revista papeis v15 n29

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Revista Papeis

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)

EDITORA UFMS

Universidade Federal de Mato Grosso do SulEstádio Morenão, Portão 14, Caixa Postal 549Campo Grande, MS.Fone: (67) 3345-7200e-mail: [email protected]

CORRESPONDÊNCIA EDITORIAL

Universidade Federal de Mato Grosso do SulCentro de Ciências Humanas e SociaisPapéis: Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de LinguagensPrograma de Pós-Graduação em Estudos de LinguagensCidade Universitária, Cx. Postal 549, UNIDADE 4, Campo Grande, MS.Fone: (67) 3345-7634e-mail: [email protected]

Papéis : Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens / Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. – v. 1, n. 1 (1997)- . Campo Grande, MS : A Universidade, 1997- . v. : il. ; 23 cm.

SemestralSubtítulo anterior: revista de Letras.ISSN 1517-9257

1. Literatura - Periódicos. 2. Lingüística - Periódicos. 3. Semiótica - Periódicos. I. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

CDD (22)-805

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Linguística e Semiótica

Papéis

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SULCENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAISPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS

CÂMARA EDITORIALEluiza Bortolotto Ghizzi – Geraldo Vicente Martins – Maria Luceli Faria Batistote – Raimunda Madalena Araújo Maeda – Willie Macedo de Almeida

CONSELHO CIENTÍFICOÁlvaro Cardoso Gomes [UNIMARCO] – Benjamin Abdala Junior [FFLCH/USP] – Clotilde Azevedo Almeida Murakawa [FCLAR-UNESP] – Daniel Abrão [UEMS] – Eduardo de Oliveira Elias [UNAES] - Gladis Maria de Barcellos Almeida [UFSCAR] – Jacyra Andrade Mota [UFBA] – Jaime Ginsburg [USP] – Luiz Carlos Santos Simon [UEL] – Luiz Gonzaga Marchezan [FCLAR-UNESP] – Márcia Valéria Zamboni Gobbi [FCLAR-UNESP] – Maria Cândida Trindade Costa de Seabra [UFMG] – Marilene Weinhardt [UFPR] – Richard Perassi Luiz de Sousa [UFSC] - Silvia Maria Azevedo [FCL-ASSIS/UNESP] – Thomas Bonnici [UEM] – Vanderci de Andrade Aguilera [UEL].

REITORACélia Maria Silva Correa Oliveira

VICE-REITORJoão Ricardo Filgueiras Tognini

DIRETORA DE CENTROÉlcia Esnarriaga de Arruda

COORDENADOR DO PROGRAMADE PÓS-GRADUAÇÃOGeraldo Vicente Martins

EDITOR CIENTÍFICOGeraldo Vicente Martins

EDITORA ADJUNTA DESTA EDIÇÃOEluiza Bortolotto Ghizzi

IMAGEM DE CAPAVera Lúcia Penzo FernandesSombras I, 2010Fotografia digital

PROJETO GRÁFICOEluiza Bortolotto Ghizzi

REVISÃOA revisão linguística e ortográfica é de responsabilidade de Geraldo Vicente Martins e Eluiza Bortolotto Ghizzi

TRADUÇÃO PARA O INGLÊS DO TEXTO DA ORELHAMarta Banducci Rahe

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Sumário

Apresentação

Linguística e Semiótica

NOS PERCURSOS DA SEMIÓTICA: UMA LEITURA POSSÍVELWillie Macedo de Almeida

O NASCIMENTO DE UM HERÓI BRASILEIRO: ABORDAGEM DA SEMIÓTICA APLICADA A UMA CAPA DA REVISTA VEJALuciana Garcia Gabas Coelho e Maria Luceli Faria Batistote

GUSTAVO ROSA E A FIGURA HUMANA FEMININA: DA LAVADEIRA À MULHER PÊRAJanice de Campos Ferra

SIMULACROS DA JUVENTUDE EM LETRAS DE MÚSICA DE RENATO RUSSO”Geraldo Vicente Martins

O FUTEBOL-ARTE BRASILEIRO: ASPECTOS DISCURSIVOS DA CONSTITUIÇÃO E LEGITIMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE NACIONALAriane Rodrigues de Oliveira e Ana Carolina Vilela-Ardenghi

A PROMESSA DIVINA PARA A VIDA PRESENTE. A PROMESSA BÍBLICA DE PROTEÇÃO: UMA ANÁLISE SEMIÓTICA BÍBLICAFlavia Melville Paiva

CAMARGO GUARNIERI E SUA LINGUAGEM MUSICAL: APRO-PRIAÇÕES PESSOAIS DA ESTÉTICA NACIONALISTA PROPOSTA Marcelo Fernandes Pereira e Edelton Gloeden

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Apresentação

A construção de uma revista como a Papéis, que não é pauta-da por temas, mas por áreas, resulta quase que invariavelmente em diversidade de conteúdos e de procedimentos de pesquisa, como já se reconheceu, por diversas vezes, nesta mesma seção em edições an-teriores. Talvez por isso, consideramos dignos de nota, em cada edi-ção, os desvios e as coincidências. Neste número, relativo ao primeiro semestre de 2011, cuja chamada privilegiou a área de Lingüística e Semiótica, os artigos foram “desviados” todos para a semiótica, assim como, em números anteriores, verificamos grande incidência de arti-gos dedicados à Linguística. Ademais, dentre os artigos ora publicados, temos algumas coincidências, como a que reúne aqui três textos sobre música, sendo dois deles dedicados a análises de letras de música e um terceiro, à abordagem de aspectos relacionados à linguagem e à estética em músicas de um importante compositor brasileiro. Também temos quatro artigos que permitem ligações conceituais por meio das idéias de nacional/brasileiro, dado que tratam de nacionalismo na mú-sica, da identidade nacional no futebol, da figura do herói nacional e da representação da mulher brasileira. Por fim, há a coincidência de termos quatro dos sete artigos com aplicação de conceitos da semiótica discursiva, campo de estudos do discurso iniciado por A.J. Greimas, o que oferece ao leitor o contato com os diferentes usos dessa semiótica adotados pelos autores.

O primeiro artigo a analisar letra de música, “Nos percursos da semiótica: uma leitura possível”, de Willie Macedo de Almeida, estuda a letra da canção “Escolho ser fiel”, de Estevão Queiroga, interpreta-da por Alessandra Samadello no álbum Impossível Dizer, lançado em 2011. Para a análise são aplicados conceitos da semiótica discursiva. “Simulacros da juventude em letras de música de Renato Russo”, de Geraldo Vicente Martins, também à luz dos fundamentos teóricos da semiótica discursiva, analisa três letras de música do cantor e composi-

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tor Renato Russo, “buscando verificar, nelas, a presença de simulacros do enunciador e do enunciatário e sua importância para a constituição das concepções a respeito da juventude na obra desse artista”. O tercei-ro texto sobre música é “Camargo Guarnieri e sua linguagem musical: apropriações pessoais da estética nacionalista proposta por Mário de Andrade”, de Marcelo Fernandes Pereira e Edelton Gloeden, em que se “propõe um breve relato sobre a formação técnico-composicional de Camargo Guarnieri (1907 – 1993), de alguns aspectos centrais de sua produção e de seus princípios estéticos vinculados ao modernismo brasileiro e influenciados pelo nacionalismo de Mário de Andrade”. Por meio da bibliografia referencial sobre o assunto e, também, de resulta-dos de análises de obras características da produção do compositor, o artigo promove uma discussão sobre influências, ao mesmo tempo, de uma formação neoclássica e do projeto marioandradiano de naciona-lismo, materializados na música de Guarnieri.

Questões nacionais relacionadas com outras, mais universais, tam-bém estão presentes em “O nascimento de um herói brasileiro: abor-dagem da semiótica aplicada a uma capa da revista Veja”, de Luciana Garcia Gabas Coelho e Maria Luceli Faria Batistote, artigo que parte do conceito de “mito” para estudar a figura do “herói”. A análise, elabora-da com base na semiótica discursiva, examina essa figura em um perso-nagem da recente produção fílmica brasileira: “capitão Nascimento”, o protagonista do filme Tropa de Elite. O estudo toma como corpus uma capa da revista Veja, publicada em 10 de novembro de 2010, e aborda os conceitos de semissimbolismo, figurativização e intertextualidade.

Outra análise de representação que aponta signos de brasilidade é apresentada no artigo “Gustavo Rosa e a figura humana feminina: da Lavadeira à Mulher Pêra”, de Janice de Campos Ferra. O texto foi elaborado após a dissertação de mestrado (homônima) da autora, que teve como objeto de estudo a representação da mulher na obra do pintor brasileiro. A autora analisou um grupo de 20 pinturas desse ar-tista, datadas do período de 1965 a 2009, tendo recorrido para isso a conceitos da semiótica da imagem de extração peirciana, a textos de história da arte e sobre a obra de Gustavo Rosa. No artigo são citadas al-gumas dessas análises. As conclusões da autora apontam relações entre a obra desse artista e as de mestres do passado, bem como regularida-

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des internas à sua obra, que revelam um modo próprio do artista pintar e de representar a mulher brasileira.

“O futebol-arte brasileiro: aspectos discursivos da constituição e legitimação de uma identidade nacional”, de Ariane Rodrigues de Oli-veira e Ana Carolina Vilela-Ardenghi, é um texto que apresenta resulta-dos de estudo das autoras sobre o “fenômeno da constituição/legitima-ção de uma identidade nacional” e sobre “como o futebol, no caso do Brasil, se relaciona com a definição desta identidade nacional. Usam para isso o quadro teórico-metodológico da escola francesa de Análise do Discurso (AD) e tomam como corpus um grupo de matérias esporti-vas. Os resultados relacionam identidade nacional construída discursi-vamente, “futebol-arte” e “futebol de resultados”.

O artigo “A promessa divina para a vida presente. A promessa bí-blica de proteção: uma análise semiótica bíblica”, de Flavia Melville Paiva, liga-se aos artigos que põe em curso a semiótica discursiva. Nesse caso, a autora faz uma aplicação dos três níveis de análise propostos pela semiótica discursiva, para tratar da construção do sentido de um texto clássico; mais especificamente, o texto bíblico “Salmos 23”. O tema central da análise é o da “Proteção quando em conjunção com o divino”, que permite discutir conceitos importantes relacionados às nossas crenças religiosas.

Além das relações que apontamos, esperamos que nossos leitores possam encontrar outras e, por meio delas, participar do fluxo de cor-relações oportunizado pelo fazer científico dos autores que ora apre-sentamos. Convidamos a todos os leitores, portanto, para que usufruam dos percursos em aberto por mais esta edição da Papéis.

Geraldo Vicente Martins

Eluiza Bortolotto Ghizzi

Editores da área de Lingüística e Semiótica

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Linguística e Semiótica[artigos]

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Nos percursos da semiótica: uma leitura possívelIn the processes of semiotics: a possible reading

Willie Macedo de AlmeidaMestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens da

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,Campo Grande – MS.

[email protected]

Resumo: Este artigo consiste na análise de uma letra de música, na perspec-tiva da semiótica discursiva. O trabalho é produto de uma tentativa de aplicação dos pressupostos teóricos desse campo de estudos do discurso, iniciado por A.J. Greimas. Nele, aparecem sucintamente delineados os conceitos de semiótica, texto, plano do conteúdo, percurso gerativo de sentido, estruturas fundamentais, narrativas e discursivas. Seu objetivo é evidenciar, a partir dos percursos figurativos e temáticos, as possibilida-des interpretativas sugeridas no texto selecionado e, a partir de então, construir uma leitura possível.

Palavras-chave: Semiótica. Discurso. Enunciação.

Abstract: This article is a music lyric analysis using a discursive semiotic per-spective. This work is a result of an application tentative of theoretical conception of this studies area of discourse, developed by A. J. Greimas. In this article, the concepts of semiotics, text, level of content, meaning gen-erative process, fundamental, narrative and discursive structures appear briefly outlined. Its objective is to point out, throughout figurative and thematic processes, interpretative possibilities suggested in the selected text and, therefore, construct a possible reading.

Keywords: Semiotics. Discourse. Enunciation.

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Introdução

Este artigo consiste na análise de uma letra da música, na perspec-tiva da semiótica discursiva. Nele, examinam-se os procedimentos de organização textual a fim de evidenciar as possibilidades interpretativas sugeridas no texto selecionado e, a partir de então, construir uma lei-tura possível.

Para redigi-lo, primeiramente foram retomadas leituras básicas para situar as concepções teóricas da semiótica discursiva e seus proce-dimentos de análise. Depois, foi selecionado um texto para ser analisa-do nessa perspectiva. Em seguida, foi verificado o percurso gerativo de sentido do texto e os recursos enunciativos utilizados para dizer o que diz da forma como diz.

Espera-se que esta modesta empreitada seja útil para elucidar os conceitos apresentados e para auxiliar na compreensão do sentido identificado pela análise do texto selecionado.

Pressupostos teóricos

Para situar a perspectiva da semiótica discursiva, a partir da qual foi desenvolvida a análise, é necessário retomar os conceitos que a embasam.

A semiótica discursiva integra o grupo de disciplinas que se interes-sa pelo estudo do texto e dos sentidos nele construídos. Ela traz em si a herança conceitual deixada pelo suíço Ferdinand de Saussure, em seus estudos semiológicos e linguísticos, e encontra delineamento na teoria do lituano Algirdas Julien Greimas. Por seu viés linguístico, a semiótica dis-cursiva se distingue das demais semióticas “desvinculada[s] de qualquer ancoragem nas formas linguageiras” (BERTRAND, 2003, p. 14).

Na perspectiva discursiva ou greimasiana, a semiótica deve exami-nar os procedimentos da organização textual e, ao mesmo tempo, os mecanismos enunciativos de produção e recepção do texto. Em outras palavras, ela procura refletir acerca das condições pelas quais seja pos-sível um estudo científico da significação e define-se como uma ciência cujo objeto de estudos é o sentido do texto (cf. BARROS, 2003, p.187), ou ainda, a geração do sentido.

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O texto, por sua vez, é entendido como um objeto de significação e como um objeto de comunicação, que compreende duas esferas, uma linguístico-discursiva e outra sócio-histórica.

O texto se organiza e produz sentidos, como um objeto de significação, e também se constrói na relação com os demais objetos culturais, pois está inserido em uma sociedade, em um dado momento histórico e é determinado por formações ideológicas específicas, como um objeto de comunicação. (BARROS, 2003, p. 188)

Para a análise semiótica, um texto pode se apresentar como ver-bal, não-verbal (gestual, visual) ou sincrético (misto). Nessa análise, a semiótica preocupa-se em desvendar o “parecer do sentido” (cf. BER-TRAND 2003, p. 11), ou seja, ela não trabalha com a verdade, mas como o parecer verdadeiro.

A Semiótica não se interessa pela verdade dos enunciados, mas por sua veridicção, isto é, pelos efeitos de sentido de verdade com os quais um discurso se apresenta como verdadeiro, falso, mentiroso, etc. (FIORIN, 1999, p. 180)

Os sentidos do texto são elucidados por meio do exame dos meca-nismos e procedimentos do plano do conteúdo. Conforme as elabora-ções do dinamarquês Louis Hjelmslev, existem dois planos decorrentes de duas noções elementares e interdependentes: expressão e conteúdo.

Uma expressão só é expressão porque é a expressão de um conteúdo, e um conteúdo só é conteúdo porque é o conteúdo de uma expressão. Do mesmo modo, é impossível existir (a menos que sejam isolados artificialmente) um conteúdo sem expressão e uma expressão sem conteúdo. (HJELMSLEV, 2003, p. 198)

Por razões metodológicas, a semiótica discursiva dá prioridade ao exame do plano do conteúdo; dele, são depreendidos os efeitos de sen-tido do texto. No entanto, apesar de priorizar o plano do conteúdo, a semiótica admite que, no processo de textualização, há uma junção entre conteúdo e expressão, até porque, conforme Hjelmslev, são inter-dependentes e o que conduz à separação é a análise textual. Além disso, os semioticistas têm admitido que há textos em que a expressão, além de expressar o conteúdo, “produz” sentido (cf. BARROS, 2005, p. 76-77).

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Para a análise, o plano de conteúdo é concebido sob a forma de um percurso gerativo de sentido. Este compreende três patamares depreen-didos daquele, os quais revelam os mecanismos e os procedimentos do processo de produção e interpretação dos sentidos do texto. Esses pata-mares, por sua vez, contemplam um componente sintático e outro se-mântico; além disso, postula-se que se organizem a partir de conteúdos mais simples e abstratos rumo aos mais complexos e concretos. Assim,

Quanto mais profundo o nível, mais amplas e menos articuladas, ou seja, mais simples são as suas unidades, assim como mais abstratas. Quanto mais superficial, mais essas unidades se complexificam e se concretizam. Lembramos também que cada nível é dotado de uma sintaxe, entendida como o conjunto de mecanismos que ordena os conteúdos, e de uma semântica, tomada como os conteúdos investidos nos arranjos sintáticos, sendo que a segunda tem uma autonomia maior que a primeira, o que implica na possibilidade de investir diferentes conteúdos semânticos na mesma estrutura sintática. (LARA & FRICKMATTE, 2009, p. 20-21)

No nível mais profundo, encontra-se o patamar das estruturas fun-damentais. Nele, a significação aparece organizada como uma oposi-ção semântica mínima que passa a constituir categorias semânticas fun-damentais. Estas são classificadas como eufóricas (quando positivas) ou disfóricas (quando negativas). Já a sintaxe do nível fundamental abrange duas operações: a negação e a asserção.

Nessa etapa, a análise semiótica procura determinar quais são as oposições, asserções e negações, a partir das quais o sentido do texto é construído e verificar as relações de euforia e disforia que se estabelecem.

No nível mais superficial, encontram-se os outros dois patamares: das estruturas narrativas e das estruturas discursivas. No nível narrativo, as oposições semânticas fundamentais são assumidas como valores por um sujeito.

O patamar narrativo também apresenta dois componentes: uma se-mântica e uma sintaxe. Na semântica narrativa, os valores nos objetos, tidos como elementos semânticos, são selecionados e relacionados com o sujeito para desvendar sua significação. Nessa etapa, observa-se que

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as ações do sujeito e os valores nos objetos podem ser modalizados. Na sintaxe narrativa, verificam-se dois tipos de enunciado elementares: o enunciado de estado, que estabelece as relações de junção (conjunção e disjunção) entre o sujeito e o objeto, e o enunciado de fazer, que mostra as transformações que ocorrem mediante essas relações. Os textos, por-tanto, constituem narrativas complexas em que uma série de enunciados de estado e de fazer estão organizados hierarquicamente. Tal organiza-ção define os programas narrativos.

Uma narrativa complexa desenvolve-se num esquema de três fases: manipulação (por tentação, por intimidação, por sedução ou por pro-vocação), ação (competência e performance) e sanção (julgamento). O percurso narrativo é constituído por uma sequência de programas narra-tivos relacionados por pressuposição, podendo ser: percurso do sujeito; percurso do destinador-manipulador; percurso do destinador-julgador.

No nível discursivo, as estruturas narrativas aparecem enriqueci-das pelas opções do sujeito da enunciação. Essas escolhas referem-se às categorias de tempo, espaço e pessoa. Ao enunciar, o sujeito deixa marcas; assim, a enunciação se revela nas estruturas discursivas a partir dos sinais espalhados ao longo do discurso, e estes precisam ser depre-endidos para possibilitar a análise. Como nos demais níveis, a análise discursiva desdobra-se nos componentes semântico e sintático.

Na semântica discursiva, destacam-se as noções de tematização, figurativização e isotopia. A tematização consiste num processo de in-vestimento semântico que diz respeito a categorias puramente concei-tuais, que não correspondem ao mundo natural. Na análise semiótica, determinam-se os traços ou semas que se repetem para dar coerência ao discurso. Todos os textos tematizam o nível narrativo e, depois, esse nível poderá ou não ser figurativizado. A figurativização recobre os per-cursos temáticos abstratos e atribui-lhes traços de revestimento senso-rial. As figuras, portanto, referem-se a e estabelecem correspondência com o mundo natural, isto é, o mundo exterior. Na última etapa da figurativização, encontra-se o processo de iconização, o “investimento figurativo exaustivo final” (BARROS, 2005, p. 69).

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A isotopia corresponde à articulação dos temas e figuras que ga-rante a coerência semântica do texto. Dito de uma forma mais simples, as isotopias são as chaves interpretativas do sentido que um texto ad-mite como possíveis. Se permite apenas uma leitura, o texto é monoi-sotópico; se permite duas, diisotópico; se três, triisotópico; e assim por diante. Na análise, examinam-se os traços semânticos (abstratos e figu-rativos) que se repetem no discurso e identificam-se o desencadeador de isotopias (elemento que promove a descoberta de novas leituras) e o conector de isotopias (elemento que assegura a passagem de uma leitura à outra).

Na sintaxe discursiva, são verificadas as projeções da enunciação no enunciado e os procedimentos que produzem o efeito de realidade ou referente. (cf. FIORIN, 1999, p. 189)

No âmbito das projeções da enunciação, destacam-se as noções de debreagem e embreagem. Existem três tipos de debreagem – actan-cial, espacial e temporal – conforme a categoria sobre a qual incida. Atravessando essa tipologia, outras duas classificações se estabelecem: uma opõe debreagens enuncivas e enunciativas; outra propõe a distin-ção entre debreagens internas e paralelas/alternadas.

A debreagem enunciva provoca um distanciamento, mantendo a enunciação afastada do discurso a fim de simular objetividade e apa-rentar imparcialidade. A debreagem enunciativa produz um efeito de aproximação, demonstrando a subjetividade e a parcialidade contida na visão dos fatos, a fim de garantir a impressão de que são fatos vividos por aquele que os está enunciando. As debreagens enuncivas e enunciati-vas podem ocorrer, no texto, como paralelas ou alternadas. No caso das debreagens internas, delega-se a voz, internamente a outro interlocutor, produzindo o efeito de realidade ou de referente no discurso.

A embreagem, por sua vez, é “‘o efeito de retorno à enunciação’, produzido pela neutralização das categorias de pessoa e/ou espaço e/ou tempo” (FIORIN, 2008, p. 27), “de modo que se conceba tanto os recursos enuncivos quanto os enunciativos como procedentes da mes-ma fonte” (TATIT, 2005, p. 204).

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A fim de persuadir o enunciatário, o enunciador pode ainda em-pregar procedimentos que produzam o efeito de realidade ou de refe-rente. Estes constituem ilusões discursivas que causam a impressão de que os fatos e os seres são reais e de que o discurso é verdadeiro.

Análise

Para uma demonstração de análise, foi selecionado o texto “Esco-lho ser fiel”, música de Estevão Queiroga1, interpretada por Alessandra Samadello2 no álbum Impossível Dizer, lançado em 2011. Apesar de configurar-se como um exemplo de texto sincrético devido aos ele-mentos de ordem musical, optou-se por verificar no texto exclusiva-mente o seu componente verbal3. Desse modo, as considerações expli-citadas abaixo representam o resultado de uma leitura apenas da letra da música, realizada a partir da perspectiva semiótica.

O poema possui oito estrofes de quatro versos. Dessas, a ter-ceira, a sexta e a oitava são “idênticas” – ou nem tanto, como será demonstrado.

Escolho Ser Fiel

Letra e música: Estevão Queiroga

O homem duvida, a dúvida é fomeA vida é uma busca que a morte consomeA mente se engana, a prova é tão poucoSe um dia estou firme, no outro sou louco

1 Estevão Queiroga (João Pessoa, 17 de setembro de 1984) é formado em Comunica-ção Social – Jornalismo, e atua na área de Marketing e Publicidade. Compôs a letra e a música da canção “Escolho ser fiel”. 2 Alessandra Samadello (Santo André, 20 de abril de 1971) é uma cantora gospel. Sua discografia contabiliza dezoito CDs e dois DVDs infantis. Já alcançou cerca de 1 milhão de cópias vendidas.3 Foram ignoradas as propriedades sonoras por uma questão de recorte. Para analisá--las adequadamente, seria necessário um aporte teórico específico da área de música, o que alongaria demasiadamente a extensão deste artigo. Assim, a análise leva em conta apenas o conteúdo verbalizado e sua expressividade poética. Além disso, foram mantidas as repetições do refrão por acreditar que ele passe por um certo processo de recategorização a cada vez que (re)aparece.

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Mas ainda que as ideias mudem,Ainda há uma razão.E ainda que as coisas passem no tempo,Ele não mudará

Escolho ser fiel,Escolho ser fiel ao que escolhiEscolho ser fiel,Escolho ser fiel a quem me escolheu.

Os cetros se inclinam, o certo não mudaOs livros se rasgam, o verbo perduraO amor vale a luta, a fé cruza o valeNa sombra eu me calo pra que ele me fale

Mas ainda que meus pensamentos vão longeEu fico pertoE ainda que meus sentimentos me traiam,Escolho ser fiel

Escolho ser fiel,Escolho ser fiel ao que escolhiEscolho ser fiel,Escolho ser fiel a quem me escolheu.

Eu creio no céu por trás desta nuvemEu ouço a resposta atrás da perguntaEu sei que há um Deus, além do que mudaE ele é.

Escolho ser fiel,Escolho ser fiel ao que escolhiEscolho ser fiel,Escolho ser fiel a quem me escolheu.

O texto intercala o que é passageiro e o que é permanente. O per-curso gerativo aparece recoberto por figuras, dentre as quais algumas passam por uma simples figuração, como é o caso da razão, e outras re-cebem um revestimento figurativo mais exaustivo, como os cetros e os livros. A articulação de todas as figuras possibilita o desencadeamento

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de dois planos de leitura. No início do texto, figuras como dúvida, vida, ideias e razão ativam uma leitura filosófico-existencial. No entanto, no desenvolvimento do texto, esse percurso figurativo vai cedendo lugar a um viés espiritual e/ou religioso, que se confirma no final.

No nível narrativo, tem-se um sujeito (o homem) disjunto do seu objeto-valor, quer seja este o conhecimento (no plano filosófico-exis-tencial) ou, paralelamente, a eternidade (no plano espiritual). Se for levado em consideração que o objeto-valor é o conhecimento, o per-curso do sujeito incidirá na sucessão de um programa de aquisição re-flexiva, em que o sujeito é modalizado pelo desejo – o homem adquire o conhecimento por si mesmo porque o quer. Tal programa, por sua vez, pressupõe a possibilidade um programa de privação transitiva – o objeto-valor pode ser tirado do homem pela falibilidade de sua lucidez e pela mutabilidade das ideias e da ciência. Modalizado pela insegu-rança, o sujeito passa por um programa de privação reflexiva – insegu-ro, o homem opta por renunciar ao objeto-valor adquirido. Em segui-da, o percurso do sujeito pressupõe a possibilidade de um programa de aquisição transitiva, em que o sujeito é modalizado pela esperança – outro sujeito (Deus) pode oferecer os objetos-valor (conhecimento e/ou eternidade) ao sujeito homem. A transformação ocorre quando o sujeito entra em conjunção com os valores que permanecem. Com a transformação, ele adquire competência para crer (fé) e saber (razão), sendo assim sancionado positivamente.

É possível observar que o texto trata da razão humana, tematizada tanto no sentido de um constituinte racional – o homem é dotado de uma capacidade de raciocínio que resulta na produção de conheci-mentos – quanto no sentido de uma força motivacional – há uma razão que move o homem. Para compreender como é possível depreender essas duas possibilidades interpretativas e para estabelecer as devidas relações entre elas, e entre elas e o título, procedemos à análise do percurso gerativo de sentido, verso por verso.

Na primeira estrofe, como já foi mencionado, o homem é tido como um sujeito incompleto e descontínuo. O homem está disjunto

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de seu objeto de valor (conhecimento). Portanto, é um sujeito não-re-alizado. A relação de junção existente entre o sujeito e o objeto-valor é da ordem do desejável (QUERER) – porque a sua dúvida é fome – e, ao mesmo tempo, do impossível (NÃO-PODER) – devido à falibilidade da mente. Trata-se de um sujeito modalizado pelas paixões do desejo e da insegurança.

Os três primeiros versos do poema contêm proposições que alu-dem à vida humana. Em “o homem duvida, a dúvida é fome” está retratada a própria busca por sentido que caracteriza a existência hu-mana – talvez o Dubito, ergo cogito, ergo sum, de Descartes. Essa ânsia aparece figurativizada pela fome. O verso seguinte – “A vida é uma busca que a morte consome” – reforça a ideia expressa anteriormente, mas adiciona-lhe a contraparte referente ao fim da vida, consequente-mente o fim da busca individual. O fim é a morte. Assim, instaura-se a categoria opositiva: vida vs. morte. Enquanto a vida é uma busca, é dúvida, é fome, a morte consome tudo isso e finaliza o processo. No terceiro verso – “A mente se engana, a prova é tão pouco” – é desta-cada a vulnerabilidade do raciocínio humano. A mente é falível e está sujeita a ser enganada, inclusive por si mesma (se o se for tomado como pronome reflexivo). A prova introduz a primeira relação que se pode fazer diretamente com o título. A fidelidade é exercício que passa por provas, ou seja, que precisa ser provado. Ocorre que, diante da vulne-rabilidade da mente, a prova pode representar “tão pouco”. O último verso dessa primeira estrofe traz a voz do simulacro do sujeito enuncia-dor, que assume a própria vulnerabilidade: “se um dia estou firme, no outro sou louco”. Assim, instaura-se uma segunda categoria opositiva: lucidez vs. loucura.

Tem-se uma debreagem enunciva nos três primeiros versos, o que garante a objetividade das afirmativas, produzindo no enunciado um efeito de verdade que pode ser aplicada a toda e qualquer pessoa, em todo e qualquer tempo ou espaço. Em outras palavras, esse procedi-mento faz parecer – já que a análise semiótica compromete-se com o parecer verdadeiro e não com a verdade em si – que as proposições apresentadas são universais.

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No plano da expressão4, verifica-se que a primeira estrofe é composta de versos hendecassílabos, isto é, que contém onze síla-bas poéticas. Essa regularidade métrica reitera a regularidade das as-serções. Além disso, esses versos apresentam rimas paralelas AABB. A esse respeito, é interessante notar a diferenciação temática entre os dois pares de versos. Os dois primeiros retratam a estabilidade das proposições apresentadas e os dois últimos, a instabilidade da cognição5 humana.

Na segunda estrofe, as asseverações são concessivas, mostrando que apesar das mudanças, há certos elementos que se mantêm. Assim, impõe-se um movimento de alternância. O verso “Ainda que as ideias mudem” reafirma o sentido de instabilidade apresentado nos dois ver-sos anteriores – a mente se engana, perde-se a lucidez e mudam-se as ideias. Retomando a afirmação de que a vida é uma busca, pode-se inferir que os conhecimentos adquiridos durante esse processo podem ser alterados, ou ainda, superados e substituídos por outros, mais con-sistentes, mais complexos ou simplesmente mais adequados. É um pro-cesso de transformação.

Levando-se em conta a enuncividade do enunciado, também é possível dizer que essas ideias representam um saber coletivo, social – não é dito “minhas ideias”, “suas ideias”, mas “as ideias” – pois não são assumidas por sujeitos específicos. A partir de uma perspectiva sócio--histórica, as ideias podem englobar, por exemplo, as grandes teorias científicas, modelos desse saber coletivo que não é eterno e vai sendo construído, desconstruído e reconstruído com o passar do tempo.

No entanto, no verso seguinte, é dito que, apesar dessas transfor-mações, “ainda há uma razão”. Novamente, para o entendimento do termo razão, concorrem duas acepções: ou entende-se que, apesar do aparente caos, existe uma causa para que essas mudanças ocorram; ou

4 Foram analisadas apenas as propriedades rímicas e rítmicas que possam estabelecer alguma relação semissimbólica com o conteúdo veiculado.5 Por cognição, entende-se “um conjunto de várias formas de conhecimento”. (cf. KOCH, 2009, p. 32)

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que, apesar da insegurança gerada por essa instabilidade, há um motivo (razão) para que o homem prossiga sua busca por novas respostas. Em “Ainda que as coisas passem no tempo”, tem-se o sentido equivalente ao do primeiro verso da mesma estrofe, mas no âmbito material. Ou seja, tanto as ideias (psíquicas) como as coisas (físicas) são efêmeras.

No verso “Ele não mudará”, o pronome pessoal “ele” permite duas interpretações. Ele pode ser considerado uma referência que reto-ma o termo “tempo”. Nesse caso, a leitura será a seguinte: ainda que as coisas passem no tempo, ele (o tempo em si) não mudará. Essa opção implica na concepção de que o tempo é uma categoria que permane-ce e resiste às mudanças. Outra possibilidade de leitura é a de que o pronome “ele” introduz no texto uma referência a Deus. Em outras pa-lavras, as coisas passam no tempo, mas Deus não mudará porque Ele é eterno e transcende os limites do tempo. Porém, essa pressuposição só será coerente se for reativada e puder ser comprovada mais adiante no texto. Caso contrário, será automaticamente descartada. É interessante notar até aqui que vários versos possibilitam mais de uma leitura. Essa ambiguidade ocorre por meio dos elementos figurativos que permitem interpretações diversas. Tais elementos podem ser considerados, por isso, como conectores ou desencadeadores de isotopias.

No plano da expressão, essa oscilação entre as concessões é re-forçada pela irregularidade métrica da estrofe. Assim como o conteúdo veiculado não tem a mesma fixidez das proposições contidas na estrofe anterior, o ritmo também não apresenta a mesma simetria.

A terceira estrofe (refrão) faz a primeira referência ao título do tex-to. Ao dizer “Escolho ser fiel”, a escolha constitui-se como um desejo do sujeito. Dessa vez, porém, não se trata de um querer inerente como a fome introduzida no primeiro verso, mas de um querer intencional, opcional, sobre o qual o sujeito tem controle e para o qual demonstra--se competente, conforme será visto mais adiante. A escolha incide sobre uma postura, um princípio: a fidelidade. Ser fiel é uma questão de escolha do sujeito. Em “Escolho ser fiel ao que escolhi”, o sujeito eu assume a opção de ser fiel ao objeto de sua escolha. Em “Escolho ser

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fiel a quem me escolheu”, o sujeito eu assume a mesma opção, mas dessa vez em relação a outro sujeito, do qual é objeto de escolha, ou seja, ao mesmo tempo em que é sujeito que escolhe, também é objeto da escolha alheia. Além disso, a relação entre os tempos verbais mostra que a escolha dos objetos é anterior à escolha do sujeito.

Prevalece no refrão a debreagem actancial enunciativa, pois o sujeito assume a enunciação como sendo sua. Esse procedimento reforça a noção de que a fidelidade envolve um posicionamento declarado pelo sujeito, que precisa ser provado pelo sujeito – como sugerido no terceiro verso do poema. Observa-se também a função da repetição como forma de reafirmar a escolha e recategorizar gradualmente o objeto da escolha.

Na quarta estrofe, são apresentadas novas proposições que, mais uma vez por meio de debreagens enuncivas, querem se impor como uni-versais e atemporais. Dessa vez, cada asserção está associada a uma esfe-ra de atividade humana. Essa estrofe cria um percurso figurativo referente aos valores sociais humanos. Em “Os cetros se inclinam”, a figura dos cetros representa aqueles que detêm poder político, os quais inclinam--se, ou seja, com o passar do tempo cedem seu lugar a sucessores. Em outras palavras, a Política é um terreno de instabilidade. Completando o verso, diz-se que “o certo não muda”. As noções de certo e errado estão muito ligadas aos valores da Ética. Ou ainda, se a afirmativa for situada no contexto religioso, será possível entender que os princípios morais es-tabelecidos por Deus é que são imutáveis. No verso seguinte – “Os livros se rasgam” – a figura dos livros parece estar ligada à Ciência. Livros rasga-dos sugerem que teorias são invalidadas, como já tinha sido anunciado anteriormente no primeiro verso da segunda estrofe.

Em “o verbo perdura”, pode-se construir um sentido de concessão ou de oposição. No primeiro caso, entende-se que o verbo representa o saber imaterial que está nos livros e se apreende para além das pági-nas, diferentemente do livro materializado. Assim, lê-se que o conhe-cimento conquistado perdura, mesmo que se rasguem os livros a partir dos quais ele foi adquirido. No segundo caso, pode-se entender que o

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verbo esteja personificado, o que faz lembrar a forma como João des-creve a encarnação de Jesus (João 1:1, 14)6.

Nesse trecho bíblico7, é dito que Jesus é o Verbo existente desde o princípio. Em outras palavras, Cristo é o Verbo eterno, que perdura. Em “O amor vale a luta, a fé cruza o vale”, pode-se entender que o amor faz valer a luta. Trata-se, portanto, de um valor superior às possíveis adversidades com as quais seja necessário lutar. A fé, por sua vez, é retratada como uma ação, não apenas como um sentimento cultivado, mas como uma convicção que promove atitude e que é evidenciada em obras (Tiago 2:14, 17)8. Quanto à figura do vale, há duas possibili-dades. É possível que ela esteja recobrindo o tema da adversidade ou representando a morte, pois no verso seguinte aparece a expressão na sombra e, no texto bíblico, a figura do vale da sombra está proxima-mente relacionado à morte (Salmo 23:4)9. No caso da segunda leitura, a fé atravessa a morte porque traz a esperança de ressurreição para a vida eterna, esperança garantida na cruz – a fé “cruza”. Em “Na sombra eu me calo pra que ele fale”, a figura da sombra pode representar tanto o que é impreciso, obscuro, diante do qual o sujeito se cala por falta de conhecimento. Nesse caso, o pronome “ele” pode retomar tanto o referente “amor” do verso anterior, quanto Deus. Entende-se, portanto, que, diante das incertezas, o sujeito se cala, se anula, para aprender com o amor ou com a sabedoria divina.

Numa análise mais profunda, a figura da sombra pode denotar, como a do vale, a ideia de morte. A morte tem o poder de calar, silen-ciar o sujeito. Esse processo pode sugerir a constituição de uma metá-

6 “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. (...) E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade.”7 A Bíblia foi utilizada como referência para endossar as possibilidades de leitura cons-truídas a partir de uma perspectiva religiosa.8 “Meus irmãos, qual é o proveito se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras? Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo? (...) Assim, também a fé, se não tiver obras, por si só está morta.”9 “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum porque Tu estás comigo (...)”

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fora10 que simboliza a morte do cristão para as coisas do mundo e uma nova vida em Cristo (Romanos 6:4, 11)11.

Se na segunda estrofe era apenas cogitada uma pequena possibili-dade do tom religioso do poema, a partir da quarta estrofe, encontram--se evidências mais fortes. Assim, quando o refrão é repetido na sexta estrofe, os objetos aparecem recategorizados, como será visto.

Quanto ao plano da expressão, temos o mesmo caso da primeira estrofe, em que a regularidade da métrica e das rimas reforça o sentido das premissas.

Na quinta estrofe, são apresentadas novas concessões. Em “Ainda que meus pensamentos vão longe / Eu fico perto”, há um contraste entre a divagação do pensamento e a permanência do sujeito. Ou seja, ainda que os pensamentos, as dúvidas o façam divagar para longe, o sujeito permanece fiel, perto, presente. Tal premissa é reforçada nos versos subsequentes: “E ainda que meus sentimentos me traiam, / Es-colho ser fiel”. Esse movimento de oscilação entre pensamentos/senti-mentos e a fidelidade evoca também a ideia que a vida cristã consiste num constante fazer o que não se quer fazer e não fazer o que se quer fazer (Romanos 7:19)12.

Diferentemente do que ocorre na segunda estrofe, na quinta, o simulacro do enunciador assume sua enunciação instaurando uma debreagem actancial enunciativa: não são quaisquer pensamentos ou sentimentos, mas sim os seus. Talvez essa opção queira demonstrar que a escolha de manter-se fiel, manter-se perto, seja individual. Se, na segunda estrofe, a fixidez das proposições é abalada por fatores sociais externos; na quinta, trata-se de fatores internos, individuais, pessoais.

10 A metáfora consiste numa outra possibilidade de leitura de um termo, criada pelo contexto, por meio da intersecção de traços semânticos. (FIORIN, 2002, p. 86)11 “Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novi-dade de vida. (...) Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus.”12 “Por que não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço.”

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A sexta estrofe é uma repetição da terceira, mas apresenta-se reca-tegorizada pela nova isotopia ativada nas duas estrofes anteriores. Essa recategorização será confirmada na oitava estrofe.

Quanto à sétima estrofe, no verso “Eu creio no céu por trás des-sa nuvem”, o céu é uma figura eufórica e pode representar um lugar celestial para onde Jesus levará os remidos (João 14:2-3)13. Nesse caso, a nuvem representa algum obstáculo temporário que abale essa visão, como, por exemplo, a racionalização do saber, já que a mente se en-gana e faz com que num dia se esteja firme e em outro se esteja louco. Num outro sentido, o céu pode representar a esperança de vida eterna que existe para além da morte, esta entendida como um sono (João 11:11-14)14, tendo em vista a transitoriedade da nuvem, que passa.

Em “Eu ouço a resposta atrás da pergunta”, tem-se um jogo de pa-lavras entre pergunta e resposta. A pergunta pode figurativizar a vida, já que esta vem sendo apresentada como uma busca por sanar dúvidas. A resposta é a solução para a ânsia de conhecimento. Diferentemente da relação entre céu e nuvem, em que o primeiro é eufórico e a segunda é disfórica, na relação entre pergunta e resposta nenhum dos dois é necessariamente disfórico. Obviamente, a resposta traz euforia porque representa uma solução. Mas a pergunta não é disfórica em si mesma. Só será disfórica se não levar a lugar algum, se perder de vista a possibi-lidade de resposta. Do contrário, a pergunta constitui a força propulso-ra que mobiliza ações em busca da resposta. Ou seja, é a pergunta que motiva a procura pela resposta. E, sendo assim, não é disfórica.

Do verso “Eu sei que há um Deus além do que muda”, podem-se abstrair duas categorias opositivas: mutabilidade vs. imutabilidade; efe-meridade vs. eternidade. Nesse verso, é dada a comprovação da pos-

13 “Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, eu vo-lo teria dito. Pois vou preparar-vos lugar e, quando eu for e vos preparar lugar, voltarei e vos receberei para mim mesmo, para que, onde eu estou, estejais vós também.” 14 “[Jesus] lhes acrescentou: Nosso amigo Lázaro adormeceu, mas vou para despertá-lo. Disseram, pois, os discípulos: Senhor, se dorme, estará salvo. Jesus, porém, falara com respeito à morte de Lázaro; mas eles supunham que tivesse falado do repouso do sono. Então, Jesus lhes disse claramente: Lázaro morreu.”

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sibilidade de leitura do oitavo verso (quarto verso da segunda estrofe), em que o pronome “ele” poderia referir-se a Deus. Enquanto na segun-da estrofe é dito que as ideias e as coisas mudam, e que a razão e – até então – o tempo não mudam; na sétima estrofe fica explícito que é Deus que permanece além do que muda. A seguir, o outro verso diz: “E Ele é”. É interessante notar o emprego do verbo “ser”. Ele é. Poder-se-ia completar o sentido do verso com predicativos coerentes com o tema do poema, como “Ele é [fiel], [eterno], [imutável], [a resposta] etc”. Mas, no contexto religioso, conforme a tradição bíblica, Deus é o único ser que É. Sendo denominado como o grande EU SOU (Êxodo 3:14)15. O único ser a quem se pode atribuir uma existência intransitiva.

Estabelecida essa isotopia, obtém-se uma nova categorização do refrão, repetido na oitava estrofe. A partir de então, tem-se a certeza de que Deus é o sujeito que escolheu o sujeito homem e que o homem escolheu ser fiel aos valores escolhidos a partir de seu relacionamento com Deus.

Considerações Finais

Após delinear os conceitos e mostrar um exemplo de análise, é preciso tecer algumas considerações – por enquanto, as finais – a res-peito da leitura possível que foi apresentada.

Este artigo buscou apresentar uma aventura pelos sentidos do tex-to. Ambiciosamente, ousou desvendar a significação de um poema. Porém, diante da complexidade da tarefa, contentou-se em apenas construir uma leitura possível.

Sobre os conceitos, admite-se que poderiam ser alvos de elabo-ração mais apurada e delongada. Sobre a análise, reconhece-se que alguns procedimentos foram explorados de modo breve. No entanto, acredita-se que isso não desmereça esta empreitada nos percursos da semiótica discursiva.

15 “Disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós outros.”

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O nascimento de um herói brasileiro: abordagem semiótica aplicada a uma capa da revista VejaThe birth of brazilian hero: semiotic approach applied to Veja a cover of the magazine

Luciana Garcia Gabas CoelhoMestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens da

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,Campo Grande – MS.

[email protected]

Maria Luceli Faria BatistoteProfessora do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,Campo Grande – MS.

[email protected]

Resumo: A ideia da existência de um salvador para, se não todos, grande parte dos problemas que enfrentamos cotidianamente, aguça o imaginário das pessoas e nos faz acreditar na possibilidade da transformação de homens em heróis. O personagem mítico, protagonista de obras ficcionais, permeia a realidade humana e traz à tona anseios e desejos das pessoas comuns. A figura do herói e sua representação, embasada no conceito filosófico de mito, é tema deste artigo, que tem como corpus de análise a capa da revista Veja, publicada em 10 de novembro de 2010, em que o protagonista do filme Tropa de Elite, capitão Nascimento, é considerado o primeiro super-herói brasileiro. A análise é elaborada com base na semiótica discursiva, proposta por A. J. Greimas, e aborda os conceitos de semissimbolismo, figurativização e intertextualidade, que serão aplicados ao texto sincrético selecionado. A abordagem da teoria greimasiana considera a significação dos elementos da linguagem verbal e não verbal, utilizados para compor o texto visual.

Palavras-chave: Mito. Semiótica greimasiana. Herói.

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Abstract: The idea of a savior for, if not all, most part of the problems we face daily, makes people’s imagination stronger and makes us believe in the possibility of the transformation of humans in heroes. The mythical character, leading figure of fictional stories, permeates the human reality and shows desires and wishes of ordinary people. The picture of the hero and its representation, based on the philosophic concept of myth, is the main idea of this article, which has as corpus of analysis the cover of the Veja magazine, published in November 10th, 2010, wherein the protagonist of the Tropa de Elite movie, Capitão Nascimento, is named as the first Brazilian super-hero. The lection is constructed on the discursive semiotics, proposed by A. J. Greimas, and approaches the semi symbolism and intertextuality concepts, which will be applied to the syncretic wording selected. The approach of the Greimas theory considers the significance of the elements of verbal and non-verbal parlance, used to build the visual text.

Keywords: Myth. Semiotic. Hero.

Introdução

A ideia da existência de um salvador para, se não todos, grande parte dos problemas que enfrentamos cotidianamente, aguça o imagi-nário das pessoas e nos faz acreditar na possibilidade da transformação de homens em heróis.

O personagem mítico dotado de poder, protagonista de obras fic-cionais, permeia a realidade humana e traz à tona anseios e desejos das pessoas comuns, ávidas pela solução de problemas que atingem a coletividade; encontrando nos meios midiáticos - rádio, TV, jornal, re-vista, etc - os canais para a propagação de suas ações e a consolidação da figura do herói.

A construção da imagem do herói é o tema deste artigo, desenvol-vido a partir da análise de elementos que compõem a capa da revista Veja, publicada em 10 de novembro de 2010, ilustrada pelo perso-

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nagem capitão Nascimento, do filme Tropa de Elite, considerado pela publicação o primeiro super-herói brasileiro.

Elaborado com base no conceito filosófico de mito e na semiótica discursiva, proposta por A. J. Greimas, o estudo aborda os conceitos de semissimbolismo, figurativização e intertextualidade, que serão aplica-dos ao texto sincrético selecionado.

A abordagem da teoria greimasiana considera a significação dos elementos da linguagem verbal e não verbal utilizados para compor o texto visual.

A filosofia do Mito

No dicionário Michaelis (2007, p.16), o verbete mito ou mythos, do grego, é, em uma das acepções, apresentado como uma fábula que relata a história dos deuses, semideuses e heróis da Antiguidade pagã. Considerando que a exposição simbólica de um fato nos remete ao con-ceito filosófico de mito, recorremos a Eliade (2207, p.7), ao afirmar que o mito não trata apenas da origem do mundo, dos animais, das plantas e do homem. Outrossim, de todos os acontecimentos primordiais, em consequência dos quais o homem se converteu no que é hoje: “um ser mortal, sexuado, organizado em sociedade, obrigado a trabalhar para viver, e trabalhando de acordo com determinadas regras”. Para o autor, a sua principal função é revelar os modelos, exemplos de todos os ritos e atividades humanas como a alimentação, o casamento, o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria.

Segundo Cassirer (1992, p.23), as representações míticas da hu-manidade são, para a consciência primitiva, a totalidade do ser. Nas narrativas mitológicas, deuses e heróis personificam valores e qualida-des, e recebem atribuições de ordem celeste e terrena.

Ao contrário de como era tratado no século XIX, quando era uti-lizado no sentido de fábula, invenção ou ficção, a partir do século XX, os eruditos ocidentais passaram a aceitar esse termo como uma história verdadeira, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo. É, pois, nessa nova concepção de mito que se enquadra o herói contemporâneo, tema deste artigo.

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Segundo a historiadora francesa Colete Annequin, “o mito é sem-pre uma reflexão profunda sobre a condição do homem, suas pre-ocupações e agonias” (2007, p.4). É nesse sentido que personagens ficcionais que apresentam semelhanças com pessoas comuns, mas se destacam por alguma virtude distinta tornam-se heróis no cinema e nos meios de comunicação.

Na mitologia clássica, os heróis são em geral homens, filhos da união entre deuses e mortais, com qualidades sobre-humanas em graus variáveis. São essas qualidades que os diferenciam das pessoas comuns, mesmo que possuam algumas semelhanças. Conforme LEEMING (2004, p. 145), “os heróis são a nossa persona no mundo dos mitos. Es-clarecemos que Jung (1945, apud HALL, LINDZEY,CAMPBELL, 2000, p.91) apresenta o termo persona como a máscara adotada pela pessoa em resposta às demandas das convenções e das tradições sociais e às suas próprias necessidades arquetípicas internas.

Ainda segundo Leeming (idem, ibidem), “os heróis constituem expressões da nossa psique coletiva, primeiro como culturas, depois como espécie”. Ressaltamos que a psique coletiva é o reservatório de traços de memória latente herdados do nosso passado ancestral que inclui os seres mais primitivos. É o resíduo psíquico do desenvolvimen-to evolutivo humano, que se acumula em consequência de repetidas experiências ao longo de muitas gerações. Todos os seres humanos têm mais ou menos o mesmo inconsciente coletivo.

Assim como os heróis da Antiguidade, descritos como corajosos guerreiros que se destacavam em batalhas e sobreviviam a odisseias, os heróis da atualidade possuem características que sobressaem à coletivi-dade e, também, refletem um desejo latente dos indivíduos.

Estes indivíduos dotados de poderes surgem em diferentes con-textos e devem ser observados, enquanto figura, de acordo com sua significação. Sobre o signo, Cassirer (op. cit., p.22) entende que, em lu-gar de medir o conteúdo, o sentido e a verdade das formas intelectuais por algo alheio, cumpre descobrir, nestas próprias formas, a medida e o critério de sua verdade e significação intrínseca.

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Nesta análise buscaremos mostrar como a imagem de um herói brasileiro foi construída utilizando-se signos verbais e não verbais na elaboração da mencionada capa de revista.

Semiótica aplicada

A capa da revista Veja selecionada para este estudo (anexo 1) é um texto sincrético que comporta, no plano de expressão, linguagem não-verbal e linguagem verbal. Em uma mesma página, imagem e texto se sobrepõem e se complementam para dar forma ao conteúdo da mensagem.

A relação existente entre categorias do plano de expressão e do plano de conteúdo é chamada de semissimbólica. Segundo Pietroforte (2010), essa relação é arbitrária porque é fixada em determinado con-texto, mas é motivada pela ligação estabelecida entre os dois planos da linguagem.

O efeito de sentido do texto sincrético é provocado pela intertex-tualidade, que, segundo Greimas, implica a existência de semióticas (ou de discursos) autônomas no interior das quais se sucedem proces-sos de construção, de reprodução ou de transformação de modelos, mais ou menos implícitos (GREIMAS,COURTÉS, 2008, p.272).

Na análise proposta, tendo como corpus a capa selecionada da revista, é possível identificar, no plano de expressão, elementos que denotam a oposição semântica caos vs ordem e que também se con-figuram como valores no nível fundamental do percurso gerativo de sentido, no plano de conteúdo.

No entanto, acreditamos que, por se tratar de texto visual (sobre-tudo icônico), o que atrai o leitor, inicialmente, são as figuras (os atores, os elementos da cena) que dão materialidade aos temas subjacentes. Segundo Greimas & Courtés (2008, p. 496), há dois níveis de figu-rativização: o primeiro é a figurativização propriamente dita, ou seja, o nível da instalação das figuras semióticas; o segundo, chamado de iconização, “visa revestir exaustivamente as figuras, de forma a produ-zir a ilusão referencial que as transformaria em imagens do mundo”.

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Cabe, ainda, esclarecer, conforme Fiorin, (1989, p. 64) que temas são elementos abstratos que justificam, ordenam, categorizam a realida-de, enquanto figuras são elementos concretos que remetem ao mundo natural (ou construído como tal). Todos os textos, no nível discursivo, revestem os esquemas narrativos com temas, podendo concretizá-los ainda mais por meio de figuras. Temos, portanto, textos predominan-temente temáticos (textos científicos, por exemplo) e textos preponde-rantemente figurativos (textos literários, por exemplo), que criam, dessa forma, um simulacro do mundo. Não podemos perder de vista, nesse último caso, que para entender as figuras disseminadas ao longo do texto, é preciso apreender os temas que as iluminam.

Nessa perspectiva, não vemos como analisar o plano de expressão sem remetê-lo também ao nível discursivo ou, mais especificamente, aos temas e figuras que se articulam no nível mais superficial do per-curso gerativo de sentido. Lembramos que Fiorin (1999) toma as rela-ções semissimbólicas como incidindo sobre todos os níveis do percurso gerativo – e não apenas sobre o nível mais profundo –, posição com a qual concordamos.

Em vista disso, examinaremos as imagens (textos não verbais/vi-suais) por meio de uma abordagem que explora, na relação conteúdo/expressão, além do nível fundamental, o discursivo (com seus temas e figuras). Tal proposta inclui ainda a apreensão das relações semissim-bólicas que se instauram entre os dois planos, quando isso se mostrar relevante para a construção de sentido do texto em análise.

No plano de expressão, apresenta-se um cenário caótico, em que a figura do protagonista do filme Tropa de Elite, capitão Nascimento, demonstra um olhar fixo e determinado. Na mão, segura um rádio walkie talkie, indicando que uma das armas usadas por ele para acabar com os bandidos e a corrupção é a comunicação. O objeto também confere a conotação de personagem humanizado. O sentido da imagem é complementado pelo primeiro texto que compõem o título: Ele é incorruptível, implacável com bandidos e espanca corruptos degenerados.

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A farda faz referência ao primeiro filme, no qual o personagem era capitão do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope). No segundo filme, o capitão Nascimento é alçado à esfera do poder exe-cutivo como secretário de Segurança Pública, posto em que enfrenta a corrupção de políticos.

O uniforme, além de trazer informações da primeira filmografia, na qual o herói começou a ser construído, também caracteriza toda uma classe de profissionais que se dedicam a combater o crime. Contu-do, mesmo que este seja o dever dos policiais, nem todos são exemplos de caráter e conduta. Entre eles, o capitão Nascimento se sobressai por suas virtudes (poderes) e é transformado em herói.

É no segundo filme, quando além de combater bandidos, ele tam-bém precisa enfrentar políticos corruptos, que o personagem reforça a figura do herói. A escolha do ator Wagner Moura, típico brasileiro comum, com olhos e cabelos castanhos, também contribui para a iden-tificação do público com o personagem.

A composição da imagem, no plano de expressão, com o título - O primeiro super-herói brasileiro - destacado pela cor alaranjada e pelo tamanho da fonte, complementa o efeito de sentido produzido. As virtu-des determinantes para a construção da figura do herói são reforçadas no texto verbal, no enunciado apresentado logo acima do título, “Ele é in-corruptível, implacável com bandidos e espanca políticos degenerados”.

No rodapé da página, o enunciatário é questionado sobre a men-sagem que os 10,8 milhões de brasileiros, que viram e aplaudiram o filme do diretor José Padilha, querem passar à esfera política do país sobre a intolerância à corrupção na política e aos bandidos que geram insegurança à população.

Ainda no plano de expressão, a categoria semântica mínima do pla-no de conteúdo, segurança vs medo, é explicitada com as imagens da farda militar e do cenário caótico que compõem a totalidade da capa. O nome do personagem- Nascimento- gravado em tom claro no uniforme contrasta com a cor escura do tecido e sugere a transformação que deve

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acontecer após a atuação do herói. A palavra também sugere uma com-plementação para o título da capa, “o nascimento” do primeiro super--herói brasileiro.

Para um efeito de finalização

Com a análise semiótica fundamentada nos conceitos de semis-simbolismo, figurativização e intertextualidade realizada neste estudo, tendo como corpus a capa da revista Veja com o personagem do filme Tropa de Elite associado à figura do herói, no gênero capa de revista, percebe-se que as informações no plano de expressão e plano de con-teúdo se complementam.

A composição de elementos da linguagem verbal e não-verbal construiu um texto visual que dá vida ao personagem do filme. Porta-dor de virtudes consideradas incomuns dentro da corporação policial e no meio político, o capitão Nascimento é alçado à categoria de herói. A imagem construída se apóia no público atraído para as salas de cinema que viram o filme, cerca de 10,8 milhões de pessoas.

Ávido pela moralização da classe política, por maior eficiência da polícia e pela diminuição da criminalidade nos grandes centros do país, o público identificou no personagem as características necessárias para a dissolução dos conflitos advindos dessa problemática.

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Anexo 1 Edição 2190, publicada em 10 de novembro de 2010.

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Gustavo Rosa e a figura humana feminina: da Lavadeira à Mulher PêraGustavo Rosa and the woman figure: from the Washerwoman to the Pear woman

Janice de Campos FerraMestre pelo Programa de Pó-Graduação em Estudos de Linguagens da

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,Campo Grande, MS.

[email protected]

Resumo: Este artigo é uma síntese da dissertação de Mestrado em Estudos de Linguagens, que teve como objeto de estudo a representação da figura humana feminina na obra de Gustavo Rosa. Essa dissertação tomou como corpus de análise um grupo de 20 obras desse artista, datadas do período de 1965 a 2009, todas pinturas. A Semiótica Geral de Charles Sanders Peirce (1839-1914), especialmente a sua classificação dos signos, os es-tudos sobre semiótica da imagem e sua aplicação foram adotados como referencial metodológico. Seguindo as orientações dessa semiótica para a aplicação, a pesquisa recorreu a textos específicos de arte e a outros sobre a obra de Gustavo Rosa. O estudo está apoiado, portanto, também em uma revisão de bibliografia da representação da figura humana fe-minina na história das artes plásticas e em textos de críticos de arte que escreveram sobre a obra de Gustavo Rosa. A partir da análise das obras desse artista selecionadas para pesquisa, concluiu-se sobre relações entre a obra dele e as de mestres do passado, bem como sobre regularidades internas à sua obra, presentes na representação da figura feminina, no modo de compor, e no uso das cores, que revelam um modo próprio do artista pintar e, mais especificamente, de representar a mulher.

Palavras-chave: Semiótica peirciana. Semiótica da imagem. Arte brasileira. Pintura figurativa.

Abstract: This article is to sum sth up dissertation of Master’s Languages Studies, has as a aim of study the representation of the female human figure on the Gustavo Rosa art work. This dissertation taked as body of analysis a group

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of 20 art work of this artist, dated from the period of 1965 to 2009, all paintings. The theoretical and methodological reference is the General Semiotic of Charles Sanders Peirce (1839-1914), specially its classification of the signs, the studies about semiotic of the image and its application. Following the orientations of this semiotic to the application, the research resorted to specific texts of art and of the Gustavo Rosa art work. The study is based also on a review of bibliography of the representation of the female human figure in the history of plastic arts and in texts of art critics who wrote about Gustavo Rosa art work. Starting from de analysis of the works of this artist selected to this research, one concluded about the relations between his art work and the master of the past, as well as the internal regularities to his art work, they are present in the representa-tion of the female figure, on the mode to compose and in the use of the colors, it reveals a own way of the artist to paint and, more specifically, to represent the woman.

Keywords: Peirciana semiotic. Semiotic of the image. Brazilian art. Figurative painting.

Introdução

É impossível negar que as imagens sempre exerceram uma forte influência na imaginação de seus observadores, desempenhando assim um papel importante no processo de significação do mundo. Na histó-ria desses processos tem sido notado que parte dos textos constituídos de imagens são compreendidos quase que de maneira universal; po-rém, por muitas vezes, o significado é diferente para cada espectador, pois vai depender de fatores diversos, entre eles do conhecimento dele sobre a obra e a história da arte, o momento histórico no qual foi cria-da, entre outros. O fenômeno da significação tem sido estudado pelas correntes semióticas, que foram desenvolvidas com mais ênfase a partir do século XX. Dentre elas está a semiótica de Charles S. Peirce (1839-1914) e, associados a essa, há estudos específicos sobre semiótica da imagem. Este artigo se depara com os problemas da significação pelo viés da semiótica da imagem de extração peirciana.

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Para o desenvolvimento deste estudo buscaram-se na história da arte subsídios para analisar o signo “figura humana feminina” presente na obra de Gustavo Rosa. Bucou-se o apoio de uma revisão de biblio-grafia, enquanto se adentrava pelo mundo dos signos, por meio de textos sobre a Teoria geral dos signos de Charles Sanders Peirce e sobre uma semiótica da imagem nela embasada. Assim, a investigação dos signos do corpus selecionado foi mesclando conhecimentos de história, crítica de arte e semiótica da imagem.

O estudo da figura feminina na história da arte pode ser consi-derado como o interesse mais geral da pesquisa desenvolvida; a esse somou-se, no contato com os estudos de linguagem, o interesse pela semiótica da imagem. Associado a isso tudo surgiu, em particular, uma curiosidade pelas pinturas de Gustavo Rosa, que desencadeou e uma escolha por estudar a obra desse artista. As razões da escolha são: o fato de ser um artista contemporâneo, brasileiro, cujas obras são figurativas; também o modo como as imagens da figura feminina (rechonchudas) fogem de um padrão de mulher presente na sociedade contemporânea - aquele que, com o apoio da mídia, valoriza a figura feminina escultu-ral, sem se importar que haja cada vez mais obesos na sociedade. Tam-bém porque, ao representar a figura humana, Gustavo Rosa desenvolve traços únicos, com uma identidade pessoal; além disso, por suas obras possuírem uma característica bem-humorada, utilizando a transforma-ção ou deformação das figuras. Algumas vezes esses aspectos remetem à caricatura e à charge, mas sempre parecem fazê-lo com o desejo de reverenciar e acentuar a espontaneidade da mulher. Por fim, as pinturas de Gustavo Rosa, muitas vezes, levam a associações com pinturas de velhos mestres, muitos deles modernistas.

A história mostra que a arte acompanha o homem nas investiga-ções mais simples; em cada época o homem exerce sua liberdade para criar, por meio da exploração de sua expressão e do seu potencial cria-tivo, podendo, a partir daí, gerar convenções culturais. Acompanhando a trajetória das significações associadas à figura feminina na história da

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arte, nota-se que estão vinculadas às culturas às quais pertencem, o que permite identificar, por meio das obras, não apenas um período histórico e uma posição geográfica, mas uma regra representativa e/ou expressiva. Algo dessa natureza, também, é buscado nas obras de Gustavo Rosa selecionadas para este estudo.

O conhecimento das sociedades e das suas convenções culturais é considerado necessário para o entendimento das imagens do ponto de vista das semióticas, especialmente no caso da presença de símbolos nessas imagens, já que a arbitrariedade dos símbolos culturais precisa ser conhecida para ser interpretada. Aqui tais conhecimentos são obti-dos no campo específico da história da arte, incluindo a brasileira. Com base nesses conhecimentos é que se propõe investigar e compreender a representação da figura feminina na pintura de Gustavo Rosa.

Na produção de Gustavo Rosa, as pinturas da figura feminina são elementos fundamentais, pois em cada época o artista investe diferentemente sobre essas figuras, dialogando com o imaginário so-cial de cada um de nós. Gustavo Rosa busca, enquanto pinta, a sua própria identidade como pintor. Sua imaginação individual e suas fan-tasias, seus sentimentos e conhecimentos sobre pintura e o mundo encontram na linguagem pictórica um modo de expressão. A imagi-nação criadora vai produzindo enquanto o artista interage com cer-tas matérias, técnicas e realidades, explorando sua capacidade de se relacionar com elas.

Observar e analisar as obras de Gustavo Rosa se mostrou um tra-balho constante de questionamento: Como o signo está caracterizado? A que o signo se refere? O que ele representa? O que as obras de Gustavo Rosa, selecionadas para este estudo e que têm como elemen-to constante e central a figura humana feminina, têm a dizer sobre a mulher, ou sobre a mulher brasileira? A esta última pergunta sugeriu-se, de início, uma resposta provisória, uma hipótese: a de que essas obras têm algo em comum a dizer sobre a mulher e, em especial, talvez, a brasileira. Com esta pesquisa buscaram-se possíveis respostas, bem

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como subsídios para justificá-las; e após analisar as obras escolhidas foi possível responder a alguns desses questionamentos.

O texto da dissertação que deu origem a este artigo foi organizado em três capítulos: 1. Conceitos sobre Semiótica e Pintura Figurativa, 2. Figura Humana Feminina no Percurso da História das Artes Plásticas: um recorte inspirado em Gustavo Rosa e 3. Pintura da Figura Humana Feminina na obra de Gustavo Rosa. Para analisar as pinturas, recorre--se tanto ao referencial da semiótica perciana e da história da arte, especialmente a brasileira contemporânea, entre os anos de 1965 e 2009, quanto a textos de Paulo Klein e de Antonio Carlos Gouveia Júnior e Cecília Gouveia, sobre o artista. Nestes textos foram coleta-dos os dados iniciais da pesquisa, como as imagens das vinte obras do artista Gustavo Rosa, selecionadas para trabalhar1. A seleção des-sas obras levou em consideração as diferentes fases de representação da figura feminina ao longo da carreira do artista. Tais obras possibi-litaram as observações que são apresentadas ao longo deste texto, quanto a algumas características da obra desse artista que foi possível compreender, especialmente, as homenagens que o artista faz aos velhos mestres por meio da sua pintura e o modo como a figura femi-nina na sua obra dialoga com a sociedade contemporânea e a mulher brasileira.

1 (1) A lavadeira, 1965. Guache sobre cartão, 30 x 20 cm, p. 42; (2) Mulher, 1976. Óleo sobre tela, 65 x 54 cm, p.55; Sorvete, 1976. Óleo sobre tela, 65 x 54 cm, p.56; (3) I love Rio, 1988. Óleo sobre tela, 120 x 110 cm, p. 86; (4) Abadogu, 1995. Óleo sobre tela, 87 x 73 cm, p. 105; (5) Homenagem a Botero, 1998. Óleo sobre tela, 120 x 110 cm, p. 111; (6) Hot dog, 2000. Óleo sobre tela, 110 x 150 cm, p. 121; (7) Pulando a cerca, 2001. Óleo sobre tela, 110 x 120 cm, p.127; (8) Pic-nic, 2002. Óleo sobre tela, 100 x 80 cm, p. 135; (9) Dieta saúde, 2002. Óleo sobre tela, 110 x 120 cm, p. 133; (10) Abadogu, 2003. Óleo sobre tela, 65 x 54 cm, p. 145; (11) Banhista, 2004. Óleo sobre tela, 54 x 65 cm, p.176; (12) Caça, 2004. Óleo sobre tela, 110 x 120 cm, p. 173; (13) Saudades, 2004, Óleo sobre tela, 54 x 65 cm, p. 178; (14) Cooper, 2004. Óleo sobre tela, 120 x 80 cm, p. 182; (15) Banhista, 2005. Óleo sobre tela, 40 x 50 cm, p. 210, (16) Nu, 2005. Óleo sobre tela, 54 x 65 cm, p.218; (17) Zona, 2005. Óleo sobre tela, 54 x 65 cm, p. 205; (18) Bailarina, 2006. Óleo sobre tela, 100 x 80 cm, p. 237; (19) Samba é no morro, 2007. Óleo sobre tela, 50 x 40 cm, p. 244; e (20) Mulher pera, 2009. Óleo sobre tela, 54 x 65 cm, foto tirada no Estúdio do artista.

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Neste texto, a seguir, é feita uma síntese de algumas das idéias desenvolvidas ao longo da dissertação. Para isso, citam-se algumas das obras estudadas: a Banhista (Figura 1), “I love Rio” (Figura 2), Figura – Ismael Nery (Figura 3), A lavadeira (Figura 4) e a Mulher pera (Figura 5).

1. A representação da figura humana na história e a obra de Gustavo Rosa

A representação da figura humana sempre foi a maior preocupa-ção da arte ocidental desde a Antiguidade até o início do século XX (LANEYRIE-DAGEN, 2004, p. 9); além disso, foi retomada na segunda metade desse século, após a arte ter experimentado as composições abstratas. Para Argan (1988, p.109),

A ideia de representação implicava a certeza de que as próprias formas da natureza fossem representativas de significados e conteúdos universais: sendo a própria natureza uma representação em formas finitas e visíveis de uma realidade infinita e transcendente, a arte não podia ser senão a representação de uma representação (donde o princípio clássico da mimesis).

De um lado, as pesquisas nesse campo levam a um maior conhe-cimento da anatomia humana, o que ajuda os artistas na construção de uma imagem verdadeira; de outro, porém, o apego mais às regras do que às coisas tal como se apresentam, reforça a idealização. Em termos da semiótica peirciana, o primeiro procedimento reforça os ícones e os índices e o segundo, os símbolos, que são signos conven-cionais. Daí que as imagens mais fortemente idealizadas da história da arte não são predominantemente icônicas nem predominantemente indiciais, mas simbólicas.

Verificou-se que a figura humana feminina2 no percurso da His-tória das Artes Plásticas é redescoberta em cada criação, desde épocas passadas até a contemporânea. Desde a Pré-História, com a “Vênus de Willendorf”, passando pelos períodos subsequentes e até a Moderni-dade. Para Laneyrie-Dagen (in LICHTENSTEIN, 2004, p. 13), no final do século XIX e começo do século XX, a forma da figura humana na

2 Durante todo o texto daqui em diante, ao se referir à figura humana feminina, será usada somente figura feminina.

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pintura começa a se modificar, reinventa-se um novo corpo e os artistas abrem mão das anatomias ideais, ou seja, tradicionais.

Com a mudança do século (XIX para X), as transformações eram evidentes em todos os aspectos da cultura. A arte se multiplica em várias vertentes (Expressionismo, Cubismo, Futurismo), analisa Zanini (1983, p. 508), as quais refletem a própria indecisão do homem dian-te das possibilidades difundidas por códigos visuais que projetavam um universo ajustado a um complexo movimento da realidade con-temporânea.

Ao adentrar na Arte Contemporânea Brasileira verifica-se, tam-bém, um aumento da variedade de experimentações com a pintura. A pintura de Gustavo Rosa Insere-se em meio a essa produção. Na pintu-ra contemporânea desse artista, como em Banhista (Figura 1), a figura feminina adota (ou retoma) as formas circulares e arredondadas pre-sentes em boa parte das representações de figuras femininas ao longo da história, embora com um desenho notadamente influenciado pelo modernismo, como denuncia a fragmentação do corpo; fragmentação esta que remete àquela presente em muitas obras de Picasso.

Figura 1 - Banhista, 2005. Gustavo Rosa. Óleo sobre tela, 40 x 50 cm.

Fonte: Klein (2007, p. 210).

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Nessas obras, feminilidade, sensualidade e alegria caracteri-zam a mulher. Elas são representadas, na maioria das vezes, em ambientes ao ar livre e no espaço urbano: praças, praias e parques, como no caso da obra “I love Rio”, de Gustavo Rosa, representada na Figura 2.

Figura 2 - I love Rio, 1988. Gustavo Rosa. Óleo sobre tela, 1,20 x 1,10 cm.

Fonte: Klein (2007, p.86).

Embora contemporânea, a obra de Gustavo Rosa traz sempre ele-mentos que remetem à história da pintura universal e, também, brasi-leira. A obra “I love Rio” (Figura 2) evidencia semelhanças para com o trabalho de Ismael Nery, na obra citada na Figura 3.

Ismael Nery (1900-1934), se iniciou na pintura no Rio de Janeiro, no período de 1921-1922. Na obra Figura (Figura 2), sobressai a presença da imaginação criativa, onde realidade e sonho se misturam em uma temática do inconsciente, dos sonhos, dos delírios, como na poética surrealista, o que ocorre a partir de 1927, ano em que viaja pela segunda vez à Europa.

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Figura 3 – Figura. c. 1927- 1928. Ismael Nery.Óleo sobre tela, 1,05X 69,2cm.

Fonte: Garcez e Oliveira (2003, p. 117)

A figura feminina é o elemento de ligação entre Gustavo Rosa nessa obra e Ismael Nery. Destacam-se o formato oval da cabeça e o cabelo esvoaçante e ondulado, a forma volumosa das coxas, grossas e rechonchudas, os olhos de duas cores: em Nery em preto e branco, em Rosa em vermelho e preto.

Nas obras de Gustavo Rosa observadas no estudo, a figura femini-na está sempre centralizada e em posição que permite observar a linha do horizonte, sugerida pelos planos das composições. Além disso, suas figuras femininas muitas vezes remetem a algum artista do passado, quer pelo tema, pela forma, por sua composição ou pelos significados que sugerem. Há, contudo, semelhanças maiores com obras do mo-vimento modernista; são responsáveis por isso, entre outros, as cores vibrantes, a planificação, o desenho bem-definido.

Gustavo Rosa nasceu em São Paulo no dia 20 de dezembro de 1946 e costuma dizer que já nasceu com um lápis nas mãos para de-senhar. Seu pai foi Isaias Rosa, um advogado; sua mãe, Maria Cecília Machado, de família tradicional paulista, dedicada aos filhos e ao lar (KLEIN, 2007, p. 289).

Buscou orientações e dicas sobre a profissão escolhida com os ar-tistas Alfredo Volpi, Aldo Bonadei e Carlos Scliar. Klein (2007) relata

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que, nos primeiros encontros com Gustavo Rosa para o desenvolvi-mento do livro que mostra sua trajetória artística de mais de 40 anos, o pintor fez questão de frisar:

Nunca pertenci a nenhum grupo de artistas, a nenhuma turma ou movimento das artes. Sempre atuei solitariamente, apesar de buscar - no início da minha carreira - orientação junto aos artistas que admirava, como Alfredo Volpi, Aldo Bonadei e Carlos Scliar (KLEIN, 2007, p. 11).

Independente da caracterização de Gustavo Rosa como artista plástico, é notável que sua obra mantenha uma ênfase no desenho e uma plasticidade que remetem sempre ao universo das artes gráficas. De fato, paralelamente à pintura, que é a sua paixão, e para além dela, esse artista trabalha sempre com o desenho. Segundo Klein (2007, p. 251), “O desenho é à base da Pintura e, consequentemente, a base da obra de Gustavo Rosa. Por trás de cada ideia, cada objeto, cada projeto do artista, está o Desenho”.

Para Gustavo Rosa, o papel da arte na sociedade contemporânea deve ser múltiplo e versátil, como disse em entrevista em seu Ateliê, localizado na rua Groenlândia, 310, no Itaim Bibi, São Paulo, no dia 6 de junho de 2009 (FERRA, 2009, p. 111). Segundo Klein (2007, p. 271), o artista que sabe lidar com isso concilia prestígio e lucratividade, conquistas recorrentes no caso de Gustavo Rosa.

Na análise das obras do artista observaram-se, na pintura em si (características plásticas, relação figura fundo, composição e outras) e nos temas, homenagens e relações diversas com a sociedade contem-porânea, a cultura e a mulher brasileiras, bem como com obras de ar-tistas do passado, que ficaram registradas nas histórias da arte do Brasil.

No período de 1960, quando morava no Morumbi, na cidade de São Paulo, bairro próximo a uma favela, mulheres e crianças, moradoras da favela, iam à casa da família de Gustavo Rosa apanhar baldes de água, autorizadas pela mãe do artista (KLEIN, 2007, p. 20). Nesse período, ele começou a retratá-las, já com traços que se tornaram característicos na sua produção posterior, como se pode ver na obra A lavadeira.

A obra A lavadeira (Figura 4) mostra uma das primeiras pinturas da figura feminina de Gustavo Rosa, já em uma forma estilizada.

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Na pintura, o artista não representa um ambiente específico, seja um espaço externo ou interno. Só uma figura feminina faz parte da composição: uma mulher, com um dos braços e a mão no rosto, como se ela estivesse limpando o suor do rosto ou simplesmente cansada.

Figura 4 - A lavadeira, 1965. Gustavo Rosa. Guache sobre cartão 30x20 cm.Fonte: Klein (2007, p. 42).

Seu vestido verde-escuro recebe tons de verde-claro, que ajudam a compor uma estampa, que é tanto um modo de ser mais naturalista quanto de fazer uso de um modo mais expressivo de usar o pincel, ambas as características que não são da obra do artista posteriormente. Já o contraste de cor, obtido com o balde vermelho e o chinelo preto, é semelhante a outros contrastes verificados em obras posteriores.

Os seus braços e pernas realçam, também, a sensação de volume. Em um ambiente aparentemente tranquilo e silencioso, a mulher se mostra estática e sem a definição de uma direção específica do olhar. As mulheres representadas em obras posteriores, a postura é mais dinâ-mica apesar da forma rechonchuda; e o olhar é, às vezes, um elemento importante na relação da obra com o observador.

É a partir dos anos de 2000, conforme Klein (2007), que as per-sonagens rechonchudas, gordinhas simpáticas, jovens ou não tão jo-vens, bailarinas, esportistas, nadadoras, voltam com muita força, sem-pre mostrando uma felicidade e uma alegria de viver, parecendo sair

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da tela para caminhar na estrada da vida. São essas figuras femininas que possuem uma verdade carregada de histórias e de subjetividade. É uma figura feminina inventada, a criação de um signo, que se impõe e fascina na sua apreensão da expressividade humana e, também, pelo grafismo e pelo seu colorido.

Toda obra é expressão de seu tempo e do espírito criativo que a produziu. Também, toda a obra tem uma natureza física que, por sua vez, pertence a um contexto histórico-geográfico, que a torna sig-no deste. Apesar disso, toda obra possui qualidades que transpõem as intenções do criador, do contexto que a produziu e dos espectado-res. Portanto, o significado da obra (da imagem que ela carrega), assim como das interpretações particulares, está além das intenções do artis-ta. Por isso, a obra, mesmo a figurativa, onde aparentemente o objeto é claro, é infinita e nunca passível de ser compreendida por inteiro; e o espectador nunca deixa de acrescentar, transformar e reformular os significados dessas imagens.

A obra A mulher pera (Figura 5), de Gustavo Rosa, é último quadro produzido até a data em que esta autora esteve em visita de estudos no Estúdio de Gustavo Rosa, para entrevistá-lo e para ver as obras de fato. Estar diante delas, na sua presença física, foi importante para evitar equívocos resultantes de lidar apenas com representações imagéticas das obras, dado que estas nem sempre podem ser fiéis na cor, na textu-ra e em outros detalhes que definem os aspectos qualitativos da obra.

Figura 5 - Mulher pera, 2009. Gustavo Rosa. Óleo sobre tela, 54 x 65 cm.

Fonte: Foto da autora, tirada no Ateliê do artista.

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No caso dessa obra, o artista estabelece relação com as mulheres exaltadas pelas mídias. Gustavo Rosa diz, em conversa com a autora, antes de gravar a entrevista realizada durante a pesquisa, que há a mu-lher pêra “como há a mulher melancia, mulher moranguinho, que são aclamadas pela mídia, jornais, revistas e os meios de produção eletrô-nicos na TV”. O corpo da figura feminina nessa obra tem o formato de uma pêra e, para reforçar essa ideia, ao lado desse mesmo corpo o ar-tista pintou uma pera (fruta). Aqui, nota-se que Gustavo Rosa mantém o traço firme, a composição clara e a adoção de temas bem-humorados, que são característicos da obra. A referência à relação entre a figura (mulher) da obra e a mídia contemporânea bem popular revela que esse artista não tem preconceito com temas.

Cabe destacar, diante dessa obra e comparando-a com as demais analisadas na dissertação, que, desde a obra A lavadeira (primeira obra desta análise) até a obra Mulher pêra (a última), os aspectos qualitativos e compositivos da sua pintura mudaram bastante. Com essas mudan-ças, as obras deixam de lado um modo de representar mais naturalista, para adotar um outro, mais abstrato e incorporando uma significação mais simbólica do que referencial.

A composição de uma figura sobre um fundo, que é regularmente um espaço aberto, já aparecia em A lavadeira e é mantida nas demais obras. A representação desse espaço, por meio de planos coloridos, que sugerem certa profundidade de campo sem, contudo, fazer uso de perspectiva, é algo que surge posteriormente e vai sendo mantido. O uso de duas ou mais cores primárias na mesma obra, que podem estar mesclados com outros tons, sempre muito claros e iluminados, também vai se firmando. O uso de texturas visuais muito suaves, em pinceladas que denunciam uma expressividade artística, apesar de os planos de cor parecerem quase “chapados”, também é algo que vai sendo aprimorado.

A representação da figura feminina, ora com linhas curvas, ora com linhas retas, mas sempre construindo formas que sugerem grande volume, é algo que está colocado potencialmente em A lavadeira, mas

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vai sendo definido e mantido posteriormente. A forma da figura na obra Mulher pêra, porém, diferentemente das outras, a torna quase um objeto: ela é meio mulher meio objeto, e isso é algo que é importante marcar. Essa dualidade mulher-objeto, notada aqui, embora torne essa mulher diferente das demais, de outro lado a torna, também, muito semelhante, porque trabalha com o sentido da dualidade já detectado antes. Essa dualidade é, também em Mulher pêra, marcada nos olhos e nos cabelos (de duas cores).

Tal é a insistência do artista em marcar essa dualidade nas obras que talvez seja esse o significado que mais importa, associado à sua re-elaboração da figura feminina para representar essa mulher que, como visto, remete a uma mulher brasileira comum. Em todas as obras, ela não é uma mulher em específico, mas sempre “a mulher brasileira co-mum” - ora dona de casa, ora se divertindo, ora prostituta, ora preo-cupada com a forma, ora a mulher gostosa e aclamada pela mídia - no sentido genérico do termo.

Daí o objeto do signo deixar de ser apenas algo particular, ligado à experiência subjetiva do artista – uma mulher que foi pegar água na casa da mãe -, para ser um geral, um objeto real – que contem algo que é comum a toda uma classe. Com isso, o signo passa de icônico-indicial a simbólico. E pertence à natureza simbólica dessa mulher representa-da por Gustavo Rosa uma dualidade recorrente, registrada iconicamen-te nos membros de duas cores, no cabelo de duas cores e na marca “olhos de duas cores”.

Considerações finais

Ao longo da análise, as figuras femininas de Gustavo Rosa foram se transformando, nos diferentes períodos de sua pintura. No início, a figura feminina era representada de uma maneira mais naturalista do que nos desenvolvimentos posteriores, porém, já apresentava características de uma estilização, presente na maioria das obras. Enquanto essa estilização vai se tornando característica, a obra de Gustavo passa por um desenho que remete ao cubismo até chegar às formas arredondadas, caracteri-zando uma mulher rechonchuda. Essas formas são parte do seu modo

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próprio de pintar hoje e foram consideradas relevantes para caracterizar a obra desse artista neste estudo.

Outro elemento pictórico marcante na obra de Gustavo Rosa são as cores que ele deu às mulheres em suas pinturas e, também, aos obje-tos e outros elementos da natureza presentes no espaço da obra, além do próprio espaço. O artista experimentou diferentes cores, fazendo clara opção pelas básicas (verdes, azuis, amarelos, vermelhos), além do pink (um tom muito forte de rosa), que se tornaram vivas e luminosas, pela opção de tons claros, abertos.

Há também que destacar os hábitos dessa figura feminina ou dessa mulher que, segundo as palavras do próprio Gustavo Rosa, em entrevis-ta (FERRA, 2009), não é uma mulher ou um conjunto de mulheres, mas a “mulher de uma forma geral”. Essa mulher tem hábitos alimentares saudáveis e demonstra que conhece como fazer dieta (frutas e revista na mão da figura feminina na obra Dieta saúde). Ela está, nos locais em que aparece, predominantemente ao ar livre e fazendo alguma ati-vidade: lendo, andando de bicicleta, pulando (caçando borboletas?), pulando o muro (!).

Nas obras de Gustavo Rosa que foram selecionadas, como se pro-curou mostrar especialmente no Capítulo 3 da dissertação, ora a figura feminina é vista como uma mulher comum (Lavadeira, Pic-nic), ora como uma prostituta (Zona) ou quase como um objeto (Mulher pera); ora, ainda, ela se presta a uma homenagem (Homenagem a Botero). Isso poderia ser lido como mera diversidade, se não fossem os signos de dualidade, que parecem marcar uma mulher que é, ao mesmo tempo, uma coisa e seu oposto, ou diferente; é o caso dos olhos e dos mem-bros de duas cores, da dualidade entre o tema e a obra (Samba, Nu). Esses signos de uma dualidade que, conforme registrado anteriormen-te, parece ser o significado que mais importa, se resolve em um signo de síntese: tudo isso é parte de um todo, em todas as obras essa mulher parece ser “a mulher brasileira comum”, uma mulher complexa, atípica.

Ao adentrar nos conceitos teóricos e metodológicos para a apli-cação de uma perspectiva semiótica peirciana, tomou-se contato com

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alguns conceitos que orientaram a leitura das obras e que permitiram entender a relevância no desenvolvimento de habilidades cognitivas capazes de promover a interação do leitor com os signos e seus proces-sos de significação. Não se tratou de seguir sistematicamente a meto-dologia organizada por Santaella (2008b), mas partiu-se desse modelo para proceder às análises, de modo a perceber as relações internas, bem como aquelas que existem entre as pinturas de Gustavo Rosa e as dos velhos mestres do passado.

ReferênciasARGAN, Giulio Carlo. Arte e Critica d’Arte. Tradução Helena Gubernates.1ed. Lisboa: Editorial Estampa, 1988.

FERRA, Janice de Campos. Gustavo Rosa: um pintor que brinca com as formas arredondadas e as cores vibrantes (Entrevista). Papéis. Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens, Campo Grande, MS: Editora da UFMS, v. 13, n. 26, 2009, p. 107-114.

KLEIN, Paulo (Curadoria e textos). Gustavo Rosa. Editor Antonio Carlos Gouveia e Cláudio Yida; arte Daniel Pereira dos Santos; Tradução Romeo Costa e Breno Arantes. São Paulo: Décor, 2007.

LANEYRIE-DAGEN, Nadeije. A figura humana. In: LICHTENSTEIN, Jaqueline (Org.). A pintura: a figura humana. Tradução Magnólia Costa (Coord.). São Paulo: Ed. 34, 2004. p. 9–13. v. 6.

LICHTENSTEIN, Jaqueline (Org.). A pintura: a figura humana. Tradução Magnólia Costa (Coord.). São Paulo: Ed. 34, 2004.

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Tradução Teixeira Coelho. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.

SANTAELLA, Lucia. Semiótica aplicada. São Paulo, SP: Pioneira Thonson Learning, 2008b.

ZANINI, Walter (org.). História Geral da Arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Salles, 1983. 2 v.

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Simulacros da juventude em letras de música de Renato RussoYouth’s images in Renato Russo’s song lyrics

Geraldo Vicente MartinsProfessor do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,Campo Grande – MS.

[email protected]

Resumo: À luz dos fundamentos teóricos da semiótica discursiva, analisam-se três letras de música do cantor e compositor Renato Russo, buscando verificar, nelas, a presença de simulacros do enunciador e do enunciatá-rio e sua importância para a constituição das concepções a respeito da juventude na obra desse artista.

Palavras-chave: Sintaxe discursiva. Debreagem. Simulacro.

Abstract: By the light of the theoretical foundations of discursive semiotic, we examine three song lyrics of singer-and songwriter Renato Russo, seek-ing to verify the presence of images of enunciating and enunciatee and its importance for the formation of conceptions of youth in work of this artist.

Keywords: Discursive syntax. Debreage. Image.

Introdução

Neste texto, tratamos, por meio de um estudo comparativo, dos simulacros do enunciador e do enunciatário presentes em letras de mú-sicas do cantor e compositor Renato Russo, vocalista da banda Legião

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Urbana. Tal abordagem procura verificar a importância desses simula-cros na constituição das concepções de juventude do artista.

Para o trabalho analítico, foram selecionadas três letras escritas por Russo em diferentes momentos: A dança (1985), Há tempos (1989) e Aloha (1996). A escolha de composições com um certo intervalo de tempo entre cada uma delas é proposital, pois, ao adotar tal proce-dimento, espera-se poder acompanhar um trajeto do letrista em seu modo de ver e conceber os jovens em épocas diversas e surpreender, nesses distintos estágios do compositor, semelhanças e diferenças que possam servir como elementos para a possível determinação e descri-ção de uma visão específica da juventude.

Para um maior aproveitamento do corpus, e porque se efetua a análise com base na semiótica discursiva, optamos, após uma leitura prévia, por trabalhar, sobretudo, com a descrição do uso do mecanismo de debreagem, característico da sintaxe discursiva, verificando quais os principais efeitos de sentido se encontram nos textos, não dispensando, porém, a utilização de outros importantes elementos da teoria.

Antes de passarmos à análise, porém, tornam-se necessárias duas rápidas digressões justificativas: uma irá contextualizar o autor estuda-do, procurando ilustrar a razão da escolha de suas composições como corpus de trabalho, e a outra irá nos levar em breve passeio pelos con-ceitos teóricos utilizados na análise.

Um compositor do mundo jovem

Nenhuma escolha de tema para trabalho é casual ou aleatória; ela envolve sempre razões anteriores. No presente caso, levou-nos ao estudo das letras de Renato Russo a preocupação com os jovens, que nelas se manifesta, e nas quais temas associados ao universo juvenil são uma constante.

Renato Russo surgiu na cena musical brasileira nos anos finais da década de 1970, tocando em uma banda chamada Aborto Elétrico e datam desse período algumas de suas composições que seriam utiliza-das mais tarde, quando ele, de fato, passaria a ter uma certa influência

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no quadro musical do país. Viviam-se os momentos finais do regime ditatorial militar que havia, entre outras arbitrariedades, cerceado a li-berdade de expressão artística.

O sucesso, contudo, só chegaria na metade dos anos 80, quan-do Renato participava de outra banda – a Legião Urbana. Mesclando uma temática que abordava, ao mesmo tempo, a problemática dos relacionamentos amorosos, a difícil passagem da adolescência para a maturidade e questões políticas, compostas em uma linguagem simples e com diversas referências culturais, suas letras logo caíram no agrado dos jovens, que faziam questão de decorá-las fosse para cantar, fos-se para mostrar aos amigos que conheciam o trabalho do compositor. Após Será, primeiro sucesso da banda, muitos outros vieram e apenas fizeram crescer, entre os jovens, o conceito de grande letrista de que Renato desfrutava.

Simultaneamente ao sucesso e amadurecido ele próprio pela pas-sagem do tempo e pelas experiências vividas, ia desenvolvendo sua verve de letrista musical. É importante considerá-lo tão-somente assim, uma vez que ele mesmo rejeitou o rótulo de poeta, concedido diversas e reiteradas vezes por jornalistas e críticos. Nos últimos anos de vida – morreu em outubro de 1996 – sua temática concentrou-se sobretudo nos desencantos advindos de relações amorosas mal resolvidas, toda-via, jamais deixou de dedicar algumas de suas letras a um problema que toca, muito de perto, os adolescentes: o desconforto causado pelo fato de o jovem não ser mais criança e não ser ainda adulto, mas um ser confuso e disforme ante a sociedade em que vive.

Para concluir, cabe ressaltar que os jovens correspondiam a essa busca de diálogo pretendida pelo compositor. Tal afirmativa comprova--se em entrevistas com jovens publicadas pouco depois de sua morte: a maioria o cita, com bastante carinho, como uma espécie de “irmão mais velho” – dada a compreensão que tinha de seus dramas pessoais, sempre presentes em suas canções.

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Teorizar é preciso...

A semiótica discursiva, teoria escolhida para a fundamentação deste trabalho, encontra-se, desde há algum tempo, em uma fase “su-ficientemente avançada” (BARROS, 2001, p. 5). Sabe-se que a preo-cupação da semiótica é, ainda pelas palavras de Barros, “determinar as condições em que um objeto se torna significante para o homem” (idem, p. 13), isto é, a teoria semiótica busca explicar como se engendra o sentido de um texto – este, visto em sua mais ampla acepção, pode ser um poema, um bilhete, um quadro, um filme, etc. Para alcançar esse objetivo, ela concebe um percurso gerativo do sentido que parte do mais simples e abstrato para chegar ao mais complexo e concreto, ao longo do que o texto recebe diversos investimentos semânticos e sintáxicos.

Esse percurso contém três níveis: o fundamental, o narrativo e o discursivo. No primeiro, nível das estruturas fundamentais, a significa-ção irrompe por meio de uma oposição semântica mínima; no segun-do, nível das estruturas narrativas, dá-se a organização da narrativa a partir do ponto de vista de um sujeito; finalmente, no terceiro, nível das estruturas discursivas, as estruturas do nível anterior são assumidas e discursivizadas por um sujeito da enunciação.

Iniciaremos as investigações pelo nível discursivo, uma vez que nosso interesse maior é analisar os simulacros construídos pelo enun-ciador e que dizem respeito aos seus possíveis enunciatários, os jovens. Também serão verificados os simulacros do próprio enunciador e as re-lações porventura existentes entre os simulacros que lhe dizem respeito e os que concernem ao enunciatário. Antes de explicarmos o conceito de simulacro, julgamos oportuno justificar a nossa escolha do nível dis-cursivo para início do trabalho de análise.

Cada um dos níveis do percurso gerativo do sentido possui um componente sintáxico e outro semântico. No presente trabalho, a aná-lise inicia-se por um mecanismo enunciativo que se localiza na sintaxe do nível discursivo: a debreagem. Esta é um dos mecanismos responsá-veis pela instauração de pessoas, espaços e tempos no enunciado – o

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outro mecanismo é a embreagem. Tomando a definição desses termos a Greimas e Courtès, Fiorin explica-os

debreagem é a operação em que a instância de enunciação disjunge de si e projeta para fora de si, no momento da discursivização, certos termos ligados a sua estrutura de base, com vistas à constituição dos elementos fundadores do enunciado, isto é, pessoa, espaço e tempo”(...) “embreagem é o “efeito de retorno à enunciação”, produzido pela neutralização das categorias de pessoa e/ou espaço e/ou tempo, assim como pela denegação da instância do enunciado (1996: 43 e 48).

Dos mecanismos acima, recorremos apenas à debreagem, impor-tante porque remete justamente à instância de enunciação e à figura do enunciador, responsável e pressuposto pela existência do enunciado. É na utilização desse mecanismo em suas diferentes possibilidades que nos apoiaremos durante a análise, focalizando, portanto, as marcas de pessoa, tempo e espaço deixadas pelo enunciador no enunciado.

Há dois tipos de debreagem: enunciativa e enunciva. A debreagem enunciativa ocorre quando se projeta no enunciado a pessoa (eu/tu), o espaço (aqui/aí) e o tempo (agora) que simulam a instância da enuncia-ção; já a debreagem enunciva é responsável pela projeção no enunciado da pessoa (ele), do espaço (lá) e do tempo (então) do próprio enunciado. Esses dois tipos de debreagem são responsáveis por dois grandes efeitos de sentido do discurso: subjetividade, no caso da debreagem enuncia-tiva, e objetividade, no caso da debreagem enunciva. Por outro lado, a embreagem, que é o mecanismo que leva à suspensão das oposições de pessoas, espaços e tempos, não será aqui utilizada por não se ter verifica-do, nas letras escolhidas, nenhum caso em que ela ocorresse.

Fiorin, na obra citada, faz um amplo estudo sobre os usos possíveis desse mecanismo, mostrando que produzem efeitos de sentido diver-sos na compreensão do enunciado. Acrescenta ainda que a utilização de um mecanismo em lugar de outro não é inconseqüente, mas, ao contrário, torna muitas vezes a percepção do sentido mais eficaz.

Deve-se ressaltar, todavia, que a primazia concedida ao nível discursivo não nos impede de verificar elementos que pertençam aos

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outros níveis do percurso. Assim, em certos momentos, investigaremos as relações existentes entre os sujeitos do enunciado, e os valores que perseguem, constituintes do nível narrativo – às vezes, o sujeito está conjunto, junto, com o objeto que deseja; em outras, encontra-se dele disjunto, separado; em outras passagens, faremos menção às oposições semânticas que a narrativa comporta, além das operações sintáticas – asserção e negação – que as organizam, o que concerne ao nível fundamental.

O percurso teórico apresenta, até este ponto, a intenção de reali-zar um estudo de relações que ocorrem entre sujeitos. Tal estudo con-voca, em primeiro plano, a “imagem” que o sujeito-enunciador possui do sujeito-enunciatário, o que constitui aquilo a que a semiótica chama de simulacro. Este , segundo a definição de Landowski, é

o tipo de figuras de componente modal e temático, com ajuda das quais os actantes da enunciação se deixam apreender mutuamente, uma vez projetados no âmbito do discurso enunciado. Por isso intervém necessariamente, de antemão a todo programa de manipulação intersubjetiva, a construção de tais simulacros na dimensão cognoscitiva (1991: 232 – tradução e grifos nossos)

Como se depreende da definição acima, não há possibilidade de uma relação intersubjetiva sem a construção de simulacros que organi-zem esse relacionamento. Ainda uma vez, cabe notar a oportuna lem-brança de Barros:

os simulacros são entendidos como objetos imaginários que o sujeito projeta e que, embora não tenham nenhum fundamento intersubjetivo, determinam de maneira eficaz as relações intersubjetivas. (1995: 96)

Tal afirmação, segundo a qual o simulacro não possui fundamen-tos intersubjetivos, diz respeito ao fato de ele ser resultado da con-cepção que apenas um dos sujeitos faz do mundo circundante. Mas essa concepção irá influir decididamente nas relações que esse sujeito mantiver com outros. Na análise do corpus escolhido, espera-se tornar mais visível a importância dos simulacros no relacionamento entre o enunciador, o “artista”, e o enunciatário, “o público jovem”.

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Uma leitura semiótica das letras

Para estabelecer um roteiro de análise, seguimos a ordem crono-lógica de composição das letras, assim a primeira a ser analisada é A dança, de 1985, que reproduzimos, na íntegra, abaixo.

Não sei o que é direitoSó vejo preconceitoE a sua roupa novaÉ só uma roupa novaVocê não tem idéiasP’rá acompanhar a modaTratando as meninasComo se fossem lixoOu então espécie raraSó a você pertenceOu então espécie raraQue você não respeitaOu então espécie raraQue é só um objetoP’rá usar e jogar foraDepois de ter prazer.

Você é tão modernoSe acha tão modernoMas é igual a seus paisÉ só questão de idadePassando dessa faseTanto fez e tanto faz.

Você com as suas drogasE as suas teoriasE a sua rebeldiaE a sua solidãoVive com seus excessosMas não tem mais dinheiroP’rá comprar outra fugaSair de casa entãoEntão é outra festaÉ outra sexta-feiraQue se dane o futuroVocê tem a vida inteira

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Você é tão espertoVocê está tão certoMas você nunca dançouCom ódio de verdade.

Você é tão espertoVocê está tão certoQue você nunca vai errarMas a vida deixa marcasTenha cuidadoSe um dia você dançar.

Nós somos tão modernosSó não somos sincerosNos escondemos mais e maisÉ só questão de idadePassando dessa faseTanto fez e tanto faz.

O primeiro verso1 apresenta-se construído por meio de uma de-breagem actancial enunciativa que instala no enunciado o simulacro do enunciador2: o eu. Tal debreagem encontra-se manifestada pela forma verbal sei, indicadora da primeira pessoa do singular; este verbo instala também uma debreagem temporal enunciativa, uma vez que pertence ao presente, temporalidade lingüística que procura simular a tempora-lidade da enunciação. Tem-se então, inicialmente, um enunciado que produz um efeito de sentido de subjetividade acompanhado pela ilu-são de simultaneidade temporal entre o dizer e o dito.

Esse recurso inicial empregado pelo enunciador é importante para o que o conteúdo da canção procura expressar: constatações a respeito

1 Embora tenhamos adotado a denominação verso, utilizada em poesia, para fazer referência ao que corresponderia à linha nos textos em prosa, reconhecemos que não há consenso entre os pesquisadores da área sobre a similaridade entre aquele gênero textual e o da letra de música. 2 Ao qual também poderíamos chamar narrador, mas, devido aos objetivos deste tra-balho, optamos por chamar simulacro do enunciador ou enunciador somente. O mesmo se aplica ao narratário, que se denominará simulacro do enunciatário ou enunciatário.

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do cotidiano juvenil. Mas não adiantemos, apenas acompanhemos o desenvolvimento narrativo da letra em questão.

Os versos iniciais instauram uma oposição essência vs. aparência, manifestada no conflito entre o saber e o ver do enunciador. Tal oposi-ção revela a condição em que esse sujeito emitirá o seu ponto de vista sobre o mundo que o abriga: trata-se de uma opinião fundamentada explicitamente no parecer, segundo a própria declaração do enuncia-dor – e que por essa razão, estar fundamentada na aparência das coi-sas, torna-se ainda mais passível de enganos (exceto se o parecer for assimilado ao ser).

Na continuidade desta primeira estrofe3, temos a instalação do simulacro do enunciatário, por meio da convocação, inicialmente do possessivo sua, seguido pelo pronome pessoal você, reforçando a de-breagem actancial enunciativa dos versos anteriores. A imagem primei-ra desse outro sujeito possui um certo teor negativo, pois são feitas constatações a seu respeito que remetem ao seu preconceito – men-cionado anteriormente pelo enunciador. Tais constatações constróem o simulacro de um sujeito vaidoso (no vestir-se), machista (no tratamento com a mulher) – pressupõe-se que se trate de um sujeito masculino justamente por essa indicação de relacionamento – e dominador, pois procura manipular o outro como mero objeto, útil apenas enquanto serve a seus desejos. Essa relação entre o enunciatário e seres do outro sexo é bastante desigual, posto que ele sempre se coloca em uma po-sição de superioridade. Aliás, a recorrência constante dos possessivos indica já essa sensação de posse que o enunciatário tem sobre tudo que o cerca, o que concerne não apenas a bens materiais mas também aos próprios seres humanos outros que com ele convivem.

Decorrente dessa primeira visão, poderíamos concluir que se apresenta um enunciatário com imagem bastante negativa ou, para usar os termos da teoria, disfórica – a semiótica discursiva articula, em sua semântica do nível fundamental, as categorias do texto pela opo-sição euforia vs. disforia, na qual o primeiro termo é reservado aos

3 Por coerência metodológica, denominamos estrofe a cada conjunto de versos da letra.

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valores que apresentam o ser vivo em conformidade com os conteúdos representados e o segundo, aos que o apresentam em desconformida-de com esses conteúdos. A continuidade da análise há de verificar se existe uma manutenção dessa visão disfórica do sujeito ou se ela sofre alterações.

A estrofe seguinte inicia-se, porém, com a atribuição de um pre-dicativo ao enunciatário que seria, em um primeiro momento, neutro: moderno – ressalte-se que este se faz acompanhar por um advérbio que possui valor apreciativo: tão. Se considerarmos que um dos signi-ficados de moderno é “pertencente ao nosso tempo”, veremos já uma implicação não só do tempo presente neste lexema, mas também, e so-bretudo, de coletividade, pois infere-se a presença de um certo padrão do senso comum para que algo seja considerado moderno, o que está manifestado, na definição dada, pelo pronome nosso.

Todavia, o segundo verso desta estrofe irá amenizar essa primeira indicação, uma vez que o predicativo, que parecia ter sido conferido objetivamente pelo enunciador ao enunciatário, passa a ser visto como uma visão que este último tem de si próprio, embora transmitido pela ótica do enunciador. Trata-se, na verdade, de um simulacro do simula-cro, visto tratar-se do simulacro que um dos sujeitos concebe a respeito do simulacro que um outro sujeito tem de si. Contudo, mais relevante é a reiteração da oposição essência vs. aparência, presente no confron-to entre os dois simulacros, em que o ser moderno é algo bastante di-verso de achar-se, parecer, moderno. Sob a voz do enunciador, ouve-se a voz do enunciatário.

O verso seguinte é iniciado pelo adversativo mas e indica a reto-mada do discurso pelo enunciador e o retorno de sua opinião. Para ele, não há nenhuma modernidade nas atitudes do enunciatário, pelo contrário, seu agir demonstra semelhanças com o que já era feito desde tempos anteriores. Todavia, a neutralidade desse fazer é invo-cada; os atos do outro não são de sua própria responsabilidade, mas de um comportamento típico da coletividade em determinado tempo de sua existência. A concepção disfórica do outro estaria começando

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a desfazer-se?

A seguir, retoma-se o tom dialogal, inserindo-se, novamente, no enunciado notas sobre o comportamento do outro frente ao mundo. Outra vez, a impressão é de que ao outro são atribuídas atitudes que conotam valores disfóricos: consumo de drogas, teorias próprias que justifiquem seus atos, livrando-o assim de condenações e culpas, gestos rebeldes, isolamento, excessos. Outra vez o adversativo mas surge para interromper essa seqüência de fazeres negativos do enunciatário. Esse termo aparece quase como um limite, todavia, os limites não importam ao outro, aliás, pela visão do enunciador, nada lhe importa. Afinal, para o jovem que importa o próprio futuro frente à vida inteira? Assim, mais uma vez, sob a voz do enunciador ouve-se a voz do outro sujeito...

Analisando a temporalidade desta letra, notou-se anteriormente que se encontra construída sobre o tempo presente: trata-se de uma debreagem temporal enunciativa, pois simula o tempo da enunciação. Esse presente é mantido durante quase todo o texto, exceção feita a quatro de seus momentos: nos versos que mostram a indiferença que o jovem possui por suas atitudes – Tanto fez e tanto faz –, em que se coloca a primeira forma do verbo fazer no pretérito; em uma das vezes que se ouve a voz do enunciatário sob a do enunciador – Que você nunca vai errar –, em que a perífrase verbal apresenta-se no futuro; e, finalmente, nas duas vezes em que se emprega o verbo dançar, que res-gata o título da letra – Mas você nunca dançou e Se um dia você dançar –, a primeira está no pretérito e a segunda, no futuro. A comunicação entre os sujeitos vale-se, portanto, de uma ilusão temporal que se torna responsável pela impressão de um constante atualizar-se, no tempo, dos conteúdos aí manifestados.

Mas, do que se constatou acima, a respeito do tempo no texto, cumpre destacar a hipótese do ato de dançar, que se encontra colocado como não ocorrido no passado, mas como uma possibilidade de acontecimento futuro. Essa constatação é ainda mais importante se lembrarmos que, na linguagem da juventude brasileira, dançar significa “ser mal sucedido em seus atos”. Assim, a mensagem implícita, que

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pode ser extraída até a quarta estrofe da letra, leva-nos a pensar que o enunciador acredita que esse comportamento do enunciatário, disfórico em sua visão, permanece somente porque ele nunca teve problemas decorrentes desse modo de agir – nas palavras do texto, nunca dançou. Todavia, não há qualquer condenação sobre o comportamento do outro.

Eis que nos deparamos com a estrofe final. E a surpresa: não há mais um eu e um você, mas um nós que subsume os dois sujeitos da enunciação, tornando-os cúmplices em seus atos e fazeres. Não há, na verdade, uma oposição aparência vs. essência, pois, assume-se, ser mo-derno não significa ser sincero; o que se vê pode não ser direito, mas é o que é. A responsabilidade final de seus atos não pertence ao jovem, mas é próprio de uma fase da vida e não há transformação possível des-se fazer sem a passagem desse período – a menos que lhe sobrevenha algum fato muito significativo.

Com o término da letra, e desta nossa primeira verificação, talvez se possa dizer que mais do que cúmplice do enunciatário, o enuncia-dor é compreensivo com seus atos e solidário a ele. É o que essa nova debreagem actancial enunciativa, responsável pela instalação desse nós coletivo, vem dizer.

A próxima letra a merecer nossa atenção é Há tempos, de 1989.

Parece cocaína mas é só tristeza, talvez tua cidadeMuitos temores nascem do cansaço e da solidãoE o descompasso e o desperdício herdeiros sãoAgora da virtude que perdemosHá tempos tive um sonhoNão me lembro não me lembroTua tristeza é tão exataE hoje o dia é tão bonitoJá estamos acostumados A não termos mais nem issoOs sonhos vêmE os sonhos vãoO resto é imperfeito.Disseste que se tua voz tivesse força igualÀ imensa dor que sentes

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Teu grito acordariaNão só a tua casaMas a vizinhança inteira.E há tempos nem os santos têm ao certoA medida da maldadeHá tempos são os jovens que adoecemHá tempos o encanto está ausenteE há ferrugem nos sorrisosE só o acaso estende os braçosA quem procura abrigo e proteção.Meu amor, disciplina é liberdadeCompaixão é fortalezaTer bondade é ter coragemE ela disse:Lá em casa tem um poço mas a água é muito limpa.

Embora a impressão inicial seja de uma debreagem actancial enun-civa, que teria instalado no enunciado um actante que lhe pertença – um ele, no caso o sentimento de tristeza, logo a seguir, percebe-se que se trata de uma enunciativa, pois a presença do possessivo tua instala o si-mulacro do enunciatário, um dos actantes da enunciação.

O primeiro verso indica já a presença da disforia, uma vez que o sentimento de tristeza mostra uma situação de desconformidade do sujeito à realidade que o cerca. O segundo e o terceiro versos irão confirmar a presença dessa disforia, pois, de uma perspectiva enun-civa objetivante, apresentam uma conjunção dos sujeitos, enunciador e enunciatário, com elementos disfóricos – descompasso, desperdício – e uma conseqüente disjunção de algo eufórico – virtude. Note-se a instauração, desde esse instante, de uma cumplicidade entre os sujeitos – indicada pela forma verbal perdemos, pertencente à primeira pessoa do plural, nós.

Também nesta segunda letra, trabalha-se com a debreagem temporal enunciativa, exceto em dois trechos, que se encontram justamente nestes versos que ora verificamos: Agora da virtude que perdemos, em que a forma verbal indica a anterioridade de um estado em que havia a conjunção entre o sujeito e a virtude, ausente no

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momento presente; e Há tempos tive um sonho, no qual surge pela primeira vez a expressão que dá nome à letra e esta aqui se apresenta com um valor restrospectivo, referindo-se apenas ao passado – contrariamente ao que irá acontecer nas próximas vezes em que essa mesma expressão manifestar-se. A forma verbal que reitera esse tempo pretérito é tive.

Observe-se que, no curto espaço dos cinco primeiro versos, o tra-balho com a debreagem já oscilou várias vezes: passou-se de um tu inicial – tua – a um eles – temores, depois, deste passou-se a um nós – perdemos – e, no quinto verso, a um eu – tive. É como se, por meio desse recurso semelhante a um traveling cinematográfico, o enunciador chamasse a atenção para todo um contexto, obrigando-nos a conside-rar vários aspectos da condição em que se inserem os simulacros – o seu, enunciador, e o do enunciatário.

Tanto assim é que na seqüência do texto a debreagem efetua, mais uma vez, a passagem do eu para o tu, isto um instante depois de mencionar o esquecimento de um sonho. Este sonho se contrapõe à tristeza que se apodera do enunciatário; tristeza que, acompanhada pelo apreciativo tão, recebe uma dimensão específica – exata.

Essa conjunção entre o enunciatário e a tristeza que permanece desde o início não é alterada sequer pela beleza do dia. Tem-se, então, que o sujeito, pelo menos é o que se pode pressupor do enunciatário, não se deixa influenciar por valores exteroceptivos, como fizera supor o primeiro verso ao atribuir à cidade uma possível parcela de culpa no es-tado disfórico do sujeito, mas o que torna o ânimo desse sujeito variável são valores interoceptivos – sobretudo, talvez, a perda da virtude.

Os simulacros dos sujeitos encontram-se marcados, consideravel-mente, pela disforia que advém dessa influência da perda de valores que lhes são deveras significativos. Os versos seguintes expressam essa condição quando informam que tais sujeitos já se encontram disjuntos dos valores há determinado tempo: Já estamos acostumados / A não termos mais nem isso – ou seja, nem mesmo a beleza de um dia lhes tem sido permitida, quanto mais sentimentos preciosos.

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A continuidade da letra apresenta o enunciador a refletir sobre a efemeridade dos sonhos: enquanto estes passam, a realidade permanece. É possível depreender que apenas nos sonhos haveria a possibilidade de recuperar a virtude perdida, uma vez que se faz uma menção à imperfeição de tudo o mais – O resto é imperfeito. Encontramo-nos, uma vez mais, frente a um registro enuncivo, mas ainda assim, pelo contexto dado, não se obtém um efeito de sentido se objetividade, ao contrário, mesmo nessa debreagem enunciva, encontra-se um acentuado traço subjetivo.

A seguir, retomam-se, por meio de uma enunciação reportada, as palavras do enunciatário. Este se revela tomado por uma estado de âni-mo angustiante, no qual se transmitem, ao mesmo tempo, um desejo e uma impossibilidade, que se encontram reforçados pela utilização, na sintaxe frasal, de uma forma verbal no modo subjuntivo – tivesse – tornando ainda mais significativa a incerteza e a pouca probabilidade de que o fato mencionado ocorra, isto é, a expressão de um grito que pudesse transmitir toda a sua dor. Opõem-se aqui o vivido – a dor – e o sonhado – a voz.

Triste torna-se o tempo em que os sonhos são negados. Eis o tem-po em que vivem enunciador e enunciatário: tempos sombrios. Assim, a perspectiva enunciva que se instala na seqüência nada mais é do que a reiteração dessa época por meio de impressões interiores do enun-ciador. A expressão há tempos reaparece para mostrar não um evento ocorrido no pretérito, como fizera antes, mas, marcado pelo aspecto durativo, vem indicar a recorrência de acontecimentos que atualizam a categoria da disforia no interior do texto: sujeitos que se encontram em disjunção com a bondade, a saúde, o encanto, a alegria e a solidarieda-de. Enfim, não há condições para que o bem se efetive nesse tempo e nesse mundo que o texto construiu.

Poder-se-ia dizer, depois do parágrafo anterior, que tal texto apre-senta, no momento, o simulacro de um mundo vão – e o que mais se pode esperar de um mundo sem virtude? O enunciador construiu, então, até o presente trecho, um discurso com um efeito de sentido de

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extremo pessimismo, no qual não se vislumbram perspectivas eufóricas para os sujeitos.

No verso seguinte, tem-se a apresentação do enunciador e enun-ciatário como amantes, uma vez que a introdução de um predicativo no diálogo entre esses sujeitos – amor – põe às claras essa situação. O diálogo erige-se justamente sobre a importância de se resgatarem algumas “virtudes”: disciplina, liberdade, compaixão, fortaleza, bon-dade e coragem. A estrutura dialogal apresenta-se sob a forma de uma proposição, isto é, propõe-se ao enunciatário a volta à prática dessas virtudes, e, para a resposta desse outro sujeito, instala-se uma debreagem de segundo grau, a qual permite a sua manifestação, sem a mediação do enunciador, ou seja, surge um simulacro da enuncia-ção do enunciatário.

Antes dessa enunciação, porém, tem-se a passagem do tu, que caracterizava o enunciatário, para um ela, o que deixa ainda mais cla-ra a relação de amantes que já fora sugerida versos antes. Há também esse afastamento do outro, uma vez que de instância enunciativa (tu), ele passa a enunciva (ela) – a ausência de virtudes acaba afastando mesmo os seres mais próximos, mais unidos.

Essa concessão da palavra ao outro, para que a ele caiba a enun-ciação final do texto, além de um efeito de sentido de realidade, cau-sa um efeito de estranhamento, pois antes só se ouvira, diretamente, a voz do enunciador. Mas, ainda mais estranho, torna-se o conteúdo dessa enunciação: uma consideração sobre a pureza da água do poço de sua casa.

O efeito de sentido que nos resta ao final do texto é inesperado, pois o que se apresentava era uma estrutura em que se podia pressu-por a passagem a uma situação de conjunção com os valores perdidos – sobretudo com a virtude –, afinal, passara-se da disjunção a não--disjunção, quando o enunciador propusera ao enunciatário, o res-gate das virtudes, mas, como este último não se manifesta a respeito, os sujeitos permanecem em um estado suspensivo, no qual nenhuma conjunção pode-se concretizar. Aqui, o simulacro do enunciador ter-

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mina sendo condicionado pela palavra do enunciatário, o que, contu-do, não deixa de ser sua criação e revelar sua própria imagem.

A última letra a ser analisada é Aloha, de 1996.

Será que ninguém vê o caos em que vivemosOs jovens são tão jovens e fica tudo por isso mesmoA juventude é rica, a juventude é pobreA juventude sofre e ninguém parece perceberEu tenho um coraçãoEu tenho ideaisEu gosto de cinemaE de coisas naturaisE penso empre em sexo, oh yeah!Todo adulto tem inveja dos mais jovensA juventude está sozinhaNão há ninguém para ajudarA explicar por que é que o mundoÉ este desastre que aí estáEu não sei, eu não seiDizem que eu não sei nadaDizem que eu não tenho opiniãoMe compram, me vendem, me estragamE é tudo mentira, me deixam na mãoNão me deixam fazer nadaE a culpa é sempre minha, oh yeah!E meus amigos parecem ter medoDe quem fala o que sentiuDe quem pensa diferenteNos querem todos iguaisAssim é bem mais fácil nos controlarE mentir mentir mentirE matar matar matarO que eu tenho de melhor: minha esperançaQue se faça o sacrifícioE cresçam logo as crianças.

Entre a composição da primeira letra analisada e desta, onze anos se passaram, o que pode provocar uma grande mudança na maneira que alguém possui de ver e conceber sua imagem a respeito dos jovens. Se se levar em conta a figurativização desse componente temático nas

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letras de Renato Russo, perceber-se-á logo como as coisas mudaram bastante nesse período. Mas verifiquemos a presente letra.

Temos, de início, a instalação de uma debreagem actancial enuncia-tiva, uma vez que se encontra construída a partir da perspectiva de um actante da enunciação: o nós – manifestado pela forma verbal vivemos. Mais uma vez, o enunciador encontra-se sincretizado com o enunciatá-rio, o que se associa a uma idéia de cumplicidade entre esses sujeitos. Este verso inicial comporta ainda a situação de desordem a que os atores do enunciado, que serão apresentados em seguida, são relegados.

O recurso figurativo a que aludíamos acima surge no segundo verso. Os atores são nomeados de jovens – uma menção explícita ao enunciatário. A reiteração de uma condição específica dos jovens, pre-sente nesse trecho, reforça a particularidade que há no ser jovem.

Também a temporalidade desta letra encontra-se marcada pelo presente, tempo que simula a enunciação, resultante de uma debrea-gem temporal enunciativa. Parece que aos jovens o único discurso inte-ressante é o do presente. Cabe ressaltar ainda que de uma debreagem actancial enunciativa – nós – passou-se a uma enunciva – os jovens. Tal recurso, porém, não indica um abandono do enunciatário pelo enun-ciador, mas tão-somente a sua observação por um outro ângulo, que se pretende menos subjetivo, todavia, o olhar desse enunciador permane-ce solidário aos jovens – efeito reforçado pela manutenção do tempo enunciativo.

O terceiro verso apresenta termos contrários como predicativos da juventude – rica, pobre. Sabe-se que a união de termos contrários leva ao surgimento de um termo complexo e é desta forma que se nos apresenta a condição da juventude: complexa, incompreensível. Daí o encadeamento lógico do verso seguinte que enuncia o sofrimento dessa juventude devido à incompreensão e à não-percepção que os outros têm de sua situação particular. Por esse motivo, a construção do simulacro de um enunciador que seja solidário a essa condição torna-se bastante atraente para os jovens, justificando o interesse do enunciatá-rio no discurso enunciado.

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Da perspectiva enunciva em que se colocara para observar, de maneira global, os jovens, o enunciador efetua uma nova debreagem enunciativa em que instala o pronome pessoal eu, simulando sua pró-pria presença no interior do discurso. Assume, então, valores e idéias características da juventude a que supostamente se dirige. O simulacro do enunciador atualiza em sua fala um comportamento que se revela idiossincrático – aliás, algo bastante peculiar do jovem: a busca de ati-tudes próprias.

Se a juventude é a época em que os sonhos estão mais presentes na vida do homem, quando este pretende reformar o mundo em que vive, nada mais justo que ele se considere um humanista nato – tenha um coração – e acredite em seus ideais. É ainda a fase de procurar seus heróis e ídolos – na arte, no cinema. Além de o jovem encontrar-se no vigor físico – e, por esse motivo, pensar sempre em sexo. O simulacro do jovem que o enunciador constrói é, então, bastante fiel ao que a “realidade” mostra.

A debreagem enunciva que se apresenta a seguir indica a exis-tência de uma forte oposição jovem vs. adulto, sendo que o texto co-loca-se, visivelmente, ao lado da primeira categoria dessa oposição. É como se a culpa pelo estado caótico em que o mundo se encontra fosse imputada, no discurso do enunciador, somente aos mais velhos – estes seriam responsáveis ainda pelo desamparo em que a juventude se encontra.

A oposição apontada acima é explorada na passagem em que, logo após mostrar o jovem como sujeito que não consegue entender a realidade circundante, mostra-se a visão que o adulto possui do jovem, atribuindo-lhe ignorância e ausência de uma identidade própria – falta à juventude o saber para alcançar o ser. Essa oposição é reforçada pelo apontamento, nos versos seguintes, da manipulação a que os adultos submetem os jovens, tratando-os como objetos, utilizando-os de acor-do com os seus fins, levando-os ainda, ao fim, a interiorizarem a sensa-ção de culpa por esse tratamento recebido.

Tal atitude por parte dos adultos só poderia conduzir a juventude a

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um estado de opressão, assim os jovens passam a sentir medo de expres-sar aquilo que realmente sentem, ficam inibidos de serem autênticos, achando conveniente adotar os padrões do mundo adulto e prosseguir no caminho de seus erros – o que facilita a sua dominação e a manuten-ção do status quo idealizado pelos outros. É a essa morte que o enun-ciador deseja referir-se quando reitera seguidamente um assassínio – E matar matar matar: a morte dos ideais humanitários, mais justos, para a construção de um mundo outro, diferente do dos adultos. É a aniqui-lação da esperança, como assinala o texto em seguida; é a disjunção total do sujeito jovens, do actante coletivo juventude, com valores repre-sentativos de uma nova vida que o adulto – esse ser apresentado como ninguém em alguns trechos da canção – pretende realizar.

E se, no momento presente, ele consegue esse seu intento, a disjunção, não significa que a guerra tenha sido perdida pela juven-tude, uma vez que logo hão de vir outros jovens – as crianças que crescerão. Isto significa que o final da questão deixa, em estado virtual, o prosseguimento dessa busca de um novo mundo à juventude futura. Um simulacro da esperança, apesar de sua morte, é a mensagem final da letra.

Considerações finais

Ainda que os resultados alcançados pela verificação das letras não tenham sido alvo de uma análise mais profunda, arriscamo-nos a extrair deles algumas conclusões, as quais expomos a seguir:

- utiliza-se, nas letras, predominantemente, o mecanismo de de-breagem actancial enunciativa, uma vez que, desta forma, torna-se possível ao enunciador estabelecer uma relação de cumplicidade e so-lidariedade com o enunciatário;

- também no que diz respeito à temporalidade, há uma notável preferência pelo tempo enunciativo, o presente, o que cria uma ilusão temporal de simultaneidade entre a enunciação e o enunciado, atuali-zando o diálogo entre enunciador e enunciatário;

- entre a primeira e última letra, com a passagem do tempo, perce-

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be-se que há uma evolução na maneira pela qual o enunciador dirige--se ao enunciatário: se na primeira, tal convocação desse último sujeito é velada, na última, ela se torna bastante explícita. O que não se altera com o tempo, somente progride, é a atitude compreensiva que o enun-ciador dirige ao outro;

- pode-se dizer, enfim, que o simulacro do enunciador assume a condição existencial do simulacro do enunciatário para dele se aproxi-mar e exprimir melhor os anseios que tal sujeito possui.

São essas as conclusões a que chegamos ao final da leitura sobre o corpus escolhido.

ReferênciasBARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso – fundamentos semióticos. 2ª ed. São

Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001, 172 p.

_____. “Sintaxe narrativa”. In: Do inteligível ao sensível: em torno da obra de Algirdas Julien Greimas. São Paulo: EDUC, 1995, p 81-97.

FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 1996, 318 p.

LANDOWSKI, Eric. “Simulacro”. In: Semiótica. Diccionario razonado de la teoria del lenguaje – tomo II. Madrid: Gredos, 1991, p 232-2.

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O futebol-arte brasileiro: aspectos discursivos da constituição e legitimação de uma identidade nacionalThe Brazilian “artistic soccer”: discursive aspects of construction and legitimization of a national identity

Ariane Rodrigues de OliveiraAcadêmica do Curso de Letras da

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,Campo Grande – [email protected]

Ana Carolina Vilela-ArdenghiProfessora do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,Campo Grande – MS.

[email protected]

Resumo: O presente artigo objetiva apresentar uma análise do fenômeno da constituição/legitimação de uma identidade nacional a partir de uma abor-dagem discursiva, mais especificamente, no interior do quadro teórico--metodológico da escola francesa de Análise do Discurso (AD). A consti-tuição dessa identidade envolve uma série de elementos, dentre os quais se podem destacar a língua, o território, a economia, os atletas, a religião etc. Neste artigo, analisamos como o futebol, no caso do Brasil, se rela-ciona com a definição desta identidade nacional. Isso porque, como é amplamente sabido, o futebol é apontado como o esporte nacional por excelência e as matérias esportivas frequentemente falam em um “verda-deiro futebol brasileiro”, que representaria, em certa medida, os traços ca-racterísticos do país. Para tanto, nosso corpus constituiu-se de 28 matérias esportivas, cartas de leitores e de uma propaganda de material esportivo a fim de analisarmos e descrevermos o funcionamento dos discursos que as-sociam este esporte a uma certa identidade nacional. A partir das análises, pudemos observar que, diferentemente do que supúnhamos inicialmente,

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a identidade nacional construída discursivamente a partir do futebol não se liga de maneira exclusiva ao chamado “futebol-arte”. Os resultados al-cançados nos permitiram descrever, por meio da materialidade linguística, o funcionamento de um discurso que busca conciliar os modos de jogo co-nhecidos como “futebol de resultados” e do já mencionado “futebol-arte”.

Palavras-chave: Futebol. Análise do discurso. Fórmula. Identidade nacional.

Abstract: The present article intends to present an analysis of the phenomenon of construction/legitimization of a national identity from a discursive ap-proach, more specifically, from the theoretical and methodological frame-work of the French Discourse Analysis (DA). The constitution of such iden-tity involves a series of elements, among which we could point out the language, the territory, the economy, the athletes and religion. In this article we analyze how the soccer, in the Brazilian case, is related to the definition of that national identity. This comes from the widely known fact that soccer is considered to be the national sport in the country and sports articles fre-quently talk about a “genuine Brazilian soccer” that would represent, to a certain extent, the country’s most remarkable features. In order to achieve that, the corpus gathered 28 sports articles, readers’ letters and a cam-paign of a sports product so as to allow the analysis and description of the discourses that associate this sport to a certain national identity. From the analysis, we could observe that, different from what we supposed at first, the national identity that is discursively built by soccer does not connect neither directly nor exclusively to the so called “artistic soccer”. The results allowed us to describe, based on the linguistic material, themodus ope-randi of a discourse that constantly tries to conciliate two different styles, known as “results soccer” and the previously mentioned “artistic soccer”.

Keywords: Soccer. Discourse Analysis. Formula. National identity.

Introdução

No presente artigo, nos propusemos a analisar discursivamente a relação do futebol-arte com a identidade nacional. Como a proposta se inscreve no campo teórico-metodológico da Análise do Discurso de

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linha francesa (doravante AD), o que interessa de maneira mais especí-fica ao analista do discurso é pensar a questão identitária na sua relação com a linguagem e o que a linguagem pode contribuir para pensar a identidade, e é o que pretendemos fazer ao longo do trabalho.

Como em AD, teoria e prática encontram-se profundamente im-bricadas, nosso trabalho – como os demais em AD – não apresenta, por exemplo, uma separação entre teoria e prática. Assim, ele se subdivide em três partes: num primeiro momento, faremos algumas considera-ções em torno da questão identitária, debatendo por que o futebol (em especial o futebol-arte) pode ser apontado como constituinte da iden-tidade nacional; na sequência, apresentaremos o quadro teórico-meto-dológico utilizado, a partir do qual investigaremos o caráter formulaico do sintagma “futebol-arte” – se ele pode ou não ser considerado uma “fórmula” (para o que nos valeremos dos estudos de Krieg-Planque, 2010); depois faremos a análise do nosso corpus, apresentando as re-lações que ali encontramos do futebol-arte com a identidade nacional. Há ainda uma observação a respeito das referências que consideramos pertinente fazer: para fins didáticos, nós as separamos em dois blocos, sendo o primeiro o das referências de pesquisa e o segundo o das refe-rências do corpus, isto é, do material analisado.

Assim, no artigo que ora se propõe, partiremos do sintagma “fute-bol-arte” (e suas possíveis transformações) nas matérias esportivas na-cionais para analisar as relações (discursivas) estabelecidas com uma identidade brasileira.

Algumas considerações em torno da questão identitária

A questão da construção/legitimação da identidade nacional não pode ser analisada como se se tratasse de algo homogêneo, pois, como observa Da Matta (1986, p.101): “a sociedade brasileira não poderia ser entendida de modo unitário, na base de uma só causa ou de um só princípio social”. Assim, pode-se dizer que diversos fatores concorrem para a construção da chamada identidade nacional.

A esse respeito, por exemplo, Hobsbawn (2004), estudando o processo de formação dos Estados-nações europeus, destaca alguns

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elementos que, ao longo do tempo, concorreram para a definição das suas identidades nacionais, tais como língua, raça, religião, ter-ritório, atletas dentre outros. Chauí, a partir da leitura de Hobsbawn (2004), propõe que a esses elementos dê-se o nome de semióforos, signos que “indica[m] algo que significa alguma outra coisa e cujo va-lor não é medido por sua materialidade e sim por sua força simbólica” (CHAUÍ, apud Vilela-Ardenghi, 2007, p 48). Nesse sentido, a nação seria, ela mesma, um semióforo-matriz, que abrigaria os demais ele-mentos mencionados em Hobsbawn. É, pois, nesse cenário que nos situamos ao propor que, no caso brasileiro, o futebol representaria um traço de nossa identidade; ou, valendo-nos dos conceitos apre-sentados acima, considerar o futebol como um semióforo.

E é o próprio Hobsbawn (2004) quem observa que os esportes de maneira geral podem, sim, ser fonte de identificação nacional. Falando sobre os meios de o Estado exercer domínio sob a população, garantir a lealdade do povo e assim fazê-los sentir-se como parte da nação, Hobs-bawn (2004) aponta que foi necessário que os Estados desenvolvessem uma espécie de “religião cívica”: o patriotismo, que foi deslocado para o campo dos esportes; comentando o fenômeno descrito pelo autor, Vilela-Ardenghi (2007, p. 56) destaca que

as Olimpíadas e a Copa do Mundo são exemplos de como os esportes passaram a representar uma fonte de autoafirmação nacional. O torcedor, ao se identificar com o atleta como um símbolo nacional, transfere o sentimento de lealdade para com o time ou com a equipe para a nação, transformando-se, ele também, num símbolo nacional.

No caso brasileiro, a identificação do país com o futebol é, sabe-se, bastante grande e o que propomos aqui — que o futebol seja visto como um fator da construção e/ou legitimação de nossa identidade nacional — não é algo novo: para ficar em um exemplo apenas, pode-se citar Bellos (2003), para quem o futebol não só seria, conforme

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propomos, um semióforo, como seria o mais importante deles na definição da identidade brasileira.

A história do país com o futebol vem sendo escrita (e até certo ponto confundida) ao longo dos anos, desde a chegada do estudante Charles Miller, em 1894, trazendo na bagagem após período de estu-dos na Inglaterra, o football. Foi somente o tempo que pôde fazer com que a desconfiança em torno da modalidade fosse gradativamente se dissipando e que se abrisse espaço para o esporte nacional “por exce-lência”. A força do futebol é tamanha que é somente como ironia que pode ler o trecho abaixo, de Graciliano Ramos:

Os verdadeiros esportes regionais estão aí abandonados: o porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o calto, a cavalhada, e o melhor de tudo, o cambapé, a rasteira. A rasteira! Esse, sim, é o esporte nacional por excelência. (Sgarioni, 2010, p. 8) 1

O futebol, contudo, já registrou capítulos sombrios ao longo de sua história, como a proibição de negros e pobres de integrar os clu-bes — e, ainda hoje, assistimos a demonstrações de racismo dentro de campo, seja dentro ou fora do país — atravessou guerras mundiais e outros momentos de crise. Nada disso, porém, impediu o crescimento desse esporte no Brasil (e no mundo). Nesse sentido, a observação de Sgarioni 2 (2010, p. 9) é bastante esclarecedora:

Ter o melhor futebol do mundo se tornou obsessão nacional, uma afirmação do país. Viramos exportadores de craques, e a nossa história se confunde com a própria evolução do esporte. Passatempo de poucos, a atividade, então de elite, triunfaria e cresceria para ser uma instituição brasileira. (grifamos)

Foi nas décadas de 1930 a 1950 que o futebol conheceu sua fase mais popular. Nos anos 1930, houve a primeira Copa do Mundo de futebol e o Brasil participou, marcando a sua presença também em todas as Copas seguintes. Com o Estado Novo, o sentimento nacionalista no Brasil estava exacerbado. Getúlio Vargas, que tinha a pretensão

1 In: Revista Continuum Itaú Cultural.2 In: Revista Continuum Itaú Cultural.

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de re-eleição, usou o futebol como estandarte de sua campanha: fazia aparições nos jogos, prometia investimentos e contribuía para o aumento da popularização do esporte. Já na década de 1940, os brasileiros torciam por sua seleção nas Copas, ficavam deprimidos com as derrotas e eliminações — como esquecer a derrota de 1950 em pleno Maracanã? A primeira conquista veio, como se sabe, somente em 1958, última Copa daquela década.

De lá para cá, o futebol brasileiro cresceu, o país tornou-se um grande exportador de matéria-prima (os craques), e dono de uma “fór-mula” de referência: o “futebol-arte”, como se fosse algo “natural” do país, parte de sua “genética”, como observa Guterman (2010, p. 13), para quem o tipo de jogo nacional tem, “em seu DNA”, características que o distinguem do futebol comumente praticado na Europa.

De fato, o futebol tornou-se uma espécie de “cartão de visita” do Brasil: dificilmente se fala no país sem que se mencione o futebol. De acordo com Fernández (1974), reforçando observação também realiza-da por Hobsbawn (2004), é no futebol — para Hobsbawn, nos esportes de modo geral — que rivalidades políticas e econômicas são colocadas em campos opostos e, para os brasileiros, há um sabor especial, pois o Brasil desponta nas Copas do Mundo, por exemplo, como potência capaz de “derrotar” aqueles que nos campos político e econômico sub-jugam o país (FERNÁNDEZ, 1974).

No entanto, não é qualquer futebol que representa o Brasil, mas o “futebol-arte”, tido como “verdadeiro”, como se pode observar em declarações como a do ex-jogador e ídolo Júnior: “Me encheu de es-perança de voltar a ver o verdadeiro futebol brasileiro em campo” (SE-GALLA, 2010, p.78) (grifamos).

Assim, “o futebol é parte integrante da identidade nacional brasi-leira, de modo que qualquer coisa que se enuncie sobre o nosso fute-bol já é uma forma de construir discursivamente a identidade do Brasil” (PECENIN, 2007, p. 82). E esse traço é tão marcante na construção de nossa identidade nacional que não conhecer o esporte e/ou suas regras é algo inadmissível ou até mesmo anormal para o brasileiro, como se

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pode notar a partir da afirmação de Burgierman 3 (2010, p. 14): “Não entender nada de futebol pega supermal. Você pode passar por anti-patriótico, ou antipopular, ou antibrasileiro, ou americanizado” (grifa-mos). Veja que a relação com o patriotismo é aqui explícita e a própria nacionalidade é “negada” àqueles que nada sabem sobre o esporte bretão.

Futebol-arte: uma fórmula discursiva?

A noção de “fórmula” – conforme assumida por Krieg-Planque (2010) – tem se mostrado bastante produtiva nos trabalhos em AD. Isso se deve, em boa medida, ao fato de que ela permite ao analista de-sestruturar unidades instituídas, navegando pelo interdisurso sem qual-quer pretensão de estabelecer uma unidade ou totalidade (MAINGUE-NEAU, 2006). A proposta inicial desta pesquisa pautava-se justamente sobre esta noção. Para debatermos o assunto e justificarmos, como se verá mais adiante, a negação do caráter formulaico de “futebol-arte”, faremos, a seguir, uma incursão pelas considerações de Krieg-Planque (2010).

Krieg-Planque (2010) aponta quatro componentes próprios das “fórmulas”, a saber: i) caráter cristalizado; ii) caráter discursivo; iii) funcionamento como referente social; e iv) caráter polêmico. Vejamos cada uma dessas características.

2.1 Caráter cristalizado

Uma fórmula tem a propriedade de ser cristalizada em razão de sua forma significante, que é relativamente estável, o que faz com que seja “possível seguir uma fórmula num sistema de buscas” (POS-SENTI, 2010, p. 107). Krieg-Planque (2010), a esse respeito, aponta que as fórmulas podem surgir de unidades lexicais simples, comple-xas, léxico-sintáticas e de sequências autônomas (frases) – todas pas-síveis de cristalização. O processo de cristalização tem dois lados, isto é, pode ser de ordem estrutural (formal) ou de ordem memorial. Quando se tem um processo pautado numa ordem estrutural, está-se falando de “uma análise sistemática das expressões cristalizadas nos

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termos da língua e nas categorias da gramática” (HABERT & FIALA apud Krieg-Planque, 2010, p. 64) ao passo que, no caso de um pro-cesso de ordem memorial, a remissão é “ao conjunto de enunciados ou fragmentos que circulam ‘em bloco’ num dado momento e que são percebidos como formando um todo cuja origem é, ou não é, recuperável” (HABERT & FIALA apud Krieg-Planque, 2010, p. 64). É importante que se diga, porém, que a cristalização faz parte de um continuum, que é uma concepção gradativa, não absoluta e que seus limites (sequência totalmente livre e sequência totalmente cristaliza-da) são “menos bem servidos do que as zonas intermediárias” (KRIEG--PLANQUE, 2010, p. 66). Assim, o que deve ficar claro no que tange a essa característica é que uma fórmula existe e se firma por conta de suas muitas paráfrases, das quais ela é a cristalização. Isso indica que a “fórmula” pode ter suas variantes e uma análise absolutamente formal tende a não ser produtiva.

Voltando-nos para o nosso corpus, podemos dizer que a expressão “futebol-arte” apresenta tal propriedade e foi, aliás, o seu caráter crista-lizado que primeiramente nos permitiu pensar que se tratava de uma fórmula discursiva. Tendo surgido, como se acredita, na década de 1970, a expressão designava o modo “plástico” de jogar da Seleção Brasileira. Atualmente a expressão vem sendo retomada de modo cada vez mais frequente no Brasil e no mundo – mas o interessante é que é quase sem-pre para falar do futebol brasileiro (!), evidenciando, assim, a importância desse semióforo na construção/legitimação de nossa identidade.

O continuum existente entre os processos de ordem estrutural e memorial acima mencionado pode ser também observado aqui. Há algumas variantes da “fórmula” futebol-arte que podemos citar: jogo bonito, show de bola, jogo alegre, futebol “moleque”. E essas “pará-frases” de futebol-arte apontavam para que o enunciado pudesse ser enquadrado como uma “fórmula”.

2.2 Caráter discursivo

Apesar de ser “uma materialidade linguística relativamente está-vel, localizável na cadeia do enunciado e linguisticamente descritível” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 81), o que dá suporte à fórmula, não se

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trata aqui de uma noção linguística. Isso por que o que torna uma fórmula uma fórmula são os seus usos. Normalmente, a unidade já preexiste e se torna fórmula devido aos seus empregos na linguagem. Desse modo, a fórmula não é um uso novo, mas um uso particular em determinados campos ou situações, disputada por posições, sendo co-mentada, retomada, ou seja, ganhando um movimento.

Assim, como a fórmula não é uma noção linguística, mas discursi-va, ela só pode ser estudada apoiada em um “corpus saturado de enun-ciados atestados”, isto é, um corpus cujo “enriquecimento por novos enunciados não traz mais dados novos do ponto de vista da problemáti-ca adotada, pelo menos não mais dados novos suscetíveis de modificar os resultados de maneira substancial” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 89).

Também essa propriedade encontra-se presente na expressão “futebol-arte”: aqui, como já dissemos, estamos diante de um caso de uma unidade já existente mas que ganha novos usos, passando a ser comentada e retomada constantemente. A conquista do Campeonato Paulista de futebol de 2010 pelo time do Santos, com um elenco em grande parte formado por jovens atletas (os “meninos da Vila”) que “jogavam bonito” e cuja não-convocação para a Copa do Mundo de 2010 rendeu ao então técnico Dunga muitas críticas, foi por nós toma-da como um acontecimento – no sentido de Pêcheux (1983/2002). O exemplo a seguir nos mostra que há “disputas” em torno da expressão: “Ter uma equipe organizada também é bonito. As pessoas elogiam tan-to o basquete, que faz marcação por zona... Temos que saber marcar e atacar com a mesma eficiência” 4.

2.3 Caráter polêmico

Essa propriedade não é contraditória com as características ante-riores: embora apoiada numa materialidade linguística relativamente estável, é polêmica. E isso ocorre justamente porque “há um denomi-nador comum, um território partilhado” (FIALA & EBEL apud Krieg--Planque, 2010, p. 100). Outra explicação para o caráter polêmico da

4 SANTOS? Dunga defende futebol “bonito e organizado”; grifamos.

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fórmula está no fato de que ela carrega questões sociopolíticas, pro-pícias para polêmicas, objetos para debates. Sua dimensão polêmica encontra-se profundamente imbricada, como veremos mais adiante, com a próxima característica – o caráter de referente social.

O “futebol-arte” com certeza suscita polêmicas e é, sem dúvida, uma arena para embates. A declaração de Dunga – já citada e que retomamos a seguir – é um exemplo disso: “Ter uma equipe organi-zada também é bonito. As pessoas elogiam tanto o basquete, que faz marcação por zona... Temos que saber marcar e atacar com a mesma eficiência” 5.

Como vemos, há aqui uma disputa pelo sentido da expressão: não mais referente à plasticidade, mas à organização. A fórmula é, portanto, polêmica porque é posta a funcionar em práticas linguageiras específicas.

2.4 Caráter de referente social

Um referente social é um signo que “evoca alguma coisa para to-dos num dado momento” (KRIEG-PLANQUE, 2010, p. 92). E, para que tal fato ocorra, é necessário que a fórmula seja de conhecimento de todos. Krieg-Planque defende que esse “conhecimento” de todos não se resume a um “saber da existência da fórmula”, antes, isso implica um eventual deslocamento de domínios, o que significa que “é preciso que a encontremos nos mais variados tipos de discurso”. Ou ainda, “se a fórmula é originária de uma formação discursiva, deve sair dela” (KRIEG-PLANQUE , 2010, p. 96).

No caso de nosso corpus, esse deslocamento não ocorre, como podemos observar nas análises empreendidas por Possenti (2010), so-bre a fórmula “fazer a lição de casa” 6, ou por Krieg-Planque (2010), em torno das fórmulas “purificação étnica” e “desenvolvimento susten-tável”, respectivamente. No caso do futebol-arte, vemos seu emprego limitado ao campo esportivo, com raríssimas aparições em outras esfe-ras por meio de uma de suas paráfrases (“show de bola”). Ainda assim,

5 SANTOS? Dunga defende futebol “bonito e organizado”; grifamos.6 Para maiores detalhes, vide POSSENTI (2010).

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dado o fato de que, para ser um referente social, é preciso que, no momento considerado, a fórmula se torne uma espécie de ponto de passagem obrigatório, de modo que todos se sintam mais ou menos obrigados a usá-la, nos pareceu que atribuir à expressão em pauta o estatuto formulaico seria extrapolar os limites do conceito.

Assim, como vimos, a noção de futebol-arte apresenta três das quatro propriedades, a saber: caráter cristalizado, caráter discursivo e caráter polêmico. No entanto, não parece ser possível sustentar o cará-ter de referente social de “futebol-arte”, uma vez que falta à expressão circulação em outros campos discursivos 7.

É importante, contudo, observar que nossa hipótese inicial não foi, de maneira alguma, improdutiva. Foi perseguindo a noção de fórmula tal como vista acima que pudemos notar um funcionamento – materializa-do linguisticamente – dos discursos em torno do futebol-arte, apontado como elemento da mais alta importância na construção e/ou legitimação de nossa identidade nacional. E é sobre isso que falaremos a seguir.

Análise

Como já mencionado anteriormente, a conquista do Campeonato Paulista pelo time do Santos em 2010 foi tomada por nós como acon-tecimento – no sentido de Pêcheux (1983/2002) –, a partir do qual organizamos nosso levantamento do corpus.

Pensando se tratar de uma fórmula, “perseguimos” o sintagma “futebol-arte” na mídia em geral a partir do acontecimento acima des-tacado. Assim, nosso corpus compõe-se de: i) matérias publicadas (em diversos meios) principalmente após o jogo de estreia do Santos no Campeonato Paulista, mas também matérias publicadas depois da con-quista do referido campeonato; ii) matérias (também publicadas em diversos meios) sobre a estreia da seleção de Mano Menezes no pri-meiro amistoso pós-Copa do Mundo, contra os Estados Unidos – de

7 É possível encontrarmos usos para outros esportes, como “voleibol-arte” usado em uma transmissão da Liga Mundial no canal Sportv em 2011, mas ainda assim estamos no campo esportivo. Não encontramos nenhuma ocorrência nos campos político, eco-nômico ou pedagógico, para citar uns poucos exemplos.

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10/08/2010 até 20/08/20108; e iii) uma campanha publicitária da mar-ca Penalty, do primeiro semestre de 2011. No total, 28 matérias fazem parte do corpus cuja análise apresentamos aqui.

De maneira geral, é possível perceber em todo o corpus uma relação, digamos, “opositiva” entre o “futebol-arte” e o chamado “futebol burocrático”. A esse respeito, por exemplo, pode-se citar uma das matérias analisadas, intitulada “A virada do futebol-arte” 9, que, comparando os dois modos de jogo, destaca o retorno do “futebol-arte” atribuindo isso a “dois fenômenos atuais” 10 Santos e Barcelona com seu futebol “criativ[o] e esteticamente agradável”11: “Depois de anos sendo definido de forma pejorativa como ‘românti-co’ (isto é, distante da realidade), ultrapassado em tempos pragmáti-cos, eis que o futebol-arte volta a ganhar as manchetes das editorias de esporte”12.

A mesma matéria ainda aponta algumas das seleções caracteriza-das por jogarem o futebol-arte em Copas do Mundo e saírem vence-doras, incluindo aí as seleções nacionais de 1958 e 1970. Embora se diga na matéria que outros países já jogaram o futebol-arte, o Brasil é colocado como o que se destaca:

talvez o Brasil seja, ou melhor, foi um dia, seu praticante mais assíduo. Aqui floresceu o beautiful game, fruto de um trabalho cultural que adoçou e arredondou o rígido jogo britânico com a ginga, a finta, o passe em curva, o jeito sutil de bater na bola. Gilberto Freyre descreveu esse processo de aculturação no prefácio de O Negro no Futebol Brasileiro, livro clássico de Mário Filho. Nele, evoca a contribuição da capoeira e do samba no abrasileiramento do jogo da bola pela miscigenação afro-brasileira.13

É possível identificar no texto acima o mesmo discurso encontrado em Guterman (2010, p. 13), para quem o futebol brasileiro tem, “em

8 Observe-se, contudo, que as datas são “relativas”, pois no corpus podem ser encon-trados textos datados de períodos distintos.9 ORICCHIO, L.Z. A virada do futebol-arte.10 Idem.11 Idem.

12 Idem; grifamos.13 Idem; grifos no original.

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seu DNA”, características que o distinguem do “futebol comumente praticado na Europa”. E também na matéria intitulada “Um show com a cara do Brasil” 14. “Cara”, nesse sentido, pode ser relacionada com “identidade”, mostrando assim a grande relação que há entre o “futebol show” com a identidade nacional. Há ainda uma série de comentários retirados de jornais americanos — e citados por jornais brasileiros — que se valem de expressões que, como os exemplos citados até aqui, atualizam esse discurso que considera o futebol-arte como um traço de nossa identidade nacional: “voltar às raízes” e “recuperar” o modo de jogo do “célebre passado” brasileiro, como se pode verificar a seguir:

“[o jogo da seleção sob o comando de Mano Menezes] fez o Brasil voltar às suas raízes e jogar bonito” 15 (USA Today);

“foi o começo de um esforço agressivo do Brasil para recuperar o esplendor de seu célebre passado” 16 (New York Times).

Assim, observa-se a partir dos excertos acima que não é o “futebol” um traço de nossa identidade, mas o “futebol-arte”. Isso fica também evidente na propaganda da marca de produtos esportivos Penalty17 que faz parte de nosso corpus:

A gente gosta da marcação, mas prefere o drible.A gente gosta da tática, mas prefere o talento.A gente gosta do ensaio, mas prefere o improviso.Porque esse é o jogo que o Brasil joga. E que a gente joga.Um jogo que não se explica; se sente.

As estruturas adversativas (p MAS q) dos três primeiros parágra-fos opõem marcação a drible, tática a talento e ensaio a improviso. Para Ducrot (apud GUIMARÃES, 1987), o operador em questão – o mas – tem um funcionamento bastante peculiar: ele introduz um argumento que vai na direção contrária da conclusão (R) em favor da qual o primeiro argumento vai; sendo assim, o argumento intro-

14 DEIRO, B. Um show com a cara do Brasil.15 Apud Folha de S.Paulo, São Paulo, 11 de agosto de 2010; grifamos.16 Idem; grifamos.17 YOUTUBE. Propaganda – Penalty – Ginga Brasil. 2011. Penalty Ginga Brasil. [online]. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=nAKBn61Yhi8>. Acesso em: 16 de agosto de 2011.

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duzido pelo mas direciona a argumentação em favor da conclusão oposta, denominada por ele ~R (lê-se “não R”). Ou seja, se consi-derarmos que a conclusão em favor da qual as primeiras partes for R: “para vencer no futebol é preciso privilegiar a técnica” – conclu-são esta perfeitamente de acordo com as paráfrases referentes ao “futebol de resultados” – fica claro que o discurso que sustenta os enunciados da propaganda, ao ir em direção a uma conclusão ~R e atestar que “esse é o jogo que o Brasil joga” instaura a relação de identificação do futebol brasileiro com o “futebol-arte”, dos dribles, do talento e do improviso.

No comentário a seguir a comparação dos modos de jogo das se-leções sob o comando de Dunga, primeiramente, e, depois, de Mano Menezes é com o clima do país, outra de suas “marcas registradas”: “nos últimos quatro anos, o futebol do Brasil esteve como o tempo em São Paulo essa semana: frio, cinzento. Mas depois do jogo contra os Estados Unidos, o primeiro da era Mano Menezes, tem muito torce-dor achando que o inverno da seleção chegou ao fim” 18(grifamos). No Brasil é comum termos calor — somos até mesmo chamados de “país tropical” — e ter um inverno mais rigoroso é atípico e mesmo inde-sejável por muitos, não sendo este, reitere-se, o clima típico do país. Assim, estabelecendo essa comparação, fica claro que o futebol-arte é associado ao clima predominante e “genuíno” do Brasil. Essa relação com o futebol-arte fica também evidente no excerto a seguir, extraído de matéria sobre o jogador Paulo Henrique Ganso (um dos “meninos da Vila”): “Os brasileiros esperam por Ganso com a nostalgia de quem acredita piamente na existência de uma escola brasileira de futebol, mais cadenciada, sem erros de passe e com lançamentos precisos. Com belos gols também, é lógico” 19.

Procuramos até aqui apresentar o modo como se estabelece a re-lação entre o futebol e a identidade nacional ou, dito de outra manei-

18 BRASILEIROS aprovam futebol bonito da seleção de Mano Menezes; grifamos.19 SÍMON, 2011, p. 34; grifamos.

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ra, como o futebol é significado como um semióforo constitutivo da identidade nacional. No entanto, a partir da breve análise apresentada da propaganda da Penalty mais acima, pudemos perceber, pelo funcio-namento do operador descrito (mas), que havia ali um funcionamento discursivo que se materializa também ao longo das demais matérias de nosso corpus – ainda que por meio de outros operadores. Em outras palavras: ao introduzir um argumento mais forte em favor de uma con-clusão ~R – que, no caso, pode ser descrita como “para vencer no fute-bol não é preciso/não basta privilegiar a técnica” – instaura-se também um posicionamento ao qual poderíamos chamar “conciliatório” entre o “futebol-arte” e o “futebol de resultados”.

Vejamos alguns exemplos de como esse posicionamento se mate-rializa nas matérias analisadas:

“A seleção brasileira jogou o futebol alegre e ofensivo [...] e derrotou os Estados Unidos” 20;“Não faltaram toques de efeito e dribles irreverentes, mas quase sempre com objetividade” 21;“O resultado foi uma boa apresentação e a vitória” 22;“Além de mostrar um futebol convincente no setor ofensivo, [...] também não corria riscos na defesa” 23;“é possível alcançar resultados com um futebol vistoso” 24;

“Se nós conseguirmos fazer a seleção estar mais próxima de vencer jogando bonito como todos gostam vai ser o máximo do projeto que vamos conseguir” 25;“garantiram a vitória alvinegra com belas jogadas, toques de efeito, chapéus” 26;

20 ATAQUE brilha e Brasil de Mano estréia com vitória sobre EUA; grifamos.21 DEIRO, B. Um show com a cara do Brasil; grifamos.22 BRASIL terá um ‘sistema tático preferencial’, diz Mano Menezes; grifamos.23 NA ESTREIA de Mano, seleção brasileira mostra futebol ofensivo e vence os EUA; grifamos.24 BARROS, A. Dorival orgulhoso de seus meninos: ‘É a contribuição do clube ao fute-bol’; grifamos.25 MANO Menezes cobra maturidade pela volta do futebol bonito; grifamos.26 BARROS, A. Ganso e Neymar brilham e garantem vitória do Peixe sobre o Rio Branco; grifamos.

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“Gostei pelo resultado, claro, mas além disso foi um jogo bonito” 27;“o Santos encantou o Brasil no primeiro semestre e mostrou que pode ser campeão com um futebol de gala” 28.

Os diversos recortes acima apresentados materializam a tentativa de “conciliar” o futebol-arte e o futebol de resultados, mais do que sobrepor um ao outro. Isso também pode ser observado na declaração de Paulo Henrique Ganso, considerado um dos grandes representantes desse novo momento do futebol brasileiro: “Não sou de dar caneta, de dar chapéu, de dar elástico quando não precisa” 29. Trata-se, como se pode ver, de uma paráfrase de muitos dos enunciados já apresentados.

Nas matérias analisadas, a cada um dos “modelos” de jogo as-sociam-se determinadas expressões, esquemas táticos, adjetivos etc. como destacados no quadro a seguir:

Quadro 1

Futebol de resultados Futebol-arteFutebol “militarizado”, organizado, racional, burocrático

Futebol com velocidade, alegre, moleque, descontraído

Jogo retrancado, pragmático, “científico”, passes retilíneos, triangulação

Jogadas de efeito, dribles, chapéus, fintas, passes curvos

Jogo defensivo, privilegiando os resultados e pragmático

Jogo ofensivo, que encanta, futebol plástico, vistoso e show

Seleção envelhecida (média de idade: 29 anos)

Jovem seleção (média de idade: 23 anos)

Eficiência tática, resultados Qualidade, técnica, habilidade, talento

Jogo com marcações rígidas Jogo com bastante movimentação e liberdade para os jogadores

Jogar retrancado Jogar para frenteEsquema 4-4-2 Esquema 4-3-3“O samba morreu” “Jovem samba” Seleção sóbria e séria, “time de seminaristas” Seleção alegre e criativa

27 PRESIDENTE da CBF elogia estreia de Mano Menezes e diz que técnico é craque; grifamos.28 SANTOS? Dunga defende futebol “bonito e organizado”; grifamos.29 SÍMON, 2011, p. 34; grifamos.

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Jogo feio Jogo bonitoFutebol de prosa Futebol de poesia

As estruturas linguísticas destacadas mais acima evidenciam a con-ciliação entre o que considera “típico” do futebol de resultados e do futebol-arte. Mas, como dissemos, mais que “somar” as vantagens de cada um – isto é, o jogo bonito à vitória – essa materialidade linguística nos serve de indício de um discurso que tem circulado cada vez mais ao se falar do futebol brasileiro e, consequentemente, do futebol que caracterizaria o Brasil, contribuindo para a construção/legitimação de nossa identidade nacional.

Guimarães (1987), tratando das conjunções da língua portuguesa por meio de uma abordagem argumentativa, aponta que sobre as es-truturas inclusivas (tradicionalmente enquadradas pela gramática como coordenadas aditivas, por exemplo) se poderia dizer que funcionam como operadores que reúnem “argumentos de mesma força argumen-tativa”. Contudo, pensamos que, discursivamente falando, o funciona-mento não parece ser de simples “agrupamento” de argumentos igual-mente fortes dadas as relações estabelecidas com outros discursos do campo. Para entendermos tais relações, empreenderemos um breve percurso histórico em torno do futebol nacional.

A Copa do Mundo de 1982, disputada na Espanha, pode ser apontada como um marco importante na história do futebol brasileiro. A seleção – comandada por Telê Santana e contando com um elenco composto de renomados craques como Zico, Falcão, Sócrates, Júnior e Cerezo – foi precocemente eliminada ainda nas quartas-de-final mesmo tendo encantado com um futebol frequentemente descrito como “ofensivo e criativo”, representante típico do chamado futebol-arte. Essa derrota acendeu um debate em torno do par plasticidade vs. competitividade, cindindo, assim, nos modos de jogo apresentados aqui. É importante notar que até esse momento não parecia haver um debate mais sistemático sobre o tema; havia, sim, uma tentativa de “classificação” do futebol nacional relacionando-o com as características

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“nacionais”: a miscigenação do povo, o samba etc. As duas principais seleções campeãs do Brasil em Copas do Mundo jogando dessa maneira – a seleção de 1958 e a de 1970 – consolidaram esse modo de jogar e entre os “protagonistas” das conquistas estava Pelé – o mais conhecido praticante desse modo de jogo e até hoje aclamado como o “rei do futebol”.

Inicia-se, assim, um crescente questionamento sobre a eficiência do chamado futebol-arte, como mostra a declaração de Falcão (apud LEITE, 2010, p. 120): “Não foi o Brasil que perdeu. Foi o futebol. Ga-nhar aquele título poderia ter significado uma mudança na forma de se jogar dali pra frente”. Após a conquista de 1970, o Brasil só foi cam-peão novamente em 1994, 24 anos depois, portanto. Ganhava força, então, e cada vez mais adeptos o chamado “futebol de resultados” – que foi se constituindo discursivamente como o oposto do “futebol--arte”. Nesse modo de jogo, como vimos, os resultados é que são privi-legiados – deixando de lado, por assim dizer, as “jogadas de efeito”, as goleadas e o ataque ofensivo – fazendo uma espécie de dosagem entre ataque e defesa, como diriam alguns, atacando pouco e defendendo muito. A conquista do título de 1994 pela seleção jogando um fute-bol essencialmente “de resultados” chamou a atenção para a eficiência desse estilo de jogo 30. Mas como já dito anteriormente, a partir do que tomamos como acontecimento, constatamos que parece haver um posicionamento distinto atualmente, “conciliatório” entre os dois mo-dos de jogo. Duas declarações são exemplares para marcar a diferença entre esses posicionamentos: Zico afirma que “é mais importante fazer gols do que não tomá-los” 31, evidenciando aqui uma visão do “futebol--arte” do qual ele foi representante, ou seja, até 1982; por outro lado, o excerto a seguir (já citado antes) nos mostra a importância dada à defesa hoje: “Além de mostrar um futebol convincente no setor ofen-sivo, [...] também não corria riscos na defesa” 32. Fala-se, assim, nesta última declaração acerca da seleção brasileira da “Era Mano”, sobre

30 Não nos centraremos na seleção de 1994. Sobre isso vide PECENIN (2007).31 ZICO, Luxemburgo e Dorival Júnior veem volta do futebol arte. Placar.32 NA ESTREIA de Mano, seleção brasileira mostra futebol ofensivo e vence os EUA.

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um modo de jogo ofensivo, mas sem “descuidar” da defesa, sem apre-sentar supostas vulnerabilidades que o “puro” futebol-arte apresentaria nesse setor. E em outros enunciados tomados como exemplo, vemos as duas máximas dos modos de jogo combinadas, a saber, o “show” e os “resultados”.

Considerações finais

Inicialmente, o objetivo central proposto para o presente artigo era analisar como se estabelecia discursivamente a relação entre fute-bol e uma identidade nacional (brasileira), a partir da descrição do fun-cionamento dos discursos sobre o chamado “futebol-arte”, na medida em que o relacionam com uma identidade brasileira.

Nossa hipótese inicial era a de um posicionamento do “puro” futebol-arte como representativo da identidade nacional que estaria materializado no corpus. Isso em decorrência das discussões cada vez mais presentes sobre um possível “retorno” do futebol-arte aos cam-pos de futebol. Porém, depois de analisarmos o corpus, notamos que esse posicionamento não era absoluto, isto é, o que havia eram dis-cursos apontando para uma direção que não esperávamos, a saber, da “combinação” de dois modos de jogo: o futebol-arte com o futebol de resultados. Pelas estruturas linguísticas inclusivas (conjunções, prepo-sições, orações, léxico) encontradas no corpus, pudemos descrever o funcionamento dos discursos atuais sobre o futebol-arte, parte da iden-tidade nacional. Esperamos, assim, ter contribuído para lançar um olhar (discursivo, no caso) para o estudo do que é por muitos considerado uma “paixão nacional” e de que muito se fala, mas ainda são poucos os estudos acadêmicos (especialmente linguísticos) a seu respeito.

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A promessa divina para a vida presente . A promessa bíblica de proteção: uma análise semiótica bíblicaThe divine promise to present life. The bible promise of pro-tection: a biblical semiotics analysis

Flavia Melville PaivaPrograma de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens da

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande – MS.

[email protected]

Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar uma análise semiótica da construção do sentido do texto bíblico “Salmos 23” com a isotopia da “Proteção”, quando o crente está na presença/conjunção de sua divindade, apontando os princípios da teoria semiótica discursiva, proposta pelo semioticista Algirdas Julien Greimas, considerando os três níveis de análise: fundamental, narrativo e discursivo.

Palavras-chaves: Semiótica. Nível Fundamental. Nível Narrativo. Nível Discursivo.

THE DIVINE PROMISE TO PRESENT LIFE. THE BIBLE PROMISE OF PROTECTION: A BIBLICAL SEMIOTICS ANALYSIS

Abstract: The purpose of this paper is to present a semiotic analysis of the construction of the meaning of the biblical text “Psalm 23” with the isotopy of “protection” when the religious believer is in the presence / conjunction of his divinity pointing to the principles of semiotics discourse proposed by the semiotician Algirdas Julien Greimas, featuring three levels of analysis: fundamental, narrative and discursive.

Keywords: Semiotics. Fundamental Level. Narrative Level. Discursive Level.

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1. Introdução

A Bíblia, coletânea de textos religiosos escritos por diferentes autores em diferentes épocas da história da humanidade, apesar de tão antiga e por vezes polêmica, por tratar temas e doutrinas religiosas, tem sido amplamente estudada, inclusive nos dias atuais, e é também passível de ser analisada por teorias que propõem um tratamento sistemático, científico, ou seja, sem objetivo religioso nem doutrinário.

Conforme afirma Malanga (2008, n/p), sobre o texto bíblico, “para grande parte dos povos do Ocidente, ele representa uma obra sagrada, ligada às suas religiões. Para outros, trata-se apenas de uma obra antiga, ligada às raízes da nossa cultura”, e existem várias formas de ver e estudar a Bíblia, “como literatura, como registro histórico e social de uma época, sob o ponto de vista da ética e tantos outros aspectos”.

Assim, o tratamento que pretendemos dar à Bíblia neste trabalho é o de uma análise semiótica, pela apresentação de como o tema “Proteção quando na presença divina” foi construído no Salmo 23 (que, em algumas edições bíblicas1, é denominado Salmo 222); apresentamos, também, outras três passagens bíblicas, que atuarão, nesta análise, como marca de que, mesmo a Bíblia tendo sido escrita em vários períodos distintos da história da humanidade e por diversos autores, apresenta um cerne isotópico, como “a proteção na vida presente do crente com a consequente salvação futura (na vida eterna, após a morte carnal)”.

Propomos, então, uma análise do percurso gerativo que é construído sobre abstrações que o leitor pode fazer sobre o texto do Salmo 23, e apresenta as marcas sintáticas e semânticas em três níveis de análise, sem a visão dogmática da religião e sob o ponto de vista científico.

1 Salmo 23 em A BÍBLIA SAGRADA - Edição Almeida Corrigida e Fiel da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, 1995; Salmo 22 em A BÍBLIA SAGRADA. Trad. Pe. Matos Soares. São Paulo : Edições Paulinas, 1980.2 O que gera essa diferença entre as duas edições pesquisadas é a inclusão ou não de outros livros e textos; por isso, tivemos o cuidado de selecionar quatro textos para aná-lise presentes em ambas as edições.

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Os três níveis de análise sugeridos por Algirdas Julien Greimas (fundamental, discursivo e narrativo) serão analisados em relação ao Salmo 23 e com exemplificação nos outros textos utilizados como apoio intertextual.

Pela cronologia bíblica3, escolhemos os quatro textos abaixo, dois representando o período de 1000 a 500 a.C, outro referente à época da vida de Cristo, com um de seus apóstolos, e outro após sua morte, para verificar como o tema Proteção foi tratado por escritores em fases diferentes da história da humanidade abordadas pela coletânea religiosa:

• Salmos 23 – remetendo ao ano 1000 a.C

• Malaquias, capítulo 3 – remetendo ao ano 500 a.C

• João, capítulo 16 - remetendo à época da vida de Cristo.

• Romanos, capítulo 4 – remetendo ao ano 56 d.C

2. Texto-Base: Salmo 23 [Salmo De Davi]

1 O SENHOR é o meu pastor, nada me faltará.

2 Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas.

3 Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome.

4 Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam.

5 Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda.

6 Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do SENHOR por longos dias.

3 HALLEY, H.H., Manual Bíblico – um comentário abreviado da Bíblia. São Paulo: So-ciedade Religiosa Edições Vida Nova, 1970.

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2.1 Textos de apoio intertextual para análiseOs textos utilizados para apoio intertextual nesta análise semiótica

serão os encontrados em: Malaquias 3:11, 17 e 18; João 16: 1, 23, 24 e 33 e Romanos 5: 2 a 5, 9 e 11:

Malaquias 3:11 E por causa de vós repreenderei o devorador, e ele não destruirá

os frutos da vossa terra; e a vossa vide no campo não será estéril, diz o SENHOR dos Exércitos.

Malaquias 3:17 E eles serão meus, diz o SENHOR dos Exércitos; naquele dia serão

para mim jóias; poupá-los-ei, como um homem poupa a seu filho, que o serve.

e Malaquias 3:18 Então voltareis e vereis a diferença entre o justo e o ímpio; entre o

que serve a Deus, e o que não o serve.João 16: 2Expulsar-vos-ão das sinagogas; vem mesmo a hora em que qualquer

que vos matar cuidará fazer um serviço a Deus.João 16: 23 e 24 E naquele dia nada me perguntareis. Na verdade, na verdade vos

digo que tudo quanto pedirdes a meu Pai, em meu nome, ele vo-lo há de dar. Até agora nada pedistes em meu nome; pedi, e recebereis, para que o vosso gozo se cumpra.

eJoão 16: 33 Tenho-vos dito isto, para que em mim tenhais paz; no mundo tereis

aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo.Romanos 5: 2 a 5 Pelo qual também temos entrada pela fé a esta graça, na qual

estamos firmes, e nos gloriamos na esperança da glória de Deus. E não

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somente isto, mas também nos gloriamos nas tribulações; sabendo que a tribulação produz a paciência, E a paciência a experiência, e a experiência a esperança. E a esperança não traz confusão, porquanto o amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.

Romanos 5: 9 Logo muito mais agora, tendo sido justificados pelo seu sangue,

seremos por ele salvos da ira.e Romanos 5: 11 E não somente isto, mas também nos gloriamos em Deus por nosso

Senhor Jesus Cristo, pelo qual agora alcançamos a reconciliação.

3. Análise Semiótica Discursiva

3.1 Nível Fundamental

Analisando o Salmo 23 à luz do nível fundamental, encontramos as categorias semânticas que dão base ao texto, dentro da perspectiva religiosa cristã, quando na presença ou ausência de deus, /proteção/ versus /desamparo/.

Essa oposição é a que faz com que a categoria ocorra, existindo, sim, um traço comum que une /proteção/ a /desamparo/, e é esse traço, com base no cuidado ou não divino, que estabelece a diferença entre os termos da categoria, estabelecendo relações de contrariedade contraditoriedade.

Salientamos que, no texto em análise, /proteção/ não tem sua negação no /desamparo/ e sim na /não-proteção/. Essa contrariedade pode ser melhor entendida quando percebemos o caminho que o homem segue quando descobre a /proteção/ divina, pois ele estava antes em um estado de /desamparo/, por não ter consciência da presença divina em sua vida, ou em companhia não-divina (vida mundana), que o levava ao /não-desamparo/, mas ainda longe da /proteção/. Uma vez encontrada essa consciência, ou seja, a da existência de proteção divina, abre-se para ele a possibilidade de ir em busca da /proteção/ ou

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passar a viver sob a /não-proteção/, já que consciente da possibilidade de salvação divina.

A qualificação semântica /euforia/ versus /disforia/ está presente na categoria semântica encontrada. Analisando a /disforia/, com seu valor negativo, sempre pressuposto (pois o que interessa ao salmista é deixar claro que não tem dúvida da possibilidade de vida conjunta com deus); assim, há disforia nas passagens que remetem a problemas que o homem terá de enfrentar, e /euforia/, com seu valor positivo, quando percebe o sucesso presente e possível, conforme o quadro abaixo:

Quadro 1

Texto Euforia Disforia

Salmo 23 Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas.

Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome.

... a tua vara e o teu cajado me consolam

... Preparas uma mesa perante mim

... unges a minha cabeça

E resume, apresentando a benção em sua vida presente:

... a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida

E a promessa de vida eterna: ...habitarei na casa do SENHOR por longos dias.

...Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte

... mal

... presença dos meus inimigos

...temeria

A negação e a asserção existentes na sintaxe do nível fundamental verificam-se no Salmo 23, sugerindo a construção do sentido pela:

a) afirmação pressuposta de desamparo; quando declara que “nada me faltará”, é porque já está consciente de que está sozinho, mas consciente da existência divina;

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b) negação de desamparo e afirmação de proteção; após o tomar consciência da possibilidade da proteção, nega o desamparo e busca outro caminho – ao afirmar publicamente que “o Senhor é meu pastor”.

Além desse contínuo estabelecido entre asserção e negação, podemos agrupar em três blocos os elementos fundamentais do Salmo 23:

a) afirmação de desamparo: “nada me faltará”

b) negação de desamparo: “O Senhor é meu pastor”

c) afirmação de proteção: “Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas, refrigera ... guia-me... justiça... não temeria mal algum, porque tu estás comigo... consolam... prepara uma mesa perante mim... unges... meu cálice transborda... a bondade e a misericórdia me seguirão... habitarei ... por longos dias”

Quadrado semiótico

Courtés (1979, p. 70) exemplifica o emprego do “quadrado semiótico”; com sua representação, podemos precisar essa relação isotópica da Proteção, presente nos textos bíblicos escolhidos, e, assim, visualizar o nível profundo e de natureza lógico-semântica abaixo esquematizado:

Figura 1: Quadrado Semiótico

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3.2 Nível Narrativo:

Fiorin (2006, p. 27 e 28) sugere que façamos, inicialmente, uma distinção entre narratividade e narração, antes de iniciarmos a análise do nível narrativo: “narração” constitui “a classe de discurso em que estados e transformações estão ligados a personagens individualizadas”, existente em uma determinada classe de textos; já a “narratividade” é um componente de todos os textos, “é uma transformação situada entre dois estados sucessivos e diferentes”, em que “ocorre uma narrativa mínima, quando se tem um estado inicial, uma transformação e um estado final”. E é entendida como uma transformação de conteúdo, um componente da teoria do discurso, ponto a ser estudado na análise narrativa do texto proposto.

Os textos “não são narrativas mínimas, ao contrário, são narrativas complexas, em que uma série de enunciados de fazer e de ser (de estado) estão organizados hierarquicamente” (FIORIN, 2006, p. 29). Dentro desta análise, os enunciados elementares que encontramos são:

a) enunciados de estado, que estabelecem uma relação de junção (disjunção ou conjunção) entre um sujeito e um objeto, encontrados no Salmo 23, pela ausência de proteção divina e disjunção com o deus protetor,

b) enunciados de fazer, que mostram as transformações de um enunciado, de estado a outro, quando o salmista busca pela conjunção com deus e encontra refrigério na vida presente e a consequente salvação eterna.

A sequência canônica da manipulação, envolvendo competência, performance e sanção, que estrutura uma narrativa complexa, está presente em:

a) Manipulação (a fase em que “um sujeito age sobre outro para levá-lo a querer e/ou dever fazer alguma coisa)”; encontrada no texto-base e, talvez, em todos os textos bíblicos, cuja temática principal é: a Salvação, para uns; o Sacrifício4, para outros. Percebemos 4 RAMOS, K. A. H. P. Análise semiótica da narrativa bíblica “A prova de Abraão”. Assis:

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que a recompensa futura da vida eterna manipula o fiel a procurar seguir as diretrizes religiosas, sendo preparado no presente para ser capaz de receber bênçãos e, até mesmo, para suportar atribulações e perseguições.

Existem vários tipos de manipulação, por tentação, intimidação, sedução ou provocação. Encontramos a tentação no texto-base estudado, pois o texto bíblico propõe ao crente uma recompensa – um objeto de valor positivo, com a finalidade de levá-lo a fazer alguma coisa, mesmo que sempre com a promessa de desamparo pressuposto e a de proteção enquanto certeza e sem dúvida alguma (se o crente assume que “o Senhor é meu pastor”, ele o leva por caminhos tranquilos, e se tiver que passar por privações, terá coragem).

b) Competência: fase em que “o sujeito que vai realizar a transformação central da narrativa é dotado de um saber e/ou poder fazer” (FIORIN, 2006, p. 30). Greimas (1979, p. 23) afirma que “o sujeito só pode realizar uma performance se possuir, previamente, a competência necessária: a pressuposição lógica constitui assim, antes de qualquer outra consideração, a base do componente do percurso narrativo que precede a performance.” A competência, contrariamente à performance, é /o que faz ser/, sendo da ordem do /ser/ e não do /fazer/; para tanto, o sujeito competente precisa estar na posse de um programa narrativo (S∩PN), deve possuir “um conjunto de modalidades de querer e/ou dever e de poder e/ou saber fazer” (GREIMAS, 1979, p. 23).

Vemos isso quando o salmista afirma que é capaz de caminhar com o seu senhor, que tem interesse em ser guiado, refrigerado, alimentado e de viver em companhia divina.

c) Performance: “é a fase em que se dá a transformação (mudança de um estado a outro) central da narrativa.” (ibid, p. 31). O sujeito passa de um estado de disjunção com a proteção para um estado de conjunção com ela.

Faculdade de Ciências e Letras – UNESP, 2004. Tese de doutoramento.

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No Salmo 23, há o momento da transformação, dividido em várias etapas:

1. o homem percebe a possibilidade de procurar a proteção

2. percebe então sua situação de desamparo,

3. crente, passa então pela disjunção com o desamparo (estado de consciência que o faz entender que está em conjunção com a não-proteção),

4. é impelido a buscar a disjunção com a não-proteção e a conjunção com a proteção. A performance existe como um /fazer-ser/ .

d) Sanção: “Nela ocorre a constatação de que a performance se realizou, e, por conseguinte, o reconhecimento do sujeito que operou a transformação.” (ibid, p. 30). A distribuição de prêmios e castigos, comum a essa fase, é encontrada no Salmo 23 quando o salmista resume seu prêmio recebido por receber a companhia da “bondade e a misericórdia” todos os dias da vida e, após a vida, receber o prêmio de habitar “na casa do Senhor por longos dias”.

E o desmascarar de falsos heróis e a coroação dos verdadeiros existe no texto-base quando, mesmo na presença de inimigos, o salmista é tratado pelo seu protetor com deferência: “preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos”, e nessa mesa, que o alimenta e sustenta com tanta abundância, seu “cálice transborda”.

É importante salientar que essas quatro fases não ocorrem simultaneamente, vão construindo o sentido do texto, apreensível pelo leitor, às vezes, inconscientemente.

A não-necessidade da sequência canônica é percebida no Salmo 23 que apresenta as quatro fases em construção, sugerindo um ir e vir de /disforia/ e /euforia/, de /disjunção com o desamparo/ e /conjunção com a não-proteção/ e /conjunção com a proteção/.

Os objetos modais /querer/, /dever/, /saber/ e /poder fazer/ nesse Salmo ocorrem na seguinte ordem: saber, querer, poder fazer nas atitudes e sanções positivas do presente, e o dever de continuar para alcançar o prêmio da vida eterna.

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Os objetos de valor, com que se entra em conjunção ou disjunção, como a conjunção com o objeto proteção, são caracterizados como a abundância (“nada me faltará), a paz (“verdes pastos”, “águas tranquilas”, “veredas da justiça”), a coragem (“não temeria”), ou seja, uma concretização do poder ser protegido.

3.3 Nível Discursivo

Fiorin (2006, p. 41) sintetiza a caracterização das diferenças e, ao mesmo tempo, das completudes do nível narrativo e discursivo, quando afirma que, no primeiro, as formas abstratas são analisadas, como apontamos anteriormente, em termos do sujeito no Salmo 23 entrar em conjunção com a proteção. No segundo, essas formas abstratas do nível narrativo “são revestidas de termos que lhe dão concretude”. Essa concretude é predominante no Salmo 23, quando o salmista cita uma série de imagens reais (verdes campos), mas que, na verdade, são figuras de outros momentos e problemas, (como o “vale da morte”) que o ser humano pode vivenciar, vencendo-os ao encontrar apoio, proteção, força e coragem, quando em conjunção com a figura divina (verdes campos).

A estrutura básica do Salmo 23, seguindo a proposta já apresentada, aponta que o salmista, representando o crente, afirma que, mesmo nas tribulações, é protegido pela entidade divina. A cada imagem negativa, encontra-se uma positiva proposta por seu deus e a mudança de estado de desamparado, não-protegido e finalmente protegido é verificado.

Na semântica discursiva, o “conceito de isotopia é extremamente importante para a análise do discurso, pois permite determinar o(s) plano(s) de leitura dos textos, controlar a interpretação dos textos plurissignificativos e definir mecanismos de construção de certos tipos de discurso” (FIORIN, 2006, p. 117) e é, a partir dessa conceituação, que defendemos que o tempo presente, as ações atuais praticadas pelo fiel, não geram apenas bônus futuros, mas bênçãos. A proteção real e atual que traz esperança, confiança e coragem para suportar provações.

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A semiótica ajuda a entender como o texto bíblico é aberto a várias interpretações, pois ele apresenta indícios de polissemia, baseados no uso frequente de metáforas e não um discurso simples e direto.

Como já citamos, encontramos pesquisas que nomeiam o “sacrifício” com o tema central da Bíblia, outros que tratam da “salvação”, podendo buscar tantos temas que sugeririam construções narrativas com base na distinção entre Bom e Mau Pastor, Amor e Não-amor, Proteção e Agressão, Cuidado e Descaso, Paz e Sofrimento, Felicidade e Não felicidade, Ansiedade e Confiança, dentre outros.

No texto, essa proteção pode ser encontrada em: fim da privação, o protetor que não permite a privação: “nada me faltará”, já que meu protetor “é o Senhor”. É como o pastor que cuida de suas ovelhas, não deixando que enveredem por maus caminhos mas sim por “verdes pastos”, que saciem sua sede em “águas tranquilas”, alimentem-no em “preparas uma mesa perante mim”, e não mais citando imagens concretas, guia pelas “veredas da justiça”, ampara no “vale da morte”, “unges a minha cabeça”.

Temos a proteção que gera coragem em: “Ainda que eu andasse pelo vale da sobra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo”; a proteção que gera confiança em: “a tua vara e o teu cajado me consolam”.

As figuras “pastor”, “pasto”, “águas” apontam para lugares metaforicamente utilizados para representar o deus, o protetor, a vida eterna, a pureza. Já as figuras “vale da sombra” e “inimigos”, representam, também em metáfora, o antideus, a morte sem salvação.

Todas as figuras apresentadas pelo Salmo 23 sugerem que a proteção divina existe e segue um percurso temático em que temas psicológicos, sentimentos como ansiedade, solidão, desamparo que ocorrem, quando o sujeito não tem fé nem esperança; e a não proteção, não benção, não companhia, quando tem a sabedoria do caminho ao lado do divino; e confiança, esperança, coragem, força quando em companhia de seu deus, mostrando claramente que o salmista,

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já em estado de consciência do poder divino, reduz sua ansiedade e sentimentos negativos afins para reafirmar sua coragem, esperança e confiança, pois está em companhia e proteção.

Grifamos, nos textos utilizados para apoio intertextual, como a temática da proteção na vida presente, quando o crente está em conjunção com o poder divino, foi tratada:

• Em Malaquias 3:11: E por causa de vós repreenderei o devorador, e ele não destruirá os frutos da vossa terra; e a vossa vide no campo não será estéril, diz o SENHOR dos Exércitos.

• Em Malaquias 3:17: E eles serão meus, diz o SENHOR dos Exércitos; naquele dia serão para mim jóias; poupá-los-ei, como um homem poupa a seu filho, que o serve.

• Em João 16: 2: Expulsar-vos-ão das sinagogas; vem mesmo a hora em que qualquer que vos matar cuidará fazer um serviço a Deus.

• Em João 16: 23 e 24: E naquele dia nada me perguntareis. Na verdade, na verdade vos digo que tudo quanto pedirdes a meu Pai, em meu nome, ele vo-lo há de dar. Até agora nada pedistes em meu nome; pedi, e recebereis, para que o vosso gozo se cumpra.

• Em João 16: 33: Tenho-vos dito isto, para que em mim tenhais paz; no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo.

• Em Romanos 5: 2 a 5: Pelo qual também temos entrada pela fé a esta graça, na qual estamos firmes, e nos gloriamos na esperança da glória de Deus. E não somente isto, mas também nos gloriamos nas tribulações; sabendo que a tribulação produz a paciência, E a paciência a experiência, e a experiência a esperança. E a esperança não traz confusão, porquanto o amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.

• Em Romanos 5: 9: Logo muito mais agora, tendo sido justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira.

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• Em Romanos 5: 11: E não somente isto, mas também nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, pelo qual agora alcançamos a reconciliação.

Como a sintaxe do discurso estuda as marcas da enunciação no enunciado, verificamos os três procedimentos de discursivização: a actorialização, a espacialização e a temporalização.

a) A actorialização: em relação às imagens de autor e leitor, respectivamente enunciador e enunciatário, construídas pelo texto, percebemos que o Salmo 23 é todo escrito com o eu do salmista, tendo a enunciação toda instaurada pelo salmista que está em “eu-aqui-agora” (FIORIN, 2006, p. 56). O tu, ou seja, a pessoa a quem o eu se dirige, entendemos que seja ele próprio, já que essa oração existe como afirmação de sua crença em seu deus, e na proteção que recebe por estar em sua companhia. Assim, eu e tu, os actantes da enunciação, participantes da ação enunciativa são idênticos, mas em papéis diferenciados. Ambos constituem o sujeito da enunciação, sendo que o eu produz o enunciado, e o tu é o filtro que “é levado em consideração pelo eu na construção do enunciado” (ibid, p. 56).

b) A espacialização: o aqui é o espaço em que o eu inicia a ordenação de seu espaço, não são as imagens do campo verde, ou das provações.

c) A temporalização: que, junto ao agora, marca espacialidade e temporalidade do salmo no momento da construção da enunciação.

Ainda estudando a sintaxe do discurso, Fiorin (ibid, p. 57) sugere a análise de dois aspectos, que se confundem, pois “as diferentes projeções da enunciação no enunciado visam, em última instância, a levar o enunciatário a aceitar o que está sendo comunicado” pelas projeções da instância da enunciação no enunciado “Se a enunciação se define a partir de um eu-aqui-agora, ela instaura o discurso-enunciado, projetando para fora de si os atores do discurso, bem como suas coordenadas espaço-temporais.” Para tanto, faz uso do mecanismo de debreagem, que Greimas e Courtés (2008, p. 111) definiram como:

[...] a operação pela qual a instância da enunciação disjunge e projeta fora de si, no ato de linguagem, e com vistas à manifestação, certos

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termos ligados a sua estrutura de base, para assim constituir os elementos que servem de fundação ao enunciado-discurso.

A debreagem é o mecanismo em que se projeta no enunciado quer as pessoas (eu/tu), o tempo (agora), chamada de debreagem enunciativa, e o espaço (aqui) da enunciação; quer a pessoa (ele), o tempo (então) e o espaço (alhures) do enunciado, chamada de debreagem enunciva.

Encontramos no Salmo 23, a debreagem de eu-aqui-agora, ou seja, enunciativa, instalando no enunciado os actantes enunciativos (eu e tu do salmista sujeito e objeto), já mencionados, e os tempos enunciativos (presente: “é... faz... leva... refrigera... guia... estás... consolam... preparas... unges... transborda”, e futuro do presente: faltará... temerei... seguirão... habitarei).

Nos exemplos citados de tempos verbais utilizados pelo salmista, percebemos a mudança de ele para vós, quando inicia o texto fala de seu deus como ele que é, faz, leva, regrigera e guia: em seguida, muda para uma conversa diretamente com ele, momento em que sente sua presença pessoal, concretude de conjunção com a proteção em que o vós estás, preparas, unges.

Analisando os verbos no futuro do presente, encontramos uma bela construção de sentido realizada pelo salmista que, antes em disjunção com seu deus, quando pressupõe a anterior falta de tudo, e, ao acreditar e afirmar sua fé passa para um estado de plenitude e não-falta. Quando o encontra e percebe sua necessidade, usa a primeira pessoa “temerei”, pois em estado de presença do deus, mas não fazendo parte dele, usa a terceira pessoa do plural, “seguirão”, para plurificar deus, como sendo bondade e misericórdia, e, em conjunção com a proteção, volta à primeira pessoa em “habitarei”.

Percebemos a debreagem temporal em que o futuro é consequência do presente para o fiel; suas ações no presente refletirão sua vida eterna junto a deus, recebendo-o como seu senhor e salvador, que leva ao futuro promissor, mesmo que no presente ocorram momentos de medo, locais sombrios e existência de adversários.

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Utilizando o esquema de Fiorin (2006, p. 59), listamos os verbos existentes no salmo, apresentando a /concomitância/: versus /não-concomitância/ relacionada à isotopia, sugerida para análise deste trabalho, da /proteção/ versus /desamparo/:

Figura 2: Debreagem temporal

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No quadro proposto por Fiorin (2006, p.59), ele sugeriu a terminologia de pretérito perfeito 1 (sugerindo anterioridade em relação ao agora); em nosso quadro, apresentamos o pretérito para mostrar que o salmista faz questão de tratar sua vida no passado (sem a presença da proteção), no presente (momento da mudança e escolha pela proteção) e no futuro (consequências da escolha realizada), não misturando conceitos da gramática e tempos verbais na análise da temporalidade para a construção do sentido do texto.

No que tange à debreagem enunciativa de discurso, percebemos que o Salmo escolhido está quase todo em primeira pessoa. O salmista modifica seu estado modal, mas sempre falando de si próprio, mesmo que com análise possível de ser o representante geral do fiel em busca de proteção e da prometida salvação.

O autor, inclusive, utiliza verbos pronominais com a primeira pessoa do singular, mostrando sua modalidade de querer, saber, mas que, na verdade, quem o protege não é nem ele nem suas ações, e sim seu deus (verbos pronominais: me faltará, me faz, leva-me, refrigera-me, guia-me, me consolam, preparas-me, unges-me, me seguirão; uso do possessivo também de primeira pessoa: meu pastor, minha vida).

4. Conclusão:

Uma análise do texto escolhido para apresentar o tema da “Proteção quando em conjunção com o divino”, via teoria semiótica, seria tão ampla que preferimos, neste estudo, indicar os pontos básicos, os elementos que ocorreram para produzir o sentido esperado, passível de várias interpretações, até por tratar-se de um texto religioso utilizado como base teológica para diversas denominações religiosas.

Mas como a semiótica não permite a parcialidade das escolhas doutrinárias, e nos traz a possibilidade de uma análise imparcial, baseada na construção linguística do sentido, percebemos que o salmista marca todo seu texto não estar hesitante quanto à sua fé e à promessa de proteção e consequente salvação de sua alma (exemplos: “nada me faltará”; uso do subjuntivo “ainda que eu andasse”, propondo a outra

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característica desse texto que é deixar implícita a possibilidade de não-proteção, mas a certeza da benção divina em “certamente”; na figura de “verdes pastos”, “mansamente”, “águas tranquilas”, da “justiça”), e o uso do tratamento do seu deus no início do texto por “ele” e, após sagrar sua necessidade de estar em proteção e estar em conjunção tão íntima com seu deus, passa a chamá-lo de “tu”.

Assim, nos detemos no estudo dos três níveis de análise, o fundamental, o narrativo e o discursivo, sugeridos por A. J. Greimas, que tecem as redes de “elementos simples que seguem um percurso complexo, encontrando no seu caminho tanto constrangimentos a que deve submeter-se como escolhas que é livre de operar”.

A religião, em oposição ao ateísmo, normalmente apresenta a busca de uma vida pautada em princípios doutrinários, que estabelecem a paz e comunhão entre os seres humanos, como forma de alcançar a vida eterna. Algumas religiões salientam a necessidade de dor, provações e muita disposição para o sacrifício; para outras, por entenderem o homem como imperfeito, apenas imagem e semelhança do deus em que creem, não o próprio deus, o fato de estarem em comunhão acreditando na existência divina e pautando sua vida na busca da comunhão já garante a vida eterna; e a Bíblia aponta, em diversas passagens, que tribulações podem e vão ocorrer, assim como tentações, manipulações, provas da competência, mas cabe ao fiel manter-se forte e corajoso, esperançoso que o deus de sua crença será a fortaleza e apoio no presente, a “Proteção” possível e vivificadora, como nos propusemos a apontar neste trabalho.

ReferênciasA BÍBLIA SAGRADA - Edição Almeida Corrigida e Fiel da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil, 1995.

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COURTÉS, J. Introdução à Semiótica Narrativa e Discursiva. Coimbra-Portugal: Livraria Almedina, 1979.

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CHABROL, C. (apres.) Semiótica narrativa e textual. São Paulo: Cultrix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1977.

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FIORIN, J.L., Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2006.

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MALANGA, E. B. Por uma semiologia bíblica. Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG - Volume 1, n. 2 – março, 2008. Disponível em: http://www.ufmg.br/nej/maaravi/artigoelianamalanga-torah.html - Acesso em: 02 de agosto de 2010.

RAMOS, K. A. H. P. Análise semiótica da narrativa bíblica “A prova de Abraão”. Assis: Faculdade de Ciências e Letras – UNESP, 2004. Tese de doutoramento.

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Camargo Guarnieri e sua linguagem musical [125-146]

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Camargo Guarnieri e sua linguagem musical: apropriações pessoais da estética nacionalista proposta por de Mário de AndradeCamargo Guarnieri and his musical language: personal appropriation of the nationalist aesthetic proposed by Mário de Andrade

Marcelo Fernandes PereiraDoutor em Música pela Universidade de São Paulo.

Violonista e professor do Curso de Música do Centro de Ciências Humanas e Sociais da

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.Campo Grande – MS.

[email protected]

Edelton GloedenViolonista e professor do Programa de Pós-Graduação em Música da

Escola de Comunicação e Artes daUniversidade de São Paulo

São Paulo - [email protected]

Resumo: Este artigo propõe um breve relato sobre a formação técnico-composicional de Camargo Guarnieri (1907 – 1993), de alguns aspectos centrais de sua produção e de seus princípios estéticos vinculados ao modernismo brasileiro e influenciados pelo nacionalismo de Mário de Andrade. Nossa metodologia está centrada no estudo da bibliografia referencial sobre o assunto e lança mão do resultado de análises de obras características da produção do compositor.

Palavras-chave: Nacionalismo. Música erudita. Estética. Linguagem.

Abstract: This paper presents a brief account about the compositional technic of Camargo Guarnieri (1907 - 1993), some central aspects of his production and his aesthetic principles linked to Brazilian modernism and nationalism which were influenced by Mário de Andrade.”Our

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Marcelo Fernandes Pereira / Edelton Gloeden [125-146]

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methodology is centered on the study of the referencial literature on this subject and makes use of the results of analyzes about characteristic works of the composer.

Keywords: Nationalism, Classical music, Aesthetics, Language.

1 A formação técnico-musical de Camargo Guarnieri

O primeiro passo para entendermos a produção guarnieriana em seus aspectos técnicos e estéticos é considerarmos sua formação. Sua infância em Tietê – cidade do interior paulista - e sua juventude na capital do Estado ocorreram justamente em período concomitante ao movimento de afirmação/expansão da música de seresta e dos gêne-ros rurais nos centros urbanos. Esse fato se reflete dentro da produção do autor, sobretudo em suas obras não orquestrais – de câmara e para instrumentos solistas – nas quais o caráter intimista e seresteiro é encontrado amiúde. A relação entre a seresta e esse caráter intimista, característico da obra do compositor, é notada em afirmações como: “[Guarnieri] é sempre substancioso, em termos de expressão recôndi-ta e penetrada da mágoa de nossos cantos populares. Essa dolência dá maior apreço à obra porque, na autenticidade da inspiração do autor, a sentimos bem nossa” (FRANÇA, 2001, p. 438); ou ainda, tratando das valsas para piano solo: “apesar do rebuscamento hábil e requin-tado do contraponto, o caráter seresteiro é sentido no bordejo dos violões [...], no contracanto da flauta [...] e na emotividade das frases” (MENDONÇA, 2001, p. 418).

Devemos considerar também sua formação pianística, com Erna-ni Braga (1888 - 1948) e Antonio Leal de Sá Pereira (1888 - 1966), e seu trabalho como pianista junto a casas de venda de partituras, que, segundo Verhaalen, lhe rendeu familiaridade com o repertório do pia-no erudito: “essa intimidade com a música de Bach, Chopin, Mozart e outros (...) foi de inestimável valor para o músico naquela época de

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sua vida” (2001, p. 20). A essa familiaridade com um repertório erudito tradicional, soma-se sua formação técnica-composicional, que se deu pelas mãos de dois mestres europeus: Lamberto Baldi (1885 – 1979) e Charles Koechlin (1867 – 1950).

Baldi chegou a São Paulo em 1926, e atuou como regente até 1931, ano em que se radicou em Montevidéu para assumir a então prestigiosa Orquestra do S.O.D.R.E. - Servicio Oficial de Difusión Radio Eléctrica. Foi aluno de Ildebrando Pizzetti (1880 - 1968) - um membro da geração de 18801, à qual pertenceu Respighi (1879 - 1936) -, o que nos faz intuir sua preferência pela polifonia e pela busca de uma expressão composicional neoclássica. André Egg (2010, p. 56) afirma que “Todos os testemunhos a respeito de Baldi são que ele era um músico bastante atualizado, conhecedor das principais obras modernas, especialmente as do modernismo francês e italiano, as quais introduziu na programação de concertos em São Paulo”. Nas palavras do próprio Guarnieri:

Baldi era uma pessoa incrível, homem de grande inteligência. Sua maneira de ensinar era integrada: Eu estudava harmonia, contraponto, fuga e orquestração simultaneamente, consultando a literatura musical, mas minha composição era livre. Ele jamais colocou obstáculos em meu caminho, apenas revia uma passagem e dizia: “não gosto disso, corrija!”. Uma das primeiras coisas que fez foi me colocar na orquestra, onde eu tocava todos os instrumentos de teclado – piano, xilofone, celesta... Eu passava o dia todo estudando, tocando na orquestra e à noite jantava com ele. As aulas eram depois da refeição. Éramos oito alunos e todos estudávamos desse modo (GUARNIERI apud VERHAALEN, 2001, p. 22, grifo nosso).

Guarnieri sempre prezou muito a instrução que recebeu do mes-tre italiano, a ponto de declarar: “do ponto de vista da técnica de composição, devo a Lamberto Baldi os ensinamentos mais eficazes e que constituem os princípios básicos que ainda hoje adoto” (GUAR-NIERI, 2001, p.15). Já seus estudos com Koechlin ocorreram mais de uma década depois (1938/39), em Paris, quando o compositor, então

1 A geração de Pizzetti e Respighi é chamada na Itália geração de 1880 e se caracteriza pelo interesse dos compositores em elementos da música antiga italiana e também por uma produção na qual a ópera não representa o carro chefe.

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com 31 anos e agraciado com uma bolsa de estudos do governo pau-listano, já possuía algum reconhecimento dentro do cenário musical brasileiro.2

Os estudos com o mestre francês se iniciaram com os rudimentos da harmonia e contraponto – a pedido do próprio Guarnieri (TONI, 2007, p. 132). Mesmo após Guarnieri ter apresentado sua música nos palcos parisienses e de sua relação com o professor francês ter se estrei-tado, “as aulas seguiram o mesmo padrão anterior: o professor oferecia os temas, o aluno trabalhava-os em corais ou fugas”. (2007, p. 116). As-sim, podemos entender que seu trabalho junto a Koechlin foi eminen-temente técnico-musical e abordou aspectos clássicos da composição, deixando de lado (ou, quiçá, em segundo plano) problemas como os relativos à estética contemporânea. Por outro lado, entendemos que o convívio com a efervescência da vida musical parisiense terminou por fomentar os questionamentos do compositor acerca de questões estéti-cas, como podemos observar na correspondência de Guarnieri escrita nesse período (RODRIGUES, 2001, p.327 - 331).

Assim, no fim da década de 1930, podemos afirmar que Guarnieri encerrara a etapa de estudante e como resultado dessa etapa observamos a formação de uma sólida técnica clássica, que primava por questões como forma, desenvolvimento melódico e, sobretudo, escrita contrapontística. Não podemos dizer que a opção por essa formação técnica tenha sido apenas fruto das circunstâncias, assim como não podemos afirmar que o compositor não conhecia outro universo

2 Em artigo que trata da relação de Guarnieri com o seu mestre francês, a musicóloga Flávia Toni ( 2007, p. 116) assim o descreve: Charles Koechlin (1867/1950), membro da burguesia da Alsácia, nasceu em Paris, onde seguiu a carreira militar abraçando tardia-mente a música em 1889. No Conservatório, além de estudar harmonia com Taudou, teve Massenet, Fauré e Gédalge como professores. Aos 42 anos, em 1909, profissional respeitado integrou o comitê fundador da Sociedade Musical Independente, grupo que unia forças para aclamar a música de Debussy, bem como a criação livre e que não mais encontrava abrigo junto à já antiga Sociedade Nacional.Conhecido pela defesa incondi-cional da liberdade e pelo amor à natureza, Koechlin sempre foi tido como intelectual respeitado, apesar de sua aparência um tanto excêntrica. Professor particular, conferen-cista e crítico musical, jamais lecionou no Conservatório onde se graduara, mas foi autor de sólida bibliografia para jovens músicos.

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estético, diferente do qual efetuou a formação de seu metier. O próprio Guarnieri assinalou por diversas vezes que, no início dos anos de 1930, estudara a música de Hindemith (1895 – 1963); além disso, uma vez em Paris, Guarnieri teve contato com diversas expressões da vanguarda. Dessa forma, o que se pode afirmar é que a opção pela construção de um metier composicional com certa continuidade em relação ao repertório clássico-romântico - que permitia a realização de obras menos radicais, em termos de renovação da linguagem - decorreu, em muito, das convicções e anseios pessoais do compositor. Por outro lado, vemos que essa tendência pessoal foi potencializada pela relação do compositor com Mário de Andrade: o esteta foi, dentre seus pares modernistas, o que maior formação musical possuía e, por isso, foi o teórico modernista que mais estudou e escreveu sobre música.

2 Camargo Guarnieri e Mário de Andrade

É difícil estabelecermos um direcionamento monofônico nos es-critos sobre música de Mário de Andrade; contudo, considerações so-bre alguns dos trabalhos mais importantes são pertinentes, a título de relacionamento com o objeto deste artigo. A primeira publicação foi o Ensaio sobre a Música Brasileira, de 1928, seguida de “Música, doce música” - uma coletânea de textos publicados em periódicos por An-drade em seu trabalho como crítico musical. Em 1939, o autor publica o ensaio Evolução social da música no Brasil (1939) e, como derradeiro trabalho musical, temos O Banquete (1945). Se os escritos iniciais apre-sentam a tese da formação de uma música erudita como emblema do nacional e conclamam os compositores a formá-la, no final dos anos trinta, o escritor apresenta um direcionamento distinto:

Cada vez mais consciente da necessidade de uma transformação política para a evolução da situação social do país, sentindo-se estéril após uma experiência mal fadada na política, e vendo os desumanos caminhos da ordem mundial, Mário abandona a fé na democracia burguesa e se envolve cada vez mais com os ideais políticos socialistas. No amadurecimento dessas idéias, ele recoloca, sem o mesmo fervor militante, os conceitos apresentados no Ensaio sobre a música brasileira. Ao final do ensaio Evolução social da música no Brasil, Mário resume o panorama exposto

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cuidadosamente no decorrer do ensaio, dividindo a música brasileira nas fases Universal (“dissolvida em religião”), Internacionalista (“com a descoberta da profanidade, o desenvolvimento da técnica e a riqueza agrícola”), Nacionalista (“pela aquisição de uma consciência de si mesma”) e Cultural (“livremente estética, e sempre se entendendo que não pode haver cultura que não reflita as realidades profundas da terra em que se realiza”) (ANDRADE, apud DE BONIS, 2006, p. 121). E a fase nacionalista pela qual ele passa recebe agora definição mais cuidadosa. É um momento dramático, em que o compositor tem de lutar contra “as suas próprias tradições eruditas, hábitos adquiridos” e se esforçar para “não se afogar nas condições econômico-sociais do país”. (DE BONIS, 2006, p. 121).

Esse período final da produção de Mário de Andrade, no qual suas idéias flertam com o socialismo, provavelmente influenciou Guarnie-ri, em termos de discurso – e não propriamente em termos musicais -, levando o compositor a predicar a feitura de uma arte socialmente utilitária, na qual cada compositor “cumpre suas funções diante do seu povo e das novas gerações de criadores da arte musical”3. (GUARNIERI apud SILVA, 2001, p. 143). Esse discurso é muitas vezes confundido com sua obra, que acaba sendo equivocadamente considerada como uma versão brasileira de realismo socialista.

Voltemo-nos agora ao Ensaio sobre a Música Brasileira, por ser a publicação de Mário de Andrade que maior influência teve sobre Guar-nieri: “no Brasil, o problema do nacionalismo consciente tem a sua base no livro do meu inesquecível amigo Mário de Andrade, Ensaio sobre a música brasileira, que todos conhecemos, onde ele, com aquela sua característica premonição, estabelece três fases.” (GUARNIERI apud SILVA, 2001, p. 389). O texto foi também utilizado pelo compositor durante décadas em suas atividades didáticas, como iniciação à estética nacionalista, e, por isso, consiste na publicação que maior repercussão teve sobre os compositores nacionalistas ligados a Guarnieri 4.

3 Outra referência socialista que influenciou o discurso do compositor foi seu irmão, o poeta Rossini Camargo Guarnieri – artista engajado e atuante na cena paulistana de meados do século XX.4 Em entrevista concedida especialmente para elaboração da tese de doutoramento do autor, os compositores Sérgio Vasconcelos- Correa e Osvaldo Lacerda apontaram a importância do Ensaio para a sua formação estética. Já Olivier Toni aponta que o Ensaio

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Dentre as idéias encontradas no Ensaio, notamos, como tema principal, a formação de uma tradição de música de concerto genuina-mente brasileira a partir da exploração consciente do material popular. Não se tratava de uma proposta puramente estética, antes, de uma proposta ideológica, pois essa tradição, uma vez estabelecida, colocaria a cultura brasileira ao lado das culturas já estabelecidas no campo da música5. No dizer de Ana Lúcia Kobayashi (2009, p. 38):

“[...] o projeto de Mário de Andrade consistia na busca da identidade nacional a ser obtida por meio de pesquisa de caráter científico das tradições populares. Com o estudo dos processos de criação da cultura popular, o compositor, utilizando-se das técnicas da música culta, faria a transposição dos elementos folclóricos para a música erudita. O compositor seria o responsável pelo desenvolvimento da arte de caráter nacional através da música culta visando à equiparação com a produção européia, tida como símbolo de desenvolvimento”.

E para defender seu projeto, Andrade se utiliza de uma retórica bastante “contundente”:

O que fizer arte internacional ou estrangeira, se não for gênio, é um inútil, um nulo. E é uma reverendíssima besta. [...]. Pois é com a observação inteligente do populário e aproveitamento dele que a música artística se desenvolverá. Mas o artista que se mete num trabalho desses carece alargar as idéias estéticas senão a obra dele será ineficaz ou até prejudicial. (ANDRADE, 1972, p.4 e 7).

Como forma de estabelecer critérios para coleta do material popu-lar que serviria de matéria prima para os compositores eruditos, encon-tramos no Ensaio, a preocupação do esteta em estabelecer um conceito sobre o “nacional em música” que abrangesse as mais diversas manifes-tações populares do Brasil, e não só os estereótipos exóticos da música

não foi tão relevante para sua formação, contudo reitera a utilização deste como uma espécie de introdução ao nacionalismo, utilizada por seu professor Camargo Guarnieri. (DE BONIS, 2006).5 As “culturas estabelecias” seriam, para Mário de Andrade, a italiana, a alemã e a francesa.

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indígena e africana 6. Sobre essa aversão ao caráter exótico, Andrade (1972, p. 1-8) ainda as-severa:

[...] no caso de Vila-Lobos, por exemplo, é fácil enxergar o coeficiente guassú com que o exotismo concorreu para o sucesso atual do artista. [...] Mas bastou que fizesse uma obra extravagando bem do continuado para conseguir o aplauso. [p.1]. [...] Se a gente aceita como um brasileiro só o excessivo característico cai num exotismo que é exótico até para nós. O que faz a riqueza das principais escolas européias é justamente um carácter nacional incontestável mas na maioria dos casos indefinível porém. Todo o caráter excessivo e que por ser excessivo é objetivo e exterior em vez de psicológico, é perigoso. Fatiga e se torna facilmente banal. É uma pobreza. [p. 1 e 8].

Como podemos intuir da citação acima, a proposta de nacionalis-mo elaborada por Andrade - que doravante conceituaremos marioan-dradiano7 - é bem mais sóbria que o modernismo visceral de Villa-Lobos – então modelo de nacionalismo. Essa proposta não buscava apenas im-pressionar, nem poderia flertar com a música ligeira e, sobretudo, não poderia cair no exótico, pois se tratava da representação do nacional. Ela demandava compositores com boa formação técnica, que trabalhassem de forma mais intelectual e reflexiva e que fossem criteriosos na escolha dos materiais empregados. Por isso, aos olhos de Andrade, nos anos vinte do século passado, faltavam compositores para realizar esse projeto. Por outro lado, olhando em retrospecto para a produção de Guarnieri, pode-mos dizer que o compositor o tenha realizado.

6 “Se escutam um batuque brabo muito que bem, estão gozando, porém se é modi-nha sem síncopa ou certas efusões líricas dos tanguinhos de Marcelo Tupinambá, isso é música italiana! Falam de cara enjoada. E os que são sabidos se metem criticando e aconselhando, o que é perigo vasto. Numa toada, num acalanto, num abôio desentocam a cada passo frases francesas, russas, escandinavas. Às vezes especificam que é Rossini, que é Boris. Ora, o quê que tem a Música Brasileira com isso! Se Milk parece com Milch, as palavras deixam de ser uma inglesa outra alemã?” (ANDRADE, 1972, p. 3) - Mais adiante, Andrade inclui a música indígena no panteão de exotismos brasileiros apre-ciados pelos europeus.7 Marioandradiano: referente a Mário de Andrade. Esse vocábulo será utilizado em todo o texto como adjetivo relacionado ao esteta paulista, inclusive com inflexão de gênero (marioandradiana).

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Mesmo assim - mesmo tendo realmente Mário de Andrade in-fluenciado a produção de Guarnieri - observamos que essa influência foi supervalorizada pela historiografia que trata do compositor (EGG 2010, p.22) e não pretendemos repetir aqui esta supervalorização. Apenas encontramos, na personalidade (e posteriormente, na técnica) do jovem Guarnieri, elementos potenciais para realização do projeto proposto por Andrade - elementos esses que no decorrer da carreira do compositor, se materializaram em uma produção ligada à estética marioandradiana. Em primeiro lugar, temos a aversão ao exotismo ex-presso nas obras de Guarnieri:

Durante a exposição [do primeiro movimento, do primeiro Concerto nº. 1 para violino e orquestra ], percebemos a aplicação de um dos princípios composicionais ao qual Guarnieri sempre foi fiel, que é a recusa consciente de qualquer exotismo. Por esta razão, evita o excesso de qualquer um dos componentes do discurso musical, procurando estabelecer o equilíbrio entre eles. (...) Precisa ainda ser dito que se trata do primeiro movimento de um concerto para violino, mas mesmo em seus finali, nos quais predominam os ritmos de danças, o uso do reforço rítmico característico da percussão não os transforma em exóticos produtos musicais à espera da curiosidade européia. (RODRIGUES, 2001, p. 482, grifo nosso).

Comparando a aversão ao exotismo apregoada por Mário de An-drade no Ensaio à produção de Guarnieri, encontramos tal compatibi-lidade, que parece ter o compositor seguido dogmaticamente as indi-cações do esteta; contudo, um olhar mais aprofundado nos revela que essa aversão ao exótico evidenciada por Guarnieri é muito mais uma característica pessoal do que fruto de sua educação estética marioan-dradiana. Vejamos como Rodrigues coloca em perspectiva o assunto, analisando a correspondência entre Mário de Andrade e Guarnieri:

Um dos pontos em que Mário mais insistiu, presente em várias críticas anteriores, encontra-se claramente definido em sua primeira carta: “você, de sua própria essência psicológica, já é um escritor difícil, um compositor sem grandes faculdades de amabilidade, que agradem a toda gente.” Guarnieri nunca esqueceu essa afirmação de Mário de Andrade e dela até parecia orgulhar-se. Tomou-a como uma verdadeira definição de sua personalidade musical, usando-a sempre para explicar

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suas dificuldades em tornar-se um compositor de maior popularidade. Ao final de sua vida, a afirmação de Mário já havia adquirido um significado de profecia que se cumprira. Foi reprimenda, é verdade, mas o compositor deu-lhe um peso relativo porque, do outro lado da questão, poderia correr o risco de banalidade e Guarnieri nunca admitiu correr esse risco, mesmo que trouxesse maior reconhecimento popular. O próprio Mário foi cuidadoso ao tratar o problema: você tem horror do agradável, por causa desse perigo do agradável que é se confundir com o banal. Está muito bem, esse horror, antes o medo do agradável é mais que justo, e nobilita o artista. Mas o diabo é que o horror do agradável está se tornando preconceito, e se transformando na mania do desagradável [...]. Guarnieri operou várias mudanças em sua música, ao longo da sua vida, mas não transgrediu com a banalidade. Preferiu aceitar a condição de compositor difícil, como se fosse uma fatalidade, decorrente da natureza de sua própria linguagem musical, à qual sempre foi fiel. (RODRIGUES, 2001, p. 323, grifo nosso).

No texto de Rodrigues, encontramos ainda outra ponderação de Mário de Andrade sobre ausência de efeitos na obra guarnieriana – que entendemos decorrer da aversão ao banal e ao belo comum que o compositor alimentava:

Você neste ponto é um antifrancês, é um germânico severíssimo e puro como Schoenberg. Você não procura desenvolver a sua inteligência do efeito, pelo lado mau que ela tem [...]. Durante toda a vida, Guarnieri recusou-se permitir que os efeitos instrumentais ocupassem lugar de destaque em sua música, reservando-lhes um papel secundário, subordinado ao domínio das prioridades formais. Ao mesmo tempo, não permaneceu refratário aos conselhos de Mário de Andrade, buscando sempre experimentar novos efeitos com discrição. Para conciliar essas posições aparentemente contraditórias, a solução encontrada foi a de dar funções formais aos efeitos instrumentais. Por exemplo, um determinado efeito pode ser empregado ao mesmo tempo como figura de acompanhamento e ambientação de tema, caracterizando e limitando o espaço que lhe é reservado na estrutura da obra, que, em conseqüência, torna-se formalmente mais clara. (RODRIGUES, 2001, p. 325-326, grifo nosso).

Como vemos, aversão ao exotismo se manifestava na busca de Guarnieri pela economia de material e na não utilização do estilo rapsódico – elementos esses comuns às obras de caráter semiculto e encontrados com freqüência em alguns nacionalismos. Dessa forma,

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o desenvolvimento e aproveitamento de cada motivo se torna capital para a realização de seu projeto composicional de cunho nacionalista, resultando em uma arte de pouco apelo populista – a despeito de sua intenção nacionalista -, na qual a economia de meios e a concisão são fatores primordiais, como vemos neste trecho de análise do primeiro movimento da Terceira Sinfonia de Guarnieri:

A célula rítmica do primeiro tema continua presente durante a exposição do segundo, contrapontando-o, como se fosse uma passarada. Não existe porém, nenhum exotismo, nem descritivismo vulgar, mas uma reminiscência poética do inconsciente do autor. O desenvolvimento temático é seguido pela reexposição, apenas do primeiro tema. [...]. (TACUCHIAN, 2001, p. 452, grifo nosso).

Em uma nota de rodapé mais desenvolvida do Ensaio, Mário de Andrade expõe uma teoria a respeito da formação da tradição de mú-sica de concerto em países como os do continente Americano. Nessa teoria, o esteta divide o processo que engendra a formação dessas tra-dições em distintos estágios, sendo que o estágio mais desenvolvido não apresenta citações de melodias folclóricas em obras de concerto. E Andrade conclui (1972, p.14):

Nos países em que a cultura aparece de emprestado que nem os americanos, tanto os indivíduos como a Arte nacionalizada, têm de passar por três fases: 1a fase da tese nacional; 2a fase do sentimento nacional; 3a fase da inconsciência nacional. Só nesta última, a Arte culta e o indivíduo culto sentem a sinceridade do hábito e a sinceridade da convicção coincidirem. Não é nosso caso ainda.

Assim, a 3ª fase, seria a desejável, pois demonstraria maturidade com-posicional pela ausência de citações folclóricas e incorporação do ethos nacional de forma inconsciente pelo compositor. Justamente observamos que Guarnieri buscava se inserir na 3ª fase do nacionalismo, pois nota-mos a preocupação do compositor em relação à incorporação do folclore em sua linguagem pessoal, sem que se tornasse um elemento estranho nas composições: “O elemento folclórico deve estar tão integrado na obra quanto na sensibilidade do compositor [...]”. (GUARNIERI, 2001, p. 15). Tacuchian, investigando essa questão nas sinfonias de Guarnieri, escreve:

A outra indagação o compositor me responde: “Minha temática é sempre a procura da quintessência da alma brasileira”. Esta brasilidade deve ser

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compreendida não pelo uso de clichês ou de elementos folclóricos, mas pela recriação a partir de uma realidade brasileira. “Hoje não tem mais cabimento o conceito de música nacionalista, mas sim o de música nacional brasileira”. Essa nuança de expressão do compositor traduz a essencialidade nacional que ele persegue, evitando cair no regionalismo. Raramente Guarnieri emprega em sua obra um tema tradicional. (2001, p. 448, grifo nosso).

E Caldeira Filho (2001, p. 17) resume:

Todos os aspectos nacionalistas por Guarnieri percebidos não geraram o poemático, nem o descritivo, nem o anedótico, nem o étnico, nem o documentário, como se vê dos gêneros a que principalmente se dedicou. Todas essas coisas não estão ausentes em sua obra, mas nela funcionam como desencadeadoras da criação, e, em conseqüência, da construção gradativa de uma linguística própria, pessoal.

O próprio Mário de Andrade, em crítica para o jornal Diário de São Paulo, escreve sobre Guarnieri em momento bem prematuro da carreira do compositor - 28/05/1935: “[...] e já é um nacionalismo de continuação, quero dizer: que não se alimenta diretamente do popu-lário, e apenas se apóia nele”. (ANDRADE, 1993, p. 313). Essas seme-lhanças entre o conteúdo do Ensaio e a produção guarnieriana conti-nuam a ocorrer no plano técnico-composicional: segundo Andrade, a harmonia seria um elemento impossível de ser nacionalizado, pois cairia sempre no comum:

A harmonização européia é vaga e desgraçada. Muito menos que raciais, certos processos de harmonização são individuais. [...] É absurdo pretender harmonização brasileira pois que nem a Alemanha nem a Itália nem a França com séculos de formação nacional, jamais não tiveram isso e adotaram as quartas e quintas do órgano talvez latino e as terças e sextas do falso bordão talvez céltico. Na infinita maioria dos documentos musicais do nosso populário persiste o tonalismo harmônico europeu herdado de Portugal. Nossa harmonização tem que se sujeitar consequentemente às leis acústicas gerais e às normas de harmonização da escala temperada. (ANDRADE, 1972, p. 18, grifo nosso).

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Considerando esse problema, a polifonia é indicada pelo esteta como principal saída para que se evite o empobrecimento da obra artística:

Onde já os processos de simultaneidade sonora podem assumir maior caracter (sic) nacional é na polifonia. [...] Nada impede por exemplo que os processos de melodia acompanhante que os nossos violeiros empregam sistematicamente no baixo, passe para outras vozes da polifonia. Esse baixo se manifesta às vezes como melodia completa e independente, apenas concordando harmoniosamente com a melodia da vox principalis [...]. (ANDRADE, 1972, p. 19).

Contudo, o autor era bastante restritivo em sua visão do uso dos ditames da polifonia tradicional diretamente sobre a composição mu-sical com finalidade artística8 e, por isso, esperava soluções pessoais para a utilização da polifonia a partir de elementos nacionais. E foi jus-tamente no uso pessoal da escrita polifônica que Guarnieri estruturou sua harmonia incomum e sua técnica composicional, que permitiu a fatura de uma obra de caráter nacionalista que evitasse o óbvio, o senso comum, os “ostinatos sincopados do baião mixolídio”... A visão musical horizontal de Guarnieri é assinalada em sua obra sinfônica pelo compo-sitor Ricardo Tacuchian, que em seguida cita o compositor:

[...] o conjunto da obra de Guarnieri chama muito a atenção pela diluição da harmonia em favor da horizontalidade dialogada: Sempre fui apaixonado por Bach. Minha música é mais polifônica que harmônica. O que existe é um agregado de sons que me agrada. (TACUCHIAN, 2001, p. 449, grifo nosso).

E é o próprio Guarnieri quem afirma utilizar o raciocínio polifôni-co em detrimento do raciocínio vertical, com finalidade da abrandar a violência do ritmo, que em todo o caso causaria certo desequilíbrio no discurso:

Em 1940, Guarnieri afirmava: “quanto ao problema da harmonia, a música nacional deve ser de preferência tratada polifonicamente. A qualidade de nossa rítmica, a sua força dinâmica, nos aconselha a

8 “Quanto aos processos já europeus de polifonização eles são muito perigosos e na maioria das feitas descaracterizam a melodia brasileira. Ou pelo menos a revestem muito mascaradamente. [...]. Processos desses não só não ajuntam caracter para a obra como podem descaracterizá-la”. (ANDRADE, 1972, p. 19).

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evitar as harmonizações por acordes, pois esses viriam acentuar mais violentamente ainda essa rítmica [...]. E concebida polifonicamente, a música brasileira, pela própria exigência de elasticidade e entrelaçamento das linhas melódicas, poderá disfarçar a violência dos seus ritmos sem que estes deixem de permanecer como base construtiva e de fundo dinâmico da criação. (GROSSI, 2004, p. 30).

Contudo, se a harmonia ocorre pelo desenvolvimento das linhas contrapontísticas, encontramos, por outro lado, um plano harmônico que não deixa dúvidas de que, para Guarnieri, a harmonia, mesmo diluída em linhas contrapontísticas, era um elemento controlado e pre-ciso em seu discurso. Assim, o uso da tonalidade fugidia ou difusa (ver citação abaixo), encontrado nas obras em questão, é uma característica de sua maneira de expandir a linguagem sem abandonar elementos que dessem forma à sua necessidade expressiva. Essa harmonia, pela sobrecarga cromática, chegou a ser chamada de atonal, no início da carreira de Guarnieri, contudo hoje, com certo distanciamento, não é possível considerar como atonais obras nas quais o estabelecimento e confirmação tonais são evidentes e planejados. O Ponteio para violão (1944), por exemplo, é uma peça em lá menor, contudo com um de-senvolvimento assumidamente atonal na seção central (PEREIRA, 2011. p. 60 à 62). Rodrigues aborda essa questão:

Se atonalidade é um conceito controverso ainda hoje, na época em que Mário escreveu suas cartas, as discussões sobre o assunto eram acirradas, não só quanto ao conceito que a palavra representava, como também sobre o emprego da própria palavra ao representá-lo. Alguns dos maiores teóricos do século opinaram sobre o assunto, entre eles Hindemith: “[...] há dois tipos de música que embora não possam ser chamadas “atonal” através da acumulação dos meios de expressão harmônicos, sobrecarregam o ouvido do ouvinte de tal maneira que ele se torne inapto para seguí-las completamente. Um desses tipos, embora parta de premissas diatônicas, opera com o material da escala cromática e concentra em pouco espaço, uma multiplicidade de relações de dominante, alterações e mudanças enarmônicas, que a tonalidade é rompida em grupos harmônicos de pequena duração”. Muitos trechos de obras de Guarnieri contemporâneas da Sonata se enquadram nessa definição. São obras nas quais se percebe que o compositor não se preocupava em evitar sistematicamente os encaminhamentos tonais,

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definindo sem rodeios, a tonalidade do princípio e do final da obra, mas usando, ao longo do discurso, procedimentos harmônicos tais como aqueles acima mencionados. Não se trata, rigorosamente, de música atonal, mas no Brasil da época não só Mário de Andrade como também a maioria dos críticos musicais denominavam-na assim, senão em seu todo, pelo menos em certos trechos. Guarnieri preferia usar o termo tonalidade “fugidia” ou “fugitiva” para esses casos [...]. (RODRIGUES, 2001, p. 324, grifo nosso).

Já em relação ao uso das formas ocidentais tradicionais, no Ensaio, o esteta paulista expõe certas reservas, pois as considera superadas em seu tempo, sendo sua proposta para a construção formal da música pura, baseada no uso das formas corais estróficas populares encontra-das nos desafios e cocos (p. 23) ou na utilização de danças populares:

Também quanto a formas corais (sic) possuímos nos reisados e demais danças dramáticas, e nos cocos muita base de inspiração formal. Nos cocos então as formas corais variam esplendidamente. E já que estou imaginando em peças grandes, é fácil de evitar as formas de Sonata, Tocata etc. muito desvirtuadas hoje em dia. [...] (ANDRADE, 1972, p. 23, grifo nosso). É seguir o exemplo de C. Franck no “Prelúdio Coral e Fuga”. Dentro de criações dessas, sempre conservando a liberdade individual a gente podia obedecer à obsessão humana pela construção ternária e seguir o conselho razoável de diversidade nas partes. “Ponteio, Acalanto e Samba”; chimarrita, Aboio e Louvação” etc. (ANDRADE, 1972, p. 25).

E neste campo – o da forma - encontramos congruências e incon-gruências entre os preceitos do Ensaio e as opções técnicas de Guar-nieri. Concordando com Andrade, no âmbito da pequena forma, o compositor produziu peças ou ciclos como Ponteios, Choros, Toada Sertaneja, Lundu, que aludem ao domínio da música rural ou nove-centista brasileira. Mesmo assim, nesses casos, o título trata muito mais do caráter do que da forma, já que estamos falando – em sua maioria - de pequenas peças monotemáticas, em forma binária ou ternária. Já, nas obras de maior envergadura - como a Sonata para piano (1972), os concertos para instrumento solista e orquestra, as sinfonias ou a mú-sica de câmara - sua utilização de formas tradicionais (como a forma de sonata ou a fuga) contraria a visão de Mário de Andrade: o esteta

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paulista entendia as formas tradicionais (como a sonata e a fuga) como ultrapassadas, já em 1928. Entretanto, essa postura de Guarnieri - mais ligada à tradição européia - denota a formação neoclássica do compo-sitor, que o levou a produzir música pura e autônoma – pelo menos no que diz respeito à forma - até o final de sua vida. A citação abaixo se inicia com uma fala de Guarnieri, na qual o compositor se auto-intitula brahmsiano9:

“Sou um homem brahmsiano, a forma é minha alucinação. Isto não quer dizer que ela me prende, o contrário, uso-a a serviço de minha imaginação e de minha expressão. O que vale na forma é seu aspecto geral, mas dentro dela recrio sempre novas propostas.” Esse caráter formal de Guarnieri é uma constante em toda a sua obra e em particular nas Sete Sinfonias. Isto não impede que mesmo nestas, ele use um coro (n° 5), faça apenas dois movimentos (n° 7) ou escreva um scherzo no meio do segundo movimento lento (n° 3). “A forma clássica da sonata é muito elástica. O esqueleto é que vale. Dentro dele podemos fazer o que quisermos”, completa o mestre. (TACUCHIAN, 2001, p 447-448).

Essa preocupação formal engendra questões como desenvolvi-mento temático e concisão formal, que também são caras ao autor e se colocam como solução para sua aversão ao exótico e ao rapsódico, anteriormente observada:

A técnica do desenvolvimento é um dos mais típicos recursos do compositor [Guarnieri, no caso]. Em suas mãos, qualquer motivo ganha proporções inimagináveis. Em toda a obra sinfônica, seus temas quando expostos, são imediatamente desenvolvidos. Pequenos motivos são usados por toda a obra, mesmo quando um segundo tema é apresentado. Às vezes, um segundo tema, embora com caráter contrastante ao primeiro, é formado com elementos evocativos deste, como é o caso do primeiro e do segundo temas do primeiro movimento da Sinfonia no. 4. Esta economia no material dá à obra de Guarnieri

9 Isto quer dizer muito sobre o sinfonismo pretendido por Guarnieri, já que Brahms (1833 – 1897) - mesmo após a difusão da técnica de forma cíclica nas sinfonias e do surgimento de obras como a Sinfonia Fausto (1857) de Lizst, cuja estrutura formal e texturas se apoiavam mais em idéias literárias, do que na idéia clássica de forma autônoma – manteve preocupações clássicas em relação à forma sonata, chamando para si a responsabilidade de continuador do sinfonismo alemão de Haydn, Mozart e, sobretudo, Beethoven.

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uma grande unidade que, aliás, é uma das principais características de seu estilo. A requintada capacidade de desenvolver já havia sido notada por Mário de Andrade quando afirmou, falando de Guarnieri, que “no Brasil há pelo menos um compositor que sabe desenvolver”. Quinze anos mais tarde, Luís Heitor declararia: “em poucos autores brasileiros o princípio eficaz do desenvolvimento temático – tão malsinado por certos pioneiros da arte musical contemporânea – encontra essa aplicação inteligente e dignificante que vamos achar na obra de Camargo Guarnieri” (TACUCHIAN, 2001, p. 448).

A orquestração de Guarnieri apresenta ainda características liga-das à representação de sonoridades características – sempre evitando o exótico - que foram predicadas por Mário de Andrade10. Essas caracte-rísticas não são centrais na obra do compositor, mas podem ser consta-tadas em observações como: “[...] com freqüência ele confia às cordas um acompanhamento fortemente sincopado, fazendo soar como um imenso violão” (VERHAALEN, 2001, p. 405); ou, segundo o próprio Mário de Andrade: “é um guizalhar de timbres como se a orquestra fosse uma enorme viola sertaneja” (TACUCHIAN, 2001, p. 449).

Um elemento muito peculiar da produção guarnieriana é seu intimismo, expresso especialmente na pequena forma e em andamentos lentos. Em entrevista, o compositor Sergio Oliveira Vasconcelos Correa, ex-aluno de Guarnieri, relatou que “[...] para se conhecer bem Guarnieri há que se escutar os movimentos lentos”

10 “O sinfonismo contemporâneo, que não é de nenhuma nacionalidade, é univer-sal, pode perfeitamente ser brasileiro também. (...) Nossos sinfonistas devem de pôr reparo na maneira com que o povo trata os instrumentos dele e não só aplicá-la para os mesmos instrumentos como transportá-la para outros mais viáveis sinfo-nicamente. Porque se o artista querendo numa obra orquestral dar um ponteio que nem o usado pelos violeiros e tocadores de violão, puser na partitura um bandão de cavaquinho, vinte violas e quinze violões, está claro que será muito difícil pelo menos por enquanto encontrar mesmo nas cidades mais populosas do país, numero de instru-mentistas capazes de arcar com as dificuldades eruditas da comparticipação orquestral. (...) Mas nossos ponteios, nossos refrães (sic) instrumentais, nosso ralhar, nosso toque rasgado da viola, os processos dos flautistas e dos violonistas seresteiros, o oficleide que tem para nós o papel que o saxofone tem no jazz, etc. etc. dão base larga para transposição e tratamento orquestral, de câmara ou solista.” (ANDRADE, 1972, p. 21, grifo nosso).

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(VASCONCELOS-CORRÊA, 2010)11. Esse caráter se tornou marcante em sua obra, especialmente pelo refinamento e pessoalidade nele encontrados, que representam a quintessência da música brasileira de seu tempo, recriação de formas e atmosferas populares em uma linguagem que prima pelo equilíbrio clássico e pela riqueza polifônica. Contudo, há outra faceta de Guarnieri que deve ser ressaltada, e essa faceta se expressa melhor nas obras orquestrais. Nas palavras de Verhaalen:

A obra orquestral de Camargo Guarnieri acrescenta uma dimensão inteiramente nova ao entendimento de seu estilo. Sua concepção contrapontística, o tratamento fragmentário, o estilo de litania do material temático, os ostinati e a vitalidade rítmica para ele representam novas possibilidades diante do grande número de combinações instrumentais e das ilimitadas opções tímbricas que ampliam a trama de sua música. (VERHAALEN 2001, p. 405, grifo nosso).

Em primeiro lugar, observamos na citação acima que Verhaalen reafirma a preferência de Guarnieri pela técnica contrapontística já assinalada neste trabalho. Mas, principalmente, fica patente um lado rítmico e enérgico de sua música, encontrado com bem menos fre-qüência – ou talvez, que chame menos atenção - em suas obras mais conhecidas, mas que é representativo de sua música sinfônica: “o inti-mismo da sétima Sinfonia se destaca [de forma incomum] no conjunto da obra sinfônica do autor [...]”. (TACUCHIAN, 2001, p. 462) ou “os primeiros temas dos movimentos rápidos [das sinfonias de Guarnieri] são enérgicos e percussivos; o autor quase sempre indica uma acen-tuação para cada nota [...]” (TACUCHIAN, 2001, p. 449). Esse caráter rítmico é amiúde, reforçado pela orquestração: “Com muita freqüên-cia inicia suas obras com vigorosos uníssonos (ou oitavas) nas cordas ou nos sopros (ibidem). E ainda: “Em muitos movimentos rápidos, os instrumentos mais graves funcionam como se fizessem parte da seção rítmica (sic) fornecendo um acompanhamento em ostinato, perfeito no que tange à precisão”. (VERHAALEN, 2001, p. 406).

11 Entrevista concedida em 09/04/2010, na residência do Compositor, na cidade de Guarujá, SP.

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Fora do âmbito sinfônico, um elemento marcante de sua obra or-questral - sobretudo a partir do início dos anos setenta – é seu atona-lismo e serialismo. Lutero Rodrigues também assinala todo um período de produção atonal do compositor como uma fase de aproximada-mente dez anos, precedida já por obras de maior afastamento tonal (RODRIGUES, 2001, p. 495-496). Já Lais de Souza Brasil assinala essa mesma fase a partir do 4º Concerto para Piano e Orquestra:

Apenas um ano separa o terceiro concerto da Seresta, que marca o início do terceiro estágio, compreendendo também os Concertos no. 4 e no. 5. Agora, a nacionalidade está ainda mais diluída, embora sempre presente, como num perfume indelével e marcante. A escrita se torna mais concisa e avançada, e os últimos traços remanescentes dos conceitos tonais e harmônicos são abolidos. A partir do Concerto no. 4, o compositor incorpora, inclusive, a técnica serial à sua linguagem. Alarga-se ainda mais a versatilidade expressiva do piano e sua função orgânica na massa orquestral. (BRASIL, 2001, p. 465, grifo nosso).

Esse aspecto de sua produção constitui uma espécie de contradi-ção ao estereótipo nacionalista. José Maria Neves (1981, p. 13) consi-derou o nacionalismo marioandradiano como uma espécie de realismo (socialista) musical, justamente pelo fato de que os compositores que seguiram os preceitos do esteta paulista (e especialmente Guarnieri) não terem acompanhado as inovações propostas no plano técnico, pela vanguarda da segunda metade do século XX. Nessa mesma linha, não é raro que parte da historiografia – sobretudo ligada à esquerda - ta-che a produção de Guarnieri como retrógrada e conservadora12. Por isso, a incursão de Guarnieri no campo do serialismo e de harmonias notadamente atonais se apresenta como uma contradição que impede qualquer rótulo primário para a classificação da produção guarnieriana.

3 Considerações finais

Como pudemos constatar, o projeto marioandradiano de nacio-nalismo e a formação neoclássica que o compositor teve junto a Baldi se materializam notavelmente na produção de Guarnieri. Mas disso não podemos extrair a afirmação de que Guarnieri seguira a doutrina

12 José Maria Neves (1981, p.109) também denominou os neoclassicismos europeus do entre guerras de neoclassicismo objetivo.

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do esteta paulista ou os preceitos técnicos de seus mestres como uma espécie de dogma que o levou simplesmente à formação de um obra de cunho neoclássico e nacionalista.

Sobre a relação estética entre Guarnieri e Andrade, podemos inclusive apontar outras divergências, como a crítica feita por Mário de Andrade à segunda Sonata para violino e piano (1933) de Guar-nieri, que foi registrada nas correspondências entre ambos (TONI, 2001, p. 201-299). Nessa crítica, é possível constatar a discordância do esteta em relação ao “atonalismo” e às “dissonâncias” encontrados na sonata. Podemos dizer que Guarnieri, nesse tempo, buscava seu enriquecimento técnico em direções pouco exploradas no Brasil da década de 1930 e que essa busca pessoal não condizia com o plano utilitário social da arte defendida por Mário de Andrade. Disso pode-mos extrair a conclusão que o compositor de Tietê sempre teve mais forte compromisso com sua poética pessoal do que com a estética marioandradiana. Outra questão cara a Mário de Andrade que nunca foi seguida com empenho por Guarnieri diz respeito à pesquisa fol-clórica. Alguns compositores que se volveram à estética nacionalista marioandradiana (como Guerra Peixe, por exemplo) a praticaram sis-tematicamente e com um rigor digno de nota, contudo, vemos que para Guarnieri – que raramente empreendeu pesquisas sistemáticas sobre folclore – os estudos sobre pesquisas de outros musicólogos foram suficientes para a fatura de sua obra nacionalista. Em resumo, Guarnieri herda de Mário de Andrade o projeto de construção de uma música de concerto genuinamente brasileira que deveria conter o ethos nacional sem citações folclóricas e herda ainda a concepção imperiosa do entendimento desse nacionalismo como necessário ao desenvolvimento da música erudita brasileira.

Já sobre sua formação neoclássica e o caráter de sua obra – que contém grandes ciclos para piano solo, obras sinfônicas, de dezenas de concertos para instrumento solista, sinfonias, óperas, sonatas – fica clara a busca pela construção nos moldes dos grandes mestres europeus do passado, ao mesmo tempo em que denota uma rejeição aos novos paradigmas adotados pela vanguarda musical do pós-guerra.

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Nesse mesmo sentido, é também notável a prolificidade de sua obra camerística, na qual se destacam sonatas para violino e piano, violoncelo e piano, quartetos de corda e ainda mais de duzentas canções com acompanhamento de piano. Mas se o caráter de sua produção traz à tona o binômio nacionalismo/neoclassicismo (que é visto como uma espécie de retrocesso da linguagem musical, em resposta à vanguarda serial), este não é suficiente para definir a produção guarnieriana, uma vez que, na prática, o compositor lançou mão de uma linguagem harmônica consideravelmente mais avançada do que a proposta contida em tal binômio. Podemos afirmar que o compositor soube sintetizar os preceitos estéticos e técnicos absorvidos durante seu período de formação, transformando-os de forma a produzir uma arte pessoal e referencial na música brasileira, cuja compreensão e estudo só é possível a partir da própria obra musical, pois, como pudemos observar, os rótulos ou classificações escolásticas se mostram míopes e insuficientes e na maioria das vezes levarão o leitor a uma concepção falsa da música à qual se referem.

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RODRIGUES, Lutero. A música, vista da correspondência. In: SILVA, Flávio (Org.). Camargo Guarnieri: o tempo e a música. Rio de Janeiro: Funarte; São Paulo: Imprensa Oficial, 2001. p. 321-335.

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TACUCHIAN, Ricardo. O sinfonismo guarnieriano. In: SILVA, Flávio (Org.). Camargo Guarnieri: o tempo e a música. Rio de Janeiro: Funarte; São Paulo: Imprensa Oficial, 2001. p. 447-463.

TONI, Flávia Camargo. A correspondência. In: SILVA, Flávio (Org.). Camargo Guarnieri: o tempo e a música. Rio de Janeiro: Funarte; São Paulo: Imprensa Oficial, 2001. p. 197-300.

______. Mon Chèr élève: Charles Koechlin, professor de Camargo Guarnieri. Revista do IEB, n. 45, p. 107-122, set. 2007.

VERHAALEN, Marion. Camargo Guarnieri: expressões de uma vida. Trad. Vera Silva Camargo Guarniei. São Paulo: EDUSP; Imprensa Oficial, 2001.

” (VASCONCELOS-CORRÊA, 2010)

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Projeto Editorial e Normas para Publicação

Projeto editorial

PAPÉIS: Revista do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens tem como objetivo a divulgação de ensaios inéditos, resenhas, entrevistas, elaborados por professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação, voltados para a grande área de Letras, Linguística e Artes, mais especificamente para as linhas de pesquisa do Programa, e que apresentem contribuições relevantes para a am-pliação e o aprofundamento do debate teórico, da análise de questões estéticas e culturais.Os trabalhos que atendam à linha editorial da revista são submetidos ao conselho editorial e encaminhados para análise por dois pareceristas ad hoc.A partir de 2006, ano de implantação do Programa de Pós-Graduação - Mes-trado em Estudos de Linguagens, a revista Papéis aceita contribuições com a seguinte temática:As edições de número par se dedicam aos estudos da literatura e as de número ímpar, aos estudos linguísticos e de semiótica. Para os estudos literários, aceitam-se artigos sobre:Poéticas modernas e contemporâneas, em abordagens individuais ou inter--relacionadas; comparações entre objetos de linguagens diferentes (artes visuais, artes plásticas, música, por exemplo); poesia ou narrativa.Literatura e memória cultural, compreendendo o estudo de textos literários em suas relações com outros textos, tratando as questões memorialistas como mani-festações de uma dada cultura.Para os estudos linguísticos e de semiótica, aceitam-se artigos sobre:Constituição do saber linguístico: estudos relativos às várias dimensões do saber linguístico, tendo a língua como complexo fenômeno de natureza sociocultural e histórica. Produção de sentido no texto/discurso: estudos sobre os procedimentos de organização textual, as variáveis sócio-históricas ou condições de produção que engendram o sentido do discurso em relação ao contexto.

Normas para publicação

O artigo deve ter extensão máxima, preferencialmente, de quinze laudas e vir acompanhado de resumo, contendo de três a cinco palavras-chave, e de abstract e keywords.Formatação: papel A4, margens de 3 cm, fonte Times New Roman, corpo 12, parágrafos justificados, primeira linha com recuo de 0,8 cm, espaçamento 1,5 entre linhas.

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Estrutura: título alinhado à esquerda na primeira linha, nome do autor alinhado à direita na segunda linha, subtítulos das seções alinhados à esquerda, em negrito e sem recuo de parágrafo.

Citações: o sobrenome aparece apenas com a primeira letra em maiúscula - Ex.: Hernandes (2006, p. 30) - ou com todas as letras maiúsculas - Ex: (HERNANDES, 2006, p. 30).Notas: se necessárias, devem constar do rodapé, com corpo 10 e espaçamento simples.

Referências: apresentadas ao final do texto, de acordo com as normas da ABNT. (Ver exemplos abaixo).

Livro:HERNANDES, Nilton. A mídia e seus truques. São Paulo: Contexto, 2006.Ensaio em periódico:NOLASCO, Edgar César. A pobreza é feia e promíscua. Revista Cerrados, Brasília, n. 21, p. 47-59, 2006.Capítulo de livro:SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cultural em ritmo latino. In: MARGATO, Izabel & GOMES, Renato Cordeiro (orgs.) Literatura/Política/Cultura. (1994-2004). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 239-252.Documentos eletrônicos:CAMPOS, Haroldo de. Uma leminskiada barrocodelica. Disponível em: www.planeta.terra.com.br/arte/PopBox/Kamiquase/ensaios.htm. Acesso em 08 mai. 2007.

Os autores deverão encaminhar, separadamente, sua identificação (nome do ar-tigo, nome do autor, instituição de vínculo, cargo, últimas publicações, etc) em texto que não ultrapasse 6 linhas; endereço, telefones para contato e e-mail.

Envio dos originais: os textos devem ser enviados por e-mail, em dois arquivos diferentes; o primeiro contendo identificação (nome, função, instituição e ende-reço); o segundo, o texto sem identificação de autoria.Para: [email protected]: Revista Papéis

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