a qual o “bom combate é aquele em favor da justiça social na sociedade global”

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Foto de Luis Humberto.

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Catedral de Brasília, 1970. Foto de Luis Humberto.

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Perfil do Artista• Luis Humberto Fotografia: a reinvenção do real

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Luis Humberto

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Fotografia:

O homem, até prova em contrário, é o único ser vivo a ter consciência de sua finitude. Isso causa- lhe profunda angústia.

A preocupação em desaparecer, sem deixar rastros de sua passagem ou indícios de sua identidade ou provas palpáveis de seu tempo e de sua obra, incomoda-o.

Antes da fotografia, as imagens até então transferidas para diversos suportes sempre foram objetos de desconfiança, pois sendo feitas pela mão do homem, poderiam estar con-taminadas por uma interpretação interessada por razões várias, nem sempre muito honorá-veis, capazes de dar contornos pouco verdadeiros ao que deveria ser documental.

A fotografia vem socorrer o homem na sua impotência diante do tempo que escorria bem a sua frente, sem que pudesse detê- lo ou retardá-lo.

O registro tão fiel quanto possível do real, a retenção, mesmo que ilusória, do tempo e a cons-trução de uma memória fizeram da fotografia um importante dado cultural de nosso tempo.

Sua invenção, ao ser solução, criou outras questões, trazendo à tona algumas ambigüidades.Seria a fotografia uma reprodução fiel do real? Ela é sempre um fragmento da realidade

escolhido por alguém.

a reinvenção do real

Setor Comercial Sul, Brasília, 1976. Foto de Luis Humberto.

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Perfil do Artista

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Se por um lado sua natureza fragmentária lhe retira a confiabilidade como instrumento comprobatório do real, é, também, o que determina sua condição de obra autoral, pois decor-

re de escolhas sobre o que e como destacar de uma realidade mais ampla.O recorte do real, a partir da decisão íntima e única do fotógrafo,

marca a presença de uma visão pessoal quando, deliberadamente, determi-na os contornos da imagem a serem delimitados, o momento e sob que luz ela deve ser produzida, reatribui novos valores simbólicos aos elementos em cena, organizando-os de acordo com suas intenções, dando- lhes peso e leitura diferentes daqueles que percebemos com o nosso olhar sem inter-mediações. Tudo isso pressupõe a existência de uma linguagem usada para expressar conteúdos.

A fotografia é uma transcrição arbitrária e interpretativa do real, nas-cida do entendimento de mundo de quem fotografa, de seus valores e de seus valores éticos.

A presença de um processo tecnológico, intermediando os resultados, não desqualifica a fotografia como forma de expressão humana, pois para chegarmos a uma imagem final, transitamos por um extenso percurso que envolve, necessariamente, escolhas e decisões, além da presença de uma sensibilidade ativa, informada e afetada pelas circunstâncias de momento.

Por fora das diversas decisões ocorridas no transcorrer de sua gênese, a fotografia é – sempre – uma obra autoral, não sendo considerada, para isso, a presença de uma qualidade incomum, mas a intencionalidade na organização de uma linguagem.

Só o tempo poderá levar à percepção da existência de um caráter distinto de uma foto-grafia e torná-la um referencial.

Os julgamentos produzidos por sua contemporaneidade estão, muitas vezes, contami-nados por motivações menores que impedem a justeza de seu acolhimento ou de sua rejeição, como sucede com qualquer obra que se pretenda possuidora de qualidades expressivas.

No nascedouro, como qualquer outro processo tecnológico, a fotografia enfrentou pro-blemas que a levaram a fronteiras muito especiais.

O registro do real, via instrumentos ópticos sobre base fotossensível, era possível, mas fotografar o quê?

Câmeras pesadas, sempre apoiadas em tripés, somadas a filmes lentos e objetivas pouco luminosas, que obrigavam a tempos de exposição muito longos, mantinham muito baixa a mobilidade do fotógrafo. Junte-se a isso o desconhecimento de uma linguagem própria.

Inaugurava-se um conjunto de meios destinados a produzir imagens retiradas do real. Mas de que modo elas poderiam manifestar-se de uma forma original?

A referência visual mais próxima era a pintura, já que oferecia as temáticas que casavam com os anseios do homem de construir memória e por não terem movimento, ou tê-lo controlado, e atendiam aos limites determinados pela tecnologia disponível: os retratos e as paisagens.

A pintura tornou-se uma fonte inspiradora para a fotografia que, em troca, começava a libe-rá-la do compromisso restritivo de reproduzir o real. Além do mais, era perversamente buscada

A presença de um processo tecnológico, intermediando

os resultados, não desqualifica a fotografia, como forma de expressão

humana, pois para chegaremos a uma imagem

final, transitamos por um extenso percurso que

envolve, necessariamente, escolhas e decisões,

além da presença de um sensibilidade ativa,

informada e afetada pelas circunstâncias de momento

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pela fotografia que, repetindo a pintura, procurava ingressar, mesmo que pelo abastardamento, no universo exclusivo da arte.

Ao aproximar- se cada vez mais da reprodução nítida do real, a insatisfação por parte dos fotógrafos foi ganhando corpo.

Procurava-se a diluição para parecer pintura, uma forma de mostrar descontentamento com os papéis meramente técnicos que lhes eram atribuídos, ao mesmo tempo em que, de algum modo, eram satisfeitas suas aspirações de ter acesso no distinto espaço da arte.

Todavia, as restrições colocadas pelos limites tecnológicos iniciais da fotografia não sig-nificaram uma interdição do seu processo de criação. Contribuições extraordinárias foram dadas. Apesar de todas as estreitas fronteiras com a evolução tecnológica, apareceram câme-ras menores, objetivas mais luminosas e filmes mais sensíveis, trazendo mais mobilidade e alargando os horizontes de criação. A câmera passou a ser um prolongamento do olhar.

As linguagens intermediadas por processos tecnológicos são necessariamente afetadas pelas transformações desses processos.

Mas à fotografia sempre se atribui um pecado original: o fato dela decorrer de um neces-sário referente real. Isso tem sido usado para desqualificá-la como possibilidade expressiva.

Por outro lado, o reconhecimento de sua natureza fragmentária retira- lhe a confiabili-dade como testemunha inequívoca de um acontecimento, pois permite, no ato do registro, a supressão de dados fundamentais, o que comprometeria seu valor documental.

Todavia, essa mesma fragmentação é a origem de um potencial inesgotável para a ob-tenção de imagens que, pinçadas de uma mesma realidade, podem, por seu poder de síntese, proporcionar visões reveladoras e surpreendentes.

A fotografia é a transcrição arbitrária do real a partir de uma decisão individual, do olhar de um autor mobilizado por suas indagações que, acumpliciado com a luz e interme-diado por aparatos e processos tecnológicos, consigna suas percepções de vida por meio de uma linguagem deliberadamente ordenada.

São essas questões – a contigüidade com o real, a fragmentação e a intermediação tecnológica – que, entendidas de modo apressado e primário, conduzem a uma sucessão

interminável de equívocos, induzindo à interdição do acesso da fotografia ao uni-verso da criação, no qual, queiram ou não, ela se in-clui de modo especial.

Se a fotografia nasceu para um determinado fim, o homem reformou- a, fazen-do dela um instrumento de investigação das coisas à sua volta e de si próprio. Aí, en-tão, passamos a falar de algo bem mais complexo e gene-Pirenópolis - GO, 2001. Foto de Luis Humberto.

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Perfil do Artista

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roso, muito além de um simples fenômeno físico-químico destinado a produzir imagens. Pas-samos a falar do homem apropriando- se de suas invenções para ampliar seu acervo sensível.

Para que se instale em nós algum tipo de processo de criação, é preciso haver inquieta-ção, insatisfação e curiosidade, não só para buscarmos resultados inovadores, mas também verificarmos nossa capacidade de transpor limites.

Criar significa arriscar, experimentar e, por meio das vivências daí advindas, construir um acervo de referências que nos conduzirão às pretendidas transformações.

A criação busca o novo, e este tem que nascer a partir do reconhecimento de uma tradi-ção formada pelos que nos antecederam, nos tocaram e influenciaram. A tradição não traz, em si, nenhum compromisso com a repetição, mas oferece indicativos sobre a existência de um espírito que atravessa a história, dando-nos balizamentos para que possamos incluir-nos nesta mesma história com uma contribuição original.

O processo de criação é algo único para cada indivíduo que se modifica no tempo, em razão da mutabilidade das circunstâncias que vão afetá- lo de algum modo, fazendo- o reconsiderar – o tempo todo – seu modo de ver e sentir. A criação se referencia em um pro-cesso cultural mais amplo, mas também é auto-referente na medida em que, depuradas as sucessivas experiências, irá deixar orientações para rumos a serem renovados.

Criar não é um ato mágico, mas uma combinação de vontade, descoberta, ousadia, decisão e, também, de reflexão e autocrítica. Não existem questões encerradas. Sempre é possível ter-se uma nova visão dentro de um tema aparentemente esgotado.

Cada indivíduo carrega um universo sensível particular e cada tempo caracteriza-se por restrições e estímulos diferentes que irão ser assimilados de um modo especial por cada um.

Somos nossas memórias. Decorremos das heranças daqueles que nos antecederam, de influências e referências que nos tocaram.

Influência é um encontro atemporal de sensibilidades, de identidades que estimula, ilumina e muda nosso rumo. Não implica repetição, mas confirmação de percepções em-

Brasília, 1971. Foto de Luis Humberto.

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brionárias, que podem ser formadoras ou confirmadoras quando apóiam algo que já enca-minhamos e aumentam nossa segurança em prosseguir.

As influências formadoras dão orientação e estímulo para descobrirmos nossa própria cara a partir delas. Ao ser por nós recebidas, a influências fazem-nos perceber nosso perten-cimento a uma irmandade, até então não sabida, retirando-nos da solidão.

As referências são as produções reconhecidas como de alta qualidade, admiradas, mas sem aquele dado reorientador quando descobrimos uma identidade até então obscurecida pela névoa.

O artista sério não cria para encantar platéias, cria para se descobrir. Introduz uma per-cepção original e só sua ao próprio trabalho. Descobre frestas, fissuras no óbvio, agregando

ao seu produto uma aura extremamente particular, e oferece esses momentos à partilha com aqueles que estiverem em uma mesma sintonia. Não podemos esperar acolhimento unâni-me, mas apenas que haja, por parte de alguns, uma disponibilidade sensível. Não saberemos quem serão eles, nem em que tempo isso poderá ocorrer. De algum modo constituímos um legado sem sabermos quem serão os herdeiros.

A criação é uma aventura ambígua, de descobertas, escolhas e descartes, de sofrimento e prazer. Ao iniciá-la, não sabemos quais serão os resultados, ou, até mesmo, a que limites poderemos chegar. Certamente, sempre que atingirmos novas fronteiras iremos querer ul-trapassá-las; assim, toda a história irá se repetir indefinidamente.

A presença da curiosidade e da insatisfação como traços de nossa natureza alimentam a vitalidade de nossos caminhos para a criação.

Como cada um de nós é um universo plural, a humanidade é uma galáxia de diver-sidades, dentro da qual estamos nós, convivendo com diferenças profundas que temos de aceitar, aprender a respeitar e a apreciar.

Não somos a referência universal no nosso ofício e não podemos julgar os outros a partir dos nossos limites. Essa pluralidade, longe de ser um complicador, é, na verdade, extraordinária riqueza que nos afeta e transforma.

Gabriel e Nena. Brasília, 1982. Foto de Luis Humberto.

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Perfil do Artista

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Para cada processo de criação, haverá sempre uma sucessão, nem sempre fácil, de deci-sões a serem tomadas, pois implicam em rupturas e todas as conseqüências daí decorrentes. Não são momentos só de prazer, mas também de angústia, ousadia e medo.

O medo pressupõe uma expectativa em torno de possibilidades funestas, mesmo quenão haja razões ponderáveis para isso. O medo é, por natureza, restritivo, impede de tentar criar e transformar. Somos toma-

dos por fantasmas imprecisos, habitantes de nossas escuras cavernas.Abortivo de qualquer sinal de vida, o medo escuda-se em mil e um pretextos mostrados

como prudência, bom-senso ou coisas do gênero, mas nem sempre é admitido como algo da natureza humana, indesejável, mas a ser enfrentado com a necessária decisão.

O processo de criação conduz- nos a universos de dimensões mais generosas. Não se fundamenta em uma pirotecnia que procura o espanto e a reverência a uma pretensa origi-nalidade, mas na inquietação verdadeira, capaz de nos levar ao encontro do novo, algo que nos satisfaça, pelo menos momentaneamente, até que a insatisfação se instale outra vez.

A fotografia é identidade e memória de emoções e afetos vividos. É um imenso acervo revelador de referências sobre o homem.

Um caleidoscópio sempre ampliado por visões múltiplas constantemente renovadas.Um testemunho da história pendular da humanidade, oscilando entre a sua capacidade

generosa de criar beleza e o gosto ancestral pelo sangue.

Luis Humberto é fotógrafo e professor universitário.

Page 270: Revista Plenarium - Reforma Política

O terceiro número da coleção Parlamento em Teses, da Editora

Plenarium, da Câmara dos Deputados, traz um estudo sobre

o tema das coligações eleitorais. A pesquisa de Vivaldo de

Sousa, apresentada como dissertação de mestrado, foi pioneira e esti-

mulou outros estudos sobre o tema na Universidade de Brasília, onde

foi defendida.

Como lembra o professor David Fleischer, pela primeira vez se anali-

sou a relação entre as eleições majoritárias (para governador) e as pro-

porcionais (para deputado federal e estadual) nos estados, durante o

regime democrático de 1946 a 1964.

“Um excelente guia para aqueles que pretendem se inteirar dos

caminhos percorridos pela teoria da democracia moderna até nos-

sos dias”. Assim a professora Maria Francisca Pinheiro Coelho definiu o

trabalho “Democracia enclausurada: um debate crítico sobre a demo-

cracia representativa contemporânea”, do consultor legislativo Manoel

Adam Lacayo Valente, lançado pela coleção Parlamento em Teses, da

Editora Plenarium.

O livro é resultado de dissertação de mestrado de Manoel Adam e,

ainda segundo Maria Francisca, “combina e direciona argumentos para

um modelo de democracia que preserve a autonomia do cidadão e sua

inserção em fóruns de decisões compartilhadas na esfera pública da

formação da opinião e da vontade, constituída pela sociedade civil”.

Coleção PARLAMENTO EM TESES

As Coligações Partidárias:

Período 1986-94 versus 1954-62

Vivaldo de Sousa

3

Brasília - 2006

Fundamentos da ordem republicana: repensando o Pacto de Campos SalesAna Luiza

Backes

Primeiro número:A coleção Parlamento em Teses destina-se à

publicação de trabalhos acadêmicos de mérito

reconhecido, cujo tema seja o sistema político.

Publicam-se os trabalhos recomendados pelo

Conselho Editorial da Câmara dos Deputados.

Com essa iniciativa a Câmara pretende estimular

a investigação científica tanto da realidade

presente do nosso Parlamento, quanto da

sua formação e desempenho históricos.

Novos livros abordam coligações partidárias e a democracia contemporânea

Page 271: Revista Plenarium - Reforma Política

Raymundo PadilhaPaulo Brill (organizador)

Coleção PERFIS PARLAMENTARES

Doutel de AndradeLuiz Augusto Gollo

Outros lançamentos da Câmara dos Deputados

Histórico das Comissões Permanentes da Câmara dos DeputadosDilsson Emílio Brusco (organizador)

Comissões Parlamentares de Inquérito – 1946 a 2002Maria Laura CoutinhoMaria Inês de B. LinsDilsson Emílio Brusco

Legislação da MulherCâmara dos Deputados

Política de Preços Públicos do BrasilCésar MattosEduardo FernandezFrancisco de SousaLuciana Teixeira

Seminário Internacional:TV Digital – Futuro e CidadaniaConselho de Altos Estudos e Avaliação Tecnológica

A Dívida Pública BrasileiraConselho de Altos Estudos e Avaliação Tecnológica

Tecnologias da Informação e Sociedade: o Panorama BrasileiroClaudio NazarenoElizabeth Veloso BocchinoFábio Luis MendesJosé de Sousa Paz Filho

Anuário Estatístico do Processo Legislativo da Câmara dos Deputados – 2005Em breve: Anuário Estatístico do Processo Legislativo – 2006

Todos esses títulos e outros estão disponíveis em versão eletrônica no seguinte endereço:

http://www2.camara.gov.br/internet/publicacoes/edicoes

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